A revolução proletária de outubro de 1917 é produto da ação consciente e massiva dos trabalhadores

Em 1914 os senhores "bons funcionários" de governantes, reis, políticos, militares, como expressões e agentes de um sistema social que entrava na sua época de decadência, levaram o mundo ao cataclismo da Primeira Guerra Mundial: mais de 20 milhões de mortos, destruições jamais vistas até então, desabastecimento, penúria e fome na retaguarda; morte, selvageria da disciplina militar, sofrimentos sem limites no front; toda Europa se viu inundada no caos, na barbárie, na aniquilação de indústrias, edifícios, monumentos...O proletariado internacional, depois de ter se deixado arrastar pelos venenos patrióticos e as falácias democráticas dos governos, avalizados pela traição da maioria dos partidos social-democratas e dos sindicatos, começou a reagir contra a barbárie guerreira desde finais de 1915. Greves, revoltas contra a fome, manifestações contra a guerra, explodem na Rússia, Alemanha, Áustria, etc. E no front, sobretudo nos exércitos russo e alemão, surgem motins, deserções coletivas, confraternização entre soldados de ambos os lados. À cabeça do movimento estão os internacionalistas, os bolcheviques, os espartaquistas, toda esquerda da Segunda Internacional que desde a explosão da guerra em agosto de 1914, a denunciam sem vacilar como uma rapina imperialista, como uma manifestação da débâcle do capitalismo mundial, como o sinal para que o proletariado cumpra sua missão histórica: a revolução socialista internacional.

 

Herança da Esquerda comunista: 

O desenvolvimento do movimento, de fevereiro a outubro de 1917

À vanguarda deste movimento internacional que acabará com a guerra e abrirá a possibilidade da revolução mundial, os operários russos desde finais de 1915 protagonizam greves econômicas que são duramente reprimidas. No entanto, o movimento cresce: o 9 de janeiro de 1916 - aniversário do início da Revolução de 1905 - é comemorado pelos trabalhadores com greves massivas. Novas greves estouram ao longo do ano acompanhadas por comícios, discussões, reivindicações, choques com a polícia.

A revolução russa, ponta de lança do movimento internacional do proletariado contra a guerra mundial

"No fim de 1916, os preços estão subindo vertiginosamente. À inflação e a desorganização dos transportes se acrescenta uma enorme escassez de mercadorias. O consumo da população se reduz neste período a menos da metade. A curva do movimento operário ascende bruscamente. Em outubro, a luta entra numa fase decisiva, unindo todas as formas de descontentamento numa só. Petrogrado tomava impulso para o grande salto de fevereiro. Uma onda de comícios recobre as fábricas. Temas: abastecimento, carestia de vida, a guerra, o governo. Panfletos bolcheviques são distribuídos; começam greves políticas. Manifestações improvisadas nos portões das fábricas. São observados casos de fraternização entre certas fábricas e os soldados. Estoura uma tulmutuosa greve de protesto contra o processo dos marinheiros revolucionários da Frota do Báltico. (...) os operários sentem cada vez mais que não há mais retirada possível. Em cada fábrica, um núcleo ativo estava se formando, geralmente em torno dos bolcheviques. Durante as duas primeiras semanas de fevereiro, as greves e comícios se sucediam ininterruptamente. No dia 8, na fábrica Putilov, os policiais foram recebidos por uma "chuva de escórias e ferro-velho". (...) No dia 19, uma massa de pessoas se reúne perto dos armazéns de provisões, formada principalmente por mulheres, exigindo pão. No dia seguinte, padarias foram saqueadas em várias partes da cidade. Eram os alvores da revolução, que chegaria alguns dias mais tarde.[1]

Um movimento de massas

Acabamos de ver as etapas sucessivas de um processo social que hoje muitos operários consideram utópico: a transformação dos trabalhadores de uma massa atomizada, apática, dividida, em uma classe unida que atua como um só homem e se volta capaz de lançar ao combate revolucionário, como demonstram os 5 dias que vão de 22 a 27 de fevereiro de 1917.

"No dia seguinte, o movimento não apenas não diminuiu, mas dobrou. Cerca de metade dos trabalhadores industriais de Petrogrado estavam em greve de manhã; ao invés de irem trabalhar, eles organizaram reuniões; então iniciaram cortejos rumo ao centro. Novos bairros e novos grupos da população foram atraídos pelo movimento. A palavra de ordem "Pão!" desaparece ou se obscurece por outras fórmulas: "Abaixo a autocracia!", "Abaixo a guerra". Contínuas manifestações na Nevsky (Principal avenida da cidade - N.E) (...) Em 23 de fevereiro, sob a bandeira do "Dia da Mulher", começa a revolta, há muito madura e há muito negada, das massas operárias de Petrogrado. O primeiro passo da insurreição foi a greve. No curso de três dias, ela se ampliou e se tornou praticamente geral. Apenas isso dá confiança às massas e leva-as adiante. Tornando-se cada vez mais agressiva, a greve se uniu às manifestações, que põem as massas revolucionárias face a face com as tropas. (...) as massas não mais retrocederiam, elas resistirão com um brilhante otimismo, ficavam nas ruas mesmo após descargas mortais (...) "Não atire em seus irmãos e irmãs!", gritam os operários. E não apenas isso: "Marchem conosco!". Assim nas ruas e praças, pelas pontes e portas dos quartéis, é travada uma luta ininterrupta, ora dramática ora imperceptível - mas sempre uma luta desesperada, pelo coração do soldado. (...) Os operários não iriam se render ou se retirar; sob uma chuva de balas eles ainda mantinham sua posição. E com eles iam suas companheiras, esposas, mães, irmãs. Chegara a hora de que tanto se falava em voz baixa: "Se todos pudéssemos nos unir"...[2] .

As classes dirigentes não podem acreditar, pensam que se trata de uma revolta que desaparecerá com um bom castigo. O fracasso estrondoso das ações terroristas de pequenos corpos da elite comandados por coronéis da gendarmaria evidencia as firmes raízes do movimento: " "A revolução parece indefesa a estes coronéis verbalmente audaciosos, porque ainda é terrivelmente caótica (...) É suficiente, pode-se pensar, levantar uma espada sobre todo esse caos, e ele se dispersaria sem deixar rastro. Mas isso é uma grosseira ilusão de ótica. O caos é apenas aparente. Debaixo dele está se processando uma irresistível cristalização das massas em torno de novos eixos. ..." [3]

Uma vez rompidas as primeiras cadeias, os operários não querem retroceder e para caminhar sobre terra firme retomam a experiência de 1905 criando os Sovietes, organizações unitárias do conjunto da classe em luta. No entanto, os Sovietes são imediatamente dominados pelos partidos menchevique e social-revolucionário, antigos partidos operários que passaram ao campo burguês por sua participação na guerra, e permitem formar um Governo provisório onde estão os "grandes personagens" de sempre: Miliukov, Rodzianov, Kerenski...

A primeira obsessão desse governo é convencer os operários de que devem "voltar a normalidade", "abandonar os sonhos" e transformar-se na massa submissa, passiva, atomizada, que a burguesia necessita para manter seus negócios e continuar a guerra. Os operários não engolem. Querem viver e desenvolver a nova política: a que exercem eles mesmos, unindo em um laço inseparável a luta por seus interesses imediatos com a luta pelos interesses gerais do conjunto da humanidade. Assim, frente à insistência dos burgueses e social-traidores de que "o que toca é trabalhar e não reivindicar, porque agora temos liberdade política", os operários reivindicam a jornada de 8 horas para terem "liberdade" para se reunirem, discutir, ler, estar com os seus: "... uma onda de greves recomeçou depois da queda do absolutismo. Em cada fábrica ou oficina, sem esperar os acordos firmados nas alturas, se apresentaram reivindicações sobre os salários e a jornada de trabalho. Os conflitos se agravaram dia a dia e se complicavam em uma atmosfera de luta[4].

Em 18 de abril, Miliukov, ministro liberal do partido kadete do governo provisório, publica uma nota reafirmando o compromisso da Rússia com os aliados na continuação da guerra imperialista, a qual é uma verdadeira provocação. Os operários e os soldados respondem imediatamente: surgem manifestações espontâneas, são realizadas assembléias massivas nos bairros, nos regimentos, nas fábricas: "A comoção que inundava a cidade, contudo, não descia de nível. Multidões se reuniam, comícios continuavam, discutia-se nas esquinas, as pessoas nos bondes se dividiam em partidários e adversários de Miliukov. (...) Também em Moscou os operários abandonaram as oficinas e os soldados saíram dos quartéis, enchendo as ruas com protestos tempestuosos.[5]

Em 20 de abril uma gigantesca manifestação força a demissão de Miliukov. A burguesia deve retroceder em seus planos de guerra. Maio registra uma frenética atividade de organização. Há menos manifestações e menos greves, porém isso não expressa um refluxo do movimento, mas ao contrário, manifesta seu avanço e desenvolvimento, porque os operários se dedicam a um aspecto de seu combate até então pouco desenvolvido: sua organização massiva. Os Sovietes se estendem aos recantos, mesmo os mais recônditos da Rússia, ao seu redor aparece uma multidão de órgãos de massa: Comitês de fábrica, Comitês de camponeses, Sovietes de bairro, Comitês de soldados. Através deles as massas se agrupam, discutem, pensam, decidem. Debaixo de seu cálido alento se despertam os grupos de trabalhadores mais atrasados: "... A servidão, tratada antes como bestas ao que quase não pagavam nada, adquiriu noção de sua própria dignidade. Um par de sapatos custava mais de 100 rublos e como o salário médio não passava de 35 ao mês, as criadas se negavam a estar nas filas e gastar o calçado. (...) Até os cocheiros tinham seu sindicato e seu representante no Soviete de Petrogrado. Os criados e camareiros se organizaram e renunciaram as gorjetas[6].

Os operários e soldados começam a se cansar das eternas promessas do Governo provisório e do apoio que lhe dão os socialistas mencheviques e socialista revolucionário. Comprovam como crescem as filas, o desemprego, a fome. Vêem que diante da guerra e a questão camponesa, os de cima só oferecem discursos brilhantes. Estão se fartando da política burguesa e começam a vislumbrar as últimas conseqüências de sua própria política: a reivindicação de "Todo o poder para os sovietes!" se transforma na aspiração de amplas massas operárias [7].

Junho é um mês de intensa agitação política que culmina com as manifestações armadas dos operários e soldados de Petrogrado de 4 à 5 de julho: "... As fábricas se moveram para a linha de frente. Além disso, foram arrastadas para o movimento as fábricas que ontem ficaram de lado. Onde os líderes hesitavam ou resistiam, jovens operários obrigavam os membros em serviço do comitê de fábrica a tocar o apito como um sinal para parar o trabalho. (...) Todas as fábricas paravam e faziam comícios. Elegiam líderes para a manifestação e delegados para apresentar suas demandas (...) De Kronstadt, de New Peterhoff, de Krasnoe Selo, do forte de Krasnaia Gorka, de todos os centros próximos, por terra e mar, soldados e marinheiros marchavam com música, armas e, pior ainda, com cartazes bolcheviques. ...[8].

No entanto, as jornadas de Julho se acabam com um amargo fracasso para os trabalhadores. A situação não está ainda madura para a tomada do poder, pois os soldados não se solidarizaram de maneira plena com os operários; os camponeses estão cheios de ilusões a respeito dos Social-revolucionários e o próprio movimento nas províncias está atrasado comparativamente à capital.

Nos dois meses posteriores -agosto e setembro-, aguçados pela amargura da derrota e forçados pela violência da repressão burguesa, os operários vão resolver praticamente estes obstáculos, não através de um plano de ação preconcebido senão como produto de um oceano de iniciativas, de combates, de discussões nos Sovietes, etc., que vão materializando a tomada de consciência do movimento. Assim, a ação dos operários e soldados acaba se fundindo plenamente: "... Aparece um fenômeno de osmose, especialmente em Petrogrado. Quando a agitação se apropria do bairro operário de Vyborg, os regimentos aquartelados na capital entram em efervescência e vice-versa. Os operários e os soldados se habituam a sair à rua para manifestar ali seus sentimentos. A rua lhes pertence. Nenhuma força, nenhum poder, pode nesses momentos, lhes proibir de agitar suas reivindicações ou cantar a pleno pulmão hinos revolucionários[9].

Depois da derrota de julho, a burguesia acredita que, por fim, pode acabar com o pesadelo. Para ele, se repartindo o trabalho entre o bloco "democrático" de Kerenski e o bloco abertamente reacionário de Kornilov -generalíssimo dos exércitos-, organiza o golpe militar deste último, que reúne os regimentos de soldados, caucásicos etc., que ainda parecem ser fiéis ao poder burguês e tenta lançá-los contra Petrogrado.

Porém a intentona fracassa estrepitosamente. A reação massiva dos operários e dos soldados, sua firme organização em um Comitê de defesa da Revolução -que sob controle do Soviete de Petrogrado se transformará no Comitê militar revolucionário, órgão da insurreição de Outubro- fazem que as tropas de Kornilov ou bem fiquem imobilizadas e se rendam, ou bem, o que sucede na maioria dos casos, desertem e se unam aos operários e soldados.

"A conspiração foi conduzida por círculos que não sabiam fazer nada sem as baixas fileiras, sem a força de trabalho, sem a carne para canhão, sem ordenanças, servos, notários, condutores, mensageiros, cozinheiros, lavadeiras, guarda-chaves, telegrafistas, cocheiros etc. Mas todos estes pequenos elos e raios humanos, imperceptíveis, incontáveis, necessários, estavam com o Soviete contra Kornilov (...) O ideal da educação militar é que o soldado deve agir fora das vistas do oficial como se estivesse sob seus olhos. Mas os soldados e marinheiros russos de 1917, sem cumprir as ordens oficiais nem mesmo ante os olhos dos comandantes, apanhavam avidamente no ar as ordens da revolução, e frequentemente as cumpriam por iniciativa própria antes que elas chegassem. (...)

Não espanta que as massas dirigidas pelos bolcheviques na luta contra Kornilov nem por um momento confiassem em Kerensky. Para elas não era um caso de defender o Governo, mas de defender a revolução. Para isto, tanto mais era resoluta e devotada a sua luta. A resistência aos rebeldes brotava dos próprios trilhos, das pedras, do ar. Os ferroviários da estação de Luga, onde chegara Krymov, obstinadamente se recusaram a mover os trens das tropas, aludindo a falta de locomotivas. Os escalões cossacos se viram também imediatamente cercados pelos soldados armados da guarnição de Luga, vinte mil homens. Não houve confronto militar, mas algo muito mais perigoso: contatos, troca social, interpenetração. [10]

Um movimento consciente

Os burgueses concebem as revoluções operárias como um ato de demência coletiva, um caos horrível que acaba pavorosamente. A ideologia burguesa não pode admitir que os explorados possam atuar por sua própria conta. Ação coletiva e solidária, ação consciente da maioria trabalhadora, são noções que o pensamento burguês considera uma utopia antinatural (o "natural" para a burguesia é a guerra de todos contra todos e a manipulação pelas elites das grandes massas humanas).

