Qual relação entre as previsões de Marx e a crise econômica atual?

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Vimos florescer nos dias atuais nas livrarias, particularmente na Europa, títulos de revistas bajulando o gênio deste "grande pensador" que foi Marx. Há pouco, alguns anos atrás, Marx era apresentado como o diabo. Então, porque esta reviravolta? Acontece que a crise econômica emergiu, uma crise que dificilmente cujo caráter de superprodução dificilmente pode ser negado, tal como é difícil contradizer o fundamento das análises de Marx, embora a burguesia tudo faça para obscurecer as implicações de tais análises.

As contradições mortais da sociedade burguesa

O Manifesto de 1848 começa com a famosa passagem sobre a história que além de tudo é a história da luta de classes. É ela que aponta que, em todos os modos de produção anteriores, o tecido social tinha se desmoronado desde o seu interior, tendo resultado "seja na transformação social da sociedade no seu conjunto seja na destruição das duas classes em luta" (Capítulo Burgueses e proletários do Manifesto). Na sociedade burguesa, o destino do proletariado é de ser o coveiro da ordem burguesa.

O espírito do Manifesto não esperava que a confrontação decisiva entre as classes resultasse simplesmente da simplificação das diferenças de classes no capitalismo. Era preciso que o sistema não fosse mais capaz de funcionar "normalmente"; que tivesse alcançado o ponto em que "... a burguesia se tornou incapaz de continuar assumindo seu papel de classe dirigente e de impor à sociedade a lei das condições de existência de sua classe" (Idem). Em outros termos, a derrubada da sociedade burguesa se torna uma necessidade vital para sobrevivência da classe explorada e da vida social.

O Manifesto percebia os sinais precursores deste momento que se aproximava através das crises que devastavam periodicamente a sociedade capitalista nessa época. O Manifesto destaca os seguintes elementos que caracterizam essas crises:

  • Elas são o resultado da superprodução de mercadorias. As imensas forças produtivas acionadas pelo capitalismo se chocam com os limites da forma de apropriação e de distribuição. Como Marx ia explicá-lo mais tarde, não se tratava de superprodução em relação às necessidades. Ao contrário, essa resultava do fato que as necessidades da grande maioria são necessariamente limitadas pela existência de relações de produção antagônicas. Tratava-se de superprodução em relação à demanda efetiva, quer dizer demanda apoiada por uma capacidade de pagamento;
  • o capitalismo dispõe de mecanismos para superar suas crises: a destruição de capital e "a conquista de novos mercados e a melhor exploração dos antigos" que permitiam escapar temporariamente do congestionamento do mercado nas zonas já conquistadas pelo capitalismo. Pela expressão "destruição de capital", Marx queria essencialmente dizer não a destruição física de fábricas e de máquinas não lucrativas, mas a destruição de valor pelo fato da crise torná-los inúteis. Isso, como Marx iria explicar posteriormente, devia ter um efeito benéfico sobre a taxa de lucro;
  • estes mecanismos destinados a evitar as contradições só faziam preparar o caminho para crises cada vez mais destruidoras. Em resumo, o capitalismo avançava necessariamente em direção a um impasse histórico.

Contra os militantes impacientes de seu próprio partido que pensavam que as massas podiam ser empurradas à ação pela simples vontade, Marx evidenciava que o proletariado teria provavelmente de travar lutas durantes décadas antes de chegar à confrontação decisiva com seu inimigo de classe.

É essa convicção que o levou a se dedicar ao estudo - melhor dizer à critica - da economia política, uma investigação profunda e ampla que ia tomar a forma escrita dos Grundrisse e dos quatros volumes do Capital. Para entender as condições materiais da revolução proletária, era necessário entender mais profundamente as contradições inerentes do modo de produção capitalista, as debilidades fatais que acabariam em condená-lo à morte.

