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O período de transição do capitalismo ao comunismo

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Publicamos a seguir um conjunto de textos relativos ao período de transição do capitalismo ao comunismo.

Publicamos a seguir um conjunto de textos relativos ao período de transição do capitalismo ao comunismo, centrados sobre duas questões essenciais:

  • Os problemas gerais colocados pelo período de transição;
  • O papel do Estado do período de transição, sua natureza e suas relações com o poder da classe operária organizada em conselhos operários. Este assunto é tão amplo e complexo que lhe dedicamos vários textos: Um conjunto de textos relativos a um debate que ocorreu no seio da CCI nos anos setenta (ver Estado e ditadura do proletariado) e um texto sintético de aprofundamento que, além das questões evocadas acima, trata também da questão da necessária extinção do estado (ver O estado no período de transição).

Problemas do período de transição

  • Estado e ditadura do proletariado
  • O estado no período de transição

Problemas do período de transição

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O tema do período detransição exige a maior prudência. A quantidade de questões que se coloca éenorme, porém sobretudo a novidade dos problemas que se colocam ao proletariadoimpede que se elabore antecipadamente os planos da sociedade futura. Marx já senegava "dar receitas para as encruzilhadas do futuro" e RosaLuxemburgo insistia que "só temos pontos indicativos, e são essencialmentenegativos"

É claro que aexperiência histórica da classe (a Comuna de Paris em 1871, 1905, 1917-1923) eda contrarrevolução nos oferece luzes acerca desses problemas no sentido deprecisá-los, porém essas precisões consideram o quadro geral e não é a maneiradetalhada de resolver os problemas. O que podemos fazer é ver o marco geral naqual se colocam.

Caráterdos períodos de transição

A) A história do homem viu uma sucessão de sociedadesestáveis ligadas a modos de produção e, portanto, a relações sociais estáveis.Essas sociedades se baseiam em leis econômicas dominantes inerentes a elas, estavamcompostas por classes sociais fixas, e se fundavam nas superestruturasapropriadas. Conhecemos a sociedade escravista, a "asiática", afeudal e o capitalismo.

B) O que distingue os períodos de transição dessassociedades estáveis, é a decomposição das estruturas antigas e a formação denovas, ambas ligadas ao desenvolvimento das forças produtivas e que favoreceramo surgimento de novas classes, novas idéias e instituições que lhescorrespondem.

C) O período de transição não tem modo de produção próprio,é uma mescla, na qual se combinam elementos do antigo modo e do novo. É operíodo durante o qual se desenvolve lentamente os germes do novo modo deprodução em detrimento do antigo até produzir o seu desaparecimento e criar onovo modo dominante de produção.

D) Entre duas sociedades estáveis, e isso também valeráentre o capitalismo e o comunismo, é imprescindível um período de transição. Oesgotamento das condições do velho mundo não significa automaticamente que hajaamadurecido e se tenha alcançado as condições da nova sociedade. Ou seja, adeterioração da antiga sociedade não implica automaticamente a maturação danova, mas só é a condição dessa maturação.

E) Decadência e período de transição são então duasnoções distintas. Todo período de transição pressupõe a decomposição do velhomundo cujos modo e relações de produção chegaram ao limite extremo dedesenvolvimento. Porém, toda decadência não significa necessariamente que tenhaque existir um período de transição que constitui uma superação, para um modode produção mais avançado.

Por exemplo, oesgotamento do modo asiático não abriu o caminho para sua superação por outromodo de produção social. Igualmente, a Grécia antiga não tinha as condições históricaspara a superação do escravismo. Também foi o mesmo para o Egito antigo.

Diferençasentre a sociedade comunista e as demais

Para que possamosressaltar o caráter do período de transição do capitalismo para o comunismo e oque distingue este período de todos os que antecederam, temos de apoiarmos emuma idéia fundamental: um período de transição resulta do próprio caráter danova sociedade que vai surgir. Então é necessário por em evidência asdiferenças fundamentais que distinguem a sociedade comunista das demais.

A) Todas as sociedades anteriores (exceto o comunismoprimitivo) estavam divididas em classes.

  • O Comunismo é uma sociedade sem classes.

 B) Todas se baseavam na propriedade e na exploração dohomem pelo homem.

  • O comunismo não conhece a propriedade, nem individual, nem coletiva, é a comunidade humana unificada e harmoniosa.

 C) Todas as sociedades de classe se fundamentavam nainsuficiência do desenvolvimento das forças produtivas em relação às necessidadesdos homens. Por isso estão dominadas por forças naturais e sócio-econômicascegas. A humanidade está alienada à natureza e, consequentemente, às forçassociais às quais ela deu a luz.

  • O comunismo é o pleno desenvolvimento das forças produtivas em relação às necessidades do homem. É a emancipação da humanidade do império da natureza e da economia. É o domínio consciente da humanidade sobre suas condições de vida. É o mundo da liberdade, e não o da necessidade.

D) Todas as sociedades passadas arrastaram vestígiosanacrônicos dos sistemas econômicos, das relações sociais, das idéias e preconceitosdas que as antecederam. Isso se deve a que todas elas se baseavam napropriedade privada e na exploração do trabalho. Por isso uma nova sociedade declasse podia nascer e desenvolver-se no marco da antiga.

Por isso a novasociedade pode, enquanto vencedora, conter no seu interior e acomodar-se comvestígios da antiga sociedade derrotada, das antigas classes dominantes, atépode associá-las ao poder político. Assim foi como puderam subsistir nocapitalismo relações escravistas ou feudais, e que a burguesia compartilhoudurante bastante tempo seu poder com a nobreza.

  • A sociedade comunista é completamente diferente. Não aguenta no seu interior a mínima sobrevivência de relações econômico-sociais da sociedade anterior. Que lugar no comunismo pode existir para relações escravistas ou feudais? Isso é o que torna muito longo o período de transição do capitalismo para o comunismo. A humanidade necessitará várias gerações para livrar-se dos vestígios do velho mundo.

 E) Todas as sociedades anteriores não só estavamdivididas em classe, como também se fundavam necessariamente em divisõesgeográficas regionais ou políticas nacionais. Isso se deve, sobretudo, às leisdo desenvolvimento desigual que permitem que a evolução da sociedade, mesmo se orientandoglobalmente numa mesma direção, seja realizada de forma relativamente independente e separada e nos seus diversos setores e com defasagens que podemalcançar séculos. Esse desenvolvimento desigual, por sua vez, é devido aopequeno desenvolvimento das forças produtivas: há uma relação direta entre essenível de desenvolvimento e a dimensão na qual se realiza. Só é mediante asforças produtivas desenvolvidas pelo capitalismo que pela primeira vez nahistória existe uma interdependência real no mundo inteiro.

  • A sociedade comunista tem imediatamente como cenário o mundo inteiro. Para realizar-se, o comunismo exige uma mesma evolução no tempo e em todos os países. Ou é universal ou não pode ser.

 F) Ao estar baseadas na propriedade privada, na divisãoem classes e zonas geográficas, a produção das sociedades anteriores vainecessariamente para a produção de mercadorias com tudo que isso implica nonível de concorrência e da anarquia da produção e do consumo, reguladosunicamente pela lei do valor através do mercado e do dinheiro.

  • O comunismo ignora o intercâmbio e a lei do valor. Sua produção é socializada segundo o sentido real (pleno) do termo. É planificada universalmente segundo as necessidades dos membros da sociedade e para satisfazê-las. Essa produção só conhece valores de uso cuja distribuição direta exclui o intercâmbio, o mercado e o dinheiro.

 G) Por ser sociedades divididas em classe e, por tanto,em interesses antagônicos as sociedades anteriores não podiam sobreviver senãocriando um órgão especial aparentemente por cima das classes, porémdeterminando pela sua própria conservação e a dos interesses da classedominante: o ESTADO.

  • Ao ignorar essas divisões, o comunismo não necessita de Estado. Mais ainda, não pode manter um órgão de governo dos homens. No comunismo, não há lugar para nada além da administração das coisas.

 Característicasdos períodos de transição

O período de transiçãopara o comunismo está impregnado constantemente pela sociedade da qual nasce(pré-história da humanidade), e também pela sociedade da qual o período detransição é portador (a nova história da sociedade humana). Isso é o quedistingue o período de transição para o comunismo de todos os períodos detransição anteriores.

A) Os períodos de transição anteriores

Até agora, os períodosde transição tiveram em comum o de ter se desenvolvido no próprio seio daantiga sociedade. O reconhecimento e a proclamação definitiva da novasociedade, sancionados (reconhecimento e proclamação são sancionados) pelosalto da revolução, vem ao cabo do processo transitório. Isso por duas razões:

  • a) Todas as sociedades passadas tiveram os mesmos cimentos econômico-sociais, a divisão em classes e a exploração, o que implica que a revolução se limita a ser uma simples transferência de privilégios, não a supressão dos privilégios.
  • b) Todas essas sociedades sofrem cegamente os imperativos das leis baseadas na penúria de forças produtivas (o reino da necessidade). O período de transição entre ambas sofre conseqüentemente de um desenvolvimento econômico cego.

B)O período de transição para o comunismo

a) Por ser uma ruptura total com a exploração e a divisão dasociedade em classes, a transição para o comunismo exige uma ruptura radicalcom a antiga sociedade e só pode desenvolver-se fora dela .

b) O comunismo nãotem um modo de produção submetido a leis econômicas cegas opostas aoshomens, mas está baseado na organização consciente da produção permitida pelaabundância de forças produtivas que não pode oferecer a antiga sociedadecapitalista.

C) O que distingue o período de transição para o comunismo

Em conseqüência do quedissemos podemos tirar algumas conclusões:

I) O período de transição para o comunismo não pode iniciar-se senãofora do capitalismo. A maturação das condições do socialismo exige previamentea destruição da dominação política, econômica e social da burguesia sobre asociedade.

II) O período de transição só pode ser aberto em escala mundial

III) Contrariamente aos períodos de transição precedentes, asinstituições essenciais do capitalismo, Estado, polícia, exército, diplomacia,não podem ser utilizados tal como são pelo proletariado.

IV) A abertura do período de transição caracteriza-se em conseqüênciaessencialmente pela derrota política do capitalismo e o triunfo da dominaçãopolítica do proletariado. 

  • "Para converter a produção social num grande e harmonioso sistema de trabalho cooperativo, precisa-se de mudanças sociais gerais, mudanças nas condições gerais da sociedade que não podem ser realizadas senão por meio do poder organizado da sociedade - o poder do estado - arrancado das mãos dos capitalistas e proprietários imobiliários e transferido para as mãos dos próprios produtores". (Marx, "Instruções relativas às cooperativas aos delegados do Conselho geral no primeiro congresso da AIT em Genebra").
  • "A conquista do poder político se tornou o primeiro dever da classe trabalhadora" (Marx, "Pronunciamento inaugural da AIT")

Osproblemas do período de transição

A) A generalização mundial da revolução é a condiçãoprévia à abertura do período de transição. Dessa generalização depende toda aquestão das medidas econômicas e sociais; a propósito destas devemosparticularmente nos acautelar de "socializações", isoladas em umpaís, uma região, uma fábrica ou qualquer grupo de homens. Ainda depois doprimeiro triunfo do proletariado, o capitalismo mantém sua resistência através daguerra civil. Durante esse período, tudo depende da destruição da força docapitalismo. Esse primeiro objetivo condiciona a evolução do futuro.

B) Uma única classe éportadora do comunismo: o proletariado. Outras podem ser arrastadas na luta queleva o proletariado contra o capitalismo, porém como classes não podem serprotagonistas ou portadoras do comunismo. É por isso que temos de destacar uma tarefaessencial: a necessidade que tem o proletariado de não confundir-se nemdissolver-se com as demais classes. Durante o período de transição, enquantoclasse revolucionária historicamente responsável pela tarefa de criar umasociedade sem classes, o proletariado só pode assumi-la se afirmando comoclasse autônoma e politicamente dominante da sociedade. Ele só tem um programado comunismo que tenta realizar e para isso haverá de conservar em suas mãostoda a força política e toda força armada: tem o monopólio das armas.

Para levar isso acabo ele tem estruturas organizadas, os Conselhos Operários, baseados nas fábricas,e o Partido revolucionário.

A ditadura do proletariado podedessa maneira ser resumido assim:

  • O programa (o proletariado sabe aonde vai);
  • Sua organização geral como classe;
  • A força armada.

C) Quais são as relações do proletariado com as demaisclasses da sociedade?

I) Em relação à classe capitalista e aos antigos dirigentes da sociedadecapitalista (deputados, altos funcionários, exército, polícia, igreja...),supressão de qualquer direito cívico e exclusão de qualquer vida política;

II) Em relação aos camponeses e os artesãos, constituídos por produtoresindependentes e não assalariados e que são a maior parte da sociedade, oproletariado não poderá eliminá-los totalmente da vida política, como também davida econômica. Terá necessariamente que buscar um modus vivendi com essas classes, enquanto desenvolvaa seu respeito uma política de dissolução e de integração nas filasproletárias.

Embora a classetrabalhadora tenha a obrigação de tomar em conta essas classes na vidaeconômica e administrativa, não deverá dar-lhes possibilidade de umaorganização autônoma (imprensa, partido, etc.). Essas classes e camadas sociaisnumerosas terão que ser integradas em um sistema de administração soviéticoterritorial. Seus membros se integrarão na sociedade como cidadãos, não comoclasses.

III) Em relação às classes sociais que têm no capitalismo atual um lugarparticular como as profissões liberais, os técnicos, os funcionários públicos,os intelectuais (o que é chamado de "nova classe média") a atitude doproletariado será baseada sobre os critérios seguintes:

  • Essas classes não são homogêneas: na suas camadas superiores são fundamentalmente integradas numa mentalidade e função capitalistas, enquanto na suas camadas inferiores, elas têm a mesma função e os mesmos interesses de que a classe operária;
  • O proletariado deverá atuar com essas camadas no sentido de ampliar esta separação.

D) A sociedade transitória continua sendo uma sociedade dividida emclasses e, como tal, faz surgir necessariamente essa instituição própria atodas as sociedades divididas em classe: o Estado.

Com todas as amputaçõese medidas de precaução que se haverá de impor a essa instituição (funcionárioseleitos e revogáveis, salários iguais ao dos operários, unificação entre legislativoe executivo, etc.) e que reduzem esse Estado a um semi-Estado, nunca há de seperder de vista seu caráter histórico anticomunista e, portanto, antiproletário,essencialmente conservador. O Estado continua sendo o guardião do status quo.

Reconhecermos ainevitabilidade dessa instituição que o proletariado terá que utilizar como ummal necessário, tanto para acabar com a resistência da classe capitalistaderrubada, como para preservar um marco administrativo e político unido a umasociedade que continua dividida por interesses antagônicos.

Também temos querechaçar categoricamente a idéia de transformar esse estado em bandeira e motordo comunismo. Por conta do seu próprio caráter ("burguês por essência"segundo Marx), esse estado continua sendo essencialmente um órgão deconservação do status quo e um freio para o comunismo. Não pode então seridentificado com o comunismo nem a classe que o leva em si, o proletariado. Pordefinição, essa é a classe mais dinâmica da história visto que carrega odesaparecimento de todas as classes, inclusive ela mesma. Por isso, aindautilizando o Estado, o proletariado expressa sua ditadura não através dele, massobre ele. Por isso, igualmente, o proletariado não há de reconhecer o menordireito a essa instituição de intervir através da violência dentro da classetrabalhadora nem em arbitrar as discussões e a atividade dos organismos daclasse: conselhos e partido revolucionário.

Algumas medidas do período de transição

Sem ter a pretensão de fazer umplano detalhado dessas medidas, podemos já prever as linhas gerais:

  • socialização imediata das grandes concentrações capitalistas e dos centros principais para a atividade produtora;
  • planificação da produção e da distribuição, os critérios da produção já sendo a máxima satisfação das necessidades e não da acumulação;
  • a redução substancial do tempo de trabalho;
  • tentativa de ir para a supressão das remunerações salariais e do dinheiro;
  • a socialização do consumo e satisfação das necessidades (transportes, lazeres, descanso, etc.);
  • a orientação das relações entre setores coletivizados e setores de produção ainda individual (particularmente no campo) para um intercâmbio organizado e coletivo através das cooperativas, suprimindo assim o mercado e o intercâmbio individual.
Revistainternacional n° 1, 1975    

Estado e ditadura do proletariado

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Esta parte contêm três textos. O primeiro evidencia os ensinamentos que se pode tirar da experiência da revolução rússa, notadamente: "A derrota da revolução russa foi, em última instância, produto da derrota da revolução mundial e não da ação do Estado. Entretanto, nesse combate contra a contrarrevolução, a experiência pôs em evidência que o aparato do Estado e sua burocracia não eram nem o proletariado nem também a ponta de lança da sua ditadura... menos ainda uma instituição à qual a classe operária em armas deveria se submeter em nome de uma suposta 'natureza proletária'."

Os dois textos posteriores constituem contribuições contraditórias dentro de um debate que ocorreu na CCI nos anos 70, a propósito da natureza do Estado de transição:

  • O primeiro, do companheiro E. (cf. Carta do companheiro E.), trata o Estado do período de transição como uma ferramenta de transformação da sociedade ao serviço do proletariado, a forma concreta tomada pela ditadura do proletariado;
  • O segundo, a posição majoritária na CCI (cf. Resposta ao companheiro E.), trata esse Estado como um órgão necessário de coesão da sociedade ainda dividida em classes, mas que, por natureza, não constitui a força revolucionária de transformação da sociedade. Só o proletariado (organizado em conselhos operários) constitui esta força que, para o êxito da marcha para o comunismo, deve não apenas ficar independente do Estado e sim exercer sua ditadura sobre este órgão.

