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Quem poderá transformar o mundo?

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"O comunismo está morto! O capitalismo venceu porque é o único sistema que pode funcionar; É inútil e perigoso sonhar com outro tipo de sociedade!".

Essas mensagens fazem parte da gigantesca campanha que a burguesia dissemina desde a queda do bloco do Leste e dos regimes supostamente "comunistas" no início dos anos 1990. Ao mesmo tempo, em conclusão, a propaganda burguesa tenta, mais uma vez, desmoralizar a classe operária tentando persuadi-la de que daí para frente ela já não será uma força na sociedade, de que já não tem nada a dizer, que definitivamente já não existe. O ressurgimento dos combates de classe, desde 2003, desmente na prática tais mentiras. Porém, ainda assim, a burguesia não cessará, inclusive durante o curso de grandes lutas operárias, de repisar a idéia de que essas lutas de modo algum poderão atribuir-se como meta a derrubada do capitalismo e a instauração de uma sociedade que nos liberte das mazelas que esse sistema impõe à humanidade. Assim, contra todas as mentiras da burguesia, e também contra o ceticismo de alguns que pretendem ser combatentes da revolução, a afirmação do caráter revolucionário do proletariado continua sendo uma responsabilidade dos comunistas. É o objetivo desses dois artigos.

O Proletariado é a classe revolucionária

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Dentre as campanhas de ataque que temos sofrido nesses últimos anos, um dos temas maiores tem sido a "refutação" do marxismo. Segundo os ideólogos a soldo da burguesia, o marxismo está falido. Sua colocação em prática e seu fracasso nos países do Leste Europeu constituíram o exemplo maior dessa falência. Na nossa imprensa, temos manifestado até que ponto o stalinismo não teve nada a ver com o comunismo tal como Marx e o conjunto do movimento operário sempre reivindicaram[1]. Quanto à capacidade revolucionária da classe operária, a tarefa dos comunistas é reafirmar a posição marxista sobre essa questão e, em primeiro lugar, recordar o que o marxismo entende por classe revolucionária.

O que é uma classe revolucionária para o marxismo?

"A história de todas as sociedades até nossos dias é a história das lutas de classes" [2]. Esse é o início de um dos textos mais importantes do movimento operário: O Manifesto Comunista. Esta tese não é própria do marxismo [3], porém uma das contribuições fundamentais da teoria comunista é o de ter estabelecido que o enfrentamento da classe na sociedade capitalista tem como perspectiva última a derrubada da burguesia pelo proletariado e a instauração do poder por este último sobre o conjunto da sociedade, tese que sempre tem sido rechaçada evidentemente pelos defensores do sistema capitalista. No entanto, se alguns burgueses do período ascendente desse sistema conseguiram descobrir (de forma incompleta e mistificada, evidentemente) certo número de leis da sociedade [4], este fenômeno não vai se reproduzir hoje em dia: a burguesia na decadência capitalista é totalmente incapaz de produzir tais pensadores. Para os ideólogos da classe dominante, a prioridade fundamental de todos os seus esforços de "pensamento" é demonstrar que a teoria marxista é incorreta (inclusive quando alguns entre esses ideólogos reivindicam algum aporte específico de Marx). A pedra angular das suas "teorias" é a afirmação de que a luta de classes não cumpre nenhum papel na história. Isso quando não trata de negar, pura e simplesmente, a existência de tal luta ou, pior ainda, quando negam a existência de classes sociais.

Mas a defesa de tais ideias não se limita somente aos defensores cegos da sociedade burguesa. Alguns "pensadores radicais", que cerram fileiras da contestação da ordem estabelecida, se juntaram aos primeiros desde algumas décadas. O guru do grupo Socialismo ou Barbárie (o inspirador do grupo Solidarity na Inglaterra), Cornelius Castoriadis, ao mesmo tempo que previa a mudança do capitalismo para um "terceiro sistema", a "sociedade burocrática", anunciou há cerca de 40 anos que o antagonismo entre burguesia e proletariado, entre exploradores e explorados, estava destinado a ceder lugar ao antagonismo entre "dirigentes e dirigidos" [5]. Mais recentemente outros "pensadores" que tiveram seu apogeu, como o professor Marcuse, afirmaram que a classe operária tinha sido "integrada" na sociedade capitalista e que as únicas forças de contestação à mesma se encontravam entre as categorias sociais marginalizadas tais como os negros nos Estados Unidos, os estudantes ou os camponeses dos países subdesenvolvidos. Portanto, as teorias sobre "o fim da classe operária", que voltam a florescer hoje em dia, são, na realidade, muito velhas: uma das características do "pensamento" da burguesia decadente, que expressa muito bem a senilidade dessa classe social, é a incapacidade de produzir a menor novidade. A única coisa que é capaz de fazer é revirar o lixo da história para tirar velhos itens que nos vende como "a descoberta do século".

Um dos meios favoritos utilizados hoje pela burguesia para escamotear os antagonismos de classe, e inclusive a realidade das classes sociais, são os "estudos" sociológicos. Graças a jogadas estatísticas, têm "demonstrado" que as verdadeiras divisões sociais não têm nada a ver com as diferenças de classe, mas com critérios como o nível de instrução, o local onde se vive, a idade, a origem étnica ou a prática religiosa [6]. Para apoiar esse tipo de afirmação, empenham-se em exibir o fato, por exemplo, de que o voto  de um cidadão a favor da direita ou da esquerda depende menos da sua situação econômica que de outros critérios. Nos Estados Unidos, a Nova Inglaterra, os negros e os judeus votam tradicionalmente nos democratas, na França, os católicos praticantes, os alsacianos e os habitantes de Lyon votam tradicionalmente na direita. Esquecem-se, e não é por casualidade, de destacar que a maioria dos operários americanos jamais votam e que, nas greves, os operários franceses que vão à igreja não são necessariamente os menos combativos. De maneira geral, a "ciência" sociológica "esquece" sempre de dar uma dimensão histórica a suas afirmações. Assim empenham-se em esquecer que os mesmos operários russos que se lançaram na primeira revolução proletária do século XX, a de 1905, começaram, em 9 de Janeiro (o "Domingo Sangrento"), com uma manifestação conduzida por um sacerdote pedindo benevolência ao czar para que os livrasse da miséria [7].

Quando os especialistas em sociologia fazem referência à história, é somente para afirmar que as coisas mudaram radicalmente no último século. E, segundo eles, nessa época, o marxismo e a teoria da luta de classes podiam ter certo sentido, quando as condições de vida e trabalho dos assalariados da indústria eram efetivamente penosas. Porém, depois, os operários se "aburguesaram" e ascenderam à "sociedade de consumo" até o ponto de perder sua identidade. Da mesma forma, os burgueses de alto nível de vida e barrigudos deram lugar aos "administradores" assalariados. Todas essas considerações querem ocultar que, fundamentalmente, as estruturas profundas da sociedade não mudaram. Na realidade, as condições que no século passado deram à classe operária sua natureza revolucionária, estiveram e estão sempre presentes. O fato de que hoje em dia o nível de vida dos operários seja superior ao dos seus irmãos de classe de gerações passadas não modifica de modo algum seu lugar nas relações de produção que dominam a sociedade capitalista. As classes sociais continuam existindo e a luta entre elas continua sendo o motor fundamental do desenvolvimento histórico.

Certamente é uma ironia da história que os ideólogos oficiais da burguesia pretendam, de um lado, que as classes não desempenhem nenhum papel específico (ou seja, que elas não existam) e reconheçam, por outro lado, que a situação econômica é um problema essencial, crucial, com que se depara esta mesma burguesia.

Na realidade a importância fundamental das classes sociais se origina justamente do lugar preponderante que ocupa a atividade econômica dos homens. Uma das afirmações de base do materialismo histórico é que, em última instância, a economia determina as outras esferas da sociedade: as relações jurídicas, as formas de governo, os modos de pensar. Esta visão materialista da história manda para o espaço as filosofias que vêem os acontecimentos históricos ou como o mero fruto do azar, ou a expressão da vontade divina, ou ainda o simples resultado das paixões ou dos pensamentos dos homens. Todavia, como dizia Marx em sua época, "a crise se encarrega de fazer entrar a dialética na cabeça dos burgueses". O fato, hoje evidente, dessa preponderância da economia na vida da sociedade determina basicamente a importância das classes sociais, justamente porque estas estão determinadas, contrariamente a outras classificações sociológicas, pelo lugar ocupado nas relações econômicas. Isto sempre foi uma realidade desde a existência das sociedades de classe, mas no capitalismo se expressa com maior clareza.

