Publicamos um material relativo a uma discussão entre a Oposição Operária e a CCI sobre o Materialismo histórico e, mais particularmente, sobre a caracterização da fase de decadência do capitalismo[1] [3].
Depois de uma primeira discussão sobre a decadência do capitalismo, que teve lugar entre nossas duas organizações no mês de fevereiro de 2006, foi decidido dar continuidade no seio de um âmbito teórico mais amplo, o da teoria do materialismo histórico. É com este objetivo que foram produzidos dois textos:
A discussão continuou, utilizando este material para a reflexão. A partir desta, pode-se concluir que existe uma convergência importante entre nossas organizações considerando a compreensão da teoria do materialismo histórico[3] [5]. O essencial da discussão se dedicou à caracterização da entrada do capitalismo na sua fase de decadência. Os pontos de vista que se expressaram de maneira contraditória correspondem, globalmente, respectivamente aos pontos de vista defendidos nas contribuições citadas acima. Houve uma discordância considerando o método para caracterizar a entrada do capitalismo em decadência, da qual resultam duas visões diferentes do momento em que se iniciou esta fase: começo do século XX para a CCI, década de 70 para companheiros da OPOP.
Após esta discussão, a CCI fez uma outra contribuição ("A Primeira Guerra mundial e a onda revolucionária mundial de 1917-23 abrem a época das guerras e das revoluções") em resposta a alguns argumentos dos "comentários sobre O materialismo histórico de Franz Mehring". Os argumentos desta contribuição correspondem, no essencial, aproximativamente aos argumentos orais desenvolvidos pela CCI na última discussão.
Concluímos a presente introdução com um chamamento aos leitores a participarem através do envio de apreciações, perguntas, contribuições escritas. Todas serão respondidas e eventualmente publicadas.
[1] [6] Esta discussão não se limita a este material. Infelizmente não temos as condições de produzir um relatório dos debates que tiveram lugar em diferentes cidades e momentos.
[2] [7] Franz Mehring (1846-1919): Um dos dirigentes e teóricos da ala esquerda da social-democracia
[3] [8] Falamos somente de uma convergência, não por conta de qualquer discordância que teria ocorrido, nem que houvesse qualquer dúvida a propósito disso. É só que não houve bastante tempo de discussão para poder falar de um acordo total.
No início da humanidade e durante centenas de milhares de anos, o comunismo primitivo constituiu o modo de organização da sociedade humana. Isso significa que, na maior parte de sua existência, os seres humanos viveram numa sociedade sem classes e sem Estado.
Depois apareceram outras sociedades, com outros modos de organização baseados na exploração do homem pelo homem, que se sucederam até o capitalismo atual.
A sucessão destas sociedades deu lugar a evoluções essenciais e evidentes como o crescimento dos meios da produção e aumento da produtividade do trabalho.
Para ilustrar este último ponto, é só comparar, por exemplo, o trabalho de um escravo de Roma, que pode sustentar um pouco mais de um homem, com o trabalho de um operário moderno, que pode sustentar mais de 70 homens. Isso significa que, pela primeira vez na sua existência, a humanidade está em situação de poder escapar do reino da penúria que afeta a grande maioria dos homens.
Questões legítimas nos são imediatamente colocadas: qual foi o motor desta evolução? Qual é seu termo? Será que se trata, como pretende o evolucionismo burguês trivial, de uma ascensão puramente linear, vindo da sombra e indo para a luz, ascensão que culmina no esplendor brilhante da civilização burguesa? Não será a nossa conclusão. Apoiar-nos-emos sobre o método marxista, o materialismo histórico, para explicar a lógica interna desta evolução. Para nós, as riquezas cujo sistema capitalista permitiu a eclosão, graças evidentemente a uma exploração feroz da classe operária, criaram as condições materiais de sua superação por uma nova sociedade. Uma sociedade que não seja mais orientada pelo lucro ou pela satisfação das necessidades de uma minoria, mas orientada para a satisfação da totalidade dos seres humanos.
Na Ideologia alemã, Marx e Engels desenvolveram uma visão coerente das bases práticas e objetivas do movimento da História, completada depois em O Capital e no Prefácio à introdução à contribuição para a crítica da economia política.
Esta visão pode ser resumida da maneira seguinte:
Mas também, segundo esta visão, e aparentemente de maneira contraditória com que acabamos de dizer, "a história de todas as sociedades até agora, é a história da luta de classes". Isso significa, na realidade, que são os homens que fazem conscientemente sua própria história, mas dentro de um âmbito social dado.
A necessidade material de uma mudança social se desenvolve com as forças produtivas, como um processo objetivo independente da vontade dos homens. Mas a própria mudança é a obra dos homens e mais precisamente de uma classe social.
Enfim, uma última idéia essencial considerando a dinâmica de toda sociedade: "Em certa fase de seu desenvolvimento as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes"
Assim que se manifesta este conflito entre as forças materiais da sociedade e as relações de produção, acontece uma mudança na própria dinâmica da sociedade. As relações de produção que, até então, haviam constituído um contexto favorável para o desenvolvimento das forças produtivas, passam a ser obstáculos ao desenvolvimento destas forças. A partir deste momento, como Marx dizia: "Abre-se, então, uma era de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura."
Estas duas fases da vida da sociedade constituem o que o movimento operário chamará respectivamente, de um lado, a fase de ascendência, ou progressista e, por outro lado, a fase das revoluções sociais, de declínio ou de decadência. Assim, esta última é a fase na qual a revolução, permitindo a substituição das relações antigas de produção por novas relações, passa a ser uma possibilidade material real.
Marx distingue a base econômica da sociedade e sua superestrutura. "O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política".
Todas as manifestações da decadência de uma sociedade podem ser resumidas num estado de crise generalizada atingindo o conjunto da estrutura econômica e da superestrutura:
Assim, o método do materialismo histórico permite colocar em evidência os fatores que explicam a transição entre os diferentes modos de produção comunista primitivo, asiático, escravista, feudal e capitalista. Fazemos agora um salto na História até o capitalismo.
Aqui não é o lugar de desenvolver as características do modo de produção capitalista. Entretanto, tem que assinalar a grande mudança que se produziu: o trabalhador explorado passa a ser livre. Ele é liberto de toda relação de sujeição pessoal com seu explorador, como existia entre o escravo e seu dono o entre o servo e seu senhor. É a condição para que sua força de trabalho se tornasse a ser uma mercadoria que ele tem a liberdade de vender. É o regime do trabalho assalariado.
Quanto às condições de exploração no capitalismo, elas não são mais humanas de que no escravismo ou no feudalismo. Como diz Rosa Luxemburgo na Introdução à economia política, " Não se deixava um escravo morrer de inanição, assim como ninguém deixa morrer seu cavalo ou seu gado". Por enquanto, do ponto de vista dos mecanismos econômicos, nada impede de deixar morrer de fome o trabalhador privado de emprego. Se alguma coisa pode efetivamente se opor a isso, é o medo da luta de classes por parte da classe dominante.
Agora, vamos tratar da decadência do capitalismo à luz do que ensina a decadência das sociedades que precederam.
Um sistema em decadência é um sistema que se choca simultaneamente com dois limites:
O limite exterior do capitalismo é o produto de sua própria história, de sua conquista do planeta. Com efeito, seu desenvolvimento é ligado à história das suas trocas comerciais com as economias pré-capitalistas que ele integra no seio das relações de produção capitalistas.
A necessidade do capitalismo global, de desenvolver relações comerciais com o mundo pré-capitalista se repercute sobre cada potência capitalista, com mais ou menos força. Ela leva cada uma a desejar dispor de seu próprio império colonial para ter acesso a estes mercados e às fontes de matérias primas, sem depender, para isso, da boa vontade das outras potências. A Primeira Guerra Mundial resulta diretamente do fato que o acesso de um país a novas colônias só pode doravante ser efetuado em detrimento de seus rivais.
A catástrofe social constituída pela Primeira Guerra Mundial tem conseqüências sobre todos os aspetos da vida social das principais potências industriais diretamente implicadas. Estas conseqüências se expressam sob a forma de fenômenos que existiram na decadência das sociedades que examinamos:
A Primeira Guerra Mundial deu lugar a um fenômeno desconhecido na história do capitalismo, o surgimento de uma onda revolucionaria Mundial que, como nas fases de decadência precedentes, exprimia:
No momento da Primeira Guerra Mundial, o "limite interior" presente nas decadências passadas, a "queda da produtividade do trabalho" não se manifestou em si. Ao contrario do escravismo ou do feudalismo, a produtividade nunca deixará de crescer no seio da decadência do capitalismo. Entretanto, desde a Primeira Guerra Mundial, os aumentos da produtividade não puderam, na sua totalidade, alimentar a acumulação capitalista; isso porque tiveram que alimentar a carga exorbitante das despesas improdutivas, em particular as despesas ligadas ao desenvolvimento do militarismo.
A partir dos anos 1920, se manifestaram de maneira crônica outras expressões deste "limite interior":
Da mesma maneira que a decadência dos modos de produção anteriores, a decadência do capitalismo não significou a parada do desenvolvimento das forças produtivas, mas uma freada deste desenvolvimento. Da mesma forma, ela não constituiu um fenômeno contínuo de descida no abismo. Com efeito, a classe burguesa foi capaz de impulsionar, por meio de medidas voluntaristas de capitalismo de Estado, o período dita dos "30 anos de ouro", uma exceção no século e no período de decadência.
Entretanto, o afundamento na decadência do capitalismo é certamente o mais brutal que nunca existiu, a tal ponto que é sem equivoco nenhum que o século 20 mereceu seu título do século mais bárbaro que a humanidade nunca conheceu.
A história das sociedades humanas, desde o comunismo primitivo até o capitalismo, constitui certamente um assunto dos mais apaixonantes na medida em que a sociedade futura se vier a existir, será um produto e também a ultrapassagem de todas as fases históricas anteriores e herdeira de toda a sua evolução, desde os primórdios, sobre todos os planos da vida social.
Ao contrário da idéia partilhada e propagada por todos os defensores do capitalismo, este sistema não é eterno, não constitui a forma inultrapassável da organização econômica da sociedade. Tal como os modos de produção que o precederam, o capitalismo é somente uma etapa transitória dentro da sucessão dos modos de produção da história humana e, como seus predecessores, depois de uma fase de progresso, ele é condenado a confrontar-se com contradições insuperáveis, tornando necessária sua ultrapassagem.
Para o homem novo existir um dia, o da sociedade comunista libertada do reino da necessidade, será necessário que a classe revolucionária, o proletariado, seja capaz de derrubar o capitalismo. Isso só pode ser o produto de um ato consciente de vontade e de consciência da parte desta classe revolucionária, mas tem como precondição, que o capitalismo tenha deixado de constituir um sistema progressista para o desenvolvimento das forças produtivas. Será que estamos hoje numa fase decadente da vida do capitalismo? E desde quando? O estudo das fases de ascendência e de decadência que precederam o capitalismo nos ajuda evidentemente a responder esta questão. O assunto desta apresentação que será concluída pela análise da fase atual da via do capitalismo, é justamente de expor no âmbito marxista de análise a sucessão dos modos de produção.
A – Os fundamentos teóricos do materialismo histórico
1) Como Marx o demonstrou, o movimento da História não pode ser entendido a partir das idéias que os homens têm de si mesmos, mas pelo estudo do que serve de base a estas idéias, os processos e as relações sociais pelos quais os homens produzem e reproduzem sua vida material, quer dizer "as relações de produção" ou "a estrutura econômica da sociedade":
Assim, a consciência dos homens, da mesma maneira que as formas políticas, jurídicas, religiosas são o produto das relações sociais de produção:
2) As formações econômicas passam necessariamente por períodos de ascendência e por períodos de declínio ou de decadência:
"Em certa fase de seu desenvolvimento as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma era de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura" (Prefácio à introdução à contribuição para a crítica da economia política).
3) Entretanto, dizer de acordo com marxismo que "não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas ao contrário que é seu ser social que determina sua consciência", isso não significa por essa razão que a consciência dos homens seja só o reflexo passivo das relações de produção. Ela é ao contrário uma força material de transformação da sociedade, a História sendo a história da luta das classes. Assim, são os homens que fazem sua própria História, mas dentro de um âmbito social dado. A necessidade material de uma mudança social se desenvolve com as forças produtivas, como um processo objetivo independente da vontade dos homens. Mas a própria mudança é obra dos homens e mais precisamente de uma classe social.
Assim, com Marx, deve-se distinguir dois "níveis" ligados, mais distintos:
4) Em particular, as manifestações diferentes da decadência de uma sociedade podem ser resumidas num estado de crise generalizada atingindo o conjunto dos domínios e das estruturas da vida social:
5) No famoso prefácio citado acima, Max distingue três principais tipos de sociedades que antecederam o capitalismo: "Esboçados, em largos traços, os modos de produção asiáticos, antigos, feudais e burgueses modernos, podem ser designados como outras tantas épocas progressivas da formação social econômica". Entretanto, em textos ulteriores, Marx e Engels acrescentaram a esta lista o comunismo primitivo que é estudado notadamente em A origem da família, da propriedade privada e do estado (livro publicado por Engels pouco depois da morte de Marx que, também, tinha participado na sua realização).
Geralmente, os modos de produção anteriormente descritos sucederam nesta ordem, mas não faltam exemplos nos quais uma destas etapas foi "saltada" (por exemplo, a passagem direta do comunismo primitivo à escravidão, até mesmo ao feudalismo).
Mais adiante examinaremos os diferentes modos de produção, sua ascendência e a sua decadência, aplicar-nos-emos em distinguir entre "a mudança material das condições de produção econômica" e a superestrutura, sem com isso perder de vista a ligação que os une.
6) Antes de examinarmos os diferentes modos de produção[1] [9], queríamos ressaltar alguns erros "clássicos" feitos na aplicação do método do materialismo histórico. Trata-se de visões reducionistas, esquemáticas manifestadas notadamente:
B – A mudança material das formas econômicas
A)
Instauração
A forma
de organização social no começo da humanidade era o comunismo primitivo. Apesar
de importantes diferenças locais relacionadas com elementos geográficos,
climáticos ou históricos, os traços essenciais das sociedades primitivas
consistiram na propriedade comum dos meios de produção (essencialmente a terra)
e a exploração coletiva dos recursos e territórios de caça, cujos produtos eram
repartidos de maneira eqüitativa entre a população. A idéia da propriedade
privada inerente à natureza humana é só um mito, popularizado amplamente pelos
economistas burgueses desde o século XVIII, com intento de apresentar o sistema
capitalista como se fosse o mais "natural", aquele que corresponderia
melhor aos "instintos profundos do homem".
Estas relações não eram a expressão de uma ideologia de fraternidade, nem a obra de um deus com vontade de igualdade entre suas criaturas. É a impotência dos homens diante de uma natureza hostil, quando o nível das técnicas era baixo, que resultou na necessidade de coesão e obrigou os homens a viver em comunidades sólidas utilizando coletivamente os poucos meios de produção. A ideologia coletivista que existia era em primeiro lugar uma conseqüência destas relações e não o contrário.
B) Decadência e ultrapassagem
Hoje, apesar de termos acesso a uma maior
quantidade de material sobre o comunismo primitivo do que na época de Marx, o
que ele dizia sobre isso tem ainda uma certa validade :
Não são fatores ideológicos que estão na origem do desaparecimento do comunismo primitivo, e sim as condições materiais. Quando examinamos a evolução pela qual estas sociedades se transformaram em sociedades de exploração, com as divisões entre classes e depois o aparecimento da propriedade privada, pode-se constatar que ela é o resultado do progresso das técnicas de produção.
Deixemos de lado o caso desta "evolução" resultado da obra "civilizadora" dos massacres coloniais europeus a partir do século XV.
Admite-se que, segundo as regiões do globo e as condições históricas globais, as sociedades de comunismo primitivo desagregaram-se para dar lugar seja ao modo de produção asiático, seja ao modo escravista, seja ao feudalismo.
Quando uma comunidade esgotava a fertilidade de suas terras, quando sua caça estava mudando de lugar ou quando sua população se tornava importante demais em relação a seus meios em geral, ela se encontrava na obrigação de estender sua dominação ou de estabelecê-la sobre novos territórios. Nas regiões com uma densidade de população relativamente alta – bacia mediterrânea por exemplo – este crescimento só podia acontecer em detrimento de outras comunidades.
No começo, as guerras resultantes desta situação só podiam se exprimir sob a forma de matanças, às vezes dando lugar à antropofagia, para tomar posse das terras do povo vencido. Quando o nível da produtividade só permitia a cada homem produzir o mínimo necessário para sua sobrevivência individual, o vencedor não tinha nenhum interesse em incorporar "novas bocas" no seio da comunidade esfomeada. Era necessário que a produtividade aumentasse, para o povo vencedor ter a possibilidade de se aproveitar do trabalho forçado e gratuito fornecido pelos homens vencidos. Isso constitui a base das primeiras sociedades de exploração escravistas [4] [12].
A)
Instauração
Este tipo de modo de produção foi identificado
por Marx na Ásia, mas não estava limitado a esta região geográfica.
Historicamente, correspondeu a sociedades megalíticas e a egípcia, etc. indo
até 4000 anos AC, como a culminação de um processo lento da divisão das
sociedades em classes.
Este sistema econômico ainda mal conhecido é geralmente o resultado da necessidade de algumas comunidades no enfrentamento dos problemas colocados pela natureza em certas regiões (aridez do solo, inundações, monção, etc.). Em tais regiões, as comunidades tiveram a obrigação premente de estudar os ciclos da natureza, de empreender obras de controle das águas, etc., para assegurar sua sobrevivência. A complexidade das obras, os conhecimentos técnicos que tiveram que mobilizar, assim como a necessidade de uma autoridade para coordenar o trabalho engendraram uma camada de especialistas (os sacerdotes, mais predispostos ao estudo e à observação da natureza muitas vezes estiveram na formação destas castas). Encarregados de uma tarefa específica a serviço da comunidade, estes especialistas (que aparecem como os criadores de riquezas novas) tendem a se constituir em casta dominante. Eles se apropriam progressivamente do excedente social em detrimento da coletividade. Desta maneira, o desenvolvimento das forças produtivas transformou estes servidores da sociedade em exploradores. A diferenciação social que se desenvolveu levou à criação de um poder político constituído em Estado numa sociedade real ou imperial. O modo de produção asiático, entretanto, deixa subsistir relações de tipo comunitário no seio das células de produção próprias. Mas uma primeira ultrapassagem do comunismo primitivo é realizada. O aparelho de Estado central, que agrupa o conjunto da classe dominante, apropria-se do sobre-trabalho das comunas aldeãs que ainda viviam da terra, essencialmente segundo as tradições imemoriais da vida tribal. A escravatura existia neste modo de produção, mesmo num nível considerável através da existência de serventes, trabalhadores de grandes obras públicas, etc., mas só raramente se encontrava no trabalho agrícola e não era a forma dominante de produção.
Marx deu uma definição muito clara sobre isto n’O Capital:
B) Decadência e ultrapassagem
A necessidade de aplicar técnicas de produção
provocou a passagem para novas relações de produção e o abandono das velhas. A
introdução de novas técnicas acabou por sua vez com os restos de relações
comunistas no seio destas sociedades, notadamente no seio das comunas aldeãs
que ainda viviam, essencialmente, segundo as tradições imemoriais da vida
tribal. Assim, por exemplo, a fertilização da terra e a necessidade de criar
uma relação mais estreita entre o trabalhador e a terra, resultaram na maioria
dos casos no abandono dos costumes de redistribuição sistemática das terras por
acaso ou em função das necessidades das famílias. A necessidade de assumir uma
maior continuidade no cuidado da terra, às vezes os excessos da pressão fiscal provocaram
a passagem da propriedade comum à propriedade privada. E com esta, a
desigualdade lentamente se desenvolve obrigando uma parte da sociedade a
trabalhar sobre as terras dos mais ricos em contrapartida de uma porção do
resultado da produção. A sociedade se hierarquiza inteiramente tomando a forma
de sociedades de servidão ou feudalismo.