A experiência da revolução russa

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I - Introdução

Antes da experiência da Revolução na Rússia, os marxistas tinham uma concepção da relação entre proletariado e Estado durante o período de transição do capitalismo ao comunismo que era relativamente simples em sua essência.

Sabia-se que esta transição deveria começar com a destruição do poder político da burguesia e que essa fase não fazia mais que preceder à sociedade comunista, preparando-a, sociedade que, por sua vez, não teria nem classes, nem poder político, nem Estado. Sabia-se que no curso desse movimento, a classe operária teria que instaurar sua ditadura sobre o resto da sociedade. Sabia-se também que durante este período que contém ainda todos os estigmas do capitalismo, em particular pela subsistência da penúria material e das divisões da sociedade em classes, subsistiria inevitavelmente um aparato do tipo estatal. Sabia-se, por fim, sobretudo graças a experiência da Comuna de Paris de 1871, que este aparato não podia ser o Estado burguês "conquistado" pelos operários, mas que seria, na forma e conteúdo, uma instituição transitória, essencialmente diferente de todos os Estados que tinha existido até então. Porém, a respeito do problema da relação entre a ditadura do proletariado e este Estado, entre a classe operária e esta instituição produto das heranças do passado, acreditava-se que era possível resolver o problema com uma ideia simples: ditadura do proletariado e este Estado do período de transição são uma única e mesma coisa, classe operária e Estado são idênticos. De certo modo, acreditava-se que, durante o período de sua ditadura, o proletariado poderia fazer sua a célebre fórmula de Luís XV: "O Estado sou eu".

Dessa forma, no Manifesto Comunista se descreve este Estado como "o proletariado organizado em classe dominante": do mesmo modo, na crítica ao Programa de Gotha, Marx escrevia: "Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado." [1]

Mais tarde, às vésperas de outubro de 1917, Lênin, em pleno combate contra a social-democracia, que se comprazia na lama da primeira carnificina mundial ao participar dos governos dos Estados burgueses beligerantes, voltava a defender com força esta ideia no O Estado e a Revolução: "os marxistas proclamam a necessidade de o proletariado se apoderar do poder político, destruir totalmente a velha máquina do Estado e substituí-la por uma nova, consistindo na organização dos operários armados..." [2]

Ou também: "A revolução consiste em que o proletariado demole o "aparelho administrativo" e o aparelho do Estado inteiro, para substituí-lo por um novo, isto é, pelos operários armados" [3].

Dessa visão resultava naturalmente que o Estado do período de transição não podia ser outra coisa que a expressão mais acabada, mais eficaz, da classe operária e do seu poder. Tudo parecia bastante simples na relação entre Estado e proletariado visto que era uma única e mesma coisa. A burocracia estatal? Não existiria ou seria um problema sem maior importância visto que os próprios operários (até uma cozinheira, dizia Lênin) assumirão sua função. Imaginar seriamente a possibilidade de um antagonismo, de uma oposição, entre classe operária e Estado sobre o terreno econômico? Impossível!

Como poderia o proletariado fazer greve contra o Estado considerando que o Estado seria ele mesmo? Como poderia o Estado, por seu lado, tentar impor algo contrário aos interesses econômicos da classe operária visto que é sua emanação direta? Imaginar um antagonismo a nível político pareceria ainda mais improvável: Não devia o Estado ser o instrumento mais acabado da ditadura do proletariado? Como poderia expressar forças contrarrevolucionárias visto que, por definição, devia ser a ponta de lança do combate do proletariado contra a contra-revolução?

A Revolução Russa desmente categoricamente esta visão demasiada simples, mas que inevitavelmente predominava no movimento operário internacional que, com exceção da Comuna de Paris, não havia enfrentado nunca realmente os problemas do período de transição em toda sua complexidade.

Assim, logo após a tomada do poder em outubro de 1917, proclama-se o "Estado proletário"; os melhores operários, os combatentes mais experientes foram colocados à frente dos principais órgãos do Estado; se proibiram as greves; se prometeu aceitar todas as decisões dos órgãos do Estado como expressão das necessidades globais do combate revolucionário; finalmente, escreveu-se nas leis e na própria carne da revolução nascente a identidade tão proclamada entre Estado e classe operária.

No entanto, desde os primeiros momentos, os imperativos da subsistência social começaram a contradizer sistematicamente os fundamentos de tal identificação. Diante das dificuldades que tinha de enfrentar a revolução russa progressivamente sufocada pelo seu isolamento internacional, o aparato do Estado passou a ser não um corpo idêntico aos "operários armados" nem a encarnação mais global da ditadura do proletariado, mas, pelo contrário, um corpo de funcionários muito distinto do proletariado e uma força cujas tendências inatas não conduziam à revolução comunista e sim, ao contrário, ao conservadorismo. A burocratização dos funcionários encarregados da organização da produção, da distribuição, da manutenção da ordem, etc. se desenvolveram desde os primeiros meses sem que ninguém, nem mesmo os primeiros responsáveis do partido Bolchevique à frente do Estado - ainda que o combatessem - nada puderam fazer contra ela, e, sobretudo, sem que se pudesse reconhecer nessa burocracia estatal uma força contrarrevolucionária visto que era "o Estado proletário".

Tanto a nível econômico quanto político foi se criando progressivamente uma separação entre a classe operária e o que se supunha que era "seu" Estado. Já nos finais do ano de 1917, acontecem greves econômicas em Petrogrado; em 1919 correntes operárias comunistas de esquerda começam a denunciar a burocracia estatal e sua oposição aos interesses da classe operária; em 1920-21, no fim da guerra civil, esses antagonismos explodiram abertamente nas greves de Petrogrado de 1920 e na insurreição de Krondstadt de 1921, reprimida pelo Exército Vermelho. Resultado, no combate pela manutenção do seu poder, o proletariado na Rússia não encontrou no Estado o instrumento que esperava mas, ao contrário, uma força de resistência que se transformou rapidamente no principal protagonista da contrarrevolução.

A derrota da revolução russa foi, em última instância, produto da derrota da revolução mundial e não da ação do Estado. Entretanto, nesse combate contra a contra-revolução, a experiência pôs em evidência que o aparato do Estado e sua burocracia não eram nem o proletariado nem também a ponta de lança da sua ditadura... menos ainda uma instituição à qual a classe operária em armas deveria se submeter em nome de uma suposta "natureza proletária".

É certo que a experiência do proletariado na Rússia achou-se condenada à derrota a partir do momento em que não conseguiu estender-se mundialmente. É justo dizer que a potência do antagonismo Estado-proletariado foi uma manifestação da debilidade do proletariado mundial e da inexistência das condições materiais para um desenvolvimento verdadeiro da ditadura do proletariado. Porém, novamente seria criar ilusões ao acreditar que só a amplitude dessas dificuldades explica esse antagonismo e que, em melhores condições, a identificação entre ditadura do proletariado com o Estado do período de transição seria válida. O período de transição é uma fase em que o proletariado enfrenta uma dificuldade importante: estabelecer novas relações sociais enquanto, por definição, as condições materiais para o desenvolvimento daquelas estão somente instaurando sob a ação revolucionária dos operários em armas. Esta dificuldade desenvolveu-se na Rússia sob suas formas mais extremas, porém nem por isso deixa de ser essencialmente a mesma a que encontrará o proletariado amanhã. A importância das barreiras que encontrou a ditadura do proletariado na Rússia não faz dessa experiência uma exceção que confirmaria a regra da identidade proletariado-Estado do período de transição, mas, pelo contrário, um fator que permitiu colocar em evidência, sob suas formas mais agudas, a inevitabilidade e a natureza do antagonismo que opõe a força revolucionária proletária à instituição de manutenção da ordem durante o período de transição.

Desde sua constituição, a CCI, continuando os trabalhos da Esquerda Italiana ("Bilan") entre as duas guerras e os do grupo "Internationalisme" nos anos 40, tem empreendido a complexa e indispensável tarefa de retomar, revisar e completar a compreensão revolucionária da relação entre Estado e proletariado durante o período de transição, à luz da experiência russa (ver os números 1, 2, 3 e 6 da Revista Internacional).

Dentro do marco desse esforço, publicamos aqui, por uma parte, a carta de um companheiro que reage criticamente às teses desenvolvidas sobre este tema na resolução adotada pelo II Congresso de "Revolution Internationale", seção na França da CCI (ver a Revista Internacional nº 6) e, por outra parte, uma resposta às críticas da carta.

CCI


[1] Fonte: https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm#i1 [1]

[2] O Estado e a Revolução (Cáp. VI, 3)
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/index.htm [2]

[3] Idem. (Cáp. VI, 3)

O Estado como órgão da transformação comunista (Carta do companheiro E.)

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O marxismo, na medida em que é conhecimento cientifico da sucessão dos modos de produção e das formas sociais de produção no passado, é também previsão das etapas e das características fundamentais e indissociáveis da última forma social - o comunismo - que sucederá a que hoje vivemos. As formas econômicas se transformam segundo um processo ininterrupto na história da sociedade humana. No entanto, este processo se traduz na forma de períodos de convulsões e de lutas, durante as quais o enfrentamento político e armado das classes rompe as barreiras que impedem o nascimento e o desenvolvimento acelerado da nova forma; é o período de luta pelo poder, cujo fim é uma ditadura da força de amanhã sobre a de ontem (ou o inverso, até uma nova crise). O revisionismo socialista da penúltima guerra pretendia apagar a teoria de Marx e Engels sobre a ditadura. Corresponde a Lênin o mérito de ter voltado a colocá-la no caminho em "Estado e a Revolução", onde ao restaurar completamente o marxismo, leva até as últimas conseqüências o dever teórico da destruição do Estado burguês. Lênin, em perfeita conformidade com a doutrina marxista, coloca, pois, o marco que permite distinguir as fases sucessivas na transição do capitalismo ao comunismo.

Estágio intermediário

O proletariado conquistou o poder político e, como todas as demais classes no passado, impõe sua própria ditadura. Ao não poder abolir de uma vez só as demais classes, o proletariado as põe fora da lei. O que quer dizer que o Estado proletário controla a economia que contém, ainda que em constante declínio, não só uma distribuição mercantil como também formas de apropriações privadas dos produtos e dos meios de produção tanto individuais como associados. Ao mesmo tempo, com suas intervenções despóticas, abre o caminho que leva à fase inferior do comunismo. Pode-se, portanto, comprovar que, contrariamente ao que dizia R. sobre uma pretendida complexidade da concepção do Estado e do seu papel na teoria de Lênin, a essência dessa concepção é muito simples: o proletariado, ao alçar-se em classe dominante, cria seu próprio órgão de Estado, diferente dos precedentes pela forma, porém que conserva essencialmente a mesma função: opressão das demais classes, violência concentrada contra elas para que triunfem seus interesses históricos enquanto classe dominante, embora estes coincidam a longo prazo com os da humanidade.

Comunismo inferior

Nesta fase, a sociedade dispõe já de produtos em geral repartindo-os entre seus membros segundo um plano estabelecido de repartição oficialmente determinada. Para isto, já não se necessita intercâmbio mercantil nem de moeda: a distribuição é feita centralmente sem intercâmbio de equivalentes. Nesta fase, o trabalho não só é obrigatório, tem que contabilizar também o tempo efetivamente realizado com certificados que o comprove: os conhecidos "bônus de trabalho" tão discutidos que têm a característica de não poder ser acumulados, de maneira que qualquer tentativa de acumulação só pudesse ser uma perda, com uma parte do trabalho efetuado que não recebe nenhum equivalente. A lei do valor deixa de existir porque "a sociedade não lhe atribui nenhum valor aos produtos" (Engels). A este segundo estágio sucede o comunismo superior, sobre o qual não vamos nos estender.

Com já vimos, o marxismo coloca, no início da fase de transição e como premissa necessária, a revolução política violenta da qual surge inevitavelmente a ditadura de classe. Será pelo exercício desta ditadura que, com intervenções despóticas apoiadas pelo monopólio das forças armadas, o proletariado atualizará as profundas "reformas" que destruirão até o último vestígio da forma capitalista.

Até aqui, parece que não há nenhuma divergência. As dificuldades começam quando se afirma que "o Estado tem uma natureza histórica anticomunista e antiproletária" e "essencialmente conservadora" e que, portanto, sua "ditadura (a do proletariado) não pode encontrar em uma instituição conservadora por excelência sua própria expressão autêntica e total" (RI nº.17 p.33). Aqui o anarquismo (e perdoem-me a brutalidade das palavras), depois de ter sido expulso pela porta, entra pela janela. De fato, aceita-se a ditadura do proletariado, porém se esquece que o Estado e ditadura, ou poder exclusivo de uma classe, são sinônimos.

Antes de criticar mais especificamente algumas afirmações do texto a que nos referimos, quero recordar as linhas fundamentais da teoria marxista sobre o Estado. Cada Estado se define, segundo Engels, por um território preciso e pela natureza da classe dominante. Define-se, pois, por um lugar, a capital onde se reúne o governo, que para o marxismo, é o "comitê de administração dos interesses da classe dominante". Na fase que vai do poder feudal ao poder burguês, se forma a teoria política - típica da mistificação burguesa - que em todas as revoluções históricas, tem dissimulado a natureza da passagem do feudalismo e capitalismo. A burguesia na sua consciência mistificada afirma que destrói o poder de uma classe não para substituí-la por outra classe, mas para construir um Estado que funda seu próprio poder sobre a ordem e a harmonia entre as exigências de "todo um povo". Porém em todas as revoluções, uma série de fatos evidenciaram a robustez e a dinâmica revolucionária marxista baseada nas classes, visto que a ditadura de uma classe vem sempre acompanhada da violação da liberdade das demais e também de violências exacerbadas contra seus partidos, até chegar ao terror, fato que também é inseparável das revoluções puramente burguesas.

Um dos primeiros atos que tem de cumprir é a demolição do antigo aparato de Estado que a classe que tomou o poder deve empreender sem vacilações. São essas lições que tirou Marx da Comuna de Paris, a qual, ao instalar-se no "Hotel de Ville", opôs o Estado ao Estado armado, afogou no terror (antes que fosse afogada por sua vez)- para os indivíduos da classe inimiga. E "se houve erro não foi o de ter sido demasiado ferozes, foi o de não haver sido o suficiente".

Dessa importante experiência do proletariado, Marx tirou o ensinamento fundamental, o qual não podemos renunciar, de que as classes exploradoras necessitam da dominação política para manter a exploração: e que o proletariado necessita dela para suprimi-la por completo. A destruição da burguesia não é realizável senão através da transformação do proletariado em classe dominante. Isto quer dizer que a emancipação da classe trabalhadora é impossível dentro dos limites do Estado burguês. Este tem que ser derrotado na guerra civil, e seu funcionamento destruído. Após a vitória revolucionária, tem que surgir outra forma histórica, a ditadura do proletariado, que abrirá o caminho para o período histórico em que surge a sociedade socialista e se extingue o estado.

Depois dessa breve afirmação das que são para mim as bases da doutrina marxista do Estado e da passagem de um sistema social a outro e, mais especificamente, do capitalismo ao comunismo, vou deter-me no texto da resolução relativo ao período de transição. O que salta aos olhos de tal documento é antes de tudo o caráter contraditório de certas afirmações.

Se de um lado se afirma (§ 2) "que a tomada o poder político geral na sociedade por parte do proletariado precede, condiciona e garante a continuidade da transformação econômica e social", não se toma em conta o fato de que tomar o poder político significa instaurar uma ditadura sobre as demais classes e que o Estado é e foi sempre o órgão (com diferenças nas suas características: funcionamento, divisão dos poderes, representação, segundo o modo de produção e as classes cujo domínio representa) da ditadura de uma classe sobre as demais.

Além disso, quando afirma (§ 7) que "toda esta organização estatal exclui categoricamente qualquer participação das classes e camadas sociais exploradoras que se verão privadas de todo direito político e civil", não dá conta de que todas as características justas deste Estado, expressas nos demais pontos do mesmo parágrafo, e, sobretudo, as características já citadas sobre a representação política de uma só classe, não são simples diferenças formais, mas que destroem todas as afirmações que servem para identificar o Estado da burguesia e, por isso, dão uma base à identidade "que tanto se trata de combater" entre Estado e ditadura do proletariado.

Porém, sobre que bases se chega a afirmar a necessidade absoluta para o proletariado de não identificar sua própria ditadura e o Estado do período de transição? Principalmente porque se afirma (§ 8) que o Estado é uma instituição conservadora por excelência. Isto beira o anti-historicismo do anarquismo e sua oposição de princípio ao Estado. Os anarquistas tiram sua conclusão da necessidade de libertar-se de sua Senhoria "a Autoridade". "Revolution Internationale" claro que não chega a esse ponto, porém, exatamente como os anarquistas, julga o Estado conservador e reacionário em qualquer época social, em qualquer área geográfica, qualquer que seja a direção para a qual se orienta, e, portanto, qualquer que seja a dominação de classe, de que é expressão, independentemente do período histórico durante o qual essa dominação se exerce.

