Lênin e as questões de organização

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Na primeira parte deste artigo, demonstrávamos que o "leninismo" não só se opõe aos nossos princípios e posições políticas, e que além do mais tem como objetivo a destruição da unidade histórica do movimento operário. O "leninismo" nega, em particular, a luta das esquerdas marxistas, primeiro dentro e depois fora da Segunda e Terceira Internacionais, opondo Lênin a Rosa Luxemburgo, Pannekoek, etc. O "leninismo" é a negação do militante comunista Lênin. É a expressão da contra-revolução stalinista dos anos 1920.

Afirmávamos também que sempre temos reivindicado do combate de Lênin pela construção do partido contra a oposição do economicismo e dos mencheviques.

Recordávamos, além do mais, que mantemos nosso rechaço aos seus erros sobre a questão da organização, em especial sobre o caráter hierárquico e "militar" da organização, assim como, no plano teórico, sobre a questão da consciência de classe que haveria de ser levada ao proletariado desde o exterior, sem por isso deixar de situar esses erros em um marco histórico para poder compreender sua dimensão e significado verdadeiros.

Qual é a posição da CCI sobre Que Fazer? e sobre Um passo adiante, dois passos atrás?

Porque afirmamos que estas duas obras de Lênin representam experiências teóricas, políticas e organizativas insubstituíveis? Nossas críticas sobre pontos, que não tem nada de secundário em particular sobre a questão da consciência tal e como se desenvolve em Que fazer?, colocariam em contradição nosso acordo fundamental com Lênin?

A contribuição de Que fazer? À definição do papel do partido

"Seria falso e caricatural opor um Que Fazer? substitucionista de Lênin a uma visão sã e clara de Rosa Luxemburgo e Trotsky (assinalamos que este será nos anos 20, um ardoroso defensor da militarização do trabalho e da todo poderosa ditadura do partido....)"[1]. Como se pode ver, nossa posição sobre Que Fazer?, começa por tomar por base o nosso método de compreensão da história do movimento operário. Este método se apóia na unidade e na continuidade deste movimento tal e como temos apresentado na primeira parte deste artigo. Não é algo novo e já estava presente quando da fundação da CCI.

Que Fazer? (1902) consta de duas grandes partes. A primeira dedicada à questão da consciência de classe e do papel dos revolucionários. A segunda considera diretamente as questões de organização. O conjunto representa uma crítica implacável dos "econimicistas" que só consideram possível um desenvolvimento da consciência no seio da classe operária a partir das suas lutas imediatas. Tendem, assim, subestimar e a negar qualquer papel político ativo das organizações revolucionárias, cuja tarefa se limitaria a "ajudar" nas lutas econômicas.

Como conseqüência natural dessa subestimação do papel dos revolucionários, o economicismo se opõe à constituição de uma organização centralizada e unida capaz de intervir em grande escala e com uma só voz sobre todas as questões, tanto econômicas como políticas.

O texto de Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás, que é um complemento a Que fazer? no plano histórico, dá conta da ruptura entre os bolcheviques e os mencheviques no IIº congresso do POSDR que acabava de ter lugar.

Que Fazer? e a consciência de classe

A principal debilidade - já temos dito - de Que fazer? se encontra na questão da consciência de classe.

Qual era a posição dos demais revolucionários sobre essa questão? Até o IIº congresso, só o "economicista" Martínov se opõe a ela. Foi só depois do congresso que Plekhanov e Trotski criticaram a concepção errônea de Lênin sobre a consciência aportada do exterior até a classe operária. Foram os únicos a rechaçar explicitamente a posição de Kautsky retomada por Lênin segundo a qual "o socialismo e a luta de classes surgem paralelamente e não se engendram mutuamente [e que] os portadores da consciência não é o proletariado, e sim os intelectuais burgueses"[2].

A resposta Trotsky sobre essa questão da consciência foi bastante justa, embora também acabou muito limitada. Não esqueçamos que estamos em 1903 e Trotsky escreveu a sua resposta, Nossas tarefas políticas em 1904. O debate sobre a greve de massas apenas tinha iniciado na Alemanha e ia se desenvolver verdadeiramente à luz da experiência de 1905 na Rússia. Trotsky rechaça claramente a posição de Kautsky e assinala o perigo do substitucionismo que carrega. Entretanto, ainda sendo muito virulento contra Lênin sobre as questões de organização, não se separa totalmente dele sobre esse aspecto particular. Compreende e explica as razões dessa posição:

"Quando Lênin retomou de Kautsky a idéia absurda da relação entre o elemento "espontâneo" e o elemento "consciente" no movimento revolucionário do proletariado, o único que fazia era definir em linhas gerais as tarefas da sua época".[3]

Alem do mais a clemência de Trotsky nisto, temos que assinalar que nenhum dos novos oponentes à Lênin se levantaram contra a posição de Kautsky sobre a consciência antes do 2º Congresso do POSDR quando estavam unidos na luta contra o economicismo. No congresso, Martov, líder dos mencheviques, retoma exatamente a mesma posição de Kautsky e Lênin. Depois do congresso, essa questão parece tão pouco importante que os mencheviques continuam negando toda divergência programática e atribuem a divisão às "elucubrações" de Lênin sobre a organização: "Com minha débil inteligência, não sou capaz de compreender o que pode ser "o oportunismo sobre os problemas de organização", colocado no terreno como algo autônomo, sem nenhum vínculo orgânico com as idéias programáticas e táticas".[4]

A crítica de Plekhanov, se bem seja justa, é bastante genérica e se contenta em restabelecer a posição marxista sobre a questão. A principal argumentação consiste em dizer que não é verdade que "Os intelectuais (tem) "elaborado" suas próprias teorias socialistas "de maneira completamente independente do crescimento espontâneo do movimento operário" - isto jamais havia ocorrido e não poderia ocorrer".[5]

Antes do congresso e no seu transcurso, quando ainda continua de acordo com Lênin, Plekhanov se limita a nível teórico a questão da consciência. Não aborda os debates do IIº. Congresso. Não responde a questão central: Que partido e que papel para esse partido? Só Lênin da uma resposta.

