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Pode o leninismo ser identificado com o militante Lênin?

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O "leninismo": uma criação do stalinismo - Lênin: um combatente da classe operária

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O artigo que publicamos é uma adaptação da primeira parte de um artigo (não traduzido em português) publicado em duas partes nos números 96 e 97 da Revista Internacional (1999), sob o titulo de Nós passamos a ser leninistas?[1]

Desde o final dos anos 1960, quando se formaram os grupos políticos que iriam logo constituir a CCI em 1975, nós temos enfrentado sempre uma dupla crítica.

Para uns, constituídos geralmente pelas diferentes organizações denominadas "Partido Comunista Internacional", descendente da Esquerda italiana, nós seriamos idealistas no que refere à consciência de classe e anarquistas enquanto a organização política.

Para outros, em geral vindos do anarquismo ou da corrente conselhista, a qual rechaça, ou subestima, a necessidade da organização política e do partido comunista, nós seríamos "partidaristas" ou "leninistas".

Os primeiros baseiam sua afirmação no nosso rechaço da posição "clássica" do movimento operário sobre a tomada do poder pelo partido comunista na época da ditadura do proletariado e na nossa visão não monolítica do funcionamento da organização política. Os segundos rechaçam nossa visão rigorosa do militantismo revolucionário e nossos esforços incessantes pela construção de uma organização internacional unida e centralizada.

Hoje, outra crítica do mesmo tipo que a dos conselhistas, porém mais virulenta, está se desenvolvendo: a CCI estaria em plena degeneração, havia se tornado "leninista".

Nós passamos a ser leninista com afirmam nossos críticos e denunciadores ? Essa é uma grave acusação que temos de contestar. E para fazer com seriedade temos, primeiro que deixar claro do que está se falando. Que é o "leninismo" ? Que tem representado para o movimento operário?

O "leninismo" e Lênin

O "leninismo" aparece ao mesmo tempo que o culto a Lênin, quando este morreu. Doente a partir de 1922, sua participação na vida política diminuiu até a sua morte em janeiro de 1924. O refluxo da onda revolucionária internacional, que havia conseguido parar a Primeira Guerra mundial, e o isolamento do proletariado na Rússia foram as causas fundamentais do desenvolvimento da contra-revolução no país. As principais manifestações desse processo foram a aniquilação do poder dos conselhos operários e de toda vida proletária no seu seio, a burocratização e a ascensão do estalinismo na Rússia e, muito especialmente, no seio do Partido bolchevique no poder. Os erros políticos, dramáticos às vezes (especialmente a identificação do partido e do proletariado com o Estado russo, que justificou a repressão de Cronstadt, por exemplo) desempenharam um papel muito importante no desenvolvimento da burocracia e do estalinismo. Lênin não está livre de crítica, embora foi muito constantemente o mais decidido para opor-se a burocratização como ocorreu em 1920 - contra Trotsky e uma grande parte dos dirigentes bolcheviques que propugnavam a militarização dos sindicatos - ou como no último ano da sua vida quando denuncia o poder de Stálin e propôs a Trotsky, nos finais de 1922, formar uma aliança, um bloco como o chamava ele, "contra o burocratismo em geral e contra o comitê de organização em particular [nas mãos de Stálin][2]. Uma vez aniquilada sua autoridade política com o seu desaparecimento, a tendência burocrática contra-revolucionária desenvolve o culto a personalidade[3] em torno de Lênin : mudaram o nome de Petrogrado para Leningrado, mumificam seu corpo e sobretudo criam a ideologia do "leninismo" e do "marxismo leninismo". Se tratou, para o trio formado por Stálin, Zinoviev e Kamenev, de apropriar-se a "herança" de Lênin como arma contra Trotsky no seio do partido russo e para apoderar-se por completo da Internacional comunista (IC). A ofensiva stalinista, para controlar os diferentes partidos comunistas, concentrou-se em torno da "bolchevização" desses partidos e a exclusão dos militantes que não se dobraram diante da nova política..

O "leninismo" é a traição a Lênin, é a contra-revolução

Em 1939, na sua biografia de Stálin, Boris Souvarine[4], sublinha a ruptura entre Lênin e o "leninismo" : "Entre o antigo "bolchevismo" e o novo "leninismo", não há continuidade, propriamente falando "[5]. É assim como define o "leninismo" : "Stálin se auto-proclamou primeiro autor clássico do leninismo com seu folheto Fundamentos do leninismo, série de conferências lidas para os "estudantes vermelhos" da universidade comunista de Sverdlov, em princípios de abril de 1924. Nessa trabalhosa compilação na qual as frases sublinhadas alternam com as citações, se procura em vão o pensamento crítico de Lênin. Todo o ativo, relativo, condicional e dialético na obra referenciada se converte em algo passivo, absoluto, catequista e, além do mais, repleto de contra-sensos "[6].

O "leninismo" é a "teoria" do socialismo em um só país, totalmente oposto ao internacionalismo de Lênin

O advento do "leninismo" significou a vitória do caminho oportunista que a IC havia tomado desde o seu IIIº Congresso, sobre tudo pela adoção da tática de Frente única e a consigna de "ir as massas" num momento em que o isolamento da Rússia revolucionária estava vivendo cruelmente. Os erros dos bolcheviques foram um fator negativo que favoreceu esse caminho oportunista. Entretanto, temos que recordar aqui que a posição falsa de que "o partido exerce o poder" era até então a de todo o movimento revolucionário, inclusive Rosa Luxemburgo e a esquerda alemã. Somente no início dos anos 20 que o KAPD começa a colocar em evidência a contradição que é para o partido revolucionário estar no poder e identificar-se com o novo Estado surgido da insurreição vitoriosa.

Foi contra essa gangrena, oportunista primeiro e logo abertamente contra-revolucionária, que surgiram e se desenvolveram as diferentes oposições. Entre estas as mais conseqüentes foram as diferentes oposições de esquerda, russa, italiana, alemã e holandesa, que se mantiveram fieis ao internacionalismo e a Outubro de 1917. Por ir contra ao crescente caminho oportunista da IC, umas após outras foram sendo excluídas dela ao longo dos anos 20. Os que conseguiram permanecer nela, se opuseram com todas as suas forças às conseqüências práticas do "leninismo", que dizer, a política de "bolchevização" dos partidos comunistas. Combateram, especialmente a substituição da organização em seções locais - que significava com uma base territorial, geográfica - por outra em células de fábrica e empresa que acabou agrupando os militantes em bases corporativistas e contribuindo em esvaziar os partidos de toda vida realmente comunista feita com debates e discussões políticas de todo tipo.

A imposição do "leninismo" agudizou o combate entre o estalinismo e as oposições de esquerda. Veio acompanhada do desenvolvimento da ideologia do "socialismo num só país", que é uma ruptura total com o internacionalismo intransigente de Lênin e da experiência de Outubro. Marca a aceleração do caminho oportunista até a vitória definitiva da contra-revolução. Com a adoção no seu programa do "socialismo em um só país" e o abandono do internacionalismo, a IC - como Internacional - morre definitivamente no seu VIº Congresso em 1928.

O "leninismo" : uma ideologia para estabelecer uma divisão entre Lênin e Rosa Luxemburgo, entre a fração bolchevique e as demais esquerdas internacionalistas

Em 1925, o Vº Congresso da IC adotou as "Teses sobre a bolchevização", que expressam o controle crescente da burocracia estalinista sobre os PC e a IC. Produto da contra-revolução stalinista, a bolchevização é, no plano organizativo, o transmissor da degeneração acelerada dos partidos da IC. A utilização crescente da repressão e do terror de Estado na Rússia e da exclusão nos demais partidos é expressão da violência e da ferocidade da luta. Para o estalinismo, existia todavia nesse momento, o perigo de que se formasse uma forte oposição em torno da figura de Trotsky, único capaz de agrupar a maior parte das energias revolucionárias. Essa oposição combate com força a política do oportunismo e tinha a capacidade de rivalizar com o estalinismo, com possibilidades de êxito, para tomar a direção de partidos como os exemplos da Itália e Alemanha o demonstraram.

Um dos objetivos da "bolchevização" é pois a de levantar uma barreira entre Lênin e as demais grandes figuras do comunismo pertencentes as demais correntes de esquerda, especialmente entre Lênin e Trotsky evidentemente, porém também com Rosa Luxemburgo : "Uma verdadeira bolchevização é impossível sem vencer os erros do luxemburguismo. O "leninismo" deve ser a única bússola dos partidos comunistas do mundo inteiro. Tudo que se afaste do "leninismo", se afasta do marxismo"[7]

Reconhecemos no estalinismo a primazia de ter rompido o vínculo e a unidade entre Lênin e Rosa Luxemburgo, entre a tradição bolchevique e as demais esquerdas surgidas da IIª Internacional. Seguindo os passos do estalinismo, os partidos da social-democracia participaram também em levantar uma barreira intransponível entre "a bondosa e democrática" Rosa Luxemburgo e o "malvado e ditatorial" Lênin. Esta política não pertence hoje só ao passado. Hoje, o que sempre há representado a unidade entre esses dois grandes revolucionários é objeto de ataques. As saudações hipócritas a clarividência de Rosa Luxemburgo por... suas críticas à Revolução russa e ao partido bolchevique são constantemente lançadas pelos descendentes políticos diretos dos seus assassinos social-democratas, ou seja, os partidos socialistas de hoje. E especialmente pelo partido socialista alemão, provavelmente porque Rosa Luxemburgo era... alemã. Uma vez mais fica confirmada a aliança de interesses comuns entre a contra-revolução stalinista e as forças "tradicionais" do capital. Comprova-se, em particular, a aliança entre a social-democracia e o estalinismo para falsificar a história do movimento operário e destruir o marxismo (...):

"Que doloroso espetáculo para os militantes revolucionários ver os assassinos dos maestros da revolução de outubro, passados aliados dos assassinos dos espartaquistas ousar comemorar a morte dos dirigentes proletários. Não, não tem nenhum direito de falar de Rosa Luxemburgo, cuja vida se construiu na intransigência e na luta contra o oportunismo, na firmeza revolucionária, aqueles que, de uma traição a outra, acabaram sendo hoje a vanguarda da contra-revolução internacional" [8]

Ambos Rosa Luxemburgo e Lênin pertencem ao campo revolucionário !

Por desgraça, a maioria das correntes e grupos proletários[9] pecam pela sua falta de claridade política. Por suas debilidades teóricas e erros políticos, o conselhismo aporta seus tijolos à parede que alguns tentam construir entre o partido bolchevique e as esquerdas alemã e holandesa, entre Lênin de um lado e Rosa Luxemburgo do outro. E o mesmo ocorre com grupos bordiguistas, e inclusive com o Pcint Battaglia Comunista, os quais, também por conta das suas debilidades teóricas (para não falar de aberrações como ocorre com a teoria da "invariabilidade" dos bordiguistas), são incapazes de perceber o que está em jogo na defesa tanto de Lênin e Luxemburgo como de todas as frações de esquerda surgidas (e saídas) da IC.