Nada tem a ver isso com o marxismo. Para o marxismo, o estado é antes de tudo uma instituição diferente segundo as épocas históricas, tanto por suas características formais como por suas funções próprias. De fato, o materialismo do marxismo nos ensina, se nos referimos à história, que no passado e nas fases revolucionárias, era só uma classe conquistar o poder, esta estabiliza o tipo de organização estatal que melhor corresponde à defesa dos seus interesses de classe. O Estado assumia então a função revolucionária que tinha a classe - então revolucionária - que o havia instituído. Quer dizer: facilitar, com suas intervenções despóticas -depois de haver destruído pelo terror a resistência das velhas classes- o desenvolvimento das forças produtivas, varrendo os obstáculos que entorpecem seu caminho, estabilizando e impondo com o monopólio das forças armadas um marco de leis e de relações de produção que favoreçam esse desenvolvimento e respondendo aos interesses da nova classe no poder. Por exemplo, para citar só um, o Estado francês de 1793 assumiu uma função eminentemente revolucionária.

Expressa-se outro raciocínio no mesmo parágrafo do ponto C: "o Estado do período de transição conserva ainda todos os estigmas de uma sociedade dividida em classes". Esse é um raciocínio muito estranho, visto que tudo que emana da sociedade capitalista conserva seus estigmas. Não somente o Estado, como também o proletariado organizado nos Sovietes, pois foi desenvolvido e foi educado sob a forte influência da ideologia conservadora do sistema capitalista. Só o partido, embora não constitua uma ilha de comunismo dentro do capitalismo, está menos marcado por esses estigmas visto que nele se fundem "Vontade e consciência que se convertem em premissas da ação, como resultado de uma colaboração geral histórica" (Bordiga). (Essas afirmações podem parecer sumárias, porém as esclarecerei em outra ocasião).

Para concluir quero me deter sobre a profunda contradição a que conduz essa visão. Na realidade, afirma (§8 ponto C): "sua dominação (do proletariado) sobre a sociedade é também dominação sobre o Estado e só pode assumi-la através sua ditadura de classe". Quero responder com as palavras clássicas de Lênin que, em "O Estado e a Revolução", sublinha mais uma vez a essência da doutrina marxista do estado: "O fundo da doutrina de Marx sobre o Estado só foi assimilado pelos que compreenderam que a ditadura de uma classe é necessária, não só a toda sociedade dividida em classes, em geral, não só ao proletariado vitorioso sobre a burguesia, mas ainda em todo o período histórico que separa o capitalismo da "sociedade sem classes", do comunismo. As formas dos Estados burgueses são as mais variadas; mas a sua natureza fundamental é invariável: todos esses Estados se reduzem, de um modo ou de outro, mas obrigatoriamente, afinal de contas, à ditadura da burguesia. A passagem do capitalismo para o comunismo não pode deixar, naturalmente, de suscitar um grande número de formas políticas variadas, cuja natureza fundamental, porém, será igualmente inevitável: a ditadura do proletariado" [1]

Portanto, do ponto de vista marxista, o Estado se define como um órgão (diferente na forma e nas estruturas segundo os períodos históricos, as sociedades de classes e a direção de classe em que atua) por meio do qual se exerce a ditadura do proletariado, dispondo do monopólio da força armada.

Por isso, não faz sentido falar de um Estado que esteja submetido a uma ditadura que vem de seu exterior e que não pode intervir de maneira despótica na realidade econômica e social para orientá-la rumo a certa direção de classe.

E.


[1] O Estado e a Revolução (Cáp. II, 3)
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/index.htm
[2]

Os conselhos operários, única força de transformação comunista (Resposta ao companheiro E.)

  • 2561 leituras

A crítica formulada pelo companheiro E. está apoiada essencialmente sobre duas idéias .: a primeira consiste no rechaço da afirmação de que "o Estado é uma instituição conservadora por excelência"; a segunda, na reafirmação da identidade Estado e ditadura do proletariado durante o período de transição, posto que o Estado é sempre Estado da classe dominante. Vejamos, assim, de mais perto o conteúdo desses argumentos.

E. escreve: "...se afirma (na resolução de RI) que o Estado é uma instituição conservadora por excelência. Isto beira o anti-historicismo do anarquismo e sua oposição de princípio ao Estado. Os anarquistas tiram sua conclusão da necessidade de libertar-se de sua Senhoria "a Autoridade". Revolution Internationale claro que não chega a esse ponto, porém, exatamente como os anarquistas, julga o Estado conservador e reacionário em qualquer época social, em qualquer área geográfica, qualquer que seja a direção para a qual se orienta, e, portanto, qualquer que seja a dominação de classe, de que é expressão, independentemente do período histórico durante o qual essa dominação se exerce".

Antes de ver porque o Estado é efetivamente "uma instituição conservadora por excelência" responderemos ao argumento polêmico que consiste em identificar nossa posição com a dos anarquistas.

Nossa concepção sofreria de um "anti-historicismo anarquista" porque destaca uma característica da instituição estatal (seu caráter conservador) independentemente da "área geográfica", "da dominação de classe da qual é a expressão", e "do período histórico durante o qual esta dominação é exercida". Porém, em que destacar as características gerais de uma instituição ou de um fenômeno através da história, independente das formas específicas que esta possa conhecer segundo o período, seria típica de um "anti-historicismo"? Então, o que é saber utilizar a história para compreender a realidade se não é antes de mais nada saber destacar as leis gerais que se verificam através de diferentes períodos e condições específicas? O marxismo é, por acaso, "anti-histórico" quando diz que desde qua a sociedade está dividida em classes "a luta de classes é o motor da história", qualquer que seja o período histórico e quaisquer que sejam as classes?

Pode-se ressaltar a necessidade de distinguir em cada Estado da história (Estado Feudal, Estado burguês, Estado do período de transição, etc.) o que é particular, específico. No entanto, como é possível compreender essas particularidades se não se sabe em relação a quais generalidades elas se definem? O fato de destacar as características gerais de um fenômeno no curso da história, através de todas as formas particulares - por diferentes que sejam - que tenha tomado segundo os períodos, é não só o próprio fundamento de uma análise histórica como também a condição principal para poder compreender em que consiste as especificidades de cada expressão particular do fenômeno.

A partir de um ponto de vista marxista, pode-se ter a tentação de colocar em causa a veracidade da lei geral que destacamos sobre a natureza conservadora do Estado, porém de nenhum modo atacar o fato em si de querer reconhecer a característica histórica geral de uma instituição. Do contrário se nega a possibilidade de toda análise histórica.

Depois nos diz que nossa posição se assemelha à do anarquismo pelo fato de constituir uma "oposição de princípio ao Estado". Recordemos em que consiste esta oposição de princípio dos anarquistas ao Estado: rechaçando a análise da história em termos de classe e do determinismo econômico, os anarquistas não compreenderam nunca o Estado como produto das necessidades de uma sociedade dividida em classes, mas como um mal em si que, igual à religião e ao autoritarismo, está na base de todos os males da sociedade ("Estou contra o Estado porque o estado é maldito", dizia Louise Michel). Pelas mesmas razões, consideram que, entre o capitalismo e o comunismo, não há nenhuma necessidade do período de transição e, menos ainda, de Estado: o Estado poderá e deverá ser "abolido", "proibido" por decreto no dia seguinte à insurreição geral.

O que há de comum entre esta visão e a que afirma que o Estado, produto da divisão da sociedade em classes, tem uma essência conservadora visto que tem como função de frear e manter o conflito entre as classes dentro da ordem e da estabilidade social? Se sublinhamos o caráter conservador dessa instituição não é para preconizar uma indiferença "apolítica" do proletariado com relação a ele ou para propagar ilusões sobre a possibilidade de fazer desaparecer a instituição estatal com um decreto de proibição embora a divisão de classes subsista, mas para ressaltar porque o proletariado, longe de se submeter incondicionalmente à autoridade desse Estado durante o período de transição - como o preconiza a idéia que no Estado se veja a encarnação da ditadura do proletariado -, deve, ao contrário, submeter esse aparato, em uma relação de força permanente, à sua própria ditadura de classe. O que há de comum entre essa visão e a dos anarquistas que rechaçam em bloco o Estado, período de transição e, sobretudo, a necessidade da ditadura do proletariado?

Assimilar essa análise à visão anarquista é falar por falar com argumentos de polêmica irrelevantes.

Entretanto, chegamos ao problema de fundo: Por que o Estado é uma instituição conservadora por excelência?

A palavra conservador significa por definição o que - ou aquele que - se opõe a toda inovação, o que - ou aquele que - é resistente a toda mudança ou transtorno do estado de coisas existente. Pois bem, o Estado, qualquer que seja, é uma instituição cuja função essencial não é mais do que a manutenção da ordem, a manutenção da ordem existente. Ele é o resultado da necessidade em toda sociedade dividida em classes de se dotar de um órgão capaz de manter pela força uma ordem que não é capaz de existir de maneira espontânea, harmoniosa, pelo fato da sua própria divisão em grupos sociais, com interesses econômicos antagônicos. Por isso, constitui a força à qual tem de opor-se toda ação que tende a transtornar a ordem social e, portanto, toda ação revolucionária.

  • "Portanto, o Estado não é de nenhum modo um poder imposto a partir de fora à sociedade"; tampouco é "a realidade da idéia moral", nem "a imagem e a realidade da razão", como afirma Hegel. É bem mais um produto da sociedade quando chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se envolveu em uma irremediável contradição consigo mesma e está dividida por antagonismos irreconciliáveis, que é impotente para conjurar. Mas para que esses antagonistas, as classes com interesses econômicos em disputa, não devorem a si mesmas e não consuma a sociedade em uma luta estéril, faz-se necessário um poder situado aparentemente por cima da sociedade e chamado a amortecer o choque, a mantê-la nos limites da "ordem". E esse poder, nascido da sociedade, mas que se põe por cima dela e se divorcia dela cada vez mais, é "O Estado" ". (Engels, O origem da família - Cap. XII : Barbárie e civilização. Tradução nossa; O sublinhado é nosso)

Na famosa formulação de Engels em A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, explicando a necessidade à qual corresponde o Estado e a função decorrente, encontra-se claramente afirmado este aspecto essencial do papel dessa instituição: amortecer o choque entre classes, mantendo nos limites da ordem. E, algumas páginas mais adiante: "o Estado nasceu da necessidade de frear os antagonismos de classe".

Quando se sabe que a força que cria os transtornos revolucionários não é outra senão a luta de classes, quer dizer, esse "conflito", essa "oposição" que o Estado tem como função "amortecer", é fácil compreender porque o Estado é uma instituição essencialmente conservadora.

Nas sociedades de exploração onde o Estado é abertamente o guardião dos interesses da classe economicamente dominante, o papel conservador do Estado frente a todo movimento que tende ameaçar a ordem econômica existente, da qual o Estado é sempre, junto com a classe dominante, beneficiário, fica muito evidente. No entanto, esta característica conservadora não está menos presente no Estado do período de transição ao comunismo.

A cada passo dado pela revolução comunista (destruição do poder político da burguesia em um ou vários países, logo no mundo inteiro, coletivização de novos setores da produção, desenvolvimento da coletivização da distribuição nos centros industriais e logo em regiões agrícolas avançadas, em seguida nas atrasadas etc.), a cada uma dessas etapas e enquanto o desenvolvimento das forças produtivas não haja alcançado um grau de desenvolvimento suficiente capaz de permitir que cada ser humano possa participar realmente em uma produção coletivizada em escala mundial e receber da sociedade "segundo suas necessidades", até que a humanidade não tenha alcançado esse estágio de riqueza que poderá permitir desfazer-se por fim de todos os sistemas de racionamento da distribuição dos produtos e unificar-se em uma comunidade humana sem divisões, a cada passo a sociedade deverá dotar-se de regras de vida, de leis sociais estáveis e uniformes que lhe permitam viver de acordo com as condições de produção existentes, sem ver-se por isso desgarrada por conflitos internos entre as classes que subsistem, enquanto se espera o passo seguinte para frente.

Pelo fato de que se trata de leis que expressam ainda um estado de penúria, isto é, um estado no qual o bem estar de uns tende a fazer-se em detrimento dos demais, trata-se de leis que - mesmo instaurando "a igualdade na penúria" - exigem, para ser aplicadas, um aparato de coerção e de administração que as impunha e que faça ser respeitadas pelo conjunto da sociedade. Este aparato é o Estado.

Se durante o período de transição, fosse decidido, por exemplo, distribuir gratuitamente os bens de consumo no que seriam os centros de distribuição, enquanto a penúria continua ainda atormentando a sociedade, haveria quem sabe alguns milhares de pessoas que poderiam, no primeiro dia, servir-se segundo as suas necessidades - os primeiros que chegarem aos centros - mas, pelo menos, outras tantas pessoas estariam sujeitas a passar fome. No período de escassez, distribuir, embora seja de maneira igualitária, impõe a instauração de regras de racionamento e, com elas, o "funcionário": O estado de "vigilantes e de contadores" de que falava Lênin.

A função deste Estado não é uma função revolucionária embora a ordem política existente seja a da ditadura do proletariado. Sua função intrínseca é, no melhor dos casos, a de estabilizar, regularizar, institucionalizar as relações sociais existentes. A mentalidade do burocrata do período de transição (pois não há Estado sem burocratas) não se caracteriza pela sua audácia revolucionária, longe disso. Sua mentalidade tende inevitavelmente a ser a de todos os funcionários: a manutenção da ordem, a estabilidade das leis que se encarrega de fazer aplicar... e, na medida do possível, a defesa dos seus interesses de privilegiado. Quanto mais dura a penúria que faz indispensável a existência desse Estado, , mais aumenta a força conservadora desse aparato e, com isso, a tendência para um ressurgimento de todas as características da velha sociedade.

Em A Ideologia Alemã, Marx escrevia: "esse desenvolvimento das forças produtivas (...) é um pressuposto prático absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos gêneros necessários recomeçariam e toda velha imundície acabaria por restabelecer" (A Ideologia Alemã - Primeira Parte - Artigos, rascunhos, textos prontos para impressão e anotações referentes aos capítulos "I. Feuerbach" e "II. São Bruno" Ed. Boitempo.1ª Edição. Pag.38 nota C)

A revolução russa onde o poder do proletariado ficou isolado, condenado à pior penúria, foi a trágica demonstração através da prática, desta visão. Porém ao mesmo tempo mostrou que a " velha imundície" ressuscitava primeiro e antes de tudo no mesmo lugar onde se acreditava que se encontrava a encarnação da ditadura do proletariado: no Estado e sua burocracia.

Citemos um testemunho dos mais significativos, visto que foi um dos principais defensores da identidade entre ditadura revolucionária do proletariado e Estado do período de transição, Leon Trotsky:

  • "A autoridade burocrática tem como base a escassez de artigos de consumo e a luta contra tudo que resulta dela. Quando há mercadorias suficientes em um armazem (centro de distribuição), os clientes podem vir a qualquer momento. Quando há pouca mercadoria, os compradores se vêem obrigados a fazer fila na porta. Quando a fila se torna muito extensa, a presença de um agente de polícia se impõe para manter a ordem. Esse é o ponto de partida da burocracia soviética. Ela "sabe" a quem dar e quem deve esperar..."
  •  "(A burocracia) surge no início como o órgão burguês da classe operária. Estabelecendo e mantendo os privilégios da minoria, naturalmente atribui a si a melhor parte: aquele que distribui os bens não prejudica nunca a si mesmo. Assim nasce da sociedade um órgão que, extrapolando muito sua função social necessária, converte-se em um fator autônomo e ao mesmo tempo na fonte de grandes perigos para todo o organismo social."

(A Revolução Traída; Tradução nossa)

Claro, o próximo movimento revolucionário não conhecerá seguramente condições materiais tão desastrosas como foram as da Rússia. Entretanto, a necessidade de um período de transição, um período de luta contra a indigência e a penúria em escala mundial não será menos inevitável que a subsistência de uma estrutura estatal. O fato de dispor de um maior potencial de forças produtivas para empreender a criação das condições materiais da sociedade comunista constitui um elemento fundamental para o definhamento do Estado e, portanto, da sua força conservadora sob a ditadura do proletariado. Mas nem por isso esta característica é eliminada. Assim, continua sendo de primordial importância que o proletariado consiga assimilar as lições da experiência russa e saiba ver no Estado deste período não a encarnação suprema da sua ditadura mas um órgão que deverá ser submetido pela sua ditadura e a respeito do qual deverá manter a sua autonomia organizativa.

Uma força de estabilização, não de mudança

Mas, diz a nós, a história mostra que o Estado tem uma função revolucionária quando a classe que o estabelece é também revolucionária:

  •  "... no passado e nas fases revolucionárias, era só uma classe conquistar o poder, esta estabiliza o tipo de organização estatal que melhor corresponde à defesa dos seus interesses de classe. O Estado assumia então a função revolucionária que tinha a classe - então revolucionária - que o havia instituído. Quer dizer: facilitar, com suas intervenções despóticas -depois de haver destruído pelo terror a resistência das velhas classes- o desenvolvimento das forças produtivas, varrendo os obstáculos que entorpecem seu caminho, estabilizando e impondo com o monopólio das forças armadas um marco de leis e de relações de produção que favoreçam esse desenvolvimento e respondendo aos interesses da nova classe no poder. Por exemplo, para citar só um, o Estado francês de 1793 assumiu uma função eminentemente revolucionária".