A superprodução reside nas relações sociais capitalistas

Adam Smith e Ricardo tinham defendido o ponto de vista segundo o qual o valor das mercadorias baseava-se sobre o trabalho real dos homens. Marx evidenciou que, como os modos de produção anteriores, o capitalismo era fundado sobre a extração do sobretrabalho da classe explorada, que tomava a forma da extração da mais-valia, o tempo de trabalho livre extorquido ao operário, o que é dissimulado no contrato social. Depois Marx demonstra a diferença entre o modo de produção capitalista e os modos anteriores que não procuravam acumular riquezas, mas consumí-las, enquanto que no capitalismo o problema toma a forma de superprodução

As crises de superprodução que aparecem durante a segunda e a terceira década do século XIX são um indicativo da existência de barreiras insuperáveis no modo de produção burguês.

O capitalismo é a primeira forma econômica que generalizou a produção de mercadorias para a venda e o lucro no conjunto do processo de produção e distribuição. É nesta especificidade que se devia encontrar a tendência à superprodução.

Marx localizava as crises de superprodução nas próprias relações sociais que definem o capital como modo de produção específico: a relação do trabalho assalariado no seio da qual "A maioria dos produtores - os operários - nunca podem consumir o equivalente da sua produção, pois além deste equivalente, eles devem fornecer a mais-valia ou o sobreproduto. Para poder consumir ou comprar nos limites das suas necessidades eles sempre devem ser superprodutores, sempre produzir além das suas necessidades" (Teorias da mais-valia)

Obviamente, o capitalismo não inicia cada fase do processo de acumulação com um problema imediato de superprodução: nasceu e se desenvolveu como um sistema em expansão constante para novos domínios de troca lucrativos, na economia interna e em escala mundial ao mesmo tempo. Mas pelo fato desta contradição inevitável relativa à relação de trabalho assalariado, esta expansão constante é uma necessidade do capital para que possa rechaçar ou ultrapassar a crise de superprodução.

Marx continua mostrando que, quando uma extensão do mercado mundial permite ao capitalismo superar suas crises e continuar o desenvolvimento das forças produtivas, essa própria extensão se torna rapidamente incapaz de absorver o novo desenvolvimento da produção. Para ele, essas extensões não poderiam constituir um processo eterno: existem limites inerentes à capacidade do capital de se tornar um sistema realmente universal. Uma vez alcançados, esses limites levarão o sistema para o abismo (Grundrisse).

Assim, chegamos à conclusão que a superprodução é o primeiro fator que anuncia a falência do capitalismo. Ela é a evidência concreta, no capitalismo, da fórmula fundamental de Marx que explica a ascensão e o declínio de todos os modos de produção que existiram até o momento: ontem forma de desenvolvimento (neste caso, a extensão geral da produção de mercadorias) se torna hoje um obstáculo à continuidade do desenvolvimento das forças produtivas da humanidade.

A queda da taxa de lucro

Uma entre as críticas feitas por Marx aos economistas políticos (Adam Smith, Ricardo, ...) considera sua incoerência quando negam a superprodução de mercadorias enquanto admitem a superprodução de capital.

Entretanto, Marx, em particular no terceiro volume do Capital, demonstra que o fato do capital tender a se tornar superabundante, particularmente na sua forma de meios de produção, não pode ser um motivo de consolação para burguesia.

Com efeito, esta superabundância só faz desenvolver outra contradição mortal, a tendência à queda da taxa de lucro que Marx qualificava assim: "Entre todas as leis da economia política moderna, é a mais importante que há." (Grundrisse). Esta contradição também está inscrita nas relações sociais fundamentais do capitalismo: os capitalistas são, de maneira permanente, obrigados a revolucionar o processo de produção frente à pressão da concorrência. Isso significa aumentar a proporção entre o trabalho morto das máquinas e o trabalho vivo dos homens. Visto que só este último tem essa capacidade de acrescentar o valor (isso sendo o "segredo do lucro capitalista"), o capitalismo é confrontado à tendência intrínseca à diminuição da proporção de novo valor contido em cada mercadoria. É assim que se manifesta a tendência à queda da taxa de lucro.

