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ICConline - 2009

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Que método científico deve usar-se para compreender a ordem social existente, as condições e meios de sua superação? (I)

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Na primeira parte desta série (A Revolução tem sido necessária e possível há um século)[1], consideramos a sucessão de acontecimentos: guerras mundiais, revoluções e crise econômicas globais, que marcaram a entrada do capitalismo em sua época de declínio no inicio do século XX, e que expuseram ao gênero humano a alternativa: ou a implantação de um modo de produção superior, ou a barbárie. Só uma teoria que abrange o conjunto do movimento da história pode servir para compreender as origens e as causas da crise que confronta a civilização humana. Mas as teorias gerais da história já não estão em voga entre os historiadores oficiais que, cada vez mais desnorteados à medida que evolui a decadência do capitalismo, são incapazes de oferecer uma visão global, uma explicação convincente das origens da espiral de catástrofes que marcou este período. As grandes visões históricas se descartam freqüentemente como um assunto dos filósofos alemães idealistas do século XIX como Hegel, ou dos exageradamente otimistas liberais ingleses que, na mesma época, desenvolveram a idéia da História como um contínuo progresso desde a escuridão e a tirania até a maravilhosa liberdade que, segundo eles, desfrutavam os cidadãos do Estado constitucional moderno (o que se convencionou denominar teoria "Whig" da história).

Mas esta incapacidade para considerar o movimento histórico globalmente é característica de uma classe que já não impulsiona o progresso histórico e cujo sistema social não pode oferecer nenhum futuro à humanidade. A burguesia podia olhar o passado e também para o futuro em escala ampliada quando estava convencida de que seu modo de produção representava um avanço fundamental para a humanidade, em comparação com as formas sociais anteriores, e quando podia olhar o futuro com a confiança crescente de uma classe ascendente. Os horrores da primeira metade do século XX infligiram um golpe mortal a essa confiança. Nomes de lugares simbólicos, como o Somme e Passchendale, onde centenas de milhares de jovens alistados no serviço militar foram sacrificadas na carnificina da Primeira guerra mundial, ou Auschwitz e Hiroshima, sinônimos do assassinato maciço de civis pelo Estado ou datas igualmente simbólicas, como 1914, 1929 e 1939 puseram em questão todos os anteriores pré-supostos sobre o progresso moral; mas também sugeriram de maneira alarmante para a ordem social presente, que este poderia não ser tão eterno como tinha parecido até então. Em suma, confrontada à perspectiva do desaparecimento do modo social que lhe deu certidão de nascimento - seja através do colapso na anarquia ou, o que para a burguesia deve ser o mesmo, através de sua destruição pela classe operária revolucionária - a historiografia burguesa prefere ficar míope, perdendo-se no estreito empirismo dos curtos prazos e dos acontecimentos locais, ou desenvolver teorias como o relativismo e o pós-modernismo, que rechaçam qualquer noção de desenvolvimento progressivo de uma época a outra, assim como qualquer tentativa de descobrir um padrão de desenvolvimento na história humana. Além disso, a promoção de uma "cultura popular e de famosos" acompanha e acomoda diariamente essa repressão da consciência histórica, ligada às necessidades desesperadas do mercado: algo de valor tem que ser atual e nova, surgindo do nada e levando a lugar algum.

Dada a obtusidade da maior parte dos "experts oficiais", não dá para se estranhar que muitos dos que ainda perseguem a busca de um padrão de desenvolvimento global da história sejam seduzidos pelos charlatães da religião e do ocultismo. O nazismo foi uma das primeiras manifestações dessa tendência, - conformando sua ideologia de uma confusão de teosofia ocultista, e de teoria racista conspirativa, que oferecia uma solução "esfarrapada" a todos os problemas do mundo, desanimando com grande efetividade a necessidade de não se pensar em mais nada. O fundamentalismo cristão e o islamita, ou as numerosas teorias conspirativas em relação à manipulação da história pelas sociedades secretas jogam hoje o mesmo papel. A razão oficial burguesa, só não fracassa quando trata de oferecer respostas aos problemas da esfera social, mas também de fato renuncia amplamente sequer a colocar-se perguntas, deixando o campo livre à irracionalidade para inventar-se suas próprias soluções mitológicas.

Até certo ponto, a consciência desta situação se expressa no senso comum e dominante. Está é disposta a reconhecer que sofreu realmente uma perda de sua antiga autoconfiança. Mais que pregar positivamente os louvores do capitalismo liberal como a melhor conquista do espírito humano, agora tende a retratá-lo como o mal menor; defeituoso, certo, mas preferível amplamente a todas as formas de fanatismo que parecem alinhar-se em sua oposição. E no campo dos fanáticos, são incluídos não só o fascismo ou o terrorismo islâmico, mas também o marxismo, refutado agora definitivamente como uma forma de messianismo utópico. Quantas vezes não nos dirão, habitualmente pensadores de terceira categoria que se dão ares de estar dizendo algo novo, que a visão marxista da história é meramente uma inversão do mito judaico-cristão da história como um desenvolvimento para a salvação? O comunismo primitivo seria o Jardim do Éden e o comunismo futuro o paraíso por vir; o proletariado seria o Povo eleito, ou o Messias sofredor e os comunistas os profetas. Mas também nos dizem que essas projeções religiosas não são absolutamente inócuas: a realidade dos "governos marxistas" teria mostrado no que resultam todas essas tentativas de implantar o paraíso na terra, na tirania e nos campos de trabalho; que seria um projeto insensato tratar de moldar o gênero humano - que é imperfeito - segundo sua visão da perfeição.

E, com efeito, para apoiar esta análise, está o que nos apresentam como a trajetória do marxismo no século XX: Quem pode negar que a GPU estalinista nos recorda a Santa Inquisição? Ou que Lênin, Stalin, Mao e outros grandes líderes foram convertidos em novos deuses? Mas essa representação está profundamente enganadora. Apóia-se na maior mentira do século: que o estalinismo é igual a comunismo; quando de fato é sua negação total. O que o estalinismo realmente é, é uma forma da contra-revolução capitalista, como sustentam todos os marxistas genuinamente revolucionários, de modo que o argumento de que a teoria marxista da história tem que levar inevitavelmente ao Gulag, tem que ser questionada.

E também podemos responder como Engels em seus escritos sobre os primórdios do cristianismo, que não há nada estranho nas similitudes entre as idéias do movimento operário moderno e as pregações dos profetas bíblicos ou os primeiros cristãos, porque estas últimas também representavam os esforços das classes exploradas e oprimidas e suas esperanças de um mundo apoiado na solidariedade humana e não na dominação de classe. Devido às limitações impostas pelo sistema social em que surgiram, aqueles comunistas precoces não podiam ir além de uma visão mítica ou religiosa da sociedade sem classes. Esse já não é o caso hoje em dia, posto que a evolução histórica tem feito da sociedade comunista, tanto uma possibilidade racional quanto uma necessidade urgente. Assim, mais do que ver o comunismo moderno à luz dos velhos mitos, podemos entender os velhos mitos à luz do comunismo moderno.

Para nós o marxismo, o materialismo histórico, não é outra coisa que a visão teórica de uma classe que, pela primeira vez na história, é ao mesmo tempo uma classe explorada e revolucionária, uma classe portadora de uma nova ordem social e superior. Seu esforço, que é realmente uma necessidade para ela, em examinar o modelo do passado e as perspectivas para o futuro, pode ver-se assim livre dos preconceitos carregados pelas classes dominantes, que em última instância sempre se vêm impulsionadas a negar e ocultar a realidade no interesse da manutenção de seu sistema de exploração. A teoria marxista também está apoiada no método científico, diferentemente dos esboços poéticos das classes exploradas anteriores. Pode não ser uma ciência exata classificável na mesma categoria que muitas ciências naturais, já que não pode abranger a humanidade e sua imensa complexidade histórica, em uma série de experimentos de laboratório reproduzíveis - Contudo a teoria da evolução também está sujeita a limitações idênticas. A questão é que só o marxismo é capaz de aplicar o método científico ao estudo da ordem social existente e os que lhe precederam, empregando rigorosamente a melhor erudição que pode oferecer a classe dominante e ao mesmo tempo indo mais à frente, expondo uma síntese superior.

Prefácio à Contribuição à Crítica da economia política

Em 1859, enquanto estava profundamente comprometido no trabalho que daria origem ao Capital, Marx escreveu um breve texto que expõe um resumo magistral de todo seu método histórico. Foi no Prefácio da obra chamada Contribuição à Crítica da economia política, uma obra que foi amplamente substituída, ou ao menos deixada em segundo plano, pelo aparecimento do Capital. Depois de nos oferecer um relato resumido do desenvolvimento de seu pensamento desde seus primeiros estudos de direito até sua preocupação nesse momento pela economia política, Marx chega ao âmago do assunto - o "princípio guia" de seus estudos. Aqui se resume com magistral precisão e clareza a teoria marxista da história. Por isso temos a intenção de examinar essa passagem o mais de perto possível, para estabelecer as bases de uma verdadeira compreensão da época que vivemos. Incluímos integralmente a passagem mais crucial deste texto como um apêndice a este artigo, mas a partir de agora queremos tratar em detalhe cada uma de suas partes: "Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca as relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade. É por isso a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos em vias de aparecer. Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno, podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esta contradição. Com esta organização social termina, assim, a Pré-História da sociedade humana." (Prefácio à Introdução à Crítica da economia política - Ed. Martins Fontes, 1977)

As relações de produção e as forças produtivas

"... na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral". (Prefácio à Introdução à Crítica da economia política - Ed. Martins Fontes, 1977)

Freqüentemente o marxismo é caricaturado por seus críticos, habitualmente burgueses ou pseudo-radicais, como uma teoria mecanicista, "objetivista", que busca reduzir a complexidade do processo histórico a uma série de leis de bronze sobre as quais os sujeitos humanos não têm nenhum controle e que os arrastam como rolo compressor a um resultado final fatidicamente determinado. Quando não nos dizem que o marxismo é outra forma de religião, ou nos dizem que o pensamento marxista é um produto típico da adoração acrítica do século XIX pela ciência e suas ilusões de progresso, que procuraria aplicar as leis previsíveis e verificáveis do mundo natural - física, química, biologia - à evolução fundamentalmente imprevisível da vida social. Marx é então apresentado como autor de uma teoria da evolução inevitável e linear de um modo de produção a outro, que leva inexoravelmente da sociedade primitiva ao comunismo, passando pelo escravismo, o feudalismo, o capitalismo. E todo o conjunto deste processo resultaria ainda mais predeterminado porque está supostamente causado por um desenvolvimento puramente técnico das forças produtivas.