Não se trata aqui de brincar com as palavras. "Assumir uma função revolucionária" por um lado e "estabilizar um marco de leis e de relações que respondam aos interesses da nova classe no poder" pelo outro, não descreve a mesma coisa. A partir do momento em que a luta de uma classe revolucionária consegue estabelecer uma relação de força na sociedade a seu favor, é evidente que o marco jurídico, a instituição que tem como função a de estabilizar as relações de forças existentes na sociedade, traduz obrigatoriamente este novo estado de fato em leis e em intervenções do executivo para fazê-las aplicar. Toda ação política de envergadura em uma sociedade dividida em classes tem, pois, como corolário uma estrutura estatal e só pode atingir sua meta se, cedo ou tarde, consegue concretizar-se ao nível de leis e da ação do Estado. Por exemplo, foi assim que o Estado de 1793 na França legalizou medidas revolucionárias impostas de fato pelas forças revolucionárias: execução do rei, lei sobre os suspeitos e instauração do Terror contra os elementos reacionários, requisições e racionamentos, confisco e venda dos bens dos imigrantes, imposto sobre os ricos, "descristianização" e fechamento das igrejas, etc.... Da mesma forma, o Estado dos sovietes na Rússia tomou medidas revolucionárias tais como a instauração do poder dos sovietes e da destruição do poder político da velha classe, organização da guerra civil contra os exércitos brancos, etc.

Mas, pode-se dizer por isto que o Estado assumiu a função revolucionária das classes que o instauraram?

O problema que se coloca é o de saber se esses fatos demonstram que o Estado é conservador apenas na medida em que quando a classe dominante também é conservadora, e ao contrário, revolucionário quando esta última é revolucionária. Em outras palavras, o Estado não teria nenhuma tendência conservadora ou revolucionária intrínseca. Seria simplesmente a encarnação institucional da vontade da classe dominante politicamente ou, para repetir uma fórmula de Bukárin sobre o Estado e o proletariado, durante o período de transição:

  •  "A razão coletiva da classe operária (...) encontra sua encarnação material na organização suprema e universal, a do aparato de Estado". (Questions économiques de la Période de transition -Edts EDI, p. 110. Tradução nossa))

Vejamos, pois, esses acontecimentos mais de perto. Iniciamos por: "O Estado francês de 1793, é o mais radical por suas medidas, de todos os Estados burgueses da história" (carta de E.) (Trataremos da Revolução Russa no ponto seguinte).

O Estado de 93 é o da Convenção Nacional, instaurada nos finais de 92 depois da destruição da Monarquia pela Comuna Insurrecional de Paris e o terror imposto por esta: a Convenção sucedia o Estado da Assembléia Legislativa que havia "organizado" as guerras revolucionárias, mas cuja existência se viu ameaçada pela queda do trono e pelo poder real da Comuna Insurrecional que o Estado tentou em vão dissolver (em 1º de setembro, a Assembléia Legislativa proclamou a dissolução da Comuna, mas teve que rever sua decisão nessa mesma noite).

A Assembléia Legislativa, por sua vez, sucedia a Constituinte que, depois de ter declarado abolidos os direitos senhoriais e adotado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, havia se negado a proclamar a deposição do rei.

Antes de ver como foram tomadas as famosas medidas radicais de 93, observamos já que os acontecimentos que vão desde a conquista do poder pela burguesia em 89 ao advento da Convenção três anos depois (setembro de 92) não tem nada a ver com a descrição simplista que nos oferece o camarada E.

"No passado e nas fases revolucionárias, era só uma classe conquistar o poder, esta estabiliza (sic) o tipo de organização estatal que melhor corresponde à defesa dos seus interesses de classe". (Alterei a Carta de E. em consequëncia) OK

Na realidade, foi só a burguesia conquistar o poder político em 1789, começa um processo longo e complexo no qual a classe revolucionária longe de "estabilizar" o Estado que acabava de instaurar, vê-se obrigada a colocá-lo sistematicamente em questão para poder levar a cabo sua missão revolucionária.

Foi só o Estado ter consagrado uma nova relação de força instaurada pelas forças vivas da sociedade (por exemplo, a abolição dos direitos feudais pela Constituinte depois dos acontecimentos de julho de 89 em Paris) que logo o marco institucional, que se encontra estabilizado por esse ato, revela-se insuficiente e se transforma em freio para os novos desenvolvimentos da mudança revolucionária (negação da Constituinte em pronunciar a deposição do rei e repressão por esta dos movimentos populares nesse sentido).

Se de 89 a 93, a Revolução necessitou de três formas estatais (tendo conhecido, cada uma, diferentes governos), é precisamente porque nenhum desses Estados conseguiu "assumir a função revolucionária da classe que os instituiu". Cada novo passo adiante da Revolução toma, assim, a forma de uma luta, não só contra as classes do velho regime, como também contra o Estado "Revolucionário" e sua inércia legalista e conservadora.

Nem mesmo o ano de 1793 marcou uma "estabilização do tipo de organização estatal que melhor respondesse a defesa dos interesses da burguesia". Corresponde, ao contrário, ao apogeu da desestabilização da instituição estatal. Teve que esperar Napoleão, os seus códigos jurídicos, a sua reorganização da administração e seus "Cidadãos! A revolução é ligada aos princípios que a iniciaram, e acabou", para que verdadeiramente possa começar a se falar de estabilização [1].

E como poderia ser de outro modo? Como uma classe verdadeiramente revolucionária poderia tratar, no próprio momento do combate, o representante da "manutenção da ordem" (embora seja a sua) senão a chutes para tirá-lo das suas preocupações administrativas e suas formalidades jurídicas com que tenta, segundo a expressão de Engels, "amortizar o choque (entre classes), mantê-lo dentro dos limites da ordem"?

Acreditar que a instituição estatal pode ser "a encarnação material" da vontade revolucionária de uma classe é tão absurdo como imaginar que uma revolução posa desenvolver-se de maneira ordenada. É pedir a um órgão cuja função essencial é a de assumir a estabilidade da vida social, que encarne o espírito de subversão ao qual tem precisamente como tarefa afogar as forças vivas da sociedade; é pedir a um corpo de burocratas que tenham o espírito de uma classe revolucionária. Uma revolução é a explosão formidável das forças vivas da sociedade que tomam diretamente em suas mãos o destino do corpo social, transtornando sem respeito nem titubeios toda instituição (mesmo criada por ela) que entrave seu movimento. A potência de uma revolução se mede assim, em primeiro lugar, pela capacidade da classe revolucionária não se deixar aprisionar no pelourinho legal das suas primeiras conquistas, em saber ser tão impiedosa com as insuficiências dos seus primeiros passos como com as forças do velho regime. A superioridade política da revolução burguesa na França em relação à da burguesia inglesa residiu precisamente na sua capacidade de não se deixar paralisar pelo fetichismo do Estado e ter conseguido transtornar incessantemente e sem piedade sua própria instituição estatal até suas últimas conseqüências.

Porém, chegamos ao famoso Estado francês de 1793 e às suas medidas, considerando que constitui precisamente, por um lado, o exemplo proposto pelo camarada E. para demonstrar as supostas capacidades revolucionárias da instituição estatal e, por outro, uma das mais evidentes ilustrações da impotência desta instituição nesse terreno.

Na realidade, as grandes medidas revolucionárias do período de 1793 não foram tomadas por iniciativa do Estado, mas contra ele. Sua realização se deve à ação direta das frações mais radicais da burguesia parisiense, apoiadas e muitas vezes arrastadas pela enorme pressão do proletariado dos subúrbios da capital.

A Comuna Insurrecional de Paris, o organismo constituído durante os acontecimentos de 9-10 de agosto de 1792 pelos elementos mais radicais da burguesia que dispunham da força de burgueses armados dos subúrbios, da Guarda Nacional e dos Sectionnaires armados do subúrbio e que se apoiavam, sobretudo, no impulso das massas populares, é, portanto, expressão direta do movimento revolucionário que impôs primeiro à Assembléia Legislativa e depois à Convenção (que provocou a instauração das eleições pelo sufrágio universal indireto e 90% de abstenções por parte de eleitores aterrorizados) as medidas mais radicais da revolução. Foi ela que provocou a queda do Rei em 10 de Agosto de 1792, quem prendeu a família real no templo no dia 13, foi ela que impediu sua própria dissolução pelo Estado da Assembléia Legislativa, ela quem instaurou diretamente os tribunais revolucionários e o terror dos dias de Setembro de 1792; foi ela que, em 1793, impõe à Convenção a execução do rei, a lei sobre os suspeitos, a proscrição dos Girondinos, o fechamento das igrejas, a instauração oficial do Terror, etc. E, para colocar em evidência seu caráter de força viva distinta do Estado, impôs ainda à Convenção a prevalência de Paris como "guia da Nação e tutor da Assembléia", o direito de intervenção direta do "povo", se fosse necessário, contra "seus representantes" e, por fim, "o direito a insurreição"!

O exemplo de Cromwell na Inglaterra que dissolve pela força a Assembléia e manda colocar um cartaz na porta da entrada: "Aluga-se", traduz a mesma necessidade.

Se os acontecimentos de 92-93 demonstram algo, não é, portanto, que a instituição estatal é tão revolucionária como o é a classe que o domina, mas ao contrário que:

  • 1º) Quanto mais revolucionária é esta classe, mais se vê obrigada a se bater com o caráter conservador do Estado.
  • 2º) Quanto mais medidas radicais necessita tomar, mais se vê obrigada a recusar submeter-se à autoridade estatal para submeter, ao contrário, esta instituição à sua ditadura.

Como foi dito no início desse ponto: "assumir uma função revolucionária" e "estabilizar um marco de leis e de relações que respondem aos interesses da nova classe no poder" não quer dizer a mesma coisa. A diferença entre as duas, nas fases revolucionárias, a história resolve com uma relação de forças entre a verdadeira força revolucionária, a verdadeira classe em si e sua expressão jurídica, o Estado.

Identificar-se a um órgão estabilizador

Até agora temos tratado a natureza conservadora do Estado permanecendo sobre o terreno histórico geral. Voltando para o domínio do período de transição ao comunismo, veremos até que ponto este antagonismo entre revolução e instituição estatal, oculto ou episódico nas revoluções do passado, toma na revolução comunista um caráter muito mais profundo e irreconciliável.

O companheiro E. nos diz:

  • "As dificuldades começam quando se afirma que "o Estado tem uma natureza histórica anticomunista e antiproletária" e "essencialmente conservadora" e que, portanto, sua "ditadura (a do proletariado) não pode encontrar em uma instituição conservadora por excelência sua própria expressão autêntica e total". Aqui o anarquismo (e perdoem-me a brutalidade das palavras), depois de ter sido expulso pela porta, entra pela janela".

Deixemos de lado o argumento polêmico que consiste em tratar nossa posição como anarquista: já falamos disso. E vejamos porque o proletariado não pode encontrar em uma instituição conservadora sua "expressão autêntica e total".

Vimos como durante o curso da revolução burguesa há momentos em que, pela tendência conservadora que se expressava nas primeiras formas do seu próprio Estado, a burguesia viu-se obrigada, através das suas frações mais radicais, a tomar uma distância real com respeito a esta instituição e impor sua ditadura "despótica" não só sobre as outras classes da sociedade, como também sobre o Estado que acabava de instaurar.

No entanto, esta oposição entre burguesia e Estado não podia ser mais do que momentânea. A meta das revoluções burguesas, por muito radicais e populares que fossem, não pode jamais ser outra coisa que o reforço e a estabilização de uma ordem social da qual ela é a beneficiária. Por maior que possa ser sua oposição à velha classe dominante, não desestabiliza a sociedade e a instituição estatal senão para estabelecê-la melhor mais tarde, uma vez afirmado o seu poder político em uma nova ordem estável na qual possa sem freios desenvolver sua força de classe exploradora.

Deste modo o furacão revolucionário de 1793 foi sucedido pela submissão da Comuna Insurrecional de Paris ao governo do Comitê de Saúde Pública de Robespierre, mais tarde pela execução do mesmo Robespierre pela "reação de Thermidor" para acabar com o Estado forte de Napoleão, no qual Estado e burguesia voltaram a se encontrar fraternalmente entrelaçados em um desejo absoluto de ordem e estabilidade.

Na verdade, quanto mais se consolida e se desenvolve o sistema da burguesia, mais esta última se reconhece inteiramente no seu Estado, garantia absoluta e conservador de seus privilégios. Quanto mais conservadora se torna a burguesia, mais se identifica com sua polícia e administrador.

Muito diferente acontece com o proletariado. A meta da classe operária no poder não é nem manter a sua existência como classe nem conservar o Estado, produto da divisão da sociedade em classes. Seu objetivo declarado é o desaparecimento das classes e, por conseguinte, do Estado. O período de transição ao comunismo não é um movimento para a estabilização do poder proletário, mas, pelo contrário, para o seu desaparecimento. Disso resulta não que o proletariado não deva firmar sua ditadura sobre o conjunto da sociedade, mas que utiliza esta ditadura para transtornar permanentemente o estado de coisas existente. Esse movimento de transtorno é permanente até o comunismo: toda estabilização da revolução proletária constitui para ela um retrocesso e uma ameaça de morte. A famosa sentença de Saint-just: "os que fazem uma revolução pela metade, cavam sua própria sepultura" se aplica ao proletariado pelo fato da sua natureza de classe explorada, mais que toda classe revolucionária da história.

Contrariamente à idéia de Trotsky que, incapaz de reconhecer no desenvolvimento da burocracia depois de 1917 a força da contrarrevolução, falava de um "Thermidor proletário", não há "Thermidor" para a revolução proletária. Thermidor foi para a burguesia uma necessidade que correspondia à busca de uma estabilização do seu poder. Para o proletariado, toda estabilização constitui não uma meta, um êxito, mas uma debilidade, e a médio prazo, um retrocesso da sua obra revolucionária.

O único momento no qual a estabilização das relações sociais poderia corresponder com os interesses do proletariado, seria na sociedade sem classes, o comunismo. Porém, nesse momento já não haverá nem proletários, nem ditadura do proletariado, nem Estado. É por isso que o proletariado não poderá encontrar jamais nesta instituição, cuja função é a de "amortecer o conflito entre as classes" e estabilizar o estado de coisas existentes, "sua expressão autêntica e total".

Ao contrário do que acontecia para a burguesia, o desenvolvimento da revolução proletária se mede não com o reforço da instituição estatal, mas com a dissolução desta na sociedade civil, a sociedade dos produtores.

No entanto, a atitude do proletariado no curso da sua ditadura em relação ao Estado - não identificação, organização autônoma em relação a ele e o exercício da sua ditadura sobre ele - se distingue da burguesia instalada não só porque para o proletariado a dissolução do aparato estatal é uma necessidade como também - e de outro modo esta necessidade não seria mais que um desejo irrealizável - porque é uma possibilidade.

Dividida pela propriedade privada e pela concorrência, sobre as quais se funda sua dominação econômica, a burguesia não pode engendrar por muito tempo corpos organizados que encarnem seus interesses de classe fora do Estado. O Estado é, para a burguesia, não só o defensor da sua dominação com relação às demais classes, como também o único laço de unificação dos seus interesses. Na divisão de milhares de interesses privados e antagônicos da burguesia, só o Estado constitui uma força capaz de expressar os interesses do conjunto da classe. É por isso que, como não podia evitar em certos momentos, a ação autônoma das suas frações mais radicais contra o Estado - tanto na França como na Inglaterra -, não podia também prolongar muito tempo este estado de coisas, sem correr o risco de perder toda a unidade política e, por conseguinte, toda a força (ver o destino reservado à Comuna Insurrecional de Paris e os seus dirigentes logo após terminarem sua brilhante ação revolucionária).

O proletariado não conhece esta impotência. Como não tem interesses antagônicos no seu seio e como encontra na sua unidade autônoma a principal força da sua ação, o proletariado pode existir unificado e potente sem ter de recorrer a um árbitro armado por cima dele. Sua representação como classe se encontra em si mesmo, nos seus próprios órgãos unitários: os Conselhos Operários.

São esses conselhos os que devem e podem constituir o único e verdadeiro órgão da ditadura do proletariado. É neles e só neles que a classe operária encontra "sua expressão autentica e total"

O proletariado como classe dominante

O companheiro E. faz suas as posições de Lênin em O Estado e a Revolução, baseado, por sua vez, nos escritos e na experiência prática passada do movimento proletário. Mas o faz simplificando ao extremo esta posição, esquecendo o contexto político no qual foi definida e, evidentemente, deixando de lado a experiência mais importante da ditadura do proletariado: a Revolução Russa.

Segundo E., o maior e mais rico momento da história do combate proletário não teria alterado absolutamente em nada as formulações dos revolucionários antes de Outubro. O resultado é uma simplificação grosseira das inevitáveis insuficiências da teoria revolucionária antes de 1917, em um terreno onde a única experiência existente até então tinha sido a da Comuna de Paris.

E. escribe:

  • "A essência dessa concepção (a concepção do Estado e do seu papel segundo Lênin) é muito simples: o proletariado, ao alçar-se em classe dominante, cria seu próprio órgão de Estado, diferente dos precedentes pela forma, porém que conserva essencialmente a mesma função: opressão das demais classes, violência concentrada contra elas para que triunfem seus interesses históricos enquanto classe dominante, embora estes coincidam a longo prazo com os da humanidade".