O que importa se lembrar de Lênin e de Luxemburgo e, mais além das suas pessoas, do partido bolchevique e das demais esquerdas no seio da Segunda Internacional, é a unidade e a continuidade do seu combate. Apesar dos debates e das divergências, sempre estiveram do mesmo lado da barricada frente a questões essenciais quando o proletariado se encontrou em situações decisivas. Foram os líderes da esquerda revolucionária no congresso de Stuttgard da Internacional socialista (1907), durante a qual apresentaram uma emenda à resolução sobre a atitude dos socialistas, que os chamava a "utilizar por todos os meios a crise econômica e política que provocaria uma guerra para despertar o povo e acelerar assim a queda da dominação capitalista", Lênin confiou o mandato do partido russo a Rosa Luxemburgo na discussão sobre esse tema. Fieis ao seu combate internacionalista nos seus respectivos partidos, estiveram contra a guerra imperialista : a corrente de Rosa Luxemburgo, os espartaquistas, participaram com os bolcheviques e Lênin nas conferências internacionais de Zimmerwald e Kienthal (1915 e 1916). E seguiram juntos, com todas as esquerdas, entusiastas e unânimes no apoio a revolução russa:

"A revolução russa é o acontecimento mais prodigioso da guerra mundial (...) Ao ter apostado a fundo sobre a revolução mundial do proletariado, os bolcheviques tem dado a prova patente da sua inteligência política, da firmeza dos seus princípios, da audácia de sua política. (...) O partido de Lênin tem sido o único que tem compreendido as exigências e deveres que incubem a um partido verdadeiramente revolucionário para assegurar a continuidade à revolução lançando a consigna : "todo poder nas mãos do proletariado e do camponês". [Os bolcheviques] têm definido imediatamente como objetivo dessa tomada do poder, o programa revolucionário mais avançado na sua integralidade : não se tratava de apontar a democracia burguesa, e sim instaurar a ditadura do proletariado para realizar o socialismo. Têm assim adquirido frente a história o mérito imperecível de haver proclamado pela primeira vez os objetivos últimos do socialismo como programa imediato de política prática"[10].

Será que isso quer dizer que não havia divergências entre essas duas grandes figuras do movimento operário? Claro que havia. Significa isso que haveria de ignorá-las? Muito menos. Para abordá-las e poder tirar o máximo de lições, temos que saber reconhecer e defender o que une estes revolucionários. E o que os une, é o combate de classe, o combate revolucionário conseqüente contra o capital, a burguesia, e todas as suas forças políticas. O texto de Rosa Luxemburgo que acabamos de citar é uma crítica sem concessões à política do partido bolchevique na Rússia. Porém toma o cuidado de evidenciar o marco em que deve se compreender essas críticas: no da solidariedade e da luta comum com os bolcheviques. Ela denuncia violentamente a oposição dos mencheviques e de Kautsky à insurreição proletária. E para evitar qualquer equívoco sobre a sua posição de classe, toda desvirtuação em seu propósito termina assim : "Na Rússia, só se poderia delinear o problema. Porém não podia resolver-se na Rússia. Nesse sentido, o futuro pertence ao 'bolchevismo' ".

A defesa dessas personalidades e da sua unidade de classe é uma tarefa que a tradição da esquerda italiana nos legou e que nós vamos prosseguir. Lênin e Rosa Luxemburgo pertencem ao proletariado revolucionário. Assim é como a Fração italiana da Esquerda comunista compreendia a defesa desse patrimônio contra o "leninismo" stalinista e a social-democracia:

"Porém juntamente à figura genial do dirigente proletário (Lênin) também se reconhecem tão importantes como ele as figuras de Rosa Luxemburg e Karl Libknecht. Produtos de uma luta internacional contra o revisionismo e o oportunismo, expressão de uma vontade revolucionária do proletariado alemão, nos pertencem e não a quem queira fazer de Rosa a bandeira contra Lênin e do antipartido ; de Liebknecht o agitador de um antimilitarismo que se expressa na realidade no voto dos créditos militares nos diferentes países "democráticos" "[11]

Não contestamos ainda a acusação de haver mudado de posição sobre Lênin. Porém o leitor poderá concretamente, dar-se desde já perfeita conta de que nós estamos em total oposição ao "leninismo". E que nós mantemos fiéis a tradição das frações de esquerda das quais nos reivindicamos, especialmente da fração italiana dos anos 30.

Procuramos colocar em prática a cada momento que seja necessário o método que consiste em lutar pela defesa e a unidade da continuidade histórica do movimento operário. Contra o "leninismo" e todas as tentativas de dividir e opor as diferentes frações marxistas do movimento operário, nós lutamos pela defesa da sua unidade. Contra a oposição abstrata e mecânica feita baseando-se em umas quantas citações extraídas do seu contexto, restituímos as condições reais nas quais foram elaboradas as posições, sempre nos baseando nos debates e polêmicas no seio do movimento operário. Quer dizer : no mesmo campo.

Esse é o método que o marxismo tem procurado aplicar sempre, método que é tudo ao contrário do "leninismo".

A esquerda holandesa, Pannekoek e Gorter também pertencem ao campo revolucionário !

Os adeptos contemporâneos da "metodologia" do "leninismo" podem ser identificados com facilidade em diferentes âmbitos. Está em moda, até no campo internacionalista, nos círculos anarco-conselhistas (...), tentar apropriar-se fraudulentamente da esquerda holandesa, opondo-a a outras frações da esquerda e a Lênin, evidentemente. Por sua vez, da mesma maneira que Stalin e o seu "leninismo" traíram Lênin, esses elementos traem a tradição da Esquerda holandesa e das suas grandes figuras como a de Anton Pannekoek, a quem Lênin saúda com respeito e admiração no Estado e a revolução, ou a de Herman Gorter, que traduziu imediatamente, em 1918, essa obra já clássica do marxismo. Antes de ter desenvolvido a teoria do comunismo de conselho nos anos 30, Pannekoek foi um dos militantes mais eminentes da ala esquerda marxista na IIª. Internacional, junto com Rosa Luxemburg e Lênin e continuou sendo durante toda guerra. É mais fácil excluir Pannekoek do campo proletário, por causa das suas críticas conselhistas contra os bolcheviques a partir de 1930, que alguém como Bordiga, e por isso aquele continua sendo hoje objeto de especial solicitude para acabar apagando todas recordações da sua adesão a IC, da sua participação de destaque em primeiro plano na construção do Burô de Amsterdan para o ocidente e seu entusiasmo e decidido apoio a Outubro de 1917. Igualmente as frações da esquerda italiana e russa no seio da IC, as esquerdas holandesas e alemãs pertencem ao proletariado e ao comunismo. E quando nos reivindicamos de todas as frações da esquerda saídas da IC, o que fazemos é retomar também ao método utilizado pela esquerda holandesa bem como todas as esquerdas:

"A guerra mundial e a revolução que ocasionou, têm demonstrado de maneira evidente que só há uma tendência no movimento operário que conduza de verdade os trabalhadores ao comunismo. Só a extrema esquerda dos partidos social-democratas, as frações marxistas, o partido de Lênin na Rússia, de Bela Kun na Hungria, de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht na Alemanha tem encontrado o único e bom caminho.

[isto é]A tendência que sempre teve como objetivo a destruição do capitalismo pela violência e que, na época da evolução e do desenvolvimento pacífico, usava a luta política e a ação parlamentar para a propaganda revolucionária e a organização do proletariado; aquela que, agora faz uso da força do Estado pela revolução. A mesma tendência que tem encontrado o caminho para quebrar o Estado capitalista e transformá-lo em Estado socialista, que tem encontrado também o meio pelo qual se constrói o comunismo : os conselhos operários, que englobam em si mesmo todas as forças políticas e econômicas; a tendência que descobriu finalmente que a classe ignorava até agora e que está estabelecido para sempre : a organização mediante a qual o proletariado pode vencer e substituir o capitalismo"[12]

Inclusive depois da exclusão do KAPD da IC em 1921, continuaram a mantendo-se fiéis aos seus princípios e solidários com os bolcheviques:

"Nos sentimos, apesar da exclusão da nossa tendência pelo congresso de Moscou, totalmente solidários com os bolcheviques russos (...) permanecemos solidários não só com o proletariado russo como também com os seus chefes bolcheviques, embora havemos de criticar da maneira mais veemente sua conduta no seio do comunismo internacional"[13].

Quando a CCI reivindica e defende a unidade e a continuidade "das contribuições sucessivas da Liga dos Comunistas de Marx e Engels (1847-52), das três Internacionais (a Associação Internacional dos Trabalhadores, 1864-72, a Internacional Socialista, 1884-1914, a Internacional Comunista, 1919-28), das frações de esquerda que se libertaram, nos anos 1920-30, das Terceira Internacional durante sua degeneração, em particular as Esquerdas Alemã, Holandesa e Italiana", o que a CCI faz é manter-se fiel a tradição marxista no seio do movimento operário, inscrevendo-se na luta unida e permanente da ""tendência" que definia Gorter, das frações de esquerda no seio da IIª e IIIª Internacionais. Permanecemos assim fiéis a Lênin, a Rosa Luxemburgo e à tradição das frações de esquerda dos anos 30 e, em primeiro lugar, à revista Bilan.

O combate de Lênin pela construção do partido

Uma vez rechaçada a acusação de "leninismo", temos que responder a perguntas mais sérias: haveríamos abandonado o nosso espírito crítico a respeito de Lênin sobre a questão da organização política? Tem havido uma mudança de posição da CCI sobre Lênin, especialmente em matéria de organização, sobre a questão do partido, de seu papel e do seu funcionamento? Nós não vemos por onde haveria uma ruptura na posição da CCI sobre a questão organizativa e a respeito de Lênin, entre a CCI dos seus princípios nos anos 70, e a de 1998.

Continuamos mantendo que estamos de acordo com o método utilizado e com a crítica argumentada e desenvolvida contra o economicismo e os mencheviques. E continuamos dizendo que estamos de acordo com uma grande parte dos diferentes pontos desenvolvidos por Lênin.

Mantemos nossas críticas em alguns aspectos reivindicados por Lênin em temas de organização: "Alguns conceitos defendidos por Lênin (especialmente em Um passo adiante, dois passos atrás) sobre o caráter hierarquizado e "militar" da organização, que tem sido explorados pelo estalinismo para justificar seus métodos, devem ser rechaçados"[14]. Não temos mudado de opinião também nessas críticas. Porém a questão merece uma resposta mais aprofundada para compreender ao mesmo tempo a amplitude real dos erros de Lênin e o sentido histórico dos debates que tiveram lugar no Partido Operário Social-democrata Russo (POSDR).

Para poder tratar seriamente esta questão central para os revolucionários, inclusive os erros de Lênin, devemos nos manter fiel ao método e aos ensinamentos das diferentes esquerdas comunistas tal como temos sublinhado na primeira parte deste artigo. Nos negamos a escolher entre o que nos gostáramos na história do movimento operário e o que nos desgostaria. Uma atitude assim seria ahistórica e típica de quem se permite julgar cem ou oitenta anos mais tarde, um processo histórico feito de tateamentos, de êxitos e fracassos, de múltiplos debates e contribuições, a custa de enormes sacrifícios e de duras lutas políticas. Isto é assim para as questões teóricas e políticas. Também o é em temas de organização. Nem o final menchevique de Plekhanov e sua atitude chauvinista durante a Primeira Guerra Mundial, nem a utilização de Trotsky pelo "trotsquismo", nem a de Pannekoek pelo anarco-conselhismo, diminuem em nada a enorme riqueza das suas contribuições políticas e teóricas que continuam sendo atuais e de grande interesse militante. Nem as mortes vergonhosas da IIª e IIIª Internacionais, nem o final do partido bolchevique e o estalinismo, diminuem em nada o que foi seu papel na história do movimento operário e a validade das suas aquisições organizativas.