Na sociedade feudal, por exemplo, a diferenciação social estava consignada nas leis. Existia uma diferença jurídica fundamental entre os exploradores e os explorados: os nobres tinham, por lei, uma condição oficial de privilegiados (isenção de impostos, recebimento de um tributo pago pelos servos, por exemplo) enquanto os camponeses, que estavam ligados a sua terra, estavam obrigados a ceder uma parte dos seus rendimentos ao senhor (ou trabalhar gratuitamente nas terras deste). Em tal sociedade, a exploração, que era facilmente medida (por exemplo, sob a forma de tributo pago pelo servo) parecia originar-se das normas jurídicas. No entanto, na sociedade capitalista, a abolição dos privilégios, a introdução do sufrágio universal, da Igualdade e da Liberdade proclamadas pelas suas constituições, não permite que a exploração e a divisão em classes se escondam atrás das diferenças de normas jurídicas. É a posse, ou a não posse, dos meios de produção [8], assim como o modo como estes  são empregados o que determina, na essência, o lugar na sociedade dos seus membros e seu acesso às riquezas. Quer dizer, a filiação a uma classe social e a existência de interesses comuns com outros membros da mesma classe. De forma geral, o fato de possuir meios de produção e colocá-los a trabalhar individualmente determina a filiação à pequena burguesia (artesãos, explorações agrícolas, profissionais liberais, etc.) [9]. O fato de estar privado de meios de produção e de estar obrigado, para viver, a vender sua força de trabalho aos que os detenham e os utilizam em seu proveito para apropriar-se de uma mais-valia, determina o pertencimento à classe operária. Por fim, fazem parte da burguesia, os que detêm (no sentido jurídico ou no sentido global do seu controle, de maneira coletiva ou individual) meios de produção que, para colocá-los em movimento, utilizam o trabalho assalariado e que vivem da exploração deste último, sob a forma de mais-valia que este produz. Na essência, essa divisão em classes é hoje em dia tão presente como era no século passado. Do mesmo modo que subsistiram os interesses de cada classe e os conflitos entre esses interesses. Por esta razão, os antagonismos entre os principais componentes da sociedade, determinados pelo que constitui o quadro da mesma, a economia, continua se encontrando no centro da vida social.

Dito isso, é preciso assinalar que, apesar de os antagonismos entre exploradores e explorados constituírem um dos motores principais da história das sociedades, isso não se expressa de forma idêntica em todas elas. Na sociedade feudal, as lutas, frequentemente ferozes e de grande alcance, entre os servos e os senhores feudais não levaram nunca a uma mudança radical da mesma. O antagonismo de classe, que conduziu à derrubada do antigo regime e aboliu os privilégios da nobreza, não foi aquele que opôs esta e a classe explorada, a população serva, mas o enfrentamento entre essa  nobreza e outra classe exploradora: a burguesia (Revolução Inglesa da metade do século XVII, Revolução Francesa no final do século XVIII). Do mesmo modo a sociedade escravista da antiguidade romana não foi abolida pelas classes de escravos (apesar de terem empreendido alguns combates formidáveis, como a revolta de Spartacus e dos seus no ano 73 A.C.), mas pela nobreza que chegou a dominar o ocidente cristão durante mais de um milênio.

Na realidade, nas sociedades do passado, as classes revolucionárias nunca foram classes exploradas, mas novas classes exploradoras. Evidentemente, este fato não se deve de modo algum ao azar. O marxismo distingue as classes revolucionárias (que se chamam também classes "históricas") de outras classes da sociedade pelo fato de que, contrariamente a essas últimas, elas têm a capacidade de tomar a direção da sociedade. E enquanto o desenvolvimento das forças produtivas era insuficiente para assegurar uma abundância de bens ao conjunto da sociedade, impondo a essa a manutenção de desigualdades econômicas e, portanto, de relações de exploração, só uma classe exploradora estava em condições de se impor à frente do corpo social. Seu papel histórico era o de favorecer a eclosão e o desenvolvimento das relações de produção das quais era portadora e que tinham como vocação, suplantando as antigas relações de produção que se tornaram caducas, de resolver as contradições, até então insuperáveis, engendradas pela manutenção dessas últimas.

Assim, a sociedade escravista romana em decadência estava minada pelo fato de que a "provisão" de escravos, baseado na conquista de novos territórios, chocava-se com a dificuldade que Roma tinha para controlar fronteiras cada vez mais distantes e pela incapacidade de obter por parte dos escravos a capacidade exigida pela colocação em prática de novas tecnologias agrícolas. Em tal situação, as relações feudais, nas quais os explorados não tinham uma condição idêntica à do gado (como era o caso dos escravos) [10] e estavam estreitamente interessados em uma grande produtividade do solo que trabalhavam, porque dele viviam, impuseram-se como as mais aptas para fazer a sociedade sair do marasmo em que vivia. É por isso que essas relações se desenvolveram, fundamentalmente por uma libertação crescente dos escravos (o que foi acelerado, em alguns lugares, pela chegada dos "bárbaros" dentre os quais alguns já viviam há algum tempo sob a forma de sociedade feudal).

Do mesmo modo, o marxismo (começando pelo Manifesto Comunista) insiste sobre o papel eminentemente revolucionário desempenhado pela burguesia ao longo da história. Esta classe, que aparece e se desenvolve no seio da sociedade feudal, viu crescer seu poder com relação à nobreza e à monarquia, cada vez mais dependentes dela tanto no que diz respeito a seus abastecimentos em bens de toda natureza (tecidos, móveis, especiarias, armas), como no que se refere ao financiamento dos seus gastos. Ao se esgotar a possibilidade arroteamento e de extensão das terras cultivadas foi se secando uma das fontes da dinâmica das relações de produção feudais, juntamente com a perda da sua razão de ser, no papel de protetor das populações pela nobreza (que foi inicialmente a vocação principal desta classe) por conta da constituição de grandes reinos. Assim, o controle da sociedade por essa classe perde sentido e se converte em uma trava ao desenvolvimento da referida sociedade. Isso se amplia pelo fato de que esse desenvolvimento é cada vez mais tributário do crescimento do comércio, do banco e do artesanato das grandes cidades que alcança um progresso considerável das forças produtivas.

Assim a burguesia, colocando-se à frente do corpo social, primeiro na esfera econômica e depois na esfera política, liberta a sociedade das travas que a tinham colocado no marasmo e cria as condições para o crescimento das riquezas mais formidável que a humanidade tinha conhecido. E, ao mesmo tempo, substitui uma forma de exploração, a servidão, por outra forma de exploração, o trabalho assalariado. Para isso, durante o período que Marx chama de acumulação primitiva, toma medidas de uma barbárie tamanha que podia ser comparada às impostas aos escravos, para que os camponeses se vissem obrigados a vender sua força de trabalho nas cidades (ver, a esse respeito, as páginas admiráveis do Livro I de O Capital). Essa barbárie é o anúncio da barbárie que empregara o capital para explorar o proletariado (trabalho de crianças, trabalho noturno de mulheres e crianças, jornadas de trabalho de até 18 horas, aprisionamento de trabalhadores em Workhouses, etc.) até que as lutas deste conseguissem obrigar os capitalistas a atenuar a brutalidade dos seus métodos.

A classe operária, desde seu surgimento, tem protagonizado revoltas contra a exploração. Assim, essas revoltas colocaram em evidência um projeto de mudança da sociedade, de abolição das desigualdades, de compartilhar os bens sociais. E nisso não se diferencia fundamentalmente das camadas exploradas no passado, particularmente os servos que, em algumas das suas revoltas, podiam aderir a um projeto de transformação social. Esse foi o caso durante a guerra dos camponeses no século XVI, na Alemanha, quando os explorados adotaram como porta-voz Thomas Munzer, que preconizava uma forma de comunismo [11]. No entanto, contrariamente ao projeto de transformação social de outras classes exploradas, o do proletariado não é uma simples utopia irrealizável. O sonho de uma sociedade igualitária sem donos e sem exploração que podiam acolher os escravos ou os servos era uma fantasia porque o grau de desenvolvimento econômico alcançado pela sociedade naquele tempo não permitia a abolição da exploração. Por outro lado, o projeto comunista do proletariado é perfeitamente realizável, não só porque o capitalismo criou as premissas para tal sociedade, mas porque é o único projeto que pode tirar a humanidade do marasmo em que se afunda.

Por que o proletariado é a classe revolucionária da nossa época

Desde que o proletariado começou a propor seu próprio projeto, a burguesia o despreza, considerando-o elucubrações de profetas sem público. Quando se esforçava em ir mais além do simples desprezo, o único que podia imaginar é que os operários seriam como as demais classes exploradas de épocas passadas: que só podiam sonhar utopias impossíveis. Evidentemente a história parecia dar razão à burguesia, cuja filosofia se reduzia ao "sempre existiu pobres e ricos e sempre  haverá. Os pobres não ganham nada rebelando-se: o que tem de ser feito é os ricos não abusarem da sua riqueza e se preocuparem em aliviar a miséria dos mais pobres". Os sacerdotes e as damas de caridade foram de fato os porta-vozes, e os praticantes, dessa "filosofia". O que a burguesia não queria reconhecer é que seu sistema econômico e social, nem mais nem menos que os anteriores, não podia ser eterno e que, da mesma maneira que o escravismo ou o feudalismo, estava condenado a ceder seu lugar a outro tipo de sociedade. É do mesmo modo que as características do capitalismo permitiram resolver as contradições que haviam travado a sociedade feudal (como tinha sido o caso dessa diante da antiga sociedade), as características da sociedade chamada a resolver as mortais contradições do capitalismo se originam do mesmo tipo de necessidade. Portanto, é possível definir as características da futura sociedade partindo dessas contradições.