É certo que a essência da função do Estado sempre foi a manutenção da opressão das classes exploradas pela classe exploradora. No entanto, quando se trata de transpor esta idéia para a análise do período de transição ao comunismo, esta simplicidade é mais que insuficiente. E isto por duas razões principais:

  • Primeiro porque a classe que exerce a ditadura não é uma classe exploradora, mas explorada.
  • Segundo, porque, por isso, assim como pelas razões que já vimos, a relação entre o proletariado e Estado não pode ser a mesma que caracterizava a dominação das classes exploradoras.

Em O Estado e a Revolução, Lênin colocou em primeiro plano esta concepção simples do Estado por causa da polêmica que tinha com a social-democracia. Esta última, para justificar sua participação no governo do Estado burguês, pretendia ver no Estado (no Estado burguês em particular) somente um órgão de conciliação entre as classes: disso deduzia que ao participar e ao desenvolver a influência eleitoral dos partidos operários, poderia converter-se em ferramenta do proletariado para o advento do socialismo. Lênin recordou com força que o Estado em uma sociedade dividida em classes tinha sido sempre o Estado da classe dominante, o aparato de manutenção do poder desta última, sua força armada contra as demais classes.

O pensamento de uma classe revolucionária e, com mais razão, a de uma classe revolucionária explorada, não pode desenvolver-se jamais em um ambiente de investigação científica pacífica. Como é a arma de um combate global, só pode expressar-se em oposição violenta à ideologia dominante que trata de demonstrar permanentemente a sua falsidade. É a razão pela qual não se encontrará nunca um texto revolucionário que não tenha, de uma ou outra maneira, a forma de uma crítica ou de uma polêmica. Até mesmo as passagens mais "científicas" do Capital estão redigidas com ânimo de combate crítico contra as teorias econômicas da classe dominante. Por isso, tem que saber, quando se remete aos escritos revolucionários, situá-los permanentemente dentro do combate em que se integram. Se for viva, a polêmica conduz inevitavelmente a polarizar o pensamento sobre aspectos mais importantes da realidade, pois são os mais importantes em tal combate em particular. Porém o que é essencial em uma discussão não o é automaticamente em outra. Repetir de maneira idêntica as fórmulas e as preocupações expressas em textos que tratam de um problema particular para aplicá-las assim como estão, sem voltar a colocá-las dentro do seu contexto, a outros problemas fundamentalmente diferentes, conduz, na maioria das vezes, a cometer aberrações em que o que podia ser uma simplificação necessária em uma polêmica, se transforma, transportada para outro contexto, em um absurdo teórico. Por isso, a exegese é sempre um freio para a teoria revolucionária.

Transportar assim como estão as lições tiradas do combate contra a participação da social-democracia no Estado burguês e seu rechaço da ditadura do proletariado, aos problemas colocados pela relação entre a classe operária e o Estado do período de transição para o comunismo, é um exemplo desse tipo de erro. Erro constantemente cometido tanto por Marx e Engels como por Lênin e todos os revolucionários que forjaram sua união no fogo do combate contra a traição da socialdemocracia durante a Primeira Guerra Mundial. Se este erro era compreensível antes de outubro de 1917, hoje já não é mais.

A experiência da revolução russa pôs em evidência até que ponto a relação entre o proletariado no poder e o Estado é diferente da relação que existia entre o Estado e as classes exploradoras.

Ao exercer sua ditadura, o proletariado se afirma como classe dominante na sociedade. Porém, aqui "dominante" não tem nada a ver com o conteúdo que tinha esse termo nas sociedades do passado. O proletariado é classe dominante politicamente, porém não economicamente. Não só a classe operária não pode explorar nenhuma outra classe da sociedade, mas continua sendo até certo ponto, classe explorada.

Explorar economicamente uma classe é levar uma vantagem do seu trabalho, em detrimento da sua própria satisfação. É amputar de uma classe uma parte do fruto do seu trabalho, privando-a assim da possibilidade de gozar deste. Pois bem, depois da tomada do poder pelo proletariado, a situação econômica da sociedade conhece as duas características seguintes:

  • 1) Com relação às necessidades humanas (ainda consideradas na sua definição mínima: não sofrer fome nem frio, nem de doenças possíveis de cura), a penúria reina como dona absoluta de quase dois terços da humanidade.
  • 2) O essencial da produção mundial é realizado nas regiões industrializadas por uma fração minoritária da população: o proletariado.

Nessas condições, a marcha para o comunismo implica um esforço de produção enorme, de maneira que se permita, por um lado, a maior satisfação possível das necessidades humanas, e por outro lado (e em relação com a primeira necessidade) a integração no processo produtivo (ao seu nível de tecnicidade mais elevados) da imensa massa da população que é improdutiva, seja (nos países desenvolvidos) porque ocupava funções improdutivas sob o capitalismo, seja (e é o caso da grande maioria no terceiro mundo) porque o capitalismo não havia conseguido integrá-las na produção social. Ora, quer seja agir para aumentar a produção de bens de consumo ou para produzir meios de produção que permitam integrar as massas improdutivas (o campesinato indigente do Terceiro Mundo não será integrado à produção socializada com arados de madeira ou de aço mas com os meios industriais mais avançados... que terá de criar), este esforço, portanto, recai essencialmente sobre o proletariado.

Enquanto subsistir a penúria no mundo e enquanto o proletariado continuar sendo uma fração da sociedade (isto é, enquanto sua condição não tenha se estendido a toda população do planeta), o proletariado produzirá um excedente de bens (de consumo e de produção) do qual só será beneficiado a longo prazo. A partir desse ponto de vista, portanto, o proletariado não só não é classe exploradora, como continua sendo classe explorada.

Nas sociedades passadas, o Estado tendia a identificar-se com a classe dominante e a defesa dos seus privilégios na medida em que esta classe era economicamente dominante, ou seja, se beneficiava da manutenção das relações de produção existentes. A tarefa do Estado de manutenção da ordem é, em uma sociedade de exploração, inevitavelmente a manutenção da exploração e, portanto, dos privilégios do explorador.

Entretanto, durante o período de transição ao comunismo, a manutenção das relações econômicas existentes, pode se constituir, em certos aspectos e a curto prazo, um meio para impedir um retrocesso em relação aos passos já dados pelo proletariado (e é nesse aspecto que o Estado é inevitável durante o período de transição), representa ao mesmo tempo a manutenção de uma situação econômica na qual o proletariado suporta o peso da subsistência e do desenvolvimento do conjunto da sociedade. Ao contrário do que acontecia nas sociedades nas quais a classe politicamente dominante era uma classe que se beneficiava diretamente da ordem econômica existente, no curso da ditadura do proletariado, a convergência entre Estado e classe politicamente dominante perde todo fundamento econômico. Além disso, como um órgão que expressa as necessidades de coerência da sociedade e da necessidade de impedir que os antagonismos entre as classes se desenvolvam, o Estado tende inevitavelmente a opor-se, a nível econômico, aos interesses imediatos da classe operária. A experiência russa na qual se viu o Estado exigir do proletariado um esforço de produção sempre maior em nome da necessidade de satisfazer as exigências de troca com os camponeses ou com as potências estrangeiras, pôs em evidência, através da repressão das greves operárias (desde os primeiros meses da revolução), até que ponto esse antagonismo podia ser determinante nas relações entre proletariado e Estado.

É por isso também que o proletariado no poder não pode reconhecer no Estado, como afirmava Bukhárin, "a encarnação material da sua razão coletiva", mas um instrumento da sociedade que não se submeterá ao seu poder "automaticamente" - como era o caso para as classes exploradoras logo após ter assegurado sua dominação política definitivamente - mas que terá ao contrário que submeter sem trégua ao seu controle e a sua ditadura, se não quiser vê-lo voltar-se contra ele, como na Rússia.

Uma ditadura sobre o estado

Mas, no último argumento do camarada E., é-nos dito que um Estado submetido a uma ditadura que é exterior a ele não pode ter os meios de cumprir seu papel. Esqueceríamos que, se Estado e ditadura de uma classe não são idênticos, não há ditadura real.

  • " De fato, aceita-se a ditadura do proletariado, porém se esquece que o Estado e ditadura, ou poder exclusivo de uma classe, são sinônimos. (...) Não faz sentido falar de um Estado que esteja submetido a uma ditadura que vem de seu exterior e que não pode intervir de maneira despótica na realidade econômica e social para orientá-la rumo a certa direção de classe"

É verdade que não pode ter a ditadura de uma classe, qualquer que seja esta, sem que exista na sociedade uma instituição de tipo estatal: por um lado, porque a divisão da sociedade em classes implica a existência de um Estado e, por outro lado, qualquer poder de classe precisa da existência de um aparelho, que expressa, através de um conjunto de leis e meios de constrição, seu poder na sociedade: o Estado. É verdade que um Estado que não dispõe de um poder real não seria um Estado. Mas é errado que a ditadura de classe é idêntica ao Estado e que "um Estado que esteja submetido a uma ditadura que lhe é exterior não faz sentido".

A situação de dualidade de poder (o de uma classe, por um lado, e do Estado, por outro - o primeiro exercendo sobre o segundo) já se produziu - como o temos visto - na história, em particular durante as grandes revoluções burguesas. E, por todas as razões que já vimos, ela se imporá como uma necessidade durante o período da ditadura do proletariado.

O certo é que tal dualidade não pode eternizar-se sem arrastar a sociedade dentro de uma contradição inextrincável na qual consumiria a si mesma. Constitui uma contradição viva que deve inevitavelmente ser resolvida. Mas a maneira como se resolve difere fundamentalmente conforme se trata da revolução burguesa ou da revolução proletária.

No primeiro caso, esta dualidade de poder se resolve rapidamente com uma identificação do poder da classe dominante com o poder do Estado que surge do processo revolucionário, reforçao e investido do poder supremo sobre o conjunto da sociedade, inclusive sobre a classe dominante. No caso da revolução proletária, entretanto, resolve-se na dissolução do Estado e na apropriação de todos os destinos da vida social pela própria sociedade.

Esta é uma oposição fundamental que se traduz por características na relação entre classe dominante e Estado na revolução proletária, diferentes das da revolução burguesa, não só pela forma como também pelo conteúdo.

Para entender melhor essas diferenças, é necessário tratar de apresentar as linhas gerais das formas do poder do proletariado durante o período de transição que podem ser esboçadas a partir da experiência histórica do proletariado. Sem querer empenhar-se em definir os detalhes institucionais de tal período, porque uma das maiores características dos períodos revolucionário é que todas as formas institucionais tendem a apresentarem-se como formas vazias que as forças vivas da sociedade preenchem e transbordam segundo a necessidade dos seus enfrentamentos, embora seja possível destacar os seguintes eixos mais gerais:

  • O órgão de poder direto do proletariado será constituído pelas organizações unitárias desta classe, os Conselhos Operários, assembléias de delegados eleitos e revogáveis pelo conjunto dos trabalhadores que produzem de maneira coletiva no setor socializado (operários da velha sociedade e trabalhadores integrados à medida que se desenvolve a revolução no setor coletivizado). Armados de maneira autônoma, são estes os instrumentos autênticos da ditadura do proletariado.
  • A instituição estatal estará constituída na sua base por conselhos que existam sobre uma base não de classe, ou seja, não depende do lugar ocupado na produção (o proletariado deve impedir toda organização de classe que não seja a sua), mas geográfica: assembléias de conselhos de delegados da população, por bairros, cidades, regiões, etc. Culminando estas com um conselho central (que constitui o órgão central do Estado).

Como emanação dessas instituições, ergue-se todo o aparato de Estado com, por um lado, os que se encarregam de manter a ordem: "vigilantes" e exército durante a guerra civil e, por outro, o corpo de funcionários encarregados da administração e da gestão da produção e da distribuição.

Este aparato de guardas e de funcionários poderá ser mais ou menos importante, mais ou menos fundido com a própria população à medida que avança o processo revolucionário, porém seria ilusório ignorar a inevitabilidade da sua existência em uma sociedade que conhece ainda as classes e a penúria.

A ditadura do proletariado sobre o Estado do período de transição é a capacidade da classe operária em manter o armamento e a autonomia dos seus Conselhos em relação ao Estado e em impor a este (aos seus órgãos centrais e a seus funcionários) sua vontade.

A dualidade de poder que resulta tende a se resolver à medida que o conjunto da população seja integrada ao proletariado e seus conselhos e que a abundância se desenvolva, a função dos guardas e outros funcionários desaparecerá, "a administração dos homens irá cedendo lugar a administração das coisas" pelos próprios produtores. O poder do proletariado vai se desenvolvendo no mesmo movimento que a diminuição do poder dos funcionários do Estado e a absorção pelo proletariado do conjunto da humanidade transforma seu poder de classe em ação consciente da comunidade humana.

Contudo, para que este processo seja levado a cabo, é necessário não só que as condições materiais do seu desenvolvimento se encontrem reunidas (em particular a extensão mundial da revolução, o desenvolvimento das forças produtivas), mas também que o proletariado, força motriz essencial desse processo, saiba conservar e desenvolver a autonomia e a força do seu poder sobre o Estado.

Longe de ser um absurdo, esta ditadura dos conselhos operários, à qual está submetido o Estado e que "é exterior a ele", representa, de fato, o próprio movimento de definhamento do Estado.

A Revolução Russa não conheceu as condições materiais de tal desenvolvimento, porém pelas dificuldades enormes com as quais tropeçou, ela colocou em evidência o conteúdo das tendências intrínsecas do aparato estatal, visto que o papel desse último foi se ampliando até seus limites máximos por causa dessas mesmas dificuldades.

Justamente depois de Outubro de 1917, existiam na Rússia tanto os Conselhos Operários, protagonistas de Outubro, como os conselhos de Estado, os Soviets e seu aparato estatal em desenvolvimento. Entretanto, convencidos de que o Estado não podia ser distinto da ditadura do proletariado, os Conselhos Operários se transformaram em instituições estatais integrando-se no aparato do Estado. Com o desenvolvimento do poder da burocracia, provocado pela ausência de todas as condições materiais para o desenvolvimento da revolução, a oposição entre Estado e proletariado não demorou a aparecer à luz do dia. Acreditou-se poder resolver o antagonismo colocando no aparato do Estado, no lugar de funcionários, o maior número de operários mais determinados e mais experimentados, os membros do partido. O resultado não foi uma proletarização do Estado, mas uma burocratização dos revolucionários. Ao final da guerra civil, o desenvolvimento do antagonismo entre a classe operária e o Estado desembocou na repressão pelo Estado das greves de Petrogrado em 1920, em seguida da repressão à insurreição de Kronstadt que reivindicava, dentre outras coisas, medidas contra a burocracia e a revogação dos delegados aos Soviets.

Não se trata de deduzir aqui que se o proletariado tivesse conservado a autonomia dos seus Conselhos em relação ao Estado e soubesse impor sua ditadura ao Estado em vez de ver neste sua "encarnação material", a revolução teria triunfado definitivamente na Rússia.

Não foi a incapacidade de resolver os problemas das suas relações com o Estado o que provocou o fracasso da revolução na Rússia, mas a derrota da revolução nos outros países que a condenou ao isolamento. No entanto, sua experiência com relação a este problema crucial não foi nem inútil nem "um caso particular" sem significado para o conjunto do movimento histórico. A experiência russa foi fundamental para aclarar este problema complexo que permanecia particularmente confuso na teoria revolucionária. Não só trouxe com os Conselhos Operários e a organização soviética uma resposta prática ao problema das formas do poder proletário, como também permitiu resolver o que tinha revelado contraditório na experiência da Comuna de Paris: desde Marx e Engels até Lênin que, por um lado, afirmava que o Estado era a encarnação da ditadura do proletariado e, por outro lado, tirava, da experiência da Comuna de Paris a lição de que o proletariado tinha que tomar precauções contra os "efeitos nocivos" (Engels) desse Estado, submetendo todos seus funcionários ao controle do proletariado: redução dos seus rendimentos ao nível de um operário e revogabilidade a qualquer momento dos funcionários do Estado pelo proletariado. Se o Estado é idêntico a ditadura do proletariado, por que este teria que desconfiar de seus efeitos nocivos? Como poderia ter a ditadura de uma classe efeitos contrários aos seus próprios interesses?

De fato, a necessidade de distinguir claramente entre ditadura do proletariado e Estado, como também poder ditatorial da primeira sobre o segundo, encontra-se já em germe (se não como intuição pelo menos como necessidade teórica) nos textos dos revolucionários antes de 1917. Como, por exemplo, em O Estado e a Revolução, Lênin chega a falar de uma distinção entre algo que seria "o Estado de funcionários" e outra coisa que seria "o Estado dos operários armados": "Enquanto não se tenha chegado a fase "superior" do Comunismo, os socialistas exigem que a sociedade e o Estado exerçam o mais rigoroso controle sobre a medida do trabalho e a medida do consumo; porém este controle, tem de começar pela apropriação dos capitalistas, e deve ser exercido não pelo Estado de funcionários, mas pelo Estado de operários armados" (Tradução nossa; O sublinhado é nosso)

E em outra passagem da mesma obra, na qual Lênin compara a economia do período de transição e a organização dos correios no capitalismo, afirma a necessidade de que o órgão de funcionários seja controlado pelo de operários armados: "Toda a economia nacional organizada como Correios, de maneira que os técnicos, os vigilantes, os contadores recebam, como todos os demais funcionários, um salário que não exceda os "salários dos operários", sob o controle e a direção do proletariado armado: esta é nossa meta imediata." (Tradução nossa; O sublinhado é nosso).