"...em todas as revoluções passadas, quem lutava nas barricadas eram os trabalhadores, aprendizes, em parte estudantes, e os soldados tomavam seu partido. Mas depois a sólida burguesia, tendo assistido cautelosamente as barricadas de suas janelas, recolhia o poder. Mas a Revolução de Fevereiro de 1917 se distinguiu das antigas revoluções pelo seu caráter social e nível político incomparavelmente maiores da classe revolucionária, pela desconfiança hostil dos insurretos pela burguesia liberal, e a conseqüente formação, no momento mesmo da vitória, de um novo órgão de poder revolucionário, o soviete, baseado na força armada das massas." [11]

Esta natureza totalmente nova da Revolução de Outubro corresponde ao ser mesmo do proletariado, classe explorada e revolucionária de vez, que só pode libertar-se se for capaz de atuar de maneira coletiva e consciente.

A Revolução Russa não é o simples produto passivo de umas condições objetivas excepcionais. É também o produto de uma tomada de consciência coletiva. Sob a forma de lições, de reflexões, de consignas, de recordações, podemos ver nela a impressão das experiências do proletariado, da Comuna de Paris de 1871, da revolução de 1905, das batalhas da Liga dos comunistas, da Primeira e Segunda Internacional, da Esquerda de Zimmerwald, dos bolcheviques. A revolução russa é sem dúvida uma resposta à guerra, a fome e a barbárie agonizante do czarismo, porém é uma resposta consciente, guiada pela continuidade histórica e mundial do movimento proletário.

Isto se manifesta concretamente na enorme experiência dos operários russos que haviam vivido as grandes lutas de 1898, 1902, a Revolução de 1905 e as batalhas de 1912-14, de vez que haviam feito surgir de suas entranhas o partido bolchevique, na ala esquerda da Segunda Internacional. "...Em outras palavras era preciso não contar com as massas no abstrato, mas com as massas operárias de Petrogrado e os operários russos em geral, que passaram pela Revolução de 1905, pela insurreição de Moscou de dezembro de 1905, e esmagados pelo Regimento Semenovsky da Guarda. Era preciso que por esta massa estivessem espalhados operários que refletissem sobre a experiência de 1905, criticando as ilusões constitucionais dos liberais e mencheviques, assimilando as perspectivas da revolução, meditando centenas de vezes sobre a questão do exército[12].

Mais de 70 anos antes da Revolução de 1917, Marx e Engels escreviam que: "... a revolução não só é necessária porque a classe dominante não pode ser derrubada de outra maneira, senão também porque unicamente por meio de uma revolução poderá a classe que derruba a outra, sair da lama em que está submersa e voltar-se capaz de fundar a sociedade sobre novas bases[13]. A Revolução russa confirma plenamente esta posição: o movimento mesmo contribui com os materiais para a auto-educação das massas: "Uma revolução ensina, e ensina rápido. Nisto está sua força. Cada semana traz algo novo para as massas. A cada dois meses se cria uma época. No fim de fevereiro, a insurreição. No fim de abril, uma manifestação de operários e soldados armados em Petrogrado. No início de julho, um novo ataque, mas amplo em seu alcance e com palavras de ordem resolutas. No fim de agosto, a tentativa de golpe de Kornilov foi batida pelas massas. No fim de outubro, a conquista do poder pelos bolcheviques. Sob estes eventos, tão marcantes em seu ritmo, ocorriam processos moleculares, soldando as partes homogêneas da classe operária num todo político[14]

"Toda Rússia aprendia a ler e efetivamente lia livros de economia, de política, de história, lia porque queria saber... A sede de instrução, tanto tempo freada, abriu passagem ao mesmo tempo que a revolução, com força espontânea. Nos primeiros seis meses da Revolução tão só do Instituto Smolny se enviavam a todos os confins do país toneladas, caminhões e trens de publicações. A Rússia tragava o material impresso com a mesma insaciabilidade que a areia absorve a água... Depois a palavra. A Rússia viu-se inundada de tal torrente de discursos que, em comparação, a "avalanche de loquacidade francesa", de que fala Carlyle, não passa de ser um regato. Conferências, controvérsias, discursos nos teatros, circos, escolas, clubes, quartéis, salas dos Sovietes. Comícios nas trincheiras da frente de batalha, nas praças do interior, nos pátios das fábricas. Que admirável espetáculo oferece a fábrica Putilov quando de seus muros saem em compacta torrente 40 000 operários para ouvir os social-democratas, anarquistas, ou quem seja, fale do que fale e por muito tempo que fale! Durante meses inteiros, cada cruzamento das ruas de Petrogrado e de outras cidades russas era uma constante tribuna pública. Surgiam discussões e comícios espontâneos nos trens, nos bondes, em todas as partes... As tentativas de limitar o tempo dos oradores fracassavam estrepitosamente em todos os comícios e cada qual tinha a plena possibilidade de expressar todos seus sentimentos e idéias[15].

A "democracia" burguesa fala muito de "liberdade de expressão" quando a experiência nos diz que tudo nela é manipulação, teatro e lavagem cerebral; a autêntica liberdade de expressão é a que conquistam as massas operárias com sua ação revolucionária: "Em cada fábrica, em cada corporação, em cada companhia, em cada taverna, no hospital militar, nos centros de transferências, mesmo nas vilas despovoadas, o trabalho molecular do pensamento revolucionário progredia. Por toda parte havia comentaristas e quem esperasse as palavras necessárias. Estes líderes estavam quase sempre entregues a si mesmos, nutriam-se de fragmentos de generalizações revolucionárias que vinham até eles por vários caminhos, descobrindo por si mesmos, entre as linhas dos jornais liberais, o que eles precisavam. Seu instinto de classe era refinado por um critério político e, embora não levassem todas as suas idéias até o fim, não obstante pensavam sem cessar, obstinadamente a trabalhar em uma só direção. Elementos de experiência, crítica, iniciativa, auto-sacrifício, penetravam nas massas e criavam, de forma invisível a uma olhada superficial, mas não menos decisiva, uma mecânica interna do movimento revolucionário como um processo consciente[16].

Esta reflexão, esta tomada de consciência, punha a nu... " ... toda a injustiça material e moral infringida aos trabalhadores, a exploração inumana, os salários de miséria, o trabalho extenuante, o dano causado a sua saúde, os sistemas de castigo requintado, o desprezo e a ofensa a sua dignidade humana pelos capitalistas e patrões, este conjunto de condições de trabalho insalubres e vergonhosas que os são impostas, este inferno inteiro que representa o destino diário do proletário debaixo do jugo capitalista[17].

Por isso mesmo, a Revolução russa apresenta uma unidade permanente, inseparável, entre a luta política e a luta econômica: "Cada onda de ação política deixa atrás de si um terreno fértil de onde surgem imediatamente mil brotos novos: as reivindicações econômicas. E inversamente, a guerra econômica incessante que os operários travam contra o capital mantém desperta a energia combativa inclusive nas horas de tranqüilidade política; de alguma maneira constitui uma reserva permanente de energia de que a luta política extrai sempre forças renovadas. Ao mesmo tempo o trabalho infatigável de corrosão reivindicativa desencadeia aqui e ali conflitos agudos a partir dos quais estouram bruscamente batalhas políticas[18].

Este desenvolvimento da consciência levou em junho-julho os operários a convicção de que não deviam esbanjar energias e dispersar-se em mil conflitos econômicos parciais, de que deviam concentrar suas forças na luta política revolucionária. Isto não supunha negar a luta reivindicativa senão, muito ao contrário, assumir suas conseqüências políticas: "Os soldados e operários consideravam que todas as outras questões - salários, preço do pão, e se era necessário morrer no front ninguém sabia por que - dependia da questão de quem governaria o país no futuro, a burguesia ou seu próprio Soviete[19].

Esta tomada de consciência das massas operárias culmina com a insurreição de Outubro cujo ambiente prévio descreve admiravelmente Trotski: "As massas sentiam a necessidade de se manterem juntas. Cada um queria se testar através dos outros, e todos tensa e atentamente observavam como um e o mesmo pensamento se desenvolvia em suas várias mentes e com diferentes características e nuanças. Multidões incontroláveis de pessoas mantinham-se nos circos e outros grandes edifícios, onde os bolcheviques mais populares se dirigiam a elas com os últimos argumentos (...) Mas incomparavelmente mais efetiva que no último período antes da insurreição era a agitação molecular realizada por operários, soldados e marinheiros anônimos, ganhando simpatizantes uns aos outros, quebrando as últimas dúvidas, superando as últimas hesitações. Estes meses de febril vida política criaram inumeráveis quadros nas bases, educou centenas de milhares de diamantes brutos, que estavam acostumados a olhar a política de baixo e não de cima (...) As massas não mais toleravam em seu meio os hesitantes, os dúbios, os neutros. Esforçavam-se para dominar a todos, atrair, convencer, conquistar. As fábricas uniam-se aos regimentos para enviar delegados ao front. As trincheiras entravam em contato com os operários e camponeses nos locais perto da retaguarda. Nas cidades ao longo do front havia intermináveis comícios, conferências, consultas, em que os soldados e marinheiros harmonizavam sua atividade com a dos operários e camponeses[20]

"Ao mesmo tempo em que a sociedade oficial, toda esta super-estrutura de vários andares das classes dominantes, grupos, partidos e clãs, viviam no dia-a-dia da inércia e do automatismo, nutriam-se com as relíquias de idéias caducas, mortas para as inexoráveis demandas da evolução, satisfeitas com fantasmas e nada prevendo - ao mesmo tempo, nas massas trabalhadoras, estava ocorrendo um processo independente e profundo de crescimento, não apenas de ódio aos governantes, mas um entendimento crítico de sua impotência, uma acumulação de experiência criativa, que a insurreição revolucionária e sua vitória apenas completou." [21].

O proletariado, única classe revolucionária

Enquanto a política burguesa é realizada sempre em proveito de uma minoria da sociedade que é a classe dominante, a política do proletariado só pode ser feita com a participação massiva de todos os explorados e não persegue um benefício particular senão o de toda a humanidade. "(...) a classe explorada e oprimida (o proletariado) já não se pode libertar da classe exploradora e opressora (a burguesia) sem simultaneamente libertar para sempre a sociedade toda da exploração[22].

A luta revolucionária do proletariado constitui a única esperança de libertação para todas as massas que hoje vivem mal em uma situação espantosa em 3/4 partes do planeta. A Revolução russa o pôs em evidência: os operários conseguem ganhar para a sua causa os soldados (camponeses em uniforme em sua maioria) e toda a população camponesa. O proletariado confirmava assim que a revolução não só é uma resposta em defesa de seus próprios interesses, como também a única saída possível para acabar com a guerra e com as relações sociais da exploração e da opressão capitalistas em geral.

A vontade operária de proporcionar uma perspectiva para as demais classes oprimidas foi habilmente explorada pelos partidos menchevique e socialista revolucionário que pretendiam, em nome da aliança com os camponeses e os soldados, fazer com que o proletariado renunciasse a sua luta autônoma de classe e à revolução socialista. Esta explicação parece, à primeira vista, o mais "lógico": se queremos ganhar as outras camadas há que dobrar-se a suas reivindicações, há que buscar um mínimo denominador comum em torno ao qual todas se possam unir.

No entanto, "Os estados médios - o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês - todos eles combatem a burguesia para assegurar, face ao declínio, a sua existência como estados médios. Não são, pois, revolucionários, mas conservadores. Mais ainda, são reacionários, procuram fazer andar para trás a roda da história[23].

Em uma aliança interclassista, o proletariado tem tudo a perder: não ganha as outras camadas oprimidas senão que as empurra aos braços do capital e ao mesmo tempo debilita sua unidade e sua consciência de forma decisiva; não leva adiante suas próprias reivindicações senão que as dilui e nega; não avança no caminho do socialismo senão que se atrasa, e agora no pântano do capitalismo decadente. Em realidade, nem sequer ajuda as camadas pequeno-burguesas e camponesas senão que contribui no seu sacrifício aos interesses do capital, porque as reivindicações "populares" são o disfarce que a burguesia utiliza para fazer passar por contrabando seus próprios interesses. O "povo" não está representando o interesse das "camadas laboriosas", senão o interesse explorador, nacional, imperialista, do conjunto da burguesia. "Nestas circunstâncias, a união dos mencheviques e socialista-revolucionários não era uma cooperação do proletariado com os camponeses, mas uma coalizão dos partidos que romperam com o proletariado e os camponeses respectivamente, pelo amor com o bloco com as classes possuidoras[24].

Se o proletariado quer ganhar a sua causa as camadas não exploradoras deve afirmar de maneira ainda mais clara e total suas próprias reivindicações, seu próprio ser, sua autonomia de classe. Deve ganhar as outras camadas não exploradoras naquilo em que possam ser revolucionárias. "Se são revolucionários, são-no apenas à luz da sua iminente passagem para o proletariado, e assim não defendem os seus interesses presentes, mas os futuros, e assim abandonam a sua posição própria para se colocarem na do proletariado[25].

Concentrando sua luta em pôr fim à guerra imperialista; buscando dar uma perspectiva de solução ao problema agrário [26]; criando os sovietes como organização de todos os explorados; e, sobretudo, apresentando a alternativa de uma nova sociedade frente à bancarrota e ao caos da sociedade capitalista, o proletariado na Rússia se colocou na vanguarda de todas as classes exploradas e soube lhes dar uma perspectiva a qual se unir e lutar.

A afirmação autônoma do proletariado não o isola das demais camadas oprimidas, ao contrário, lhe permite isolar o Estado burguês destas. Frente ao impacto sobre os soldados e os camponeses da campanha da burguesia russa sobre o "egoísmo" dos operários com sua reivindicação da jornada de 8 horas, estes "entendiam a manobra e a evitaram habilmente. Para isso, era apenas necessário dizer a verdade - citar os dados dos lucros de guerra, mostrar aos soldados as fábricas e oficinas com o roçar das máquinas, as chamas infernais das fornalhas, seu front perpétuo onde as vítimas eram inúmeras. Sob a iniciativa dos operários, começaram as visitas regulares das tropas da guarnição às fábricas, e especialmente às de munições. Os soldados olhavam e ouviam. Os operários mostravam e explicavam. Estas visitas terminavam em triunfante fraternização.[27]

"O Exército estava incuravelmente doente. Era ainda capaz de dizer sua palavra na revolução, mas não mais para fazer a guerra[28]

Essa "enfermidade incurável" do Exército era o produto da luta autônoma da classe operária. Do mesmo modo, frente ao problema agrário, que o capitalismo decadente não só é incapaz de resolvê-lo senão que não termina de agravá-lo, o proletariado o encarou acertadamente: todos os dias saíram das cidades industriais legiões de agitadores, delegações de Comitês de fábrica, de Sovietes, para discutir com os camponeses, para lhes animar a luta, para organizar os operários agrícolas e os agricultores pobres. Os Sovietes e os Comitês de fábrica tomaram numerosas resoluções declarando sua solidariedade com os camponeses e propondo medidas concretas de solução do problema agrário: "A conferência de Moscou dos comitês de fábrica e usina devotou sua atenção à questão agrária e, por um relato de Trotsky, foi redigido um manifesto aos camponeses: o proletariado se sente não apenas uma classe especial, mas também o líder do povo[29]

Os sovietes

Enquanto a política da burguesia concebe a maioria como uma massa a ser manipulada para que referende as ações preparadas pelos poderes do Estado, a política operária se apresenta como a obra livre e consciente da grande maioria para seus próprios interesses.