É certo que no seio de movimento operário se produziram deslizes subsidiários dessa visão. Por exemplo, durante o período da IIª Internacional, quando havia uma tendência crescente a que os partidos operários se "institucionalizassem", havia um processo equivalente a nível teórico, uma vulnerabilidade às concepções dominantes do progresso e certa tendência a contemplar a "ciência" como algo em si mesmo, afastado das relações de classe reais na sociedade. A idéia de Kautsky do socialismo científico como uma invenção dos intelectuais que depois tinha que ser injetada à massa proletária era uma expressão desta tendência. Assim foi também o caso, durante o século XX, quando grande parte do que tinha sido o marxismo no passado se converteu em aberta apologia da ordem capitalista; quando visões mecanicistas do progresso histórico foram oficialmente codificadas. Não há demonstração mais clara disto que o manual de "marxismo-leninismo" de Stalin, Breve curso de história do PCUS, onde a teoria da primazia das forças produtivas se expõe como a visão materialista da história: "A segunda característica da produção consiste em que suas mudanças e seu desenvolvimento tomam sempre, como ponto de partida, as mudanças e o desenvolvimento das forças produtivas, e, acima de tudo, os instrumentos de produção. As forças produtivas constituem, portanto, o elemento mais dinâmico e mais revolucionário da produção. Ao princípio, modificam-se e desenvolvem-se as forças produtivas da sociedade, e logo, com sujeição a estas mudanças e congruentemente com elas, modificam-se as relações de produção entre os homens, suas relações econômicas" (Traduzido [1] por nós).

Esta concepção da primazia das forças produtivas coincidia muito nitidamente com o projeto fundamental do stalinismo: "desenvolver as forças produtivas" da URSS à custa do proletariado e com intenção de converter a Rússia em uma grande potência mundial. Era em completa conformidade com interesses do stalinismo em apresentar uma pilha de grandes projetos industriais que teve lugar durante os anos 30, como passos para o comunismo, e tratar de impedir qualquer questionamento relativo às relações sociais subjacentes pro trás deste "desenvolvimento" - a feroz exploração da classe de trabalhadores assalariados, em outras palavras, a extração de mais-valia com vistas à acumulação de capital.

Para o Marx, toda essa colocação se rechaça nas primeiras linhas do Manifesto comunista, que apresenta a luta de classes como a força dinâmica da evolução histórica, em outras palavras, a luta entre diferentes classes sociais ("Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestre e oficial") pela apropriação do trabalho excedente. Também se nega igual e claramente nas primeiras linhas de nossa citação do Prefácio: "... na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade..." (Prefácio à Introdução à Crítica da economia política - Ed. Martins Fontes, 1977): relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais.

São seres humanos de carne e osso os que "entram em relações determinadas", os que fazem a história, e não "forças produtivas", não máquinas, embora haja necessariamente uma estreita conexão entre as relações de produção e as forças produtivas que lhes "correspondem". Como Marx expõe em outra famosa passagem do 18 Brumário do Luís Bonaparte: "Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado"v(O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann - Ed. Paz e Terra 4ª edição)

Note-se atentamente: não a fazem sob circunstâncias de sua escolha; os homens entram em relações determinadas "independentes de sua vontade". Até agora, ao menos. Nas condições que predominam em todas as formas de sociedade existentes até hoje, as relações que os seres humanos estabeleceram entre si não estiveram claras para eles, apareceram mais ou menos escamoteadas pelas representações mitológicas e ideológicas; por isso mesmo, com a chegada da sociedade de classes, as formas de riqueza que os homens engendram através dessas relações, tendem a escapar de suas mãos, a converter-se em uma força estranha superior. Segundo esta visão, os seres humanos não são produtos passivos de seu entorno, ou das ferramentas que produzem para satisfazer suas necessidades, mas, ao mesmo tempo, não dominam ainda suas próprias forças sociais nem são donos dos produtos de seu próprio trabalho.

Ser social e consciência social

"Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência.... Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material - que se deve comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas conseqüências. Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção" (Prefácio à Introdução à Crítica da economia política - Ed. Martins Fontes, 1977)

Em suma, os homens fazem sua própria história, mas não ainda em plena consciência do que estão fazendo. Daí que, ao estudar uma mudança histórica, não podemos nos contentar estudando as idéias e crenças de uma época, ou examinando as modificações nos sistemas de governo ou de legislação; para captar como evoluem essas idéias e sistemas, é necessário ir aos conflitos sociais fundamentais que jazem atrás deles.

Uma vez mais terá que dizer que esta colocação da história não descarta o papel ativo da consciência, dos ideais e das formações políticas e legais, seu impacto real nas relações sociais e o desenvolvimento das forças produtivas. Por exemplo, a ideologia das classes escravistas da antiguidade considerava completamente desprezível o trabalho, e esta atitude jogou um papel direto impedindo que os avanços científicos consideráveis que levaram a cabo os filósofos gregos repercutissem no desenvolvimento prático da ciência, na invenção de verdadeiras ferramentas postas em funcionamento e de técnicas que teriam aumentado a produtividade do trabalho. Mas a realidade subjacente por detrás desta barreira era o próprio modo de produção escravista: a existência do escravismo como base da criação de riqueza na sociedade clássica era a fonte do desprezo dos donos de escravos pelo trabalho e o fato de que, para eles, aumentar o sobre- trabalho passava necessariamente por aumentar o número de escravos.

Em escritos posteriores, Marx e Engels tiveram que defender sua fundamentação teórica, tanto dos abertamente críticos para com ele, como dos seguidores equivocados, que interpretavam a posição de que "o ser social determina a consciência social", da forma mais vulgar possível, por exemplo, pretendendo que significava que todos os membros da burguesia estariam fatalmente determinados a pensar igual devido a sua posição econômica na sociedade; ou de forma ainda mais absurda, que todos os membros do proletariado estão obrigados a ter uma clara consciência de seus interesses de classe porque estão submetidos à exploração. Essas atitudes reducionistas foram precisamente as que levaram ao Marx a dizer "Eu não sou marxista". Há numerosas razões que fazem que, de que entre a classe operária tal qual existe na "normalidade" do capitalismo, só uma minoria reconhece sua verdadeira situação de classe: esta não só se diferencia na sua história individual e a psicologia, como também fundamentalmente, como conseqüência do papel ativo que joga a ideologia dominante impedindo que os dominados possam compreender seus próprios interesses de classe - uma ideologia dominante cujas conotações e efeitos vão além da propaganda imediata da classe dominante, posto que está profundamente arraigada nas mentes dos explorados. "A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos" (O 18 brumário e Cartas a Kugelmann - Ed. Paz e Terra 4ª edição), como escreveu Marx em continuação da passagem do 18 Brumário que citamos anteriormente acerca de que "Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha".

De fato, a comparação de Marx entre a ideologia de uma época e o que um indivíduo pensa de si mesmo, longe de expressar uma visão reducionista de Marx, mostra realmente uma profundidade psicológica: seria um mal psicanalista quem não dedicasse nenhum interesse ao que um paciente fala acerca dos seus sentimentos e convicções, mas seria igualmente medíocre se, ignorando a complexidade dos elementos ocultos e inconscientes de seu perfil psicológico, limitava-se à consciência imediata que o paciente tem de si mesmo. O mesmo vale para a história das idéias ou a história "política", que pode nos dizer muito sobre o que estava ocorrendo em uma época determinada, mas que só nos dá um reflexo distorcido da realidade. Daí o rechaço do Marx diante de todas as colocações históricas que ficavam na superfície aparente dos acontecimentos: "Toda concepção histórica existente até então ou tem deixado completamente desconsiderada essa base real da história, ou a tem considerado apenas como algo acessório, fora de toda e qualquer conexão com o fluxo histórico. A história deve, por isso, ser sempre escrita segundo um padrão situado fora dela; a produção real da vida aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e supraterreno. Com isso, a relação dos homens com a natureza é excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história. Daí que tal concepção veja na história apenas ações políticas dos príncipes e dos Estados, lutas religiosas e simplesmente teoréticas e, especialmente, que ela tenha de compartilhar, em cada época histórica, da ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época se imagina determinada por motivos puramente "políticos" ou "religiosos", embora "religião" e "política" sejam tão somente formas de seus motivos reais, então o historiador dessa época aceita essa opinião. A "imaginação", a "representação" desses homens determinados sobre a sua práxis real é transformada na única força determinante e ativa que domina e determina a prática desses homens. Quando a forma rudimentar em que a divisão do trabalho, se apresenta entre os hindus e entre os egípcios provoca nesses povos o surgimento de um sistema de castas próprio de seu Estado e de sua religião, então o historiador crê que o sistema de castas é a força que criou essa forma social rudimentar" (A Ideologia Alemã, Boitempo Editorial, pag. 43-44).

As épocas de revolução social

Chegamos agora na a passagem do Prefácio que mais claramente contribui a compreender a presente fase histórica na vida do capitalismo:

"Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social." (Prefácio à Introdução à Crítica da economia política - Ed. Martins Fontes, 1977)

Aqui Marx mostra uma vez mais, que o elemento ativo no processo histórico são as relações que os homens estabelecem entre si para produzir as necessidades da vida. Revisando o movimento de uma forma social a outra, faz-se evidente que há uma dialética constante entre os períodos em que essas relações dão lugar a um verdadeiro desenvolvimento das forças produtivas e os períodos em que essas mesmas relações se convertem em uma trava para seu desenvolvimento posterior.

No Manifesto Comunista, Marx e Engels mostraram que as relações capitalistas de produção, emergindo da sociedade feudal decadente, atuaram como uma força profundamente revolucionária, varrendo todas as formas obsoletas da vida social e econômica que atravessaram em seu caminho. A necessidade de competir e produzir o mais barato possível obrigou a burguesia a revolucionar constantemente as forças produtivas; a necessidade incessante de encontrar novos mercados para suas mercadorias a obrigou a invadir todo o globo e a criar um mundo a sua imagem e semelhança.

Em 1848, as relações sociais capitalistas eram claramente uma "forma de desenvolvimento" e só se implantaram firmemente em um ou dois países. Entretanto, a violência das crises econômicas do primeiro quarto do século XIX conduziu inicialmente os autores do Manifesto a concluir que o capitalismo já se converteu em uma trava ao desenvolvimento das forças produtivas, pondo a revolução comunista (ou ao menos uma transição rápida da revolução burguesa à revolução proletária) na ordem do dia.

"Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já desenvolvidas. Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desaba sobre a sociedade - a epidemia da superprodução. Subitamente, a sociedade vê-se reconduzida a um estado de barbaria momentânea; dir-se-ia que a fome ou uma guerra de extermínio cortaram-lhe todos os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações de propriedade burguesa; pelo contrário, tornaram-se por demais poderosas para essas condições, que passam a entravá-las; e todas as vezes que as forças produtivas sociais se libertam desses entraves, precipitam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa. O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio" (Marx/Engels, o Manifesto comunista, cap. "Burgueses e proletários", www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp [2]).

Com a derrota das revoluções de 1848 e a enorme expansão do capitalismo mundial que se produziu no período seguinte, tiveram que revisar essa colocação, apesar de que seja compreensível que estivessem impacientes pela chegada de uma era de revolução social, do dia do julgamento da arrogante ordem do capital mundial. Mas o importante de sua colocação é o método básico: o reconhecimento de que uma ordem social não podia ser erradicada até que não tivesse entrado definitivamente em conflito com o desenvolvimento das forças produtivas, precipitando toda a sociedade em uma crise, não conjuntural nem de imaturidade, mas completamente em uma "era" de crise, de convulsão, de revolução social; dito de outra forma, em uma crise de decadência.

Em 1858 Marx retoma novamente a esta questão: "A verdadeira tarefa da sociedade burguesa é a criação do mercado mundial, ao menos em esboço, e a da produção apoiada nessa base. Posto que o mundo é redondo, a colonização da Califórnia e Austrália e o desenvolvimento da China e Japão parecem ter completado esse processo. O difícil para nós é isto: no continente, a revolução é iminente e assumirá imediatamente um caráter socialista. Não estará destinada a ser esmagada neste pequeno rincão, tendo em conta que em um território muito maior o movimento da sociedade burguesa está ainda em ascensão" (Correspondência de Marx a Engels, Manchester, 8 de outubro de 1858 - tradução nossa).

O interessante desta passagem é precisamente a questão que expõe: Quais são os critérios históricos para determinar o trânsito para uma época de revolução social no capitalismo? Pode haver uma revolução social enquanto o capitalismo é ainda um sistema globalmente em expansão? Marx se precipitou ao pensar que a revolução era iminente na Europa. De fato, em uma carta a Vera Zasulich sobre o problema da Rússia, escrita em 1881, parece que modificou de novo sua posição: "O sistema capitalista atingiu a flor da idade no Ocidente, aproximando-se do momento em que não será mais que um sistema social regressivo" (citado no Shanin, Pulsa Marx and the Russian Road, RKP, pag. 103, traduzido por nós). Assim, 20 anos depois de 1858, o sistema estaria só "aproximando-se" de seu período "regressivo", inclusive nos países avançados. Isto expressa as dificuldades que Marx confrontava devido à situação histórica em que vivia. Como foi demonstrado posteriormente, o capitalismo ainda tinha à sua frente uma última fase de verdadeiro desenvolvimento global, a fase do imperialismo, que converteria em um período de convulsões a escala mundial, indicando que todo o sistema, e não só uma parte dele, afundava-se em sua crise de senilidade. Entretanto a preocupação do Marx nestas cartas mostra até que ponto se tomou a sério o problema de apoiar uma perspectiva revolucionária na análise de se o capitalismo tinha chegado ou não a essa época.

Abandono das ferramentas caducas: a necessidade de períodos de decadência

"Uma sociedade nunca desaparece antes que sejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter e as relações de produção novas e superiores não se substituem jamais nela antes que as condições materiais de existência dessas relações fossem incubadas no próprio seio da velha sociedade. E por isso a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer". (Prefácio à Introdução à Crítica da economia política - Ed. Martins Fontes, 1977)

Nesta passagem, Marx destaca ainda mais a importância de apoiar a perspectiva da revolução social, não unicamente na aversão moral que inspira um sistema de exploração, mas sim na sua incapacidade para desenvolver a produtividade do trabalho e, em geral, a capacidade dos seres humanos para satisfazer suas necessidades materiais.

O argumento de que uma sociedade não desaparece jamais até que leve a cabo toda sua capacidade de desenvolvimento se empregou para argumentar contra a idéia de que o capitalismo tenha alcançado seu período de decadência: o capitalismo cresceu claramente depois de 1914, e não poderíamos dizer que é decadente até que cesse completamente de crescer. É certo que teorias como a de Trotsky nos anos 30, que afirmava que as forças produtivas tinham deixado de crescer, causaram uma grande confusão. Tendo em conta que o capitalismo estava imerso naquele momento na maior depressão que conheceu até então, essa visão parecia plausível; além disso, a idéia de que a decadência está marcada pela estagnação do desenvolvimento das forças produtivas, e inclusive sua regressão, pode-se aplicar até certo ponto às sociedades de classe anteriores, nas que a crise era sempre o resultado da subprodução, da incapacidade absoluta para produzir o suficiente para abastecer as necessidades básicas da sociedade (e inclusive nesses sistemas, o processo de "decadência" não se desenvolveria jamais sem que se produzissem fases de aparente recuperação e inclusive de crescimento vigoroso). Mas o problema fundamental desta posição é que ignora a realidade essencial do capitalismo, a necessidade de crescimento, de acumulação, da reprodução ampliada de valor. Como veremos, na decadência do sistema, essa necessidade só pode resolver manipulando cada vez mais as mesmas leis da produção capitalista; mas como também veremos provavelmente não se chegará nunca ao ponto em que a acumulação capitalista seja impossível. Como assinalou Rosa Luxemburgo na Anticrítica, esse ponto é "uma ficção teórica, porque a acumulação de capital não é só um processo econômico, mas também político". Além disso, Marx já tinha lançado a idéia da não identidade entre fase de declive do capitalismo e bloqueio das forças produtivas: "O desenvolvimento superior destas mesmas bases (a flor em que se transformam; mas se trata sempre dessas bases, dessa planta como flor; e, portanto murchando-se depois do florescimento como conseqüência do florescimento) é o ponto em que se realizou totalmente, desenvolvida, em uma forma que é compatível com o maior desenvolvimento das forças produtivas, e, portanto também com o desenvolvimento mais rico dos indivíduos. Logo que se chega a este ponto, o desenvolvimento posterior aparece como declive, e o novo desenvolvimento começa desde novas bases" (Grundisse, V: "Diferença entre o modo de produção capitalista e todos os modos anteriores"; sublinhado por nós - traduzido por nós).

O capitalismo desenvolveu certamente suficientes forças produtivas para que possa surgir um modo de produção novo e superior. De fato, do momento em que se desenvolveram as condições materiais para o comunismo, o sistema entrou em declive. Ao criar uma economia mundial -fundamental para o comunismo- o capitalismo também alcançava os limites de seu desenvolvimento saudável. A decadência do capitalismo não tem que identificar-se com completo bloqueio da produção, mas com uma série crescente de catástrofes e convulsões que demonstram a absoluta necessidade de sua derrocada.

O ponto principal em que Marx insiste aqui é a necessidade de um período de decadência. Os homens não fazem a revolução por puro prazer, mas sim porque estão obrigados por necessidade, pelos sofrimentos intoleráveis que conduz a crise de um sistema. Por isso mesmo, suas amarras com o status quo estão profundamente arraigadas em sua consciência, e só o crescente conflito entre essa ideologia e a realidade material que confrontam, pode levá-los a levantar-se contra o sistema dominante. Isto é certo sobre tudo para a revolução proletária, que pela primeira vez requer uma transformação consciente de todos os aspectos da vida social.

Acusam-se às vezes os revolucionários de defender a idéia de "quanto pior, melhor"; de que quanto mais sofram as massas, mais provável que sejam revolucionárias. Mas não há nenhuma relação mecânica entre sofrimento e consciência revolucionária. O sofrimento contém uma dinâmica para a reflexão e a revolta, mas também pode demolir e deixar exausta a capacidade de levar a cabo essa revolta; ou inclusive conduzir à adoção de formas completamente falsas de rebelião, como mostra o desenvolvimento atual do fundamentalismo islâmico. Um período de decadência é necessário para convencer à classe operária de que precisa construir uma nova sociedade, mas, por outra parte, uma época de decadência que se prolongue indefinidamente pode ameaçar a própria possibilidade da revolução, arrastando o mundo através de uma espiral de desastres que só servem para destruir as forças produtivas acumuladas e em particular a mais importante de todas elas, o proletariado. Este é realmente o perigo que expõe a fase final da decadência, a que nos referimos como a decomposição, que segundo nossa posição, já começou.

Este problema de uma sociedade que se decompõe sobre seus próprios alicerces é particularmente agudo no capitalismo porque, a diferença dos modos de produção anteriores, a maturação das condições materiais para uma nova sociedade -o comunismo- não coincide com o desenvolvimento de novas formas econômicas dentro da velha ordem social. Na decadência do escravismo em Roma, o desenvolvimento de estados feudais era freqüentemente obra de membros da antiga classe proprietária de escravos que se distanciaram do Estado central para evitar que fossem esmagados pela carga de seus impostos. No período da decadência feudal, a nova classe burguesa surgiu nas cidades -que sempre tinham sido os centros comerciais do velho sistema- e estabeleceu os fundamentos de uma nova economia apoiada na manufatura e no comércio. A emergência destas novas formas de produção era ao mesmo tempo uma resposta à crise da velha ordem social e um fator que empurrava cada vez mais para sua dissolução.

Com o declive do capitalismo, as forças produtivas que colocou em marcha entram em um conflito crescente com as relações sociais nas quais opera. Isto se expressa sobretudo no contraste entre a enorme capacidade produtiva do capitalismo e sua incapacidade para absorver todas as mercadorias que produz, em suma, na crise de superprodução. Mas enquanto esta crise faz cada vez mais urgente a abolição das relações mercantis ao tempo que distorce progressivamente as leis destas mesmas relações, não conduz, entretanto ao surgimento espontâneo de formas econômicas comunistas. A diferença das classes revolucionárias anteriores, a classe operária é uma classe despossuída e explorada, e não pode construir sua nova ordem econômica no marco do modo de produção anterior. O comunismo só pode ser resultado de uma luta cada vez mais consciente contra a velha ordem, que leve a derrocada política da burguesia como precondição para a transformação comunista da vida econômica e social. Se o proletariado for incapaz de elevar sua luta aos níveis necessários de consciência e auto-organização, as contradições do capitalismo não levarão a uma nova ordem social superior, mas sim a "a ruína mútua das classes em conflito".