A Revolução Russa mostra tragicamente até que ponto o que parecia uma contradição teórica no pensamento revolucionário expressava na realidade uma contradição real entre a ditadura do proletariado e o Estado do período de transição; fez aparecer à luz do dia até que ponto "o controle e a direção do proletariado armado" sobre o Estado é uma condição sine qua non da ditadura do proletariado.

O companheiro E. acredita, sem dúvida, que se mantém fiel ao esforço teórico do proletariado tal e como se concretiza antes de Outubro de 1917 e, em particular em O Estado e a Revolução de Lênin, a quem defende de maneira intransigente. Mas é trair o espírito desse esforço defender uma posição que quase por princípio se nega a colocar em julgamento as lições teóricas à luz da experiência mais importante da ditadura do proletariado.. Para concluir, não podemos mais do que recordar o que Lênin escrevia precisamente em O Estado e a Revolução acerca do que deve ser a atitude dos revolucionários neste terreno:

  • "Marx não se contentou em admirar o heroísmo dos comunards no "assalto ao céu", segundo sua expressão. No movimento revolucionário das massas, embora não tenha alcançado sua meta, Marx via uma experiência histórica de grande envergadura, um passo adiante da revolução proletária universal, um passo real muito mais importante que centenas de programas e de raciocínios. Analisar esta experiência, tirar dela lições de tática, utilizá-la para passar pelo crivo a sua teoria: essa é a tarefa que se propõe Marx." (Tradução nossa; O sublinhado é nosso).

R. V.


[1] E ainda: o Estado francês conhecerá os fortes abalos contra a Restauração que seguiu o Império de Napoleon e aqueles de 1848.

O estado no período de transição

  • 5002 leituras

A Revista Internacional da CCI já abordou várias vezes a questão do período de transição do capitalismo ao comunismo. Tem publicado mais de dez textos nos quais se evoca particularmente o problema colocado pelas relações entre a ditadura do proletariado e o Estado durante o período de transição. A idéia de uma não identidade entre essas duas noções, tal como aparece nos textos seguintes: "Problemas do período de transição" e "A Revolução Proletária" (nº1), "O Período de Transição" e "Contribuição ao Estudo da questão do Estado" (nº6), "Apresentação dos projetos de Resolução do 2º Congresso da CCI de RI" e "A Esquerda Comunista na Rússia" (nº8), "As confusões políticas da CWO" (nº10), "Projeto de Resolução sobre o Período de Transição do 2º Congresso da CCI" e "Estado e Ditadura do Proletariado" (nº11), idéia que tem sido constantemente considerada como escandalosa e "absolutamente alheia ao marxismo" por uma quantidade de elementos revolucionários que em seguida nos apresentam a célebre citação de Marx, extraída da sua Crítica do Programa de Gotha, segundo a qual, durante o Período de Transição, "o Estado não pode ser outra coisa que a ditadura revolucionária do proletariado".

O texto que publicamos aqui é uma contribuição a mais sobre este tema. Propõe-se particularmente estabelecer que a não identidade entre Estado e Ditadura do proletariado não é nada "anti-marxista" mas pelo contrário, para além da refutação de certas fórmulas de Marx e Engels, inscreve-se perfeitamente dentro do método marxista.

Natureza e função do estado

No centro da teoria do Estado de Marx, encontra-se a noção da extinção do Estado.

Na sua crítica da filosofia do Estado de Hegel, com a qual começa sua vida de pensador e de militante revolucionário, Marx combate não só o idealismo de Hegel segundo o qual o ponto de partida de todo o movimento seria a idéia (convertendo sempre "a idéia em sujeito e o sujeito real propriamente dito em predicado") [1]; denuncia também veementemente as conclusões dessa filosofia, que faz do Estado um mediador entre o homem social e o homem universal político, o conciliador da divisão entre o homem privado e o homem universal. Ao constatar a oposição crescentemente conflituosa entre a sociedade civil e o Estado, Hegel quer que a solução dessa contradição se encontre na autolimitação da sociedade civil e na sua integração voluntária no Estado, posto que, segundo ele, "é somente no Estado que o homem tem uma existência conforme a razão" [2] e "tudo o que é o homem se deve ao Estado, e é nele onde reside seu ser. Todo seu valor, toda sua realidade espiritual, é devida ao Estado" [3] A essa delirante valorização do Estado que faz de Hegel seu maior apologista, Marx opõe: "somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas "forces propres" como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana" [4], ou seja, do Estado.

Na obra de elaboração política e teórica de Marx se encontrará presente desde o princípio a finalidade, ou seja, a tomada de posição frontal e contra o Estado, produto, manifestação e fator ativo da alienação da humanidade. Ao fortalecimento do Estado e a absorção por este da sociedade civil de Hegel, Marx opõe resolutamente a extinção do Estado como sinônimo da marcha para a emancipação da humanidade, e essa noção fundamental será desenvolvida e enriquecida ao longo da sua vida e da sua obra.

Essa oposição radical ao Estado e o anúncio da sua extinção possível e inevitável não são produto do gênio pessoal de Marx, embora seja nele que essas idéias encontram uma análise rigorosa e uma demonstração coerente. Foram na realidade da época que essas problemáticas se apresentaram e é nessa mesma realidade que os primeiros germes da resposta começam a aparecer com o nascimento e a luta de uma nova classe histórica: o proletariado. Por maiores que tenham sido sua contribuição e o seu mérito, Marx não fazia nada além de tornar teoricamente compreensível o movimento do proletariado que estava se desenvolvendo na realidade.

Ao mesmo tempo que combatia o idealismo e a apologia do Estado de Hegel, Marx rechaçava igualmente todas as teorias "racionalistas" que tratavam de fundar o Estado sobre a "razão crítica" ou aquelas que de Stirner a Bakunin, condenavam-no em nome de um princípio moral.

Produto histórico do desenvolvimento das forças produtivas e da divisão do trabalho - que fazem explodir a antiga sociedade comunista primitiva -, a nova sociedade, que se funda sobre a propriedade privada e sua divisão em classes antagônicas, faz surgir necessariamente essa instituição superestrutural que é o Estado.

Manifestação de uma situação histórica na qual a sociedade entrou em um estado de contradições e de antagonismos irredutíveis [5], o Estado é ao mesmo tempo a instituição indispensável para manter certa coesão, uma ordem social, para impedir que a sociedade se destruía completamente em lutas estéreis e para impor pela força às classes exploradas à submissão a dita ordem. Essa ordem é a dominação econômica de uma classe exploradora na sociedade cujo guardião é o Estado, e é através dele que a classe exploradora, economicamente dominante, chega à dominação política da sociedade. O Estado é, portanto, sempre a emanação das classes exploradoras e, em regra geral, da classe econômica e imediatamente predominante; é dessa classe que o Estado é originário e da qual uma fração se especializa na função estatal.

Do que acabamos de dizer depreende-se que a função fundamental do Estado é a de ser guardião da ordem econômica estabelecida.

Quando surgem novas classes exploradoras que representam as novas forças produtivas que vão se desenvolvendo no seio da sociedade até chegar ao ponto de entrar em contradição com as relações de produção existentes e exigir que essas mudem totalmente, é o Estado que elas enfrentam, o Estado que representa a última fortaleza de proteção da velha sociedade. A dinâmica revolucionária encontra-se sempre na sociedade civil, nas novas classes que surgiram, porém nunca no Estado como tal. É, portanto, principalmente um instrumento de conservação social. Dizer que o Estado é às vezes conservador e outras vezes revolucionário segundo a situação da classe que o domina, colocar em um mesmo nível esses dois momentos, dizer que são paralelos, é escamotear o problema do que constitui o caráter fundamental do Estado, sua função essencial. Mesmo quando a classe revolucionária conquista pela força o Estado, e, ao reconstruí-lo, o adapta às suas necessidades e interesses, isto não altera a natureza essencialmente conservadora do Estado, nem lhe dá uma nova natureza revolucionária. E isto, por duas razões:

  • porque o novo Estado não é mais que o resultado, o desenlace, de um transtorno que já se efetuou na estrutura econômica da sociedade; o Estado não faz mais que registrar esse transtorno e consagrar os fatos.
  • porque, assim que surge, o novo Estado tem como função fundamental, não é tanto desfazer-se dos vestígios das velhas classes derrotadas, mas, sobretudo, defender a nova ordem social contra a ameaça das novas classes exploradas, submetê-las. É importante não confundir os resplendores aparentes do Estado com a realidade da sua natureza profunda.

Alguns, ao referir-se a tal ou qual ato ou acontecimento esporádico, geralmente advindo durante momentos de crises sociais e de revoluções, acreditam poder afirmar que o Estado goza de uma natureza dupla: conservadora e revolucionária simultaneamente. Assim foram citados como exemplo os atos da Convenção e do Terror dirigidos contra a aristocracia feudal, a guerra interna e externa durante os anos da Revolução Francesa, o apoio que deu em certos momentos a monarquia à burguesia na França e também a política de Pedro o Grande, na Rússia, etc. A essas objeções, podemos opor várias observações:

I. "As exceções confirmam a regra".

II. Não se pode ver e compreender o curso da história e suas leis fundamentais referindo-se a acontecimentos isolados da mesma maneira que não se pode medir as distâncias entre as galáxias com um centímetro.

III. Não é nosso objetivo estudar e dar uma explicação detalhada de cada acontecimento um por um (isso seria fenomenologia), mas explicar como se encandeiam globalmente, destacar as leis e o sentido geral de tais acontecimentos.

IV. O que estudamos aqui é o Estado na história e não a história do Estado. Não estudamos cada momento, cada dia da sua própria existência que corresponde a uma era histórica bem determinada e limitada: a era da sociedade dividida em classes. Durante toda essa era histórica, o Estado tem como função fundamental manter a ordem social existente. Manter, entreter, guardar, são todas expressões que significam dizer conservar em oposição a criar. É o sentido passivo oposto ao sentido ativo; o estático oposto ao dinâmico.

V. Contra quem o Estado tem que defender a ordem existente? Quem, que forças ameaçam a ordem social? [6] Resposta possível: as antigas classes dominantes.

Essas antigas classes foram derrotadas e vencidas antes de tudo no terreno econômico. A revolução não faz mais que consagrar e não determinar sua queda. É por isso que os marxistas podiam falar das revoluções políticas dessa era, como "revoluções palacianas" visto que a verdadeira transformação já havia se operado nas entranhas da sociedade, na sua realidade profunda e na sua estrutura econômica.

Outra constatação importante: não é nunca a partir do Estado existente que se desencadeia o movimento da revolução; embora seja política, a revolução parte da sociedade civil contra o Estado. E isso porque não é o Estado que revoluciona a sociedade, mas a sociedade revolucionada quem modifica e adapta o Estado.

O novo Estado que surge depois do acontecimento que é a revolução, pode dedicar-se a atos espetaculares contra os membros da antiga classe dominante, porém esses atos não chegam nunca muito adiante, nem duram muito tempo. A antiga classe dominante continua subsistindo e seus membros continuam ocupando, durante muito tempo, um lugar importante no aparato do Estado e, frequentemente, um lugar preponderante. Isto prova que a antiga classe dominante não representa essa ameaça pretendidamente decisiva e contra a qual se operaria o fortalecimento do novo Estado - que o converteria em revolucionário. Isso é uma superestimação enorme, amplamente desmentida pela história.

A ameaça fundamental da ordem existente não vem das classes derrotadas mas das classes oprimidas e das novas classes históricas ascendentes. São elas que (as primeiras de maneira constante, as segundas potencialmente) representam essa ameaça mortal contra a qual a ordem existente necessita do Estado, essa força concentrada de coerção e de repressão para sua defesa.

O Estado não é tanto uma barreira contra o passado quanto contra o futuro. Isso é o que converte sua defesa do presente (conservadorismo) em algo mais próximo do passado (reacionário) que do futuro (revolucionário) Nesse sentido, pode-se dizer que se as classes são as representantes das forças produtivas em desenvolvimento, o Estado, por sua parte, é o defensor das relações de produção. A dinâmica histórica vem sempre das primeiras, as travas, das segundas.

VI. Enquanto aos exemplos do papel supostamente progressivo - e até "revolucionário"- da monarquia francesa, ou o de Pedro, o Grande, na Rússia etc. , é evidente que o Estado se vê obrigado a efetuar atos progressistas, não porque isto seja inerente a sua natureza progressista, mas apesar da sua natureza conservadora, sob a pressão das novas forças progressistas, porque não pode ignorar completamente as pressões que vêem da sociedade civil.

Foi um fato que a supressão da vassalagem e o desenvolvimento da industrialização capitalista na Rússia fizeram-se sob o regime dos czares, assim como a industrialização na Alemanha sob o dos Junkers da Prússia, e na França sob o bonapartismo. Isso não converte esses regimes e Estados em forças revolucionárias; os dois últimos -o da Alemanha e o da França- provinham diretamente da contrarrevolução de 1848-52.

VII. Com relação ao argumento sobre a dupla natureza do Estado - contrarrevolucionária e revolucionário simultaneamente - não apresenta mais seriedade do que aquele avançado para defender os sindicatos: teriam ao lado da sua natureza burguesa, também uma natureza operária pelo fato de que em tal ou qual ocasião adotam a defesa de tal ou qual operário. Com esse raciocínio, poderia se falar também da dupla natureza dos policiais considerando que, de vez em quando salvam alguém que está na iminência de se afogar. Tem que se acreditar que cada vez que se trate de raciocinar e que não se sabe raciocinar, recorre-se naturalmente ao argumento da "dupla natureza".

Essas tantas observações não acrescentam nada de substancial, mas se impõem para demonstrar a futilidade das objeções e fazem quem sabe um pouco mais preciso nosso pensamento sobre a natureza e a função conservadora do Estado.

É importante aqui ter cuidado em não se comprazer na confusão e no ecletismo: "o Estado é tão conservador como revolucionário". isso pode conduzir a inverter os elementos e abrir a porta que conduz diretamente ao erro de Hegel que faz do Estado o sujeito do movimento da sociedade.

A tese da natureza conservadora do Estado e antes de tudo da sua própria conservação, relaciona-se dialética e estreitamente com a outra tese que lhe é oposta, a que diz que a emancipação da humanidade se identifica com a extensão do Estado. Uma esclarece a outra. Se escamotearmos ou se deixarmos em um segundo plano a primeira tese, ofusca-se e escamoteia-se igualmente a teoria e a realização da necessária extinção do Estado.

A não compreensão da noção da natureza conservadora do Estado tem como corolário inevitavelmente a não insistência na noção marxista fundamental da extinção do Estado. As implicações não poderão deixar de ser ainda mais perigosas.

O que é, no entanto mais importante e que nos interessa aqui em primeiro lugar é o de fazer ressaltar que o Estado - tanto o novo quanto o antigo - não é nem pode chegar a ser por definição o portador do movimento de extinção do Estado. Pois bem, vimos que a teoria do Estado de Marx identifica o movimento de extinção do Estado com o da emancipação da humanidade e, considerando que o Estado não é portador da sua própria extinção, disso deriva que, pela natureza mesma, o Estado não pode nunca ser o motor nem tampouco o instrumento da emancipação humana.

A teoria do Estado de Marx coloca também em evidência a tendência inerente do Estado e "da fração da classe dominante que agrupa e que se constitui em corpo separado, de "libertar-se" da sociedade civil, de separar-se dela e de alçar-se por cima da sociedade" (Engels). Embora nunca consiga realizar-se completamente e embora continue sempre defendendo os interesses gerais da classe dominante, essa tendência é sem dúvida uma realidade e abre o caminho para novas contradições, antagonismos e alienações que Hegel já havia percebido e destacado e que Marx afirma igualmente: sobretudo, a oposição crescente entre o Estado e a sociedade civil com todas as suas implicações. Esta tendência explica cada vez mais as múltiplas perturbações sociais, as convulsões na própria classe dominante, as diferentes variedades de forma do Estado que existem em uma mesma sociedade e suas relações particulares com o conjunto da sociedade. Esta tendência a tornar-se independente da sociedade faz da autoconservação uma preocupação maior do Estado e reforça ainda mais sua natureza conservadora.

Com o desenvolvimento, através da sucessão de sociedades, da divisão da sociedade em classes, reforça-se e desenvolve-se o Estado cujos tentáculos vão abraçando todas as esferas da vida social. Sua massa numérica cresce proporcionalmente. A manutenção dessa enorme massa parasitária se faz extraindo uma parte cada vez maior da produção social. Através de impostos diretos e indiretos - arrecadados não somente dos ingressos das massas trabalhadoras, mas também dos lucros dos capitalistas - o Estado entra em conflito de interesses até com sua própria classe, que exige que o Estado seja forte... porém também barato. Para os homens do aparato do Estado, essa hostilidade exterior e seus próprios interesses , provocam um reflexo de defesa e solidariedade, um espírito de corpo que os une em uma verdadeira casta separada.

De todos os campos de atividade do Estado, a coerção e a opressão pertencem especificamente a ele. Dispõe para isso, de maneira exclusiva, das forças armadas. A coerção e a opressão são a razão de ser do Estado, de seu próprio ser. É um produto específico dessas e as reproduz sem cessar, ampliando-nas e aperfeiçoando-nas. A cumplicidade nos massacres e no terror constitui assim o cimento mais forte da sua unidade.