Temos mudado a respeito disso? De maneira nenhuma: "Existe uma aquisição organizativa, que de igual maneira existe uma aquisição teórica, condicionando-se mutuamente de maneira permanente" [15]

Assim como as críticas de Rosa Luxemburgo aos bolcheviques na Revolução Russa devem ser entendidas no marco da unidade de classe que a associa aos bolcheviques, de igual maneira, as críticas que possamos fazer sobre a questão organizativa devem situar-se no marco da unidade que nos associa a Lênin no seu combate - antes e depois da formação da fração bolchevique - pela construção do partido. Esta posição não é nova e não deveria surpreender. Hoje, uma vez mais, como já o "repetíamos" em 1991, repetimos que "a história das frações é a história de Lênin"[16] "e unicamente baseando-se no trabalho por elas cumprido será possível reconstruir o partido comunista mundial amanhã"[17].

Isso quer dizer que a compreensão sobre a organização revolucionária que a CCI tinha desde sua constituição tem permanecido exatamente a mesma? Isso quer dizer que essa compreensão não tenha enriquecido, aprofundado, ao longo dos debates e dos combates organizativos que nossa organização tem assumido? Se assim fosse, poderiam acusar-nos de ser uma organização sem vida, nem debates, de ser uma seita que se contenta em recitar as Santas Escrituras do movimento operário. Não vamos agora aqui reproduzir todos os combates e debates organizativos que tem atravessado nossa organização desde sua fundação. E cada vez tivemos que voltar para as "aquisições organizativas" da história do movimento operário, voltando a fazê-las nossas, precisando-as, enriquecendo-as. E assim tinha que ser se não quiséssemos correr o risco de debilitarmo-nos, para não dizer desaparecer.

Porém as re-apropriações e os enriquecimentos que temos levado a efeito em matéria de organização não significam de nenhuma maneira, que tenhamos mudado de posição sobre esta questão em geral, nem sequer com relação a Lênin. Esse trabalho está em continuidade com a história e as aquisições organizativas que nos foram legadas pela experiência do movimento operário. Desafiamos a quem quer que queira a que nos demonstre que tem havido ruptura na nossa posição. A organização é uma questão plenamente política tanto como as demais. Afirmamos, inclusive, que é a questão central, a que em última instância, determina a capacidade para abordar todas as demais questões teóricas e políticas. Ao dizer isto, estamos na mesma sintonia de onda de Lênin. Ao afirmar isso, não estamos mudando de posição em relação com o que temos afirmado sempre. Temos defendido sempre que foi a maior clareza sobre organização, especialmente sobre o papel da fração, o que permitiu a Esquerda italiana não só manter-se como organização, como também ser capaz de tirar lições teóricas e políticas mais claras e mais coerentes, inclusive se recolhendo e desenvolvendo os aportes teóricos e políticos iniciais da esquerda germano-holandesa: sobre os sindicatos, sobre o capitalismo de estado, sobre o estado no período de transição.

O combate de Lênin contra o economismo e os mencheviques

A CCI sempre se reivindicou de Lênin em matéria de organização. Do seu exemplo nos inspiramos que "a idéia de que uma organização revolucionária se constrói voluntária, consciente e premeditadamente, longe de ser uma idéia voluntarista, é, pelo contrário, uma das conseqüências concretas de toda práxis marxista"[18].

Temos afirmado sempre nosso apoio ao combate de Lênin contra o economicismo. Da mesma maneira, sempre temos reivindicado do seu combate contra quem iriam ser os mencheviques, no IIº congresso do POSDR. Isto não é nada novo. Como tão pouco o é que consideramos Que Fazer? (1902) como uma obra essencial no combate contra o economicismo e Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás (1903) como ferramenta indispensável para compreender o que estava em jogo e as linhas de ruptura no seio do partido. Tomar esses dois livros como clássicos do marxismo em matéria de organização, afirmar que as principais lições que se tirava de Lênin neles, continuam atuais, tudo isso não é nada novo para nós. Dizer que estamos de acordo com o combate, com o método utilizado, e boa quantidade de argumentos de ambos textos, não relativiza a nossa crítica aos erros de Lênin.

Que é essencial em Que Fazer? na realidade do momento, quer dizer em 1902 na Rússia? O que permitia ao movimento operário dar um passo adiante? De que lado havia de colocar-se? Do lado dos economicistas porque Lênin retoma a idéia falsa de Kautsky sobre a consciência de classe? Ou do lado de Lênin contra o obstáculo que representavam os economicistas para a constituição de uma organização conseqüente de revolucionários?

Que é o essencial em Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás? Estar com os mencheviques porque Lênin, levado pela polêmica, defende em alguns pontos conceitos falsos? Ou estar ao Lado de Lênin na adoção de critérios rigorosos de adesão dos militantes, por um partido unido e centralizado e contra a manutenção de círculos autônomos?

Aqui, colocar a questão é dar resposta. Os erros sobre a consciência e sobre a visão do partido "militarizado" foram corrigidos pelo próprio Lênin, em particular com a experiência da greve de massas de 1905 na Rússia. A existência de uma fração e de uma organização rigorosa deu os meios aos bolcheviques para estar entre os primeiros que melhor conseguiram tirar as lições políticas de 1905, e isso quando no início, não eram os mais claros, sobretudo comparados com Trotsky ou Rosa Luxemburg, Plekhanov inclusive, considerando a dinâmica da greve de massas. A sua força organizacional lhes permitiu superar os erros anteriores.

Quais eram os erros de Lênin? De dois tipos: Uns se devem a polêmica, outros a problemas teóricos, especialmente sobre a consciência de classe.

A "forçada de barra" de Lênin nas polêmicas

Lênin tinha os defeitos das suas qualidades. Grande polemista, ele tendia forçar a barra tomando por conta própria os argumentos dos seus oponentes para voltar-lhes contra eles. "Todos nós sabemos agora que os economicistas curvaram o bastão para um lado. Para consertá-lo era preciso curvá-lo do lado oposto, e o que foi feito"[19]. Porém este método, muito eficaz na polêmica clara - indispensável em todo debate - tem seus limites e pode tornar-se fraqueza em outros aspectos. Al forçar a barra, cai-se em exageiros, deformando suas verdadeiras posições. Que Fazer? é um bom exemplo disso, como o próprio Lênin o reconheceu em várias ocasiões.

"No 2º Congresso, não pensei em erigir em "pontos programáticos", em princípios especiais, minhas formulações de Que Fazer? Pelo contrário, empreguei a expressão de endereçar todo o distorcido, que mais tarde se citaria tão constantemente. Em Que Fazer?, disse que havia de endireitar tudo que o que havia sido distorcido pelos "economicistas" (....) O Significado destas palavras é claro, Que Fazer? Retifica em forma polêmica o economismo, e seria errôneo julgar esse folheto desde qualquer outro ponto de vista"[20]

Por desgraça, são muitos os que julgam Que Fazer? e Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás com "outro ponto de vista" que se preocupa mais pela letra do que pelo significado do texto. Muitos são os que tomam os exageros ao pé da letra como seus críticos e oponentes de então, entre os quais estão Trotsky e Rosa Luxemburgo, a qual reponde em Questão de Organização na Social-democracia russa (1904) o segundo texto. Depois, 20 anos mais tarde e com conseqüências muito mais graves, os aduladores stalinistas de Lênin, para justificar o "leninismo" e a ditadura stalinista, se apoiaram nas formulas inadequadas empregadas por Rosa Luxemburgo no fogo da polêmica. Quando é acusado de ser um ditador, jacobino, burocrata, de preconizar a disciplina militar e de ter uma visão conspiradora, Lênin retoma e desenvolve os conceitos dos seus oponentes, "torcendo a barra" por sua vez. É acusado de ter uma visão conspiradora da organização quando defende alguns critérios estritos de adesão dos militantes e a disciplina em condições de ilegalidade e de repressão. Assim responde o polemista:

"Ao considerar só sua forma, uma organização revolucionária dessa força em um país autocrático pode chamar-se também organização "conspirativa" pois o caráter conspirativo é imprescindível em grau máximo para semelhante organização. Até tal ponto é o caráter conspirativo condição imprescindível de tal organização, que todas as demais condições (numero de membros, sua seleção, suas funções, etc.) têm que ser em adequação com as necessidades "conspirativas". Seria portanto, extrema candidez temer que nos acusem, nós os social-democratas, de querer criar uma organização de conspiradores. Tal acusação é por todo inimigo do "economismo", tão elogioso como a acusação de "narodovolisme"[21]" [22]

Na sua resposta a Rosa Luxemburgo (setembro de 1904), cuja publicação rechaçam Kautsky e a direção do partido SD alemão, nega ser responsável pelas formulações sobre as que volta a tratar:

"A camarada Luxemburgo declara que segundo eu, o "Comitê central é o único núcleo ativo do partido". Isso não é exato. Eu nunca havia defendido essa opinião (...) A camarada Luxemburg escreve que eu preconizo o valor educativo da fábrica. Isso é inexato: não sou eu, e sim meu adversário que tem pretendido que eu assimilo o partido a uma fábrica. Ridicularizei a esse contraditor como se deve fazer, utilizando seus próprios termos para demonstrar que confunde dois aspectos da disciplina da fábrica, o qual, por desgraça, ocorre também com a camarada Luxemburgo"[23]

O erro de Que Fazer? Sobre a consciência de classe

Por enquanto, é muito mais importante e sério por em evidencia e criticar um erro teórico de Lênin em Que Fazer? Qual segundo ele: "Os operários não podiam ter ainda uma consciência social-democrata. Esta só poderia ser trazida de fora"[24]. Não vamos aqui voltar nesta crítica e na nossa posição sobre a questão da consciência[25]. Evidentemente esta posição que Lênin retoma de Kautsky não só é falsa além do que é por demais extremamente perigosa. Servirá de justificativa para o exercício do poder pelo partido depois de 1917 em lugar da classe operária na sua totalidade. Servirá de arma letal ao estalinismo depois, especialmente para justificar as tentativas golpistas na Alemanha nos anos 20, e sobretudo para justificar a repressão sangrenta da classe operária na Rússia.

Não há necessidade de precisar que não temos mudado de posição sobre essa questão?