Gerrard

 


Apêndice

Prefácio à Introdução à Crítica da economia política

A passagem completa do Prefácio diz:

"A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material - que se deve comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas consequências. Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca as relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade. É por isso a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos,em vias de aparecer. Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno, podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esta contradição. Com esta organização social termina, assim, a Pré-História da sociedade humana." (Ed. Martins Fontes, 1977)


[1]. https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2008/epoca_das_guerras_e_das_revolucoes_Decadencia_do_capitalismo.htm [3]

 

Herança da Esquerda comunista: 

  • Decadência do capitalismo [4]

A propósito do livro de Patrick Tort "O Efeito Darwin": Uma concepção materialista das origens da moral e da civilização

  • 7356 leituras

Devido ao bicentenário do nascimento de Charles Darwin e dos 150 anos da publicação de sua obra A origem das espécies, as prateleiras das livrarias se encheram enormemente de livros, com títulos muito tentadores. Muitos autores, mais ou menos eruditos, deixaram-se levar subitamente por um entusiasmo por Darwin, com a esperança de levar o título de best-seller do ano, depois do êxito espetacular do livro do Richard Dawkins, Deus, um delírio (do qual foram vendidos mais de dois milhões de exemplares no mundo). Para o "grande público" é difícil se orientar e escolher nesta feira de livros científicos. Por nossa parte, escolhemos sem dúvida o de Patrick Tort [1], O Efeito Darwin. Seleção natural e nascimento da civilização (Ed. Seuil, sept. 2008), que dá uma explicação particularmente esclarecedora da concepção materialista da moral e da civilização que Darwin defendeu.

Darwin e a seleção natural dos instintos sociais

Patrick Tort é, pelo que sabemos, o único autor que, acima da polarização da mídia sobre A origem das espécies, apresenta e explica a segunda grande obra (desconhecida ou frequentemente mal interpretada) de Darwin, A origem do homem, publicada em 1871.

O livro de Patrick Tort mostra claramente como os epígonos de Darwin se apropriaram da teoria da descendência modificada pela seleção natural, que foi desenvolvida na Origem das Espécies, aproveitando o grande silêncio de Darwin sobre as origens do homem para justificar o eugenismo (teorizado por Galton) e o "darwinismo social" (cujo iniciador foi Herbert Spencer).

Contrariamente a uma idéia que se impôs durante muito tempo, Darwin não foi jamais partidário ideológico da teoria malthusiana da eliminação dos mais fracos na luta social como conseqüência do crescimento demográfico. Na origem das espécies, ele só faz utilizar essa teoria como modelo para explicar os mecanismos da evolução no domínio da natureza. É uma falsidade completa atribuir a Darwin a paternidade de todas as ideologias ultraliberais que sustentam o individualismo, a concorrência capitalista e "a lei do mais forte".

Em sua obra fundamental, A origem do homem, Darwin, ao contrário, opõe-se categoricamente a qualquer aplicação mecânica e esquemática da seleção natural eliminatória à espécie humana envolvida no processo da "civilização". Patrick Tort nos explica de uma forma particularmente argumentada e convincente, com o apoio de citações, como Darwin concebia a aplicação de sua lei da evolução ao ser humano e aos diferentes tipos de sociedades que foi desenvolvendo.

Em primeiro lugar Darwin relaciona o ser humano filogeneticamente com a série animal, e mais particularmente com um ancestral comum que deve compartilhar com os macacos "catarrinos" ou macacos do velho mundo. Desta forma amplia naturalmente, portanto, o transformismo à espécie humana, mostrando que a seleção natural modulou igualmente sua história biológica. Entretanto, segundo Darwin, a seleção natural não selecionou unicamente variantes orgânicas vantajosas na cadeia da evolução da série animal, mas também instintos, e particularmente os instintos sociais. Estes instintos sociais chegaram a sua culminação na espécie humana, fundindo-se com o desenvolvimento da inteligência racional (e, portanto, da consciência refletida).

Esta evolução conjunta dos instintos sociais e da inteligência foi acompanhada no ser humano da "extensão ilimitada" dos sentimentos morais e da simpatia altruísta. Os indivíduos e os grupos mais altruístas e mais solidários dispõem de uma vantagem evolutiva sobre os outros grupos.

Quanto ao pretendido "racismo" de que é acusado ainda hoje em dia Darwin, podemos refutar sua veracidade só com esta citação: "Evoluindo o homem em civilização, e reunindo-se as pequenas tribos em comunidades maiores, a simples razão deveria indicar a cada indivíduo que deve estender seus instintos sociais e sua simpatia a todos os membros da mesma nação, embora os desconheça pessoalmente. Chegado a este ponto, só uma cerca artificial se opõe a que suas simpatias se façam extensivas aos homens de todas as nações e raças. Infelizmente a experiência nos demonstra quanto tempo é necessário para que cheguemos a considerar como nossos semelhantes aos homens de outras nações ou raças, que apresentam com a nossa uma imensa diferença de aspecto e de costumes" [2]. (Tradução nossa)

Segundo Patrick Tort, Darwin nos dá uma explicação naturalista e, portanto, materialista, da origem da moral e da civilização.

Particularmente a respeito da origem da moral, nos capítulos da Origem do Homem relativos à seleção sexual encontramos as exposições mais surpreendentes. Patrick Tort nos explica que, segundo Darwin, o primeiro vetor do altruísmo em numerosas espécies animais (principalmente os mamíferos e as aves), reside no instinto (indissociavelmente natural e social) da reprodução. Assim, o desenvolvimento e o alarde ostentoso de seus caracteres sexuais secundários (galhadas de chifre, plumas nupciais e outros vestígios ornamentais) destinado a atrair as fêmeas no cortejo, implica um "risco de morte": "Coberto pelo  esplêndido e pesado adorno nupcial, a ave-do-paraíso é certamente irresistível, mas quase não pode mais voar, encontrando-se, desse modo, em grande perigo diante dos depredadores. As fêmeas dispensarão cuidados à prole, e também poderão expor-se ao perigo para defendê-la. O instinto social, que culmina na moral humana, tem, pois, uma história evolutiva e, eventualmente, admite o sacrifício. Darwin produz, assim, uma genealogia da moral sem referência a menor instância extranatural" (Patrick Tort: Darwin e A Ciência da Evolução; pág. 96; Rio de Janeiro; Objetiva, 2004).

Enfim, contrariamente às idéias que nos tentaram fazer engolir, segundo as quais Darwin teria sido um fervoroso promotor da desigualdade entre os sexos e destacado a vantagem do sexo "forte", o certo é justamente o contrário se nos situarmos na perspectiva das tendências evolutivas. Para Darwin (e nisto se soma à visão de Engels na Origem da família, da propriedade privada e do Estado, e à de August Bebel em seu livro A mulher e o socialismo) são as fêmeas (e, por extensão, as mulheres) as primeiras portadoras do instinto altruísta: no reino animal, são as fêmeas as que escolhem o macho reprodutor e as que, por isso, fazem uma "eleição de objeto" (primeira forma de reconhecimento da alteridade), e também são elas as que se expõem mais frequentemente aos depredadores para proteger aos filhotes.

A teoria do "efeito reversivo da evolução"

Graças a seu notável conhecimento da obra de Darwin e da dialética, Patrick Tort desenvolveu uma teoria elaborada em seu livro La Pensée hiérachique et l'évolution [O pensamento hierárquico e a evolução, Aubier, Paris, 1983] sobre o "efeito reversivo da evolução".

No que consiste esta teoria? Poderia se resumir em uma simples frase: "a seleção natural, pela via dos instintos sociais, seleciona a civilização, que se opõe à seleção natural".

Para evitar as paráfrases, citemos aqui uma passagem do livro de Patrick Tort: "Pelo viés dos instintos sociais, a seleção natural, sem "salto" nem ruptura, selecionou assim seu contrário, ou seja: um conjunto normalizado, em extensão, de comportamentos antieliminatórios - portanto antisseletivos  no sentido assumido pelo termo seleção na teoria desenvolvida por A origem das espécies -, como também, correlatamente, uma ética antiselecionista (=antieliminatória) traduzida em princípios, em regras de conduta e em leis. A emergência progressiva da moral aparece então como um fenômeno indissociável da evolução e é aqui uma continuação normal do materialismo de Darwin, e da inevitável extensão da teoria da seleção natural à explicação do devir das sociedades humanas. Mas esta extensão, que muitos teóricos, enganados pelo biombo colocado diante de Darwin pela filosofia evolucionista de Spencer, interpretaram de modo apressado segundo o modelo simplista e falso do "darwinismo social" liberal (aplicação às sociedades humanas do princípio de eliminação dos menos aptos no seio de uma concorrência vital generalizada), só pode ser efetuada com rigor sob a modalidade do efeito reversivo, que obriga a conceber a própria inversão da operação seletiva como base e condição do acesso à "civilização". (...). A operação reversiva é o que funda a justeza final da oposição natureza/cultura, evitando a armadilha de uma "ruptura" magicamente instalada entre estes dois termos: a continuidade evolutiva, através desta operação de inversão progressiva, ligada ao desenvolvimento (ele mesmo selecionado) dos instintos sociais, não produz desta maneira uma ruptura efetiva, mas um efeito de ruptura que provém do fato de que a seleção natural se encontrou, no decorrer da própria evolução, submetida ela mesma à sua própria lei - sua forma novamente selecionada, que favorece a proteção dos "fracos", prevalecendo, porque vantajosa, sobre sua forma antiga, que privilegiava sua eliminação. A nova vantagem não é mais então de ordem biológica: ela se tornou social." (Tradução feita a partir da Revista Crítica Marxista n° 11, artigo Darwin Lido e Aprovado, de Patrick Tort, págs 113-114).

O "efeito reversivo da evolução" é, portanto, esse movimento de mudança progressiva que produz um "efeito de ruptura", mas sem provocar por isso uma ruptura efetiva no processo da seleção natural [3]. Como explica muito acertadamente Patrick Tort, a vantagem obtida pela seleção natural dos instintos sociais já não é de ordem biológica para a espécie humana, mas sim se converteu em social.

No pensamento de Darwin há uma clara continuidade materialista da relação entre os instintos sociais, combinados com os avanços cognitivos e racionais, a moral e a civilização. Esta teoria do "efeito reversivo da evolução", ao dar uma explicação científica das origens da moral e da civilização, tem o mérito de pôr fim ao falso dilema entre natureza e cultura, continuidade e descontinuidade, biologia e sociedade, inato e adquirido, etc.