Todas estas sociedades desapareceram entre 1000 e 500 AC. A sua decadência manifestou-se nas recorrentes revoltas camponesas, no desenvolvimento gigantesco dos gastos improdutivos do Estado e nas guerras incessantes entre estados tentando através da pilhagem encontrar uma solução para os bloqueios internos da produção. Os conflitos políticos intermináveis e as rivalidades intestinas no seio da casta dominante levaram os recursos da sociedade à exaustão, e os limites geográficos dos impérios mostraram o máximo nível de desenvolvimento compatível com as relações de produção a que podiam chegar.
A) Instauração
O escravismo foi o resultado do desenvolvimento
das forças produtivas em regiões onde um povo tinha conquistado um outro.
Nestas circunstâncias, o escravismo permite a apropriação por um grupo social
do trabalho excedente realizado pelo resto da sociedade.
Em Roma, a nova força constituída pelos proprietários rurais, que se apropria da terra segundo um modo de propriedade privada, impõe-se pelo combate contra a classe dos príncipes da sociedade régia etrusca, que ainda sobrevivia graças ao tributo extorquido de um conjunto de coletividades produzindo ainda segundo relações comunitárias herdadas das sociedades pós-neolíticas.
Os donos de escravos, classe dominante ávida de lucro e de privilégios tornam-se os motores do desenvolvimento das forças produtivas. Entretanto, este desenvolvimento estreitamente ligado às guerras de conquista, manifesta-se em todos os lugares sob a forma do aumento do número dos escravos e da construção de obras facilitando a pilhagem dos países conquistados. A Grécia antiga e Roma se edificaram e se desenvolveram sobre estas bases.
A economia escravista romana é fundada sobre a pilhagem e a exploração dos povos conquistados que fornecem a Roma o essencial de seus meios de subsistência (comida, tributos e escravos). Acontece freqüentemente que bens "importados" sejam produzidos sob modos de produção diferentes como o modo de produção asiático. Mas a metrópole continua existindo no escravismo que considera essencialmente as explorações agrícolas extensivas (oliveiras, criação de gado) e grandes obras.
Desta forma, o poder político muitas vezes se confunde com o poder da casta militar triunfante. Da mesma maneira, a prosperidade econômica se confunde com as capacidades belicosas da metrópole.
O grande desenvolvimento da civilização latina corresponde ao período das grandes vitórias e conquistas de Roma. Seu apogeu é o de Roma dominando o mundo mediterrâneo que ela saqueia.
B) Decadência
O começo da decadência romana é marcado pelo
fim da expansão (no século II DC) e pelas primeiras derrotas do império (no
século III). Em 251, o imperador Decius é vencido e executado pelos
Godos; em 260, o imperador
Valeriano é preso e depois humilhado pelo rei dos Persas. Durante o século III,
revoltas estouraram em várias partes do império, pela primeira vez de maneira
simultânea.
A dificuldade de manter a dominação sobre um império tão gigantesco, com os meios da época, explica em parte o fim da expansão de Roma. Mas é sobretudo a diferença entre a produtividade econômica débil da Roma escravista e das suas colônias (que várias vezes tiveram uma produtividade superior com modos de produção asiáticos) que tornava inevitável a revolta vitoriosa destas últimas.
As relações de produção escravistas só são compatíveis com uma produtividade baixa do trabalho. Nas condições da época, um aumento desta última necessitava um aperfeiçoamento do trabalho da terra, a utilização da charrua,[5] [13] o desenvolvimento da fertilização da terra e da irrigação sistemática, quer dizer a criação de uma ligação íntima entre o trabalhador e a terra, permitindo a utilização destas técnicas novas de produção. Um tal progresso necessitava a renúncia ao trabalho escravo, em que o trabalhador é sustentado por seu dono, qualquer que seja sua produtividade, e cuja principal motivação para produzir é o medo da punição.
O escravismo era rentável só como meio de explorar os povos conquistados. Quando estas conquistas param ou se reduzem, tem como resultado o esgotamento da fonte do espólio, do tributo e dos escravos, provocando além disso o aumento do valor dos escravos, então o escravismo se torna um sistema não rentável , um obstáculo ao desenvolvimento da produção.
As crescentes necessidades do império, a pressão demográfica, a gestão de um território cada vez maior impuseram a Roma que se estendesse além dos limites permitidos por suas relações de produção. A apropriação privada da terra e a pequena produtividade do escravismo obrigaram Roma a pilhar trigo para se alimentar e a importar escravos para trabalhar a terra. Chegou a um estágio de sua expansão em que Roma não tinha mais a capacidade de se alimentar : as conquistas eram cada vez mais distantes e difíceis de manter, o escravo era mais e mais caro. Na ausência de inovações tecnológicas, a agricultura sofre a lei do rendimento decrescente, a fome se desenvolve, a natalidade baixa, a população decresce, é a decadência romana.
Quando analisaram a evolução do modo de produção escravista, Marx e Engels chamaram a atenção, n’ A Ideologia Alemã (1845-46) para as características gerais da decadência neste sistema:
C) Ultrapassagem
Ultrapassar a ínfima produtividade do
escravismo necessitava de outras relações de produção mais elevadas . Mas isso
implicava necessariamente uma revolução social, a perda do poder da antiga
classe dominante vinculada a estas relações de produção.
A necessidade da passagem para um novo tipo de relações de produção provocou na metrópole o aparecimento de explorações agrícolas de tipo feudal, nas quais grandes donos cediam quinhões de terra a famílias forras ou livres, em contrapartida de uma parte de sua produção. Mas a superação do escravismo tem também como conseqüência a negação dos privilégios da classe dominante. A "colisão" entre o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade e as relações de produção existentes precipita Roma na sua decadência. O desenvolvimento da produção afrouxa ou para:
D) O caso do escravismo como modo de
produção não dominante
O modo de produção das sociedades escravistas
que acabamos de estudar se apóia de maneira dominante sobre o escravismo. O
escravismo existiu em outras sociedades nas quais não constituiu, entretanto, o
modo de produção dominante.
Antes a Grécia antiga :
Assim, o período micênico (século XV e XIII antes da nossa era) deixou testemunhos da existência de escravos :
Do mesmo modo, apesar de ter sido suplantado por um modo de produção mais produtivo, o escravismo continuou existindo na Idade Média:
O desenvolvimento do capitalismo na Europa e a conquista dos continentes africanos e americanos impulsionaram a exploração por meio do escravismo que jogou um papel essencial na fase de acumulação primitiva do capital;
A importância dos escravos é tão grande que, para 1860, no sul dos Estados Unidos, existe "uma relação de um para três entre o número de escravos e a população total", a mesma proporção de que foi estimada em Atenas em 317 antes AC.
Os escravos, vítimas de seqüestros coletivos ou comprados na África, são empregados essencialmente, num primeiro tempo, na cultura da cana de açúcar:
a extração mineira, a cultura do café e, por fim e sobretudo, a cultura do algodão:
Marx sublinha, por ocasião de sua polêmica com Proudhon em Miséria da filosofia, a importância do escravismo no desenvolvimento do capitalismo:
Rosa Luxemburgo, na sua Introdução à economia política, dá conta do mesmo fenômeno:
Em O Capital, Marx descreve os traços característicos do escravismo e do feudalismo sob a dominação do modo de produção capitalista:
A barbárie da acumulação primitiva não é mais poupada ao escravo do que ao operário na Inglaterra do século XIX:
Como entender então o fim do escravismo no seio do mundo dominado pelo capitalismo. A explicação dada, considerando os Estados Unidos, vale para o conjunto do mundo doravante dominado pelo capitalismo industrial moderno:
A) Instauração
O
feudalismo ocidental nasceu na decadência de Roma. Depois de dois séculos de
decadência, na periferia do império começaram a se instaurar novas relações de
produção: a servidão. Os antigos senhores romanos libertaram seus escravos que
então puderam cultivar um pedaço de terra e possuírem seus meios de produção em
contrapartida de uma fração de sua colheita. Foi preciso entre 4 e 6 séculos
para que estas relações se desenvolvessem e se generalizassem.
Depois de uma transição de 7 séculos, do ano 300 até o ano 1000, durante a qual a nova classe feudal e as novas relações de produção da servidão se instalaram, desenvolve-se a fase ascendente, do ano 1000 até o século XIII:
Depois do escravismo ou do modo de produção asiático, o sistema feudal permitiu durante séculos, um novo desenvolvimento das forças produtivas da sociedade.
Nas relações autárquicas feudais, o trabalho da terra chegou a um aperfeiçoamento sem igual até este momento: melhoria da charrua, ferragem dos animais, melhoria da atrelagem (pela cabeça ou pelo pescoço em lugar da barriga), desenvolvimento da irrigação e da fertilização da terra, etc. Mas o maior fator do desenvolvimento foi o arroteamento:
Além disso, e particularmente, o aperfeiçoamento do trabalho agrícola foi acompanhado por um potente desenvolvimento do artesanato. Entretanto, este existe como simples apêndice da economia agrícola através da produção de instrumentos de trabalho e de alguns bens de consumo para a classe dominante (essencialmente roupa e instrumentos de guerra). O artesanato beneficiou de novas necessidades de ferramentas, assim como do crescimento dos recursos da classe dos nobres resultando do aumento da produtividade agrícola. Este último fator é ainda mais importante devido ao fato que a classe dos nobres, que não conhece a acumulação para a extensão da produção (um objetivo especifico da burguesia), gasta todo seu lucro para seu consumo pessoal.
Deve-se notar, entretanto que o feudalismo não surge somente do desmoronamento da sociedade escravista romana, mas também das características especificas da comunidade tribal "germânica"; e a tradição das terras comunitárias foi mantida pelas classes camponesas várias vezes como questão, motivando suas revoltas e insurreições ao longo da época medieval.
A característica principal de todas estas formas sociais é que elas foram dominadas pela economia natural: a produção de valor de uso tinha o ascendente sobre a produção de valor de troca. E é justamente o desenvolvimento desta última que constitui o fator dissolvente da comunidade antiga.
B) Decadência
Mas, a partir do século XIII, o feudalismo se
choca com o limite das possibilidades de extensão das superfícies cultiváveis .
A superfície das terras cultiváveis cresce com menor rapidez que a população e não permite compensar a queda da produtividade do trabalho:
A sociedade não consegue encontrar no seu seio como compensar a insuficiência crescente da produção agrícola em relação a suas necessidades:
No século XIV, o feudalismo entrou na sua fase de decadência até o século 18:
A partir daí, a sociedade só pode sair do impasse por um novo desenvolvimento da produtividade do trabalho. Ora, esta última chegou quase a atingir seus limites extremos no contexto da exploração quer seja familiar artesanal ou baseado sobre o modo de produção feudal. Só a passagem do trabalho individual ao trabalho associando vários homens pode, nestas condições, pela divisão do trabalho e a otimização de meios de produção mais complexos, permitir o crescimento necessário da produtividade.
O desenvolvimento do artesanato provocado pelo feudalismo criou, entretanto, nas cidades que estavam renascendo, os embriões necessários para tal forma de trabalho.
Mas o modo feudal de organização é a própria negação das condições que permitiriam um real desenvolvimento desta forma econômica:
A sociedade feudal desrespeita o trabalho, considerado como aviltante. O senhor feudal faz questão de mostrar sua potência, consumindo integralmente suas rendas. A economia feudal ignora e condena a acumulação com objetivo de acrescentar a produção, privando assim a manufatura das condições de seu desenvolvimento.
Assim, limitado na sua expansão pela dificuldade de continuar acrescentando superfícies cultiváveis e impedindo ao mesmo tempo o desenvolvimento de uma nova forma de economia mais produtiva, o feudalismo depois de ter permitido um novo desenvolvimento das forças produtivas, torna-se por si, a partir do século XIV, uma barreira contra este desenvolvimento.
O que não conseguia atingir mais por via da dominação econômica e política sobre os camponeses, a nobreza feudal buscava cada vez mais pela violência. Confrontada com as crescentes dificuldades em extrair suficiente trabalho excedente através das rendas feudais (corvéia, etc.), a nobreza embrenhou-se em conflitos internos insanáveis que não teve outras conseqüências senão arruiná-la a si mesma e à sociedade feudal como um todo. A Guerra dos Cem Anos, que destroçou a população européia, e as incessantes guerras monárquicas são os exemplos mais evidentes:
Como a decadência do escravismo, a decadência do feudalismo provoca fomes, o crescimento das forças produtivas tornando-se claramente inferior ao crescimento da população. As fomes são geralmente acompanhadas por epidemias cuja expansão é facilitada pela baixa nutrição da população. Assim, de 1315 até 1317, uma fome terrível devastou a Europa inteira e, trinta anos mais tarde, a peste preta de 1347 até 1350, foi responsável pela perda de quase um terço de sua população.
C) Ultrapassagem
A decadência feudal, iniciada no século XIV,
continuou até a mudança de seus últimos rastros jurídicos pelas revoluções
burguesas na Inglaterra e na França. Mas, desde o início do século XIV, um novo
tipo de relação de produção começou a se impor no conjunto da sociedade: o
capitalismo. Desenvolvendo-se na luta contra os obstáculos feudais, ele foi o
grande beneficiário do marasmo do século XIV por ter permitido a retomada da
vida econômica.
Em 1884 Engels produziu um complemento ao seu estudo As Guerras Camponesas na Alemanha, com o objetivo de definir um quadro histórico global do período em que esses eventos tinham ocorrido. O título desse complemento, desse anexo é bem explícito: “Sobre o declínio do feudalismo e a emergência dos Estados nacionais”. Aqui estão alguns extratos significativos:
No seio desta decadência, começa a partir do século XVI, a transição para o capitalismo.
A burguesia nasceu no seio da decadência feudal:
Dois séculos de decadência feudal foram necessários para que aparecessem as relações de produção capitalistas e mais três séculos ainda para que se desenvolvessem e se generalizassem.
C – Algumas
caracterizações econômicas essenciais da entrada
em decadência de um modo de
produção
O desenvolvimento das forças produtivas é o resultado de dois fatores diferentes:
Um sistema em plena expansão combina geralmente os dois fatores e um sistema em crise é um sistema que se choca com limites relativos a estes dois fatores.
Assim, pode-se falar de um "limite exterior" à expansão do sistema (incapacidade de estender a dominação do sistema) e de um "limite interior" (incapacidade de ultrapassar um certo nível de produtividade).
Consideremos o caso do Império Romano no momento do fim do escravismo. O "limite exterior" é constituído pela impossibilidade material de continuar a estender a superfície do Império. O "limite interior" resulta da impossibilidade de aumentar a produtividade dos escravos sem mudar profundamente o próprio sistema social, sem eliminar o estatuto do escravo.
Considerando o feudalismo, é o fim do arroteamento, a incapacidade de encontrar novas terras cultiváveis que joga o papel de "limite exterior", o "limite interior" sendo constituído pela impossibilidade de aumentar a produtividade do servo ou do artesão individual sem transformá-los em proletários, sem introduzir o trabalho associado pelo capital, quer dizer sem mudar a ordem econômica feudal.
Estes dois tipos de limites são ligados dialeticamente. Roma não pode estender indefinidamente seu Império por conta de seus limites técnicos (produtividade). No inverso, sendo maiores são as dificuldades para se estender, ela tem a obrigação de aumentar sua produtividade, levando-a, assim, até seus limites extremos. Da mesma maneira, considerando o regime feudal, quanto mais as terras são raras, mais é preciso aumentar a produtividade feudal até levá-la aos confins do capitalismo.
A cada estágio no desenvolvimento das forças produtivas, quer dizer a cada nível global da produtividade, corresponde um determinado tipo de relações de produção. Quando a produtividade se aproxima de seus últimos limites dentro do sistema, se este último não for mudado então a sociedade entra numa fase de decadência econômica. Produz-se a partir deste momento uma espécie de fenômeno "bola de neve": as primeiras conseqüências da crise transformando-se em fatores aceleradores desta última. Por exemplo, tanto no fim de Roma como no declínio do feudalismo, a queda das rendas das classes dominantes impõe-lhes reforçar a exploração da mão de obra até o esgotamento. Disso resulta, em ambos casos, um descontentamento crescente dos trabalhadores e, por conseqüência, uma nova aceleração da baixa da renda extorquida aos explorados. Da mesma maneira, a impossibilidade de incorporar novos trabalhadores na produção obriga a sociedade a sustentar uma camada de inativos que só podem constituir uma nova carga sobre o sobre-trabalho extorquido. Aconteceu uma desvalorização rápida das moedas tanto no Império Baixo[8] [16] Romano como no fim da Idade Média.
Paralelamente a estas conseqüências econômicas, a crise provoca uma série de convulsões sociais que vêm agravar a atividade econômica já debilitada. O desenvolvimento da produtividade se choca sistematicamente contra as estruturas sociais, impedindo cada vez mais qualquer novo desenvolvimento das forças produtivas. A superação da velha sociedade está colocada na ordem do dia, ilustrando assim estas palavras de Marx:
Na realidade, deve-se notar que nenhum sistema jamais chegou a desenvolver TODAS – no sentido próprio do termo – as forças produtivas que teoricamente pode conter. Por um lado, as conseqüências econômicas que expomos e a série de catástrofes sociais resultado das grandes dificuldades econômicas, constituem obstáculos impedindo o sistema de realmente chegar a seus limites. Antes do último instrumento de produção tiver aparecido, se a produção começa a decrescer, a existência do sistema perde sua justificação histórica e tudo na sociedade tende a agir no sentido de sua superação.
Sob a pressão das forças produtivas, as bases da nova sociedade começam a se desenvolver no seio da antiga. O feudalismo aparece no próprio seio do Império Romano escravista. As primeiras explorações feudais em Roma eram lideradas, muitas vezes, por ex-membros do Senado municipal que tinham fugido do Estado que os culpava por ter recolhido impostos. Da mesma maneira, no fim do feudalismo, homens membros da nobreza se tornam homens de negócio e, nas cidades – várias vezes em luta contra os senhores feudais – estão se desenvolvendo as primeiras manufaturas anunciando o capitalismo.
Estes primeiros "centros do sistema futuro" (grandes explorações romanas, cidades burguesas) nascem na maioria dos casos como o resultado da desagregação do sistema antigo. Encontra-se, naqueles, todo tipo de elementos tentando fugir do sistema. Produtos da decadência, eles constituem rapidamente, por sua vez, fatores aceleradores desta.
As condições materiais permitindo a passagem para um tipo novo de sociedade já existem no seio da sociedade antiga e a pressão que exercem já é forte o bastante para que comece a germinar um novo sistema, ilustrando assim que :
Não basta a produção se aproximar de seus últimos limites na sociedade antiga. É preciso ainda que os meios de ultrapassá-la já existam ou estejam em formação. Quando estas duas condições são historicamente realizadas, a adoção pela sociedade de novas relações de produção chega à ordem do dia. Mas a resistência da sociedade antiga (resistência das antigas classes privilegiadas, inércia dos costumes e hábitos ideológicos, religião, etc.) e a eventual diferença entre a realização destas duas condições, impedem que a passagem seja efetuada segundo uma progressão contínua.