A questão central de "Que fazer?": elevar a consciência

Lênin teve uma preocupação central na sua polemica contra o economicismo no plano teórico: a questão da consciência de classe e o seu desenvolvimento no seio da classe operária. Sabe-se que Lênin abandonara rapidamente a posição de Kautsky. Particularmente com a experiência da greve de massas russa de 1905 e o aparecimento dos primeiros soviets. Em janeiro de 1917, melhor dizendo antes do início da revolução na Rússia, em meio aos estragos da guerra imperialista, Lênin volta à greve de massas de 1905. Passagens inteiras sobre "o emaranhamento das greves econômicas e as greves políticas" podem parecer escritos por Rosa Luxemburgo ou Trotsky[6]. E dão uma idéia do rechaço por parte de Lênin do seu erro inicial em grande parte pelas suas "forçadas de barra"[7]:

"A verdadeira educação das massas jamais poderá separar-se de uma luta política independente, e sobretudo da luta revolucionária das massas mesmo. Só a ação educa a classe explorada, só ela lhe dá a medida das suas forças, amplia seu horizonte, desenvolve suas capacidades, ilumina sua inteligência e tempera sua vontade"[8]. Longe estamos do que disse Kautsky.

Porém já em Que fazer?, o que disse sobre a consciência é contraditório. Ao lado da posição errônea, Lênin afirma, por exemplo: "Isto nos demonstra que o "elemento espontâneo" não é senão, no fundo, a forma embrionária do consciente"[9].

Essas contradições são a manifestação de Lênin, como de resto do movimento operário em 1902, não terem uma posição muito precisa e clara sobre a questão da consciência de classe[10]. As contradições de Que fazer? e as tomadas de posição posteriores demonstram que Lênin não está particularmente atado à posição de Kautsky. Além do mais, só há três passagens bem delimitadas em Que fazer? nos quais escreve que "a consciência há de ser levada desde o exterior". E das três, há uma que não tem nada a ver com o que Kautsky disse.

Rechaçando a idéia que seja possível "desenvolver a consciência política de classe dos operários, por assim dizer, desde o interior da sua luta econômica, quer dizer partindo unicamente (ou pelo menos principalmente) desta luta, baseando-se unicamente (ou ao menos, principalmente) nesta luta....[Lênin responde que]....a consciência política de classe só pode chegar ao operário do exterior, quer dizer do exterior da luta econômica, do exterior da esfera das relações entre operários e patrões"[11]. A fórmula é confusa, porém a idéia é justa. E não corresponde ao que defende em outros dois usos do termo "exterior" quando fala da consciência. Seu pensamento é ainda mais preciso em outra passagem: "A luta política da social-democracia é muito mais ampla e complexa que a luta econômica dos operários contra os patrões e o governo"[12].

Lênin rechaça muito claramente a posição desenvolvida pelos economicistas sobre a consciência de classe enquanto um produto imediato, direto, mecânico e exclusivo das lutas econômicas.

Nós estamos do lado do Que fazer? no combate contra o economicismo. Também estamos de acordo com os argumentos críticos usados contra o economicismo e dizemos que, ainda hoje, continuam atuais enquanto ao seu conteúdo teórico e político.

"A idéia segundo a qual a consciência de classe não surge de maneira mecânica das lutas econômicas é completamente correta. Porém o erro de Lênin consiste em acreditar que não se pode desenvolver a consciência de classe a partir das lutas econômicas e que esta há de ser introduzida desde fora por um partido"[13]. É essa uma nova apreciação da CCI? São citações de Que fazer? que fazíamos nossas, em 1989, em um artigo de polemica[14] com o BIPR, insistindo já então sobre o que dizemos hoje. "A consciência socialista das massas operárias é a única base que pode nos garantir o triunfo (...). O partido sempre haverá de ter a possibilidade de revelar a classe operária o antagonismo hostil entre seus interesses e os da burguesia. [A consciência de classe a que tem chegado o partido] há de ser propalada no seio das massas operárias com um impulso crescente. (...) tem de esforçar-se ao máximo para elevar o nível de consciência dos operários em geral. [A tarefa do partido consiste em] tirar proveito dos lampejos de consciência política que a luta econômica tem feito penetrar na mente dos operários para elevar a eles ao nível da consciência social-democrata"[15].

Para os detratores de Lênin, as idéias de Que fazer? anunciam o estalinismo. Assim pois um vínculo uniria Lênin a Stalin inclusive sobre a questão de organização. Já havíamos denunciado semelhante mentira na primeira parte do presente artigo ao nível histórico. E também o rechaçamos no âmbito político, incluídas as questões da consciência de classe e da organização política.

Existe uma unidade e uma continuidade entre Que fazer? e a Revolução russa, porém nenhuma em absoluto com a contra-revolução stalinista. Esta unidade e continuidade existem como um todo no processo revolucionário que enlaça as greves de massas de 1905 com as de 1917, que vão de fevereiro de 1917 até a insurreição de outubro de 1917. Para nós, Que fazer? anuncia as Teses de abril em 1917: "As massas enganadas pela burguesia são de boa fé. Torna-se muito importante informá-las com cuidado, perseverança, com paciência sobre seu erro, ensinar-lhes o vínculo indissolúvel entre o capital e a guerra imperialista (...). Explicar às massas que os soviets representam a única forma possível de governo operário"[16]. Para nós, Que fazer? anuncia a insurreição de outubro e o poder dos soviets.

Nossos detratores atuais "anti-leninistas" ficam em silêncio quanto a preocupação central de Que fazer? sobre a consciência, e desta maneira imitam um aspecto do método stalinista que denunciamos na primeira parte deste artigo. Da mesma maneira como Stalin fazia desaparecer os velhos militantes bolcheviques das fotos, fazem desaparecer o essencial do que disse Lênin e nos acusam de passarmos a ser "leninistas", quer dizer stalinistas.

Para os que elogiam Lênin sem crítica, como a corrente bordiguista, seríamos idealistas incorrigíveis com nossa insistência sobre o papel e a importância da "consciência de classe na classe operária" e na luta histórica e revolucionária do proletariado. Para quem se esforça em ler o que escreveu Lênin e para quem quer imergir no processo real de discussões e confrontações políticas daqueles tempos, ambas acusações resultam falsas.