Não podemos, por razões óbvias, no contexto desse artigo tratar em detalhes dessas contradições. Há mais de um século que o marxismo tem tratado disso de forma sistemática e nossa própria organização dedicou numerosos textos [12] ao tema. Mas, podemos resumir em linhas gerais as origens dessas contradições. Residem nas características essenciais do sistema capitalista: é um modo de produção que generalizou a troca mercantil para todos os bens produzidos, enquanto nas sociedades do passado só uma parte, muitas vezes muito pequena, desses bens eram transformados em mercadorias. Esta colonização da economia pela mercadoria afetou, inclusive no capitalismo, a força de trabalho colocada em movimento pelos homens na sua atividade produtiva. Privado de meios de produção, o produtor não tem outra possibilidade para sobreviver a não ser vender sua força de trabalho a quem detenha os meios de produção: a classe capitalista, enquanto na sociedade feudal, por exemplo, onde havia uma economia mercantil, o que artesão ou camponês vendiam era fruto do seu trabalho. Certamente é essa generalização da mercadoria o que está na base das contradições do capitalismo: a crise de superprodução encontra suas raízes no fato de que o sistema não produz valores de uso, mas sim valores de troca que devem encontrar seus compradores. É a incapacidade da sociedade em comprar a totalidade das mercadorias produzidas (embora as necessidades estejam muito longe de serem satisfeitas) onde reside essa calamidade que aparece como um verdadeiro absurdo: o capitalismo se afunda não porque produz pouco, mas porque produz em demasia [13].

A primeira característica do comunismo será, portanto, a abolição da mercadoria, o desenvolvimento da produção de valores de uso em lugar de valores de troca.

Além disso, o marxismo, e particularmente Rosa Luxemburgo, colocou em evidência que a origem da superprodução reside na necessidade de o capital, considerado como um todo, realizar-se, pela venda fora da sua própria esfera, da parte de valores produzidos correspondente à mais-valia extraída dos operários e destinada à sua acumulação. À medida que esta esfera extracapitalista se reduz, as convulsões da economia tomam formas cada vez mais catastróficas.

Assim, o único meio de superar as contradições do capitalismo reside na abolição, ao mesmo tempo que de todas as outras formas de mercadorias, da mercadoria força de trabalho, quer dizer, do salário.

A abolição da troca mercantil implica que seja abolida, igualmente, o que constitui sua base: a propriedade privada. Só se as riquezas da sociedade são apropriadas de forma coletiva poderão desaparecer a compra e a venda dessas riquezas (o que já existia, de forma embrionária, na comunidade primitiva). Tal apropriação coletiva pela sociedade das riquezas que ela produz e, em primeiro lugar, dos meios de produção, significa que já não é possível que uma parte dessa sociedade, qualquer classe social (inclusive sob a forma de burocracia de Estado), possa dispor de meios com os quais possa explorar a outra parte. Assim, a abolição do salário não pode se realizar sobre a base da introdução de outra forma de exploração, mas unicamente pode se dar sob a abolição da exploração, em todas as suas formas. Contrariamente ao passado, o tipo de transformação que hoje pode salvar a sociedade não pode se basear em novas relações de exploração. E mais, o capitalismo criou realmente as premissas materiais de uma abundância que permite a superação da exploração. Essas condições de abundância também tornam visível a existência de crises de superprodução (como assinalou o Manifesto Comunista).

A questão colocada é a seguinte: qual força na sociedade está em condições de operar essa transformação, de abolir a propriedade privada e de colocar fim a toda forma de exploração?

A primeira característica dessa classe é ser explorada, porque só uma classe assim está interessada na abolição da exploração. Nas revoluções do passado a classe revolucionária não podia ser, de modo algum, uma classe explorada, na medida em que as novas relações de produção eram necessariamente relações de exploração, exatamente o contrário do que acontece hoje. No seu tempo os socialistas utópicos (Fourier, Saint-Simon, Owen) [14] alimentaram a ilusão de que elementos da própria burguesia poderiam tomar para si a responsabilidade da revolução. Confiavam que da própria classe dominante surgiriam filantropos esclarecidos e endinheirados que, ao se dar conta da superioridade do comunismo sobre o capitalismo, estariam dispostos a financiar projetos de comunidades ideais e que o exemplo desses "benfeitores" se espalharia como uma mancha de óleo.

Mas não são os homens que fazem a história, e sim as classes, motivo pelo qual essas esperanças terminaram imediatamente frustradas. É verdade que existiram raríssimos burgueses que simpatizaram com as ideias dos utopistas [15], porém o conjunto da classe dominante, como tal, opôs-se, quando não combateu abertamente, essas tentativas que tinham como projeto seu desaparecimento.

Portanto, ser uma classe explorada não basta, como vimos, para ser uma classe revolucionária. Existem, por exemplo, ainda hoje no mundo, especialmente nos países subdesenvolvidos, uma multidão de camponeses pobres que sofrem a espoliação de uma parte do fruto do seu trabalho, que enriquece uma parte da classe dominante muito diretamente ou através dos impostos ou dos juros que devem reembolsar aos bancos e usurários com os quais se endividam. Sobre essa miséria, frequentemente insuportável, dessas camadas camponesas, levantaram-se todas as mistificações dos terceiro-mundistas, maoístas, guevaristas... Quando esses camponeses foram empurrados a pegar em armas foi como bucha de canhão de uma ou outra fração da burguesia, que uma vez alçada ao poder tem se encarregado de intensificar ainda mais essa exploração, e frequentemente de maneira ainda mais selvagem (por exemplo, a aventura do khmer vermelho no Camboja, na metade da década de 1970). O retrocesso dessas mistificações (difundidas tanto por stalinistas e trotskistas como por "intelectuais radicais", como Marcuse) é a prova mais evidente do fiasco em que resultou a pretensa "perspectiva revolucionária" do campesinato pobre. Na realidade, os camponeses, apesar de serem explorados de múltiplas formas e poderem empreender lutas - às vezes muito violentas - para limitar sua exploração, não podem nunca colocar como objetivo das suas lutas a abolição da propriedade privada, pela simples razão de que eles mesmos são pequenos proprietários, ou por viverem junto desses, aspiram chegar a essa condição algum dia [16].

Ainda quando os camponeses se dotam de estruturas coletivas para aumentar suas rendas, através de uma melhoria da sua produtividade ou da comercialização dos seus produtos, essas tomam geralmente a forma de cooperativas, o que não questiona nem a propriedade privada, nem a troca de mercadorias [17]. Em resumo, as classes e camadas sociais que aparecem como resíduos do passado (exploradores agrícolas, artesãos, profissionais liberais...) [18] que subsistem simplesmente pelo fato de o capitalismo, ainda que domine totalmente a economia mundial, ser incapaz de transformar todos os produtores em assalariados, não podem ter nenhum projeto revolucionário. Ao contrário, a única coisa com que podem sonhar é o retorno a uma mítica "idade do ouro" do passado. Por isso, a dinâmica das suas lutas específicas é sempre reacionária.

Na realidade, ao ser a abolição da exploração substancialmente idêntica à da abolição do salário, só a classe que suporta essa forma específica de exploração, ou seja, o proletariado, está em condições de desenvolver um projeto revolucionário. Só a classe explorada no seio das relações de produção capitalistas, produto do desenvolvimento dessas relações de produção, é capaz de se munir de uma perspectiva de superação destas.

O proletariado é o produto do desenvolvimento da grande indústria, de uma socialização do processo produtivo como nunca antes conheceu a humanidade. Por isso, o proletariado não pode sonhar com nenhuma volta para trás [19]. Por exemplo, ainda que a redistribuição ou a repartição das terras possa ser uma reivindicação "realista" dos camponeses pobres, seria um absurdo que os operários que fabricam, de modo associado, produtos, compostos de peças, de matérias primas e de tecnologia provenientes do mundo inteiro se propusessem a desmontar sua empresa em partes para repartir. Inclusive as ilusões sobre a autogestão, isto é, uma propriedade comum da empresa pelos que trabalham nela (versão moderna da cooperativa operária), começam a ser coisa do passado. Depois de inúmeras experiências, inclusive recentes (como a da LIP na França no começo dos anos 1970), que geralmente acabaram em enfrentamentos entre os que trabalham e os que haviam sido nomeados gerentes, a maioria dos trabalhadores é bastante consciente de que, dada a necessidade de manter a competitividade da empresa no mercado capitalista, a autogestão equivale à autoexploração. No desenvolvimento da sua luta histórica, o proletariado só pode olhar para a frente: não para a repartição da propriedade e da produção capitalistas, mas levar até o final o processo de socialização dessas, o que o capitalismo tem feito avançar de maneira considerável mas que, por sua própria natureza, não pode pode levar a cabo, ainda que concentre a propriedade nas mãos de um Estado nacional (caso, por exemplo, dos regimes stalinistas).