A fase de decadência de um sistema é este período no qual o salto histórico que deve ser realizado ainda não foi feito; é a expressão de uma contradição crescente entre as forças produtivas e as relações de produção. É o mal-estar de um corpo que cresce numa roupa que está se tornando estreita demais.
Presa por suas contradições, a sociedade conhece uma série de fenômenos característicos traduzindo o crescente mal-estar. São estes fenômenos que vamos tentar de evidenciar agora.
D – A mudança na superestrutura
Quando a economia estremece, o conjunto da superestrutura entra em crise e se desagrega através manifestações típicas da decadência de um sistema. Tanto na decadência do escravismo como na do feudalismo, existem quatro fenômenos sintomáticos desta decadência que não têm nada a ver com coincidências históricas:
A) Os fundamentos da ideologia dominante no
seio da sociedade
A ideologia dominante no seio de uma sociedade dividida em classes é
obrigatoriamente a ideologia da classe dominante. A capacidade de enriquecer e
desenvolver estas formas ideológicas depende da capacidade real desta classe
fazer admitir sua dominação ao conjunto da sociedade. Uma sociedade só pode
aceitar uma ideologia quando o sistema correspondente pode satisfazer suas
necessidades.
No mais, quando um sistema econômico assegura a prosperidade e a segurança, os homens adotam as idéias que justificam sua existência como sistema dominante. Em condições de extensão econômica, as injustiças das relações econômicas podem aparecer como "maus necessários". A convicção que "cada um pode encontrar seus interesses" permite o desenvolvimento de idéias democráticas – em particular no seio da fração que se beneficia mais desta situação, a classe dominante. Assim, o regime da república corresponde ao período mais próspero da economia romana; no feudalismo em expansão, o rei é somente o soberano primeiro eleito entre seus pares.
O próprio direito é relativamente pouco desenvolvido pois o sistema corresponde suficientemente às necessidades objetivas das sociedades para que a maior parte dos problemas possa se resolver "pela própria força das coisas".
As ciências tendem a se enriquecer, as filosofias tendem para o racionalismo, ao otimismo e à confiança no homem.
A cara hedionda de toda sociedade de exploração tende espontaneamente a ser dissimulada atrás da cara de prosperidade e, por conta disso, as ideologias ficam menos presas na sua elaboração pela necessidade de mascarar a realidade e de justificar o que não pode ser. A própria arte reflete este otimismo e conhece geralmente seus momentos mais altos nos períodos econômicos mais prósperos. O que era chamado "a idade de ouro" da arte latina corresponde ao período de grande expansão do Império, por exemplo. Da mesma maneira, na prosperidade dos séculos XI e XII, o feudalismo conhece um imenso renascimento artístico e intelectual. As catedrais góticas constituem um testemunho disso.
B) O enfraquecimento da ideologia dominante
Mas, basta que as relações de produção se transformem numa canga para a vida da
sociedade e todas as formas ideológicas correspondentes ao passado ficam desenraizadas,
privadas de conteúdo, contraditas abertamente pela realidade. No Império Romano
decadente, a ideologia do poder político só pode tomar um caráter cada vez mais
sobrenatural e ditatorial. Da mesma maneira, a decadência feudal é acompanhada
pelo reforço do caráter divino da monarquia e das fontes dos privilégios da
nobreza, ameaçados pelas relações mercantis introduzidas pela burguesia.
Filosofias e religiões expressam um pessimismo crescente. A confiança no homem dá lugar à resignação diante da realidade e ao obscurantismo crescente: desenvolvimento do estoicismo (elevação do homem pela dor) e do neoplatonismo (incapacidade do homem a apreender por sua razão os problemas do mundo) no Império Baixo Romano. O fim da Idade Média conhece o mesmo fenômeno:
Tudo isso expressa a diferença crescente entre as relações que regem a sociedade e as idéias que os homens tinham daquelas até este momento.
As únicas formas ideológicas que podem tomar um real impulso nestas épocas são, de um lado, o direito e, por outro lado, as ideologias anunciando a nova sociedade.
O direito numa sociedade dividida em classes só pode ser a expressão dos interesses e da vontade da classe dominante formalizados sob a forma de leis. É o conjunto da regras que permitem o bom funcionamento do sistema de exploração. O direito conhece assim um desenvolvimento no começo da vida de um sistema social, quando são estabelecidas as "novas regras do jogo", mas também no fim de um sistema quando a realidade o faz cada vez mais inadequado e impopular, e a vontade da classe dominante vira um elemento cada vez mais importante para manter suas relações vivas. Nestas circunstâncias, o direito traduz a necessidade de reforçar o quadro opressivo necessário à vida de um sistema que se torna caduco. É a razão pela qual o direito se desenvolve tanto na decadência romana quanto na do feudalismo. Diocleciano, o maior imperador do Império Baixo foi também aquele que redigiu o maior número de editos e de rescritos.[9] [17] Da mesma maneira, a partir do século XIII, começam a aparecer as primeiras compilações de direto consuetudinário.
C) O aparecimento das idéias revolucionárias
Paralelamente ao reforço do direito da sociedade antiga na sua decadência, as
idéias revolucionárias que preconizam um novo tipo de relações sociais começam
a aparecer. Elas tomam a forma de críticas, contestatórias pois
revolucionárias. É a justificação da nova sociedade. Este fenômeno é
particularmente evidente a partir do século XV na Europa ocidental.
O protestantismo (e particularmente o de Calvino), religião opondo-se ao catolicismo, admite o empréstimo com juro (condição de vida do capital); preconiza a elevação espiritual pelo trabalho; glorifica do ponto de vista da religião cristã "o homem bem sucedido" (por oposição aos privilégios "de fonte divina" da nobreza e justificando assim a nova situação do plebeu burguês novo-rico); questiona o papel sobrenatural da igreja católica (principal senhor feudal) para preconizar a interpretação da bíblia pelo homem por si, sem intermediário. Assim, esta nova religião constitui um elemento ideológico anunciando e favorecendo o capitalismo.
Da mesma maneira, o desenvolvimento do racionalismo burguês, cuja expressão última terminará com os filósofos e economistas dos séculos XVII e XVIII, traduz o elemento revolucionário do conflito no qual a sociedade é submersa
Dissolução da ideologia antiga dominante, reforço da ideologia da nova sociedade, obscurantismo contra racionalismo, pessimismo contra otimismo, direito coercitivo contra direito construtivo, encontramos como o diz Marx:
A prosperidade de um sistema de exploração permite uma harmonia relativa entre exploradores. Quando a rentabilidade do sistema diminui, quando o lucro entra em queda, a harmonia dá lugar às guerras entre aproveitadores. Assim, paralelamente a pilhagem que caracteriza o fim do Império Romano e da Idade Média, assistimos à multiplicação das guerras entre frações da classe dominante.
A partir do século II, em Roma, assistimos às guerras entre cavaleiros, burocratas, comandantes de armadas contra os senadores e patrícios:
No fim da Idade Média, as guerras entre os "coligados" tomam proporções tão importantes que os reis ocidentais são obrigados proibi-las e Luis IX irá até impor a interdição do porte de arma. A guerra de Cem anos também é uma expressão deste tipo de fenômeno.
Quando a classe dominante não pode mais controlar o quadro geral das contradições do sistema que provocam a queda dos lucros, a solução que se impõe o mais imediatamente é aquela que consiste, a cada fração, em apoderar-se do lucro das outras ou, pelo menos, apoderar-se dos meios de produção permitindo a criação de lucro (por exemplo, os feudos da época feudal).
A decadência de um sistema é caracterizada pelo desenvolvimento da miséria e a intensificação da exploração:
O agravamento da miséria e da exploração tem por efeito acentuar a luta dos explorados contra os exploradores enquanto, ao mesmo tempo, desenvolve-se a luta da classe portadora da nova sociedade. As reações dos trabalhadores são violentas e finalmente tão nefastas para o crescimento da produtividade que, tanto no fim do Império quanto no fim da Idade Média, houve tentativas de substituir as punições por medidas destinadas a interessar os explorados na produção (alforria de escravos ou de servos)[10] [18].
Paralelamente às revoltas de uma nova classe (grandes proprietários feudais, no fim do Império, burguesia no fim do feudalismo), a classe portadora da nova sociedade começa a estabelecer as bases do seu próprio sistema de exploração, arruinando assim as bases do antigo sistema.
Assim, a velha classe privilegiada deve assumir um combate permanente ao mesmo tempo contra as classes exploradas e contra a classe portadora da nova sociedade.
Estas lutas de classes se desenvolvem várias vezes no seio de um clima social feito de caos que é o próprio produto da decadência.
Durante esta luta, a futura classe dominante sempre encontrou nas revoltas dos produtores a força que lhe faltava para derrubar as estruturas antigas que passaram a ser reacionárias. É só no caso da revolução proletária que a classe portadora da nova sociedade é ao mesmo tempo portadora da nova sociedade e classe explorada.
Todos estes elementos explicam o fato que a decadência de uma sociedade provoca necessariamente um renascimento decisivo da luta de classes.
Assim no Império Romano:
Da mesma maneira no fim da Idade Média:
As revoluções de Cromwell em 1649 na Inglaterra e a revolução de 1789 serão o resultado espetacular das lutas que provocam o declínio da sociedade feudal e o nascimento do capitalismo.
O desenvolvimento, a conservação e a superação de uma sociedade dada são obra de grupos de homens com a determinação de agir segundo sua posição econômica no seio do sistema. A força de conservação de um sistema é, antes de tudo, a força da classe que tira daquele o maior lucro. A força de uma nova sociedade também é a força da classe que encontra o maior interesse na sua instauração.
Assim, é na ação das classes sociais que se concretizam todas as forças objetivas que mergulham a sociedade numa contradição. No momento dado, o conflito de classes nada mais é que o conflito que opõe, na realidade, o desenvolvimento das forças produtivas às relações de produção existentes.
Se o direito expressa os interesses e a vontade da classe dominante sob a forma de leis, o Estado representa a força armada encarregada de fazê-los respeitar. Ele é o que garante a ordem necessária à exploração de uma classe por outra. Diante das desordens econômicas e sociais que caracterizam a fase de decadência de um sistema, o Estado só pode se reforçar. O desenvolvimento da função provoca o desenvolvimento do órgão.
A) Contra a desordem social
Nascido como uma força armada da classe dominante, o Estado é essencialmente o
servidor de uma classe. Entretanto, todos os interesses da classe dominante se
cristalizam da maneira mais perfeita neste servidor. Sua tarefa é de manter a
ordem global. Neste sentido, ele tem uma visão mais ampla do funcionamento do
sistema – e de suas necessidades – do que a dos indivíduos que constituem a
classe privilegiada. Separado do conjunto da sociedade, porque ele é um órgão
de opressão a serviço de uma minoria, ele se distingue também desta minoria por
seu caráter de órgão único diante da diversidade dos interesses fracionais ou
individuais dos exploradores. Além disso, os privilégios da burocracia estatal
são estreitamente ligados ao bom funcionamento do sistema no seu conjunto.
Assim, nos períodos de decadência, o Estado se reforça porque ele deve enfrentar um número crescente de revoltas da classe oprimida, mas também porque ele é o único capaz de assegurar a coerência da classe dominante levada ao despedaçamento e à desintegração.
O desenvolvimento do poder do imperador romano, particularmente a partir do século II, assim como o da monarquia feudal, encontrou uma justificação real tanto nas suas lutas respectivas contra as revoltas dos oprimidos como no seu papel de agente da "ordem reinante" para frear as lutas entre frações da classe dominante. O imperador Septime Sévère (193-211) chegou a confiscar "as propriedades de senadores e de homens de negócio para reunir os recursos necessários para pagar os soldados que asseguravam sua segurança e seu poder" (Clough). A monarquia Capeciana se desenvolveu em detrimento dos grandes senhores feudais.
Na maioria dos casos, as guerras constituem também um fator importante no processo de reforço do aparelho de Estado. Só a autoridade estatal pode realizar o agrupamento das forças necessárias para a guerra. Assim, o Estado sai sempre reforçado da prova. Este fator jogou um papel muito importante no reforço do poder monárquico, particularmente na França.
B) Contra a desordem econômica
Os privilégios da burocracia estadual sendo estreitamente ligados à boa saúde
econômica do sistema, o Estado é não somente o único capaz de chegar a uma
visão bastante global da economia nacional, mas também é o único que encontra
um real interesse imediato e vital nesta economia.
Constatamos o desenvolvimento muito importante do intervencionismo do Estado tanto no declínio do Império Romano como no do feudalismo:
Quanto à realeza feudal, ela se reforçou pela criação de uma administração potente.
Quando as relações econômicas de uma sociedade se tornam uma calamidade para os que as praticam, só a força armada pode fazê-las sobreviver. A força armada é a cristalização última das leis do sistema. O Estado tende então a tomar a economia nas suas mãos. Numa sociedade em decadência, tudo faz pressão neste sentido. As despesas parasitárias para manter em serviço uma economia que não é mais rentável impõem o desenvolvimento dos encargos fiscais. Só um Estado forte pode então chegar a extorquir estes impostos de uma população com fome e pronta para a revolta. Imperadores do Império Baixo e reis feudais encontraram nesta função uma das bases do reforço de seu poder. A economia não correspondendo mais às necessidades impostas pela realidade social, as iniciativas econômicas não encontraram mais o guia natural que constitui a procura da prosperidade e da harmonia com o resto da sociedade. A intervenção do Estado e sua força viram então o único meio para tentar impedir a paralisia da economia na desordem maior. Uma tendência à burocratização da sociedade e à arregimentação dos indivíduos se desenvolve tanto no fim do escravismo como no declínio feudal.
Esta tendência chegou a atingir proporções particularmente apavorantes no período do Império Baixo Romano:
Alguns trabalhadores são marcados com ferro quente para impedi-los de abandonar seu trabalho. O direito de perseguição é generalizado.
Encontramos esta necessidade de um intervencionismo do Estado no fim do feudalismo. Mas existe uma diferença importante entre a ação econômica da realeza feudal e a do Império Baixo.
Quando o escravismo se decompôs, deu lugar a um sistema baseado na autarcia caracterizada por uma vida econômica particularmente desmembrada. As tentativas de reforço e de centralização do Estado por um lado e, por outro lado, o desenvolvimento do feudalismo, constituíram dois fenômenos simultâneos totalmente opostos. O feudalismo, quanto a ele, será ultrapassado pelo capitalismo, quer dizer por um sistema que necessita sempre mais concentração e integração da vida econômica. A centralização e o intervencionismo do Estado feudal que resultam da necessidade de salvaguardar o feudalismo em decomposição, constituem assim objetivamente um meio de desenvolver as bases do capitalismo.
Vários fatores fundamentais obrigam a monarquia a se impregnar deste papel histórico duplo:
As medidas econômicas tomadas por Eduardo II e Eduardo III, a política mercantil de Henrique VII na Inglaterra, a recuperação econômica realizada por Luis XI na França, a ação protecionista e favorável ao desenvolvimento de uma indústria levada à bem pela maioria dos reis franceses e ingleses a partir do século XIV, assim como a aceitação dos parlamentos burgueses pelas duas monarquias, atestam do papel eminente jogado pela monarquia feudal no processo de acumulação primitiva do capitalismo.
Mas seria absurdo ver a monarquia somente sob este aspecto. A monarquia permanece essencialmente feudal, ela constitui a última muralha de defesa do feudalismo. É o que atestam fatos como, por exemplo, a luta constante entre o rei e os parlamentos burgueses; a defesa do regime das corporações; a luta na França contra o protestantismo, religião da burguesia; por fim, o fato da burguesia na Inglaterra e na França precisar revoluções para permitir o verdadeiro desenvolvimento do capitalismo.
Apesar deste duplo papel jogado pela monarquia feudal, para assegurar a sobrevivência do sistema, encontramos inexoravelmente o reforço do Estado, característica própria à decadência de uma sociedade.
Se a imagem da decadência de uma sociedade é a de um corpo que procura crescer dentro de uma roupa que acabou sendo estreita demais, o desenvolvimento do aparelho de Estado é somente a tentativa deste corpo a resistir à pressão que o faz rebentar.
D – A decadência do capitalismo
Com o capitalismo, a força de trabalho se torna uma mercadoria:
- Ele está separado
de seus meios de produção e estes estão atados pelas mãos por aqueles que não
trabalham;
-
A
produtividade do trabalho é elevada, quer dizer que é possível de fornecer um
sobre-trabalho;
-
A economia
mercantil é dominante, quer dizer que a criação de um sobre-trabalho sob a
forma de mercadorias para vender é o objetivo da compra da força de trabalho." (Rosa Luxemburgo, Introdução à economia política :
Capítulo V (o trabalho assalariado; sub-capítulo 1 (logo depois do começo deste
sub-capitulo) ; página 83 sobre 105)
Disso resulta para o proletariado uma qualidade nova levando seu desprovimento a um paroxismo:
O Manifesto comunista sublinha o papel eminentemente revolucionário da burguesia que ultrapassou todas as formas antigas "paroquiais" e limitadas da sociedade, e as substituiu pelo modo de produção mais dinâmico e expansivo nunca conhecido; um modo de produção que, por ter conquistado e unificado o planeta e impulsionado forças produtivas tão enormes, estabeleceu as bases de uma forma superior de sociedade que, seja livre dos antagonismos de classe.
O comunismo torna-se uma possibilidade material permitida pelo desenvolvimento, como nunca, das forças produtivas pelo próprio capitalismo.
Uma sociedade baseada sobre a produção universal de mercadorias está inevitavelmente condenada, pela própria lógica de seu funcionamento interno, ao declínio e ao desmoronamento último. No Manifesto, as contradições internas que devem levar à derrubada do capitalismo já estão identificadas:
Os escritos posteriores de Marx analisaram mais precisamente a relação entre a extração da mais-valia e sua realização, e as crises periódicas de superprodução que aconteciam aproximadamente a cada dez anos, abalavam os fundamentos da sociedade capitalista. Revelar o segredo da mais-valia é demonstrar que o capitalismo é marcado por contradições que o levam inevitavelmente a seu declínio e a sua queda final. Estas contradições são baseadas sobre a própria natureza do trabalho assalariado:
Apesar de seu incrível caráter expansivo e da submissão do planeta inteiro a suas leis, o capitalismo é só um modo de produção historicamente transitório, do mesmo modo que o escravismo romano ou o feudalismo medieval. o capitalismo está assim condenado a desaparecer, não por conta de sua falência moral, mas por conta de suas contradições internas que o levam à autodestruição e porque ele fez surgir uma classe capaz realizar sua substituição por uma forma superior de organização social.
As contradições do capitalismo indicam também a solução: o comunismo. Uma sociedade mergulhada no caos pela dominação das relações mercantis só pode ser ultrapassada por uma sociedade capaz de abolir o trabalho assalariado e a produção para a troca, uma sociedade de "produtores livremente associados" para a satisfação das necessidades humanas, na qual as relações entre seres humanos não serão mais escuras, pelo contrário, mais simples e claras.
Durante os últimos anos de sua vida, Marx dedicou uma boa parte de sua energia intelectual ao estudo das sociedades arcaicas. A publicação de A sociedade arcaica de Morgan e as questões que o movimento operário russo[11] [19] lhe colocava, considerando as perceptivas para a revolução na Rússia, levaram-no a iniciar um estudo intensivo conhecido com o título e forma de Notas etnográficas, apesar de incompletas, extremamente importantes. Estes estudos alimentaram também o grande trabalho antropológico de Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
O trabalho de Morgan sobre os índios de América constitui, para Marx e Engels, uma confirmação brilhante da sua tese sobre o comunismo primitivo: ao contrário da concepção burguesa convencional segundo a qual a propriedade privada, a hierarquia social e a desigualdade dos sexos seriam inerentes à natureza humana, o estudo de Morgan revelava que quanto mais a formação social era primitiva, mais a propriedade era comunitária, mais o processo de tomada de decisão era coletivo, mais as relações entre homens e mulheres eram baseadas sobre o respeito mutuo.