A distinção em "Que fazer?" entre organização política e organização unitária

No plano político e organizativo, há outros aportes fundamentais em Que fazer? Trata-se particularmente da distinção clara e precisa feita por Lênin entre as organizações com as quais se dota a classe operária nas suas lutas cotidianas, as organizações unitárias, e as organizações políticas. Vejamos primeiro o adquirido a nível político.

"Esses círculos, associações profissionais dos operários e organizações tornam-se necessárias em todas as partes; haverão de ser o mais numerosas possíveis e suas funções as mais variadas possíveis; porém torna-se absurdo e nocivo confundir-las com a organização dos revolucionários, apagar a demarcação que entre elas existe (...) A organização de um partido social-democrata revolucionário tem de ser necessariamente de outro tipo que a organização dos operários para a luta econômica"[17].

Esta distinção não é um descobrimento para o movimento operário. A social-democracia internacional, particularmente a alemã, tinha clara essa questão. Porém Que fazer?, na sua luta contra a variante russa do oportunismo naquela época, o economicismo, e tomando em conta as condições particulares, concretas, da luta de classes na Rússia tzarista, vai mais além e avança uma idéia nova: "A organização dos revolucionários tem de incluir antes de tudo e principalmente homens cuja profissão é revolucionário. Diante desta característica comum a dos membros de tal organização, qualquer distinção entre operários e intelectuais e, ainda mais, entre as diversas profissões dos uns e dos outros, deve se apagar Necessariamente, esta organização não deve ser muito extensa e há de ser o mais clandestina possível"[18].

Examinemos isso. Seria errôneo ver nessa passagem considerações só relacionadas com as condições históricas em que os revolucionários russos deviam atuar, particularmente as condições de ilegalidade, de clandestinidade e de repressão. Lênin avança três pontos que têm um valor universal e histórico. E cuja validade não tem deixado de confirmar-se até hoje. Primeiro, que a militância comunista é um ato voluntário e sério (utiliza a palavra "profissional" que também utilizavam os mencheviques nos debates do congresso) que compromete o militante e determina sua vida. Sempre estivemos de acordo com esse conceito do compromisso militante que combate e nega toda visão ou atitude diletante.

Segundo, Lênin defende uma visão das relações entre militantes comunistas que supera a divisão operário/intelectual[19], dirigente/dirigido diríamos hoje, uma visão que supera toda idéia hierárquica ou de superioridade individual, em uma comunidade de luta no seio do partido, ou no seio da organização revolucionária. E se opõe a qualquer divisão de ofício ou corporações entre os militantes. Rechaça de antemão as células de empresa que foram instauradas, em troca, com a bolchevização em nome do leninismo[20].

E, ultimo ponto, Lênin define uma organização que "não deve ser muito extensa". É ele o primeiro a perceber que o período dos partidos operários de massa está acabando-se[21]. Seguramente as condições da Rússia favoreciam essa clarividência. Porém são as novas condições de vida e da luta do proletariado, que se manifestam particularmente com a "greve de massas", as que determinam também as novas condições da atividade dos revolucionários, muito em particular o caráter "menos extenso", minoritário, das organizações revolucionárias no período de decadência do capitalismo que estava se abrindo no início do século XX.

"Porém seria (...) "seguidismo" pensar que sob o capitalismo quase toda a classe ou a classe inteira possa encontrar-se um dia em condições de elevar-se até ao ponto de adquirir o grau de consciência e de atividade do seu destacamento de vanguarda, do seu partido social-democrata"[22].

Embora nessa mesma época, Rosa Luxemburgo, Pannekoek ou Trotsky fossem entre os primeiros a perceber as lições do surgimento das greves de massas e dos conselhos operários, seguiram prisioneiros de uma visão dos partidos como organizações políticas de massas. Rosa Luxemburgo critica Lênin desde o ponto de vista de um partido de massas[23]. Até o ponto em que ela também acaba se esbarrando quando escreve que "na verdade, a social-democracia não está vinculada a organização da classe operária, é o movimento próprio da classe operária"[24]. Vitima ela também da "forcada de barra" na polêmica, vítima do seu apoio aos mencheviques no que está em jogo durante o IIº congresso do POSDR, se desliza inoportunamente por sua vez até o terreno dos mencheviques e dos economicistas, diluindo a organização dos revolucionários na classe[25].

Porém conseguirá voltar mais tarde - e com que ímpeto - a uma posição mais clara. Entretanto, sobre a distinção entre organização do conjunto da classe e organização dos revolucionários, as fórmulas de Lênin continuam sendo as mais claras. São as que vão mais adiante.

O Aporte de Um passo adiante, dois passos atrás para a delimitação e o funcionamento do partido

Que fazer? e Um passo adiante, dois passos atrás são pois dois tantos passos políticos essenciais na história do movimento operário. Essas duas obras constituem mais especificamente aquisições políticas "práticas" a nível organizativo. Igualmente a Lênin, a CCI sempre tem considerado a questão da organização como questão integralmente política A organização política da classe operária é diferente de sua organização unitária e isso tem implicações práticas Dentre elas, a definição estrita da adesão e do pertencimento ao partido, quer dizer à definição do militante, de suas tarefas, das suas obrigações, das suas responsabilidades, ou seja, da sua relação com a organização, é essencial. Bem se conhece a batalha do IIº Congresso do POSDR em torno do artigo primeiro dos estatutos: é o primeiro enfrentamento, no seio do congresso, entre bolcheviques e mencheviques. A diferença entre as fórmulas propostas por Lênin e Martov pode parecer completamente insignificante.

Quem é membro do partido?

Para Lênin, "é membro do Partido aquele que reconhece o programa e defende o Partido tanto com meios materiais como com a sua participação pessoal em uma das organizações do partido"; Para Martov "se considera como pertencente ao Partido operário social-democrata da Rússia, aquele que, reconhecendo seu programa, trabalha ativamente para por em aplicação suas tarefas sobre o controle e a direção dos organismos do Partido".