Com o capitalismo chegou-se ao ponto culminante de toda longa história das sociedades divididas em classes. Se esse longo período histórico, impregnado de sangue e sofrimentos foi o tributo inevitável que a humanidade teve que pagar para desenvolver suas forças produtivas, essas últimas já alcançaram hoje um desenvolvimento tal que este tipo de sociedade ficou caduco; a própria sobrevivência da sociedade dividida em classes se converteu na maior trava ao desenvolvimento das forças produtivas e chega a colocar em perigo a existência da própria humanidade.

Com o capitalismo, a exploração e a opressão alcançaram o paroxismo porque o capitalismo é o resumo condensado de todas as sociedades de exploração do homem pelo homem que tem se sucedido. O Estado, no capitalismo, concluiu seu destino ao converter-se nesse monstro horroroso e sangrento que conhecemos hoje. Com o Capitalismo de Estado, realizou a absorção da sociedade civil, converteu-se no gerente da economia, o patrão da produção, o amo absoluto e indiscutível de todos os membros da sociedade, da sua vida e de suas atividades, desencadeando terror, semeando a morte e dirigindo a barbárie generalizada.

A revolução proletária

A Revolução Proletária difere radicalmente de todas as revoluções anteriores na história. Se todas as revoluções tiveram em comum que foram determinadas e que exprimiram a rebelião das forças produtivas contra as relações de produção da ordem existente, aquelas que fundamentam a revolução proletária expressam não só a necessidade de um desenvolvimento quantitativo como colocam a necessidade de uma mudança qualitativa fundamental do curso na história. Todas as antigas modificações que intervieram no desenvolvimento das forças produtivas ficam contidas na era histórica da penúria, que exige a inevitável exploração da força de trabalho. As mudanças que essas modificações operam não conduzem para uma diminuição da exploração, mas, ao contrário, para um aumento da exploração, para uma exploração mais racional, mais eficaz das massas, cada vez mais numerosas, da população. Acarretam uma expropriação maior dessas com relação aos instrumentos de trabalho e do produto do seu trabalho.

No movimento dialético da história humana, essas modificações pertencem todas a um único e mesmo período: o da negação da comunidade humana, o da antítese. Essa unidade fundamental faz com que as diferentes sociedades que se sucederam nessa era aparecem - por diferentes que sejam - como uma progressão na continuidade. Sem essa continuidade, não se pode compreender nem explicar acontecimentos tão contraditórios como incompreensíveis à primeira vista, tais como:

  • A extensa sobrevivência social das antigas classes e o papel ativo que continuam desempenhando na nova sociedade;
  • A possibilidade para a nova classe dominante de manter ou de assumir de novo, modos de exploração contra os quais lutou por muito tempo e conseguiu vencer: por exemplo, o comércio de escravos assumido e defendido pela Inglaterra capitalista até a segunda metade do século XIX;
  • As alianças de frações da burguesia com a nobreza e contra sua própria classe;
  • O apoio militar da Inglaterra burguesa à Vendée feudal contra a revolução burguesa na França. A aliança militar da Inglaterra burguesa com todos os países feudais contra a burguesia dominante na França. A duradoura aliança da própria Inglaterra com o regime ultrarreacionário do czarismo e o apoio a esse regime. O apoio que deu essa mesma Inglaterra de capitalismo desenvolvido ao sul escravista na Guerra de Secessão nos Estados Unidos contra o Norte da burguesia industrial e progressista.

Assim se explica que as revoluções nesta era aparecem como uma simples transmissão da máquina do Estado de uma classe exploradora a outra classe exploradora e que, muito freqüentemente, as transformações sociais se fizeram sem revolução política.

A questão é muito diferente com a revolução proletária. Com efeito, a revolução proletária não se situa em continuidade com as soluções aos problemas colocados pela penúria, mas com o fim da penúria das forças produtivas; o problema que se coloca não é "como explorar mais eficazmente?", mas "como suprimir a exploração?". Não é "como assumir o fortalecimento da opressão?", mas "como destruí-la para sempre?". Não é a continuidade da negação, mas a negação da negação e a restauração da comunidade humana a um nível mais elevado. A revolução proletária não pode reproduzir as características das revoluções anteriores como as que acabamos de mencionar porque se situa em ruptura total, em oposição radical com elas e isso tanto no seu conteúdo como nas suas formas e meios.

Uma das características fundamentais da revolução proletária é - em oposição às revoluções anteriores e levando em conta o grau alcançado pelo desenvolvimento das forças produtivas - que as transformações necessárias não poderão realizar-se com muita defasagem temporal entre os diferentes países; exigem, como teatro de operações, o mundo inteiro. A revolução proletária é internacional ou não é; Uma vez que tenha começado em um país tem que estender a todos os países ou sucumbirá mais ou menos a curto prazo. As outras revoluções eram a obra de classes minoritárias e exploradoras contra a maioria das classes trabalhadoras; a revolução proletária é a da imensa maioria dos explorados contra uma minoria. Ao ser a emancipação da imensa maioria para o interesse da imensa maioria, não pode realizar-se sem a participação ativa e constante da imensa maioria. Não pode de nenhuma maneira tomar as revoluções passadas como modelo, visto que, desde qualquer ponto de vista, é seu oposto.

A revolução proletária está chamada a transformar de cima abaixo todas as estruturas, todas as relações existentes começando com a destruição total das superestruturas do Estado. Contrariamente às revoluções anteriores que não fazem mais que arrematar a dominação econômica da nova classe, a revolução do proletariado - uma classe que não tem nenhum sustentáculo econômico - é o primeiro ato político que abre e assume, pela violência revolucionária, o processo da transformação total da sociedade.

A ditadura do proletariado

Como está colocado em evidência em O Manifesto Comunista, a burguesia não só criou as condições materiais da revolução, como engendrou a classe que será seu coveiro, o sujeito da revolução: o proletariado. O proletariado é o portador dessa revolução radical porque constitui "uma classe com raízes radicais", uma classe que é "a negação da sociedade", que segundo os termos de Marx, encarna todos os sofrimentos da sociedade, classe que não foi afetada de modo particular, mas em "si mesma" como tal, uma classe que não tem nada a perder salvo suas cadeias e que não pode emancipar sem emancipar toda humanidade. É a classe produtiva e do trabalho associado por excelência. É por isso que o proletariado é a única classe portadora da solução das contradições insuperáveis e insuportáveis das sociedades divididas em classes. A solução de que é portador o proletariado é o comunismo. A profundidade dessa transformação histórica e a impossibilidade de toda medida que vá nessa direção dentro do capitalismo, que fazem da revolução sua condição primeira, tornam igualmente indispensáveis a substituição da dominação da classe capitalista pela do proletariado para assumir a marcha para o comunismo. A ditadura está incontestavelmente ligada ao fato da dominação, mas é muito mais que isso. "A ditadura -escreve Lênin- significa um poder ilimitado que se apóia não na lei, mas na força" [7]. A idéia da força relacionada à ditadura não é nova; o que nos parece aqui interessante é a primeira parte dessa frase que contém a idéia de um poder "ilimitado". Lênin insistirá bastante "... esse poder não reconhece nenhum outro poder, nenhuma lei, nenhuma norma, venha de onde vier" [8]. Particularmente interessante é esta outra passagem onde faz ressaltar a idéia da ditadura do proletariado, em um sentido mais amplo que a mera força; "esta pergunta é habitualmente colocada por aqueles que encontram pela primeira vez a palavra ditadura em uma acepção nova para eles. As pessoas estão acostumadas a ver somente o poder policial e a ditadura policial. Parece-lhes estranho que possa existir uma ditadura que não seja policial" [9]. É o poder dos sovietes tão exaltado por Lênin e que criou "...novos órgãos de poder revolucionário; sovietes de operários, de soldados, de ferroviários, de camponeses; novas autoridades nas cidades e no campo, " e que não se apoiavam nem na "força das baionetas" nem na do "comissariado da polícia" e não tinha nada a ver como os velhos instrumentos de força" [10]. Não se baseava essa ditadura na força e na coerção? Claro que sim, porém o importante é saber distinguir sua nova qualidade. Embora a ditadura das antigas classes se dirigia essencialmente contra o futuro, contra a emancipação humana, a ditadura do proletariado é "a do povo no que diz respeito à opressão que exercem os órgãos policiais e de todo tipo do antigo poder". É por isso que pode e deve apoiar-se sobre outra coisa que a mera força:

  • "O novo poder, ditadura da imensa maioria, podia se manter e se mantém exclusivamente com a ajuda da confiança das massas, exclusivamente convidando, da maneira mais livre, mais ampla e mais forte, toda massa a participar do poder. Nada escondido, nada secreto, nenhuma regra, nenhuma formalidade... é um poder que se oferece à vista de todos, que faz tudo diante dos olhos das massas, acessível à massa, é o órgão direto e sem intermediário da massa popular e da sua vontade" [11]

Temos aqui, não a descrição da sociedade comunista, na qual já não existe mais nenhum problema de poder, sim do período revolucionário onde a questão do poder ocupa um lugar central. É desse poder da ditadura do proletariado do que se trata. Encontramos aqui, na pena de Lênin, o que é e o que deve ser a ditadura do proletariado e voltamos a encontrar a própria essência da noção marxista da extinção do Estado. É nesse sentido que Engels podia escrever: "Querem saber, senhores, o que é a ditadura do proletariado? Vejam a comuna".

A ditadura do proletariado é o poder ilimitado da classe para exercer livre e plenamente suas atividades criativas, é tomar a responsabilidade "sem intermediário" seu destino e o de toda sociedade, arrastando atrás de si as outras classes e camadas trabalhadoras. Esse poder, o proletariado não pode delegar a nenhuma formação particular sem se autosabotar, sem renunciar a sua emancipação porque "a emancipação do proletariado só poderá ser obra do próprio proletariado".

A classe capitalista assim como as outras classes exploradoras na história, unidas pela exploração, se dividem em frações hostis umas as outras, com interesses divergentes, e não podem encontrar sua unidade senão no comando de uma fração particular, a que assume a função do Estado. O proletariado não conhece no seu seio interesses divergentes e hostis. Sua unidade é encontrada na sua meta: o comunismo e na sua organização unitária de classe: os conselhos operários. É de si mesmo e em si mesmo onde obtém sua unidade e sua força. Sua consciência lhe é ditada pela sua existência. Não há nenhuma mediação entre o seu ser e sua consciência. O processo de tomada de consciência se manifesta com o aparecimento no seu seio, de correntes de pensamentos e organizações políticas. Essas podem ser às vezes portadoras de ideologias de classes alheias a ele ou ao contrário manifestações importantes e fundamentais de uma verdadeira tomada de consciência dos seus interesses históricos. O Partido Comunista representa, é certo, a fração mais consciente da classe, porém não pode nunca pretender ser a própria classe, nem substituí-la no cumprimento das suas tarefas históricas. Nenhum partido, nenhum Partido Comunista, pode reclamar algum "direito" de direção, nem algum poder particular de decisão na classe. O poder de decisão é atributo exclusivo da organização unitária da classe e dos seus órgãos eleitos e revogáveis, um poder que não se pode nunca alienar a nenhum outro organismo, sem correr o risco de alterar gravemente o funcionamento da organização da classe e o cumprimento das suas tarefas. É por isso que é inconcebível que os órgãos de direção sejam confiados, ainda que sejam por voto, a tal ou qual grupo particular. Isso será reproduzir no seio do proletariado o modo de funcionamento e da própria prática das classes não proletária.

Todas as formações políticas que se situam dentro do marco do reconhecimento da autonomia da classe com relação às demais classes e seu poder ilimitado a hegemonia na sociedade, devem ter plena liberdade de ação e de propaganda dentro da classe e da sociedade, porque "uma das condições da tomada de consciência da classe e a livre circulação é confrontação de idéias no seu seio" (Marx).

Para alguns essa concepção da ditadura do proletariado contém ares de "democratismo". Da mesma maneira que adotam a revolução burguesa como modelo da revolução proletária, adotam a ditadura da burguesia como modelo da ditadura do proletariado. Porque a ditadura da burguesia é o Estado e nada mais que o Estado, acreditam que o Estado que surge inevitavelmente durante o Período de Transição, depois da vitória da revolução proletária, é a ditadura do proletariado, e não fazem nenhuma distinção entre uma e outra. Sua atenção não se detém nunca sobre o simples fato seguinte: enquanto a burguesia não tem outra organização unitária da sua classe além do Estado, o proletariado, por sua vez, cria essa organização unitária que congrega o conjunto da sua classe: os conselhos, para fazer sua revolução e para mantê-la depois, sem dissolvê-la no Estado. O poder ilimitado desses conselhos, ou seja, a ditadura do proletariado que se exerce sobre toda a vida da sociedade; inclusive sobre o semi-Estado do período de transição. Não entendem absolutamente nada à noção marxista de semi-Estado ou Estado-Comuna e, da ditadura do proletariado, só levam em conta a palavra genérica "ditadura", que identificam com um Estado forte, com o Estado-terrorista. Por outro lado, identificam a ditadura da classe com a ditadura do Partido, ao ser esse último quem dita sua lei, pela força, à classe. Essa visão pode ser resumida assim: um partido único se apodera do Estado, exerce o terror para submeter a organização unitária do proletariado, os conselhos e todo o sistema soviético da sociedade do período de transição. Esse tipo de ditadura do proletariado se parece como duas gotas d'água ao tipo perfeito de Estado capitalista totalitário: o Estado stalinista e o Estado fascista.

Os supostos argumentos sobre o rechaço de toda referência a maioria-minoria, convertidos em uma questão ridícula de 49% e 51%, são puro malabarismos sofistas, fraseologia oca, um radicalismo de exibição que esconde o verdadeiro problema. O problema não é que a maioria tenha obrigatoriamente razão por conta de ser maioria, mas compreender que a revolução proletária não pode ser a obra de uma minoria da classe. Isto não é uma questão de formalismo, mas da essência, do próprio conteúdo da revolução, isto é, que a classe "organiza suas próprias forças como força social" (Marx) e já não as separa como força exterior, independente dela. Levar a cabo a revolução é, portanto, inseparável da participação efetiva e ilimitada das imensas massas da classe, da sua atividade e organização. É nisso que consiste antes de tudo a ditadura do proletariado. Isso não tem, portanto, nada a ver com o fortalecimento de um Estado onipotente, mas com sua debilitação, um Estado amputado desde o seu nascimento pela vontade e o poder ilimitado do proletariado.

A ditadura do proletariado é correlativa com o conceito da extinção do Estado, tal e qual o marxismo, de Marx a Lênin no Estado e a Revolução o defenderam sempre. Não é o Estado que faz e exerce a ditadura, mas é a ditadura do proletariado quem suporta a existência ainda inevitável de um semi-Estado e se encarrega do processo da sua extinção.

O Estado no período de transição

A diferença entre os marxistas e os anarquistas não reside em que os primeiros conceberiam um socialismo com um Estado e os segundos uma sociedade sem Estado. Sobre esse ponto, existe um acordo total. É mais com os pseudo-marxistas da social-democracia, herdeiros de Lassalle, que conjugavam o socialismo com o Estado, com os quais existe essa diferença, e é fundamental (cf. A crítica do Programa de Gotha" de Marx e O Estado e a Revolução" de Lênin. O debate com os anarquistas era sobre seu não reconhecimento de um período de transição inevitável e sobre o fato de que, como bons ideólogos, ditavam à história um salto imediato e direto, do capitalismo à sociedade comunista [12].

É absolutamente impossível abordar o problema do Estado depois da revolução se não tiver compreendido antes que entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista está situado o período de transformação revolucionária da primeira para a segunda [13], se não tiver compreendido porque esse período está situado não antes, mas depois da revolução vitoriosa, nem no que consiste seu caráter radical com relação aos períodos análogos no passado, nem ao fato que depois de ter destruído a dominação da classe capitalista, subsistem na sociedade classes com imensas massas trabalhadoras que são profundamente anticapitalistas sem ser por isso pró-comunistas e que é impossível mantê-las apartadas da vida política e da participação ativa na organização da sociedade.

É só partindo desses dados objetivos das exigências da realidade histórica e não partindo do Estado em si, que pode se compreender:

  • 1) Seu ressurgimento inevitável;
  • 2) Sua diferença fundamental com os outros tipos de Estado;
  • 3) A necessidade de uma atitude ativa por parte do proletariado para limitação progressiva das suas funções e com vistas a sua extinção.

Examinemos esses pontos mais de perto:

I. Seu surgimento inevitável

a) Mais que em outras revoluções, o proletariado terá que lutar contra a resistência mais feroz e rebelde por parte da classe capitalista vencida. Tem que se sublinhar que para o ato da revolução, isto é, desalojar a classe capitalista da sua posição dominante e destruir o aparato de Estado, o proletariado não o alcança apoiando-se estritamente sobre seu poder de classe, quer dizer suas organizações, sem necessidade de nenhum tipo de Estado. A força ardente da revolução desmoraliza e desorganiza o exército permanente composto na sua maioria de operários e camponeses, dos quais uma grande parte passa para o lado da revolução. Porém uma vez vencida, a burguesia na sua cólera desenfreada de revanche, centuplica sua resistência, reagrupa suas forças, reconstitui um exército selecionado de voluntários raivosos e de mercenários e, no seu terror, desata uma guerra contrarrevolucionária sem piedade. Diante de tal tipo de guerra campal, conduzida segundo as leis da arte militar, o proletariado não pode contentar-se em opor suas massas em armas; vê-se obrigado a construir um exército regular, com a incorporação não só dos operários, mas do conjunto da população. Guerra, represálias, coerção sistemática contra as maquinações da contrarrevolução, essas são as primeiras determinações do surgimento da instituição estatal.