As debilidades da crítica de Rosa Luxemburgo

Após o IIº congresso do POSDR e da divisão entre bolcheviques e mencheviques, Lênin enfrentou muitas críticas. Dentre elas, unicamente Plekhanov e Trotsky rechaçam explicitamente a posição sobre a consciência de classe "que deve ser introduzida desde fora da classe operária". É, sobretudo, conhecida a crítica de Rosa Luxemburgo, Questão de organização na social-democracia russa, em que se apóiam os anti-Lênin de hoje para...opor aos dois eminentes militantes e provar que a semente stalinista estava já na no fruto "leniniano" , o qual vem a ser a mesma mentira stalinista porém retomada ao inverso. Na realidade, Rosa se fixa, sobretudo, nas "forçadas de barra" e reivindica conceitos justos em si, porém que são abstratos, fora do combate real prático que se travou no mencionado congresso:

"A camarada Luxemburgo ignora soberanamente nossas lutas de Partido e se estende generosamente sobre temas que não é possível tratar com seriedade (...) Esta camarada não quer saber que controvérsias havia se mantido no congresso e contra quem iam dirigidas as minhas teses. Prefere gratificar-me com um curso sobre o oportunismo...nos países parlamentares!"[26]

Um passo adiante, dois passos atrás põe em relevo o crucial do congresso e a luta que houve nele, ou seja, a luta contra a manutenção dos círculos no partido e uma delimitação clara e rigorosa entre a organização política e a classe operária. Apesar de não tê-los entendido bem, tal como foram colocados na luta concreta, Rosa Luxemburgo, é em troca, muito clara nos objetivos gerais aos quais se refere:

"O objetivo por trás do qual a social-democracia russa se afana desde já há vários anos consiste na passagem do primeiro tipo de organização (organização espalhada, de caráter local, composta de círculos totalmente independentes entre eles e adaptados à fase preparatória, essencialmente propagandista do movimento) a um novo tipo de organização como o exige uma ação política de massa, homogênea, levada a efeito sobre todo o território do estado"[27]

Lendo esta passagem, se dá conta de que Rosa encontrava-se no mesmo terreno que Lênin e com a mesma finalidade. Conhecendo a concepção "centralista", e até "autoritária" de Rosa Luxemburg e de Leo Jogisches no seio do partido social-democrata polaco - o SDKPiL - , não se pode duvidar qual haveria sido sua postura se estivesse presente no POSDR, na luta concreta contra os círculos e os mencheviques. Provavelmente Lênin teria sido obrigado a refrear suas energias e inclusive seus excessos.

Nossa posição, hoje, quase um século mais tarde, sobre a distinção precisa entre organização política e organização unitária da classe operária vem dos aportes da Internacional socialista, e especialmente aos avanços de Lênin. Com efeito, foi o primeiro a reivindicar - na situação particular da Rússia tzarista - as condições do desenvolvimento de uma organização minoritária e reduzida, contrariamente às respostas de Trotsky e Rosa Luxemburgo, que tinham, todavia então a visão dos partidos de massa. De igual maneira, foi no combate de Lênin contra os mencheviques sobre o ponto 1 dos Estatutos, e no 2º congresso do POSDR, de onde estraímos nossa visão de adesão e pertencimento militante de uma organização comunista rigorosa, precisa e claramente definida. Por fim, a nosso parecer esse congresso e a luta de Lênin foram um momento importante de aprofundamento político sobre a questão da organização, especialmente sobre a centralização contra as idéias federalistas, individualistas e pequeno-burguesas. Foi um momento em que ele, ainda reconhecendo o papel histórico positivo dos círculos de agrupamentos das forças revolucionárias em uma primeira etapa, evidenciou a necessidade de ultrapassar este estágio para formar verdadeiras organizações unidas de desenvolver relações políticas fraternas e de confiança entre todos os militantes.

Não temos mudado de posição a respeito de Lênin. E nossos princípios organizativos de base, especialmente nossos estatutos, que apóiam e sintetizam a experiência do movimento operário sobre o tema, se inspiram em muitos aspectos dos avanços de Lênin nos combates pela organização. Sem a experiência dos bolcheviques em matéria de organização, faltaria uma parte importante e fundamental das aquisições organizativas em que se fundou e se baseia a CCI e nas quais deverá ser erigido o partido comunista de amanhã.

Na segunda parte deste artigo, voltaremos sobre o que diz Que Fazer? E sobre o que não diz, pois sua finalidade e o seu conteúdo tem sido e seguem sendo muito ignorados, ou desvirtuados a propósito. Precisaremos em que medida a obra de Lênin é um clássico do marxismo e um aporte histórico ao movimento operário, tanto no plano da consciência como no organizativo. Em resumo, em que na medida, a CCI se reivindica também de Que Fazer.



[1] As adaptações consistiram, notadamente, em aliviar o texto de passagens relativos ao contexto imediato do seu aparecimento, carregado de acusações de degeneração "leninista" da CCI.

[2] Citado por Pierre Broué em Minha Vida de Trotsky.

[3] Lembramos o que o próprio Lênin dizia acerca das tentativas de recuperação das grandes figuras revolucionarias: "Após sua morte, se tenta fazer delas ícones inofensivos canonizando-os, por assim dizer, rodeando o seu nome de uma certa glória, para "consolar" e entorpecer as classes oprimidas; e assim se esvazia de conteúdo sua doutrina revolucionária, atenuando seu corte revolucionário, e a desprezando (...)(...) e os sábios burgueses da Alemanha, ainda ontem especialistas na destruição do marxismo, falam cada dia mais de um Marx "nacional alemão". E poderia acrescentar-se que os stalinistas falam de um Lênin "nacional gran russo"

[4] Boris Souvarine, Stalin, Editions Gérard Lébovici, París, 1985

[5] Souvarine, idem

[6] Idem

[7] 8 Teses 8, Vº Congresso da IC sobre a bolchevização, segunda parte.

[8] Bilan nº 39, boletim teórico da fração italiana da Esquerda comunista, janeiro de 1937

[9] Falamos aqui dos grupos do meio proletário "antigo", por oposição aos grupos que surgiram mais recentemente.

[10] Rosa Luxemburgo, A Revolução russa.

[11] Bilan nº 39, 1937

[12] Herman Gorter, "A vitória do marxismo", publicado em 1920 em Il Soviet, recolhido em Invariance nº 7, 1969

[13] Artigo de Pannekoek em Die Aktion nº 11-12, 19 de março de 1921, citado no nosso folheto A Esquerda holandesa.

[14] Relatório sobre A estrutura e o funcionamento da organização dos revolucionários, Conferencia internacional da CCI, janeiro de 1982, Revista internacional nº 33

[15] Relatório sobre a questão da organização da nossa corrente internacional, Revista internacional nº 1, abril de 1975

[16] Intervenção de Bordiga no VIº comitê executivo ampliado da Internacional comunista em 1926

[17] Introdução do nosso artigo sobre "A relação fração - partido na tradição marxista", 3ª parte, Revista internacional nº 65

[18] Relatório sobre A questão da organização da nossa corrente, Revista internacional nº 1, abril de 1975

[19] Lênin em Atas do IIº congresso do POSDR, Ediciones Era, 1977

[20] Prólogo a reedição de Em doze anos, setembro de 1907, ediciones Era, 1977

[21] O narodovolisme é a corrente organizada em torno da publicação A Vontade do Povo do grupo Norodnaia Volia, organização secreta e terrorista procedente do movimento "populista" russo dos meados do século XIX

[22] A organização de conspiradores e a democracia em Que Fazer.

[23] Um passo adiante, dois passos atrás, resposta a Rosa Luxemburgo, publicada Nos escritos políticos de Trotsky, ed. Pierre Belfond, París, 1970

[24] Lênin, Que Fazer, II. A espontaneidade das massas e a consciência da Social-democracia, a) Começo da marcha ascensional espontânea» (Ed. Progreso)..

Ver nosso folheto Organizações comunistas e consciência de classe

[26] Lênin, Resposta a Rosa Luxemburgo

[27] Rosa Luxemburgo, Questão de organização, cap. 1.

Lênin e as questões de organização

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Na primeira parte deste artigo, demonstrávamos que o "leninismo" não só se opõe aos nossos princípios e posições políticas, e que além do mais tem como objetivo a destruição da unidade histórica do movimento operário. O "leninismo" nega, em particular, a luta das esquerdas marxistas, primeiro dentro e depois fora da Segunda e Terceira Internacionais, opondo Lênin a Rosa Luxemburgo, Pannekoek, etc. O "leninismo" é a negação do militante comunista Lênin. É a expressão da contra-revolução stalinista dos anos 1920.

Afirmávamos também que sempre temos reivindicado do combate de Lênin pela construção do partido contra a oposição do economicismo e dos mencheviques.

Recordávamos, além do mais, que mantemos nosso rechaço aos seus erros sobre a questão da organização, em especial sobre o caráter hierárquico e "militar" da organização, assim como, no plano teórico, sobre a questão da consciência de classe que haveria de ser levada ao proletariado desde o exterior, sem por isso deixar de situar esses erros em um marco histórico para poder compreender sua dimensão e significado verdadeiros.

Qual é a posição da CCI sobre Que Fazer? e sobre Um passo adiante, dois passos atrás?

Porque afirmamos que estas duas obras de Lênin representam experiências teóricas, políticas e organizativas insubstituíveis? Nossas críticas sobre pontos, que não tem nada de secundário em particular sobre a questão da consciência tal e como se desenvolve em Que fazer?, colocariam em contradição nosso acordo fundamental com Lênin?

A contribuição de Que fazer? À definição do papel do partido

"Seria falso e caricatural opor um Que Fazer? substitucionista de Lênin a uma visão sã e clara de Rosa Luxemburgo e Trotsky (assinalamos que este será nos anos 20, um ardoroso defensor da militarização do trabalho e da todo poderosa ditadura do partido....)"[1]. Como se pode ver, nossa posição sobre Que Fazer?, começa por tomar por base o nosso método de compreensão da história do movimento operário. Este método se apóia na unidade e na continuidade deste movimento tal e como temos apresentado na primeira parte deste artigo. Não é algo novo e já estava presente quando da fundação da CCI.

Que Fazer? (1902) consta de duas grandes partes. A primeira dedicada à questão da consciência de classe e do papel dos revolucionários. A segunda considera diretamente as questões de organização. O conjunto representa uma crítica implacável dos "econimicistas" que só consideram possível um desenvolvimento da consciência no seio da classe operária a partir das suas lutas imediatas. Tendem, assim, subestimar e a negar qualquer papel político ativo das organizações revolucionárias, cuja tarefa se limitaria a "ajudar" nas lutas econômicas.

Como conseqüência natural dessa subestimação do papel dos revolucionários, o economicismo se opõe à constituição de uma organização centralizada e unida capaz de intervir em grande escala e com uma só voz sobre todas as questões, tanto econômicas como políticas.

O texto de Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás, que é um complemento a Que fazer? no plano histórico, dá conta da ruptura entre os bolcheviques e os mencheviques no IIº congresso do POSDR que acabava de ter lugar.

Que Fazer? e a consciência de classe

A principal debilidade - já temos dito - de Que fazer? se encontra na questão da consciência de classe.

Qual era a posição dos demais revolucionários sobre essa questão? Até o IIº congresso, só o "economicista" Martínov se opõe a ela. Foi só depois do congresso que Plekhanov e Trotski criticaram a concepção errônea de Lênin sobre a consciência aportada do exterior até a classe operária. Foram os únicos a rechaçar explicitamente a posição de Kautsky retomada por Lênin segundo a qual "o socialismo e a luta de classes surgem paralelamente e não se engendram mutuamente [e que] os portadores da consciência não é o proletariado, e sim os intelectuais burgueses"[2].