A divergência considera o reconhecimento da qualidade de membro: seja unicamente aos militantes que pertencem ao Partido e que este reconhece como tal- a posição de Lênin -; ou seja aqueles militantes que não pertencem formalmente ao Partido, porém que em tal ou qual momento, em tal ou qual atividade, apóiam ao Partido, ou se declaram eles mesmos social-democratas. Assim, a posição de Mártov e dos mencheviques revela muito mais ampla, mas "flexível", menos restritiva e menos precisa que a de Lênin.

Por trás dessa diferença, se esconde uma questão de fundo que rapidamente apareceu durante o congresso e que as organizações revolucionárias continuam se enfrentando hoje: quem é membro do partido, e ainda mais difícil de definir, quem não é?

Para Mártov, fica claro "Quanto mais se generalize a apelação de membro do partido melhor. Temos que ficar alegres se cada grevista, cada manifestante, ao fazer-se responsável dos seus atos, pode declarar-se membro do Partido"[26].

A posição de Mártov tende a diluir, a dissolver a organização dos revolucionários, o partido, na classe. Une-se ao economicismo que anteriormente combatia junto a Lênin. A argumentação com a que defende sua proposta de Estatutos equivale a liquidar a idéia mesma de partido de vanguarda, unido, centralizado e disciplinado em torno de um Programa político bem definido, bem preciso e com uma vontade de ação militante e coletiva ainda mais definida, precisa e rigorosa. Também abre a porta a políticas oportunistas de "recrutamento" sem princípios de militantes que hipotecam o desenvolvimento do partido a longo prazo em benefícios de resultados imediatos. Quem tem razão é Lênin:

"Ao contrário, quanto mais fortes sejam nossas organizações do Partido que englobam verdadeiros social-democratas, menos vacilação e instabilidade teremos no seio do Partido, e mais ampla, mais variada, mais rica e fecunda será a influência do Partido sobre os elementos da massa operária que o rodeiam e aos que dirige. Efetivamente, não se pode confundir o Partido, vanguarda da classe operária, com o conjunto da classe"[27].

O grande perigo da posição oportunista de Mártov sobre a organização, o recrutamento, a adesão e o pertencimento ao partido aparece muito rapidamente no mesmo congresso com a intervenção de Axelrod: "Um pode ser membro sincero e fiel do partido social-democrata, porém demonstrar completamente inadaptado para a organização de combate rigorosamente centralizada"[28].

Como se pode ser um membro do partido, militante comunista, e "inadaptado para a organização de combate centralizada"? Aceitar semelhante idéia é tão absurdo como aceitar a idéia de um operário combativo e revolucionário porém "inapto" para qualquer ação coletiva de classe. Qualquer organização comunista só pode aceitar no seu seio militantes aptos à disciplina e à centralização que necessita seu combate. Como poderia ser possível outra coisa? A não ser que se aceite que os militantes não respeitem imperativamente as relações na organização e as decisões que ela adota, assim como da necessidade do combate. A não ser, também, que se queira ridicularizar a noção mesma de organização comunista que haverá de ser "a fração mais resoluta de todos os partidos operários de todos os países, a fração que impulsiona todas as demais"[29]. A luta histórica do proletariado é um combate de classe, unindo em escala histórica e internacional, coletivo e centralizado. E como a sua classe, os comunistas levam a cabo um combate histórico, internacional, permanente, unido, coletivo e centralizado que se opõe a qualquer visão individualista. "A consciência crítica e a iniciativa voluntária têm um valor muito limitado para os indivíduos, porém em troca, se realizam plenamente na coletividade do Partido"[30]. Quem for incapaz de envolver-se nesse combate centralizado é incapaz de atividade militante e não pode ser reconhecido enquanto membro do partido. "Que o partido admita unicamente elementos capazes ao menos de um mínimo de organização"[31].

Essa "capacidade" é fruto da convicção política e militante dos comunistas. Adquire-se e se desenvolve participando na luta histórica do proletariado, particularmente no seio das suas minorias políticas organizadas. Para qualquer organização comunista conseqüente, a convicção e a capacidade "prática" - não platônica - para "a organização de combate rigorosamente centralizada" de qualquer novo militante são por sua vez condições indispensáveis para sua adesão e expressões concretas do seu acordo político com o programa comunista.

A definição do militante, da qualidade de membro de uma organização comunista continua sendo hoje em dia uma questão essencial. Que fazer? e Um passo adiante, dois passos atrás colocam os fundamentos e as respostas a quantidade de perguntas em matéria de organização. É por isso o que a CCI sempre tem se apoiado na luta dos bolcheviques no IIº Congresso para diferenciar com clareza, rigor e firmeza, um militante, ou seja "quem participa pessoalmente de uma das organizações do Partido", como defendido por Lênin, e um simpatizante, um companheiro de caminhada, aquele que "adota o programa, apóia o Partido com meios materiais e lhe aporta uma ajuda pessoal regular (ou irregular, acrescentamos) sob a direção de uma das suas organizações", tal como expressa a definição de militante de Mártov que foi finalmente adotada no IIº Congresso. Igualmente, sempre temos defendido que "quando quiser ser membro do Partido, tem de reconhecer também as relações de organização, e não só platonicamente"[32].

Nada disso é novidade para a CCI. É a base mesma da sua constituição como demonstra a adoção do seu Estatuto já no seu primeiro congresso internacional em janeiro de 1976.

E seria um erro pensar que esta questão já não colocaria nenhum problema hoje. Primeiro, a corrente conselhista, embora suas ultimas expressões políticas sejam silenciosas, senão quase a ponto de desaparecer[33] continua sendo hoje uma espécie de herdeira do economicismo e do menchevismo em matéria de organização. Em um período de maior atividade da classe operária, não há dúvida que as pressões conselhistas para "enganar a si mesma, fechar os olhos diante da imensidão das nossas tarefas, restringir essas tarefas (esquecendo) a diferença entre o destacamento de vanguarda e as massas que gravitam na sua órbita"[34] cobrarão um novo vigor. Porém também no meio que reivindica exclusivamente a Esquerda italiana e Lênin, seja a corrente bordiguista e o BIRP, a colocação em prática do método de Lênin e do seu pensamento político em matéria de organização está muito distante de constituir uma verdadeira aquisição. Basta só observar a prática de recrutamento sem princípios do PCI bordiguista nos anos 70. Sua política ativista e imediatista acabou levando a desmantelamento em 1982. No mais há de se observar que a ausência de rigor do BIRP (que agrupa Battaglia comunista na Itália e a CWO na Inglaterra) que às vezes parece custar decidir quem é militante da organização e quem é um simpatizante ou contato próximo: e isso apesar de todos os riscos que tal imprecisão organizativa suporta. O oportunismo em matéria de organização é hoje um dos venenos mais perigosos para o meio político proletário. E infelizmente de nada servem como contraveneno as cantilenas sobre Lênin e a necessidade do "Partido compacto e potente".