Por mais importantes que sejam as razões da luta militar e as necessidade da coerção contra os manejos contrarrevolucionários da classe capitalista, embora cheguem a ocupar durante a guerra civil um lugar de primeira ordem, seria, no entanto, um erro simplista acreditar que são essas as razões essenciais, menos ainda a razão única, do surgimento do Estado. O simples fato de que o Estado se mantenha e dure muito depois da guerra civil é uma prova suficiente.

No mesmo sentido, é importante recordar a diferença que existe entre os outros Estados do passado, para os quais a coerção estava essencialmente dirigida contra as classes ascendentes -e, portanto, duradouras- enquanto elas se arranjassem com as antigas classes dominantes, e o Estado do período de transição para o qual é exatamente o contrário, nenhuma coerção se impõe contra classes ascendentes que não existem, mas unicamente contra as antigas classes com as quais não pode haver nenhuma colaboração.

b) A sociedade no período de transição é ainda uma sociedade dividida em classes. O marxismo e a história ensinam que nenhuma sociedade dividida em classes pode subsistir sem um Estado, não como mediador, mas como instituição indispensável para manter a coesão necessária, para impedir que a sociedade sucumba e se destrua.

Além do mais, é indispensável e possível que o proletariado retire todo poder político dos membros da velha classe - classe muito minoritária; seria um disparate e do mais prejudicial - e, de todas maneiras, impossível-, excluir as grandes massas das classes não proletárias, porém não exploradoras, da vida política e social. Todos os problemas econômicos, políticos, culturais, da vida imediata da sociedade interessam e concernem essas massas. O proletariado não pode, nas suas transformações revolucionárias, ignorar sua existência nem exercer sobre elas uma coerção sistemática. Com relação a essas massas, o proletariado não pode ter mais que uma política de reformas, de propaganda e de incorporação à vida social, sem por isso dissolver a si mesmo nem abdicar diante de sua missão e com relação a sua hegemonia que é a ditadura do proletariado.

Essa incorporação necessária dessas massas adquire a forma de uma instituição particular que é o Estado-comuna e que ainda é um Estado. É essencialmente a existência dessas classes, sua lenta dissolução e a necessidade imperiosa de incorporá-las o que torna inevitável o surgimento do Estado no período de transição ao socialismo.

c) Tem que se acrescentar às duas razões mencionadas acima as necessidades de centralização e de organização da produção, da distribuição, das relações com o mundo exterior, etc, em resumo, toda a administração das coisas e da vida pública, completamente transtornada pela revolução e que a sociedade não aprendeu nem é capaz ainda de separar do governo dos homens.

Essas três razões se conjugam para atuar com força como fatores determinantes para o ressurgimento do Estado depois da revolução

II. A diferença fundamental desse Estado com os demais tipos de Estado

Engels escrevia, ao analisar a Comuna de Paris, que não era propriamente um Estado. Desejando por em evidência as diferenças profundas com o Estado clássico, Marx, Engels, Lênin, atribuíram nomes diferentes: Estado-Comuna, semi-Estado, Estado popular, ditadura democrática, ditadura revolucionária, etc. Todos esses nomes se referem, e destacam, às características específicas que o diferencia com o Estado no passado.

a) Este estado distingue-se antes de tudo pelo fato de que, pela primeira vez, é o Estado das classes exploradas e não das classes exploradoras. É o Estado de uma maioria com os interesses da maioria contra uma minoria. Existe, não para a defesa de novos privilégios, mas para destruir os privilégios. Exerce a violência não para oprimir, mas para impedir a opressão. Não é um corpo que se eleva acima da sociedade, mas que está ao seu serviço. Seus membros e seus funcionários não são nomeados, mas eleitos e revogáveis, seu exército permanente é substituído pelo armamento geral do povo; substitui a opressão por um máximo de democracia, isto é, de liberdades de opinião e de expressão e, acima de tudo, é um Estado em extinção. Mas continua sendo um Estado, ou seja, continua governando os homens, porque é a instituição de uma sociedade ainda dividida em classes, embora seja a sua última forma.

b) Este Estado do período de transição não será, segundo Lênin, um Estado como outro "tal e como o criou em todas as partes a burguesia, desde as monarquias constitucionais até as Repúblicas mais democráticas" mas conforme os "ensinamentos da Comuna de Paris" e a análise que dela fizeram Marx e Engels". "Eis aqui o tipo de Estado que necessitamos. Eis aqui o caminho que temos de seguir para que seja impossível que se restabeleçam uma polícia ou um exército separados do povo".

Lênin não confunde esse Estado com a ditadura do proletariado porque esse Estado é somente "a ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses pobres". "Claro, dizia Lênin, a democracia é também uma forma de Estado que terá que desaparecer quando este desapareça também, porém isso não sucederá senão quando se passe ao socialismo definitivamente vitorioso e consolidado, ao comunismo integral".

E Lênin precisa o papel do proletariado depois de haver "destruído" o Estado burguês: "o proletariado deve organizar todos os elementos explorados da população para que eles mesmos tomem diretamente em mãos os órgãos do poder do Estado, formando eles mesmos as instituições desse poder".

Essas linhas foram escritas em Março de 1917, apenas um mês depois da revolução de Fevereiro. Esse tema da tomada do poder do Estado "em mãos de todos os elementos explorados da população", encontraremos desenvolvidos em dezenas de artigos de Lênin, e particularmente no Estado e a Revolução. E podemos repetir com ele: "esse é o tipo de Estado que necessitamos" e que a revolução faz surgir.

III. A necessidade de uma atitude ativa por parte do proletariado para a limitação progressiva das funções e com vistas a extinção do Estado

Acabamos de ver a enorme distância que separa o Estado do período de transição - que deixou de ser, segundo Engels, um Estado propriamente dito - de todos os demais. E, no entanto, segundo o mesmo Engels, "é uma praga" que herda o proletariado e contra o qual Engels se encarrega de colocar o proletariado em guarda. Como podemos entender isso?

Marx e Engels colocaram em evidência as medidas que a Comuna de Paris sentiu necessidade de tomar contra esse semi-Estado, particularmente ao tornar revogável em todo momento qualquer eleição e ao limitar a remuneração dos eleitos e funcionários ao salário médio de um operário, para limitar suas tendências nocivas. Lênin não parava de recordar e de se referir a essas medidas, mostrando assim a importância que dava aos graves perigos de burocratização que corria esse tipo de Estado-Comuna.

A Comuna de Paris, que se limitou somente a uma cidade, e durou só dois meses, teve apenas tempo de manifestar os aspectos perigosos desse semi-Estado. Não se pode senão admirar ainda mais a perspicácia política de Engels, que logrou, nessas condições, descobrir e advertir sobre os perigos, sobre o caráter de praga do Estado pós-revolucionário.

A Revolução de outubro em um país imenso, com uma população de mais de cem milhões de habitantes e com uma duração de vários anos, acabará sendo o terreno para uma experiência muito distinta. A experiência confirmou tragicamente, mais além do que tivesse conseguido imaginar até no pesadelo mais horrível, as advertências de Engels contra essa praga.

Quando enumerávamos, segundo Marx, Engels e Lênin, as caracteríticas distintivas desse Estado, era bem mais o que tinha de ser em vez do que é por si mesmo. Por si mesmo, o Estado do período de transição contém todos os defeitos herdados de todos os Estados que o precederam. Cabe ao proletariado ser o mais vigilante com relação a ele. O proletariado não pode evitar o surgimento, nem evitar a obrigação de utilizá-lo, porém, para isso, terá que amputar seus aspectos mais nocivos para que possa lhe ser útil para seus próprios fins; e isso terá de fazer desde o momento em que surge esse estado.

O Estado não é portador nem agente ativo do comunismo. Nada mais é que uma trava. Reflete o estado presente da sociedade e, como todo Estado, tende a manter, conservar o status quo. O proletariado, portador do movimento de transformação social, obriga o Estado a atuar nessa direção. Não pode obrigá-lo a fazê-lo mais que controlando-o a partir de fora, dispensando-o, despojando-o, tanto quanto as condições permitirem, de suas funções para garantir assim o processo de extinção.

O Estado tende sempre a crescer de maneira descomunal. Por isso oferece um terreno de predileção para toda escória de oportunistas e arrivistas e a toda classe de parasitas e recruta facilmente seus personagens de alto escalão entre os resíduos e vestígios da antiga classe dominante em decomposição. É isso o que comprova Lênin quando fala do Estado como reconstituição do antigo aparato de Estado czarista. Essa máquina de Estado, como constatava Lênin, "tende a escapar de nosso controle e gira no sentido contrário do que queremos". É também Lênin que, indignado, não encontrava palavras suficientemente fortes para estigmatizar os enormes abusos e os vexames de todos os tipos que os representantes do Estado faziam a população sofrer . E não dizia respeito somente à antiga canalha czarista que infestava o aparato do Estado como também o pessoal recrutado entre os comunistas para quem Lênin criou o nome "Komtchvanstva" (patifes comunistas).

Tais manifestações não podem ser combatidas se as considerarmos simplesmente como acidentais. Para combatê-las eficazmente, é necessário ir até o fundo das coisas, reconhecer que se originam nessa praga que é a sobrevivência inevitável dessa superestrutura que é o Estado. Não se trata de lamentar, de erguer os braços ao céu e de inclinar-se, impotente diante de tal "fatalidade". O determinismo não é uma filosofia do fatalismo; não se trata tampouco de pretender que, por simples vontade, a sociedade pode escapar da necessidade do surgimento do Estado. Isso seria cair no idealismo. Porém se temos que reconhecer que o Estado se impõe a nós como uma "exigência da situação" (Lênin), como uma necessidade, é importante não converter essa necessidade em virtude, não se colocar a fazer a apologia do Estado e vangloriá-lo. O marxismo reconhece o Estado como uma necessidade, porém também como uma praga e coloca diante do proletariado o problema das medidas que há de se tomar para assegurar sua extinção.

De nada serve acoplar de mil maneiras as palavras "Estado" e "Proletariado" e "operário". Os problemas não se resolvem em mudar o nome, o que se faz é se iludir e agravar ainda mais a confusão. O Estado proletário é um mito. Lênin o rechaçava, recordando que era um "governo de operários e de camponeses com uma deformação burocrática". É uma contradição em termos e uma contradição na realidade. A grande experiência da Revolução Russa o atesta. Cada momento de cansaço, cada debilidade, cada erro do proletariado tem imediatamente como conseqüência o reforço do Estado e, inversamente, cada vitória, cada reforço do Estado, se faz suplantando um pouco mais o proletariado. O Estado se alimenta com a debilitação do proletariado e sua ditadura de classe. A vitória do primeiro é a derrota do segundo.

De nada serve querer converter a organização unitária do proletariado - os conselhos operários - em Estado. Proclamar que o Comitê Central dos conselhos operários é o Estado, provém tanto da astúcia dos promotores de tal idéia, como da sua ignorância dos verdadeiros problemas que se colocam na realidade. De que serve dar ao conselho o nome de Estado se segundo essa idéia são sinônimos e são a mesma coisa? Por amor ao belo nome de "Estado"? Esses astutos com fraseologia radical já ouviram alguma vez falar que os conselhos operários são uma praga ou da necessidade da sua extinção? Ao proclamar que o conselho é o Estado, excluem e proíbem toda participação das classes trabalhadoras não proletárias que é, como vimos, a razão principal do surgimento do Estado; essa posição é impossível e absurda ao mesmo tempo [14]. E se, para se salvar desse absurdo, quer fazer participar essas classes e camadas nos conselhos operários, são então esses últimos os que serão alterados e que perdem sua natureza de organização unitária autônoma do proletariado.

Deve-se igualmente rechaçar uma estruturação do Estado sobre a base de uma composição dos diferentes corpos sociais (operários, camponeses, profissionais liberais, artesãos, etc.) organizados separadamente. Isto seria institucionalizar sua existência e tomar como modelo o Estado corporativista de Mussolini. É perder de vista que não estamos diante de uma sociedade com um modo de existência fixo, mas em um período de transição. São como membros da sociedade que toda população não exploradora participa da vida social e nos sovietes territoriais e é somente o proletariado - porque é ele portador do futuro comunista - quem, ademais, participa de maneira hegemônica na vida social e a dirige, organizado como classe nos seus conselhos operários.

Sem entrar em detalhes de modalidade, podemos reter como princípios a estrutura seguinte da sociedade do período de transição:

  • 1) Toda população não exploradora se organiza sobre a base dos sovietes-comunas territoriais, centralizando-se da base ao cume; isso origina o nascimento desse órgão que é o Estado-Comuna.
  • 2) Os operários participam nessa organização soviética, individualmente como todos os demais membros da sociedade e coletivamente com sua organização de classe autônoma, em todos os níveis dessa organização soviética.
  • 3) O proletariado é preponderante na representação em todos o níveis, porém, sobretudo, nos níveis superiores.
  • 4) O proletariado conserva sua plena e inteira liberdade com relação ao Estado. O proletariado não deve reconhecer, sob nenhum pretexto, a supremacia da decisão dos órgãos de Estado sobre a da sua organização de classe, os conselhos operários, mas deve impor o contrário.
  • 5) Particularmente, o proletariado não pode tolerar nenhum tipo de intromissão nem de pressão por parte do Estado na vida e na coletividade da classe organizada, excluindo todo direito e possibilidade de repressão por parte do Estado com relação à classe operária.
  • 6) O proletariado conserva seu armamento fora de qualquer controle do Estado.

Resta-nos ainda afirmar que o Partido político não é um órgão de Estado. Durante muito tempo, os revolucionários viveram com essa ótica, o que evidenciava a imaturidade da situação objetiva e sua própria falta de experiência. A experiência da Revolução Russa mostrou a caducidade dessa visão. A estrutura do Estado baseada nos partidos políticos é própria do Estado Burguês e, mais especificamente, da democracia burguesa. A sociedade do período de transição não delega seu poder a partidos, ou seja, a corpos especializados. O semi-Estado desse período tem como estrutura o sistema dos sovietes, isto é, uma participaqção constante e direta das massas na vida e no funcionamento da sociedade. É com essa condição que as massas podem, a todo momento, revogar seus representantes, substituí-los e exercer um controle permanente sobre eles. A delegação de poder a partidos - quaisquer que sejam - é voltar a introduzir a divisão entre o poder e a sociedade e, por conseguinte, resulta em uma trava tremenda a sua emancipação.

Além do mais, como demonstrou a experiência da revolução de Outubro, a obra ou a participação do Partido do proletariado no Estado altera profundamente suas funções. Sem entrar na discussão sobre a função do partido e suas relações com a classe -essa é outra discussão-, basta aqui mencionar que simplesmente que as razões contingentes e as razões de Estado terminam sempre por prevalecer para o partido, identificando-o ao Estado e separando-o da classe, até que chegue a opor-se a ela.

Conclusão: uma coisa deve ficar clara de uma vez por todas. Quando falamos de autonomia, trata-se da autonomia da classe com relação ao Estado. O Estado por sua parte, tem que estar subordinado à classe. A tarefa do proletariado é a de garantir a extinção do Estado. A primeira condição para isso é a não identificação da classe com o Estado.

M.C (1978)


[1] Marx, Crítica da Filosofia do Estado de Hegel.

[2] "Essa essência é a própria união da vontade subjetiva e da razão: isto é, o todo moral, o Estado" (Hegel, Georg Wilhelm Friedrich - Filosofia da história; pg. 29 Ed. Universidade de Brasília)

[3] "É preciso saber que tal estado é a realização da liberdade, isto é, da finalidade absoluta, que ele existe por si mesmo; além disso, deve-se saber que todo valor que o homem possui, toda realidade espiritual, ele só tem mediante o Estado" (Idem)

[4] Marx, A questão Judaica. https://www.marxists.org/portugues/marx/1843/questaojudaica.htm [3]

[5] "... o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil" (Karl Marx, A Miséria da Filosofia - Global Editora, coleção Bases. Vol 46; 1985)

[6] Excluímos aqui voluntariamente as ameaças externas, ou seja, de país para país, que é um problema que existe, porém que, nesse caso, não faria mais que estorvar e ofuscar a clareza do texto e o que queremos colocar claro aqui: o papel do Estado na evolução das sociedades.

[7] Lênin, A vitória dos Cadetes e as Tarefas do Partido Operário. (28/03/1906)

[8] Idem

[9] Idem

[10] Idem

[11] Idem

[12] Como acontece muitas vezes com o idealismo, é radical em especulações abstratas só para cair mais facilmente na prática concreta nos piores oportunismos, o que não deixou de suceder com os anarquistas. Seu "anti-estatismo" feroz pós-revolucionário, fundamentado sobre uma ignorância voluntária das exigências da situação histórica, os conduziu diretamente a integrar-se e em defender ainda mais ferozmente o Estado burguês "republicano" na guerra da Espanha de 1936-1939.

[13] "Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado" Marx, Crítica do Programa de Gotha

[14] Em um erro desse tipo caiu a Oposição Operária quando reivindicava que se pusesse o Estado nas mãos dos sindicatos, e foi com razão que Lênin a qualificava de anarco-sindicalista


URL de origem:https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/per%C3%ADodo_de_transi%C3%A7cao_do_capitalismo_ao_comunismo

Ligações
[1] https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm#i1 [2] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/index.htm [3] https://www.marxists.org/portugues/marx/1843/questaojudaica.htm