A resposta Trotsky sobre essa questão da consciência foi bastante justa, embora também acabou muito limitada. Não esqueçamos que estamos em 1903 e Trotsky escreveu a sua resposta, Nossas tarefas políticas em 1904. O debate sobre a greve de massas apenas tinha iniciado na Alemanha e ia se desenvolver verdadeiramente à luz da experiência de 1905 na Rússia. Trotsky rechaça claramente a posição de Kautsky e assinala o perigo do substitucionismo que carrega. Entretanto, ainda sendo muito virulento contra Lênin sobre as questões de organização, não se separa totalmente dele sobre esse aspecto particular. Compreende e explica as razões dessa posição:

"Quando Lênin retomou de Kautsky a idéia absurda da relação entre o elemento "espontâneo" e o elemento "consciente" no movimento revolucionário do proletariado, o único que fazia era definir em linhas gerais as tarefas da sua época".[3]

Alem do mais a clemência de Trotsky nisto, temos que assinalar que nenhum dos novos oponentes à Lênin se levantaram contra a posição de Kautsky sobre a consciência antes do 2º Congresso do POSDR quando estavam unidos na luta contra o economicismo. No congresso, Martov, líder dos mencheviques, retoma exatamente a mesma posição de Kautsky e Lênin. Depois do congresso, essa questão parece tão pouco importante que os mencheviques continuam negando toda divergência programática e atribuem a divisão às "elucubrações" de Lênin sobre a organização: "Com minha débil inteligência, não sou capaz de compreender o que pode ser "o oportunismo sobre os problemas de organização", colocado no terreno como algo autônomo, sem nenhum vínculo orgânico com as idéias programáticas e táticas".[4]

A crítica de Plekhanov, se bem seja justa, é bastante genérica e se contenta em restabelecer a posição marxista sobre a questão. A principal argumentação consiste em dizer que não é verdade que "Os intelectuais (tem) "elaborado" suas próprias teorias socialistas "de maneira completamente independente do crescimento espontâneo do movimento operário" - isto jamais havia ocorrido e não poderia ocorrer".[5]

Antes do congresso e no seu transcurso, quando ainda continua de acordo com Lênin, Plekhanov se limita a nível teórico a questão da consciência. Não aborda os debates do IIº. Congresso. Não responde a questão central: Que partido e que papel para esse partido? Só Lênin da uma resposta.

A questão central de "Que fazer?": elevar a consciência

Lênin teve uma preocupação central na sua polemica contra o economicismo no plano teórico: a questão da consciência de classe e o seu desenvolvimento no seio da classe operária. Sabe-se que Lênin abandonara rapidamente a posição de Kautsky. Particularmente com a experiência da greve de massas russa de 1905 e o aparecimento dos primeiros soviets. Em janeiro de 1917, melhor dizendo antes do início da revolução na Rússia, em meio aos estragos da guerra imperialista, Lênin volta à greve de massas de 1905. Passagens inteiras sobre "o emaranhamento das greves econômicas e as greves políticas" podem parecer escritos por Rosa Luxemburgo ou Trotsky[6]. E dão uma idéia do rechaço por parte de Lênin do seu erro inicial em grande parte pelas suas "forçadas de barra"[7]:

"A verdadeira educação das massas jamais poderá separar-se de uma luta política independente, e sobretudo da luta revolucionária das massas mesmo. Só a ação educa a classe explorada, só ela lhe dá a medida das suas forças, amplia seu horizonte, desenvolve suas capacidades, ilumina sua inteligência e tempera sua vontade"[8]. Longe estamos do que disse Kautsky.

Porém já em Que fazer?, o que disse sobre a consciência é contraditório. Ao lado da posição errônea, Lênin afirma, por exemplo: "Isto nos demonstra que o "elemento espontâneo" não é senão, no fundo, a forma embrionária do consciente"[9].

Essas contradições são a manifestação de Lênin, como de resto do movimento operário em 1902, não terem uma posição muito precisa e clara sobre a questão da consciência de classe[10]. As contradições de Que fazer? e as tomadas de posição posteriores demonstram que Lênin não está particularmente atado à posição de Kautsky. Além do mais, só há três passagens bem delimitadas em Que fazer? nos quais escreve que "a consciência há de ser levada desde o exterior". E das três, há uma que não tem nada a ver com o que Kautsky disse.

Rechaçando a idéia que seja possível "desenvolver a consciência política de classe dos operários, por assim dizer, desde o interior da sua luta econômica, quer dizer partindo unicamente (ou pelo menos principalmente) desta luta, baseando-se unicamente (ou ao menos, principalmente) nesta luta....[Lênin responde que]....a consciência política de classe só pode chegar ao operário do exterior, quer dizer do exterior da luta econômica, do exterior da esfera das relações entre operários e patrões"[11]. A fórmula é confusa, porém a idéia é justa. E não corresponde ao que defende em outros dois usos do termo "exterior" quando fala da consciência. Seu pensamento é ainda mais preciso em outra passagem: "A luta política da social-democracia é muito mais ampla e complexa que a luta econômica dos operários contra os patrões e o governo"[12].

Lênin rechaça muito claramente a posição desenvolvida pelos economicistas sobre a consciência de classe enquanto um produto imediato, direto, mecânico e exclusivo das lutas econômicas.

Nós estamos do lado do Que fazer? no combate contra o economicismo. Também estamos de acordo com os argumentos críticos usados contra o economicismo e dizemos que, ainda hoje, continuam atuais enquanto ao seu conteúdo teórico e político.

"A idéia segundo a qual a consciência de classe não surge de maneira mecânica das lutas econômicas é completamente correta. Porém o erro de Lênin consiste em acreditar que não se pode desenvolver a consciência de classe a partir das lutas econômicas e que esta há de ser introduzida desde fora por um partido"[13]. É essa uma nova apreciação da CCI? São citações de Que fazer? que fazíamos nossas, em 1989, em um artigo de polemica[14] com o BIPR, insistindo já então sobre o que dizemos hoje. "A consciência socialista das massas operárias é a única base que pode nos garantir o triunfo (...). O partido sempre haverá de ter a possibilidade de revelar a classe operária o antagonismo hostil entre seus interesses e os da burguesia. [A consciência de classe a que tem chegado o partido] há de ser propalada no seio das massas operárias com um impulso crescente. (...) tem de esforçar-se ao máximo para elevar o nível de consciência dos operários em geral. [A tarefa do partido consiste em] tirar proveito dos lampejos de consciência política que a luta econômica tem feito penetrar na mente dos operários para elevar a eles ao nível da consciência social-democrata"[15].

Para os detratores de Lênin, as idéias de Que fazer? anunciam o estalinismo. Assim pois um vínculo uniria Lênin a Stalin inclusive sobre a questão de organização. Já havíamos denunciado semelhante mentira na primeira parte do presente artigo ao nível histórico. E também o rechaçamos no âmbito político, incluídas as questões da consciência de classe e da organização política.

Existe uma unidade e uma continuidade entre Que fazer? e a Revolução russa, porém nenhuma em absoluto com a contra-revolução stalinista. Esta unidade e continuidade existem como um todo no processo revolucionário que enlaça as greves de massas de 1905 com as de 1917, que vão de fevereiro de 1917 até a insurreição de outubro de 1917. Para nós, Que fazer? anuncia as Teses de abril em 1917: "As massas enganadas pela burguesia são de boa fé. Torna-se muito importante informá-las com cuidado, perseverança, com paciência sobre seu erro, ensinar-lhes o vínculo indissolúvel entre o capital e a guerra imperialista (...). Explicar às massas que os soviets representam a única forma possível de governo operário"[16]. Para nós, Que fazer? anuncia a insurreição de outubro e o poder dos soviets.

Nossos detratores atuais "anti-leninistas" ficam em silêncio quanto a preocupação central de Que fazer? sobre a consciência, e desta maneira imitam um aspecto do método stalinista que denunciamos na primeira parte deste artigo. Da mesma maneira como Stalin fazia desaparecer os velhos militantes bolcheviques das fotos, fazem desaparecer o essencial do que disse Lênin e nos acusam de passarmos a ser "leninistas", quer dizer stalinistas.

Para os que elogiam Lênin sem crítica, como a corrente bordiguista, seríamos idealistas incorrigíveis com nossa insistência sobre o papel e a importância da "consciência de classe na classe operária" e na luta histórica e revolucionária do proletariado. Para quem se esforça em ler o que escreveu Lênin e para quem quer imergir no processo real de discussões e confrontações políticas daqueles tempos, ambas acusações resultam falsas.

A distinção em "Que fazer?" entre organização política e organização unitária

No plano político e organizativo, há outros aportes fundamentais em Que fazer? Trata-se particularmente da distinção clara e precisa feita por Lênin entre as organizações com as quais se dota a classe operária nas suas lutas cotidianas, as organizações unitárias, e as organizações políticas. Vejamos primeiro o adquirido a nível político.

"Esses círculos, associações profissionais dos operários e organizações tornam-se necessárias em todas as partes; haverão de ser o mais numerosas possíveis e suas funções as mais variadas possíveis; porém torna-se absurdo e nocivo confundir-las com a organização dos revolucionários, apagar a demarcação que entre elas existe (...) A organização de um partido social-democrata revolucionário tem de ser necessariamente de outro tipo que a organização dos operários para a luta econômica"[17].

Esta distinção não é um descobrimento para o movimento operário. A social-democracia internacional, particularmente a alemã, tinha clara essa questão. Porém Que fazer?, na sua luta contra a variante russa do oportunismo naquela época, o economicismo, e tomando em conta as condições particulares, concretas, da luta de classes na Rússia tzarista, vai mais além e avança uma idéia nova: "A organização dos revolucionários tem de incluir antes de tudo e principalmente homens cuja profissão é revolucionário. Diante desta característica comum a dos membros de tal organização, qualquer distinção entre operários e intelectuais e, ainda mais, entre as diversas profissões dos uns e dos outros, deve se apagar Necessariamente, esta organização não deve ser muito extensa e há de ser o mais clandestina possível"[18].

Examinemos isso. Seria errôneo ver nessa passagem considerações só relacionadas com as condições históricas em que os revolucionários russos deviam atuar, particularmente as condições de ilegalidade, de clandestinidade e de repressão. Lênin avança três pontos que têm um valor universal e histórico. E cuja validade não tem deixado de confirmar-se até hoje. Primeiro, que a militância comunista é um ato voluntário e sério (utiliza a palavra "profissional" que também utilizavam os mencheviques nos debates do congresso) que compromete o militante e determina sua vida. Sempre estivemos de acordo com esse conceito do compromisso militante que combate e nega toda visão ou atitude diletante.

Segundo, Lênin defende uma visão das relações entre militantes comunistas que supera a divisão operário/intelectual[19], dirigente/dirigido diríamos hoje, uma visão que supera toda idéia hierárquica ou de superioridade individual, em uma comunidade de luta no seio do partido, ou no seio da organização revolucionária. E se opõe a qualquer divisão de ofício ou corporações entre os militantes. Rechaça de antemão as células de empresa que foram instauradas, em troca, com a bolchevização em nome do leninismo[20].