Para cumprir essa missão histórica, o proletariado conta com uma grande força potencial. Em primeiro lugar, porque na sociedade capitalista avançada, o essencial da riqueza social é produzido pelo trabalho da classe operária. Mesmo sendo, ainda hoje, minoritária na população mundial. Nos países industrializados, a parte do produto nacional que pode se atribuir aos trabalhadores independentes (camponeses, artesãos...) é insignificante. E isso é válido também no caso dos países atrasados onde, por outro lado, a maioria da população vive (ou sobrevive) do trabalho da terra.

Mas, em contrapartida, também por necessidade, o capital concentrou a classe operária em unidades de produção gigantescas, que não têm nada a ver com as que existiam nos tempos de Marx. Além disso, essas unidades de produção geralmente se encontram concentradas no entorno de cidades cada vez mais populosas. Esse agrupamento da classe operária, tanto nos seus lugares de residência como de trabalho, constitui uma força incomparável quando se tira proveito disso, em particular mediante o desenvolvimento da sua luta coletiva e da sua solidariedade.

Finalmente, uma das forças essenciais do proletariado é sua capacidade de tomar consciência. Todas as classes, e especialmente as classes revolucionárias, municiaram-se de uma forma de consciência. Esta, porém, era necessariamente mistificada, ou pela inviabilidade do seu projeto (por exemplo, o caso das guerras camponesas na Alemanha), ou porque se via obrigada a mentir, a ocultar a realidade daqueles que os empurrava para a ação, mas que continuaria a explorá-los  (tal é o caso da burguesia e suas palavras de ordem de "Liberdade, Igualdade, Fraternidade"). O proletariado, por ser uma classe explorada e portadora de um projeto revolucionário que acabará com qualquer exploração, não tem de ocultar nem às outras classes, nem a si mesmo, os objetivos últimos da sua ação, de modo que poderá desenvolver ao longo do seu combate histórico uma consciência livre de mistificações. De fato, essa consciência pode se elevar a um nível muito superior ao que jamais pôde chegar a classe inimiga, a burguesia. O que constitui a força decisiva do proletariado, junto a sua organização em classe, é justamente essa capacidade de tomar consciência.

Na segunda parte deste artigo veremos como o proletariado atual conserva, apesar de todas as campanhas ideológicas que evocam seu "desaparecimento" ou sua "integração", todas as características que a fazem a classe revolucionária de nossa época.

FM

II. Hoje em dia, o Proletariado continua sendo a classe revolucionária


[1] Ver especialmente o artigo La experiencia rusa, propiedad privada y propiedad colectiva na Revista internacional nº 61 e a série de artigos El comunismo no es un bello ideal, sino una necesidad material a partir da Revista internacional nº 68.

[2] Marx e Engels colocaram em questão esta afirmação, esclarecendo que só era válida a partir da dissolução da comunidade primitiva, quando sua existência foi confirmada pelos trabalhos de etnologia da segunda metade do século XIX, como os de Morgan sobre os índios da América.

[3] Alguns "pensadores" da burguesia (como o político francês do século XIX Guizot, que foi chefe de governo sob o reinado de Luís Felipe) também legaram essa idéia.

[4] É válido também para os economistas "clássicos", tal como Smith ou Ricardo, cujo trabalho foi útil particularmente para o desenvolvimento da teoria marxista.

[5] Temos de dar a César o que é de César, e a Castoriadis o que lhe pertence: com grande perseverança, as previsões deste último foram desmentidas pelos fatos: não tinha "previsto" que de agora em diante o capitalismo havia superado suas crises econômicas? (ver particularmente seus artigos sobre "A dinâmica do capitalismo" no início dos anos 60 em Socialismo ou Barbárie). Não tinha anunciado ao mundo, em 1981 (ver seu livro Diante da guerra, do qual ainda esperamos a segunda parte anunciada para o outono de 1981), que a URSS havia triunfado definitivamente na "guerra fria"? ("desequilíbrio massivo a favor da Rússia", "situação praticamente impossível de recuperar pelos americanos").  Tais fórmulas tinham sido verdadeiramente bem vindas em uma época na qual Reagan e a CIA tentavam nos assustar a propósito do "império do mal". Tudo isso não impediu a mídia de continuar pedindo o ponto de vista do "especialista" frente a grandes acontecimentos da nossa época: apesar da sua coleção de erros, conserva a gratidão da burguesia pelas suas convicções e seus discursos infatigáveis contra o marxismo, convicções que são a origem dos seus fracassos crônicos.

[6] É verdade que, em muitos países, estas características camuflam parcialmente o pertencimento de classe. Assim em muitos países do Terceiro Mundo, sobretudo na África, a classe dominante recruta a maior parte de seus membros em uma ou outra etnia: todavia, isto não significa que todos os membros dessas etnias sejam exploradores, muito pelo contrário. Do mesmo modo nos EUA, os WASP  ("Anglo-saxões brancos protestantes") são, proporcionalmente, os mais representados na burguesia: isto não impede a existência de uma burguesia negra (Colin Powel, ex-chefe do Estado Maior do Exército, é negro), nem de uma multidão de "pequenos brancos" de lutar contra a miséria.

[7] "Soberano, (...) viemos lhe ver para pedir tua justiça e proteção (...) Ordene e Jure satisfazê-las (nossas principais necessidades) e farás a Rússia potente e gloriosa, imprimirás teu nome em nossos corações, nos corações dos nossos filhos para sempre".  Era nesses termos que foi dirigida a petição operária ao czar de todas as Rússias. É necessário esclarecer, entretanto, que esta petição também afirmava "chegamos ao limite de nossa paciência, para nós chegou o terrível momento em que a morte vale mais que afundar-se em tormentos insuportáveis (...) Se rechaças atender nossas súplicas morreremos aqui, sobre esta praça, diante do teu palácio...".

[8] Esta posse, não toma necessariamente, como vimos com o desenvolvimento do capitalismo de Estado, especialmente na sua versão stalinista, a forma de uma propriedade individual, pessoal (e transferívelcomo herança). É cada vez mais coletivamente que a classe capitalista "possui" (no sentido em que ela pode dispor, tem o benefício e controle) os meios de produção, mesmo quando estes são estatizados.

[9] A pequena burguesia não é uma classe homogênea. Existem múltiplas formas dela que não possuem, os meios materiais de produção. Assim, os atores de cinema, os escritores, os advogados, por exemplo, pertencem a esta categoria social sem que isso queira dizer que disponham de ferramentas específicas. Seus "meios de produção" residem em um saber ou em um "talento" que colocam em prática no seu trabalho.

[10] O servo não era uma simples "coisa" do senhor. Ligado a sua terra, era vendido com ela (o que é  comum com o escravo). Mas existia no princípio um "contrato" entre o servo e o senhor: este último, que possuía as armas, assegurava-lhe proteção em troca do trabalho de servo em terras senhoriais ou em troca de uma parte das suas colheitas.

[11] Ver a primeira parte da série El comunismo no es un bello ideal, sino una necesidad material, na Revista internacional nº 68.

[12] Ver nossa brochura La Decadencia Del Capitalismo.

[13] Sobre esta questão, ver a 5ª parte da série El comunismo no es un bello ideal, sino una necesidad material, na Revista internacional nº 72, que mostra como a crise de superprodução expressa a quebra do capitalismo.

[14] Ver em El comunismo no es un bello ideal..., 1ª parte, na Revista internacional nº 68.

[15] Owen foi inicialmente um grande industrial têxtil e tentou em numerosas ocasiões, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, criar comunidades que se bateram contra as leis capitalistas. Contribuiu, no entanto, para o surgimento das Trade Unions, os sindicatos britânicos. Se fosse possível medir, a sorte das iniciativas dos utopistas franceses foi ainda pior. Durante anos, Fourier esperou em vão, dia após dia, em seu escritório, que se apresentasse o mecenas que financiasse sua cidade ideal. As tentativas dos seus discípulos, sobretudo nos Estados Unidos, de construção de "falanstérios", acabaram em desastrosas quebras econômicas. Por outro lado, se as doutrinas de Saint-Simon tiveram algum êxito maior, foi porque constituíram o credo de uma série de homens da burguesia, tais como os irmãos Pereire, fundadores de um banco, ou Ferdinand de Lesseps, o construtor do canal de Suez.