"Os sovietes, conselhos de deputados ou delegados das assembléias operárias, apareceram espontaneamente pela primeira vez na grande greve de massas que sacudiu a Rússia em 1905. Era a emanação direta de milhares de assembléias de trabalhadores, nas fábricas e nos bairros, que se multiplicaram por todas as partes, na maior explosão de vida operária que até então se havia produzido na história. Como se retomassem a luta ali onde seus antepassados da Comuna de Paris em 1871 a haviam deixado, os operários generalizaram na prática a forma de organização que os comunards haviam tentado: assembléias soberanas, centralização mediante delegados eleitos e revogáveis[30].

Desde que em fevereiro os operários derrubaram o Czarismo, em Petrogrado, em Moscou, em Jarkov, em Helsingfors, em todas as cidades industriais se constituíram rapidamente Sovietes de delegados operários, aos que se uniram os delegados dos soldados e, posteriormente dos camponeses. Ao redor dos Sovietes, o proletariado e as massas exploradas constituíram uma rede infinita de organizações de luta, baseadas nas assembléias, na livre discussão e decisão de todos os explorados: Sovietes de bairro, Conselhos de fábrica, Comitês de soldados, Comitês camponeses... "A rede de conselhos operários e de soldados locais em toda Rússia formava a coluna vertebral da revolução. Com sua ajuda havia se estendido a revolução como uma rede por todo o país, só com sua existência era possível dificultar enormemente todo intento de reação[31].

A "democracia" burguesa reduz a "participação" das massas a eleição, a cada 4 anos, onde um senhor é eleito e faz o que necessita a burguesia; frente a ela, os Sovietes constituem a participação permanente, direta, das massas operárias que em assembléias gigantescas discutem e decidem sobre todos os assuntos da sociedade. Os delegados são eleitos e revogáveis a qualquer momento e participam dos Congressos com mandatos definidos.

A "democracia" burguesa concebe a "participação" segundo a farsa do indivíduo livre que decide sozinho diante da urna. É, pois, a consagração da atomização, o individualismo, o "todos contra todos", o mascaramento da divisão de classes, o que favorece a classe minoritária e exploradora. Em troca, os Sovietes se baseiam na discussão e na decisão coletivas, cada qual pode sentir o alento e a força do conjunto e sobre essa base desenvolver todas suas capacidades reforçando por sua vez o coletivo. Os Sovietes partem da organização autônoma da classe trabalhadora para, desde essa plataforma, lutar pela abolição das classes.

Os operários, soldados e camponeses consideravam os Sovietes como sua organização. "Não apenas os operários e soldados das enormes guarnições da retaguarda, mas todo o povo heterogêneo das cidades - mecânicos, vendedores ambulantes, pequenos funcionários públicos, cocheiros, porteiros, servidores de todos os tipos - sentiam-se alienados do Governo Provisório e seus departamentos, procuravam uma autoridade mais próxima e acessível. Em números cada vez maiores, delegados camponeses apareciam no Palácio de Tauride, As massas afluíam ao soviete como pelos arcos do triunfo da revolução. Tudo o que permanecia fora dos limites do soviete parecia estar à margem da revolução, algo que pertencesse a outro mundo do dono de propriedade[32]

Nada podia se fazer em toda a Rússia sem os sovietes: as delegações da frota do Báltico e do Mar Negro declaram em 16 de março que só obedeceriam às ordens do Governo provisório que estivessem de acordo com as decisões dos sovietes: "O Exército e o povo devem se submeter apenas ao controle do soviete (...) As ordens do Governo provisório que conflitem com a decisão do Soviete não serão obedecidas[33]

Guchkov, grande capitalista e ministro do Governo provisório declara: "O governo não tem nenhum poder real: as tropas, as ferrovias, o correio e o telégrafo estão nas mãos do Soviete. O fato é que o Governo Provisório existe apenas enquanto o Soviete permitir.[34]

A classe operária, como classe que aspira à transformação revolucionária e consciente do mundo, necessita um órgão que lhe permita expressar todas suas tendências, todos seus pensamentos, todas suas capacidades; um órgão extremamente dinâmico que sintetize em cada momento a evolução e o avanço das massas; um órgão que não caia no conservadorismo e na burocracia, que lhe permita recusar e combater toda tentativa de confiscar o poder direto da maioria. Um órgão de trabalho, onde se decidam as coisas de maneira rápida e ágil, de maneira consciente e coletiva, de tal forma que todos se sintam implicados em sua aplicação.

"De órgãos para o controle do governo, os sovietes se tornaram órgãos de administração. Eles não podiam se acomodar com qualquer teoria da divisão de poderes, mas interferiam na administração do Exército, em conflitos econômicos, nas questões de abastecimento e transporte, até nos tribunais de justiça. Os Sovietes, sob pressão dos operários, decretavam a jornada de oito horas, removiam administradores reacionários, expulsavam os mais intoleráveis comissários do Governo Provisório, conduziam buscas e prisões, suprimiam jornais hostis." [35]

Temos visto como a classe operária foi capaz de se unir, de expressar toda sua energia criadora, de atuar de maneira organizada e consciente, de, no fim das contas, se levantar frente uma sociedade como a classe revolucionária que tem como missão instaurar a nova sociedade, sem classes e sem Estado. Porém, para isso, a classe operária devia destruir o poder da classe inimiga: o Estado burguês, encarnado pelo Governo provisório; e impor seu próprio poder: o poder dos sovietes.


[1] Trotski, A História da Revolução russa; Edição Sundermann - Tomo I; capítulo "O proletariado e os camponeses".

[2] Trotski, op. cit. Capítulo "Cinco dias (23 a 27 de fevereiro de 1917)".

[3] Trotski, op. cit.

[4] Ana M. Pankratova, Os Conselhos de fábrica na Rússia de 1917, capítulo "Os Comitês de fábrica obra da Revolução". Tradução nossa.

[5] Trotski, op. cit. Capítulo "jornadas de abril".

[6] Reed, J. Dez dias que estremeceram o mundo. Tradução nossa.

[7] Dois meses antes, em abril, quando esta reivindicação foi proposta por Lênin em suas famosas Teses, foi recusada no seio mesmo do partido bolchevique como utópica, abstrata, etc.

[8] Trotski, op.cit. Tomo II; capítulo "Poderiam os bolcheviques ter tomado o poder em Julho?".

[9] G. Soria, Os 300 dias da Revolução russa. Tradução nossa.

[10] Trotski, op.cit. Capítulo "A burguesia mede forças com a democracia".

[11] Trotski, op.cit. Tomo I; capítulo "O paradoxo da Revolução de Fevereiro".

[12] Trotski, op.cit.; capítulo "Quem dirigiu a insurreição de Fevereiro?"

[13] Marx y Engels, A ideologia alemã.

[14] Trotski, op. cit. Capítulo "Deslocamentos nas massas".

[15] J. Reed, op. cit.

[16] Trotski,, op.cit. Capítulo "Quem dirigiu a insurreição de Fevereiro"

[17] Rosa Luxemburgo, Na hora revolucionária. Tradução nossa.

[18] Rosa Luxemburgo, Greve de massas, partido e sindicatos. Tradução nossa.

[19] Trotski, op.cit. Tomo II; capítulo "As jornadas de julho: preparação e inicio".

[20] Trotski, op.cit. Capítulo "A retirada do pré-Parlamento e a luta pelo Congresso dos Sovietes".

[21] Trotski, op.cit.; Tomo I, capítulo "Quem dirigiu a insurreição de Fevereiro?"

[22] Engels, "Prólogo" de 1883 ao Manifesto comunista.

[23] , Engels, O Manifesto comunista.

[24] Trotski, op.cit. Capítulo "O Comitê Executivo".

[25] Marx, Engels, op.cit.

[26] Não se trata de discutir no marco deste artigo se a solução que os bolcheviques e os sovietes acabaram dando à questão agrária - a divisão das terras - foi justa. Como o criticou Rosa Luxemburgo, a experiência demonstrou que não era. Porém isso não deve ocultar o essencial: que o proletariado e os bolcheviques explicaram seriamente a necessidade de uma solução desde o enfoque do poder proletário e desde o enfoque da batalha pela revolução socialista.

[27] Trotski, op.cit. Trotski, op.cit. Capítulo "O Comitê Executivo"

[28] Trotski, op.cit. Trotski, op.cit. Capítulo "O Exército e a guerra"

[29] Trotski, op.cit. Tomo II; capítulo "A retirada do pré-Parlamento e a luta pelo Congresso dos Sovietes".

[30] Révolution Internationale, órgão da CCI na França, nº 190, artigo "O proletariado deverá impor sua ditadura para levar a humanidade a sua emancipação".

[31] O. Anweiler, Os Sovietes na Rússia. Tradução nossa.

[32] Trotski, op.cit. Tomo I, capítulo "O novo poder".

[33] Trotski, op.cit. Capítulo "O Comitê Executivo".

[34] Trotski, op.cit.; capítulo "A retirada do pré-Parlamento e a luta pelo Congresso dos Sovietes".

[35] Trotski, op.cit.; capítulo "A primeira coalizão".

Herança da Esquerda comunista: 

A conquista dos sovietes pelo proletariado

Outubro de 1917 nos deixou uma lição fundamental: a burguesia não deixa o caminho livre à luta revolucionária das massas operárias. Ao contrário, trata de sabotá-la por todos os meios. Para isso, além do golpe e da pistola, utiliza uma arma muito perigosa: a sabotagem por dentro realizada pelas forças burguesas com roupagem "operária" e "radical" - então os partidos "socialistas", hoje os partidos de "esquerdas" e "extrema esquerda" e os sindicatos.

Essa sabotagem constituiu a principal ameaça para a Revolução iniciada em fevereiro: a sabotagem dos Sovietes pelos partidos social-traidores que mantinham em pé o aparato do Estado burguês. Abordamos agora este problema e os meios através dos quais o proletariado conseguiu resolvê-lo: a renovação dos Sovietes, o Partido bolchevique, a insurreição.

A sabotagem burguesa dos sovietes

A burguesia apresenta a Revolução de fevereiro como um movimento a favor da "democracia" violentado pelo golpe bolchevique. Suas fábulas consistem em opor Fevereiro a Outubro, apresentando o primeiro como uma autêntica "festa democrática" e o segundo como um golpe de Estado "contra a vontade popular".

Esta mentira é produto da raiva que sente a burguesia porque os acontecimentos entre fevereiro e outubro não se desenvolveram de acordo com o esquema esperado. A burguesia pensava que uma vez passadas as convulsões que em fevereiro derrubaram o Czar, as massas voltariam tranquilamente às suas casas e deixariam os políticos burgueses comandar amplamente, propiciados de vez em quando por eleições "democráticas". No entanto, o proletariado não mordeu a isca, desdobrou uma imensa atividade, tomou consciência de sua missão histórica e se deu os meios para seu combate: os sovietes. Com eles se estabeleceu uma situação de duplo poder: "ou a burguesia dominaria de fato o velho aparato estatal, alterando-o um pouco para seus propósitos, e então os sovietes se reduziriam a nada; ou os sovietes formariam a base de um novo Estado, liquidando não apenas o velho aparato governamental, mas também a dominação daquelas classes que se serviam dele[1].

Para destruir os sovietes e impor a autoridade do Estado, a burguesia apoiou-se sobre os partidos menchevique e social-revolucionário, antigos partidos operários que, com a guerra, haviam passado ao campo burguês. Estes gozavam, no princípio da revolução de Fevereiro, de uma imensa confiança nas fileiras operárias, e a aproveitaram para dominar os órgãos executivos dos Sovietes e camuflar a burguesia: "Ali onde nenhum ministro burguês podia comparecer ante os operários revolucionários, apresentava-se (ou melhor dito, era enviado pela burguesia) um ministro "socialista", Skobelev, Tsereteli, Chernov ou outro, que cumpria conscienciosamente com sua missão burguesa, esforçando-se por defender o governo e limpar da culpa os capitalistas, enganando com promessas e mais promessas, com conselhos que se reduziam a esperar, esperar e esperar[2].

A partir de fevereiro se dá uma situação extremamente perigosa para as massas operárias: estas lutam, com a vanguarda dos bolcheviques, para acabar com a guerra, pela solução do problema agrário, para abolir a exploração capitalista, e para isto criam os sovietes e confiam sem reservas neles. E, no entanto, esses sovietes, que têm nascido de suas entranhas, dominados pelos demagogos mencheviques e social-revolucionários, negam as necessidades mais imperiosas.

 Assim os sovietes, submetido à autoridade social-menchevique, prometem mil vezes a paz enquanto deixam o Governo provisório continuar a guerra.

Em 27 de março, o Governo provisório trata de desencadear a ofensiva dos Dardanelos cujo objetivo é conquistar Constantinopla. Em 18 de abril Miliukov, ministro do exterior ratifica em uma famosa nota a adesão da Rússia ao grupo da "Entente" (França e Grã Bretanha). Em maio, Kerenski empreende uma campanha no front para elevar a moral dos soldados e fazê-los lutar, chegando a dizer no cúmulo do cinismo que "vocês carregam a paz na ponta de vossas baionetas". De novo em junho e em agosto, os social-democratas em estreita colaboração com os odiados generais czaristas, tentaram arrastar os operários e soldados à carnificina da guerra.

Do mesmo modo, esses demagogos dos "direitos humanos" trataram de restabelecer a brutal disciplina militar no exército: restauraram a pena de morte, convenceram os Comitês de soldados para que "não virem contra eles os oficiais". Por exemplo, quando de forma massiva o soviete de Petrogrado publicou o famoso Decreto nº 1 que proíbe os castigos corporais aos soldados e defende seus direitos e sua dignidade, os social-traidores do Comitê Executivo expediram " às gráficas, como um antídoto, um apelo aos soldados que, som o pretexto de condenar o linchamento de oficiais, exigia a subordinação dos soldados ao velho comando[3].

 Enfatizam incansavelmente sobre a "solução do problema agrário" enquanto deixam intacto o poder dos proprietários das terras e esmagam as rebeliões camponesas.

Assim, bloquearam sistematicamente os decretos mais tímidos sobre a questão agrária - por exemplo, o que proibia as transferências de terras - devolveram as terras ocupadas espontaneamente pelos camponeses a seus antigos donos; reprimiram a ferro e fogo às revoltas camponesas, enviando expedições punitivas, restauram a pena de açoites nas aldeias.

 Bloqueiam a aplicação da jornada de 8 horas e permitem aos empresários desmembrar as fábricas

Deixaram os patrões sabotar a produção com objetivo, por um lado, de matar de fome os operários e de outra parte, dispersá-los e desmoralizá-los: "Aproveitando a produção capitalista moderna e sua estreita relação com o banco nacional e internacional, e com as demais organizações do capital unificado (sindicatos patronais, trustes, etc.), os capitalistas começaram a aplicar um sistema de sabotagem de ampla escala e cuidadosamente calculado. Não recuaram diante quaisquer meios, começando com a ausência administrativa nas fábricas, a desorganização artificial da vida industrial, o ocultamento e a retirada de materiais, acabando com a queima e o fechamento das empresas desprovidas de recursos[4].

 Empreendem uma furiosa repressão contra as lutas operárias

"Em Jarkov, 30 000 mineiros se organizaram e aprovaram o ponto do preâmbulo dos estatutos dos IWW (Operários Industriais do Mundo) que afirma "a classe dos operários e a classe dos patrões não tem nada em comum". Os cossacos esmagaram a organização, muitos mineiros foram despedidos do trabalho. O ministro de Comércio e Indústria, Konovalov concedeu amplos poderes  ao seu subsecretário Orlov, encarregando-lhe de por fim aos distúrbios. Os mineiros odiavam a Orlov, porém o CEC - Comitê Executivo Central, dominado pelos social traidores - não só aprovou sua nomeação, mas  este "se negou a retirar as tropas cossacas da bacia do Donetz"[5].