A antropologia de Darwin e a perspectiva do comunismo

No artigo publicado em nossa página Web, Darwin e o Movimento Operário [4], recordamos que os marxistas saudaram os trabalhos de Darwin, particularmente sua principal obra, A Origem das espécies. Na publicação do livro de Darwin, Marx e Engels reconheceram imediatamente em sua teoria um ponto de partida análogo ao do materialismo histórico. Em 11 de Dezembro de 1859, Engels escreve uma carta a Marx em que afirma "Darwin, a quem acabo de ler, é magnífico. A Teleologia não tinha sido demolida em nenhum sentido, mas com isto já foi feito. Por outra parte, nunca houve até agora uma tentativa de demonstrar a evolução histórica na natureza de maneira tão esplêndida, ao menos com tanto êxito" (Tradução nossa)

Um ano mais tarde, em 19 de Dezembro de 1860, Marx, depois de ler A origem das espécies, escreve a Engels: "Neste livro se encontra o fundamento histórico-natural de nossa concepção". (Tradução nossa)

Entretanto, pouco tempo depois, em uma carta a Engels de 18 de Junho de 1862, Marx revisa seu ponto de vista e faz esta crítica não justificada a Darwin: "É notável ver como Darwin reconhece nos animais e nas plantas sua própria sociedade inglesa, com sua divisão do trabalho, sua concorrência, suas aberturas de novos mercados, suas invenções e sua malthusiana luta pela vida. É o bellum omnium contra omnes (A guerra de todos contra todos) do Hobbes, e recorda a Hegel na Fenomenologia, onde a sociedade civil intervém enquanto "reino animal do Espírito", enquanto que em Darwin, é o reino animal o que intervém enquanto sociedade civil". (Tradução nossa)

Engels retoma em parte por sua conta esta crítica de Marx, no Anti-Dühring, onde faz alusão à "estupidez malthusiana" de Darwin, e na Dialética da natureza.

Devido ao longo silêncio de Darwin sobre a questão da origem do ser humano (não publicará A Origem do Homem até 1871, mais de 11 anos depois da Origem das espécies [5]), seus epígonos, particularmente Galton e Spencer, exploraram a teoria da seleção natural para aplicá-la de maneira esquemática à sociedade contemporânea. A Origem das Espécies foi facilmente assimilado em defesa da teoria malthusiana da "lei do mais forte" na luta pela existência.

Infelizmente, esse longo silêncio de Darwin sobre a origem do ser humano contribuiu para semear a confusão em Marx e Engels que, sem poder saber nada da antropologia darwiniana (que não se desenvolverá a não ser a partir de 1871 [6]), confundiram o pensamento de Darwin com o integralismo liberal ou a obsessão depuradora de dois de seus epígonos.

A história das relações entre Marx e Darwin, entre o marxismo e o darwinismo, foi a de um "Encontro que não existiu" (segundo a expressão empregada pelo Patrick Tort em algumas de suas conferências públicas). Entretanto, isso não é inteiramente verdade, visto que, apesar de suas críticas de 1862, Marx continuará mantendo uma profunda estima pelo materialismo de Darwin. Embora não chegasse ter conhecimento da Origem do Homem, Marx, em 1872, deu de presente a Darwin um exemplar da edição alemã de sua obra O Capital, com esta dedicatória: "A Charles Darwin, da parte de um sincero admirador". Quando se abre esse exemplar (que se encontra na que foi a última residência de Darwin) hoje, pode-se constatar que só se manusearam as primeiras páginas. Darwin não prestou muita atenção à teoria de Marx, já que a economia lhe parecia muito afastada de suas competências. Entretanto um ano mais tarde, em 1° de Outubro de 1873, testemunha-lhe sua simpatia em uma carta de agradecimento: "Estimado Senhor, agradeço-lhe a honra que me faz me enviando sua grande obra sobre o Capital; desejaria sinceramente ser mais digno de ser o destinatário e poder me orientar melhor nesta questão profunda e importante da economia política. Embora nossos interesses científicos sejam muito diferentes, estou convencido de que nós dois saudamos sinceramente a ampliação dos conhecimentos e de que esta servirá em última instância, ao bem-estar da humanidade".

Assim é como os dois rios, apesar do "Encontro que não existiu", puderam em parte misturar suas águas.

Além disso, o movimento operário, depois de Marx, não retomou a crítica formulada por este último a Darwin em 1862; apesar de que a grande maioria de teóricos marxistas (incluindo o Antón Pannekoek em seu folheto Darwinismo e Marxismo), passou por cima A Origem do Homem.

Certamente Pannekoek, assim como Kautsky (em seu livro A Ética e a concepção materialista da história) e Plekhanov (em A Concepção monista da história), saudaram a teoria dos instintos sociais de Darwin. Mas não compreenderam plenamente que Darwin tinha desenvolvido uma teoria da genealogia da moral e da civilização e uma visão materialista de suas origens. Uma teoria que em muitos aspectos coincide com a concepção monista da história e desemboca finalmente na perspectiva do comunismo, isto é, à aspiração da unificação da humanidade em uma comunidade humana mundial. Assim era a ética de Darwin; embora não era marxista nem tinha uma concepção revolucionária da luta de classes.

De certa forma, poderia se afirmar hoje que se não tivesse tido este "Encontro que não existiu" entre Marx e Darwin no fim do século XIX, é muito provável que Marx e Engels tivessem dado à obra A Origem do Homem a mesma importância que deram ao trabalho de L. H. Morgan sobre o comunismo primitivo, A Sociedade Antiga (sobre a qual se apoiou em grande parte Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado).

Nem Morgan nem Darwin eram marxistas. Entretanto suas contribuições (no terreno da etnologia por parte do primeiro e das ciências naturais por parte do segundo) permanecem como uma contribuição considerável para o movimento operário.

Hoje a espécie humana se confronta à tendência sem freio ao "cada por si", à "guerra de todos contra todos", à concorrência exacerbada estimulada pela quebra histórica do capitalismo.

Frente à decomposição deste sistema decadente, a classe trabalhadora mundial, a dos produtores associados, para desenvolver em seu seio sua consciência de classe revolucionária, tem que favorecer mais que nunca através de seu combate contra a barbárie capitalista, a extensão dos sentimentos sociais da espécie humana. Este é o único meio para que a humanidade possa ter acesso à etapa seguinte da civilização: a sociedade comunista, quer dizer, uma verdadeira comunidade humana mundial, solidária e unificada. [7]

Sofiane (23 de Março 2009)

 


[1] Patrick Tort está associado ao Museu Nacional de História Natural de Paris. É diretor da publicação do monumental Dicionário do Darwinismo e da Evolução, fundou e dirige o Instituto Charles Darwin Internacional (www.charlesdarwin.fr [5]). Consagrou trinta anos de sua vida ao estudo da obra de Darwin, que se propõe publicar integralmente em língua francesa sob o patrocínio de seu Instituto (estão previstos 35 volumes e já se publicaram dois. Ver www.charlesdarwin.fr [5]). Em português tem publicado o livro Darwin e a Ciência da Evolução, Rio de Janeiro, Objetiva, 2004.

[2] Deve-se salientar também que Darwin era contra a escravidão e por diversas vezes denunciou a barbaridade do colonialismo.

[3] Para ilustrar sua teoria, Patrick Tort utiliza uma metáfora topológica: a fita de Möbius (https://pt.wikipedia.org/wiki/Fita_de_M%C3%B6bius [6]), que permite compreender como, graças ao fenômeno do efeito reversivo da evolução, passa-se ao outro lado da fita sem descontinuidade, sem ruptura pontual. (Efeito Darwin. Seleção natural e nascimento da civilização, Paris, Seuil, 2008)

[4] https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Darwin_e_o_Movimento_Operario [7]

[5] Darwin não queria provocar tão cedo um novo "shock" na sociedade bem instruída de sua época. Por isso preferiu esperar que se acalmasse o primeiro "shock" provocado pela Origem das espécies, antes de ir mais longe. Absolutamente, não estava claro que a idéia de que o homem pudesse ter um ancestral comum com os grandes símios fosse ser aceita nem sequer por seus iguais no seio da comunidade científica.

[6] Quando Darwin decidiu publicar em 1871 A Origem do Homem, Marx e Engels não lhe deram atenção, já que estavam intensamente envolvidos nos sucessos da Comuna de Paris e na luta contra as dificuldades organizacionais da Associação Internacional dos Trabalhadores, que nesses momentos era objeto das manobras de Bakunin.

[7] Evidentemente esta sociedade comunista não tem nada a ver com o stalinismo, com os regimes de capitalismo de Estado que dominaram a URSS e os países do Leste até 1989. Seus verdadeiros traços se esboçaram no Manifesto comunista de 1848, ou na Crítica do programa da Gotha (Marx 1875), particularmente na passagem seguinte: "Na fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho, e com ela a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não seja unicamente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando com o desenvolvimento dos indivíduos em todos seus aspectos cresçam também as forças produtivas e corram a jorro cheio os mananciais da riqueza coletiva, só então poderá transbordar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês, e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: De cada qual segundo sua capacidade; a cada qual segundo suas necessidades!".

Darwin e o Movimento Operário

  • 4871 leituras

Celebramos este ano o 200º aniversário do nascimento de Charles Darwin (e os 150 anos da publicação de seu livro A origem das espécies). A ala marxista do movimento operário sempre saudou a contribuição notável de Charles Darwin, que ajudou a humanidade a compreender a si mesma e a natureza.

Em muitos aspectos Darwin foi um homem típico de seu tempo, interessado na observação da natureza e em levar a cabo experimentos sobre a vida animal e vegetal. Seu estudo empírico, principalmente das abelhas, dos besouros, dos vermes, dos pombos e dos cirrípedes, era escrupuloso e detalhado. A atenção que Darwin prestava a estes últimos era tão tenaz que seus jovens filhos "começaram a pensar que todos os adultos deviam ter a mesma preocupação; um deles foi até perguntar, a propósito de um vizinho: onde é que ele cuida de seus cirrípedes?" (Darwin, Desmond & Moore. Tradução nossa).

O que distinguia Darwin era sua capacidade de ir além dos detalhes, para teorizar e procurar processos históricos quando outros se contentaram só classificando os fenômenos ou aceitar as explicações existentes. Um exemplo típico disto foi explicar a existência de fósseis marinhos nos Andes, a milhares de metros de altitude. Graças à experiência de um terremoto e aos Princípios da Geologia de Lyell, sua reflexão se concentrou sobre a escala dos movimentos terrestres que tinham trazido fundos marinhos nas montanhas, sem recorrer ao grande dilúvio bíblico. "Sou um firme crente, de que sem a especulação não há uma boa e original observação" (Carta a A. R. Wallace, 22/12/1857).