A concepção do militantismo defendida por Lênin

Que diz Rosa Luxemburgo, na sua polêmica com Lênin a respeito do militante e seu pertencimento ao partido?

"A idéia expressa no livro (Um passo adiante, dois passos atrás) de uma maneira penetrante e exaustiva é a de um centralismo implacável: seu princípio vital exige, por um lado, que as falanges organizadas de revolucionários declarados e ativos saiam e se separem decididamente do meio que os rodeia e que, embora não organizado, nem por isso deixa de ser revolucionário; nele se defende, por outra parte, uma disciplina rígida"[35].

Sem pronunciar-se explicitamente contra a definição precisa de militante que faz Lênin, o tom irônico que Rosa emprega quando invoca "as falanges organizadas que saem e se separam do meio que os rodeia" e... seu silêncio total sobre a batalha política no congresso acerca do artigo primeiro dos estatutos, põe em relevo a visão errônea de Rosa Luxemburgo, nesse momento, e o seu alinhamento com os mencheviques. Continua presa da visão do partido de massas, que servia de exemplo no momento a social-democracia alemã. Não vê o problema ou o evita, equivocando-se no combate. Ao não falar nada sobre o debate no congresso em torno do artigo primeiro dos estatutos acaba dando razão a Lênin quando este afirma que ela "se limita a repetir frases vazias sem procurar dar sentido. Agita espantalhos sem ir ao fundo do debate. Me faz dizer lugares comuns, idéias gerais, verdades absolutas e se esforça em não dizer nada sobre as verdades relativas que se apóiam em fatos precisos"[36].

Como no caso de Plekhanov e muitos outros, as considerações gerais avançadas por Rosa Luxemburgo - inclusive quando são justas em si - não respondem as verdadeiras questões políticas colocadas por Lênin. "É assim como uma preocupação correta: insistir no caráter coletivo do movimento operário, em que a "emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores" desemboca em conclusões práticas falsas", como dizíamos a respeito de Rosa Luxemburgo em 1979[37]. Rosa passou ao lado das conquistas políticas do combate dos bolcheviques.

E, de fato, se não houvesse ocorrido um debate em torno do artigo Iº dos Estatutos, a questão do partido claramente definido e diferenciado organizativa e politicamente, do conjunto da classe operária, não teria terminado definitivamente esgotado. Sem o combate assumido por Lênin sobre o artigo 1, a questão não seria uma aquisição política de primeira importância em matéria de organização, base em que devem apoiar-se os comunistas de hoje para constituir sua organização, não só para a adesão de novos militantes, senão também e sobretudo para o esclarecimento preciso e rigoroso das relações entre militantes e organização revolucionária.

É esta defesa da posição de Lênin sobre o artigo 1 dos estatutos algo novo para a CCI?

"Para ser membro da CCI, tem que (...) integrar-se na organização, participar ativamente do seu trabalho e cumprir as tarefas que lhe confia" afirma o artigo dos nossos estatutos que trata da questão do pertencimento militante à CCI. Está claro que recolhemos, sem a menor ambigüidade, a idéia de Lênin, o espírito e até a letra do estatuto que ele propôs no IIº Congresso do POSDR e em absoluto não a de Mártov ou Trotsky.

O combate em torno dos estatutos

Já apresentamos rapidamente nossa concepção de militante revolucionário e mostramos que esta é a herdeira, em boa parte, do combate e dos aportes de Lênin de Que fazer? e Um passo adiante, dois passos atrás. Já temos sublinhado a importância de expressar o mais fiel e mais rigorosamente possível na prática militante cotidiana, graças aos estatutos da organização, essa definição de militante. E nisso também nos mantemos fieis ao método e os ensinamentos de Lênin em matéria de organização. O combate político por estabelecer regras precisas nas relações organizativas, ou seja os estatutos, é algo fundamental. Igualmente é o combate para que se respeitem, claro está. Sem este, as grandes declarações sobre o partido não passam de fantasmagorias.

Pelos próprios limites desse artigo, não poderemos apresentar nossa concepção sobre a unidade da organização política e mostrar no que a luta de Lênin contra a sobrevivência dos círculos, no IIº. Congresso do POSDR, foi um aporte teórico e político de primordial importância. E no que queremos insistir é na importância prática que tem de expressar essa unidade nos estatutos da organização: "O caráter unitário da CCI se plasma também nesses estatutos", como assim se diz neles. Lênin expressa muito bem o porque dessa necessidade:

"O anarquismo senhorial não compreende que os estatutos formais são necessários precisamente para substituir o vínculo limitado dos círculos com o amplo vinculo do Partido. Não se necessitava nem era possível para o vínculo existente no interior de um círculo revestir uma forma definida, pois este estava baseado na amizade pessoal ou em uma "confiança" incontrolada e não motivada. O vínculo do Partido não pode nem deve repousar nem em uma nem na outra; é indispensável basear-se precisamente em estatutos formais, redigidos "burocraticamente"[38] (desde o ponto de vista do intelectual sem disciplina), e cuja estrita observância é o único que nos garante contra a arbitrariedade e os caprichos dos círculos, contra suas brigas chamadas de livre "processo" da luta ideológica"[39].

E é o mesmo enquanto a centralização da vida política interna contra toda visão federalista, localista, ou visão da organização como uma soma de partes e até de indivíduos revolucionários, autônomos. "O congresso internacional é o órgão soberano da CCI", dizem os nossos Estatutos. Também nesse aspecto nos reivindicamos do combate de Lênin e da sua necessária concretização prática nos Estatutos da organização, tanto para o POSDR de então como para as organizações de hoje.