[16] Existe um proletariado agrícola, cujo único meio de subsistência consiste em vender, em troca de um salário, sua força de trabalho aos proprietários de terras. Esta parte do campesinato pertence à classe operária e constituirá, no momento da revolução, o destacamento avançado do proletariado no campo. No entanto, ao viver sua exploração como conseqüência de uma "desgraça" que lhe priva de herdar uma parte de terra ou que lhe atribuiu uma parcela pequena demais, o proletariado agrícola, que muito frequentemente é temporário ou empregado  numa exploração familiar, tende muitas vezes a alimentar o sonho de ascender a uma propriedade ou de uma melhor divisão das terras. Só a luta, em um estágio avançado do proletariado urbano, permitir-lhe-á desfazer-se de tais fantasias, propondo como alternativa a socialização da terra, de maneira idêntica ao resto dos meios de produção.

[17] O que não é um impedimento para que, no curso do período de transição do capitalismo ao comunismo, o reagrupamento de pequenos proprietários agrícolas em cooperativas possa constituir uma etapa para a socialização da terra, sobretudo, porque isso lhes permitirá superar o individualismo característico do seu âmbito de trabalho.

[18] O que temos dito dos camponeses é mais válido ainda para os artesãos, cujo papel na sociedade tem se reduzido cada vez mais drasticamente. Quanto às profissões liberais (medicina privada, advocacia...), seu status social e sua remuneração (que a burguesia inveja em muitos casos) não os incita de maneira alguma a questionar a ordem existente. Com relação aos estudantes, que por definição ainda não têm nenhum lugar na economia, seu destino é o de dividir-se entre as diferentes classes sociais das quais eles vêm por suas origens familiares, ou às quais acabam integrando-se.

[19] No despertar do desenvolvimento da classe operária, certos setores desta, despedidos pela introdução de maquinaria, dirigirão sua revolta para a destruição dessas máquinas. Esta tentativa de voltar no tempo foi, entretanto, uma forma embrionária de luta, que desapareceu com o desenvolvimento econômico e político do proletariado.

Hoje em dia, o Proletariado continua sendo a classe revolucionária

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Na primeira parte desse artigo desenvolvemos as razões pelas quais o proletariado é a classe revolucionária na sociedade capitalista. Vimos por que é a única força capaz, ao instaurar uma nova sociedade libertada da exploração e com a capacidade de satisfazer plenamente as necessidades humanas, de resolver as contradições insolúveis que estão corroendo as entranhas do mundo atual. Esta capacidade do proletariado, já colocada em evidência desde o século XIX, especialmente pela teoria marxista, não é um simples resultado do grau de miséria e opressão que sofre cotidianamente. Muito menos, ao contrário do que alguns ideólogos burgueses pretendem que o marxismo diz, baseia-se sobre qualquer "inspiração divina" que faria do proletariado o "Messias dos tempos modernos". Essa capacidade se baseia em condições muito concretas e materiais: o lugar específico que a classe operária ocupa nas relações de produção capitalistas, sua posição de produtor coletivo do essencial da riqueza social e de classe explorada por essas mesmas relações de produção. Esse lugar ocupado no capitalismo não permite à classe operária, contrariamente a outras classes e camadas exploradas que subsistem na sociedade (como, por exemplo, o pequeno camponês), aspirar retornar ao passado. Ela é obrigada a olhar para o futuro, para a abolição do salário e a edificação da sociedade comunista.

Todos esses elementos não são novos. Fazem parte do patrimônio clássico do marxismo. No entanto, um dos meios mais traiçoeiros com os quais a ideologia burguesa tenta desviar o proletariado do seu projeto comunista é convencê-lo que estaria em vias de extinção, ou mesmo que já desapareceu. A perspectiva revolucionária fazia sentido quando os operários industriais eram a imensa maioria dos assalariados, porém com a atual redução dessa categoria, tal perspectiva tornou-se ultrapassada. Há de se reconhecer que semelhante discurso não afeta somente os operários menos conscientes, mas também alguns grupos que se reivindicam do comunismo. Razão maior para lutar com firmeza contra tais bobagens.

O pretendido desaparecimento da classe operária

As "teorias" burguesas sobre o "desaparecimento do proletariado" já vem de longe. Durante algumas décadas, elas se baseavam no fato de que o nível de vida dos operários conhecia certas melhorias. A possibilidade para estes adquirirem bens de consumo, antes reservados à burguesia ou pequena burguesia, significaria o desaparecimento da condição operária. Mesmo naqueles anos, essas "teorias" não se sustentavam: quando o automóvel, o televisor ou a geladeira, graças ao incremento da produtividade do trabalho humano, se tornaram mercadorias relativamente baratas, e além do mais, se fizeram indispensáveis devido ao contexto de vida dos operários [i], o fato de possuir esses artigos não significava, absolutamente, livrar-se da condição operária, nem sequer ser menos explorado. Na realidade, o grau de exploração da classe operária nunca esteve determinado pela quantidade ou natureza dos bens de consumo que pode dispor em um determinado momento. Já faz tempo, Marx e o marxismo deram uma resposta a essa questão: em linhas gerais, o poder de consumo dos assalariados corresponde ao preço da sua força de trabalho, ou seja, à quantidade de bens necessários para a reposição da referida força de trabalho. O que o capitalista busca quando paga um salário ao operário é que este continue participando no processo produtivo e nas melhores condições de rentabilidade para o capital. Isso supõe que o trabalhador consiga não só se alimentar, se vestir-se e se alojar, como também descansar e adquirir a qualificação necessária para fazer funcionar os meios de produção em constante evolução.

A instauração do descanso remunerado e seu incremento em dias que foram instituídos ao longo do século XX nos países desenvolvidos não se devem, tampouco, a não se sabe que "filantropia" da burguesia. Tornaram-se necessários pelo impressionante aumento da produtividade do trabalho e, portanto, dos ritmos de tal trabalho e da vida urbana em seu conjunto, característico de nossos tempos. Do mesmo modo, o desaparecimento (relativo) do trabalho infantil e da ampliação da escolaridade, que é apresentada como outra manifestação do quanto a classe dominante é bondosa, se devem, essencialmente, à necessidade para o capital de dispor de uma mão de obra adaptada às exigências de uma produção de tecnologia cada vez mais complexa (embora, atualmente, isso também tem se convertido em uma camuflagem do desemprego). Além disso, no "aumento" do salário do qual tanto alardeia a burguesia, especialmente desde a Segunda Guerra Mundial, temos que levar em conta que os operários devem manter os seus filhos por um período maior que no passado. Quando as crianças iam trabalhar aos doze anos ou menos, aportava durante alguns anos uma renda extra para a família operária antes de constituir um novo lar. Com uma escolaridade até os 18 anos, esse apoio desapareceu praticamente. Dito em outras palavras, os "aumentos" salariais também foram, em grande parte, um dos meios mediante os quais o capitalismo preparou a camuflagem da força de trabalho para as novas condições da tecnologia.

Durante certo tempo o capitalismo dos países desenvolvidos produziu a ilusão de ter reduzido os níveis de exploração dos seus assalariados. Na realidade, a taxa de exploração, ou seja, a relação entre a mais-valia produzida pelo operário e o salário que recebe [ii], tem se incrementado continuamente. Isso é o que Marx chamava pauperização "relativa" da classe operária como tendência permanente no capitalismo. Durante os anos que a burguesia de alguns países europeus batizou de "Trinta Gloriosos", a exploração do operário se incrementou continuamente, por mais que isso não se tenha concretizado em uma queda do nível de vida. Mas, hoje, não se trata mais de uma pauperização relativa. Os aumentos salariais já não são possíveis hoje em dia, e a pauperização absoluta, cujo desaparecimento definitivo fora anunciado por todos os apologistas da burguesia, está ressurgindo bruscamente nos países mais "ricos". Agora que a política de todos os setores nacionais da burguesia diante da crise é a de desferir golpes e mais golpes no nível de vida dos proletários, com o desemprego, a redução drástica das prestações "sociais" e inclusive o rebaixamento do salário nominal, todas aquelas estúpidas análises sociológicas sobre a "sociedade de consumo" e o "aburguesamento" da classe operária têm se desmentido por si mesmo. Por isso,  agora o discurso sobre a "extinção do proletariado" tem mudado de argumento e, cada vez mais, se apóia, sobretudo, nas modificações que têm afetado as diferentes partes da classe operária e, especialmente, a redução dos efetivos industriais, da proporção de operários "manuais" na massa total dos trabalhadores assalariados.