Tampouco hesitou em tomar as observações de um âmbito e utilizá-las em outros. Embora Marx tenha tomado a maioria dos escritos de Thomas Malthus com desprezo, Darwin foi capaz de utilizar as idéias deste sobre o crescimento da população humana desenvolvendo sua teoria da evolução. "Em Outubro de 1838, aconteceu que eu li para distrair-me o livro de Malthus sobre a população e, sendo bem preparado para apreciar a luta pela existência que tem lugar por toda a parte, graças a uma observação prolongada e não interrompida dos hábitos dos animais e das plantas, eu fui imediatamente golpeado pelo fato de que, nestas circunstâncias, variações favoráveis tenderiam a ser preservadas e variações desfavoráveis a ser destruídas. O resultado seria a formação de novas espécies. A partir daí, dispus finalmente de uma teoria para o meu trabalho" (Darwin, Lembranças sobre o desenvolvimento do meu espírito e a minha personalidade). Isso ocorreu 20 anos antes que esta teoria aparecesse publicamente com A Origem das Espécies, mas as bases estavam já presentes. Em A Origem das Espécies, Darwin explica que emprega "a expressão de Luta pela Existência num sentido amplo e metafórico" e "por conveniência" e que, por Seleção Natural, quer dizer "a preservação das variações favoráveis e a rejeição das variações prejudiciais." A idéia de evolução não era nova, mas, em 1838, Darwin desenvolvia já uma explicação sobre como as espécies evoluíram. Comparou as técnicas dos criadores de galgos e de pombos (seleção artificial) à seleção natural que considerava ser "a parte mais bonita de sua teoria" (Darwin, citado por Desmond & Moore).

O método do materialismo histórico

Três semanas depois da publicação da origem das espécies, Engels escreveu a Marx «Darwin, a quem acabo de ler, é magnífico. Sobrava um aspeto da Teleologia que não tinha sido demolida em nenhum sentido mas com isto já foi feito. Por outra parte, nunca houve até agora uma tentativa de demonstrar a evolução histórica na natureza de maneira tão esplêndida, ao menos com tanto êxito» (Tradução nossa) . A "demolição da teleologia" refere-se ao golpe que A Origem das Espécies deu a todas as explicações religiosas, idealistas ou metafísicas que "explicam" os fenômenos por seus efeitos e não por sua causa. Isto é fundamental para um ponto de vista materialista do mundo. Como Engels escreveu no Anti-Dürhing (cap. 1), Darwin  "deu na concepção metafísica da natureza o maior golpe, provando que todos os seres orgânicos... são o produto de um processo de evolução que passa através de milhões de anos". (Tradução nossa)

No projeto de materiais para a Dialética da Natureza Engels deu a exatidão da importância da Origem das Espécies. "Darwin, na época de seu trabalho, estabeleceu a mais ampla base de seleção.  Precisamente as infinitas e acidentais diferenças entre indivíduos de uma só espécie, as diferenças que se acentuaram até dar lugar ao caráter da espécie, (...) obrigou-lhe a questionar a anterior base de toda a regularidade na biologia, quer dizer, ao conceito de espécie em sua anterior  rigidez metafísica e  invariável". (Tradução nossa)

Marx leu a Origem um ano depois de ter sido publicada,  e em seguida escreveu ao Engels (19/12/1860) "este é o livro que contém a base de nossas idéias na história natural". Mais tarde escreveu que o livro serve "como uma base científica natural para a luta de classes na história" (Carta a Lassalle, 16/01/1862).

Apesar de seu entusiasmo por Darwin, Marx e Engels não deixaram de lhe fazer críticas. Estavam muito conscientes da influência de Malthus, e também que as idéias de Darwin tinham sido utilizadas no "darwinismo social" para justificar o status quo da sociedade vitoriana com grande riqueza para alguns e as prisões, enfermidade, fome ou emigração para os pobres. Em sua introdução à Dialética da Natureza, Engels assinala algumas das conseqüências. "Darwin não sabia que tinha escrito uma amarga sátira sobre a humanidade,... quando ele mostrou que a livre concorrência da luta pela existência, a qual os economistas celebram como a máxima conquista histórica, é o estado normal do reino animal.". E é só a "organização consciente da produção social" o que pode levar a humanidade da luta pela sobrevivência à expansão dos meios de produção como base da vida, do desfrute e do desenvolvimento; e que a "organização consciente" exige uma revolução levada a cabo pelos produtores, a classe proletária.

 Engels viu também como as lutas da humanidade (e a compreensão marxista destas) vão além do marco de Darwin : "A concepção da história como uma série de lutas de classe já é muito mais rica em conteúdo e mais profunda que simplesmente reduzi-la a débeis fases delimitadas de luta pela existência" (Dialética da Natureza, "Notas e fragmentos"). Entretanto, tais críticas não prejudicam a importância de Darwin na história do pensamento científico. Em um discurso no funeral de Marx, Engels insistiu que "Assim como Darwin descobriu a lei de desenvolvimento dos organismos naturais, Marx descobriu a lei de desenvolvimento da história da humanidade." (Tradução nossa)

O marxismo depois de Darwin

Embora Darwin tenha estado em e fora de moda no pensamento burguês, a ala marxista do movimento operário nunca o abandonou.

Plekhanov, na Concepção monista da história (cap. 5) descreve a relação entre o pensamento de Darwin e Marx: "Darwin conseguiu resolver o problema de como se originam as espécies vegetais e animais na luta pela existência. Marx conseguiu resolver o problema de como surgem os diferentes tipos de organização social na luta dos homens por sua existência. Logicamente, a investigação de Marx, inicia precisamente quando a investigação de Darwin termina [...] O espírito de investigação é absolutamente o mesmo em ambos os pensadores. Por isso se pode dizer que o marxismo é o  darwinismo aplicado à ciência social". (Tradução nossa)

 Um exemplo da inter-relação entre o marxismo e as contribuições de Darwin se encontra no livro Ética e a concepção materialista da História de Kautsky. Embora Kautsky exagere a importância de Darwin, apoia-se no livro A Origem do Homem ao tratar de destacar a importância dos sentimentos altruístas, dos instintos sociais no desenvolvimento da moralidade. No capítulo 5 da Origem do Homem, Darwin descreve como o "homem primitivo" chegou a ser social e como "[os homens] teriam advertido uns aos outros dos perigos, e teriam proporcionado ajuda mútua ante os ataques. Tudo isto implica um certo grau de simpatia, de fidelidade, de coragem". Descreve "quando duas tribos de homens primitivos... entravam em competição, se uma compreendesse (...) um maior número de membros corajosos, bem dispostos, e fiéis, sempre prontos para avisar do perigo, para ajudar e para defender-se mutuamente, ninguém duvida que esta tribo teria maior êxito e venceria a outra. É preciso levar em conta que importância tiveram a fidelidade e valentia nas incessantes guerras selvagens. A vantagem que têm os soldados mais disciplinados sobre as indisciplinadas hordas é principalmente a confiança que cada homem sente em seus companheiros. ...A gente egoísta e litigiosa não é coesa, e sem unidade nada se pode levar a cabo" (Tradução nossa). Darwin exagera o grau em que as sociedades primitivas dedicavam a guerras entre si, mas a necessidade da cooperação como base para a sobrevivência não é menos importante em atividades como a caça e na distribuição do produto social. Esta é a outra cara da "luta pela existência", onde vemos o triunfo da solidariedade mútua e a confiança sobre a desunião e o egoísmo.

De Darwin a um futuro comunista

Anton Pannekoek não só foi um grande marxista, mas também um astrônomo diferenciado (uma cratera na lua e um asteróide receberam seu nome). Nenhum debate de "Marxismo e darwinismo" seria completo sem alguma referência a seu texto de 1909, que tinha esse nome [1]. Para começar, Pannekoek refina nossa compreensão da relação entre o marxismo e o darwinismo.

  • "o princípio da luta pela existência, formulado por Darwin e enfatizada por Spencer, tem um efeito diferente nos homens e nos animais. O princípio de que a luta conduz à perfeição das armas usadas na guerra, leva a resultados diferentes entre homens e animais. No animal, leva a um desenvolvimento contínuo dos órgãos naturais; que é a base da teoria da descendência, a essência do darwinismo. Nos homens, leva a um desenvolvimento contínuo das ferramentas, das técnicas e dos meios de produção. E isso é a base do marxismo. Aqui vemos que marxismo e darwinismo não são duas teorias independentes, cada qual aplicada ao seu domínio especial, sem ter nada em comum com a outra. Na realidade, o mesmo princípio subjaz ambas as teorias. Elas formam uma unidade. O novo curso tomado pela aparição do homem, a substituição dos órgãos naturais pelas ferramentas, faz com que esse princípio fundamental se manifeste diferentemente nos dois domínios; aquele do mundo animal que se desenvolve de acordo com o princípio de Darwin, enquanto entre o gênero humano é o marxismo que define a lei do desenvolvimento" [2]

Pannekoek também se deteu sobre a ideia dos instintos sociais sobre a base de contribuições de Darwin e Kautsky. "Aqueles grupos nos quais o instinto social é mais desenvolvido serão capazes de se manter, enquanto o grupo cujo instinto social é menor cairá como presa fácil dos seus inimigos ou não estará em condições de encontrar lugares favoráveis para a alimentação. Estes instintos sociais se tornam, portanto, os mais importantes e decisivos fatores que determinam quem sobreviverá na luta pela existência. É devido a isto que os instintos sociais elevaram-se à posição de fatores predominantes na luta pela sobrevivência" [3]

Os animais sociais estão em condições de vencer aqueles que travam a luta individualmente.