O método de Marx diante da sociedade primitiva era fundado sobre seu método materialista que considerava que a evolução histórica das sociedades era determinada, em última instância, por mudanças na sua infra-estrutura econômica. Estas mudanças implicaram o fim da comunidade primitiva e abriram a via à aparição de formações sociais mais desenvolvidas. Mas sua visão do progresso histórico era radicalmente oposta à do evolucionismo burguês trivial para quem existia uma ascensão puramente linear, vindo da sombra e indo para a luz, ascensão que culminava no esplendor brilhante da civilização burguesa. A visão de Marx era profundamente dialética: longe de descartar o comunismo primitivo porque não seria uma sociedade ainda realmente humana, as Notas expressam um respeito profundo para as qualidades da comunidade tribal: sua capacidade de se auto-governar, o poder de imaginação de suas criações artísticas, seu igualitarismo sexual. As limitações concomitantes da sociedade primitiva – em particular as restrições impostas aos indivíduos e a divisão da humanidade em unidades tribais – foram necessariamente ultrapassadas pelo progresso histórico. Mas o lado positivo destas sociedades se perdeu com este processo e deverá ser restaurado a um nível superior no comunismo futuro.
A descoberta do fato que os seres humanos tinham vivido, durante centenas de anos, numa sociedade sem classes e sem Estado, constituiu um instrumento potente nas mãos do movimento operário e serviu de contrapeso para todas as proclamações segundo as quais o amor à propriedade privada e à necessidade da hierarquia constituiriam uma parte intrínseca da natureza humana.
No momento em que O manifesto comunista foi escrito, as crises cíclicas de superprodução ainda podiam ser superadas "pela conquista de novos mercados e pela exploração mais profunda de antigos mercados" e o capitalismo tinha a sua frente uma fase de expansão considerável.
Nos anos 1870 e 1880, uma nova fase da vida do capitalismo está se abrindo. O sistema capitalista estava entrando na sua última fase de expansão e de conquistas mundiais, não mais através da luta de classes burguesas nascentes procurando estabelecer Estados nacionais viáveis, mas através do método do imperialismo, das conquistas coloniais. As três últimas décadas do século XIX foram o teatro da conquista da totalidade do globo e de sua partilhada pelas grandes potências imperialistas.
Com a aproximação dos primeiros sinais da fase de decadência do capitalismo, as tensões crescentes entre as grandes potências e os conflitos sem fim na periferia, Engels, com muita presciência, escreveu em 1891-92:
Quais seriam as conseqüências de uma tal guerra? Engels continua:
Antes da catástrofe social da Primeira Guerra mundial, encontravam-se várias vozes influentes no seio do movimento operário tentando convencer a classe operária da possibilidade da transformação pacifica do capitalismo através de reformas.
Felizmente, nessa época, a Esquerda marxista percebeu como falsos os sinais da uma saúde sem igual do capitalismo que eram indicados através das estatísticas econômicas. Na realidade, quando a guerra estourou, o capitalismo estava no cimo de sua prosperidade econômica e, inspirada pelo exemplo de Engels, a Esquerda marxista é capaz de levar um combate implacável contra o reformismo no seio da social-democracia e de tomar em conta a exacerbação das contradições do sistema.
A compreensão da fase do imperialismo, da decadência do capitalismo, foi desenvolvida pelos sucessores de Marx, notadamente por Rosa Luxemburgo.
Apesar de não ser homogênea na explicação das causas profundas que explicavam o nível das contradições na vida do capitalismo que resultou na guerra mundial, fenômeno qualitativa e quantitativamente novo na vida da sociedade, a Esquerda marxista foi, entretanto, capaz de estar em acordo sobre sua causa imediata: tratava-se de uma guerra para uma nova partilha do mundo pelas grandes potências imperialistas. Evidentemente eram as potências mais desfavorecidas do ponto de vista da posse de colônias, a Alemanha em particular, que tinhan maior interesse nesta nova partilha do mundo e, para isso, preparavam-se para a guerra. Quanto às outras (Grã-bretanha, França), elas também estavam dispostas para a guerra para não perder seu império colonial.
No momento em que a onda internacional de indignação em reação à barbárie da Primeira Guerra Mundial toma a forma de uma onda revolucionária, colocando na ordem do dia da História o derrubamento da burguesia para instaurar uma sociedade comunista, elevaram-se vozes no seio do movimento operário que, apoiando-se sobre a "ortodoxia marxista", decretaram prematura a tomada de poder pela classe operária na Rússia porque a etapa da tomada do poder político pela burguesia não tinha ainda sido ultrapassada. Esta polarização sobre uma pretendida imaturidade das condições da revolução na Rússia, não somente se apoiava sobre um pretendido nível insuficiente do desenvolvimento industrial e da classe operária neste país, mas, sobretudo criava um impasse sobre o fato que as condições da revolução mundial já estavam reunidas.
Ganhando existência a partir dos movimentos revolucionários que colocaram um ponto final na Primeira Guerra Mundial, a Internacional Comunista foi fundada em 1919 com o pressuposto de que a burguesia já não era mais uma classe progressiva:
O fato de que a revolução foi derrotada não pode ser invocado para decretar a imaturidade das condições objetivas da revolução nessa época. Por conta do desenvolvimento das forças produtivas, não somente as condições da abundância já estavam presentes, mas, por duas vezes, em 1905 na Rússia e a partir de 1917 num conjunto significativo de países industrializados, a classe operária tinha demonstrado sua capacidade de lutar para derrubar o poder da burguesia tendo com objetivo a instauração de seu poder político em escala mundial.
Esta derrota, imputável em primeiro lugar à derrota da revolução na Alemanha, só fez traduzir a imaturidade das condições subjetivas para a revolução, e que expressavam notadamente as ilusões consideráveis persistentes no seio de uma fração significativa do proletariado alemão em relação à social-democracia que, contudo, tinha traído no momento da guerra.
A guerra mundial, esta primeira manifestação brutal da entrada do capitalismo na sua fase de decadência, não é evidentemente um fenômeno independente das contradições que se desenvolvem na base econômica da sociedade. Ela é o produto próprio destas.
A) As causas econômicas, em última
instância, das guerras da decadência
Assim como já evocamos, Marx demonstrou a
necessidade absoluta, para o capitalismo, de realizar uma parte de sua
mais-valia na troca com o mundo ainda não capitalista, necessidade que resulta
do modo de apropriação da mais-valia que o caracteriza especificamente, através
do trabalho assalariado. Com efeito, este último impõe ao capitalista reduzir
ao mínimo o salário do operário, a tal ponto que este não pode constituir, pela
aquisição de mercadorias que não são estritamente necessárias à reprodução de
sua força de trabalho, um fator de expansão do mercado solvável[12] [20]
no seio do capitalismo. A partir daí existe a necessidade do capitalismo
procurar permanentemente mercados solváveis exteriores à esfera de suas
relações de produção:
A necessidade do capitalismo global de desenvolver relações comerciais com o mundo pré-capitalista se repercute sobre cada potência capitalista, com mais ou menos força, e leva-as a desejar dispor de seu próprio império colonial para ter acesso a estes mercados. A conseqüência disso é que, antes da Primeira Guerra Mundial, o mundo e os mercados coloniais já estiveram sob a dominação das maiores potências econômicas. O acesso de um país a novas colônias só pode doravante ser efetuado em detrimento de seus rivais.
Assim, apesar de não ser o resultado direto de uma crise econômica conseqüência das contradições econômicas insuperáveis que assaltam o sistema, a Primeira Guerra Mundial é, entretanto, o produto destas, em última instância. O mesmo é considerado em relação à Segunda Guerra Mundial e às guerras que a sucederam.
Entretanto, com o afundamento do capitalismo na suas contradições, operou-se também uma modificação qualitativa das guerras que adquiriram uma irracionalidade econômica crescente. Uma tal irracionalidade econômica já era um fato óbvio considerando a Primeira Guerra Mundial, na medida em que, longe de permitir um desenvolvimento do capitalismo, ela deu uma parada brutal em seu desenvolvimento. A economia da maioria dos protagonistas diretos que pertenceram ao campo vencedor ou ao campo vencido foram duramente afetados pela guerra, com exceção dos Estados Unidos que melhoraram sua posição econômica.
Assim, depois da Primeira Guerra Mundial, os objetivos econômicos da guerra, que consistem para cada país apropriar-se dos mercados de seus rivais, tendem a desaparecer em benefício de motivações meramente estratégicas, permitindo melhorar a relação de força com os rivais. O exemplo das guerras atuais em Afeganistão e Iraque é uma ilustração brilhante disso, a questão do petróleo intervindo, fundamentalmente, só como uma motivação estratégica e não econômica. Assim, de maneira geral, é hoje a ausência de qualquer solução num plano econômico que empurra cada Estado no sentido do militarismo e da guerra.
B) A crise de 29, dos anos trinta e a
explosão do desemprego massivo e permanente
Na realidade, a história do próprio capitalismo
é a história de sua conquista do planeta. Seu desenvolvimento é indissoluvelmente
ligado à história de seu comércio com as economias pré-capitalistas que ele
integra no seio das relações de produção capitalista:
Desta dinâmica resulta a diminuição da quantidade de mercados extracapitalistas sem que a necessidade destes pelo capitalismo tenha diminuído: absorver uma parte de sua produção para que possa continuar a acumulação em condições "normais".
A crise de 1929 vai constituir a primeira manifestação direta, ao nível estritamente econômico, desta contradição insuperável da decadência do capitalismo. Assim como as crises cíclicas da fase ascendente, ela é uma crise de superprodução. Mas, diferentemente destas, não existe solução na abertura de novos mercados permitindo uma retomada durável do crescimento. Ela é a expressão da tendência global e crescente à saturação dos mercados extracapitalistas, em relação às necessidades de realização da mais-valia capitalista para novos ciclos de acumulação.
A melhora muito fraca da situação econômica nos anos trinta é, na realidade, o produto da adoção de medidas capitalistas de Estado destinadas a enquadrar, controlar a economia, e colocá-la integralmente a serviço da produção de guerra em projeção do Segundo conflito mundial que se preparava. Longe de constituir uma solução das contradições insuperáveis do capitalismo, tais medidas só fazem adiar o problema para um momento posterior.
Medidas de capitalismo de Estado já tinham sido brutalmente impostas ao capitalismo diante das necessidades da Primeira Guerra Mundial. Uma vez terminado o conflito, iludida sobre as perspectivas, a burguesia tinha imaginado poder voltar à idade de ouro do capitalismo. Evidentemente, ela caiu na realidade quando esta tendência irreversível se impôs mais uma vez diante de si com a necessidade de enfrentar o conjunto das contradições do sistema.
Fora do período de prosperidade depois da Segunda Guerra Mundial, que constituiu uma exceção na época pós-Primeira Guerra Mundial, sobre a qual voltaremos a falar, a crise de 29 abre uma época de crise econômica permanente. Esta época é marcada em particular pelo desenvolvimento de um desemprego massivo, sem esperança de redução senão pelas manipulações administrativas e estatísticas da burguesia.
Este fenômeno é, quantitativa e qualitativamente, diferente da forma que tomava o desemprego no século XIX através da existência de um exercito industrial de reserva para as necessidades do capital. Por um lado, ele é a manifestação da crise de superprodução permanente que afeta a economia mundial. Na ausência de possibilidades de desenvolvimento suficiente do conjunto da economia mundial, cada capital nacional e cada capitalista é obrigado, diante da concorrência, de dispensar operários para manter sua competitividade. Esta manifestação da superprodução permanente exprime, no seu ponto mais alto, a amplitude das contradições do capitalismo, sobre dois planos:
C) A prosperidade depois da Segunda Guerra
Mundial: signo de uma nova vitalidade ou última reação de um organismo doente?
A taxa de crescimento durante mais de duas
décadas depois da Segunda Guerra Mundial, superior aos melhores anos da
ascendência do capitalismo, serviu como argumentação que permitiu aos
defensores do capitalismo pretender que este sistema tinha definitivamente
ultrapassado suas crises. Esta situação de "prosperidade" alimentou
dúvidas enormes no seio do campo revolucionário sobre a realidade da fase de
decadência do capitalismo.
Um fator suplementar de desorientação resultou do fato que o crescimento foi permitido por um aumento importante da produtividade do trabalho acompanhado, numa certa medida, por uma melhoria das condições de vida da classe operária.
Apesar dos primeiros alertas da crise econômica reaparecerem no fim dos anos sessenta, os anos setenta conheceram também taxas de crescimento relativamente importantes.
Mas, quando se observa o conjunto do século XX com o recuo permitido pelo momento atual, no começo do século XXI, é muito mais fácil entender o período dito dos "Trinta anos de ouro" como uma exceção no seio de um curso irreversível para o declínio da economia capitalista na crise.
Na realidade, a decadência do capitalismo ilustra fenômenos já presentes na decadência dos modos de produção anteriores :
É possível dar um esboço de explicação ao fenômeno dos "Trinta anos de ouro".
Para começar, temos de restituir suas dimensões reais que não expressam os mitos do crescimento. Com efeito, estas devem ser relativizadas na medida em que elas consideram, de maneira importante e crescente, uma proporção de capital improdutivo, correspondendo em particular à produção de armamento.
Assim, se a burguesia pôde aproveitar um aumento significativo da produtividade do trabalho (resultado em boa parte do encargo da economia nacional pelo Estado), estes ganhos de produtividade foram parcialmente "perdidos" pela acumulação capitalista por conta de uma esterilização importante de capital improdutivo.
Por outro lado, convém colocar em evidência os fatores seguintes que foram a base deste período de prosperidade:
Quando os fatores específicos na origem dos "Trinta anos de ouro" se esgotaram, o desenvolvimento do crédito tomou muita importância para constituir um paliativo crescente à insuficiência dos mercados solváveis. Longe de constituir um remédio milagroso às contradições do capitalismo, ele só podia desembocar numa série longa de falências dos países endividados, começando por um número significativo de países africanos nos anos 1970, até uma boa parte dos Tigres e Dragões asiáticos em 1998. A lista é longa e não é exaustiva nem definitiva.
Até os apologistas mais obstinados do modo de produção capitalista são obrigados a reconhecer que o século XX foi um dos mais sinistros da História humana.
A História da humanidade não é avarenta em crueldades de todo tipo, em torturas, em massacres, em deportações ou exterminações de populações inteiras sobre a base de diferenças religiosas, de linguagem, de raça. Cartago arrasada do mapa pelas legiões romanas, as invasões de Átila na metade do século V, a execução por Charlemagne de 4500 reféns saxões num único dia de 1782, as câmaras de torturas e as fogueiras da Inquisição, a exterminação dos índios na América, o comércio de milhões de negros da África entre o século XVI e o século XIX: são somente alguns exemplos que todo aluno pode encontrar nos livros escolares. A História também conheceu épocas particularmente trágicas: a decadência do Império Romano, a Guerra de Cem Anos na Idade média entre a França e a Inglaterra, a Guerra de Trinta Anos que devastou a Alemanha no século XVIII. Entretanto, mesmo se passássemos em revista todas as outras calamidades deste tipo que afligiram os homens, estaríamos longe de encontrar o equivalente daquelas que se desencadearam durante o século XX:
Na realidade, um dos maiores aspectos da barbárie atual não é só a acumulação de aflições humanas que ela gera, é o contraste enorme que existe entre o que poderia ser a sociedade com as riquezas que ela criou na sua história e sua realidade. Foi o sistema capitalista que permitiu a eclosão destas riquezas, particularmente a maestria da ciência e o aumento formidável da produtividade do trabalho. Graças evidentemente a uma exploração feroz da classe operária, ele criou as condições de sua superação por uma sociedade que não seja mais orientada pelo lucro ou pela satisfação das necessidades de uma minoria, mas orientada para a satisfação da totalidade dos seres humanos. Estas condições materiais existem desde o começo do século XX. Depois de ter acabado sua tarefa histórica de desenvolver sem precedente as forças produtivas, e a primeira entre elas, a classe operária, o capitalismo devia deixar a cena histórica como fizeram as sociedades que o precederam, notadamente a sociedade escravista e a sociedade feudal. Mas evidentemente não pode desaparecer por si mesma: é responsabilidade do proletariado, já como dizia O Manifesto comunista, executar a sentença de morte que a História pronunciou contra a sociedade burguesa.
[1] [21] Para fazer isso, apoiar-nos-emos significativamente (considerando as partes B, C e D desta apresentação) sobre um artigo de Revolução Internacional n° 4 publicado em 1975, nessa época sob a forma de revista.
[2] [22] É o que Labriola explica nos seus Ensaios sobre a concepção materialista da história (1899): "(...) Em nossa doutrina, não se trata de traduzir de novo em categorias econômicas todas as manifestações complicadas da história mas se trata só de explicar em "ultima instância" (Engels) todos os fatos históricos pelo meio da "estrutura econômica subjacente" (Marx) : o que necessita análise e redução, e depois mediação e composição, (...) A estrutura econômica subjacente, que determina todo o resto, não é somente um mecanismo simples do qual emergem, como se fossem efeitos automáticos e maquinais imediatos, as instituições, as leis, os costumes, os pensamentos, os sentimentos, as ideologias. O processo de derivação e mediação entre esta infra-estrutura e o resto é muito complicado, várias vezes sutil e tortuoso, não sempre decifrável."
[3] [23] É porque Engels disse: "Segundo a concepção materialista da história, o fator determinante na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu, nunca afirmamos mais do que isso. Se depois, alguém vem torturar esta proposição para atribuí-la a significação de que o fator econômico é o único fator determinante, ele a transforma numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura (as formas políticas da luta das classes e seus resultados), as constituições estabelecidas depois da classe vitoriosa ter vencido, etc., as formas jurídicas, e até o reflexo de todas estas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, concepções religiosas, e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticas, exercem também sua ação sobre o curso das lutas históricas e, em vários casos, determinam de maneira preponderante sua forma. Há ação e reação de todos estes fatores no seio dos quais o movimento econômico acaba por abrir seu caminho como uma necessidade através da multidão infinita das possibilidades. (...) Senão a aplicação da teoria a qualquer período histórico seria ainda mais fácil de que a resolução de uma simples equação do primeiro grau. (...) Marx e eu temos parcialmente a responsabilidade do fato que, às vezes, os jovens dão mais importância de que necessário ao fator econômico. Diante de nossos adversários, precisávamos sublinhar o princípio essencial negado por eles enquanto a gente não encontrava sempre o tempo, o lugar e também nem a oportunidade de dar seu lugar aos outros fatores que participam na ação recíproca. (...) Mas, infelizmente, acontece demais vezes que alguém pensa ter perfeitamente entendido uma teoria nova e que pode manejá-la sem dificuldade logo depois ter adquirido seus princípios essenciais, e não é sempre certo." (Engels ; Carta do 21 de setembro 1890 para J. Block).
[4] [24] O desenvolvimento das guerras é um fator agindo no senso do abandono das relações sociais comunistas: a vida em guerra quase permanente exige a formação de uma camada de especialistas guerreiros que tendem a aparecer como os fornecedores das riquezas da coletividade e a estabelecer relações hierárquicas no seio da comunidade, e sendo sustentados pelo resto da comunidade. Mas, este fator toma importância só quando o acréscimo da produtividade é suficiente para permitir a passagem para o escravismo.