 Iludem as massas com palavras vazias sobre a "democracia revolucionária", enquanto sabotam por todos os meios os sovietes

Trataram de liquidar os sovietes a partir de dentro: descumpriram seus acordos, adiaram as reuniões plenárias deixando tudo sob conspiração do "pequeno comitê", buscaram dividir e enfrentar as massas exploradas: "Já em abril, os mencheviques e socialistas- revolucionários começaram a apelar às províncias contra Petrogrado, aos soldados contra os operários, à cavalaria contra os metralhadores. Tinham dado às tropas privilégios de representação nos sovietes acima das fábricas, favoreceram as empresas pequenas e  dispersas contra as gigantes metalúrgicas. Eles mesmos, representando o passado, procuravam apoio nos atrasados de todos os tipos. Com o chão sumindo som seus pés, eles agora incitavam a retaguarda contra a vanguarda[6]. Igualmente, trataram de que os sovietes entregassem o poder aos organismos "democráticos": os czemstva - organismos locais de origem czarista - e a conferência "democrática" de Moscou de agosto, autêntico ninho de cobras onde se reúnem forças tão "representativas" como nobres, militares, antigos centúrias negras, cadetes, etc., que bendizem o golpe militar de Kornilov. Igualmente, em setembro fizeram outra conspiração para rejeitar os sovietes: a convocação da Conferência pré-democrática na qual os delegados da burguesia e a nobreza têm, por expresso desejo dos social-traidores, 683 representantes frente a 230 delegados dos sovietes. Kerenski chegou a prometer ao embaixador americano que "faremos que os sovietes morram de morte natural. O centro de gravidade da vida política irá se transferindo progressivamente dos sovietes aos novos órgãos democráticos de representação autônoma".

Os sovietes que pediam a tomada do poder foram esmagados "democraticamente" pela força das armas: "Os bolcheviques, que haviam conquistado a maioria do Soviete de Kaluga, conseguiram a libertação dos presos políticos. A duma municipal, com a sanção do comissário do governo, chamou tropas de Minsk que bombardearam com artilharia o soviete. Os bolcheviques capitularam, porém no momento em que saíam do edifício, os cossacos se arremessaram sobre eles, gritando: "Aqui tens o que vai acontecer a todos os sovietes bolcheviques" [7].

Os operários viam como seus órgãos de classe eram confiscados, desnaturalizados e acorrentados a uma política que ia contra seus interesses. Isto que, como vimos no artigo "O desenvolvimento do movimento, de fevereiro a outubro de 17", tinha desembocado nas crises políticas de abril, junho e, sobretudo, julho, lhes levou a ação decisiva: renovar os sovietes para orientá-los até a tomada do poder.

Os sovietes eram - como dizia Lênin - "órgãos, onde a fonte do poder está na iniciativa direta das massas populares desde baixo" (A dualidade do poder). Isso permitiu as massas substituí-los com muita rapidez desde o momento em que se convenceram de que não correspondiam aos seus interesses. Desde meados de agosto, a vida dos sovietes se acelera em um ritmo vertiginoso. As reuniões se sucedem dia e noite quase sem interrupção. Operários e soldados discutem conscienciosamente, tomam resoluções, votam várias vezes ao dia. Neste clima de intensa auto-atividade das massas [8], numerosos sovietes (Helsinfords, Ural, Krondstadt, Reval, a frota do Báltico, etc.) elegem maiorias revolucionárias formadas por delegados bolcheviques, mencheviques internacionalistas, maximalistas, social-revolucionários de esquerda, anarquistas, etc.

Em 31 de agosto, o Soviete de Petrogrado aprova uma moção bolchevique. Seus dirigentes - mencheviques e social-revolucionários - se recusam a aplicá-la e renunciam. Em 9 de setembro o soviete elege uma maioria bolchevique, seguido depois por Moscou e, em continuidade, pelo resto do país. As massas elegem os sovietes que necessitam e se preparam assim para tomar o poder e exercê-lo.

O Papel do partido bolchevique

Nesta luta das massas para tomar o controle de suas organizações contra a sabotagem burguesa, os bolcheviques jogaram um papel decisivo. Tomaram como centro de sua atividade o desenvolvimento dos sovietes: "A Conferência decide desdobrar uma atividade múltipla dentro dos sovietes de deputados operários e soldados, aumentar seu número, consolidar suas forças e aglutinar em seu seio os grupos proletários internacionalistas de nosso partido[9]. Esta atividade tinha como eixo o desenvolvimento da consciência de classe: "é preciso um paciente trabalho de esclarecimento da consciência de classe do proletariado e de coesão dos proletários da cidade e do campo[10]. Por uma parte, confiavam na capacidade de crítica e análise das massas: "Mas enquanto a agitação dos mencheviques e socialista-revolucionários era dispersa, auto-contraditória e frequentemente evasiva, a agitação dos bolcheviques distinguia-se por seu caráter concentrado e bem planejado. Os conciliadores se desviavam das dificuldades, os bolcheviques iam de encontro a elas. Uma análise contínua da situação objetiva, um teste das palavras de ordem sobre os fatos, uma atitude séria com o inimigo mesmo quando ele não era muito sério, deu força e poder de convicção especiais à agitação bolchevique[11]. Por outra, confiavam na sua capacidade de união e auto-organização: "não creiam nas palavras. Não se deixem arrastar pelas promessas. Não exagerem suas forças. Organizem-se em cada fábrica, em cada regimento e em cada companhia, em cada barricada. Realizem um trabalho perseverante de organização cada dia, cada hora; trabalhem em se organizar por vocês mesmos, já que este trabalho não podem confiar a ninguém[12].

Os bolcheviques não pretendiam submeter as massas a um "plano de ação" preconcebido, levando-as como o estado maior leva os soldados. Reconheciam que a revolução é a obra da ação direta das massas e que sua missão política era de atuar por dentro dessa ação direta: "A principal força de Lênin estava em sua compreensão da lógica interna do movimento, e orientava sua política por ele. Ele não impôs seu plano para as massas; ele ajudou as massas a reconhecer seu próprio plano" [13].

O partido não desenvolvia seu papel de vanguarda dizendo à classe: "eis aqui a verdade, ajoealha-te", ao contrário, estava atravessado pelas inquietudes e preocupações que afligem a classe e, como tal, estava exposto a influência destrutiva da ideologia burguesa, ainda que não da mesma maneira. Seu papel de motor no desenvolvimento da consciência de classe, o cumpriu mediante uma série de debates políticos por onde ia superando os erros e insuficiências de suas posições anteriores e travava uma luta mortal para erradicar os desvios oportunistas que podiam ameaçá-lo.

Assim, a princípios de março, um importante setor dos bolcheviques defendia que deviam unir-se aos partidos socialistas (mencheviques e social-revolucionários). Agitavam um argumento aparentemente infalível que, nesses primeiros momentos de ânimo geral e inexperiência das massas, tinha muito impacto nelas: em vez de ir cada um para seu lado porque não unimos todos os socialistas? Porque confundir os operários com 2 ou 3 partidos distintos reivindicando todos do proletariado e do socialismo?

Isto exprimia uma grave ameaça para a revolução: o partido que desde 1902 havia lutado contra o oportunismo e o reformismo, que desde 1914 havia sido o mais conseqüente e decidido em opor a revolução internacional contra a Primeira Guerra mundial, corria perigo de se diluir nas águas turvas dos partidos "social-traidores". Como ia o proletariado superar em seu seio as confusões e ilusões que padecia? Como ia combater as manobras e armadilhas do inimigo? Como ia manter permanentemente o norte de seu combate frente aos momentos de vacilação ou derrota? Lênin e a base do Partido lutaram vitoriosamente contra essa falsa unidade que na realidade significava ficar a reboque da burguesia.

O partido bolchevique era a princípio bastante minoritário. Muitos operários tinham ilusões no Governo provisório e o viam como uma emanação dos sovietes, quando na realidade era seu pior inimigo. Os órgãos dirigentes dos bolcheviques na Rússia adotaram em março-abril uma atitude conciliadora com o governo provisório, chegando a cair  num apoio aberto a guerra imperialista.

Contra esse desvio oportunista se levantou um movimento da base do partido (Comitê de Vyborg) que encontrou em Lênin e suas Teses de Abril a mais clara expressão. Para Lênin o fundo do problema estava em que: "... não podemos dar nenhum apoio ao Governo provisório. Temos de explicar a completa falsidade de todas suas promessas, notadamente aquelas que consideram a renuncia às anexações. Temos de desmascarar este governo que é um governo de capitalistas, em vez de defender a inadmissível e ilusória "exigência" de que deixe de ser imperialista[14].

Igualmente, Lênin denunciava a arma fundamental dos mencheviques e social-revolucionários contra os sovietes: "O "erro" dos chefes mencionados reside em que enfraquecem a consciência dos operários em vez de abrir-lhes os olhos, em que lhes inculcam ilusões pequeno-burguesas em vez de destruí-las, em que reforçam a influência da burguesia sobre as massas em vez de emancipar estas dessa influência[15].

Contra os que viam esta denúncia "pouco prática" Lênin alegava que: "... na realidade, é o trabalho revolucionário mais prático, pois é impossível impulsionar uma revolução que está estancada, que se afoga entre frases e se dedica em marcar passo sem mover-se do lugar não por conta de obstáculos vindo de fora, nem sequer por conta da violência da burguesia (...) mas  pela credulidade cega das massas. Só lutando contra essa credulidade cega (luta que pode e deve livrar-se unicamente com as armas ideológicas, pela persuasão amistosa, invocando a experiência da vida) poderemos nos desembaraçar do desenfreio de frases revolucionárias imperante, e impulsionar de verdade tanto a consciência do proletariado como a consciência das massas, a iniciativa local, audaz e resoluta das mesmas[16].

Defender a experiência histórica do proletariado, manter vivas suas posições de classe, exige estar em minoria em muitas ocasiões dentro dos operários. Isto é assim porque: "... as massas vacilam entre a confiança em seus antigos senhores, os capitalistas, e a cólera contra eles; entre a confiança na classe nova, que abre o caminho de um porvir luminoso para todos os trabalhadores e a consciência, ainda não clara, de seu papel histórico-mundial[17]. Para ajudar a superar essas vacilações: "... o importante não é o número, mas que se expressem de modo exato as idéias e a política do proletariado verdadeiramente revolucionário[18]. Como todo partido autêntico do proletariado, o Partido bolchevique era parte integrante do movimento da classe. Seus militantes eram os mais ativos nas lutas, nos sovietes, nos conselhos de fábrica, manifestações e reuniões. As jornadas de julho puseram em evidência esse compromisso inquebrantável do Partido com a classe.

Como vimos no primeiro artigo, a situação em finais de junho se tornava insustentável pela fome, a guerra, o caos, a sabotagem dos sovietes, a política do Comitê executivo central nas mãos dos social-traidores consistindo em não fazer nada, em cumplicidade com a burguesia. Os operários e os soldados, sobretudo os da capital, começavam a suspeitar abertamente dos social-traidores. Cada vez a impaciência, o desespero, a raiva, eram mais fortes nas filas operárias, impulsionando-as já a tomar o poder mediante uma ação de envergadura. No entanto, as condições não estavam ainda reunidas:

  • os operários e soldados das províncias não estavam no mesmo nível político dos seus irmãos de Petrogrado;
  • os camponeses ainda confiavam no Governo provisório;
  • nos próprios operários de Petrogrado a idéia que reinava não era realmente tomar o poder mas fazer um ato de força para obrigar os dirigentes "socialistas" a "tomar de verdade o poder", ou seja, pedir a quinta coluna da burguesia que tome o poder em nome dos operários.

Em tal situação lançar-se ao enfrentamento decisivo com a burguesia e seus sequazes era embarcar em uma aventura que podia comprometer definitivamente o destino da Revolução. Era um choque prematuro que podia liquidar-se com uma derrota definitiva.

O Partido bolchevique desaconselhou a ação, mas ao ver que as massas não lhe faziam caso e seguiam adiante, não se retirou dizendo "problema seu". O Partido participou na ação cuidando para que não se convertesse em uma aventura desastrosa e que os operários tirassem dela o máximo de lições para preparar a insurreição definitiva. Lutou com todas suas forças para fazer com que o Soviete de Petrogrado, mediante uma discussão séria e dando-se os dirigentes adequados, se tornasse realmente a expressão da orientação política reinante nas massas.

No entanto, o movimento fracassou e sofreu uma derrota. A burguesia e seus acólitos mencheviques e social-revolucionários lançaram uma violenta repressão contra os operários e, sobretudo, contra os bolcheviques. Estes pagaram um alto preço: detenções, punições, exílio... Porém esse sacrifício ajudou decisivamente a classe a minimizar os efeitos da derrota sofrida e a explicar de maneira mais consciente e organizada, em melhores condições, o problema da insurreição.

Este compromisso do partido com a classe permitiu, a partir de agosto, uma vez passados os piores momentos de reação burguesa, a plena sintonia partido-classe imprescindível para o triunfo da revolução: "Durante o levante de fevereiro, todos os muitos anos precedentes de trabalho dos bolcheviques frutificaram, e os operários avançados educados pelo partido descobriram seu lugar na luta, mas ainda não havia uma liderança direta do partido. Nos eventos de abril, as palavras de ordem do partido manifestaram sua força dinâmica, mas o movimento em si desenvolveu-se independentemente. Em junho, a enorme influencia do partido revelou-se, mas as massas ainda funcionavam dentro dos limites de uma manifestação chamada oficialmente pelo inimigo. Apenas em julho o partido bolchevique, sentindo a pressão das massas, saiu às ruas contra todos os outros partidos, e não apenas com suas palavras de ordem, mas com sua direção organizada, e determinou o caráter fundamental do movimento. O valor de uma vanguarda de fileiras cerradas se manifestou totalmente pela primeira vez nas jornadas de julho, quando o partido - a um grande custo - defendeu o proletariado da derrota , e salvaguardou sua própria revolução futura[19].

A insurreição obra dos sovietes

A situação de duplo poder que dominou todo o período que vai desde fevereiro a outubro é uma situação instável e perigosa. Seu prolongamento excessivo sem que nenhuma das duas classes acabe impondo-se foi, sobretudo danosa para o proletariado: se a incapacidade e o caos que caracterizavam nesses momentos a classe governante, acentuavam seu desprestígio, ao mesmo tempo, provocavam o cansaço e desorientação das massas operárias, lhes tiravam o sangue em combates estéreis e começavam a enfraquecer as simpatias das classes intermediárias em favor do proletariado. Por isso era necessário decantar, decidir tomar o poder mediante a insurreição. "A revolução avança em um ritmo rápido, tempestuoso e decidido, derruba todos os obstáculos com mão de ferro e se dá objetivos cada vez mais avançados, ou de repente retrocede de seu fraco ponto de partida e termina liquidada pela contra-revolução[20].

A insurreição é uma arte. Necessita fazer-se no momento preciso da evolução da situação revolucionária, nem prematuramente com o qual fracassaria; nem demasiado tarde, com o qual, uma vez passada a oportunidade, o movimento revolucionário iria se desintegrando vítima da contra-revolução.