"Em uma época de restabelecimento da unidade efetiva do partido e da diluição dos círculos antiquados nessa unidade, se situa inevitavelmente por cima o Congresso do partido, como órgão supremo do mesmo"[40].

É o mesmo enquanto a vida política interna: o aporte de Lênin considera também e especialmente os debates internos, o dever - e não só um simples direito - de expressão de toda divergência nos marcos da organização ante a organização no seu conjunto; e uma vez esgotados os debates e tomadas as decisões pelo congresso (órgão soberano, verdadeira assembléia geral da organização) as partes e os militantes se subordinam ao todo. Contrariamente à idéia, amplamente espalhada, de um Lênin ditatorial, procurando sempre abafar os debates e a vida política na organização, na realidade não parava de opor-se a idéia menchevique que via o congresso como "um relator, um controlador, e nunca um criador"[41]

Para Lênin e a CCI, o congresso é "criador". Entre outras coisas, rechaçamos radicalmente toda idéia de mandatos imperativos dos delegados por parte de seus mandatários ao congresso, o que é contrário aos debates mais amplos, dinâmicos e frutíferos. O que reduziria os congressos a nada mais que "relatores" como queria Trotsky em 1903. Um congresso "relator" consagraria a supremacia das partes sobre o todo, o império da mentalidade de "cada um na sua casa", do federalismo e do localismo. Um congresso "relator e controlador" é a negação do caráter soberano do congresso. Como Lênin, estamos a favor de congressos "organismo supremo" do partido, com poder de decisão e de "criação". O congresso "criador" implica que os delegados não estejam "imperativamente" limitados, com as mãos atadas, prisioneiros do mandato que seus mandatários lhes outorga.[42]

O congresso "órgão supremo" significa também precisamente sua "supremacia" em termos programático, político e de organização, sobre as diferentes partes da organização comunista:

"O congresso é a instancia suprema do Partido e, portanto, aquele que falta à disciplina do partido e ao regulamento do congresso; que de qualquer forma , põe obstáculos a que qualquer dos delegados apele diretamente ao Congresso, sobre todas as questões da vida do partido, sem exceção alguma. O problema em discussão se reduz desse modo a um dilema: o espírito de círculo ou o espírito de Partido? Ou se limitam os direitos dos delegados ao congresso, em virtude de imaginários direitos ou estatutos de toda sorte de grupos e círculos, ou todas as instâncias inferiores dos velhos grupinhos se dissolvem totalmente antes do congresso, e não só de palavra, e sim de fato"[43].

Os estatutos não são medidas excepcionais

Já vimos que nem Rosa Luxemburgo nem Trotsky, para não citar outros, não respondem a Lênin sobre o artigo 1 dos estatutos. Desdenham totalmente essa questão, assim também descuidam dos estatutos em geral. E nisso também preferem limitar-se a generalidades abstratas. E quando se dignam a invocar esta questão, é para subestimá-la por completo. E no melhor dos casos, consideram os estatutos da organização política como uma proteção, como limites que não se há de ultrapassar. E no pior dos casos, não os considera senão como armas repressivas que de haveria de utilizar em casos excepcionais e com muitas precauções. Aqui há de se notar que esta concepção dos estatutos também é a dos stalinistas, que também vêem neles, só medidas repressivas, com a única diferença de que esses não andam com "precauções".

Para Trotsky, a fórmula de Lênin no artigo 1 teria deixado "A satisfação platônica de ter descoberto o remédio estatutário contra o oportunismo (...) Não há dúvida: se trata de uma forma simplista, tipicamente administrativa de resolver uma questão prática muito grave"[44].

A mesma Rosa Luxemburgo responde sem saber a Trotsky, ao afirmar que no caso de um partido já constituído (caso de um partido social-democrata de massas como na Alemanha), "uma aplicação mais severa da idéia centralista no estatuto de organização e uma formulação mais estrita dos pontos sobre a disciplina de partido são muito apropriados para servir de barreira contra a corrente oportunista"[45]. Significa isso que ela está de acordo com Lênin no caso da Alemanha, que dizer em geral. Entretanto, no que considera a Rússia, continua dizendo "verdades abstratas" ("Os desvios oportunistas não podem ser prevenidos a priori, senão que há de ser superadas pelo próprio movimento") que não significam nada e que, na realidade justificam "a priori" qualquer renúncia à luta contra o oportunismo em matéria de organização. O que ela acaba fazendo, sempre para o caso russo, ou seja no concreto, burlando dos estatutos, "parágrafos de papel", de "puro papelada", e considerando-os como medidas excepcionais: "O estatuto do Partido não haveria de ser uma arma contra o oportunismo, sim um meio de autoridade externa para exercer a influência preponderante da maioria revolucionária proletária realmente existente no Partido"[46].

Nunca estivemos de acordo com Rosa Luxemburgo sobre esse ponto: "Rosa continua repetindo que é o mesmo movimento de massas que haverá de superar o oportunismo, os revolucionários não tendo de acelerar artificialmente este movimento. (...) O que não consegue compreender Rosa Luxemburg, é que o caráter coletivo da ação revolucionária é algo que se há de forjar"[47]. Enquanto a questão dos estatutos, sempre estivemos e continuamos de acordo com Lênin.

Os estatutos como regra de vida e arma de combate

Os estatutos são para Lênin muito mais que simples regras formais de funcionamento, algo a que se refere no caso de situações excepcionais. Contrariamente a Rosa Luxemburgo ou aos mencheviques, Lênin define os estatutos como uma linha de conduta, o espírito que anima a organização e seus militantes dia a dia. Contrariamente a compreensão dos estatutos como meios de coerção ou de repressão, Lênin entende os estatutos como armas que impõem a responsabilidade das diferentes partes da organização e dos militantes, com respeito ao conjunto da organização política; armas que impõem o dever de expressão aberta, pública, ante o conjunto da organização, das divergências e dificuldades políticas.