E, ultimo ponto, Lênin define uma organização que "não deve ser muito extensa". É ele o primeiro a perceber que o período dos partidos operários de massa está acabando-se[21]. Seguramente as condições da Rússia favoreciam essa clarividência. Porém são as novas condições de vida e da luta do proletariado, que se manifestam particularmente com a "greve de massas", as que determinam também as novas condições da atividade dos revolucionários, muito em particular o caráter "menos extenso", minoritário, das organizações revolucionárias no período de decadência do capitalismo que estava se abrindo no início do século XX.

"Porém seria (...) "seguidismo" pensar que sob o capitalismo quase toda a classe ou a classe inteira possa encontrar-se um dia em condições de elevar-se até ao ponto de adquirir o grau de consciência e de atividade do seu destacamento de vanguarda, do seu partido social-democrata"[22].

Embora nessa mesma época, Rosa Luxemburgo, Pannekoek ou Trotsky fossem entre os primeiros a perceber as lições do surgimento das greves de massas e dos conselhos operários, seguiram prisioneiros de uma visão dos partidos como organizações políticas de massas. Rosa Luxemburgo critica Lênin desde o ponto de vista de um partido de massas[23]. Até o ponto em que ela também acaba se esbarrando quando escreve que "na verdade, a social-democracia não está vinculada a organização da classe operária, é o movimento próprio da classe operária"[24]. Vitima ela também da "forcada de barra" na polêmica, vítima do seu apoio aos mencheviques no que está em jogo durante o IIº congresso do POSDR, se desliza inoportunamente por sua vez até o terreno dos mencheviques e dos economicistas, diluindo a organização dos revolucionários na classe[25].

Porém conseguirá voltar mais tarde - e com que ímpeto - a uma posição mais clara. Entretanto, sobre a distinção entre organização do conjunto da classe e organização dos revolucionários, as fórmulas de Lênin continuam sendo as mais claras. São as que vão mais adiante.

O Aporte de Um passo adiante, dois passos atrás para a delimitação e o funcionamento do partido

Que fazer? e Um passo adiante, dois passos atrás são pois dois tantos passos políticos essenciais na história do movimento operário. Essas duas obras constituem mais especificamente aquisições políticas "práticas" a nível organizativo. Igualmente a Lênin, a CCI sempre tem considerado a questão da organização como questão integralmente política A organização política da classe operária é diferente de sua organização unitária e isso tem implicações práticas Dentre elas, a definição estrita da adesão e do pertencimento ao partido, quer dizer à definição do militante, de suas tarefas, das suas obrigações, das suas responsabilidades, ou seja, da sua relação com a organização, é essencial. Bem se conhece a batalha do IIº Congresso do POSDR em torno do artigo primeiro dos estatutos: é o primeiro enfrentamento, no seio do congresso, entre bolcheviques e mencheviques. A diferença entre as fórmulas propostas por Lênin e Martov pode parecer completamente insignificante.

Quem é membro do partido?

Para Lênin, "é membro do Partido aquele que reconhece o programa e defende o Partido tanto com meios materiais como com a sua participação pessoal em uma das organizações do partido"; Para Martov "se considera como pertencente ao Partido operário social-democrata da Rússia, aquele que, reconhecendo seu programa, trabalha ativamente para por em aplicação suas tarefas sobre o controle e a direção dos organismos do Partido".

A divergência considera o reconhecimento da qualidade de membro: seja unicamente aos militantes que pertencem ao Partido e que este reconhece como tal- a posição de Lênin -; ou seja aqueles militantes que não pertencem formalmente ao Partido, porém que em tal ou qual momento, em tal ou qual atividade, apóiam ao Partido, ou se declaram eles mesmos social-democratas. Assim, a posição de Mártov e dos mencheviques revela muito mais ampla, mas "flexível", menos restritiva e menos precisa que a de Lênin.

Por trás dessa diferença, se esconde uma questão de fundo que rapidamente apareceu durante o congresso e que as organizações revolucionárias continuam se enfrentando hoje: quem é membro do partido, e ainda mais difícil de definir, quem não é?

Para Mártov, fica claro "Quanto mais se generalize a apelação de membro do partido melhor. Temos que ficar alegres se cada grevista, cada manifestante, ao fazer-se responsável dos seus atos, pode declarar-se membro do Partido"[26].

A posição de Mártov tende a diluir, a dissolver a organização dos revolucionários, o partido, na classe. Une-se ao economicismo que anteriormente combatia junto a Lênin. A argumentação com a que defende sua proposta de Estatutos equivale a liquidar a idéia mesma de partido de vanguarda, unido, centralizado e disciplinado em torno de um Programa político bem definido, bem preciso e com uma vontade de ação militante e coletiva ainda mais definida, precisa e rigorosa. Também abre a porta a políticas oportunistas de "recrutamento" sem princípios de militantes que hipotecam o desenvolvimento do partido a longo prazo em benefícios de resultados imediatos. Quem tem razão é Lênin:

"Ao contrário, quanto mais fortes sejam nossas organizações do Partido que englobam verdadeiros social-democratas, menos vacilação e instabilidade teremos no seio do Partido, e mais ampla, mais variada, mais rica e fecunda será a influência do Partido sobre os elementos da massa operária que o rodeiam e aos que dirige. Efetivamente, não se pode confundir o Partido, vanguarda da classe operária, com o conjunto da classe"[27].

O grande perigo da posição oportunista de Mártov sobre a organização, o recrutamento, a adesão e o pertencimento ao partido aparece muito rapidamente no mesmo congresso com a intervenção de Axelrod: "Um pode ser membro sincero e fiel do partido social-democrata, porém demonstrar completamente inadaptado para a organização de combate rigorosamente centralizada"[28].

Como se pode ser um membro do partido, militante comunista, e "inadaptado para a organização de combate centralizada"? Aceitar semelhante idéia é tão absurdo como aceitar a idéia de um operário combativo e revolucionário porém "inapto" para qualquer ação coletiva de classe. Qualquer organização comunista só pode aceitar no seu seio militantes aptos à disciplina e à centralização que necessita seu combate. Como poderia ser possível outra coisa? A não ser que se aceite que os militantes não respeitem imperativamente as relações na organização e as decisões que ela adota, assim como da necessidade do combate. A não ser, também, que se queira ridicularizar a noção mesma de organização comunista que haverá de ser "a fração mais resoluta de todos os partidos operários de todos os países, a fração que impulsiona todas as demais"[29]. A luta histórica do proletariado é um combate de classe, unindo em escala histórica e internacional, coletivo e centralizado. E como a sua classe, os comunistas levam a cabo um combate histórico, internacional, permanente, unido, coletivo e centralizado que se opõe a qualquer visão individualista. "A consciência crítica e a iniciativa voluntária têm um valor muito limitado para os indivíduos, porém em troca, se realizam plenamente na coletividade do Partido"[30]. Quem for incapaz de envolver-se nesse combate centralizado é incapaz de atividade militante e não pode ser reconhecido enquanto membro do partido. "Que o partido admita unicamente elementos capazes ao menos de um mínimo de organização"[31].

Essa "capacidade" é fruto da convicção política e militante dos comunistas. Adquire-se e se desenvolve participando na luta histórica do proletariado, particularmente no seio das suas minorias políticas organizadas. Para qualquer organização comunista conseqüente, a convicção e a capacidade "prática" - não platônica - para "a organização de combate rigorosamente centralizada" de qualquer novo militante são por sua vez condições indispensáveis para sua adesão e expressões concretas do seu acordo político com o programa comunista.

A definição do militante, da qualidade de membro de uma organização comunista continua sendo hoje em dia uma questão essencial. Que fazer? e Um passo adiante, dois passos atrás colocam os fundamentos e as respostas a quantidade de perguntas em matéria de organização. É por isso o que a CCI sempre tem se apoiado na luta dos bolcheviques no IIº Congresso para diferenciar com clareza, rigor e firmeza, um militante, ou seja "quem participa pessoalmente de uma das organizações do Partido", como defendido por Lênin, e um simpatizante, um companheiro de caminhada, aquele que "adota o programa, apóia o Partido com meios materiais e lhe aporta uma ajuda pessoal regular (ou irregular, acrescentamos) sob a direção de uma das suas organizações", tal como expressa a definição de militante de Mártov que foi finalmente adotada no IIº Congresso. Igualmente, sempre temos defendido que "quando quiser ser membro do Partido, tem de reconhecer também as relações de organização, e não só platonicamente"[32].

Nada disso é novidade para a CCI. É a base mesma da sua constituição como demonstra a adoção do seu Estatuto já no seu primeiro congresso internacional em janeiro de 1976.

E seria um erro pensar que esta questão já não colocaria nenhum problema hoje. Primeiro, a corrente conselhista, embora suas ultimas expressões políticas sejam silenciosas, senão quase a ponto de desaparecer[33] continua sendo hoje uma espécie de herdeira do economicismo e do menchevismo em matéria de organização. Em um período de maior atividade da classe operária, não há dúvida que as pressões conselhistas para "enganar a si mesma, fechar os olhos diante da imensidão das nossas tarefas, restringir essas tarefas (esquecendo) a diferença entre o destacamento de vanguarda e as massas que gravitam na sua órbita"[34] cobrarão um novo vigor. Porém também no meio que reivindica exclusivamente a Esquerda italiana e Lênin, seja a corrente bordiguista e o BIRP, a colocação em prática do método de Lênin e do seu pensamento político em matéria de organização está muito distante de constituir uma verdadeira aquisição. Basta só observar a prática de recrutamento sem princípios do PCI bordiguista nos anos 70. Sua política ativista e imediatista acabou levando a desmantelamento em 1982. No mais há de se observar que a ausência de rigor do BIRP (que agrupa Battaglia comunista na Itália e a CWO na Inglaterra) que às vezes parece custar decidir quem é militante da organização e quem é um simpatizante ou contato próximo: e isso apesar de todos os riscos que tal imprecisão organizativa suporta. O oportunismo em matéria de organização é hoje um dos venenos mais perigosos para o meio político proletário. E infelizmente de nada servem como contraveneno as cantilenas sobre Lênin e a necessidade do "Partido compacto e potente".

A concepção do militantismo defendida por Lênin

Que diz Rosa Luxemburgo, na sua polêmica com Lênin a respeito do militante e seu pertencimento ao partido?

"A idéia expressa no livro (Um passo adiante, dois passos atrás) de uma maneira penetrante e exaustiva é a de um centralismo implacável: seu princípio vital exige, por um lado, que as falanges organizadas de revolucionários declarados e ativos saiam e se separem decididamente do meio que os rodeia e que, embora não organizado, nem por isso deixa de ser revolucionário; nele se defende, por outra parte, uma disciplina rígida"[35].

Sem pronunciar-se explicitamente contra a definição precisa de militante que faz Lênin, o tom irônico que Rosa emprega quando invoca "as falanges organizadas que saem e se separam do meio que os rodeia" e... seu silêncio total sobre a batalha política no congresso acerca do artigo primeiro dos estatutos, põe em relevo a visão errônea de Rosa Luxemburgo, nesse momento, e o seu alinhamento com os mencheviques. Continua presa da visão do partido de massas, que servia de exemplo no momento a social-democracia alemã. Não vê o problema ou o evita, equivocando-se no combate. Ao não falar nada sobre o debate no congresso em torno do artigo primeiro dos estatutos acaba dando razão a Lênin quando este afirma que ela "se limita a repetir frases vazias sem procurar dar sentido. Agita espantalhos sem ir ao fundo do debate. Me faz dizer lugares comuns, idéias gerais, verdades absolutas e se esforça em não dizer nada sobre as verdades relativas que se apóiam em fatos precisos"[36].