Em princípios de setembro a burguesia, através de Kornilov, tentou um golpe de Estado que constituiu o sinal da ofensiva final da burguesia para derrubar os sovietes e restabelecer plenamente seu poder.

O proletariado, com o concurso massivo dos soldados, fez fracassar a intentona e, com isso se acelerou a decomposição do exército: os soldados de numerosos regimentos se pronunciavam a favor da Revolução, expulsando os oficiais e organizando o conselho de soldados.

Como vimos antes, a renovação dos sovietes desde meados de agosto estava mudando claramente a correlação de forças em favor do proletariado. A derrota do golpe de Kornilov acelerou o processo.

Desde meados de setembro uma maré de resoluções reivindicando a tomada do poder (Krondstadt, Ekaterinoslav, etc.) surgiu dos sovietes locais ou regionais: o Congresso de sovietes da região norte, celebrando o 11-13 de outubro, conclamou abertamente a insurreição. Em Minsk, o Congresso regional de sovietes decidiu apoiar a insurreição e enviar tropas de soldados favoráveis à revolução. Em 12 de outubro, "... um comício de massa dos operários de uma das mais revolucionárias fábricas da capital (Old Parviainen) deu a seguinte resposta aos ataques da burguesia: "Declaramos que sairemos às ruas quando julgarmos necessário. Não temos medo da luta que se aproxima e acreditamos firmemente que dela sairemos vitoriosos[21].

Em 17 de outubro, o Soviete de soldados de Petrogrado decidiu: "A guarnição de Petrogrado deixa de reconhecer o Governo provisório. Nosso governo é o Soviete de Petrogrado. Acataremos somente as ordens do Soviete de Petrogrado dadas por seu Comitê militar revolucionário[22]. O Soviete distrital de Vyborg decidiu uma marcha para apoiar esta Resolução, a qual se uniram os marinheiros. Um diário liberal de Moscou -citado por Trotski- descreveu assim o ambiente na capital: "nos bairros, nas fábricas de Petrogrado, Nevski, Obujov e Putilov, a agitação bolchevique pelo levantamento alcança sua maior intensidade. O estado de ânimo dos operários é tal que estão dispostos a colocar-se em marcha em qualquer momento".

A aceleração das insurreições camponesas em setembro constituiu outro elemento da maturação das condições necessárias para a insurreição: "Visto que deixamos os sovietes das duas capitais esmagarem a insurreição camponesa, perdemos e merecemos perder toda a confiança dos camponeses, nos colocamos ante os olhos dos camponeses no mesmo plano de que os Liber-Dan [23] e demais miseráveis[24]. Porém é a nível mundial que está o fator decisivo da Revolução. Isto o colocou claro Lênin em uma Carta aos camaradas bolcheviques do Congresso de sovietes da região norte (8 de outubro de 17): "Nossa revolução vive momentos críticos ao extremo. Esta crise tem coincidido com a grande crise de crescimento da revolução socialista mundial e da luta do imperialismo mundial contra ela. Sobre os dirigentes responsáveis de nosso partido recai uma gigantesca tarefa, cujo descumprimento ameaçaria a bancarrota completa do movimento proletário internacionalista. O momento é tal que a demora equivale verdadeiramente à morte[25].

Em outra carta (o 1º de outubro de 17) menciona: "Os bolcheviques não tem direito a esperar o Congresso dos sovietes, devem tomar o poder imediatamente. Com isso salvariam tanto a revolução mundial (pois, de outro modo, existe o perigo de uma confabulação dos imperialistas de todos os países, que depois de metralhados na Alemanha serão complacentes uns com os outros e se unirão contra nós) como a revolução russa (pois, de outro modo, a onda presente de anarquia pode ser mais forte que nós)[26].

Esta consciência da responsabilidade internacional do proletariado russo não era algo que unicamente entendiam Lênin e os bolcheviques. Ao contrário, muitos setores operários participavam dela:

  • em 1ºde Maio de 1917, "A confraternização estava ocorrendo em todo front, os soldados tomavam a iniciativa mais audaciosamente... O ministro Kadete Chingarev, numa conferência com delegados das trincheiras, defendeu a ordem de Gutchkov contra a "indulgência desnecessária" aos prisioneiros de guerra, e falou da "ferocidade alemã". Sua observação não encontrou a menor simpatia. A conferência se expressou decisivamente a favor de aliviar as condições dos prisioneiros de guerra" [27].
  • "Falou um soldado do front romeno, um homem fraco, de expressão trágica e ardente. Camaradas - gritou no front - sofremos fome e nos congelamos. Morremos por nada. Que os camaradas norte-americanos transmitam à América que nós combateremos até morrer por nossa revolução. Resistiremos com todas nossas forças até que se levantem em nossa ajuda todos os povos do mundo! Digam aos operários norte-americanos que se levantem e lutem pela Revolução social!"[28].

O Governo Kerenski tentou deslocar os regimentos de soldados mais revolucionários de Petrogrado, Moscou, Vladimir, Reval etc., até o front ou para regiões perdidas como meio de descabeçar a luta. Em combinação com esta medida, a imprensa liberal e menchevique iniciou uma furiosa campanha de calúnias contra os soldados acusando-os de "acomodados", de "não dispor sua vida pela pátria", etc. Os operários da capital responderam imediatamente, e numerosas assembléias de fábrica apoiavam os soldados, pediam todo o poder aos sovietes e conquistavam adesão para armar os operários. Neste contexto, o Soviete de Petrogrado decidiu em uma reunião em 9 de outubro criar um Comitê militar revolucionário com o propósito inicial de controlar o governo, que imediatamente se transformará em centro organizador da insurreição. Nele se agrupam representantes do Soviete de Petrogrado, o Soviete de Marinheiros, o soviete da Região da Finlândia, o Sindicato Ferroviário, o Congresso de Conselhos de fábrica e a Guarda Vermelha.

Esta última era um corpo operário que "... se formou pela primeira vez durante a Revolução de 1905 e ressurgiu nos dias de março de 1917, quando era necessária uma força para manter a ordem na cidade. Nesta época os Guardas Vermelhos estavam armados e todos os esforços do governo provisório para desarmá-los tornaram estéreis. A cada crise que se produzia no curso da revolução, os destacamentos da Guarda Vermelha apareciam nas ruas, não adestrados nem organizados militarmente, mas cheios de entusiasmo revolucionário[29].

Apoiado neste reagrupamento de forças de classe, o Comitê militar revolucionário (adiante o chamaremos CMR) convocou uma Conferência de Comitês de regimento que em 18 de outubro discutiu abertamente a questão da insurreição, pronunciando-se majoritariamente por ela exceto 2 que estavam contra e outros dois que se declararam neutros (houve mais outros 5 regimentos que não tiveram representantes na Conferência). Do mesmo modo, tomou uma Resolução a favor do armamento dos operários.

Esta Resolução já estava se aplicando na prática, os operários em massa encaminhavam-se para os arsenais do Estado e reclamavam a entrega de armas. Quando o Governo proibiu tais entregas, os operários e empregados do Arsenal da fortaleza Pedro e Paulo (baluarte reacionário) decidiram colocar-se a disposição do CMR e em contato com outros arsenais organizaram a entrega de armas aos operários.

Em 21 de outubro, a Conferência de Comitês de regimento ordenou a seguinte Resolução: "1º A guarnição de Petrogrado e região promete ao CMR sustentá-lo inteiramente em toda sua ação. 2º A guarnição se dirige aos cossacos: os convidamos às reuniões de amanhã. Sejam bem vindos irmãos cossacos! 3º O Congresso pan-russo dos sovietes deve tomar todo o poder. A guarnição promete pôr todas suas forças a disposição do Congresso. Contem com nós, representantes autênticos do poder dos soldados, operários e camponeses. Estamos em nossos postos, decididos a vencer ou morrer[30].

Podemos ver aqui os traços característicos da insurreição operária: iniciativa criadora das massas, organização simples e admirável, discussões e debates que dão lugar a Resoluções que sintetizam a consciência adquirida pelas massas, recurso à convicção e persuasão - chamamento aos cossacos para que abandonaram o grupo governamental, ou o comício apaixonado e dramático dos soldados da fortaleza Pedro e Paulo celebrado em 23 de outubro e que decidiu não obedecer mais que o CMR. Tudo isso são os traços característicos de um movimento de emancipação da humanidade, de protagonismo direto, apaixonado, criador, das massas exploradas.

A jornada de 22 de outubro convocada pelo Soviete de Petrogrado selou definitivamente a insurreição: se reuniram manifestações e assembléias em todos os bairros, em todas as fábricas, que concordaram massivamente: "Abaixo Kerenski", "todo o poder para os sovietes". Foi um ato gigantesco, onde operários, empregados, soldados, muitos cossacos, mulheres, crianças, soldaram abertamente seu compromisso com a insurreição.

Não é possível no marco deste artigo contar todos os pormenores deste período (remetemos ao livro já mencionado de Trotski ou ao de J. Reed). O que pretendemos deixar claro é o caráter massivo, aberto, coletivo, da insurreição. "A insurreição foi determinada, por assim dizê-lo, para uma data fixa: o 25 de outubro. E não foi fixada em uma sessão secreta, mas aberta e publicamente, e a revolução triunfante se fez precisamente em 25 de outubro (6 de novembro), como havia sido estabelecido de antemão. A história universal conhece um grande número de revoltas e revoluções: porém buscaríamos nela em vão outra insurreição de uma classe oprimida que houvesse sido fixada antecipada e publicamente para uma data assinalada, e que houvesse sido realizada vitoriosamente no dia indicado de antemão. Neste sentido e em vários outros, a Revolução de novembro é única e incomparável[31].

Os bolcheviques explicaram claramente desde setembro a questão da insurreição nas assembléias de operários e soldados, tomaram as posturas mais combativas e decididas dentro do CMR, e da Guarda Vermelha; se deslocaram aos quartéis onde havia mais dúvidas ou que estavam favoráveis ao Governo provisório, a convencer os soldados; o discurso de Trotski foi crucial para convencer os soldados da fortaleza de Pedro e Paulo. Denunciaram sem trégua as manobras, a demora, as armadilhas dos mencheviques. Lutaram para que o IIº Congresso dos sovietes fosse convocado diante a sabotagem dos social-traidores.

No entanto, não foram os bolcheviques, mas todo o proletariado de Petrogrado que decidiu e executou a insurreição. Os mencheviques e social-revolucionários tentaram repetidas vezes atrasar sine die a celebração do IIº Congresso dos sovietes. Foi pela pressão das massas, a insistência dos bolcheviques, o envio de milhares de telegramas dos sovietes locais reclamando sua convocação, o que, finalmente, obrigou a CEC -antro dos social-traidores- a convocá-lo para o 25. "Depois da revolução de 25 de outubro, os mencheviques, e perante todo Martov, falaram muito acerca da usurpação do poder às costas do soviete e da classe operária. É difícil imaginar-se uma deformação mais descarada dos feitos. Quando na sessão dos sovietes decidimos por maioria a convocação do IIº Congresso para 25 de outubro, os mencheviques diziam: "vocês decidiram a revolução". Quando, com a maioria esmagadora do Soviete de Petrogrado nós temos negado deixar partir os regimentos da capital, os mencheviques diziam: "Isto é o princípio da insurreição". Quando no Soviete de Petrogrado foi criado o CMR, os mencheviques fizeram constar: "este é o organismo da insurreição armada". Porém quando o dia decisivo estouro u a insurreição prevista por meio deste organismo, criado e "descoberto" antecipadamente, os mesmos mencheviques gritaram: uma maquinação de conspiradores tem provocado uma revolução às costas da classe[32].

O proletariado se deu os meios de força - armamento geral dos operários, formação do CMR, insurreição - para que o Congresso dos sovietes pudesse tomar efetivamente o poder. Se o Congresso dos sovietes houvesse decidido "tomar o poder" sem essa preparação prévia, tal decisão teria sido uma gesticulação vazia facilmente desarticulável pelos inimigos da Revolução. Não se pode ver o Congresso dos sovietes como um ato isolado, formal, mas dentro de toda a dinâmica geral da classe e concretamente, dentro de um processo, onde em escala mundial se desenvolveram as condições da revolução e onde, dentro da Rússia, infinidades de sovietes locais chamavam a tomada do poder ou o tomavam efetivamente: simultaneamente com Petrogrado, em Moscou, em Tula, nos Urais, na Sibéria, em Jarkov, etc., os sovietes faziam triunfar a insurreição.

O Congresso dos sovietes tomou a decisão definitiva, confirmando a plena validade da iniciativa do proletariado de Petrogrado: "Apoiando-se na vontade da imensa maioria dos operários, os soldados e os camponeses e na insurreição vitoriosa dos operários e a guarnição de Petrogrado, o Congresso toma em suas mãos o poder... O Congresso decide: todo o poder nas localidades passa aos sovietes de deputados operários, soldados e camponeses, chamados a assegurar uma ordem verdadeiramente revolucionária".


[1] Trotsky, A História da Revolução Russa; Editora Sundermann - Tomo I; capítulo "O duplo poder".

[2] Lênin, Os ensinamentos da revolução, ponto VI. Tradução nossa.

[3] Trotski, op.cit. Capítulo "O grupo dirigente e a guerra".

[4] Ana M. Pankratova, Os conselhos de fábrica na Rússia de 1917, capítulo "O desenvolvimento da luta entre Capital e Trabalho e a Primeira Conferência de Comitês de Fábrica". Tradução nossa.

[5] J. Reed, Dez dias que abalaram o mundo, capítulo III. Tradução nossa..

[6] Trotsky, op.cit. Tomo II; capítulo "As jornadas de julho: auge e derrota".

[7] J. Reed, idem. Tradução nossa.

[8] Nunca negamos os erros que cometeu o partido Bolchevique, nem sua degeneração e transformação em coluna vertebral da odiosa ditadura stalinista. O papel do partido Bolchevique assim como a crítica implacável de seus erros e de sua degeneração, os temos analisado em vários artigos de nossa Revista internacional: "A degeneração da Revolução russa" e "Lições de Krondstadt" (nº 3) e "Defesa do caráter proletário da Revolução de Outubro" (nºs 12 e 13). A razão essencial da degeneração dos partidos e organizações políticas do proletariado resultou no peso da ideologia burguesa em suas filas que cria constantemente tendências ao oportunismo e ao centrismo (ver "Resolução sobre o centrismo e o oportunismo" na Revista internacional, nº 44).

[9] Atas da Segunda Conferência bolchevique de toda Rússia, abril 1917. Tradução nossa.

[10] Idem.

[11] Trotski, op.cit. Capítulo "Os Bolcheviques e os Sovietes".

[12] Lênin, Introdução a Conferência de Abril, 1917. Tradução nossa.

[13] Trotski, op.cit. Tomo I - capítulo "Rearmando o partido"

[14] Lênin. Teses de Abril. Tese 3 "As tarefas do proletariado na presente revolução". Tradução nossa.

[15] Lênin. A dualidade de poderes. Tradução nossa.

[16] Lênin. Teses de Abril. Tese 7 "As tarefas do proletariado na presente revolução". Tradução nossa.

[17] Lênin, Os ensinamentos da crise, abril 1917. Tradução nossa.

[18] Lênin. Teses de Abril. Tese 17, "As tarefas do proletariado...". Tradução nossa.

[19] Trotski, op.cit. Tomo II; capítulo "Rearmando o partido".