[5] [25] Arado grande com um jogo de rodas adiante e uma só aiveca (Dicionário Michaelis).
[6] [26] Ato de romper terreno inculto (Dicionário Michaelis)
[7] [27] Sociedade economicamente auto-suficiente,
que procura produzir tudo o que necessita; governo independente (Dicionário
Priberam)
[8] [28] "Roma tinha esperado cobrir as despesas do governo por meio de uma taxação maior, mas quando o processo se revelou insuficiente, foi preciso recorrer à inflação (no fim do século II). Este primeiro expediente foi repetido de vez em quando durante o século III, algumas moedas desvalorizando-se até duzentos por cento do valor nominal. Por conta disso, a unidade monetária do Império foi destruída, cada cidade e cada província emitindo sua moeda própria." (Shepard e B. Glough opus)
[9] [29] Deliberações, ordens, resoluções de um soberano, por escrito (Dicionário Michaelis)
[10] [30] Este fenômeno tem uma significação particularmente importante: quando um sistema econômico está "sem fôlego", várias vezes ele é obrigado a abandonar alguns aspetos jurídicos que o caracterizam para permitir a sobrevivência do essencial, as relações de produção.
[11] [31] Uma carta de Vera Zassoulich (membro daquela fração do populismo revolucionário que, mais tarde, com Plekhanov, Axelrod e outros formou o grupo Emancipação do trabalho, a primeira corrente realmente marxista na Rússia) datada do dia 16 de fevereiro de 1881, pedia a Marx para esclarecer sua posição sobre o futuro da comuna rural, a Obschina: devia ser dissolvida pelo avanço do capitalismo na Rússia ou era capaz, "libertada dos impostos exorbitantes, dos pagamentos à nobreza e a uma administração arbitrária ... de se desenvolver numa direção socialista, quer dizer organizar gradualmente sua produção e sua distribuição sobre uma base coletiva." Ele resumiu sua reflexão, em primeiro lugar pela rejeição da idéia que seu método de analise levaria à conclusão que cada país ou região estava condenado a passar pela fase burguesa de produção; e em segundo lugar pela conclusão que "o estudo especial que eu fiz da comuna, inclusive uma pesquisa sobre suas origens materiais originais, convenceu-me que ela é o centro da regeneração social na Rússia. Mas para poder jogar este papel, as influências nefastas que a assaltam de todas as partes devem em primeiro lugar ser eliminadas, e depois ela deve ser assegurada das condições normais para um desenvolvimento espontâneo" (8 de Março de 1881).
[12] [32] Que pode pagar o que deve; solvente. (Dicionário Michaelis)
Pp. 11-13. Mehring cita o famoso Prefácio à Crítica da Economia Política de Marx: “A conclusão a que cheguei e que, uma vez atingida, se tornou o princípio diretor dos meus estudos, pode ser resumida como se segue. Na produção social da sua existência, os homens entram inevitavelmente em relações definidas, que são independentes da sua vontade, a saber, as relações de produção que se adequam a um dado estágio do desenvolvimento das forças materiais de produção. A totalidade destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, os verdadeiros alicerces sobre que se ergue a superestrutura legal e política e a que correspondem formas definidas de consciência social. O modo de produção das condições da vida material condiciona o processo geral da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a sua existência, é a existência social que determina a consciência. Em determinado estádio do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes ou—o que apenas exprime a mesma coisa em termos legais—com as relações de propriedade em cujo quadro até ao operaram. De formas de desenvolvimento das forças produtivas tais relações transformam-se em seus freios. Inicia-se então uma era de revolução social. As transformações de base econômica levam mais tarde ou mais cedo à transformação de toda a imensa superestrutura. Sempre que se estudam tais transformações há que estabelecer a distinção entre a transformação das condições econômicas da produção, que podemos determinar com a precisão da ciência natural e das formas legais, jurídicas, religiosas, artísticas ou filosóficas—em resumo, ideológicas—pelas quais os homens ganham consciência desse conflito e o vencem. Tal como não julgamos um indivíduo pelo que ele pensa de si próprio, também não podemos julgar um tal período de transformação pela sua própria consciência; pelo contrário, essa consciência é que tem de ser explicada pelas contradições da vida material, a partir do conflito existente entre as forças sociais de produção e as relações de produção. Nenhuma ordem social é destruída antes que todas as forças produtivas que pode conter em si se tenham desenvolvido, e nunca novas e superiores relações de produção substituem outras mais antigas antes que as condições materiais da sua existência tenham amadurecido no quadro da velha sociedade. Assim, a humanidade só se coloca missões que é capaz de levar a cabo; com efeito, uma análise mais aprofundada mostra sempre que o próprio problema só se levanta quando as condições materiais da sua solução já existem, ou pelo menos se estão a formar. Em traços gerais, podem apontar-se os modos de produção Asiático, antigo, feudal e burguês moderno como épocas que marcaram o progresso do desenvolvimento econômico da sociedade. O modo burguês de produção é a última forma antagônica do processo social de produção—antagônico não no sentido do antagonismo individual, mas de um antagonismo que emana das condições sociais de existência dos indivíduos—mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam também as condições materiais para a resolução desse antagonismo. Assim, a pré-história da sociedade é encerrada por esta formação social.”
Em primeiro lugar, o que deve ser salientado é que se trata de uma síntese, aliás, talvez a mais imponente e genial já feita, não de um período da História, mas da própria História como um todo; e não de uma síntese do devir da História, mas das mais gerais leis de seu devir. É de sínteses como esta que os “descosturadores” não gostam, mas é exatamente de sínteses como esta—que fundamentam as grandes narrativas e os grandes cenários—que a ciência e a sociedade necessitam. E quais são, então, os traços distintivos dessas leis mais gerais da História?
Traço 1: Os homens, ao nascerem e, daí por diante, durante toda sua vida, entram em relações que são e seguem sendo definidas independentemente de sua vontade. Trata-se de relações que são objetivadas pelos próprios homens, mas não de qualquer modo. Os homens objetivam o ser social por meio de uma infinidade de atos de trabalho—atos teleológicos, portanto—, que desembocam numa realidade que, como totalidade, que se coloca para além da simples soma de tais atos de trabalho, passa a ter leis próprias que derivam de sua estrutura em (seu) movimento. A totalidade social já não se move por um ato teleológico, mas pela causalidade.
Traço 2: A História não se desenvolve por meio de um processo evolutivo linear; ao contrário, ela se desenvolve por meio de períodos, de duração variável, qualificados por modos de produção e formações sociais. Essas formações sociais não seguem necessariamente uma seqüência linear, como também nem todos os povos tiveram de passar por todas as formações sociais conhecidas; nem todos os povos conheceram a formação asiática ou a feudal; e mais, existem povos que persistiram até os dias atuais como povos primitivos e só agora começam a se dissolver como tais—o que equivale a dizer que o capitalismo é a única formação social capaz de dissolver todas as demais que subsistiram até a sua vigência.
Traço 3: Os períodos qualitativamente distintivos da História, as formações sociais, se sucedem através de saltos produzidos por rupturas—o que equivale dizer que elas se transformam por conta de contradições fundamentais e irreconciliáveis que se aninham em seu seio. Essas contradições são exatamente as que se colocam entre as relações sociais de produção e as forças produtivas que cada formação social comporta. O mais impressionante é como pôde Marx formular tal quadro de movimento das formações sociais e, dentre elas, a do capitalismo, quando o capitalismo ainda não dava mostra de crise agônica como é a de agora. Aqui, o capital foi traído por si próprio: ao incorporar gigantescas possibilidades tecnológicas numa produção limitada pela estreiteza das relações de produção capitalistas, o capital terminou por pôr diante de si seus limites definitivos—de onde se deduz o acerto da afirmação de Marx que as relações de produção entram, a partir de certo momento, em contradição com as forças produtivas.
Traço 4: Toda formação social possui uma base—o modo de produção—que determina, por muitos fios diretos e indiretos, mediatos e imediatos, a larga e variada superestrutura social. A razão, em última instância, dessa determinação reside no fato de que é nas relações de produção—instância nuclear do modo de produção e, por extensão, da própria formação social—que se define a condição essencial da vida social: é ali que os homens se relacionam entre si e com a natureza para produzirem e distribuírem os meios materiais de sua própria reprodução como espécie. Isso não significa que as superestruturas não interfiram no movimento da base, ou que se coloque as determinações da base à superestrutura como linha de mão única. De que se trata é de verificar em que instância se encontra a condição fundante, onto-genética, da totalidade social. Compreendida esta gênese, podemos compreender o intrincado movimento de relações mútuas entre base e superestrutura e vice-versa.
Traço 5: As rupturas são todas elas promovidas pelas das lutas de classes, personas que correspondem socialmente às condições materiais: a contradição entre o capital (trabalho morto) e o trabalho (trabalho vivo) se manifesta por classes que personificam subjetivamente essa mesma contradição: burguesia de um lado, proletariado de outro. A contradição estrutural está aqui: na relação antinômica entre o capital constante e o variável na c/v, na m/v e na Tl, enquanto a esfera subjetiva dessa contradição na luta de classe entre a persona do capital e a do trabalho. Tampouco significa que as duas ordens de contradição—a objetiva e a subjetiva—se dêem no mesmo compasso ou ocorra como um automático. De modo que se o trabalho se coloca como categoria fundante de toda sociedade humana, a luta de classes se coloca como luta fundante das transformações por rupturas da História.
Marx não procede, nesta exposição, como já foi aventado, a uma análise de conjuntura ou de períodos específicos da História. Ao contrário, ele desenha os passos mais largos, numa visão panorâmica ancha, da História como totalidade. Por isso na sua exposição não tem lugar a multidão de mediações que, nas análises contextualizadas, constituem meios obrigatórios para a caracterização e a compreensão de períodos específicos do devir histórico e social.
Afirma Marx: “Em determinado estádio do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes ou—o que apenas exprime a mesma coisa em termos legais—com as relações de propriedade em cujo quadro até ao operaram. De formas de desenvolvimento das forças produtivas tais relações transformam-se em seus freios.” Análise premonitória, perfeitamente adequada para expressar a crise atual do capital, que tornou os seus pressupostos de crescimento em pressupostos de sua crise: a potencialização da extração da mais-valia levou, no âmbito da crise atual, a uma brusca redução do trabalho vivo vis-à-vis a expansão do trabalho morto e, por aí, a uma queda da taxa de lucro pela redução do exército ativo de produtores de mais-valia e de consumidores de mercadorias. Existem análises que tomaram o enunciado amplo de Marx como um absoluto num momento em que as condições acima formuladas por Marx ainda não estavam dadas.
Marx escreveu: “Nenhuma ordem social é destruída antes que todas as forças produtivas que pode conter em si se tenham desenvolvido, e nunca novas e superiores relações de produção substituem outras mais antigas antes que as condições materiais da sua existência tenham amadurecido no quadro da velha sociedade.” As sociedades de classes, afirmam Marx e Engels, nasceram necessariamente em função da escassez e só terão se tornado supérfluas e desnecessárias quando não se colocar mais o bloqueio da escassez.
Acerca desse desenvolvimento Marx/Engels afirmam que “... esse desenvolvimento das forças produtivas (que contêm simultaneamente uma verdadeira existência humana empírica, dada num plano histórico-mundial e não na vida puramente local dos homens) é um pressuposto prático absolutamente necessário, porque, sem ele, apenas generalizar-se-ia a carência e, portanto, com a penúria, recomeçaria novamente a luta pelo necessário e, toda a imundice anterior seria restabelecida...” Só num tal contexto, que implica a extensão da revolução e a construção do socialismo como fato internacional, o comunismo seria possível. Teoricamente—e também historicamente—foi a escassez que obrigou os homens a se associarem, nos termos de uma sociedade comunista primitiva, como pressuposto social de sua própria sobrevivência e reprodução também social. Se a escassez nunca aparecesse, ou seja, se todos possuíssem tudo o quanto necessitassem, a divisão da sociedade em classes seria desnecessária. Demais, a escassez e o excedente—o excedente em circunstâncias gerais de escassez—é que levaram à sociedade de classes, verbi gratia a sociedade asiática, uma forma de produção que dissolveu as milenares sociedades gentílicas antigas. Uma vez inaugurada a sociedade de classes, uma vez repostas as condições de escassez para toda a humanidade, as demais formas de sociedade de classes apareceram, inclusive o capitalismo.
Não obstante, numa passagem do Anti-Dühring, Engels escreveu que as condições de abastança, que tornavam a sociedade burguesa uma desnecessidade, já estavam dadas em 1875. Com a palavra, Engels: “... a abolição das classes nas sociedades pressupõe um grau de evolução histórica, no qual a existência não simplesmente desta ou daquela classe dominante, mas de qualquer classe dominante como um todo e, por conseguinte, a existência da própria diferença de classe se torne um anacronismo [...] Esta etapa foi agora alcançada... A possibilidade de segurança para cada membro da sociedade através da produção socializada, promove uma existência não só plenamente suficiente em termos materiais, que se completa dia a dia, mas também uma existência que garanta para todos o livre desenvolvimento e exercício das faculdades físicas e mentais... esta possibilidade está aberta, pela primeira vez, concretamente”. Engels não se limita a afirmar que, com o advento da produção capitalista, tais possibilidades estariam abertas como perspectiva—como possibilidade lógica; ao contrário, sua afirmação é feita no sentido de esta etapa foi alcançada, que tais possibilidades já estariam dadas, “pela primeira vez, concretamente”, e que “se completam dia após dia” já no final do século XIX. A primeira parte da passagem de Engels trata das possibilidades teóricas, a segunda, das concretas. Na primeira, a análise sobra de justeza, na segunda, sobra em equívoco—porque aqui Engels confunde os dois âmbitos: o das possibilidades teóricas com o das concretas.
Com efeito, parece-nos que as possibilidades materiais para viabilizar o comunismo, dadas pelo estágio da produção capitalista no entorno de 1875—e isso mesmo trabalhando com o pressuposto de que a maior parte dos países avançados do mundo tivessem realizado suas revoluções socialistas—, eram possibilidades apenas teóricas e lógicas, e isso porque o capitalismo em 1875 não só estava apenas começando, portanto, circunscrito em apenas uma parte pequena do globo, como ainda porque tinha alcançado um nível de forças produtivas de longe insuficiente para proporcionar a abastança das amplas massas sociais da Terra, que tornassem supérfluas as classes e o Estado. Estamos convencidos de que só agora, mais particularmente da década de 1970 em diante, com um capitalismo desenvolvido e mundializado à l’outrance, estaria dada concretamente a possibilidade de produzir meios de subsistência com abundância para toda a humanidade. Agora sim, em condições nas quais a classe dominante—a burguesia—não cede seus privilégios e a classe do trabalho tem de tomar o poder como insuportável (até aqui estamos colocando a questão em termos teóricos bem gerais), é possível inaugurar uma sociedade na qual a abundância torne de novo supérflua a divisão da sociedade em classes e o Estado.
Parece que Engels não logrou descobrir as mediações que poderiam revelar que tais condições não estavam ainda dadas—mas apenas iniciando a sua aparição. O equívoco de Engels deu-se a uma ligação linear da situação do capitalismo no final do século XIX com uma fase que só pôde ser alcançada nos anos 1970 para cá. De fato, só hoje o capitalismo: a) acumulou uma capacidade de produção compatível com as necessidades de toda a população do globo; b) completou a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Esta contradição não estava presente antes das décadas de 1970 a 2010—e tanto não estava completada antes que foi possível ao capital realizar um ciclo de onda longa com seus dois momentos: um de crescimento, do pós-guerra aos anos 1970, quando avançou na mundialização da sua ordem como acumulação ampliada à escala mundial, e outro de decadência, dos anos 1970 aos dias de hoje; c) acumulou todas as contradições que, por outro lado, tornam possível uma era de revoluções—em meio a grandes dificuldades, é certo—como previa Marx em sua síntese magistral. Por outro lado, parece-nos também evidente que o malogro da Revolução Russa se deveu à imaturidade do processo como Marx o formula: como as premissas não estavam dadas no plano internacional, como não estavam dadas na Alemanha e na Europa em geral, a revolução mundial não ocorreu e a Revolução Russa, isolada, malogrou. A própria Alemanha, de que Lênin e Trotsky tanto esperavam, deu provas de que poderia ainda crescer, por não estar no limite a contradição básica entre as forças produtivas e as relações de produção. Só de umas duas ou três décadas para cá é que tais condições estão a amadurecer—o que também não quer dizer que esse amadurecimento ocorra de um dia para outro. E mais: as condições materiais de abastança que tornam desnecessárias as classes sociais não podem, por si sós, por termo às classes sociais; elas precisam ser liberadas por um ato político que ponha termo nas sociedades de classes: a revolução.
Num outro texto (O método da Economia Política, Grundrisse), Marx assinala que a sociedade burguesa pressupõe sociedades passadas das quais carrega, revê e reintegra vestígios. Por outro lado, naquelas sociedades podiam existir sinais de elementos que se tornariam imprescindíveis (pelo seu caráter, pela sua universalidade, pelas suas funções) para a sociedade burguesa, mas que só vieram a se desenvolver plenamente na própria sociedade burguesa, sendo este, por exemplo, o caso do dinheiro e do trabalho assalariado. Neste sentido e, ademais, dentro de certos limites, é que se pode, a partir da sociedade burguesa, compreender as sociedades anteriores—e é aqui que entra o cum grano salis lembrado por Marx. Não é que as categorias de umas e outras sejam as mesmas e que possam ser igualmente empregadas para a leitura igual e simultânea de todas elas, mas que, dentro de certos limites, a partir da sociedade burguesa—de suas categorias e em “marcha a ré”—pode-se compreender o significado pleno das categorias das sociedades anteriores que ganharam universalidade nas sociedades burguesas. Podemos compreender como certas categorias passadas correspondem a certas categorias presentes e vice-versa (da corvéia à mais-valia, etc.), o que é diferente de considerá-las iguais e igualmente chaves para a compreensão simultânea das diversas formações. Seja como for, o essencial está aqui: a partir da sociedade burguesa, vale dizer, de suas categorias, leis, traços e processos característicos, pode-se compreender mais nitidamente traços e categorias de sociedades passadas, até porque aquelas sociedades, tomadas num plano amplíssimo, com alguns de seus traços e de suas categorias, são como “jornadas” que levaram ao surgimento da própria sociedade burguesa. Pode-se, de um lado, perceber formas embrionárias de formas atuais em formações passadas e, de outro, formas que antes existiam e que foram eliminadas, estioladas, subsumidas, etc. O que não se pode, afinal, é tomar as categorias explicativas de cada formação social como paradigmas para o estudo e a compreensão das demais. E é exatamente este princípio que permite e dá legitimidade ao campo de investigação do materialismo histórico, mas que, ao mesmo tempo, proíbe que se faça dele um corpo uno de teoremas e postulados pretensamente válidos para todas as épocas e formações, ou dotado de um sistema de causações absolutamente único e linear pretensamente capaz de enfeixar, como numa matriz, todas as transformações num modelo concebido de antemão. O materialismo histórico—essencialmente um método que procura compreender a história materialística e dialeticamente—explica as articulações, as passagens, a transformação de umas formações em outras, etc., mas não oferece o mesmo elenco de categorias para explicar a todas a um só tempo. O essencial é a diferença essencial.[1] [33]
Mas existe um outro momento no qual o abstrato vem à tona a partir do real concreto. Referimo-nos à análise dos fatos históricos, à reconstituição teórica de reais concretos passados. Um fato histórico que aconteceu, por exemplo, na Grécia antiga ou, se quisermos, muito antes disso, no mesozóico, foi e continua a ser, para o intelecto, um real concreto, só que um real concreto que já aconteceu, que deixou vestígios de sua passagem pelo universo humano—vestígios que podem permitir a sua reconstituição histórica, descritiva e/ou conceitual. Trata-se de um real concreto não presente, já acontecido, objetivado em momentos passados da história, sendo que as emanações que dele saíram, que seriam captáveis pelo intelecto sob a forma de percepções diretas, por estudiosos coetâneos àqueles fatos, só podem ser alcançadas, posteriormente, por meio de registros superpostos e indiretos; emanações apanhadas no passado por estudiosos e observadores contemporâneos dos referidos fatos ou apanhadas em tempos posteriores por estudiosos e observadores que viveram ou que ainda vivem, e que constituem apenas uma maneira indireta de chegar ao intelecto atual dos estudiosos vividos ou viventes depois em cada momento ulterior ao fato. Aqui pode ocorrer que se trate de registros meramente descritivos—como os relatos de Marco Polo sobre o velho Oriente ou a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal acerca da descoberta do Brasil—, que representem a percepção na sua forma mais fenomênica, como pode acontecer que se trate de registros interpretativos, como muitos elaborados por Aristóteles, Newton, Darwin e outros tantos deixados por muitos outros filósofos e cientistas do passado, os quais, de certa forma e em certa medida—e isto independentemente do grau de validade científica que possam conter–, trazem até os intelectuais dos tempos mais presentes, materiais com quais os conceitos podem ser elaborados ou re-elaborados.