Semelhantes discursos se baseiam em uma falsificação grosseira do marxismo. O marxismo nunca limitou o proletariado ao proletariado industrial ou "manual". É certo que nos tempos de Marx a maioria da classe operária estava formada por operários chamados "manuais". Mas em todas as épocas existiram no proletariado setores que trabalhavam com uma tecnologia sofisticada ou que exigiam importantes conhecimentos intelectuais. Alguns ofícios tradicionais, praticados por alguns ramos profissionais, exigiam uma maior aprendizagem. Da mesma forma, ofícios, como os dos revisores de imprensa, exigiam uma preparação grande que se assemelhavam aos "trabalhadores intelectuais". E isso não impediu, em nada, que esses trabalhadores se encontrassem muito frequentemente na vanguarda das lutas operárias. De fato, essa oposição entre trabalhadores de "colarinho azul" e de "colarinho branco" é um desses recortes que agradam os sociólogos e os burgueses, que os empregam para causar divisões nas fileiras dos trabalhadores. Essa oposição não é nova, pois a classe dominante compreendeu há bastante tempo que podia enganar a muitos empregados que não pertenciam a classe operária. Na realidade, o pertencimento ou não à classe operária não depende de critérios sociológicos e, muito menos ainda, ideológicos, ou seja, da idéia de que um proletário, ou um grupo de proletários, tem de sua própria condição. São fundamentalmente critérios econômicos os que determinam tal pertencimento.

Os critérios de pertencimento à classe operária

Fundamentalmente, o proletariado é a classe explorada específica das relações de produção capitalista. Infere-se disso, como já vimos na primeira parte deste artigo, os seguintes critérios: Em linhas gerais, "o fato de estar privado de meios de produção e de estar obrigado, para viver, a vender sua força de trabalho aos que os detenham e os utilizam em seu proveito para apropriar-se de uma mais-valia, determina o pertencimento à classe operária". Mas, diante de todas as falsificações que, de forma interessada, têm se infiltrado nessa questão, é necessário tornar esses critérios mais precisos.

Em primeiro lugar, cabe dizer que, se o fato de ser assalariado é condição necessária para pertencer à classe operária, não é suficiente. Do contrário os policiais, os padres, alguns diretores gerais de grandes empresas (especialmente das públicas) e até os ministros seriam gente explorada e, potencialmente, companheiros de luta daqueles que reprimem, embrutecem e fazem trabalhar e que recebem salários dez ou cem vezes mais baixos [iii]. Por isso, é indispensável destacar que uma das características do proletariado é a de produzir mais-valia. E isto significa duas coisas:

  • o salário de um proletário nunca supera determinado nível [iv]; acima disso, uma remuneração só pode ser derivada de mais-valia extraída de outros trabalhadores;
  • um proletário é um produtor real de mais-valia e não um agente assalariado do capital cuja função é fazer reinar a ordem capitalista entre os produtores.

Entre o pessoal de uma empresa, por exemplo, certos executivos técnicos (e inclusive engenheiros) cujo salário não supera muito o de um operário qualificado, pertencem à mesma classe que este, enquanto aqueles cuja remuneração se aproxima muito mais à do patrão (embora não tenha uma função de enquadramento da mão de obra), não fazem parte da classe operária. De igual maneira, em alguma empresa, um ou outro "chefe de limpeza" ou "agente de segurança", cuja remuneração é na maioria  dos casos mais baixa que a de um técnico e inclusive a de um operário qualificado, mas cuja função é a de um "chefe" de presídio industrial, não poderá ser considerado como pertencente ao proletariado.

Por outro lado, fazer parte da classe operária não implica necessariamente participar direta e imediatamente na produção de mais-valia. O professor que educa o futuro proletário, a enfermeira, e inclusive o médico assalariado (cujo salário é muitas vezes menor que a de um operário qualificado), que "recupera" a força de trabalho dos operários (mesmo que cure policiais, padres, dirigentes sindicais ou até ministros) pertencem sem dúvida nenhuma à classe operária assim como o cozinheiro de um refeitório de empresa. É óbvio que isso não quer dizer que seja assim também com um cacique da universidade ou da enfermeira que se estabelece por sua própria conta. É necessário esclarecer ainda que o fato de os professores, mesmo os do fundamental (cuja situação econômica, em geral, não é das mais confortáveis), seja consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, um dos transmissores dos valores ideológicos da burguesia, não os exclui da classe explorada e revolucionária como também, por exemplo, os operários metalúrgicos que fabricam as armas [v]. Além disso, podemos constatar que, ao longo de toda a história do movimento operário, os professores (especialmente os do fundamental) sempre proporcionaram grande quantidade de militantes revolucionários. Do mesmo modo, os operários dos arsenais de Kronstadt faziam parte da vanguarda da classe operária durante a revolução de outubro de 1917.

É necessário reafirmar também que a grande maioria dos funcionários públicos também pertence à classe operária. Se tomarmos o exemplo de uma empresa estatal como os Correios, não se poderia dizer que os mecânicos que fazem a manutenção dos caminhões postais ou quem os dirige, bem como os que transportam os malotes de correios, não pertençam ao proletariado. Não é difícil compreender, a partir daqui, que seus companheiros que distribuem o correio ou atendam no guichê, estejam na mesma situação. Do mesmo modo, os empregados do banco, os agentes das companhias de seguros, os funcionários subalternos da previdência social ou dos tributos, cuja situação ou condição são equivalentes aos daqueles, também pertencem à classe operária. Não se pode arguir que esses teriam melhores condições de trabalho que os operários da indústria, por exemplo, de um ajustador ou um fresador. Trabalhar um dia inteiro atrás de um guichê ou diante de uma tela de computador não é menos penoso, porque ficam com as mãos mais limpas, que operar uma máquina-ferramenta. Além disso, o caráter associado do seu trabalho, que é um dos fatores objetivos da capacidade do proletariado tanto para levar a cabo sua luta de classe como a de derrubar o capitalismo, não é, de modo algum, colocado em dúvida pelas condições modernas da produção, muito pelo contrário.

E também, com a elevação do nível tecnológico da produção, esta última passa a exigir uma quantidade crescente do que a sociologia e as estatísticas chamam de "quadros" (técnicos e inclusive engenheiros), de maneira que a maioria deles comprovam, como dissemos antes, que sua condição social, quando não seus salários, se aproximam ao dos operários qualificados. Neste caso, não se trata, de modo algum, de um fenômeno de desaparecimento da classe operária a favor das "camadas médias", mas sim de um fenômeno de proletarização dessas [vi]. Por isso, os discursos sobre o "desaparecimento do proletariado" em virtude do constante crescimento de trabalhadores de "colarinho branco" ou de técnicos em relação aos operários "manuais" da indústria não tem outro objetivo senão o de enganar e desmoralizar a ambos. É irrelevante o fato de que os autores desses discursos acreditarem neles ou não: sempre servirão eficazmente à burguesia, mesmo que eles continuem sendo tão estúpidos a ponto de não ser capaz de se perguntarem quem fabricou a caneta (ou o processador de texto) com a qual estão escrevendo suas sandices.

A suposta crise da classe operária

Para desmoralizar os operários, a burguesia não joga uma única cartada. Para os que não acreditam no "desaparecimento da classe operária", ela reserva a ideia de que "a classe operária está em crise". Um dos argumentos definitivos dessa crise seria o declínio da filiação sindical e sua influência nas últimas décadas. Não vamos desenvolver neste artigo nossa análise sobre a natureza burguesa do sindicalismo em todas as suas formas. De fato, é a própria experiência cotidiana da classe operária, da sabotagem sistemática e permanente das suas lutas por parte de organizações que pretendem defendê-la, a que se encarrega, diariamente, de demonstrar isto [vii]. É justamente essa experiência dos operários a primeira responsável por esse rechaço. E por isso mesmo tal rechaço não é nada menos que uma "prova" de uma suposta crise da classe operária, mas, ao contrário e, sobretudo, uma demonstração de um desenvolvimento da consciência de classe. Um exemplo, entre milhares, do que afirmamos é a atitude dos operários nos grandes movimentos ocorridos em um mesmo país, França, em um intervalo de 32 anos. Ao final das greves de maio-junho de 1936, em plena época da contrarrevolução que se seguiu à onda revolucionária da primeira pós-guerra mundial, os sindicatos se beneficiaram de um aumento de filiados sem precedentes. Por outro lado, no final da greve geral de maio de 1968, que foi o marco da retomada histórica dos combates de classe e do final do período contrarrevolucionário, o que se viu foi a quantidade de desfiliações dos sindicatos e a montanha de carteiras sindicais rasgadas.

O argumento da desfiliação como prova das dificuldades que teria o proletariado é um dos indícios mais seguros de que quem utiliza semelhante argumento pertence ao campo burguês. Tal argumento é parecido ao da suposta natureza "socialista" dos regimes stalinistas. A história demonstrou, sobretudo após a Segunda guerra Mundial, a amplitude dos estragos nas consciências operárias dessa mentira propalada por todos os setores da burguesia, de direita, de esquerda e de extrema-esquerda (stalinistas e trotskistas). Nesses últimos anos, podemos comprovar de que modo o colapso do stalinismo tem sido utilizado como "prova" da falência definitiva de qualquer perspectiva comunista. A maneira de utilizar a mentira da "natureza operária dos sindicatos" é, em parte, idêntica: em um primeiro momento, serve para alistar os operários atrás do Estado capitalista; em um segundo momento, faz deles um instrumento para desmoralizá-los e desorientá-los. Existe, ainda, uma diferença de impacto entre essas duas mentiras. Por não ter sido o resultado das lutas operárias, o desmoronamento dos regimes stalinistas foi possível ser utilizado com eficácia contra o proletariado; por outro lado, o desprestígio dos sindicatos é essencialmente resultado dessas mesmas lutas operárias, o que limita seu impacto como fator de desmoralização. Além disso, é por essa razão que a burguesia tem dado origem ao sindicalismo "de base", encarregado de tomar o terreno do sindicalismo tradicional. E também por essa razão tem promovido ideólogos de ares mais "radicais", encarregados de propagar o mesmo tipo de mensagem.