[20] Rosa Luxemburgo, A Revolução russa, capítulo I. Tradução nossa.

[21] Trotski, op.cit. Capítulo "O Comitê Militar Revolucionário".

[22] J. Reed, idem. Tradução nossa.

[23] Apelido irônico dado aos lideres mencheviques Líber e Dan, depois da publicação do artigo de Démian Biedny intitulado "Liberdan" no jornal bolchevique de Moscou de 25 de agosto de 1917. Nota do tradutor.

[24] Lênin, A crise amadureceu, parte VI. Tradução nossa.

[25] Tradução nossa.

[26] Tradução nossa.

[27] Trotski, op.cit. Tomo I; capítulo  "O grupo dirigente e a guerra".

[28] J. Reed, op.cit. Capítulo II. Tradução nossa.

[29] J. Reed, op.cit. Capítulo "Notas e esclarecimentos". Tradução nossa.

[30] Citado por Trotski. Tradução nossa.

[31] Trotski, A Revolução de novembro, 1919. Tradução nossa.

[32] Trotski, op. cit. Tradução nossa.

A insurreição de Outubro, uma vitória das massas operárias

Alguns historiadores assalariados do capital estão cheios de elogios hipócritas à "iniciativa" e inclusive à "energia revolucionária" dos operários e seus órgãos de luta de massas, os conselhos operários. Estão cheios de compreensão pelo desespero dos operários, soldados e camponeses, diante dos sacrifícios da "Grande guerra". Porém, sobretudo se apresentam como os verdadeiros defensores da "autêntica Revolução russa", contra sua suposta destruição que os bolcheviques teriam levado a cabo. Em outras palavras, no centro do ataque burguês contra a Revolução russa está a oposição entre "Fevereiro" e "Outubro" de 1917, opondo assim o inicio e a conclusão da luta pelo poder que é a essência de toda grande revolução.

A hipocrisia dos que defendem a Revolução de Fevereiro para atacar a de Outubro

Rememorando o caráter explosivo, espontâneo e massivo das lutas que começaram em fevereiro de 1917, quer dizer, as greves de massas, os milhões de pessoas que tomaram as ruas, as explosões de euforia pública, e o feito de que o próprio Lênin declarara de que a Rússia neste período era o país mais livre da Terra, a burguesia opõe a isto os acontecimentos de Outubro, onde havia pouca espontaneidade, on­de se planejavam as ações com antecedência, não havia greves, nem manifestações na rua, nem assembléias de massas durante a rebelião, quando se tomou o poder por meio das ações de uns poucos milhares de homens armados na capital, sob o comando de um Comitê militar revolucionário, diretamente inspirado pelo Partido bolchevique. E então conclui: Não provaria tudo isto que Outubro só foi um golpe dos bolcheviques? Um golpe contra a maioria dea população, contra a classe operária, contra a história, contra mesmo a natureza humana? E tudo isto, nos dizem, é o resultado de "uma louca utopia marxista", que só podia sobreviver através do terror, que leva diretamente ao stalinismo.

Segundo a classe dominante, a classe operária na Rússia não queria nada mais que o que lhe havia prometido o regime de Fevereiro: uma "democracia parlamentar", disposta a "respeitar os direitos humanos", e um governo que, ao mesmo tempo que continuava a guerra, se declarava "partidário de uma paz rápida e sem anexações". Dito de outra forma, a burguesia quer nos fazer acreditar que o proletariado russo lutava para a mesma situação de miséria que sofre atualmente o proletariado moderno. Se o regime de Fevreiro não tivesse sido derrubado em outubro, vêem nos dizer, a Rússia seria hoje um país tão próspero e poderoso como os EUA, e o desenvolvimento do capitalismo no século XX teria sido pacífico.

O que expressa realmente esta hipócrita defesa do caráter espontâneo dos acontecimentos de fevereiro é o ódio e o medo que os exploradores de todos os países sentem pela revolução de Outubro. A espontaneidade da greve de massas, o reagrupamento de todo o proletariado nas ruas e nas assembléias gerais, a formação dos conselhos operários no calor da luta, são momentos essenciais na luta de libertação da classe operária. "Indubitavelmente, a espontaneidade do movimento é um sintoma de sua profundidade entre as massas, da consistência de suas raízes, de sua invencibilidade", como resaltou Lenin [1]. Porém na medida em que a burguesia continua sendo a classe dominante, em que as forças políticas e armadas do Estado capitalista permanecem intactas, ainda é possível que contenha, neutralize e dissolva as forças de seu inimigo de classe. Os conselhos operários, esses poderosos instrumentos da luta operária, que surgiram mais ou menos espontaneamente, não são, contudo nem os únicos, nem necessariamente as mais altas expressões da revolução proletária. Predominam nas primeiras etapas do processo revolucionário. A burguesia contrarrevolucionária os infla precisamente para apresentar o inicio da revolução como seu ponto culminante, sabendo que é bem fácil esmagar uma revolução que se detém a meio caminho.

Porém a revolução russa não se deteve na metade do caminho. Indo até o final, ao completar o que começou em fevereiro, a Revolução russa confirmou a capacidade da classe operária para construir paciente, consciente e coletivamente, não só "espontaneamente", mas também de forma deliberada, planificada estratégicamente, os instrumentos que requerem para a tomada do poder: seu partido de classe marxista e seus conselhos operários, galvanizados em torno de um programa de classe e uma vontade real de governar a sociedade, e a estratégia e os instrumentos específicos da insurreição proletária. Esta unidade entre a luta política de massas e a tomada militar do poder, entre o espontâneo e o planificado, entre os conselhos operários e o partido de classe, entre as ações de milhões de operários e as de audazes minorias da classe avançadas, é a essência da revolução proletária. Esta unidade é a que tenta dissolver hoje a burguesia com suas calúnias contra o bolchevismo e a insurreição de Outubro.

A destruição do Estado capitalista, a derrubada do governo de classe da burguesia, o princípio da revolução mundial: estes são os êxitos gigantescos de Outubro de 1917, o maior e mais consciente, o mais atrevido capítulo até agora em toda a história da humanidade. Outubro fez em pedaços séculos de servidão engendrado pela sociedade de classes, demostrando que, pela primeira vez na história, existe uma classe que é ao mesmo tempo classe explorada e revolucionária. Uma classe capaz de governar a sociedade abolindo o governo das classes, capaz de libertar a humanidade de sua "pré-história" de submissão a forças sociais cegas. Essa é a verdadeira razão porque a classe dominante até agora, e agora mais que nunca, difunde a imundice de suas mentiras e calúnias sobre Outubro vermelho, o acontecimento "mais odiado" da história moderna, porém que é, de fato, o orgulho da consciência de classe do proletariado. Pretendemos demostrar que a insurreição de Outubro, que os porta-vozes e escreventes do capital chamam um "golpe", foi o ponto culminante, não só da Revolução russa, mas de toda a luta de nossa classe até então. Como escreveu Lênin em 1917: "O fato de que a burguesia nos odeie com tanto furor é um dos sintomas mais evidentes de que indicamos com acerto ao povo o caminho e os meios para derrubar o dominio da burguesia" [2].

 "A crise está madura"

Em 10 de outubro de 1917, Lênin, o homem mais procurado do país, assediado pela polícia por todas as partes da Rússia, compareceu à reunião do Comitê central do Partido bolchevique em Petrogrado, disfarçado com peruca e óculos, e escreveu a siguinte resolução em uma página de um caderno escolar:

  •  "O CC reconhece que tanto a situação internacional da Revolução russa (insurreição na frota alemã como manifestação extrema da marcha ascendente em toda Europa da revolução socialista mundial; e por outro lado, a ameaça de que a paz imperialista estrangule a revolução na Rússia), como a situação militar (decisão indubitável da burguesia russa e de Kerenski e companhia de entregar Petrogrado aos alemães) e a conquista pelo partido proletário da maioria dentro dos sovietes; unindo tudo isso a insurreição camponesa e a virada da confiança do povo para nosso Partido (eleições de Moscou), e, finalmente, a preparação manifesta de uma segunda korniloviada (evacuação das tropas de Petrogrado, envio de cosacos a Petrogrado, cerco de Minsk pelos cosacos, etc.), põem à ordem do dia a insurreição armada. Reconhecendo, pois, que a insurreição armada é inevitavel e se acha plenamente madura, o CC solicita a todas as organizações do Partido se guiar por isto e a examinar e resolver a partir deste ponto de vista todos os problemas práticos (Congresso dos Sovietes da região do Norte, evacuação das tropas de Petrogrado, ações em Moscou e Minsk, etc.)" [3].

Exatamente quatro meses antes, o Partido bolchevique havia freado deliberadamente o ímpeto combativo dos operários de Petrogrado, a quem as classes dominantes impulsionou a um enfrentamento isolado e prematuro com o Estado. Uma situação assim, devia ter levado sem a menor dúvida a decapitação do proletariado russo na capital e a que seu partido de classe fosse dizimado. O partido, superando suas próprias dúvidas internas, se aprestava firmemente em "... mobilizar todas suas forças para imprimir nos operários e nos soldados a necessidade incondicional de uma última luta desesperada e resoluta para derrubar o governo de Kerenski". Em 29 de setembro declarava: "A crise está madura. Está em jogo todo o futuro da Revolução russa. Está em jogo toda a honra do Partido bolchevique. Está em jogo todo o futuro da revolução operária internacional pelo socialismo".[4]

A explicação da atitude completamente diferente do Partido em outubro, oposta à de julho, está contida na resolução mencionada antes com uma brilhante claridade e audácia marxista. O ponto de partida, como sempre para o marxismo, é a análise da situação internacional, a avaliação da relação de forças entre as classes e as necessidades do proletariado mundial. A diferença da situação em julho de 1917, a resolução faz notar que o proletariado russo já não está só; que a revolução mundial havia começado nos países centrais do capitalismo. "Dêem uma olhada na situação internacional. O crescimento da revolução mundial é indiscutivel. A explosão de revolta dos operários Tchecos tem sido sufocada com incrível ferocidade, indicadora do extremado temor do governo. Na Itália as coisas tem chegado também a um estouro massivo em Turim. Porém o mais importante é a rebelião da frota alemã" [5]. É responsabilidade da classe operária na Rússia, não só aproveitar a oportunidade para romper seu isolamento internacional, imposto até então pela guerra mundial, mas sobretudo estender as chamas da insurreição na Europa ocidental, começando a revolução mundial.

Contra a minoria de seu próprio partido que ainda fazia eco da argumentação menchevique pseudomarxista, contrarrevolucionária, de que a revolução deveria começar em um país mais avançado, Lênin mostrou que, na realidade, as condições na Alemanha eram muito mais difíceis que na Rússia e que o verdadeiro significado histórico da revolução na Rússia era ajudar a desenvolver a revolução na Alemanha. "Os alemães, em condições diabólicamente dificeis, com só um Liebknecht (e, além disso, no presídio); sem jornais, sem liberdade de reunião, sem sovietes; com uma hostilidade incrível à idéia do internacionalismo por parte de todas as classes da população - incluindo o último camponês adaptado; com uma formidável organização da burguesia imperialista grande, média e pequena; os alemães, ou melhor, os revolucionários internacionalistas alemães, os operários com capas de marinheiros, têm organizado uma rebelião na frota com um por cento de probabilidades de êxito. Nós, em troca, com dezenas de jornais, com liberdade de reunião, com a maioria nos sovietes; nós, os internacionalistas proletários colocados nas melhores condições de todo o mundo, nos negaríamos a apoiar com nossa insurreição os revolucionários alemães. Raciocinaríamos como os Scheidemann e os Renaudel: o mais sensato é não revoltar-se, pois senão nos metralham que excelentes, que judiciosos, que ideais internacionalistas perderá o mundo!! Demostremos nossa sensatez. Aprovemos uma resolução de simpatia com os insurgentes alemães e recusemos a insurreição na Rússia. Isso será internacionalismo autêntico, sensato" [6].

Esta posição e este método internacionalista, exatamente o oposto à posição burguesa nacionalista que desenvolveu o stalinismo durante a contrarrevolução, não era exclusiva do Partido bolchevique nessa época, senão a propriedade comum dos operários avançados da Rússia com sua educação política marxista. Assim, em começos de outubro, os marinheiros revolucionários da frota do Báltico proclamaram através das estações de rádio de seus barcos aos confins da terra a siguinte convocação: "Neste momento em que as ondas do Báltico estão manchadas de sangue dos nossos irmãos, levantamos nossa voz: ... Povos oprimidos de todo o mundo! icem a bandeira da revolta!". Porém a avaliaçao das forças de classes a nivel mundial que faziam os bolcheviques não se limitava a examinar o estado do proletariado internacional, mas expressava uma clara compreensão da situação global do inimigo de classe. Baseando-se sempre em um enraizado e profundo conhecimento da história do movimento operário, os bolcheviques sabiam, pelo exemplo da Comuna de Paris de 1871, que a burguesia imperialista, inclusive em plena guerra mundial, unificaria suas forças contra a revolução.

"Não demonstra a completa inatividade da marinha inglesa em geral, assim como dos submarinos ingleses durante a tomada de Osel pelos alemães, em relação com o plano do Governo de transferir-se de Petrogrado para Moscou, que se há forjado um complô entre os imperialistas russos e ingleses, entre Kerenski e os capitalistas anglo-franceses, para entregar Petrogrado aos alemães e, desta forma, estrangular a revolução russa?", pregunta-se Lenin, e acrescenta, "A resolução da Seção de soldados do Soviete de Petrogrado contra a evacuação do Governo de Petrogrado mostra que também entre os soldados amadurece o convencimento do complô de Kerenski[7]. Em agosto, sob Kerenski e Kornilov, a Riga revolucionária foi entregue aos pés do kaiser Guillermo II. Os primeiros rumores de uma paz em separado entre Grã-Bretanha e Alemanha contra a Revolução russa alarmaram Lenin. O objetivo dos bolcheviques não era a "paz", senão a revolução, posto que sabiam, como verdadeiros marxistas, que o "cessar fogo" capitalista só podia ser um intervalo entre duas guerras mundiais. Era esta visão comunista da espiral inevitavel da barbárie que o capitalismo decadente em falência histórica, reservava a humanidade o que impulsionava agora a bolchevismo na corrida contra o relógio para cessar a guerra por meios revolucionários proletários. Ao mesmo tempo, os capitalistas começavam a sabotar a produção em todas as partes para desacreditar a revolução. Estes feitos, no entanto, no fim das contas contribuíram para os operários em destruir o mito burguês patriota da "defesa nacional", segundo o qual, a burguesia e o proletariado da mesma nação, têm um interesse comum em repelir o "agressor" estrangeiro. Isto explica também porque, em outubro, a preocupação dos operários já não era desencadear a greve de massas, mas manter a produção em marcha contra a tentativa de ataque da burguesia a suas próprias fábricas.

Entre os fatores que foram decisivos para levar a classe operária à insurreição está o fato de que a revolução estava ameaçada por novos ataques contrarrevolucionários, e que os operários, sobretudo os principais sovietes, apoiavam agora os bolcheviques. Esses dois fatores eram o fruto direto da confrontação de massas mais importante entre julho e outubro de 1917: o golpe de Kornilov em agosto. Sob da direção dos bolcheviques, o proletariado interrompeu a marcha de Kornilov a capital, essencialmente ganhando a suas tropas, e sabotando seu transporte e logística graças aos operários das ferroviárias, do correio e outros. Nesta ação, durante a qual os sovietes se revitalizaram como organização revolucionária de toda a classe, os operários descubriram que o Governo provisório de Petrogrado, dirigido pelo socialista revolucionário Kerenski e pelos mencheviques, estava envolvido no complô contrarrevolucionário. A partir desse momento, os operários compreenderam que esses partidos haviam se convertido em uma verdadeira "ala esquerda do capital", e começaram a se pender para os bolcheviques.