Como no caso de Plekhanov e muitos outros, as considerações gerais avançadas por Rosa Luxemburgo - inclusive quando são justas em si - não respondem as verdadeiras questões políticas colocadas por Lênin. "É assim como uma preocupação correta: insistir no caráter coletivo do movimento operário, em que a "emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores" desemboca em conclusões práticas falsas", como dizíamos a respeito de Rosa Luxemburgo em 1979[37]. Rosa passou ao lado das conquistas políticas do combate dos bolcheviques.

E, de fato, se não houvesse ocorrido um debate em torno do artigo Iº dos Estatutos, a questão do partido claramente definido e diferenciado organizativa e politicamente, do conjunto da classe operária, não teria terminado definitivamente esgotado. Sem o combate assumido por Lênin sobre o artigo 1, a questão não seria uma aquisição política de primeira importância em matéria de organização, base em que devem apoiar-se os comunistas de hoje para constituir sua organização, não só para a adesão de novos militantes, senão também e sobretudo para o esclarecimento preciso e rigoroso das relações entre militantes e organização revolucionária.

É esta defesa da posição de Lênin sobre o artigo 1 dos estatutos algo novo para a CCI?

"Para ser membro da CCI, tem que (...) integrar-se na organização, participar ativamente do seu trabalho e cumprir as tarefas que lhe confia" afirma o artigo dos nossos estatutos que trata da questão do pertencimento militante à CCI. Está claro que recolhemos, sem a menor ambigüidade, a idéia de Lênin, o espírito e até a letra do estatuto que ele propôs no IIº Congresso do POSDR e em absoluto não a de Mártov ou Trotsky.

O combate em torno dos estatutos

Já apresentamos rapidamente nossa concepção de militante revolucionário e mostramos que esta é a herdeira, em boa parte, do combate e dos aportes de Lênin de Que fazer? e Um passo adiante, dois passos atrás. Já temos sublinhado a importância de expressar o mais fiel e mais rigorosamente possível na prática militante cotidiana, graças aos estatutos da organização, essa definição de militante. E nisso também nos mantemos fieis ao método e os ensinamentos de Lênin em matéria de organização. O combate político por estabelecer regras precisas nas relações organizativas, ou seja os estatutos, é algo fundamental. Igualmente é o combate para que se respeitem, claro está. Sem este, as grandes declarações sobre o partido não passam de fantasmagorias.

Pelos próprios limites desse artigo, não poderemos apresentar nossa concepção sobre a unidade da organização política e mostrar no que a luta de Lênin contra a sobrevivência dos círculos, no IIº. Congresso do POSDR, foi um aporte teórico e político de primordial importância. E no que queremos insistir é na importância prática que tem de expressar essa unidade nos estatutos da organização: "O caráter unitário da CCI se plasma também nesses estatutos", como assim se diz neles. Lênin expressa muito bem o porque dessa necessidade:

"O anarquismo senhorial não compreende que os estatutos formais são necessários precisamente para substituir o vínculo limitado dos círculos com o amplo vinculo do Partido. Não se necessitava nem era possível para o vínculo existente no interior de um círculo revestir uma forma definida, pois este estava baseado na amizade pessoal ou em uma "confiança" incontrolada e não motivada. O vínculo do Partido não pode nem deve repousar nem em uma nem na outra; é indispensável basear-se precisamente em estatutos formais, redigidos "burocraticamente"[38] (desde o ponto de vista do intelectual sem disciplina), e cuja estrita observância é o único que nos garante contra a arbitrariedade e os caprichos dos círculos, contra suas brigas chamadas de livre "processo" da luta ideológica"[39].

E é o mesmo enquanto a centralização da vida política interna contra toda visão federalista, localista, ou visão da organização como uma soma de partes e até de indivíduos revolucionários, autônomos. "O congresso internacional é o órgão soberano da CCI", dizem os nossos Estatutos. Também nesse aspecto nos reivindicamos do combate de Lênin e da sua necessária concretização prática nos Estatutos da organização, tanto para o POSDR de então como para as organizações de hoje.

"Em uma época de restabelecimento da unidade efetiva do partido e da diluição dos círculos antiquados nessa unidade, se situa inevitavelmente por cima o Congresso do partido, como órgão supremo do mesmo"[40].

É o mesmo enquanto a vida política interna: o aporte de Lênin considera também e especialmente os debates internos, o dever - e não só um simples direito - de expressão de toda divergência nos marcos da organização ante a organização no seu conjunto; e uma vez esgotados os debates e tomadas as decisões pelo congresso (órgão soberano, verdadeira assembléia geral da organização) as partes e os militantes se subordinam ao todo. Contrariamente à idéia, amplamente espalhada, de um Lênin ditatorial, procurando sempre abafar os debates e a vida política na organização, na realidade não parava de opor-se a idéia menchevique que via o congresso como "um relator, um controlador, e nunca um criador"[41]

Para Lênin e a CCI, o congresso é "criador". Entre outras coisas, rechaçamos radicalmente toda idéia de mandatos imperativos dos delegados por parte de seus mandatários ao congresso, o que é contrário aos debates mais amplos, dinâmicos e frutíferos. O que reduziria os congressos a nada mais que "relatores" como queria Trotsky em 1903. Um congresso "relator" consagraria a supremacia das partes sobre o todo, o império da mentalidade de "cada um na sua casa", do federalismo e do localismo. Um congresso "relator e controlador" é a negação do caráter soberano do congresso. Como Lênin, estamos a favor de congressos "organismo supremo" do partido, com poder de decisão e de "criação". O congresso "criador" implica que os delegados não estejam "imperativamente" limitados, com as mãos atadas, prisioneiros do mandato que seus mandatários lhes outorga.[42]

O congresso "órgão supremo" significa também precisamente sua "supremacia" em termos programático, político e de organização, sobre as diferentes partes da organização comunista:

"O congresso é a instancia suprema do Partido e, portanto, aquele que falta à disciplina do partido e ao regulamento do congresso; que de qualquer forma , põe obstáculos a que qualquer dos delegados apele diretamente ao Congresso, sobre todas as questões da vida do partido, sem exceção alguma. O problema em discussão se reduz desse modo a um dilema: o espírito de círculo ou o espírito de Partido? Ou se limitam os direitos dos delegados ao congresso, em virtude de imaginários direitos ou estatutos de toda sorte de grupos e círculos, ou todas as instâncias inferiores dos velhos grupinhos se dissolvem totalmente antes do congresso, e não só de palavra, e sim de fato"[43].

Os estatutos não são medidas excepcionais

Já vimos que nem Rosa Luxemburgo nem Trotsky, para não citar outros, não respondem a Lênin sobre o artigo 1 dos estatutos. Desdenham totalmente essa questão, assim também descuidam dos estatutos em geral. E nisso também preferem limitar-se a generalidades abstratas. E quando se dignam a invocar esta questão, é para subestimá-la por completo. E no melhor dos casos, consideram os estatutos da organização política como uma proteção, como limites que não se há de ultrapassar. E no pior dos casos, não os considera senão como armas repressivas que de haveria de utilizar em casos excepcionais e com muitas precauções. Aqui há de se notar que esta concepção dos estatutos também é a dos stalinistas, que também vêem neles, só medidas repressivas, com a única diferença de que esses não andam com "precauções".

Para Trotsky, a fórmula de Lênin no artigo 1 teria deixado "A satisfação platônica de ter descoberto o remédio estatutário contra o oportunismo (...) Não há dúvida: se trata de uma forma simplista, tipicamente administrativa de resolver uma questão prática muito grave"[44].

A mesma Rosa Luxemburgo responde sem saber a Trotsky, ao afirmar que no caso de um partido já constituído (caso de um partido social-democrata de massas como na Alemanha), "uma aplicação mais severa da idéia centralista no estatuto de organização e uma formulação mais estrita dos pontos sobre a disciplina de partido são muito apropriados para servir de barreira contra a corrente oportunista"[45]. Significa isso que ela está de acordo com Lênin no caso da Alemanha, que dizer em geral. Entretanto, no que considera a Rússia, continua dizendo "verdades abstratas" ("Os desvios oportunistas não podem ser prevenidos a priori, senão que há de ser superadas pelo próprio movimento") que não significam nada e que, na realidade justificam "a priori" qualquer renúncia à luta contra o oportunismo em matéria de organização. O que ela acaba fazendo, sempre para o caso russo, ou seja no concreto, burlando dos estatutos, "parágrafos de papel", de "puro papelada", e considerando-os como medidas excepcionais: "O estatuto do Partido não haveria de ser uma arma contra o oportunismo, sim um meio de autoridade externa para exercer a influência preponderante da maioria revolucionária proletária realmente existente no Partido"[46].

Nunca estivemos de acordo com Rosa Luxemburgo sobre esse ponto: "Rosa continua repetindo que é o mesmo movimento de massas que haverá de superar o oportunismo, os revolucionários não tendo de acelerar artificialmente este movimento. (...) O que não consegue compreender Rosa Luxemburg, é que o caráter coletivo da ação revolucionária é algo que se há de forjar"[47]. Enquanto a questão dos estatutos, sempre estivemos e continuamos de acordo com Lênin.

Os estatutos como regra de vida e arma de combate

Os estatutos são para Lênin muito mais que simples regras formais de funcionamento, algo a que se refere no caso de situações excepcionais. Contrariamente a Rosa Luxemburgo ou aos mencheviques, Lênin define os estatutos como uma linha de conduta, o espírito que anima a organização e seus militantes dia a dia. Contrariamente a compreensão dos estatutos como meios de coerção ou de repressão, Lênin entende os estatutos como armas que impõem a responsabilidade das diferentes partes da organização e dos militantes, com respeito ao conjunto da organização política; armas que impõem o dever de expressão aberta, pública, ante o conjunto da organização, das divergências e dificuldades políticas.

Lênin não considera a expressão dos pontos de vista, dos matizes, das discussões, divergências, como um direito dos militantes, e sim como um dever e uma responsabilidade com respeito ao conjunto do partido e de seus membros. Os estatutos são ferramentas a serviço da unidade e da centralização da organização, ou seja, armas contra o federalismo, contra o espírito de círculo, o julgamento político influenciado pelas relações de amizade, contra a vida política e a discussão escapando do marco da organização para ser assumidas fora dela. Mas que limites exteriores, mais ainda que regras, os estatutos são para Lênin como um modo de vida política, organizativa e militante.