Nesse caso, o investigador atual—e aqui já estamos a falar de um investigador que opere com o método dialético—teria um duplo e difícil trabalho: de um lado, levar a efeito uma abordagem acompanhada de uma imprescindível triagem das impressões (registros) empiristas e idealistas (ou metafísicas, como em Homero, Platão, no próprio Aristóteles e em inúmeros outros pensadores), com vistas a separar os conteúdos poéticos e metafísicos das inspeções mais ou menos concretas; de outro, proceder a uma análise crítica dos instrumentos conceituais com os quais foram elaboradas, nas vezes antecedentes e mais ou menos remotas, as interpretações daqueles fatos—o que só é possível, nesse segundo caso, na medida em que o analista se apropria de um mínimo de relações universais registradas que existiam e que contextualizavam os fatos e as relações particulares acontecidos no referido tempo passado. Assim, as interpretações feitas nas diversas épocas anteriores recebem uma espécie de “teste (dialético) de consistência”, porque são postas à prova no seio de relações sociais igual e mutuamente resgatadas e reinterpretadas pela investigação teórica da história.[2] [34],[3] [35]
Marx escreveu também: “Sempre que se estudam tais transformações há que estabelecer a distinção entre a transformação das condições econômicas da produção, que podemos determinar com a precisão da ciência natural e das formas legais, jurídicas, religiosas, artísticas ou filosóficas—em resumo, ideológicas—pelas quais os homens ganham consciência desse conflito e o vencem.” Não se pode concordar com passagens como esta, de feitio claramente positivista (“ ... com a precisão da ciência natural...”) que não expressam o conjunto da obra de Marx. O próprio Engels, numa carta feita a Mehring, na qual chancela o livro desse, faz uma auto-crítica de um defeito em formulações passadas, suas e de Marx, a respeito desta questão: “À parte isto, só falta um ponto que, a bem dizer, nunca foi suficientemente realçado nos escritos meus e de Marx, relativamente ao qual ambos somos responsáveis. Trata-se do seguinte: de início, empenhamo-nos em por a tônica na dedução das representações ideológicas—políticas, jurídicas e outras—bem como nas ações por ela condicionadas, a partir dos fatos econômicos que lhe estão na base, e tivemos razão ... Isso geralmente é acompanhado pela seguinte noção estúpida dos ideólogos, segundo a qual, como nós negamos que a diversas esferas ideológicas que desempenham qualquer papel na História possuam um desenvolvimento histórico independentemente, negamos também que possuam qualquer eficácia histórica. A base disto reside na concepção trivial não dialética da causa e efeito como pólos opostos rígidos, na ignorância absoluta dessa interação. Estes senhores esquecem com freqüência, deliberadamente, que logo que um elemento histórico é gerado em última análise por outras causas econômicas, reage também por sua vez e pode reagir sobre o seu meio e até sobre as suas próprias causas...”
Passemos à transcrição de uma fala de Engels, junto ao túmulo de Marx: “Tal como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, também Marx descobriu a lei do desenvolvimento da História humana; o simples fato, que até se encontrava oculto pela enorme confusão da ideologia, de que a humanidade, antes que possa dedicar-se à política, à ciência, à arte, à religião etc., tem primeiro que comer, beber, ter um abrigo e vestir-se; de que, portanto, a produção dos meios de subsistência imediatos e, por conseguinte o grau de desenvolvimento atingido por determinado povo ou durante uma determinada época forma a base sobre que se desenvolvem as instituições estatais, as concepções legais, as idéias sobre a arte e até sobre a religião do povo em questão e de que conseqüentemente, é à luz desse desenvolvimento que aquelas terão que ser explicadas e não ao contrário, como até aí se fazia.”
É pela premência da necessidade de comer, beber, abrigar-se, vestir-se em condições de escassez desses meios, que o âmbito da produção material se torna a mais decisiva—e decisiva nos seguintes termos: 1) os homens são compelidos a produzirem, antes de qualquer coisa e em condições de escassez, os bens materiais de que necessitam para não morrerem de fome, sede, frio, etc.—vale dizer, tomam prioridade um, acima de todas as demais, esta produção das condições materiais de sobrevivência; e de tal maneira que é a partir daí que ele deduz todas as demais necessidades, formas de vida, valores, expressões e representações ideacionais; 2) et pour cause, alguns, constituindo-se em agrupamentos sociais—castas ou classes—, organizam-se com vistas a acumularem mais meios do que os demais, vale dizer, centralizam, em suas mãos, os meios de produção desses meios de sobrevivência, fazendo com que o que já era mais decisivo passe a ser mais decisivo ainda e a tal ponto que, pra garantirem a posse e a propriedade desses meios mais fundamentais, estabelecem relações de produção que impliquem em relações de dominação, de exploração e de poder que lhe garantam o monopólio de tal domínio. O mais decisivo precisa ser privado; o mais decisivo precisa de ser defendido como tal; o mais decisivo precisa ser dissimulado. E é a partir dessa instância que eles, agora como castas e classes, organizam os meios e mecanismos que garantam a prevalência dessa base—daí, por ela, em defesa dela e em nome dela criam e articulam os meios secundários para a garantia—pela força e pela persuasão—desse núcleo básico da sociedade, agora de classes, e daí derivam o Estado e todas as demais instâncias superestruturais ideológicas.
Na pág. 17, Mehring transcreve um outra passagem do Ludwig Feurbach: “Mas, enquanto nos períodos anteriores, a investigação destas causas motoras da história era quase impossível—devido às inter-relações complicadas e encobertas que se estabeleciam entre tais causas e os seus efeitos—o período em que nos encontramos simplificou tanto essas inter-relações que o enigma pôde ser resolvido. Deixou de ser segredo para quem quer que seja na Inglaterra que, desde o aparecimento da grande indústria, quer dizer, pelo menos desde a paz européia de 1815, toda a luta política se centrava sobre as pretensões à hegemonia de duas classes: a aristocracia terratenente e a burguesia (classe média) ... E a partir de 1830, tem-se reconhecido nos dois países que a classe operária, o proletariado, é um terceiro pretendente ao poder. As condições simplificaram-se tanto que seria preciso fechar deliberadamente os olhos para não ver que na luta entre essas três classes e no conflito entre os seus interesses reside a força motriz da história moderna—pelo menos nos países mais avançados.”
Em que consiste a simplificação entre as causas motoras da História e os efeitos dessas causas que, segundo Engels, permitiu a visibilidade dos interesses e das respectivas posições de classes modernas? Em que essa nova visibilidade era mais simplificada e, portanto, mais visível do que as inter-relações, nos mesmos termos de classes, do que as existentes nas sociedades da Antiguidade greco-romana entre Nobreza e escravos ou, na Alta Idade Média, entre Nobreza e servos? Temos dúvidas se a polarização entre burguesia/proletariado é mais “simplificada”—portanto mais visível—de que a polarização nobreza/escravo ou senhor/servo; e se as “inter-relações” das socialidades pré-capitalistas—alienação religiosa, etc.—eram mais opacas do que as da capitalista. Talvez o que aconteceu no capitalismo é que o confronto entre as duas classes fundamentais—burguesia/proletariado—tenha sido mais forte, mais presente, portanto mais visível, de que os confrontos anteriores. Aí sim, e a própria Comuna—fato que nenhuma classe dominada da História logrou (até porque nenhuma delas poderia ter um projeto desse calibre)—deu essa visibilidade. Não há dúvidas de que no capitalismo as relações sociais—como as que envolvem o fetiche, o estranhamento, etc.—são muito mais opacas do que as anteriores. Essa visibilidade, que permitiu a Marx desvelar os segredos da ordem do capital, advém da qualidade e da dimensão da classe operária vis-à-vis às das classes dominadas nas formações anteriores. Talvez não se trate de “simplificação”, mas da densidade das situações contemporâneas.
Mehring, p. 28: “Mais fácil de compreender, embora seja também um erro grosseiro, é a confusão entre o materialismo histórico e o materialismo das ciências naturais. Este último menospreza o fato de o homem não viver apenas na natureza, mas também na sociedade, e de que não existe apenas ciência natural, de que existe também ciência social. O materialismo histórico engloba também o materialismo das ciências sociais, mas o contrário não se passa. O materialismo das ciências naturais vê o homem como uma criação da natureza que age conscientemente, mas não estuda a forma como a consciência do homem é determinada também no seio da sociedade humana...”
A primeira questão posta é a que foi antecipada por Engels: os homens agem, individualmente, em grupos ou em classes sociais e, ao agirem assim, fazem a sua história, mas eles não agem, como pretendem alguns teóricos, na base de um livre arbítrio absoluto, e sim obedecendo a pautas que já encontram socialmente postas e que enquadram os seus atos. A segunda questão é que essas pautas emergem da sociedade (ser social) que os próprios homens objetivam por intermédio de seus atos de trabalho. Os atos de trabalho são atos teleológicos, porém atos que dão por resultado um ser social que já não se move teleologicamente, mas por causalidade—ou seja, uma infinidade de atos de trabalho conscientemente articulados e realizados para alcançarem produtos e resultados imediatos também conscientemente almejados, desembocam numa totalidade social, regida por leis, agora impressas por essa totalidade enquanto tal, que anulam os objetivos deliberados, trocando-os por resultados que, não obstante serem continua e necessariamente reproduzidos pelos mesmos atos deliberados, se dão por causas não mais conscientes, mas cegas, cujo movimento não obedece a nenhum plano traçado nem pelos homens e nem por qualquer entidade supra-humana. Em terceiro lugar, entre essas pautas, as leis sociais são as que detêm as forças de determinação mais importantes e mais decisivas para o devir do ser social reiteradamente produzido e reproduzido pelos mesmos homens, pois são elas que estabelecem as condições fundamentais para o equilíbrio estrutural da sociedade—o que equivale a dizer que a sociedade, agora agindo sem o comando consciente e geral dos homens, cria, em si e para si, seus próprios mecanismos de equilíbrio, sem os quais ela seria um caos que anularia, no ato mesmo da sua emergência, a sua possibilidade de existência. A quarta questão consiste em que na composição tanto das leis sociais como na das demais pautas da ação humana, as determinações da Natureza (incluindo as leis naturais) jogam um papel de destaque—papel minimizado por pensadores do próprio campo do marxismo que reagiram e reagem às posturas deterministas de uma dialética materialista vulgar. De fato, por mais nobres que sejam as reações e as aversões às versões dogmáticas das visões ou concepções dos marxismos de manuais, não se justificam as concepções que defenestraram as determinações da natureza em nome de um marxismo que se estiolou no erro oposto: o da celebração de uma sociedade humana produzida e reproduzida só pela ação humana. Já é hora de repor as coisas nos seus devidos lugares. A questão seguinte consiste em considerar que essas pautas de que se fala mais acima são produtos também da convivência entre os homens, da mesma maneira vista como totalidade social e ainda que nelas não se façam presentes as determinações naturais—como esta: um homem só, não age ou reage socialmente da mesma maneira que o faz em grupos e classe sociais. Mais ainda, mesmo numa esfera na qual não se encontre nenhuma determinação direta das leis naturais, a ação humana coletiva, ou por outra, a ação humana vista como totalidade, impõe pautas imanentes e que diferem das pautas individuais. Uma outra questão se impõe: para que as sociedades humanas não deságüem em caos, faz-se necessário que essas sociedades não se bastem nas forças estruturais de manutenção do equilíbrio, isto é, que estabeleçam pautas de ordem complementar, pautas superestruturais: as normas consuetudinárias e jurídicas de comportamento e convivência social—de que dão testemunho as Constituições, desde os códigos e as leis gerais da Antiguidade (Hamurabi, Drácon, Sólon) até as atuais, seguidas de suas regulamentações complementares. Uma outra questão merece ser lembrada; trata-se de que, nas diversas formações sociais de classe que permearam o caminho da História, todas as pautas, tanto as estruturais como as superestruturais, têm o selo das relações de produção, portanto, das relações de dominação de uma classe sobre outra(s); e que, em adendo, não obstante esteja o núcleo do poder e da dominação de uma classe sobre a outra nas relações sociais de produção, essas relações não esgotam toda a necessidade e toda a possibilidade de manutenção da ordem—daí a necessidade da complementação da dominação política por meio das formas e pautas superestruturais, que implicam o Estado, as leis, as ideologias, a cultura etc. Neste remate, falta uma última questão a ser levada em consideração: essas pautas só têm validade no âmbito das formações sociais nas quais emergiram ou foram criadas, sendo tão transitórias quanto o são as próprias formações sociais que as contêm. Sua vigência, como sua superação, já não dependem dos atos de trabalho, mas de rupturas revolucionárias que se dão no processo de luta de classes que, inaugurando uma nova formação social, vão criar novas pautas sociais, que seguem sendo pautas de equilíbrio e ainda que emerjam de sociedades onde não mais existam as classes sociais e o Estado.
Para compreender as relações que se estabelecem, mediante o trabalho em primeiríssimo plano, entre o homem e a Natureza não basta ater-se a uma formulação tão esquemática e simples como, por exemplo, esta aqui: a sociedade se baseia, em primeira instância, em leis naturais, só que a essas leis naturais são adscritas, modificando-as e tornando-as mais flexíveis e mais elásticas—portanto não tão exatas como as leis que regem os fenômenos da Natureza (gravitação universal, transformação dos estados dos corpos, etc.)—, um sem-número de contingências de tipos variados e a intervenção humana. Esta, a nosso ver, é ainda uma formulação de caráter mecanicista. O corte ontológico que, em última instância lhe é subjacente, parte do pressuposto de que a sociedade humana é tão natural quanto, por exemplo, o sistema solar; que, portanto, é regida endogenamente por leis tão naturais quanto as que regem, ainda, por exemplo, a gravitação universal, com a diferença de que contingências numerosas e intervenções humanas “apenas” intercederiam, “modificando” o curso natural daquelas leis. Esse tipo de formulação, que esteve no Aristóteles da Polis e da Política seria, hoje, de corte expressamente positivista, ainda que, muitas vezes, apresentada sob o manto de um insustentável disfarce. Nela, a ação humana não produz os fatos sociais, limita-se a interferir sobre eles, sendo este o seu defeito essencial.
Mesmo considerando que a humanidade e a sociedade humana não são nada metafisicamente supra-naturais, e que, portanto, constituem um segmento da manifestação da Natureza—a Natureza munida de consciência—, a sociedade humana não é um sistema ou uma sociedade natural como são os sistemas siderais, ou dos átomos, ou mesmo as sociedades dos outros animais (que agem por instinto ou por meio de uma inteligência apenas rudimentar), mas exatamente uma sociedade humana. O homem tornou-se um ser natural especial (ou seja, um ser especificamente consciente e social) porque pertencia a uma categoria de hominídios que pôde desenvolver, num particular processo de adaptação social a condições e circunstâncias do meio natural, os pressupostos da eclosão da consciência: uma formação corpórea—a locomoção bípede, a mão liberada e em forma de pinça—que o capacitou a construir artefatos de caça, ao exercício de uma forma embrionária de trabalho, obrigando-o a pensar, de que resultou o crescimento do cérebro e, ainda, num tal processo, também, ao desenvolvimento de uma cultura conexa. Ou seja, houve um momento, que deve ter durado milhares de anos, no qual ele se diferenciou dos demais seres naturais e, ao diferenciar-se, tornou-se humano, consciente, um momento em que ele deixava passava de um ser social instintivo para ser um ser social consciente. Em outras palavras, o homem tornou-se homem, isto é, ser especialmente consciente, inteligente e social, por uma senda particular dentre as inúmeras transformações da Natureza. Foi dessa maneira que o homem pôde desenvolver a inteligência—e se não tivesse dessa forma se desenvolvido, o homem jamais poderia compor a Nona Sinfonia.
Portanto, a História dos homens inclui a Natureza e sua história, assim como a história da Natureza inclui a história dos homens, porque a história dos homens, a história social deles, não só foi gerada dentro da história da Natureza, como se desenvolve no interior da história da Natureza e tem, ainda, por tudo isso, um pressuposto: o homem se nutre de sua relação de dominação parcial e gradativa sobre a Natureza pela mediação do trabalho, sendo que é exatamente pela porta do trabalho que o elemento consciente, especificidade da ação humana, entra na relação com a Natureza, vai dar caráter diferenciado e específico à “natureza humana” e, portanto, às leis que a regem dentro da totalidade Natureza.
A mera produção de puros valores de uso ou, inversamente, a produção de mercadorias ou, num plano mais geral ainda, a própria produção e reprodução da vida humana dá-se mediante um processo de produção assentado sobre relações sociais historicamente determinadas, que pressupõem o processo de trabalho como mediação da relação do homem com a Natureza, oferta original de meios e objetos de trabalho. Nesta relação, o próprio homem também aparece como um ser dotado de consciência, atributo que lhe confere uma especificidade de longe diferenciada de todos os demais seres naturais—daí porque os atos sociais dos homens não podem ser vistos como fatos naturais, mas sociais—, o que também não quer dizer que as sociedades humanas estejam por isso isentas de leis, exatamente de leis sociais. A reprodução da própria vida e sociabilidade humanas constitui um processo de co-produção, no qual a Natureza não está ausente e a sua necessária presença jamais pode ser considerada um processo passivo, ainda que cego. É da ligação Homem-Natureza, posta nestes termos, que nascem as leis sociais. Isso nos obriga a compreender o que significam e como são geradas estas leis sociais.
A organização social, como a história social (a organização social em seu movimento específico) é, por sua vez, a organização e a história que os homens desenvolvem, mas que o fazem não como fatos subjetivos e sociais puros, mas sim a partir de elementos naturais incluídos, não meramente adscritos. Se esta base natural for excluída, eliminada, a organização e a história sociais também o serão. As leis sociais também são produto desta ligação.