  • "Toda a arte tática consiste em saber aproveitar o momento em que a combinação das condições é mais favorável. A sublevação de Kornilov preparara definitivamente estas condições. As massas, que tinham perdido a confiança nos partidos da maioria soviética, viram o perigo de contra-revolução com os próprios olhos. Consideraram que cabia agora aos bolcheviques encontrar uma saída para a situação" [8].

O teste mais claro que dá prova das qualidades revolucionárias de um partido operário é sua capacidade para explicar a questão do poder. "Ora, a mudança mais brusca é aquela em que o Partido do proletariado passa da preparação, propaganda, organização e agitação para a luta direta pelo poder, à insurreição armada contra a burguesia. Tudo o que há de irresoluto, cético, conciliador e capitulacionista no interior do Partido, ergue-se contra a insurreição" [9].

Porém o Partido bolchevique superou esta crise, envolvendo se firmemente na luta armada pelo poder e demostrando assim suas qualidades revolucionárias sem precedente.

O proletariado toma o caminho da insurreição

Em fevereiro de 1917 se estabeleceu uma situação denominada de "duplo poder". Junto ao Estado burguês, e oposto a ele, os conselhos operários apareciam como um governo potencial alternativo da classe operária. Posto que na realidade não possam coexistir dois governos opostos de duas classes inimigas, posto que necessariamente uma tenha que destruir a outra para impor-se à sociedade, esse período de duplo poder é necessariamente curto e instável. Essa fase não se caracteriza, desde já, por uma "coexistência pacífica" ou uma mútua tolerância. Poderá ter uma aparência de equilíbrio social. Na realidade é uma etapa decisiva na guerra civil entre o trabalho e o capital.

A falsificação burguesa da história está obrigada a mascarar a luta de vida ou morte das classes que teve lugar entre fevereiro e outubro de 1917 para apresentar a revolução de Outubro como um "golpe bolchevique". Um prolongamento "anormal" desse período de "duplo poder" teria significado necessariamente o fim da revolução e de seus órgãos. Os sovietes são reais unicamente "como órgão de insurreição, como órgão do poder revolucionário. Fora disso, os sovietes não são mais que um mero joguete que só pode produzir apatía, indiferença e decepção entre as massas, que estão legitimamente fartas da interminável repetição de resoluções e protestos" [10]. Ainda que a insurreição proletária não fosse mais espontânea que o golpe militar contrarrevolucionário, nos meses que antecederam a outubro, ambas classes manifestaram repetidamente sua tendência espontânea à luta pelo poder. As Jornadas de julho e o golpe de Kornilov só foram as manifestações mais claras. A mesma insurreição de Outubro na realidade começou não com um sinal do Partido bolchevique, mas com o intento do governo burguês de enviar as tropas mais revolucionárias, dois terços da guarnição de Petrogrado, a frente de guerra, com a intenção de substituí-los por batalhões contrarrevolucionários. Dito de outra forma, a burguesia começou, apenas algumas semanas depois da kornilovada, com um novo intento de esmagar a revolução, obrigando o proletariado a tomar medidas insurrecionais para defendê-la.

  • "No entanto, o desenlace da insurreição de 25 de Outubro pré-determinara-se já, pelo menos em três quartas partes, no momento em que, opondo-nos ao afastamento da guarnição de Petrogrado, criamos o Comitê Militar Revolucionário (7 de Outubro), nomeamos os nossos comissários para todas as unidades e instituições militares e, por isso mesmo, isolamos completamente, não só o estado-maior da circunscrição militar de Petrogrado, mas também o governo... A partir do momento em que, por ordem do Comitê Militar Revolucionário, os batalhões se recusaram a abandonar a cidade, estava-se diante de uma insurreição vitoriosa na capital" [11].

Ademais, este Comitê militar revolucionário, que tinha de conduzir as ações militares decisivas de 25 de outubro, não só não era um órgão do Partido bolchevique, mas que em sua origem foi proposto pelos partidos de "esquerda" contrarrevolucionários como um meio para impor precisamente a retirada das tropas da capital sob a autoridade dos sovietes; porém foi trasformado imediatamente pelo soviete em um instrumento não só para opor-se a esta medida, mas para organizar a luta pelo poder.

"Não, o poder dos sovietes não era uma quimera, uma construção arbitraria, a invenção dos teóricos do Partido. Subia, irresistivelmente. de baixo da desordem econõmica da impotência dos possuidores das necessidades das massas; os sovietes, transformavam-se, na verdade, no poder para os operãrios, o soldados, os camponeses não existia outro caminho. A respeito do poder dos sovietes, não era mais tempo de procurar raciocinios e objeções; era necessário realizá-lo[12]. A lenda de um golpe bolchevique é uma das maiores mentiras da história. De fato, a insurreição se anunciou públicamente de antemão aos delegados revolucionários eleitos. O discurso de Trotski em 18 de outubro à Conferência da guarnição é uma ilustração disto: "A burguesia sabe que o Soviete de Petrogrado proporá ao congresso dos Sovietes que tome o poder em mãos... Pressentindo a batalha inevitável, as classes burguesas se esforçam por desarmar Petrogrado... A primeira tentativa da contra-revolução para suprimir o Congresso responderemos por meio de uma contra-ofensiva que será implacável e que levaremos até o fim". O ponto 3 da resolução adaptada pela Conferência da guarnição, diz: "O Congresso Panrusso dos Sovietes deve tomar o poder em mãos e assegurar ao povo paz, terra e pão[13]. Para assegurar que todo o proletariado apoiaria a luta pelo poder, a Conferência decidiu uma pacífica revisão de forças, que se celebraria em Petrogrado, antes do Congresso dos sovietes, e se basearia em assembléias de massas e debates : "Nas salas superlotadas, o auditório renovava-se durante horas e horas. Vagas e vagas, operários, soldados e marinheiros, espraiavam-se até os edifícios e inundavam-nos. Um tremor perpassou pelo pequeno povo da cidade, acordando-o com os gemidos e as advertências que realmente deviam provocar o medo. Dezenas de milhares de pessoas faziam submergir o enorme edifício da Casa do Povo, Espalhavam-se pelos corredores, pelos bufetes e pelos salões. Nos postes de ferro fundido, nas janelas, estavam suspensos, em guirlandas, pencas de cabeças humanas, de braços e de pernas, Havia no ar aquela carga de electricidade que anuncia próximos fragores. Abaixo Kerensky! Abaixo a guerra. O poder aos sovietes. Nem um dos conciliadores ousou aparecer diante das multidões ardentes para opor-lhes objecções ou fazer advertências. A palavra pertencia aos bolcheviques" [14].Trotski acrescenta: "A experiência da Revolução, da guerra, de uma luta dura, de toda uma vida amarga, emerge das profundezas da memória de todos os homens esmagados pela necessidade, e cunha-se nas palavras de ordem simples e imperiosa. Aquilo não podia continuar assim. Era preciso abrir uma passagem para o futuro".

O Partido não inventou este "desejo de poder" das massas, porém o inspirou e deu ao proletariado confiança em sua capacidade para governar. Como escreveu Lenin depois do golpe de Kornilov: "Deixemos a esses de pouca fé aprender deste exemplo. Vergonha aos que dizem: "não temos nenhuma máquina com que substituir a velha, que funciona inexoravelmente fazendo a defesa da burguesia". Pos temos uma máquina. Trata-se dos sovietes. Não temamos a iniciativa e a independência das massas. Confiemos nas organizações revolucionárias das massas e veremos em todas as esferas da vida do Estado o mesmo poder, majestade e vontade inquebrantável dos operários e camponeses que tem mostrado sua solidariedade e entusiasmo contra a kornilovada" [15].

A tarefa do momento: demolir o Estado burguês

A insurreição é um dos problemas mais cruciais, complexos e exigentes, que o proletariado tem que resolver se quer cumprir sua missão histórica. Na revolução burguesa esta questão é muito menos decisiva, posto que a burguesia podia basear sua luta pelo poder sobre o poder que já tinha conquistado a nivel político e econômico no seio da sociedade feudal. Durante sua revolução, a burguesia deixou a pequena burguesia e a jovem classe operária combater por ela. Quando se dissipava a fumaça da batalha, a burguesia amiude prefiriu entregar seu recém-conquistado poder às antigas classes feudais, agora aburguesadas e domesticadas, posto que por tradição estas tinham a autoridade de sua parte. O proletariado, ao contrário, não tem nenhuma propriedade nem poder econômico dentro do capitalismo, e não pode delegar, nem sua luta pelo poder, nem a defesa de seu governo de classe a nenhuma outra classe nem setor da sociedade. Tem que tomar ele mesmo o poder, arrastando, atrás sua liderança, à outros estratos da sociedade, e aceitando a plena responsabilidade, assumindo as consequências e os riscos de sua luta. Na insurreição, o proletariado revela e descobre mais claro que nunca, o "segredo" de sua própria existência como a primeira e a última classe explorada e revolucionária da história. Não é de estranhar que a burguesia se dedique a censurar a memória de Outubro!

A tarefa primordial do proletariado, de fevereiro em diante, foi conquistar os corações e as mentes de todos aqueles setores que pudessem ser ganhos para sua causa, e que de outro modo poderiam ser utilizados contra a revolução: os soldados, os camponeses, os funcionários do Estado, os empregados de transportes e comunicações, e inclusive os serventes da burguesia. Às vésperas da insurreição já se havia completado esta tarefa.

A tarefa da insurreição era bastante diferente: a de romper a resistência desses corpos de Estado e formações armadas que não podiam ser ganhos para a causa do proletariado, e cuja existência contínua contém o núcleo da contrarrevolução mais bárbara. Para romper esta resistência, para demolir o Estado burguês, o proletariado tem que criar uma força armada e colocá-la sob sua própria direção de classe com disciplina de ferro. Ainda que estivessem dirigidas pelo proletariado, as forças insurreicionais de 25 de outubro estavam compostas essencialmente de soldados que obedeciam sua órdens. "A Revolução de Outubro foi a luta do proletariado contra a burguesia pelo poder. Foi, todavia, o mujique quem decidiu, afinal de contas, o resultado da luta... O que deu, na capital, á insurreição, o carácter de um golpe desferido rapidamente e com um mínimo de vítimas, foi a combinação do complô revolucionário da insurreição proletária com a luta da guarnição camponesa para a sua própria salvaguarda. O Partido dirigia a insurreição: a principal força motriz era o proletariado; os destacamentos operários armados representavam o punho fechado para o choque; mas o resultado da luta deveria ser decidido pela guarnição camponesa, difícil de sublevar" [16]. Na realidade, o proletariado pôde tomar o poder porque foi capaz de mobilizar outros estratos sociais atrás do seu próprio projeto de classe: exatamente o oposto a um "golpe".

  • "Quase não houve manifestações, combates de rua, barricadas, tudo quanto se entende geralmente por insurreição; a Revolução não tinha necessidade de resolver um problema que já estava resolvido. A tomada do aparelho governamental poderia ser efetuada segundo um plano, com o auxílio dos destacamentos armados, relativamente pouco numerosos, partindo de um centro único (...) Em Outubro, a calma nas ruas, a ausência de multidão, a inexistência de combates davam, ao adversário, motivos para falar em conspiração de uma minoria insignificante, em espírito de aventura de um punhado de bolcheviques (...) Na verdade, os bolcheviques, no último momento da luta pelo poder, poderiam reduzir tudo a um "complô", não porque fóssem uma pequena minoria, mas, ao contrário, porque tinham. atrás dêles, nos bairros operários e nas casernas, uma esmagadora maioria, fortemente agrupada, organizada, disciplinada" [17].

Eleger o momento adequado: pedra angular da luta pelo poder

Tecnicamente falando, a insurrecição comunista é uma simples questão de organização militar e de estratégia. Politicamente, é a tarefa mais exigente que se possa imaginar. E o mais difícil de tudo é eleger o momento adequado da luta pelo poder. O principal perigo era uma insurreição prematura. Por volta de setembro, Lênin já estava chamando incessantemente a preparação imediata da luta armada, e declarando: "Agora ou nunca!".

É impossível dispor a vontade de uma situaçao revolucionaria. "Caso os bolcheviques não tivessem tomado o poder em outubro-novembro, por certo, Jamais o teriam tomado. Ao invés de uma direção firme, as massas teriam encontrado, entre os bolcheviques, sempre as mesmas divergências fastidiosas entre a palavra e a ação, e afastar-se-iam do partido que iludira suas esperanças durante dois ou três meses, assim como se afastaram dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques" [18]. Por isso, Lenin, ao combater o perigo de atrasar a luta pelo poder, não só salientava os preparativos contrarrevolucionários da burguesia mundial, mas, sobretudo, advertia contra os efeitos desastrosos das vacilações para os operários, que estavam quase desesperados. "O povo faminto poderia começar a demolir tudo ao seu redor de forma puramente anarquista, se os bolcheviques não fossem capazes de conduzí-lo a batalha final. Não se pode esperar sem correr o risco de ajudar a confabulação de Rodzianko com Guillermo e de contribuir à ruina completa, com a fuga geral dos soldados, se estes (próximos já a desmoralização) chegam ao desespero completo e abandonam tudo a sua sorte" [19].

Eleger o momento adequado também requer uma avaliação exata, não só da correlação de forças entre a burguesia e o proletariado, mas tambiém da dinâmica das camadas intermediárias. "Uma situação revolucionária não é eterna. De tôdas as premissas de urna insurreição, a menos estável é o estado de espirito da pequena burguesia. Em épocas de crise nacional ela segue a classe que, não apenas pela palavra como também pela ação, lhe inspira confiança. Capaz de entusiasmos impulsivos, até mesmo de delírios revolucionários, a pequena burguesia não tem resistência, perde fàcllmente a coragem em caso de insucesso e das ardentes esperanças cai na desilusão. E são, precisamente, as violentas e ràpidas mudanças dos estados de ânimo que dão tamanha instabilidade a cada situação revolucionária. Se o partido proletário não tem suficiente resolução para transformar, em tempo, a expectativa e as esperanças das massas populares em ação revolucionária, o fluxo é cedo substituido pelo refluxo: as camadas intermediárias viram as costas à revolução e procuram um salvador no campo oposto" [20].

A arte da insurreição

Na sua luta para persuadir o Partido da necessidade imperiosa de uma insurreição imediata, Lenin retomou as reflexões de Marx (em Revolução e contrarrevolução na Alemanha) sobre a questão da insurreição como uma arte, "que, como a arte da guerra ou outras, está sujeita a certas regras cuja negligência leva à submersão do partido responsável." Segundo Marx, a regra mais importante é não parar nunca na metade do caminho uma vez que tenha começado a insurreição; manter sempre a ofensiva posto que " a defensiva é a morte de toda sublevação armada"; surpreender o inimigo e desmoralizá-lo por meio de êxitos cotidianos, "ainda que sejam pequenos", obrigando-o a bater-se em retirada; "em poucas palavras, segundo Danton, o grande mestre da tática revolucionária: "audácia, audácia e audácia"". E como assinalou Lenin, "... há que concentrar no lugar e no momento decisivos forças muito superiores, porque do contrário, o inimigo, melhor preparado e organizado, aniquilará os insurgentes". Lenin acrescenta: "Confiemos em que, se se concorda com a insurreição, os dirigentes aplicaram com êxito as grandes regras de Danton e Marx. O triunfo da Revolução russa e da revolução mundial depende de dois ou três dias de luta[21].