"As questões litigiosas no seio dos círculos, não se resolveriam segundo os estatutos "senão pela luta e ameaça de quitar" (...) Quando eu era unicamente membro de um círculo (...) tinha direito de justificar, por exemplo, a minha recusa de trabalhar com X., alegando só a falta de confiança, sem ter que dar explicações nem motivos. Uma vez membro do partido, não tenho direito de invocar só uma vaga falta de confiança, porque isso equivaleria escancarar as portas a todas extravagâncias e a todas arbitrariedades dos antigos círculos; estou obrigado a motivar minha "confiança" ou minha "desconfiança" com um argumento formal, quer dizer, ao referir-me a esta ou aquela disposição formalmente fixada do nosso Programa, da nossa tática, dos nossos Estatutos. Estou obrigado a não limitar-me a um "tenho confiança" ou "não tenho confiança" sem mais controle, senão reconhecer que devo responder das minhas decisões, como em geral toda parte integrante do partido deve responder das suas diante do conjunto do mesmo; estou obrigado a seguir a via formalmente prescrita para expressar minha "desconfiança", para fazer triunfar as idéias e os desejos que emanam desta desconfiança. Nos temos elevado da "confiança" incontrolada, própria dos círculos, ao ponto de vista de um partido, que exige a observância de procedimentos controlados e formalmente determinados para expressar e comprovar a confiança"[48].

Os estatutos da organização revolucionária não são meras medidas excepcionais ou proteções. São a concretização dos princípios organizativos próprios das vanguardas políticas do proletariado. Produto desses princípios, são por sua vez uma arma de combate contra o oportunismo em matéria de organização e dos fundamentos nos quais vai construir e erguer-se a organização revolucionária. São a expressão da sua unidade, da sua centralização, da sua vida política e organizativa, como também do seu caráter de classe. São a regra e o espírito que haverá de guiar cotidianamente aos militantes na sua relação com a organização, na sua relação com os demais militantes, nas tarefas que lhes são confiadas, nos seus direitos e deveres

Para nós como para Lênin, a questão organizativa é uma questão totalmente política e fundamental. A adoção de estatutos e o combate permanente pelo seu respeito e aplicação estão no centro mesmo da compreensão e da luta pela construção da organização política. Também os estatutos são uma questão teórica e totalmente política. Será um descobrimento da nossa organização? Uma mudança de posição? "O caráter unitário da CCI se expressa nos estatutos, que são válidos para toda organização (...). Esses estatutos são uma aplicação concreta da concepção da CCI em matéria de organização. Como tais, são parte integrante da plataforma da CCI" (Estatutos da CCI).

Contra o espírito de circulo e o individualismo que levam à personalização das questões políticas

Mais ainda de que a questão de determinar quem é membro do partido, a contribuição do combate de Lênin durante o Segundo congresso do POSDR e depois, considera a questao do comportamento militante que, também, é uma questão política. Diante da atitude dos Mencheviques, personalizando as questões políticas, diante dos ataques que tomam Lênin como alvo, e da subjetividade que invadiu Martov e seus amigos, ele responde: "Quando considero o comportamento dos amigos de Martov depois do congresso, (...) só posso dizer que se trata de uma tentativa insensata, indigna de membros do partido, de despedaçar o partido. E porque? Unicamente por conta de um descontento em relação à composição dos órgãos centrais, pois objetivamente é unicamente esta questão que nos dividiu, as apreciações subjetivas (como ofenda, insulta, expulsão, posto de parte, desonra, etc.) sendo so a fruta de um amor-próprio ferido e de uma imaginação doente. Esta imaginação doente e este amor-próprio ferido levam às bisbilhotices mais vergonhosas: sem se ter informado da atividade dos novos centros, nem os ter visto estar a trabalhar, se espalha rumores sobre sua "carência", sobre o tirania de Ivan Ivanovitch, sobre o pulso de d'Ivan Nikiforovitch, etc. (...) A social-democracia russa tem ainda uma última e difícil etapa para ultrapassar, do espírito de círculo ao de partido; da mentalidade pequeno-burguesa à consciência de seu dever revolucionário; das bisbilhotices e da pressão dos círculos - considerados como meios de ação - à disciplina" (relatório do IIo congresso do POSDR (Obras, Tomo 7). Para uma leitura mais detalhada da concepção da CCI considerando o comportamento militante, aconselhamos nossos leitores os artigos seguintes não traduzidos ainda em português : "A questão do funcionamento da organização na CCI" (Revista internacional n° 109), "A confiança e a solidariedade na luta do proletariado" (Revista internacional n° 111 e 112), "Marxismo e ética" (Revista internacional n° 127 e 128)

O Partido Comunista se construirá baseando-se nas lições políticas e organizativas aportadas por Lênin

Na luta do proletariado, este combate de Lênin representa um dos momentos essenciais para a construção do seu órgão político, que finalmente se concretizou com a fundação da Internacional Comunista em março de 1919. Antes de Lênin, a Primeira Internacional (AIT) tinha representado um momento igualmente importante. Depois de Lênin, o combate da Fração Italiana da Esquerda Comunista por sua própria sobrevivência foi outro momento também importante.

Entre essas diversas experiências há uma "linha vermelha", uma continuidade de princípios, teórica e política, em matéria de organização. É só nessa continuidade e unidade histórica que os revolucionários de hoje podem integrar sua ação .

Já temos citado amplamente nossos próprios textos, que lembram claramente e sem nenhuma ambigüidade nossa filiação e patrimônio nas questões de organização. Nosso "método" de re-apropriação das lições políticas e teóricas do movimento operário não é nada um invento da CCI.

O temos herdado da Fração Italiana da esquerda comunista e da sua publicação Bilan nos anos 1930, assim como da Esquerda Comunista da França e da sua revista Internationalisme nos anos 1940. É o método de que sempre nos temos reivindicado e, sem ele, a CCI não existiria na sua forma atual.

"A expressão mais acabada da solução do problema do papel que tem de desempenhar o elemento consciente, o partido, para a vitória do socialismo, foi realizado pelo grupo de marxistas russos da antiga Iskra, e mais particularmente por Lênin que deu uma definição de principio já em 1902 ao problema do partido na sua destacada obra Que fazer? A noção que tinha Lênin do partido ia servir de coluna vertebral do partido bolchevique, e será um dos aportes maiores deste na luta internacional do proletariado"[49].

Efetivamente e sem a menor dúvida, o Partido comunista mundial de amanhã não poderá constituir-se fora destas aquisições teóricas de principio , políticas e organizativas legadas por Lênin. A recuperação real, e não declamatória, dessas aquisições, assim como sua aplicação rigorosa e sistemática às condições de hoje, constituem uma tarefa entre as mais importantes dos pequenos grupos comunistas de hoje se realmente querem contribuir no processo de formação do dito Partido.



[1] Organizações comunistas e consciência de classe (folheto da CCI em Francês); 1979

[2] Kautsky, citado por Lênin em Que fazer?

[3] Trotsky, Nossas tarefas políticas, cap. "Em nome do marxismo!" Belfond, 1970, Paris

[4] P. Axelrod, Sobre a origem e a significação de nossas divergências quanto à organização, carta a Kautsky, idem

[5] Plekhanov, A classe operária e os intelectuais social-democratas, 1904, idem.

[6] Rosa Luxemburgo: Greve de massa, partido e sindicatos (1906) e Trotski, 1905 (1908-1909).

[7] Ver a primeira parte de este artículo

[8] Lênin, Relatório sobre 1905 (janeiro de 1917)

[9] Lênin, Que fazer?

[10] Karl Marx é muito mais claro sobre este tema em algumas de suas obras. Porem estas são em grande parte desconhecidas entre os revolucionários de então, pois não disponíveis ou não publicadas. Obra fundamental sobre o tema da consciência, A Ideologia alemã, por exemplo, só foi publicada pela primeira vez em...1932!

[11] Lênin, Que fazer?

[12] Idem

[13] Organizações comunistas e consciência de classe (folheto da CCI em Francês); 1979

[14] Este artículo não é da CCI, mas foi escrito pelos camaradas do Grupo proletário internacionalista (GPI) que logo constituíram a secção da CCI no México.

[15] "Consciência de classe e Partido", Revista internacional nº 57, 1989

[16] Lênin, Teses de Abril, 1917.

[17] Lênin, Que fazer?

[18] Idem

[19] Não é necessário aqui lembrar o baixo nível "escolar" e o analfabetismo dominante entre os operários russos. Isso não impediu Lênin considerar que podiam e deviam integrar-se na atividade do partido de igual modo que os "intelectuais".

[20] Ver a primeira parte deste artigo

[21] "Também levará a efeito uma ruptura com a visão social democrata de partido de massas. Para Lênin, as condições novas da luta faziam necessário um partido minoritário de vanguarda que deveria trabalhar pela transformação das lutas econômicas em lutas políticas"(Organizações comunistas e consciência de classe; CCI, 1979)

[22] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás, parte 1 "artículo primeiro dos estatutos".

[23] "Esta militante, que havia passado pelas "escolas" do partido social-democrata, expressa um apego incondicional ao caráter de massas do movimento revolucionário" (Organizações comunistas e consciência de classe; CCI, 1979).

[24] Rosa Luxemburgo, Questões de organização na social-democracia russa

[25] O leitor terá notado que essa visão deixa a porta totalmente aberta à postura substitucionista do partido - o partido que substitui a ação da classe operária....até exercer o poder de Estado em nome dela ou a realizar ações "golpistas" como fizeram os stalinistas nos anos 1920.

[26] Martov, citado por Lênin em Um passo adiante, dois passos atrás, parte I "artigo primeiro dos estatutos"

[27] Um passo adiante, dois passos atrás, Parte I "artigo primeiro dos estatutos"

[28] Relatório do IIº congresso do POSDR, edições Era, 1977

[29] K.Marx, Manifesto do partido comunista

[30] Teses sobre a táctica do Partido comunista de Itália, Teses de Roma, 1922

[31] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás.

[32] O bolchevique Pavlóvich, citado por Lênin em Um passo adiante, dois passos atrás.

[33] Ver em nossas publicações territoriais os artigos a propósito da suspensão da publicação de Daad en Gedachte, revista do grupo conselhista holandês do mesmo nome.

[34] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás.

[35] Rosa Luxemburgo, Questões de Organização da social-democracia russa.

[36] Lênin, Resposta a Rosa Luxemburgo, publicada em Nossas tarefas políticas de Troski (Edition Belfond, Paris)

[37] Organizações comunistas e consciência de classe.

[38] É outro exemplo do método polêmico de Lênin, o qual recolhe as acusações dos seus adversários para voltar-se contra eles (ver a primeira parte deste artigo).

[39] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás, "A nova Iskra".

[40] idem

[41] Trotsky, Relatório da delegação siberiana

[42] O delegado do Partido Comunista Alemão, Eberlein, ao que em princípio não ia ser senão uma conferência internacional em março de 1919, tinha o mandato para se opor a constituição da IIIa. Internacional, a Internacional Comunista (IC). Estava claro para todos os participantes, em particular Lênin, Trotsky, Zinoviev e os dirigentes bolcheviques que a fundação da IC não poderia levar a efeito sem a adesão do PC alemão. Se Eberlein ficasse "preso" ao seu mandato imperativo, surdo aos debates e a dinâmica mesma da conferencia, a internacional,como Partido mundial do proletariado,não teria sido fundada.

[43]  Um passo adiante, dois passos atrás. "Começa o congresso....".

[44] Trotsky, Relatório da delegação siberiana

[45] Rosa Luxemburgo, Questões de organização da social-democracia russa

[46] Idem

[47] Organizações comunistas e consciência de classe

[48] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás; . "O oportunismo em matéria de organização"

[49] Internationalisme, nº 4, 1945


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