A distinção entre os animais sociais e o homo sapiens radica, entre outras coisas, na consciência. "Tudo o que se aplica aos animais sociais também se aplica ao homem. Nossos ancestrais macacos e os homens primitivos desenvolvidos destes eram todos indefesos, animais fracos que, como quase todos os macacos fazem, viviam em tribos. Aqui as mesmas motivações sociais e instintos tiveram que surgir e que, mais tarde, se transformaram em sentimentos morais no homem. Que nossos costumes e morais não são mais do que sentimentos sociais, sentimentos que encontramos nos animais, é sabido de todos; Darwin também falou sobre "os hábitos dos animais em relação a suas atitudes sociais que seriam chamadas moral entre os homens". A diferença está somente na medida da consciência; tão logo estes sentimentos sociais se tornem claros aos homens, eles assumem o caráter de sentimentos morais." [4]

Pannekoek critica também "o Darwinismo Social" quando mostra como "os darwinistas burgueses" caíram num círculo vicioso - o mundo descrito por Malthus e Hobbes é, sem surpresa, semelhante ao mundo descrito por Hobbes e Malthus!: "sob o capitalismo, o mundo humano muito se assemelha ao mundo dos animais predadores e é por esse exato motivo que os darwinistas burgueses procuraram pelo protótipo dos homens entre os animais que vivem isolados. A isso eles foram levados por sua própria experiência. Seu erro, no entanto, consistiu em considerar as condições capitalistas como as condições humanas eternas. A relação existente entre nosso sistema capitalista competitivo e os animais vivendo isolados, foi desta forma expressa por Engels em seu livro Anti-Duhring (página 293 na versão em inglês. Isso também pode ser encontrado na página 59 de Do socialismo utópico ao socialismo científico) como segue: "Finalmente, a indústria moderna e a abertura do mercado mundial fizeram a luta universal e ao mesmo tempo deram a ela virulência inaudita. As vantagens em condições naturais ou artificiais de produção agora decidem a existência ou não existência de capitalistas individuais bem como indústrias e países inteiros. Ele, que cai é sem nenhum remorso jogado a parte. É a luta darwinista da existência individual transferida da natureza para a sociedade com intensificada violência. As condições de existência natural para o animal aparecem como o termo final do desenvolvimento humano." " [5]

Mas as condições capitalistas não são eternas e o proletariado tem a capacidade para derrubá-las e de acabar com a divisão da sociedade em classes aos interesses antagónicos. "Com a abolição das classes todo o mundo civilizado se tornará uma grande comunidade produtiva. Esta comunidade será como qualquer outra comunidade coletiva. Dentro dessa comunidade a luta mútua entre membros cessará e prosseguirá contra o mundo exterior. Mas em lugar das pequenas comunidades teremos então uma comunidade mundial. Isso significa que a luta pela existência para. O combate contra o exterior não será mais uma luta contra nossa própria espécie, mas uma luta pela subsistência, uma luta contra a natureza [6]. Mas devido ao desenvolvimento da técnica e da ciência, dificilmente poderá ser chamado de luta. A natureza submete-se ao homem e com muito pouco esforço de sua parte ela o abastece com abundância. Aqui um novo curso se abre para o homem: o homem ascendendo do mundo animal e prosseguindo sua luta pela existência pelo uso das ferramentas, cessa e um novo capítulo na história da humanidade se inicia".

Car/ 28 de janeiro de 2009


[1] Ler Darwinismo e Marxismo, 1a e 2a parte. xxxx

[2] Idem. 2a parte.

[3] Idem..

[4] Idem..

[5] Idem..

[6] A expressão "luta contra a natureza" não é correta. Trata-se de uma luta para dominar a natureza, estabelecendo a comunidade humana mundial que supõe que esta seja capaz de viver em harmonia total com a natureza (nota da CCI).

Darwinismo e Marxismo - 2ª parte - (Anton Pannekoek)

  • 4587 leituras

Introdução da CCI

O artigo que publicamos a seguir é a segunda parte do folheto de Anton Pannekoek, Darwinismo e Marxismo, do qual publicamos os primeiros capítulos em nossa página. Esta segunda parte explica a evolução do Homem enquanto espécie social, Pannekoek se refere com razão ao segundo grande livro de Darwin, A origem do homem (1871), afirmando claramente que o mecanismo da luta pela existência mediante a seleção natural, desenvolvida em A origem das espécies não pode aplicar-se esquematicamente à espécie humana como o próprio Darwin o demonstrou. Em todos os animais sociais e mais precisamente no Homem, a cooperação e a ajuda mútua são a condição da sobrevivência coletiva do grupo em cujo seio não se elimina os mais fracos, mas que, ao contrário, protege-os. O motor da evolução da espécie humana não é, portanto, a luta competitiva pela existência e a vantagem para os seres vivos mais adaptados às condições do meio, mas sim o desenvolvimento de seus instintos sociais.

O folheto de Pannekoek demonstra que o livro de Darwin, A origem do homem, desmente categoricamente a ideologia reacionária do "darwinismo social" preconizado, sobretudo por Herbert Spencer (e e desmente também o eugenismo de Francis Galton), que se apoiava sobre o mecanismo da seleção natural descrito em A origem das espécies, para dar uma espécie de garantia científica à lógica do capitalismo, baseada na concorrência, a lei do mais forte e a eliminação dos "menos aptos". A todos os "darwinistas sociais" de ontem e hoje (aos quais Pannekoek designa com a expressão de "darwinistas burgueses"), Pannekoek responde muito claramente, baseando-se em Darwin, que "Isto lança uma luz inteiramente nova sobre as visões dos darwinistas burgueses. Estes proclamam que o extermínio do fraco é natural e necessário para prevenir a corrupção da raça e, por outro lado, a proteção dada ao fraco contribui para o declínio da raça. Mas o que na realidade vemos? Na natureza, no mundo animal, observamos que os fracos são protegidos; que não é pela sua própria força pessoal que eles se mantêm e que eles não são postos de lado por causa de sua fraqueza pessoal. Esta combinação não enfraquece o grupo, mas dá a ele nova força. O grupo animal no qual a ajuda mútua é melhor desenvolvida é melhor adaptado para se manter na luta. Aquilo que, de acordo com a concepção obtusa desses darwinistas, aparece como uma causa da fraqueza, é na realidade o contrário, a causa da força contra a qual os indivíduos fortes que realizam a luta individualmente não poderiam competir. Esta raça, supostamente em degeneração e corrompida, leva a vitória e prova na prática serem os mais habilidosos e melhores."

Nesta segunda parte do seu folheto, Pannekoek examina também, com grande rigor dialético, como a evolução do Homem lhe permitiu apartar-se da sua animalidade e de certas contingências da natureza, graças ao desenvolvimento conjunto da linguagem, do pensamento e das ferramentas. Contudo, recolhendo as análises desenvolvidas por Engels no seu artigo inacabado "O papel do trabalho no processo de transformação do macaco em homem" (publicado em Dialética da natureza), tende a subestimar o papel fundamental da linguagem no desenvolvimento da vida social da nossa espécie.

Este artigo de Pannekoek foi redigido há um século e, evidentemente, não podia integrar os descobrimentos científicos recentes, em particular na primatologia.  Os estudos recentes sobre o comportamento social dos macacos antropóides nos permitem afirmar que a linguagem humana não foi selecionada em primeiro lugar para a fabricação de ferramentas (como parece ter pensado Pannekoek, seguindo Engels) e sim, primeiro, para consolidar os vínculos sociais, sem os quais os primeiros seres humanos não teriam conseguido comunicar especialmente para construir abrigos, proteger-se dos predadores e das forças hostis da natureza, e logo transmitir seus conhecimentos de uma geração a outra.

Embora o texto de Pannekoek proporcione um marco muito bem argumentado do processo de desenvolvimento das forças produtivas desde a fabricação das primeiras ferramentas, tende a reduzi-las a satisfação das necessidades biológicas do Homem (saciar a fome especialmente), esquecendo-se assim do surgimento da arte (que apareceu rapidamente na história da humanidade), etapa também fundamental na extração da espécie humana do reino animal,

Por outra parte, como já vimos, se Pannekoek explica muito sinteticamente, mas com uma clareza e uma simplicidade notáveis, a teoria darwiniana da evolução do Homem, não vai, em nossa opinião, bastante longe na compreensão da antropologia de Darwin. Não põe em relevo, em especial, que com a seleção natural dos instintos sociais, a luta pela existência selecionou comportamentos anti-eliminatórios que deram origem à moral[1]. Ao empreender uma ruptura entre moral natural e moral social, entre natureza e cultura, Pannekoek não compreendeu totalmente a continuidade que há entre a seleção dos instintos sociais, a proteção dos fracos mediante a ajuda mútua, e tudo o que permitiu ao Homem entrar no caminho da civilização. Foi precisamente a extensão da solidariedade e da consciência de pertencer à mesma espécie o que permitiu à Humanidade, em certo estágio do seu desenvolvimento, enunciar sob o Império Romano (como menciona por outro lado o texto de Pannekoek) esta fórmula do cristianismo: "Todos os homens são irmãos".

CCI (12 de julho de 2009)

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Folheto de Pannekoek (continuação)

VI. Lei natural e teoria social

As falsas conclusões tiradas por Haeckel e Spencer sobre o socialismo não surpreendem. O darwinismo e o marxismo são duas teorias distintas, uma que se aplica ao mundo animal, enquanto a outra é aplicada à sociedade.

Elas se completam na medida em que, de acordo com a teoria da evolução de Darwin [8], o mundo animal se desenvolve até o estágio do homem e a partir daí, depois do animal se tornar homem, já é um campo de análise da teoria marxista. Quando, entretanto, alguém deseja levar a teoria de um domínio para outro, onde diferentes leis são aplicáveis, só se pode extrair deduções erradas.

Tal é o caso quando queremos verificar através da lei natural qual forma social é natural e mais em conformidade à realidade e isso é exatamente o que os darwinistas burgueses fizeram. Eles deduziram que as leis que governam o mundo animal, onde a teoria darwinista se aplica, valem com igual força no sistema capitalista e que, portanto, o capitalismo é uma ordem natural e deve durar para sempre. Na outra ponta da argumentação, houve alguns socialistas que desejaram provar que, segundo Darwin [8], o sistema socialista é o sistema natural.

Estes socialistas disseram:

Sob o capitalismo os homens não levam adiante a luta pela existência com ferramentas   iguais, mas sim com armas artificialmente desiguais. A superioridade natural daqueles que são mais saudáveis, mais fortes, mais inteligentes ou moralmente melhores não tem utilidade, enquanto que o nascimento, a classe ou a posse de dinheiro determina  esta luta. O socialismo, ao abolir todas estas desigualdades artificiais, dará provisões iguais a todos e somente então a luta pela existência prevalecerá, onde as superioridades pessoais reais serão os fatores determinantes. Segundo os princípios darwinianos, o modo de produção socialista será o verdadeiramente natural e lógico".

Estes argumentos críticos, enquanto não são ruins quando usados como refutação contra os darwinistas burgueses, são falhos. Ambos os argumentos, aqueles usados pelos darwinistas burgueses a favor do capitalismo e aqueles dos socialistas, que baseiam seu socialismo em Darwin, são fundamentalmente falsos. Ambos os argumentos, embora chegando a conclusões opostas, são igualmente falsos porque eles procedem de premissas erradas, ou seja, as da existência de um natural ou lógico sistema de sociedade único.