E é assim que vemos florescer, promovidos pela imprensa [viii], análises como a do francês Sr. Alain Bihr, doutor em sociologia e autor, entre outras produções, de um livro intitulado Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu em crise. Em si, a tese deste personagem tem muito pouca importância. Entretanto, o fato de que este esteja presente desde algum tempo pelos ambientes que se reivindicam da esquerda comunista, dentre os quais alguns não têm o menor reparo em tomar por conta própria (de maneira "crítica", isso sim) as "análises" daquele [ix], nos leva a colocar em relevo o perigo que tais análises representam.

O Senhor Bihr se apresenta como um genuíno defensor dos interesses operários. Daí não poder supor que a classe operária estaria em vias de desaparecimento. Começa afirmando, ao contrário, que: "... as fronteiras do proletariado se estendem hoje em dia muito mais longe que o tradicional "mundo operário"". Todavia, isto serve para fazer passar a mensagem central: "Mas, ao largo de quinze anos de crise, na França como na maioria dos países ocidentais, assiste-se a uma fragmentação crescente do proletariado, que, ao colocar em dúvida sua unidade, tende a paralisá-lo como força social" [x].

A intenção principal do doutor em sociologia é, assim, demonstrar que o proletariado "está em crise" e que o responsável por essa situação é a própria crise do capitalismo, causa que há de se acrescentar, evidentemente, as modificações sociológicas que afetou a composição da classe operária: "De fato, as transformações da relação salarial em curso, com seus efeitos globais de fragmentação e de "desmassificação" do proletariado, , (...) tendem a dissolver as duas figuras proletárias que forneceram seus grandes batalhões durante o período fordista de um lado, a do operário qualificado, que as transformações atuais modificaram profundamente, tendendo a extinguir as antigas categorias do operário qualificado ligadas ao fordismo, enquanto novas categorias de "qualificados" surgem ligadas aos novos processos de trabalho automatizados: de outro, a do operário especializado, ponta de lança da ofensiva proletária das décadas de 60 e 70, sendo os operários especializados progressivamente eliminados e substituídos por trabalhadores instáveis dentro desses mesmos processos de trabalho automatizados". [xi]

Deixando de fora essa linguagem pedante (que tanto enche de gozo os pequenos burgueses que se colocam enquanto "marxistas"), Bihr nos traz os mesmos tópicos com os quais nos castigaram gerações de sociólogos: a automatização da produção seria responsável pelo debilitamento do proletariado (como se pretende marxista, não diz "desaparecimento"), etc. E ele acerta o passo com aqueles quando pretende que a dessindicalização também seria um sinal da "crise da classe operária" visto que "todos os estudos efetuados sobre o desenvolvimento do desemprego e da precariedade mostram que estes tendem a reativar e reforçar as antigas divisões e desigualdades no proletariado (...). Esta fragmentação em condições tão heterogêneas tem produzido efeitos desastrosos nas condições de organização e de luta. É testemunho disso, o fracasso das diferentes tentativas do movimento sindical em organizar os precários e desempregados..." [xii]. Assim, por trás das suas frases mais radicais, atrás do seu suposto "marxismo", Bihr quer nos vender o mesmo azeite adulterado que todos os setores da burguesia vendem: os sindicatos seriam ainda hoje "organizações do movimento operário" [xiii].

Assim é o "especialista" no qual se inspira gente como GS ou publicações como Perspective Internacionaliste (PI), que acolhe com simpatia seus escritos. Certo é que Bihr, que não é estúpido, para contrabandear sua mercadoria, tem cuidado em dizer que o proletariado será capaz de superar, apesar de tudo, suas dificuldades atuais e conseguirá se "recompor". Mas a maneira como diz isso tenderia melhor a convencer do contrário: "As transformações da relação salarial lançam, assim, um duplo desafio ao movimento operário; elas o obrigam simultaneamente a se adaptar a uma nova base social (a uma nova composição "técnica" e "política" da classe) e a fazer  síntese entre categorias a priori tão heterogêneas como as dos "novos qualificados" e dos instáveis, síntese muito mais difícil de se realizar do que aquela entre operários especializados e operários qualificados, durante o período fordista (...) Enfim, o enfraquecimento efetivo do proletariado, devido à sua fragmentação, provoca entre o conjunto dos proletários, um enfraquecimento do sentimento de pertencer a uma classe, e assim pode abrir caminho para a recomposição de uma identidade coletiva imaginária em outras bases" [xiv]

É assim que, com toneladas de argumentos, a maioria deles especiosos, destinados a convencer o leitor de que tudo anda mal para a classe operária, após haver "demonstrado" que as causas dessa "crise" devem ser buscadas na automatização do trabalho e no afundamento da economia capitalista e na queda do desemprego, fenômenos todos eles que continuarão se agravando, se acaba afirmando de modo lapidar e sem argumento algum que "Tudo irá melhor... talvez!. Porém é um caminho muito difícil de encarar". Se depois de ter engolido as historinhas de Bihr alguém continua pensando que o proletariado e sua luta de classe têm futuro é porque é um otimista crédulo e incorrigível. O doutor Bihr pode estar contente: com suas redes grosseiras capturou os tolos que publicam PI e que se apresentam como os autênticos defensores dos princípios comunistas que a CCI teria jogado na sarjeta.

É certo que a classe operária teve de enfrentar, nos últimos anos, uma série de dificuldades para desenvolver suas lutas e sua consciência. Nós, por nossa vez, nunca vacilamos em assinalar essas dificuldades, contrariamente às acusações dos céticos do momento (ou seja, a FECCI, que é coerente com a sua função de semeadores de confusão, mas também Battaglia Comunista, o que é menos lógico porque Battaglia pertence ao meio político do proletariado). Mas quando assinalamos essas dificuldades e baseamos em uma análise da origem delas, também temos colocado em relevo as condições que permitirão sua superação. É o mínimo que se espera dos revolucionários. Basta examinar com um pouco de seriedade a evolução das lutas operárias durante a última década para se dar conta que sua atual debilidade não se deve de modo algum à diminuição dos números de operários "tradicionais", dos de "colarinhos azuis". Na maioria dos países, os trabalhadores dos correios e telecomunicações aparecem entre os mais combativos. E o mesmo ocorre com os trabalhadores da saúde. Em 1987, na Itália, foram os trabalhadores das escolas que levaram a cabo as lutas mais importantes. Poderíamos multiplicar os exemplos que ilustram que não só o proletariado não se limita aos de "colarinhos azuis", aos operários "tradicionais" da indústria, como tampouco a combatividade operária. Nossas análises não estão enfocadas por considerações sociológicas, boas para professores de universidade ou pequeno burgueses com dificuldades para interpretar não só o "mal estar" da classe operária, como também o seu próprio.

As dificuldades reais da classe operária e as condições para superação

Não podemos voltar aqui, no marco deste artigo, sobre as análises da situação internacional que fizemos nos últimos anos. O leitor poderá buscar praticamente todos os números da nossa Revista Internacional durante todo esse período e especialmente nas teses e resoluções adotadas por nossa organização desde 1989 [xv]. A CCI se deu conta perfeitamente das dificuldades pelas quais atravessa o proletariado hoje, o retrocesso da sua combatividade e da consciência no seu seio, dificuldades nas quais alguns se apóiam para diagnosticar uma "crise" da classe operária. Colocamos em evidência, especialmente, que, durante os anos 80, a classe operária se viu confrontada com o peso crescente da decomposição generalizada da sociedade capitalista, que, ao favorecer a desesperança, o sentimento de "cada um por si", a atomização, desferiu fortes golpes na perspectiva geral da luta proletária e solidariedade de classe. Isso facilitou muito especialmente as manobras sindicais para aprisionar as lutas operárias no corporativismo. Mas o peso permanente da decomposição não conseguiu até 1989 acabar com a onda de combates operários que havia iniciado em 1983 com as greves do setor público na Bélgica. Tudo isso foi uma expressão da vitalidade da luta de classe. Durante todo esse período podemos presenciar um crescente ultrapassagem dos sindicatos, os quais tiveram que ceder, cada vez mais com mais freqüência, o espaço a um sindicalismo de "base", mais radical para o trabalho de sabotagem das lutas [xvi].