Sobre este tema, nos Grundrisse, as reflexões de Marx ressaltam seu anúncio explícito da perspectiva do capitalismo: como as formas anteriores de servidão, não pode evitar entrar numa fase de obsolescência e senilidade na qual uma tendência crescente à autodestruição colocará diante da humanidade a necessidade de desenvolver uma forma superior de vida social.

O círculo vicioso das contradições capitalistas

Marx reconhece a existência de contratendências à queda da taxa de lucro, que fazem desta um obstáculo à produção capitalista a longo prazo e não no plano imediato: o aumento da intensidade da exploração; a queda do salário abaixo do valor da força de trabalho, a queda do preço de elementos do capital constante e o comércio exterior. A maneira de Marx tratar esta questão, em particular expressa como as duas contradições, superprodução e queda da taxa de lucro, são estreitamente ligadas. O comércio exterior exige em parte o investimento em fontes de força de trabalho mais baratas (como se vê hoje no fenômeno do outsourcing). Sobretudo, na mesma secção sobre o comércio exterior, fala-se também das "necessidades que lhe são inerentes, em particular aquela de um mercado cada vez mais extenso" (O Capital, Livro III). Isso também está ligado à necessidade de compensar a queda da taxa de lucro porque, mesmo se cada mercadoria contém menos lucro, contanto que o capitalismo possa vender mais bens, ele pode perceber uma massa maior de lucro. Mas aqui outra vez o capitalismo choca-se aos seus limites inerentes: "O mesmo comércio externo desenvolve o modo de produção capitalista no mercado interno, conseqüentemente a diminuição do capital variável em relação ao capital constante, e gera, por outro lado, a superprodução em relação aos mercados externos; produz por conseguinte, outra vez, a longo prazo, um efeito contrário." (Idem)

Procurando escapar de uma das suas contradições, a queda da taxa de lucro, o capitalismo fez apenas confrontar-se aos limites da outra, a superprodução. Assim Marx concebia a inevitabilidade "dos conflitos agudos, das crises, das convulsões..." dos quais já tinha falado no Manifesto. O aprofundamento dos seus estudos da economia política capitalista o tinha confirmado no seu ponto de vista segundo qual o capitalismo atingiria um ponto onde teria esgotado a sua missão progressista e passaria a ameaçar a própria capacidade da sociedade humana de reproduzir-se. Marx não especulou sobre a forma precisa que tomaria esta queda. Não pôde assistir a emergência das guerras imperialistas mundiais que, procurando ao mesmo tempo "resolver" a crise econômica para capitais específicos, tendiam a ficarem cada vez mais devastadoras para o capital como um todo e constituir uma ameaça crescente para a sobrevivência da humanidade. Do mesmo modo, tinha conseguido apenas enxergar a tendência do capitalismo em destruir o ambiente natural no qual, em última instância, baseia-se qualquer reprodução social. Por outro lado, pôs a questão do fim da época ascendente do capitalismo em termos muito concretos: a partir de 1858, Marx considerava que a abertura de vastas regiões como a China, a Austrália e a Califórnia ao capitalismo indicava que a tarefa de criar um mercado mundial e uma produção mundial baseada nesse mercado chegava ao seu fim; em 1881, dizia que o capitalismo tornara-se nos países avançados um sistema "regressivo", embora nos dois casos, pensasse que o capitalismo ainda tinha um caminho a realizar (sobretudo nos países periféricos) antes que deixasse de ser um sistema ascendente a nível global.