Para exemplificar, a lei do valor—que é uma lei, e uma lei social, já que o valor é, ele próprio, uma relação produzida pela ação dos homens numa relação social de produção—leva em conta, quer na sua forma imediata, tal como se manifesta numa relação mercantil simples, quer na forma em que aparece mediada pelo preço de produção (quando então o preço se diferencia do valor), na forma mercantil complexa da produção/circulação capitalista desenvolvida, os elementos naturais que estão incluídos na produção da mercadoria e, portanto, na própria mercadoria, como tais ou quais materiais, para cuja transformação são exigidos—e devem ser levados em consideração—tempos de trabalho em quantidades diferenciadas. Com efeito, o valor de cada mercadoria, que constitui a essência do valor de troca (esta última, mera proporção como base para a troca de valores de uso distintos, portanto, forma que representa apenas a aparência, que encobre a primeira, o valor, forma essencial), é representado por trabalho abstrato nela objetivado, e este trabalho abstrato é, no caso de cada mercadoria, a objetivação dos trabalhos abstratos de todos os componentes que entram na sua produção. A grandeza de valor de uma mercadoria é medida, portanto, pela quantidade de trabalho nela objetivado—e tal grandeza só pode ser medida pelo tempo de trabalho nela cristalizado.[4] [36] Naturalmente, dado determinado padrão de técnica produtiva, que representa sempre um determinado estágio da evolução social da produção, a transformação, por exemplo, de uma barra de ferro de uma tonelada em, digamos, parafusos de uma mesma dimensão contém, em função das qualidades físicas do ferro, portanto qualidades naturais (resistência ao atrito, ao corte etc.), mais tempo de trabalho do que, completando o exemplo, a transformação de uma tonelada de alumínio também em parafusos de mesma dimensão. Vê-se claramente, por esse exemplo, que o valor de troca (forma aparente do valor) e o próprio valor, apesar de constituírem relações sociais—e não formas naturais—, todavia não podem fazer abstração, na sua constituição, das qualidades naturais dos valores de uso enquanto suportes materiais das mercadorias. Como todas as mercadorias possuem, por este ângulo de observação, processos constitutivos semelhantes, todas elas possuem, como elemento comum, trabalho abstrato objetivado. Se, entre as diversas formas de valores de uso produzidos pelo homem, não existissem distinções naturais, como as acima comentadas, ou seja, se todos os produtos possuíssem as mesmas características naturais (o mesmo peso, a mesma durabilidade, etc.) e pudessem ser encontrados, coletados, transportados etc., da Natureza, em iguais condições, todos os produtos socialmente produzidos teriam, por unidade de massa, o mesmo tempo de trabalho: 1 grama de ferro, 1 grama de milho, 1 grama de pão, etc., encerrariam a mesma quantidade de trabalho e os tempos de trabalho só difeririam no que respeitasse às diferenças de quantidade—1 grama de pão = 1 grama de ferro, da mesma forma que 10 gramas de pão = 10 gramas de ferro ou 20 gramas de pão = 20 gramas de ferro.
De modo que aquele que pensa a sociedade sem levar em consideração a Natureza e as ligações dela (com suas leis) com a atividade social dos seres humanos, não estará produzindo nada mais do que pura especulação idealista. Quando Marx lembra que uma jornada de trabalho humano possui um limite inferior a vinte e quatro horas, ele está trabalhando com um fator natural que se liga a uma atividade em relação social, na medida em que ninguém pode trabalhar ininterruptamente durante vinte e quatro horas sem que possa dispensar um tempo mínimo para alimentar-se e, pelo descanso, repor forças. De modo inverso, todo aquele que não considerar a autonomia relativa da organização e da história social consciente dos homens, reduzindo-as ao elemento e às leis naturais pura e simplesmente, como se esses processos fossem regidos por leis exclusivamente naturais e mecanicamente estabelecidas, estará agindo, pelo modo oposto, também idealisticamente. .
É esta autonomia relativa que ofusca a mente de determinados pensadores, levando-os a considerar a história e a organização sociais por si mesmas, sem qualquer ligação com as leis e determinações naturais.
Se os seres humanos, agindo socialmente, atuassem desligados da Natureza e, conseqüentemente, das leis da Natureza, aí sim, a sua práxis seria produto de atos exclusivamente volitivos, subjetivos, conscientes—ou inconscientes, inclusive. Mas os seres humanos agem ligados à Natureza; essa ligação se dá, basicamente, por meio do processo de produção e reprodução das condições sociais de subsistência e, portanto, através do processo de trabalho, que é, como Marx o definiu com exatidão, o que media as relações dos seres humanos com a própria Natureza. É desta ligação, mediada pelos processos, também interligados, de produção e trabalho, que nascem as leis sociais—as quais subtraem das sociedades humanas, da práxis humana e da subjetividade humana, a pretensa autonomia absoluta que alguns autores, mesmo entre os marxistas, querem atribuir.
As leis da Natureza são leis cegas e a própria Natureza se movimenta cegamente, vale dizer, sem ação ou plano consciente. O que mantém e preserva a ordem e a evolução da Natureza—e, por extensão, de todo o Universo (a Natureza no seu sentido mais amplo)—são as suas leis, sem as quais qualquer ordem, qualquer sucessão, desta forma sem nexo ou relação causal, não passaria de um caos e de uma indeterminação que tornaria impossível, nos termos e de partida, a possibilidade de existência da própria Natureza e, por extensão, de qualquer tipo de sociedade, a humana incluída. No que diz respeito à sociedade humana, ela seria da mesma forma inviável se constituída apenas de contingências (surpresas em toda a linha) ou de atos e ações puramente subjetivos. No conjunto de uma dada formação social futura, tais ações e iniciativas crescerão enormemente de importância—com elas, a liberdade—, mas não a um ponto em que as leis naturais e (outras) leis sociais deixem de existir. A existência e a transformação da Natureza dependem de uma ordem, e essa ordem só é possível por conta das leis naturais. Aliás, pode-se antecipar a idéia e o princípio mais geral de que qualquer ordem de existência—que pressupõe a sua transformabilidade (por evolução e por ruptura) em outra ordem—pressupõe leis. Sem elas, como já foi dito, não existiriam contingências e nem a ação humana (consciente). A própria revolução, a luta de classes em estado de paroxismo, que é o único método de transformação qualitativa da sociedade e da história, é um processo de mudança, também radical, de leis sociais—ou, se se quiser, de uma ordem por outra ordem. A seguir, pretendemos deixar mais claro porque, a nosso juízo, estas assertivas estão implícitas na seguinte afirmação de Marx, fixada já nos parágrafos iniciais de O 18 Brumário: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.
Voltemos às sociedades humanas. Dizíamos, mais atrás, que as leis sociais, que diferem, obviamente, das leis naturais, são constituídas, com a distinção e a especificidade que lhes são características, como produto da ligação das atividades humanas, através do processo de produção e trabalho, com a Natureza, seus processos e suas leis.
Os homens praticam a agricultura; os homens agem conscientemente ao plantarem, semearem e colherem. São atos, sem dúvida, conscientes, de caráter volitivo, subjetivo, atos que contêm, como disse Engels, uma “finalidade desejada”, como colher trigo, centeio, arroz, milho, frutas, etc., quer para serem imediatamente consumidos como puros valores de uso, quer para serem comercializados como mercadorias e serem consumidos (consumo pessoal ou consumo produtivo) depois. Mas, após plantada a semente, depois de encerrado um determinado lapso de tempo, no qual também se encerra a intervenção do ser humano através do processo de trabalho, o processo de produção continua, agora não só sem a intervenção humana, como totalmente sujeita a leis exclusivamente naturais, como acontece com a germinação da semente ou com a fermentação de bebidas, processos que, por sua vez, estão sujeitos a condições e leis naturais como clima, entre outros, que marcam o ciclo sazonal da produção agrícola. Esse fato foi verdadeiro desde a sociedade primitiva até a sociedade capitalista atual: em todas elas a germinação da semente, por exemplo, requer um tempo destinado ao “trabalho” dos processos e leis naturais.Temos aqui um exemplo mais do que evidente de que a ação de intervenção humana, ao ligar-se com a Natureza, através do processo de trabalho (e produção), assume, na ligação, ritmos, tempos e leis específicas, agora leis sociais, constituídas na imbricação da atividade humana do trabalho (consciente) com leis naturais (cegas). É desta ligação que nascem as determinações e leis sociais da produção e a especificidade das mesmas: são leis e processos objetivados e estruturados porque adquirem necessidade e regularidade em função do elemento natural incluído, e são, ao mesmo tempo, processos e leis especificamente humanas porque adquirem, exatamente por conta da atividade humana, uma esfera que não se caracteriza pela rigidez e exatidão dos processos e das leis naturais. Esta diferença, que não é algo nem simples e nem destituído de importância, se deve a que a ação humana pode mudar e muda, dentro de determinadas condições, circunstâncias e limites—historicamente determinados (pela técnica, pela organização)—, as leis naturais. E muda porque compreende tais leis a age sobre elas.
A intervenção humana crescentemente monitorada pela ciência aplicada aumenta, tendencialmente, a força de determinação da ação consciente e planejada em casos como os atrás examinados, enquanto que, corolariamente, diminui, na razão inversa, a força de determinação das leis naturais, mas certamente não a ponto de redundar numa anulação completa da totalidade desses processos e dessas leis—os quais, de resto, são, como foi dito, processos e leis da produção presentes, conquanto variáveis em função do desenvolvimento da técnica, em todos os modos de produção e estágios de desenvolvimento da humanidade. Em muitos casos, a evolução da ciência e de sua aplicação no processo de trabalho e produção pode até anular a força de determinação desses tipos de processos e leis, aumentando, com isso, o grau de liberdade que deve acompanhar a intervenção consciente dos homens, mas de nenhum modo deve-se esperar que o progresso da técnica leve à anulação de todas as leis e processos, como os examinados mais atrás, na sua totalidade. Com a evolução da técnica, nos termos aqui colocados, o grau de liberdade da ação humana na produção—portanto na esfera do domínio das forças naturais—cresce, mas crescerá muito mais, indubitavelmente, numa formação social futura lastreada em relações sociais de produção e sociabilidade já sem a presença das classes sociais e do Estado. Mas, mesmo nesse caso, que se coloca como perspectiva, a Natureza, sob crescente regime de dominação pelo homem, renovará, em frentes cada vez mais novas e mais amplas de exploração, a sua força de resistência traduzida por novas leis e novos processos a serem igualmente conhecidos para serem domados. Convém não esquecer, por fim, que muitos outros tipos de leis presentes no processo de produção, são tipos de leis especificas do modo de produção capitalista, e que, portanto, desaparecerão com ele—como a lei do valor, a lei da queda tendencial da taxa de lucro, a lei absoluta da acumulação capitalista etc.; mais ainda, que muitas dessas leis tendem a ser parcial ou totalmente anuladas com a crescente desorganização endógena do próprio sistema capitalista em exaustão.
[1] [38] Excerto do Livro, em fase de acabamento, O Processo de Produção do Conhecimento, de nossa autoria (E.C.)
[2] [39] Nesses termos
tem toda procedência a seguinte observação feita por István Mészáros: “O
desenvolvimento da consciência histórica está centrada em torno de três grupos
fundamentais de problemas: 1) a determinação da ação histórica; 2) a percepção
da mudança não como simples lapso de tempo, mas como um movimento de caráter
intrinsecamente cumulativo, implicando alguma espécie de avanço e
desenvolvimento; 3) a oposição implícita ou consciente entre a universalidade e
a particularidade, visando obter uma síntese de ambas, de modo a explicar
historicamente eventos relevantes em termos de seu significado mais amplo que,
necessariamente, transcende sua especificidade histórica imediata”. In, Para
Além do Capital, Editora da UNICAMP e Boitempo Editorial, São Paulo, 2002,
pág. 59. De conformidade com a análise levada a efeito no presente estudo,
todos os “três grupos fundamentais de problemas” que implicam no
“desenvolvimento da consciência histórica”, são da maior pertinência para a
pesquisa histórica como a entendemos, mas, para caracterizar o enquadramento
estrutural dos fatos singulares apropriados pela pesquisa histórica, o terceiro
grupo de problemas é de fundamental importância para exatamente definir a que
formação social tais ou quais fatos recolhidos pelos registros pertenceram—ou
seja, a que universalidade pertenciam
dadas “especificidades históricas imediatas relevantes” passadas, recolhidas
pela “percepção indireta”, isto é, por meio dos registros recolhidos por
descobertas arqueológicas, meras descrições ou análises teóricas feitas por
pensadores do passado.
[3] [40] Excerto, Op. Cit. (E.C.).
[4] [41] Marx, Carlos, El Capital, I, Sección Primera, Capítulo I, Fondo de Cultura Económica, México-Buenos Aires, 1966, pág. 7.
[5] [42] Lukács, G., Posfácio de 1967, Op. Cit., pág. 356.
(Resposta da CCI a alguns argumentos dos comentários sobre O materialismo histórico de Franz Mehring)
Concordamos com a exposição detalhada dos princípios do materialismo histórico, feita pelos "comentários". Estimamos varias insistências e nuances no seu desenvolvimento que demonstram um conhecimento profundo dos conceitos marxistas. Nosso propósito, nesta contribuição, não é de fazer novos comentários[1] [43], mas de exprimir discordâncias considerando a aplicação – feita através dos comentários - do conceito de decadência, no caso do capitalismo.
Para nós, a caracterização desta fase da vida da sociedade é baseada, de maneira restritiva no texto de OPOP, sobre manifestações estritamente econômicas das contradições do capitalismo agindo na sua infra-estrutura, enquanto não são únicas e nem sempre as mais importantes como o ilustra o caso das guerras mundiais. Alem disso, não são todas as contradições econômicas, nem as mais fundamentais, que são evidenciadas pelos comentários.
Tal procedimento resulta numa definição da fase de decadência do capitalismo que não permite levar em conta a ocorrência, no inicio do século XX, de uma simultaneidade de eventos, portanto típicos da abertura de uma fase de decadência:
Ao restringir o conjunto das contradições do modo de produção capitalista, os comentários são levados a concluir que as condições materiais não estavam ainda presentes na época da onda revolucionaria mundial. Ora, nada vem comprovar tal situação nos principais países de Europa, na Alemanha em particular, no momento da primeira onda revolucionaria mundial.
Na realidade, os argumentos empregados deixam pensar que não é principalmente o início da decadência que eles procuram determinar, mas quais são as condições mais favoráveis para a revolução. A propósito disso, é com toda razão que eles colocam em evidência que a crise econômica iniciada há mais de trinta anos é sem retorno possível. Nestas circunstancias, um processo revolucionário se encontraria radicalizado pelo agravamento da crise, o que constitui uma vantagem em relação a onda revolucionaria mundial de 1917-23 cujo desenvolvimento mundial foi freado quando a burguesia colocou um termo final às hostilidades guerreiras.
Alem destas questões, os comentários colocam que o desenvolvimento das forças produtivas é hoje suficiente para satisfazer as necessidades imediatas da humanidade, enquanto não era o caso no momento da onda revolucionaria mundial. Esta questão merece ser discutida à luz do que significa, segundo o marxismo, um desenvolvimento suficiente das forças produtivas que permita a edificação de uma nova sociedade sem escassez.
Junto com uma insistência totalmente justificada, considerando a luta de classe como fator de transformação social – e não, por si, as forças produtivas – a exposição restringe as contradições do capitalismo entre o capital constante e o variavel.
“As rupturas são todas elas promovidas pelas das lutas de classes, personas que correspondem socialmente às condições materiais: a contradição entre o capital (trabalho morto) e o trabalho (trabalho vivo) se manifesta por classes que personificam subjetivamente essa mesma contradição: burguesia de um lado, proletariado de outro. A contradição estrutural está aqui: na relação antinômica entre o capital constante e o variável na c/v, na m/v e na Tl, enquanto a esfera subjetiva dessa contradição na luta de classe entre a persona do capital e a do trabalho”.
A identificação do antagonismo entre o capital constante e o variável é essencial, pois permite colocar em evidência a exploração do operário, a oposição entre o capitalismo e a sociedade comunista:
Mas esta contradição não é a única nem pode ser reduzida, como fazem os “comentários”, a uma proporção entre trabalho vivo e trabalho morto com intento dar ênfase à contradição econômica da queda da taxa de lucro.
É o conjunto das contradições fundamentais do capitalismo que deve ser tomado em conta, na suas inter-relações.
Segundo a tese dos comentários, a redução do trabalho vivo vis-à-vis a expansão do trabalho morto, se expressa de maneira qualitativamente diferente a partir dos anos setenta, determinando a fase final da crise do capitalismo, sob a forma da queda da taxa de lucro. “Análise premonitória, perfeitamente adequada para expressar a crise atual do capital, que tornou os seus pressupostos de crescimento em pressupostos de sua crise: a potencialização da extração da mais-valia levou, no âmbito da crise atual, a uma brusca redução do trabalho vivo vis-à-vis a expansão do trabalho morto e, por aí, a uma queda da taxa de lucro pela redução do exército ativo de produtores de mais-valia e de consumidores de mercadorias”
Mas isso não é verificado pela própria historia do capitalismo, como o ilustram todas as manifestações abertas de suas contradições, crise e guerra, ocorridas entre a Primeira Guerra mundial e os anos setenta.
Não corresponde também à obra de Marx (Ler o nosso artigo Marx, a questão dos mercados e a queda tendêncial da taxa de lucro), nem na letra nem no espírito.
Não vamos desenvolver de novo o assunto aqui. É só lembrar que foi Marx que colocou em evidencia a incapacidade do Capitalismo de constituir o mercado suficiente para a realização da massa crescente de mais-valia correspondendo a sua produção. Ele explicou que, isso, longe de constituir uma contradição exterior ao sistema, resulta fundamentalmente das características da exploração capitalista: o capitalismo paga o trabalho vivo no mínimo que corresponde às necessidades da reprodução da força de trabalho, se bem que as “relações antagônicas de distribuição, [] reduzem o consumo da grande massa da sociedade a um mínimo só modifìcável dentro de limites mais ou menos estreitos.” (O Capital, Livro III)
Não é por acaso se a expressão se, nessa parte da obra de Marx publicada quando era vivo, a crise do capitalismo é materializada pelas crises cíclicas do século XIX resultando da superprodução de mercadorias[2] [44], no Manifesto em particular:
Segundo “os comentários”, a abertura da crise final do capitalismo a partir dos anos setenta corresponde à conclusão de um ciclo na dinâmica econômica : “O equívoco de Engels deu-se a uma ligação linear da situação do capitalismo no final do século XIX com uma fase que só pôde ser alcançada nos anos 1970 para cá. De fato, só hoje o capitalismo (...) completou a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Esta contradição não estava presente antes das décadas de 1970 a 2010—e tanto não estava completada antes que foi possível ao capital realizar um ciclo de onda longa com seus dois momentos: um de crescimento, do pós-guerra aos anos 1970, quando avançou na mundialização da sua ordem como acumulação ampliada à escala mundial, e outro de decadência, dos anos 1970 aos dias de hoje”
No século XIX, as crises cíclicas encontram uma saída na abertura de novos mercados, exteriores à esfera das relações de produção capitalista. A crise perde este caráter cíclico desde que chegamos a uma situação de saturação crônica do mercado mundial. Foi Engel o primeiro a colocar em evidência esta modificação da dinâmica econômica. Ele tinha um conhecimento perfeito dos analises econômicos de Marx, notadamente por ter trabalhado durante anos sobre os manuscritos dos Livros II e III do Capital. Quando, no prefácio da edição inglesa do livro I do Capital (1886), ele sublinha o impasse histórico do modo de produção capitalista, ele não se refere à queda tendêncial da taxa de lucro, é sim à esta contradição sublinhada permanentemente por Marx considerando, de um lado “o desenvolvimento absoluto das forças produtivas” e por outro lado “a limitação no crescimento do consumo final da sociedade”:
E este “lamaçal sem solução de uma depressão permanente e endêmica” a qual se refere, não é outro de que o anuncio premonitório da entrada do capitalismo na sua fase de decadência. Momento que se caracteriza por “uma superprodução crônica”, como diz o próprio Engels no mesmo ano, numa carta para F.K. Wischnewtsky:
Mais uma vez, os comentários não falam, não tomam em conta e nem explicam:
Qualquer que seja a análise das raízes do imperialismo e da guerra mundial, a de Lênin ou a de Rosa, ambas tinham em comum de considerá-los como a expressão das contradições insuperáveis do capitalismo caracterizando uma nova época da vida do capitalismo:
A burguesia de todas as grandes potências tinha plenamente consciência de que suas perspectivas econômicas eram estreitamente ligadas à posse de um império colonial, a fonte de matérias primas baratas e de mercados extracapitalistas. Ora, a repartição não igualitária do bolo imperialista só podia arrastar à guerra potencias como Alemanha que era muito mal dotada, de maneira absoluta e ainda mais em relação a seu potencial comercial. Isso só podia desembocar numa guerra mundial. O cenário da Segunda Guerra mundial não é muito diferente com a diferença que, os mercados sendo mais raros de que da época da Primeira, ela foi principalmente motivada pela pilhagem das riquezas e meios de produção das outras potencias.