Aquela onda de lutas proletárias acabaria sendo enterrada pelos transtornos planetários que vinham acontecendo desde a segunda metade de 1989. O colapso dos regimes stalinistas da Europa em 1989 foi, até hoje, a expressão mais importante da decomposição do sistema capitalista. Embora alguns, em geral os mesmos que não tinham visto nenhuma luta operária em meados dos anos 80, estimavam que esse acontecimento ia favorecer a tomada de consciência da classe operária, nós não esperamos para anunciar o contrário [xvii]. Mais tarde, especialmente em 1990/91, durante a crise e a Guerra do Golfo, e depois, com o golpe de Moscou e o desmoronamento da URSS, colocamos em relevo que esses acontecimentos também iam repercutir na luta de classe e na capacidade do proletariado para fazer frente aos ataques cada dia mais fortes que o capitalismo em crise dirige contra ele.

Por isso, as dificuldades atravessadas pela classe durante o último período não escapou, nem surpreendeu, a nossa organização. No entanto, mediante a análise das verdadeiras causas (que nada tem a ver com a necessidade mítica de "recomposição da classe operária") pudemos também destacar as razões pelas quais a classe operária possui hoje os meios para superar essas dificuldades.

É importante, a esse respeito reconsiderar um dos argumentos de Bihr que lhe é útil para dar crédito à idéia da crise da classe operária: a crise e o desemprego tem "fragmentado o proletariado", "ao ter fortalecido as antigas divisões e desigualdades" no seu seio. Para exemplificar sua tese, Bihr não hesita em carregar as cores confeccionando um catálogo de todos esses "fragmentos": "os trabalhadores estáveis e com garantias", "os excluídos do trabalho e até do mercado de trabalho", "a massa flutuante de trabalhadores precários". E nesta última categoria, o doutor Bihr divide e subdivide com fluidez: "os trabalhadores de empresas que trabalham em subcontratação", "os trabalhadores a tempo parcial", "os estagiários" e "os da economia subterrânea" [xviii]. De fato, o que o doutor Bihr nos dá como argumento não é mais que uma constatação fotográfica, a qual corresponde perfeitamente a sua visão reformista [xix]. É certo que, num primeiro momento, a burguesia tem desferido seus ataques contra a classe operária de modo seletivo para, desse modo, limitar a amplitude das suas reações. Também é certo que o desemprego, especialmente o dos jovens, tem sido um fator de chantagem sobre determinados setores do proletariado e, por isso, tem se reforçado a passividade, acentuando a ação deletéria do ambiente de decomposição social e de "cada um por si". Mas, a crise mesma e seu agravamento inexorável se encarregarão cada vez mais em nivelar por baixo a condição dos diferentes setores da classe operária. Especialmente os setores de "ponta" (informática, telecomunicações, etc.) que pareciam ter evitado a crise, hoje estão sendo atingidos em cheio por ela colocando seus trabalhadores na mesma situação que os da siderurgia e da indústria automobilística. E agora são as maiores empresas, como a IBM, as que demitem em massa. Ao mesmo tempo, e contrariamente à tendência da década passada, o desemprego de todos os trabalhadores de idade mais madura, os que têm vivido uma experiência de trabalho coletivo e de luta, aumenta hoje com maior rapidez que o de jovens, o que tende a limitar o fator de atomização que o desemprego tinha representado no passado.

Embora a decomposição seja uma desvantagem para o desenvolvimento das lutas e da consciência da classe, a quebra cada vez mais evidente e brutal da economia capitalista, com sua série de ataques que se fazem sentir nas condições de existência do proletariado, é um fator determinante da situação atual para a retomada das lutas e da tomada de consciência. Porém isso não pode ser compreendido se pensarmos, tal como afirma a ideologia reformista que se nega a ver a menor perspectiva revolucionária, que a crise capitalista provoca uma "crise da classe operária". Uma vez mais, os fatos têm se encarregado por si mesmos de destacar a validade do marxismo e a vacuidade das elucubrações dos sociólogos. As lutas do proletariado na Itália, no outono de 1992, diante de alguns ataques econômicos de uma violência sem precedentes, voltou a demonstrar, uma vez mais, que o proletariado não morreu, que não tinha desaparecido, que não renunciou à luta mesmo que, e era de se esperar, ainda não tivesse digerido os golpes recebidos nos anos anteriores. Essas lutas não são fogo de palha. Não fazem mais que anunciar (como ocorreu com as lutas operárias de maio de 1968 na França, que agora faz 25 anos), um renascimento geral da combatividade operária, uma retomada da marcha para frente do proletariado rumo à tomada de consciência das condições e dos fins do seu combate histórico pela abolição do capitalismo. E isso, agrade ou não a todos os que se lamentam, sincera ou hipocritamente, da "crise da classe operária" e da sua "necessária recomposição".

FM (fevereiro 2006)


[i] O automóvel é indispensável para ir ao trabalho e fazer compras quando são insuficientes os transportes públicos e quando as distâncias a serem percorridas não fazem senão aumentar. Uma geladeira torna-se vital, quando o único meio de adquirir alimentos a um preço acessível é comprando em um supermercado e isso não pode ser feito todos os dias. Quanto à televisão, apresentada nos seus tempos como símbolo máximo do acesso da "sociedade de consumo", além do interesse que representa como instrumento de propaganda e de embrutecimento nas mãos da burguesia (como "ópio do povo" tem substituído com muita vantagem a religião), pode ser encontrada hoje em muitas moradias nas vilas miseráveis do Terceiro Mundo, fato que diz o quanto esse produto está desvalorizado.

[ii] Marx chamava taxa de mais-valia ou de exploração a relação "pl/v", onde "pl" representa a mais-valia em valor-trabalho (a quantidade de horas da jornada de trabalho que o capitalista se própria) e "v" o capital variável, ou seja, o salário (a quantidade de horas durante a qual o operário produz o equivalente em valor ao que recebe). É um índice que permite determinar em termos econômicos objetivos, e não subjetivos, a intensidade real  da exploração.

[iii] Evidentemente, esta afirmação desmente todas essas mentiras que nos contam todos os "defensores da classe operária" como os social-democratas ou os stalinistas, que tem uma longa experiência em reprimir e enganar os operários como dos gabinetes ministeriais. Quando um operário "vindo de baixo" ascende a um cargo de direção sindical, de conselheiro ou prefeito e até de deputado ou ministro, nada tem a ver com a sua classe de origem.

[iv] Evidentemente, é muito difícil determinar esse nível, pois pode variar no tempo e de um país para outro. O que importa é saber que em cada país ou conjunto de países semelhantes desde o ponto de vista do desenvolvimento econômico e da produtividade do trabalho, existe tal limite, que se situa entre o salário do operário qualificado e o do quadro superior.

[v] Para uma análise mais desenvolvida sobre trabalho produtivo e improdutivo, veja nossa brochura La decadencia del capitalismo.

[vi] Embora seja necessário assinalar ao mesmo tempo que determinada proporção de "quadros" veem um aumento da sua renda que os integra na classe dominante.

[vii] Para uma análise detalhada da natureza burguesa dos sindicatos, veja nossa brochura Os sindicatos contra a classe operária.

[viii] Por exemplo, Le Monde diplomatique, mensal francês humanista publicado também em outros idiomas, especializado na promoção de um capitalismo "de rosto humano",  publica frequentemente artigos de Alain Bihr. No seu número de março de 1991, pode-se encontrar, por exemplo, um texto desse autor intitulado Régression des droits sociaux, affaiblissement des syndicats, Le prolétariat dans tous ses éclats [Redução dos direitos sociais, enfraquecimento dos sindicatos, o proletariado em todos seus fragmentos].

[ix] Por exemplo, no nº 22 de Perspective Internationaliste, órgão da chamada "Fração Externa da CCI",  pode ser lida uma contribuição de GS (que não é membro da FECCI, mas que parece estar em acordo com ela em todos os pontos essenciais) intitulada A necessária recomposição do proletariado, que cita  reiteiradamente o livro de Bihr para reforçar suas afirmações.

[x] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.

[xi] Alain Bihr - Da grande noite à alternativa, Cap. 4ª : ruptura do compromisso fordista , pg.100.

[xii] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.

[xiii] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.

[xiv] Alain Bihr - Da grande noite à alternativa, Cap. 5ª : A fragmentação do proletariado, pg.104.

[xv] Ver Revista internacional nº60, 63, 67, 70 e este número.

[xvi] Evidentemente, quando considera-se, como Bihr, que os sindicatos são órgãos da classe operária e não da burguesia, os progressos logrados pela luta de classes se convertem em retrocessos. E, entretanto, curioso que pessoas como os membros da FECCI, que oficialmente reconhecem a natureza burguesa dos sindicatos, prossigam nessa apreciação.

[xvii] Ver o artigo Dificultades en aumento para el proletariado na Revista internacional nº 60.

[xviii] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.

[xix] Uma das frases preferidas de A. Bihr é que "o reformismo é algo muito sério para deixá-lo em mãos de reformistas". Se, por casualidade, ele acredita ser um revolucionário, queremos aqui desenganá-lo.


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