Lênin não considera a expressão dos pontos de vista, dos matizes, das discussões, divergências, como um direito dos militantes, e sim como um dever e uma responsabilidade com respeito ao conjunto do partido e de seus membros. Os estatutos são ferramentas a serviço da unidade e da centralização da organização, ou seja, armas contra o federalismo, contra o espírito de círculo, o julgamento político influenciado pelas relações de amizade, contra a vida política e a discussão escapando do marco da organização para ser assumidas fora dela. Mas que limites exteriores, mais ainda que regras, os estatutos são para Lênin como um modo de vida política, organizativa e militante.

"As questões litigiosas no seio dos círculos, não se resolveriam segundo os estatutos "senão pela luta e ameaça de quitar" (...) Quando eu era unicamente membro de um círculo (...) tinha direito de justificar, por exemplo, a minha recusa de trabalhar com X., alegando só a falta de confiança, sem ter que dar explicações nem motivos. Uma vez membro do partido, não tenho direito de invocar só uma vaga falta de confiança, porque isso equivaleria escancarar as portas a todas extravagâncias e a todas arbitrariedades dos antigos círculos; estou obrigado a motivar minha "confiança" ou minha "desconfiança" com um argumento formal, quer dizer, ao referir-me a esta ou aquela disposição formalmente fixada do nosso Programa, da nossa tática, dos nossos Estatutos. Estou obrigado a não limitar-me a um "tenho confiança" ou "não tenho confiança" sem mais controle, senão reconhecer que devo responder das minhas decisões, como em geral toda parte integrante do partido deve responder das suas diante do conjunto do mesmo; estou obrigado a seguir a via formalmente prescrita para expressar minha "desconfiança", para fazer triunfar as idéias e os desejos que emanam desta desconfiança. Nos temos elevado da "confiança" incontrolada, própria dos círculos, ao ponto de vista de um partido, que exige a observância de procedimentos controlados e formalmente determinados para expressar e comprovar a confiança"[48].

Os estatutos da organização revolucionária não são meras medidas excepcionais ou proteções. São a concretização dos princípios organizativos próprios das vanguardas políticas do proletariado. Produto desses princípios, são por sua vez uma arma de combate contra o oportunismo em matéria de organização e dos fundamentos nos quais vai construir e erguer-se a organização revolucionária. São a expressão da sua unidade, da sua centralização, da sua vida política e organizativa, como também do seu caráter de classe. São a regra e o espírito que haverá de guiar cotidianamente aos militantes na sua relação com a organização, na sua relação com os demais militantes, nas tarefas que lhes são confiadas, nos seus direitos e deveres

Para nós como para Lênin, a questão organizativa é uma questão totalmente política e fundamental. A adoção de estatutos e o combate permanente pelo seu respeito e aplicação estão no centro mesmo da compreensão e da luta pela construção da organização política. Também os estatutos são uma questão teórica e totalmente política. Será um descobrimento da nossa organização? Uma mudança de posição? "O caráter unitário da CCI se expressa nos estatutos, que são válidos para toda organização (...). Esses estatutos são uma aplicação concreta da concepção da CCI em matéria de organização. Como tais, são parte integrante da plataforma da CCI" (Estatutos da CCI).

Contra o espírito de circulo e o individualismo que levam à personalização das questões políticas

Mais ainda de que a questão de determinar quem é membro do partido, a contribuição do combate de Lênin durante o Segundo congresso do POSDR e depois, considera a questao do comportamento militante que, também, é uma questão política. Diante da atitude dos Mencheviques, personalizando as questões políticas, diante dos ataques que tomam Lênin como alvo, e da subjetividade que invadiu Martov e seus amigos, ele responde: "Quando considero o comportamento dos amigos de Martov depois do congresso, (...) só posso dizer que se trata de uma tentativa insensata, indigna de membros do partido, de despedaçar o partido. E porque? Unicamente por conta de um descontento em relação à composição dos órgãos centrais, pois objetivamente é unicamente esta questão que nos dividiu, as apreciações subjetivas (como ofenda, insulta, expulsão, posto de parte, desonra, etc.) sendo so a fruta de um amor-próprio ferido e de uma imaginação doente. Esta imaginação doente e este amor-próprio ferido levam às bisbilhotices mais vergonhosas: sem se ter informado da atividade dos novos centros, nem os ter visto estar a trabalhar, se espalha rumores sobre sua "carência", sobre o tirania de Ivan Ivanovitch, sobre o pulso de d'Ivan Nikiforovitch, etc. (...) A social-democracia russa tem ainda uma última e difícil etapa para ultrapassar, do espírito de círculo ao de partido; da mentalidade pequeno-burguesa à consciência de seu dever revolucionário; das bisbilhotices e da pressão dos círculos - considerados como meios de ação - à disciplina" (relatório do IIo congresso do POSDR (Obras, Tomo 7). Para uma leitura mais detalhada da concepção da CCI considerando o comportamento militante, aconselhamos nossos leitores os artigos seguintes não traduzidos ainda em português : "A questão do funcionamento da organização na CCI" (Revista internacional n° 109), "A confiança e a solidariedade na luta do proletariado" (Revista internacional n° 111 e 112), "Marxismo e ética" (Revista internacional n° 127 e 128)

O Partido Comunista se construirá baseando-se nas lições políticas e organizativas aportadas por Lênin

Na luta do proletariado, este combate de Lênin representa um dos momentos essenciais para a construção do seu órgão político, que finalmente se concretizou com a fundação da Internacional Comunista em março de 1919. Antes de Lênin, a Primeira Internacional (AIT) tinha representado um momento igualmente importante. Depois de Lênin, o combate da Fração Italiana da Esquerda Comunista por sua própria sobrevivência foi outro momento também importante.

Entre essas diversas experiências há uma "linha vermelha", uma continuidade de princípios, teórica e política, em matéria de organização. É só nessa continuidade e unidade histórica que os revolucionários de hoje podem integrar sua ação .

Já temos citado amplamente nossos próprios textos, que lembram claramente e sem nenhuma ambigüidade nossa filiação e patrimônio nas questões de organização. Nosso "método" de re-apropriação das lições políticas e teóricas do movimento operário não é nada um invento da CCI.

O temos herdado da Fração Italiana da esquerda comunista e da sua publicação Bilan nos anos 1930, assim como da Esquerda Comunista da França e da sua revista Internationalisme nos anos 1940. É o método de que sempre nos temos reivindicado e, sem ele, a CCI não existiria na sua forma atual.