Com este objetivo, o proletariado teve que criar os órgãos de sua luta pelo poder, um comitê militar e destacamentos armados. "Assim como um ferreiro não pode pegar com a mão nua um ferro aquecido a alta temperatura, o proletariado não pode, com as mãos nuas, apoderar-se do poder: é necessário, para isso, que possua uma organização apropriada. Na combinação da insurreição das massas com a conspiração, na subordinação do complô à insurreição, na organização da insurreição através da conspiração, reside o dominio complicado e cheio de responsabilidade da política revolucionária que Marx e Engels denominavam a "arte da insurreição" " [22].

Esta explicação centralizada, coordenada, é o que permitiu ao proletariado esmagar a última resistência armada da burguesia e desferir um golpe terrivel que a burguesia mundial não esqueceria, e de fato não o tem esquecido até agora. "..Os historiadores e os homens políticos denominam, habitualmente, insurreição das fôrças elementares o movimento de massas que, ligadas pela hostilidade contra o antigo regime, não possuem objetivos claros, nem métodos de luta elaborados, nem direção que conduza, conscientemente, à vitória. A insurreição das fôrças elementares é de bom grado reconhecida pelos historiadores oficiais, pelo menos pelos democratas, como uma calamidade inevitável cuja responsabilidade recai sõbre o antigo regime. A. verdadeira razão de tal indulgência está em que as Insurreições das fôrças "elementares" não podem sair dos quadros do regime burguês (...) O que ela nega, como sendo ‘blanquismo" ou pior ainda, bolchevismo, é o preparo consciente da insurreição,
o plano, a conspiração
" [23].

Isto é o que enfurece ainda mais a burguesia: a audácia com que a classe operária lhe arrebatou o poder. A burguesia do mundo inteiro sabia que estava preparando uma sublevação. Porém não sabia como e quando atacaria o inimigo. Ao desferir seu golpe definitivo, o proletariado se aproveitou plenamente da vantagem da surpresa da eleição do terreno de batalha. A burguesia esperava que seu inimigo fosse bastante ingênuo e "democrático" para decidir a questão da insurreição públicamente, na presença das classes dirigentes, no Congresso pan-russo dos Sovietes que se havia convocado em Petrogrado. Ali esperava sabotar e impedir a decisão e sua execução. Porém quando os delegados do Congresso chegaram a capital, a insurreição estava em pleno apogeu e a classe governante ja cambaleava. O proletariado de Petrogrado, através do seu Comitê militar revolucionário, entregou o poder ao Congresso dos Sovietes, e a burguesia não pôde fazer nada para impedí-lo. Golpe! Conspiração! gritava a burguesia, ainda grita o mesmo. A resposta de Lenin foi: golpe, não; conspiração, sim, porém uma conspiração subordinada a vontade das massas e às necessidades da insurreição. E Trotski acrescenta: "Quanto mais elevado for o nível político de um movimento revolucionário, quanto mais séria fôr a direção, maior será o lugar ocupado pela conspiração dentro da Insurreição popular" [24].

O bolchevismo uma forma de blanquismo? As classes exploradoras lançam de novo, atualmente esta acusação. "Os bolcheviques tiveram de, mais de uma vez, muito tempo antes da insurreição de Outubro, refutar acusações contra êles dirigidas pelos adversários, que os acusavam de maquinações conspirativas e de bianquismo. Ora, ninguém, mais do que Lenine, manteve uma luta tão intransigente contra a mera conspiração. Os oportunistas da social-democracia internacional tomaram, muitas vêzes, sob a proteção dêles, a velha tática socialista-revolucionária do terror individual contra os agentes do tzarismo, resistindo à critica implacável dos bolchevlques, que opunham ao aventureiro Individualismo de intelflguentsia o movimento que visava a insurreição das massas. Ao repudiar tôdas as variedades de blanquismo e da anarquia, Lenine também não se inclinava, um minuto sequer, diante da "sagrada" fõrça elementar das massas". Trotski acrescenta a isto: "A conspiração não substitui a insurreição. A minoria activa do proletariado, por mais organizada que seja, não pode apoderar-se do poder independentemente da situação geral do pais: nisso o blanquismo é condenado pela história. Mas apenas nisso, o teorema direito conserva toda a força dele. Para a conquista do poder, não basta ao proletariado uma insurreição das forças elementares. Ele precisa de uma organização correspondente, ele precisa de um plano, ele precisa da conspiração. É dessa forma que Lênin coloca a questão" [25].

O partido e a insurreiçao

É um fato bem conhecido que Lênin, o primeiro que foi completamente claro sobre a necessidade da luta pelo poder em outubro, expondo diferentes planos para a insurreição (um, centralizado na Finlândia e a frota do Báltico e outro em Moscou), em algum momento defendeu que fosse o Partido bolchevique, e não um órgão dos sovietes, que organizasse diretamente a insurreição. Os feitos provaram que a organização e a liderança da sublevação por um órgão do soviete como o Comitê militar revolucionário, onde por conseqüência o Partido tinha a influência dominante, é a melhor garantia para o êxito completo do acometimento , posto que então é o conjunto da classe, e não só os simpatizantes do partido, que se sente representado por seus órgãos unitários revolucionários.

Porém a proposta de Lênin, segundo a burguesia, revela que para ele a revolução não é tarefa das massas, mas um assunto privado do Partido. Porque se não - perguntam - estava termanantemente contra esperar o Congresso dos sovietes para decidir a sublevação. A atitude de Lênin se inscrevia plenamente no marxismo e sua confiança fundada historicamente nas massas proletarias. "Seria desastroso, ou em todo caso uma explicação puramente formal, querer esperar a incerta votação de 25 de outubro. O povo tem o direito e o dever de decidir sobre essas questões, não pelo voto, mas pela força; o povo tem o direito e o dever, nos momentos críticos da revolução, de mostrar a seus representantes, inclusive a seus melhores representantes, a direção correta, em vez de esperá-los. Isto nos ensina a história de todas as revoluções, e seria um monstruoso crime dos revolucionários deixar passar o momento, quando sabem que a salvação da revolução, as propostas de paz, a salvação de Petrogrado, e acabar com a fome, ou a devolução da terra aos camponeses, depende disto. O governo cambaleia, e há que dar-lhe o último golpe. A qualquer preço!" [26].

Na realidade, todos os líderes bolcheviques estavam de acordo com isto. Quem quer que fosse que dirigisse a sublevação, o poder alcançado seria entregue imediatamente ao Congresso pan-russo dos sovietes. O Partido sabia perfeitamente que a revolução não era somente assunto seu ou dos operários de Petrogrado, mas do conjunto do proletariado. Mas em relação a questão de quem devia conduzir a insurreição propriamente dita, Lênin estava certo quando argumentava que o faziam os órgãos da classe melhor preparados e em melhores condições para assumir a tarefa da planificação política e militar e de liderança política da luta pelo poder. Trotski tinha razão ao argumentar que o melhor dotado para esta tarefa seria um órgão do Soviete, especialmente criado para esta tarefa, e sob da influência do Partido. Mas não se tratava so de um debate de princípios, mas de um assunto vital de eficácia política. A preocupação de Lênin de que não se podia sobrecarregar com esta tarefa o conjunto do aparelho do Soviete, posto que isso atrasaria a insurreição e levaria a divulgar os planos ao inimigo, era completamente válida. Foi necessária a dolorosa experiência da Revolução russa para que depois, a esquerda comunista pudesse expor que, ainda é indispensavel a direção política do partido de classe, tanto na luta pelo poder como na ditadura do proletariado, não é tarefa do partido tomar o poder. Sobre esta questão, nem Lenin, nem outros bolcheviques (nem os espartakistas na Alemanha, etc) eram suficientemente claros em 1917, nem podiam sê-lo. Mas em relação a "arte da insurreição", a paciência revolucionária, e a precaução para evitar sublevações prematuras, em relação a audácia revolucionária necessária para tomar o poder, não tem hoje revolucionários de quem se pode aprender mais de que Lênin . Em particular sobre o papel do partido na insurreição. A história provou que Lênin tinha razão: quem toma o poder são as massas, e o soviete colabora com a organização, mas o partido de classe é a arma mais indispensável da luta pelo poder. Em julho de 1917 foi o partido que não permitiu que a classe operária sofresse uma derrota decisiva. Em outubro de 1917, o partido conduziu a classe ao poder. Sem esta direção indispensável não se teria tomado o poder.

Lênin contra Stalin

Porém a revolução de Outubro levou ao stalinismo! Grita a burguesia tirando seu argumento "definitivo". Porém na realidade o que levou ao stalinismo foi a contrarrevolução burguesa, a derrota da revolução na Europa ocidental, a invasão e o isolamento internacional da União soviética, o apoio da burguesia mundial à burocracia nacionalista que se desenvolvia na Rússia contra o proletariado e os bolcheviques. É importante recordar que durante as semanas cruciais de outubro de 1917, como durante os meses anteriores, dentro do Partido bolchevique se manifestou uma corrente que refletia o peso da ideologia burguesa, que se opunha a insurreição, e da qual Stalin já era o representante mais perigoso. Já em março de 1917, Stalin havia sido o principal porta-voz no Partido daqueles que queriam abandonar sua posição internacionalista revolucionária, apoiar o Governo provisório e sua política de continuação da guerra imperialista, e reagrupar-se com os socialpatriotas mencheviques. Quando Lênin chamou publicamente a insurreição, Stalin, como editor do órgão de imprensa do Partido, atrasava intencionalmente a publicação de seus artigos, enquanto as contribuições de Kamenev e Zinoviev, que estavam contra o levantamento, e que amiúde rompiam com a disciplina do Partido, estavam publicadas como se tratasse da posição oficial do Partido, razão pela qual Lênin o ameaçou demitir do Comitê central. Stalin continuou pretendendo que Lenin, que estava pela insurreição imediata e que agora tinha o Partido à reboque, e Kamenev e Zinoviev, que sabotavam abertamente as decisões do Partido, eram "da mesma opinião". Durante a insurreição, o aventureiro político Stalin "desapareceu" - na realidade para ver que grupo ganhava antes de reaparecer defendendo sua própria posição. A luta de Lênin e o Partido contra o "stalinismo" em 1917, contra suas manipulações e a sabotagem trapaceira à insurreição (a diferença de Zinoviev e Kamenev, pois, estes, quando menos, atuavam abertamente), voltou a retomar no Partido nos últimos dias da vida de Lênin, mas desta vez em condições infinitamente mais desfavoráveis.

O cume mais alto da história humana

Longe de ser um banal golpe de Estado, como mente a classe dominante, a revolução de Outubro é o ponto mais alto que foi alcançado até hoje pela humanidade em toda sua história. Pela primeira vez uma classe explorada teve a coragem e a capacidade de tomar o poder arrebatando-o dos exploadores e inaugurar a revolução proletária mundial. Ainda que a revolução prematuramente tenha sido derrotada em Berlim, Budapeste e Turim, ainda que o proletariado russo e mundial tivesse que pagar um preço terrivel por sua derrota - o horror da contrarrevolução, outra guerra mundial, e toda a barbárie até hoje - a burguesia ainda não foi capaz de apagar a memória e as lições deste enorme acontecimento. Hoje, quando a mentalidade e a ideologia decomposta da classe dominante destila o individualismo, o niilismo e o obscurantismo, o florecimento de visões reacionárias do mundo, como o racismo e o nacionalismo, o misticismo, o ecologismo burguês, quando e são abandonados os últimos vestígios de crença no progresso humano, o farol que acendeu a revolução de Outubro marca o caminho. Outubro recorda ao proletariado que o futuro da humanidade está em suas mãos, e que essas mãos, são capazes de cumprir sua tarefa. A luta de classes do proletariado, a reapropiação pela classe operária de sua própria história, a defesa e o desenvolvimento do método científico do marxismo, esse é o programa de Outubro. Esse é hoje o programa para o futuro da humanidade. Como Trotski escreveu na conclusão de sua grande História da Revolução rusa: "A subida histórica da humanidade, tomada em conjunto, pode ser resumida como um encadeamento de vitórias da consciência sobre as forças cegas - na natureza, na sociedade, no próprio homem. O pensamento critico e criador vangloriou-se dos maiores sucessos, até o momento presente, na luta contra a natureza. As ciências físico-químicas chegaram a tal ponto que os homens se dispõem a se transformarem nos senhores da matéria. Mas as relações sociais continuam a ser estabelecidas à semelhança dos attols. O parlamentarismo iluminou apenas a superfície da sociedade e ainda assim com uma luz bastante artificial. Comparada com a Monarquia e outras heranças do canibalismo e da selvajaria das cavernas, a democracia representa, é evidente, uma grande conquista. Mas não atinge de modo algum o jogo cego das forças nas relações mútuas da sociedade. Foi exactamente nos domínios mais profundos do inconsciente que a Insurreição de Outubro, pela primeira vez, levantou a mão. O sistema soviético quer introduzir um objectivo e um plano nos fundamentos mesmos de uma sociedade onde reinam, até agora, simples consequências acumuladas"

 


 

[1] Lênin, A Revolução russa e a guerra civil. Tradução nossa.

[2] Lênin, Se sustentarão os bolcheviques no poder? Tradução nossa.

[3] Lênin, Reunião do CC do POSDR, 10-23 de outubro de 1917. Tradução nossa.

[4] Lênin, A crise está madura. Tradução nossa.

[5] Lênin, Carta aos camaradas bolcheviques que participam no Congresso dos Sovietes da região do Norte. Tradução nossa.

[6] Lênin, Carta aos camaradas. Tradução nossa.

[7] Lênin, Carta à Conferência da cidade de Petrogrado. Tradução nossa.

[8] Trotski, As lições de Outubro, escrito em 1924. Tradução Aluizio Franco Moreira(Mestre em História) www.moreira.pro.br/pagcent.htm

[9] Trotski, Idem.

[10] Lênin, Tese para um informe perante a Conferência de Outubro. Tradução nossa.

[11] Trotski, As lições de Outubro.

[12] Trotski, A História da Revolução russa; Edição - Editora Paz e Terra; Volume III; capítulo "Retirada do pré-parlamento e luta pelo congresso dos soviets"

[13] Trotski, op. cit.; capítulo "Retirada do pré-parlamento"

[14] Trotski, op. cit.; capítulo "O comitê militar revolucionário"

[15] Lênin, Se sustentarão os bolcheviques no poder? Tradução nossa.

[16] Trotski, op. cit.; capítulo "A insurreição".

[17] Idem.

[18] Idem.

[19] Lênin, Carta aos camaradas. Tradução nossa.

[20] Trotski, op. cit.; capítulo "A arte da insurreição".

[21] Lênin, Conselhos de um ausente. Tradução nossa.

[22] Idem.

[23] Trotski, op. cit.; capítulo "A arte da insurreição".

[24] Idem.

[25] Ídem.

[26] Lênin, Carta ao Comitê central. Tradução nossa.