De novo, com a aproximação dos primeiros sinais da fase de decadência do capitalismo, manifestadas notadamente pelas tensões crescentes entre as grandes potências e pelos conflitos sem fim na periferia, foi Engels que, com muita presciência, teve a capacidade de perceber a perspectiva de uma Guerra mundial e destacar todas suas implicações. Assim ele escreveu em 1891-92:
“( Comentário 4) ... Estamos convencidos de que só agora, mais particularmente da década de 1970 em diante, com um capitalismo desenvolvido e mundializado à l’outrance, estaria dada concretamente a possibilidade de produzir meios de subsistência com abundância para toda a humanidade. Agora sim, em condições nas quais a classe dominante—a burguesia—não cede seus privilégios e a classe do trabalho tem de tomar o poder como insuportável (até aqui estamos colocando a questão em termos teóricos bem gerais), é possível inaugurar uma sociedade na qual a abundância torne de novo supérflua a divisão da sociedade em classes e o Estado.”
“De fato, só hoje o capitalismo (...) acumulou uma capacidade de produção compatível com as necessidades de toda a população do globo”
Não há dúvida que o contraste enorme existente entre, dum lado, o grau extremamente alto do desenvolvimento das forças produtivas – enquanto existe um desperdício escandaloso destas – e, por outro lado, o desprovimento crescente de uma parte crescente da população mundial, constitui um fator de tomada de consciência da necessidade da revolução comunista.
Estas palavras de Engels, feitas nos “comentários”, são deste ponto de vista, luminosas:
E indubitável que as força produtivas são hoje em dia mais desenvolvidas, de maneira absoluta, de que nunca. Será que disso resulta o caráter mais propício do período atual para a revolução? Isso não tem nada evidente visto que, desde um século, o desenvolvimento das forças produtivas ocorre a preço de danos que chegam ameaçar a vida humana no planeta.
Na realidade, a satisfação das necessidades humanas, imediatas e vitais, pela utilização das forças produtivas desenvolvidas pelo capitalismo, não tem como condição primeira um nível absoluto destas forças produtivas pré-existentes.
O capital criou o potencial para a abundância, mas isso não significa que a abundância apareça, magicamente, no dia seguinte da revolução. Ao contrario, a revolução é uma resposta a uma profunda desorganização da sociedade e, na sua fase inicial, tenderá a intensificar esta desorganização. Como dizem as notas, “torna possível uma era de revoluções—em meio a grandes dificuldades, é certo—como previa Marx em sua síntese magistral.”
O proletariado vitorioso tem à sua frente um enorme trabalho de reconstrução, de educação e de reorganização. É por isso que O Manifesto comunista tem toda razão de falar da necessidade, através proletariado vitorioso, de “multiplicar o mais rapidamente possível a massa das forças de produção”.
Assim, o comunismo torna-se uma possibilidade material permitida pelo desenvolvimento, como nunca, das forças produtivas pelo próprio capitalismo. Mas Marx nao fixa um limite inferior da quantidade destas forças produtivas a ser atingida para pretender a possibilidade de desenvolver uma sociedade comunista. Marx não oferece a visão utópica da abolição imediata de todas as categorias da produção capitalista. Ao contrario, ele sublinha a necessidade de distinguir a fase inferior e a fase superior do comunismo. Falando da fase inferior, ele diz:
Nesta fase, existe ainda a escassez assim como todos os vestígios da normalidade capitalista. É unicamente na fase superior do comunismo, quando for realizada a abundancia para cada um que a sociedade poderá escrever na suas bandeiras “de cada um segundo suas capacidade, a cada um segundo suas necessidades” (Carta circular a Bebel, a propósito do programa de Gota.)
Para o marxismo, uma das diferenças fundamentais entre a revolução burguesa e a revolução proletária, consiste no fato que a primeira acontece só depois de um processo de transformação econômica entre o feudalismo e o capitalismo, transformação que a revolução vem ratificar e celebrar na esfera política. Ao contrario disso, a revolução proletária é necessariamente o início da transformação econômica entre o capitalismo e o comunismo. Nessa transformação econômica, as forças produtivas são desenvolvidas em função das necessidades humanas, enquanto é abolida toda propriedade e suprimida a exploração.
Tal afirmação vem contradizer a análise clássica do movimento operário considerando o significado da Primeira Guerra mundial e da primeira onda revolucionaria mundial que personificaram, não só a indignação e a revolta do proletariado mundial contra a barbárie desta primeira, mas também a sua determinação revolucionaria para derrubar um sistema que, doravante, só pode ser a fonte de uma barbárie crescente. Todas as palavras revolucionárias mais famosas da época vêm colocar em evidência o fato de que a classe burguesa não era mais uma classe progressista. Assim a Internacional comunista :
Já vimos que “os comentários” não consideram as duas guerras mundiais e a crise dos anos trinta como elementos significativos de uma mudança profunda na vida da sociedade, resultado do fato que o desenvolvimento das forças produtivas se encontrou travado como nunca pelas contradições na superestrutura. Com a mesma lógica e ao contrario do movimento revolucionário nessa época, “os comentários” não atribuem à Primeira Guerra a significação de colocar em questão a própria capacidade da burguesia de manter seu sistema de exploração.
Contras as objeções “clássicas” (não necessariamente partilhadas pelos “comentários”) feitas à análise clássica do movimento operário, achamos essencial fundar esta análise através das respostas às três questões seguintes:
O uso da coerção, embora seja uma condição indispensável para manter uma relação de dominação de classe, não é suficiente. Há necessidade de uma ideologia, a da classe dominante, que seja capaz de dar um fundamento a esta dominação diante do conjunto da sociedade. Ora, quanto mais um sistema econômico assegura uma prosperidade e uma segurança crescentes, os homens adotam as idéias que justificam sua existência como sistema dominante. Em condições de extensão econômica, as injustiças das relações econômicas podem aparecer como “maus necessários”. A burguesia se encontrou em tal situação na segunda metade do século XIX e no começo do século 20, com a combinação do desenvolvimento das forças produtivas e das melhoras das condições operárias no seio do próprio sistema.
É fundamentalmente a mesma idéia que é exprimida pelo Manifesto comunista (embora quando foi escrito, em 1848, houve uma sub-estimação da capacidade da burguesia de fortalecer sua dominação sobre a sociedade graças à fase de desenvolvimento econômico que ocorreu depois, durante mais de 50 anos):
Como pensar que a guerra de 1914, pelo horror, a barbárie e a miséria que ela espalhou no planeta não tinha mudado profundamente as condições de manutenção da exploração, exatamente como o comprovou a tentativa revolucionaria mundial. E o fato da guerra acabar, não implicou uma dinâmica econômica, nem uma evolução da situação da classe operaria comparáveis à que prevaleceu antes da guerra.
Pelas conseqüências da Primeira Guerra mundial, a burguesia deixou de aparecer como uma classe progressista. Apesar de intensas campanhas ideológicas da sua parte apoiando-se em particular sobre a exceção constituída pela fase de prosperidade depois da Segunda Guerra mundial, ela não conseguiu voltar aos anos de ouro que precederam a Primeira Guerra mundial, ilustrando assim que o desenvolvimento das forças produtivas estava doravante freado pelas relações de produção capitalista.
No mesmo tempo, a evolução da classe operaria, esta força produtiva encarregada do papel de coveiro do capitalismo, comprovava a abertura de uma “época de guerras e revoluções”. Assim, essa época foi a do surgimento do proletariado no cenário social mundial, como uma força capaz de derrubar o poder da burguesia. Já em 1893 Engels tinha colocado em evidencia a importância do desenvolvimento da classe operária:
Um pouco mais de 10 anos depois, aconteceu a revolução de 1905 na Rússia. Pela primeira vez, o proletariado faz surgir os órgãos unitários de seu poder político, os conselhos operários. Ele comprova assim que seu processo de conformação tinha acabado, ao existir como classe que não tinha mais nada ver com suas origens camponeses e pequeno-burgueses, dotada da consciência de si, capaz de se auto-organizar por si mesma.
A partir de 1917, foi de maneira mais maciça, consciente e na escala internacional que esta classe se manifestou de novo como ator social capaz de mudar a sociedade, se organizado em conselhos operários em vários países, principalmente Rússia de novo, Alemanha, Hungria, ..e conseguindo tomar o poder político na Rússia.
O fato de o proletariado ter sido derrotado não comprova , a posteriori, a imaturidade das condições objetivas para a revolução. Nenhum elemento de analise desta derrota vem ilustrar e comprovar esta tese. A situação na Rússia era contrastada com um proletariado avançado, concentrado e uma industria moderna com unidades de produção enormes, mas também, por outro lado, uma multidão de camponeses incultos. Mas é mundialmente que se avaliam as condições da revolução, e principalmente nos países mais desenvolvidos como Alemanha. E é justamente na Alemanha que a revolução mundial sofreu uma derrota que se revelou fatal. Na realidade, esta derrota foi o produto da imaturidade das condições subjetivas que se expressou notadamente sob a forma da subestimação, nas massas operárias, da natureza de classe da social-democracia depois de sua traição do internacionalismo proletário em 1914. Foi por conta desta falta de lucidez nas fileiras do proletariado alemão, que a social-democracia pôde se encarregar de infligi-lo uma derrota fatal.
Diante do fracasso da onda revolucionária, o fatalismo foi o método da corrente conselhista (que nao é o dos “comentários”), quando dizia “se a revolução russa passou a ser capitalismo de estado, é porque não podia resultar em outra coisa”. O fatalismo sempre tem como função a aceitação da ordem existente. O marxismo sempre combateu simultaneamente tal submissão diante da realidade e as concepções voluntaristas e idealistas. Na sua análise da derrota da comuna de Paris, por exemplo, Marx soube perceber o peso da imaturidade das condições materiais que o capitalismo tinha desenvolvido em 1871. Entretanto, seria errado considerar que todos os acontecimentos sociais podem ser explicados necessariamente “pelas condições materiais”. Em particular, a consciência que os homens e mais particularmente as classes sociais têm destas condições materiais não são um simples “reflexo”, mas passam a ser um fator ativo da sua transformação. Assim, como diz o próprio Marx no prefácio do Capital:
Por conta dos acontecimentos históricos serem os produtos, não somente das condições econômicas da sociedade, mas também do conjunto dos fatores “superestruturais”, da interação complexa entre estas diversas determinações nas quais até o “azar” (quer dizer os elementos arbitrários e não previsíveis) entram em consideração, a história não pode ser concebida como o simples desencadeamento de um “destino” que seria escrito uma vez por todas.
Neste sentido, apoiamos totalmente a idéia que: “Segundo a concepção materialista da história, o fator determinante na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida real” (Engels ; Carta do 21 de setembro 1890 para J. Block). Encontramos a mesma insistência nos “comentários”: “O próprio Engels, numa carta feita a Mehring, na qual chancela o livro desse, faz uma autocrítica de um defeito em formulações passadas, suas e de Marx, a respeito desta questão:
No processo histórico, a consciência pode agir como uma força material.
Quais são a circunstancias mais favoráveis da revolução:
a guerra ou a crise econômica aberta?
Embora o período dos anos setenta não possa, de nosso ponto de vista, ser caracterizado pela abertura da fase de decadência do capitalismo, isso não significa que ele não apresenta especificidades que devam ser tomadas em conta para analisar o desenvolvimento da luta de classes. A derrota do proletariado que colocou um termo final à primeira onda revolucionaria mundial foi tão importante que abriu um período de contra-revolução tão profunda que lhe impediu qualquer nova tentativa revolucionária diante da crise econômica de 1929 e dos anos trinta, e frente à Segunda Guerra mundial. O fim deste período de contra-revolução foi celebrado pela retomada da luta de classe internacional, iniciado pelo maio de 68 na França. Esta retomada da luta foi o produto da volta da crise aberta do capitalismo, no fim dos anos sessenta. A perspectiva atual é o produto da existência simultânea destes dois fatores:
A burguesia não pode parar a fase atual da crise econômica. Ela nem pode dominá-la momentaneamente por meio de medidas de capitalismo de estado que utilizou nos anos trinta e esgotou nos anos pós-guerra mundial. É A grande diferença entre a situação atual e a da Primeira Guerra mundial, em que o processo revolucionário resultou da guerra, mas perdeu sua dinâmica de extensão mundial quando a burguesia colocou um termo final à guerra. Deste ponto de vista, hoje em dia, as condições da futura revolução (se houver) são mais favoráveis de que depois da Primeira Guerra mundial. Mas, só deste ponto de vista, pois outros fatores, que são a conseqüência de um século de decadência, constituem obstáculos importantes no caminho da edificação de uma sociedade comunista.
Com efeito, o declínio de uma sociedade não é o fim de toda evolução. A decadência é um movimento, que se caracteriza por deslizamento em direção da catástrofe e da autodestruição. Como duvidar que a sociedade capitalista do século 20, que consagrou mais forças produtivas com finalidades da guerra e da destruição de que qualquer formação social anterior, não tenha chegado a constituir uma ameaça para a perpetuação da vida na Terra.
Esta conclusão não é motivada pelos “comentários” mas por algumas preocupações que se expressaram nas discussões com a Oposição Operária.
O começo do século XX corresponde à mudança de um conjunto de fatores determinantes na vida da sociedade, todos típicos da entrada na fase de decadência de um sistema:
O período iniciado com os anos setenta é uma fase particular no seio da decadência do capitalismo. Ela corresponde globalmente à volta da crise econômica aberta do sistema (que na realidade voltou a se manifestar no fim dos anos sessenta, o que explica o desenvolvimento da classe a partir de 1968).
Os revolucionários precisam fundamentar todos os aspectos da sua intervenção, considerando particularmente a mudança da natureza dos sindicatos, a impossibilidade continuar utilizando o parlamento, etc., sobre uma coerência histórica sólida. Ora, confundir uma fase particular da decadência com o período da decadência só pode enfraquecer uma tal coerência. Para podermos extrair todos os ensinamentos da maior experiência revolucionária do proletariado, que foi a onda revolucionária mundial de 1917-23, temos que entendê-la plenamente como uma tentativa que obrigou a burguesia mundial a mobilizar todas as suas forças para salvar o seu sistema de dominação. Para poder plenamente colocar em evidência as causas reais que explicam a derrota e ultrapassá-las nos futuros combates revolucionários, longe de considerar essa tentativa revolucionaria como um ato prematuro da luta de classe que não podia ter êxito por conta da imaturidade das condições objetivas, temos que procurar sem preconceito essas causas nas fraquezas da consciência da classe operária naquela época.[1] [45] Numa próxima discussão, tal vez seja necessário discutir mais a fundo desta proposição do "comentário 9": "Em que consiste a simplificação entre as causas motoras da História e os efeitos dessas causas que, segundo Engels, permitiu a visibilidade dos interesses e das respectivas posições de classes modernas? Em que essa nova visibilidade era mais simplificada e, portanto, mais visível do que as inter-relações, nos mesmos termos de classes, do que as existentes nas sociedades da Antiguidade greco-romana entre Nobreza e escravos ou, na Alta Idade Média, entre Nobreza e servos? Temos dúvidas se a polarização entre burguesia/proletariado é mais “simplificada”—portanto mais visível—de que a polarização nobreza/escravo ou senhor/servo; e se as “inter-relações” das socialidades pré-capitalistas—alienação religiosa, etc.—eram mais opacas do que as da capitalista. Talvez o que aconteceu no capitalismo é que o confronto entre as duas classes fundamentais—burguesia/proletariado—tenha sido mais forte, mais presente, portanto mais visível, de que os confrontos anteriores. Aí sim, e a própria Comuna—fato que nenhuma classe dominada da História logrou (até porque nenhuma delas poderia ter um projeto desse calibre)—deu essa visibilidade. Não há dúvidas de que no capitalismo as relações sociais—como as que envolvem o fetiche, o estranhamento, etc.—são muito mais opacas do que as anteriores."
Para nós, as respostas dadas no Manifesto comunista a estas dúvidas são luminosas: "A burguesia desempenhou na história um papel altamente revolucionário. A burguesia, lá onde chegou à dominação, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem misericórdia todos os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível "pagamento a pronto". Afogou o frêmito sagrado da exaltação pia, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa, na água gelada do cálculo egoísta. Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, de comércio. Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, pôs a exploração seca, direta, despudorada, aberta. A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as atividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela. A burguesia arrancou à relação familiar o seu comovente véu sentimental e reduziu-a a uma pura relação de dinheiro. A burguesia pôs a descoberto como a brutal exteriorização de força, que a reação tanto admira na Idade Média, tinha na mais indolente mandriice o seu complemento adequado. Foi ela quem primeiro demonstrou o que a atividade dos homens pode conseguir. Realizou maravilhas completamente diferentes das pirâmides egípcias, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas, levou a cabo expedições completamente diferentes das antigas migrações de povos e das cruzadas." O que obscurece no capitalismo, é o fetichismo da mercadoria. Sem subestimar sua força, ele tem na sua frente a teoria revolucionária, em particular sob a forma do Capital.
[2] [46] A contradição, bem real, constituída pela queda tendêncial da taxa de lucro aparece somente nos textos reconstituídos por Engels a partir das notas de Max.
Ligações
[1] https://pt.internationalism.org/tag/1/1/Materialismo-hist%C3%B3rico-Marxismo
[2] https://pt.internationalism.org/tag/1/2/decad%C3%AAncia-do-capitalismo
[3] https://pt.internationalism.org/icconline/2006/debate_OPOP_CCI_materialismo_historico.htm#_ftn1
[4] https://pt.internationalism.org/icconline/2006/debate_OPOP_CCI_materialismo_historico.htm#_ftn2
[5] https://pt.internationalism.org/icconline/2006/debate_OPOP_CCI_materialismo_historico.htm#_ftn3
[6] https://pt.internationalism.org/icconline/2006/debate_OPOP_CCI_materialismo_historico.htm#_ftnref1
[7] https://pt.internationalism.org/icconline/2006/debate_OPOP_CCI_materialismo_historico.htm#_ftnref2
[8] https://pt.internationalism.org/icconline/2006/debate_OPOP_CCI_materialismo_historico.htm#_ftnref3
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