"A expressão mais acabada da solução do problema do papel que tem de desempenhar o elemento consciente, o partido, para a vitória do socialismo, foi realizado pelo grupo de marxistas russos da antiga Iskra, e mais particularmente por Lênin que deu uma definição de principio já em 1902 ao problema do partido na sua destacada obra Que fazer? A noção que tinha Lênin do partido ia servir de coluna vertebral do partido bolchevique, e será um dos aportes maiores deste na luta internacional do proletariado"[49].

Efetivamente e sem a menor dúvida, o Partido comunista mundial de amanhã não poderá constituir-se fora destas aquisições teóricas de principio , políticas e organizativas legadas por Lênin. A recuperação real, e não declamatória, dessas aquisições, assim como sua aplicação rigorosa e sistemática às condições de hoje, constituem uma tarefa entre as mais importantes dos pequenos grupos comunistas de hoje se realmente querem contribuir no processo de formação do dito Partido.



[1] Organizações comunistas e consciência de classe (folheto da CCI em Francês); 1979

[2] Kautsky, citado por Lênin em Que fazer?

[3] Trotsky, Nossas tarefas políticas, cap. "Em nome do marxismo!" Belfond, 1970, Paris

[4] P. Axelrod, Sobre a origem e a significação de nossas divergências quanto à organização, carta a Kautsky, idem

[5] Plekhanov, A classe operária e os intelectuais social-democratas, 1904, idem.

[6] Rosa Luxemburgo: Greve de massa, partido e sindicatos (1906) e Trotski, 1905 (1908-1909).

[7] Ver a primeira parte de este artículo

[8] Lênin, Relatório sobre 1905 (janeiro de 1917)

[9] Lênin, Que fazer?

[10] Karl Marx é muito mais claro sobre este tema em algumas de suas obras. Porem estas são em grande parte desconhecidas entre os revolucionários de então, pois não disponíveis ou não publicadas. Obra fundamental sobre o tema da consciência, A Ideologia alemã, por exemplo, só foi publicada pela primeira vez em...1932!

[11] Lênin, Que fazer?

[12] Idem

[13] Organizações comunistas e consciência de classe (folheto da CCI em Francês); 1979

[14] Este artículo não é da CCI, mas foi escrito pelos camaradas do Grupo proletário internacionalista (GPI) que logo constituíram a secção da CCI no México.

[15] "Consciência de classe e Partido", Revista internacional nº 57, 1989

[16] Lênin, Teses de Abril, 1917.

[17] Lênin, Que fazer?

[18] Idem

[19] Não é necessário aqui lembrar o baixo nível "escolar" e o analfabetismo dominante entre os operários russos. Isso não impediu Lênin considerar que podiam e deviam integrar-se na atividade do partido de igual modo que os "intelectuais".

[20] Ver a primeira parte deste artigo

[21] "Também levará a efeito uma ruptura com a visão social democrata de partido de massas. Para Lênin, as condições novas da luta faziam necessário um partido minoritário de vanguarda que deveria trabalhar pela transformação das lutas econômicas em lutas políticas"(Organizações comunistas e consciência de classe; CCI, 1979)

[22] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás, parte 1 "artículo primeiro dos estatutos".

[23] "Esta militante, que havia passado pelas "escolas" do partido social-democrata, expressa um apego incondicional ao caráter de massas do movimento revolucionário" (Organizações comunistas e consciência de classe; CCI, 1979).

[24] Rosa Luxemburgo, Questões de organização na social-democracia russa

[25] O leitor terá notado que essa visão deixa a porta totalmente aberta à postura substitucionista do partido - o partido que substitui a ação da classe operária....até exercer o poder de Estado em nome dela ou a realizar ações "golpistas" como fizeram os stalinistas nos anos 1920.

[26] Martov, citado por Lênin em Um passo adiante, dois passos atrás, parte I "artigo primeiro dos estatutos"

[27] Um passo adiante, dois passos atrás, Parte I "artigo primeiro dos estatutos"

[28] Relatório do IIº congresso do POSDR, edições Era, 1977

[29] K.Marx, Manifesto do partido comunista

[30] Teses sobre a táctica do Partido comunista de Itália, Teses de Roma, 1922

[31] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás.

[32] O bolchevique Pavlóvich, citado por Lênin em Um passo adiante, dois passos atrás.

[33] Ver em nossas publicações territoriais os artigos a propósito da suspensão da publicação de Daad en Gedachte, revista do grupo conselhista holandês do mesmo nome.

[34] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás.

[35] Rosa Luxemburgo, Questões de Organização da social-democracia russa.

[36] Lênin, Resposta a Rosa Luxemburgo, publicada em Nossas tarefas políticas de Troski (Edition Belfond, Paris)

[37] Organizações comunistas e consciência de classe.

[38] É outro exemplo do método polêmico de Lênin, o qual recolhe as acusações dos seus adversários para voltar-se contra eles (ver a primeira parte deste artigo).

[39] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás, "A nova Iskra".

[40] idem

[41] Trotsky, Relatório da delegação siberiana

[42] O delegado do Partido Comunista Alemão, Eberlein, ao que em princípio não ia ser senão uma conferência internacional em março de 1919, tinha o mandato para se opor a constituição da IIIa. Internacional, a Internacional Comunista (IC). Estava claro para todos os participantes, em particular Lênin, Trotsky, Zinoviev e os dirigentes bolcheviques que a fundação da IC não poderia levar a efeito sem a adesão do PC alemão. Se Eberlein ficasse "preso" ao seu mandato imperativo, surdo aos debates e a dinâmica mesma da conferencia, a internacional,como Partido mundial do proletariado,não teria sido fundada.

[43]  Um passo adiante, dois passos atrás. "Começa o congresso....".

[44] Trotsky, Relatório da delegação siberiana

[45] Rosa Luxemburgo, Questões de organização da social-democracia russa

[46] Idem

[47] Organizações comunistas e consciência de classe

[48] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás; . "O oportunismo em matéria de organização"

[49] Internationalisme, nº 4, 1945