Inicialmente, Marx concebia os seus estudos do capital como uma parte de um trabalho mais vasto que abraçaria outros domínios de investigação como o Estado e a história do pensamento socialista. De fato, a sua vida foi demasiada curta para concluir até mesmo a parte "econômica". É por isso que o Capital permaneceu uma obra incompleta. Ao mesmo tempo, pretender elaborar uma teoria final decisiva da evolução capitalista teria sido alheio às premissas fundamentais do método de Marx, que considerava a história como um movimento sem fim e dialético necessariamente cheio de surpresas. Por conseguinte, na esfera da economia, Marx não trouxe resposta definitiva sobre qual contradição (o problema do mercado ou o da queda da taxa de lucro) ia jogar o papel mais decisivo na abertura das crises que terminariam por levar o proletariado a revoltar-se contra o sistema. Mas uma coisa é evidente: a superprodução de mercadorias como a superprodução de capital é a prova que a humanidade finalmente atingiu a etapa onde se tornou possível atender às necessidades da vida de todos e, por conseguinte, criar a base material para a eliminação de todas as divisões de classe. Que populações morram de fome enquanto as mercadorias que não podem ser vendidas acumulam-se nos armazéns ou que as fábricas que produzem os bens necessários para a vida fechem porque a sua produção não é lucrativa, o fosso imenso entre a potencialidade contida nas forças produtivas e o seu encerramento nas relações decorrentes da lei do valor, qualquer causa fornece os fundamentos da emergência de uma consciência comunista àqueles que são confrontados diretamente às conseqüências dos absurdos do capitalismo.

A situação atual

A compreensão que temos da dinâmica do capitalismo nos conduz a datar a sua entrada em decadência com o rompimento da Primeira Guerra Mundial[1]  As duas décadas de prosperidade que serão consecutivas à Segunda Guerra Mundial constituem apenas uma exceção ao agravamento da situação econômica. Também nos conduz a analisar a crise aberta no fim dos anos 1960 como um novo episódio das convulsões do capitalismo que, pela segunda vez na história, poderá constituir a base material para um novo assalto revolucionário por parte do proletariado.

Desde o fim dos anos 1960, recessões afetaram oficialmente os Estados Unidos em 1969, 1973, 1980, 1981, 1990 e 2001. A solução utilizada a cada momento pela burguesia americana para enfrentar estas dificuldades é evidenciada pela curva da dívida da qual o declive aumenta fortemente a partir de 1973 e desmedidamente a partir dos anos 1990. Todas as burguesias do mundo têm com efeito agido da mesma maneira.

Estes quarenta últimos anos se resumem, por conseguinte, em uma sucessão de recessões e uma subida exponencial da dívida mundial, onde cada nova dívida tem por função criar artificialmente os mercados necessários à uma retomada da atividade econômica, para sair da recessão.

Desde 1966, a dívida é cada vez menos eficaz para gerar o crescimento de modo que o volume da dívida mundial está mais e mais desproporcional em relação à riqueza real da economia mundial. É este fenômeno que traduz o fato de que a dívida constitui uma porcentagem sempre maior do PIB, agora efetivamente superior a 100% em alguns países.

Atualmente e particularmente após as somas colossais mobilizadas nos últimos dois anos para tentar frear a recessão mais profunda desde a Segunda Guerra Mundial e potencialmente mais grave que a dos anos 1930, uma nova etapa da dinâmica da crise do capitalismo está aberta. No melhor dos casos, ver-se-ão apenas retomadas de curta duração no seio de um curso geral à recessão. Constitui a condição de um desenvolvimento da luta de classes em escala mundial que pode desembocar no questionamento revolucionário deste sistema. 


 


[1] Manifesta-se mesmo no auge da prosperidade capitalista, o que pôde alimentar a tese segundo a qual, contrariamente ao posicionamento do conjunto da vanguarda revolucionária naquela época, o conflito mundial não respaldava necessariamente a entrada nesta fase da vida do capitalismo, a da sua decadência, dominada pela permanência de contradições insuperáveis. Realmente, para além da exacerbação das rivalidades entre grandes potências, a Primeira Guerra Mundial encontra a sua origem em uma das contradições fundamentais do capitalismo, o caráter necessariamente limitado dos mercados extracapitalistas. Embora nessa época, não existisse globalmente ainda uma escassez de tais mercados, garantir-se o acesso a estes era uma necessidade vital para todas as potências capitalistas, cujo preço teve de  ser pago na guerra.