O marxismo nos ensinou que não há e nem existirá jamais um sistema social natural ou, dito de outra forma, todo sistema social é natural, pois todo sistema social é necessário e natural sob condições determinadas. Não há um só e definido sistema social que pode se reivindicar ser natural; os vários sistemas sociais ocupam o lugar de outros como resultado dos desenvolvimentos das forças produtivas. Cada sistema é, portanto, o natural para seu tempo particular de existência como será o seguinte numa época posterior. O capitalismo não é a única ordem natural, como a burguesia acredita e nem o socialismo é o único sistema natural, como alguns socialistas tentam provar. O capitalismo foi natural sob as condições do século XIX, como o feudalismo foi na idade média e como o socialismo será na época vindoura de desenvolvimento das forças produtivas. A tentativa de colocar certo sistema como o único natural e permanente é uma futilidade similar a de designar um animal qualquer e afirmar que este animal é o melhor e o mais perfeito entre todos os animais. O darwinismo nos ensina que todo animal é igualmente adaptado e igualmente perfeito na forma em que se ajusta ao seu ambiente especial e o marxismo nos ensina que todo sistema social é particularmente adaptado às suas condições e que neste sentido, pode ser chamado de bom e perfeito.

Aqui reside a principal razão pela qual os esforços dos darwinistas burgueses em defender os fundamentos do sistema capitalista decadente estão fadados ao fracasso. Argumentos baseados na ciência natural, quando aplicados a questões sociais, devem quase sempre levar a conclusões erradas. Isto acontece porque, enquanto a natureza é muito lenta em seu desenvolvimento e mudanças no marco da história humana são imperceptíveis, a sociedade humana, não obstante, é submetida a rápidas e constantes mudanças. Para entender a força propulsora e a causa do desenvolvimento social, devemos estudar a sociedade como tal. O marxismo e o darwinismo devem permanecer em seus próprios domínios; eles são independentes um do outro e não há ligação direta entre eles.

Aqui surge uma questão muito importante. Podemos parar na conclusão de que o marxismo se aplica somente à sociedade e o darwinismo somente ao mundo orgânico e que nenhuma destas teorias é aplicável ao domínio da outra? Na prática é muito conveniente ter um princípio para o mundo dos homens e um outro para o mundo animal. Ao fazê-lo, entretanto, esquecemos que o homem também é um animal. O homem se desenvolveu do animal e as leis que regem o mundo animal não podem, de repente, perder sua aplicabilidade para o homem. É verdade que o homem é um animal muito peculiar, mas se esse é o caso, é necessário encontrar nessas particularidades o porquê daqueles princípios aplicáveis a todos os animais não servirem aos homens e porque eles assumem uma forma diferente.

Aqui nós chegamos a outro problema. Os darwinistas burgueses não têm este problema; eles simplesmente declaram que o homem é um animal e sem maiores cerimônias lançam-se a aplicar princípios darwinistas aos homens. Vimos em quais conclusões errôneas eles chegam. Para nós esta questão não é tão simples; devemos primeiro estar esclarecidos sobre as diferenças entre homens e animais e então poderemos ver porque, no mundo dos homens, os princípios darwinistas se transformam em princípios totalmente diferentes, quer dizer, se transformam em marxismo.

VII. A Sociabilidade do Homem

A primeira peculiaridade que vemos no homem é que ele é um ser social. Nisto ele não difere de todos os animais, pois mesmo nestes últimos há muitas espécies que vivem socialmente. Mas o homem difere de todos os animais que observamos até agora ao lidar com a teoria darwinista; ele difere daqueles animais que não vivem socialmente, mas que lutam uns contra os outros pela sobrevivência. Não é com os animais predadores, os quais vivem isoladamente e que constituem modelos pelos Darwinistas burgueses, que o homem deve ser comparado, mas com aqueles que vivem socialmente. A sociabilidade dos animais é uma força nova de que não falamos até aqui; uma força que requer novas relações e novas qualidades entre os animais.

É um erro considerarmos a luta pela sobrevivência como a única e onipotente força que dá forma ao mundo orgânico. A luta pela existência é a principal força que causa a origem de novas espécies, mas Darwin [8] sabia muito bem que outros fatores cooperavam para dar a configuração às formas, hábitos e peculiaridades do mundo orgânico. Em seu livro, A Origem do Homem, Darwin, de forma minuciosa tratou da seleção sexual e mostrou que a competição de machos por fêmeas aumentava e desenvolvia as cores alegres dos pássaros e borboletas, bem como o canto dos pássaros. Ele também dedicou um capítulo à vida em sociedade. Muitas ilustrações nesta direção são também encontradas no livro de Kropotkin Ajuda mútua como um fator na evolução. A melhor representação dos efeitos da sociabilidade é dada no livro de Kautsky Ética e concepção materialista da história.

Quando um número de animais vive em um grupo, rebanho ou manada, travam a luta pela sobrevivência em comum contra o mundo exterior; dentro do grupo a luta pela existência cessa. Os animais que vivem socialmente não travam uma luta uns contra os outros, na qual o fraco sucumbe; pelo contrário, o fraco aproveita as mesmas vantagens que o forte. Quando alguns animais têm uma vantagem devida à maior força, faro mais fino, experiência em encontrar a melhor pastagem ou em despistar o inimigo, esta vantagem não é revertida somente para o melhor adaptado, mas também para o grupo inteiro, inclusive os menos dotados. O fato dos indivíduos menos dotados se juntar com os melhores adaptados permite aos primeiros superar, até certo ponto, as conseqüências de suas propriedades menos favoráveis.

Esta combinação de diferentes forças  se efetua em benefício do conjunto de seus membros. Ela dá ao grupo uma nova e muito maior força do que qualquer individuo, mesmo a os mais fortes. É devido a esta forte união que os herbívoros indefesos podem repelir animais predadores. É só por meio desta união que alguns animais são capazes de proteger seus filhotes. A vida social é muito proveitosa para o conjunto dos membros do grupo.

Uma segunda vantagem da sociabilidade resulta do fato de que onde os animais vivem em sociedade, existe a possibilidade de divisão do trabalho. Tais animais mandam vigias ou colocam sentinelas cujo objetivo é velar pela segurança de todos enquanto outros passam o tempo ou comendo ou recolhendo alimentos, contando com sua defesa para preveni-los do perigo.

Tal sociedade animal se torna, em alguns aspectos, uma unidade, um organismo único. Naturalmente, a relação permanece mais fraca do que a relação entre as células do corpo de um animal individual. Porém, os membros ficam iguais entre eles (só se desenvolve uma distinção orgânica no caso das formigas, das abelhas e de alguns outros insectos) e são capazes, claro, em certas condições mais desfavoráveis, de viver isoladamente uns dos outros. Entretanto, o grupo se torna um corpo coeso e deve haver alguma força que unifica entre eles os diferentes membros individuais.

Esta força não é outra senão as motivações sociais, o instinto que os põem juntos e permitem desse jeito a perpetuação do grupo. Cada animal deve colocar o interesse do grupo como um todo acima dos seus; deve sempre agir instintivamente para o beneficio do grupo sem pensar em si mesmo. Se cada um dos fracos herbívoros pensa só em si mesmo e foge quando atacado por um animal predador, cada um se importando apenas com sua própria vida, a manada reunida se dissemina novamente. Somente quando um forte sentimento de auto-preservação é neutralizado por um motivo mais forte de união e cada animal arrisca sua vida para a proteção de todos, então o rebanho permanece e aproveita as vantagens de permanecer agrupado. Em tais casos, auto-sacrifício, bravura, devoção, disciplina e fidelidade devem surgir, pois onde essas qualidades não existem, a sociedade se dissolve; só pode haver sociedade com estas qualidades.

Estes instintos, enquanto têm sua origem no hábito e na necessidade, são fortalecidos pela sobrevivência. Cada animal de um rebanho ainda permanece em uma luta competitiva com os mesmos animais de uma outra manada; aqueles que são mais bem adaptados para resistir ao inimigo sobreviverão, enquanto aqueles mais pobremente equipados perecerão. Aqueles grupos nos quais o instinto social é mais desenvolvido serão capazes de se manter, enquanto o grupo cujo instinto social é menor cairá como presa fácil dos seus inimigos ou não estará em condições de encontrar lugares favoráveis para a alimentação. Estes instintos sociais se tornam, portanto, os mais importantes e decisivos fatores que determinam quem sobreviverá na luta pela existência. É devido a isto que os instintos sociais elevaram-se à posição de fatores predominantes na luta pela sobrevivência.

Isto lança uma luz inteiramente nova sobre as visões dos darwinistas burgueses. Estes proclamam que o extermínio do fraco é natural e necessário para prevenir a corrupção da raça e, por outro lado, a proteção dada ao fraco contribui para o declínio da raça. Mas o que na realidade vemos? Na natureza, no mundo animal, observamos que os fracos são protegidos; que não é pela sua própria força pessoal que eles se mantêm e que eles não são postos de lado por causa de sua fraqueza pessoal. Esta combinação não enfraquece o grupo, mas dá a ele nova força. O grupo animal no qual a ajuda mútua é melhor desenvolvida é melhor adaptado para se manter na luta. Aquilo que, de acordo com a concepção obtusa desses darwinistas, aparece como uma causa da fraqueza, é na realidade o contrário, a causa da força contra a qual os indivíduos fortes que realizam a luta individualmente não poderiam competir. Esta raça, supostamente em degeneração e corrompida, leva a vitória e prova na prática serem os mais habilidosos e melhores.

Aqui podemos ver completamente como são míopes, estreitos e anticientíficos os clamores dos darwinistas burgueses. Suas leis naturais e suas concepções do que é natural são derivadas de uma parte do mundo animal, aquela parte com a qual o homem se assemelha menos, os animais solitários, enquanto que os animais que praticamente vivem de modo parecido com o homem, nas mesmas circunstâncias, são deixados sem qualquer observação. A razão para isto pode ser encontrada nas próprias circunstâncias da sua existência; eles pertencem a uma classe onde cada um compete individualmente contra o outro, portanto, eles vêem entre os animais somente esta forma de luta pela existência que corresponde à concorrência burguesia. É por esta razão que eles deixam passar sem análise aquelas formas de luta que são de enorme importância para os homens.

É verdade que estes darwinistas burgueses estão cientes do fato de que tudo, no mundo animal como humano, não é reduzido a mero egoísmo. Os cientistas burgueses dizem muito freqüentemente que todo homem é possuidor de dois sentimentos, o egoísta, ou amor-próprio e o altruísta, ou amor aos outros. Mas como eles não sabem a origem social deste altruísmo, não podem entender suas limitações e condições. Altruísmo em suas bocas se transforma em uma idéia muito abstrata que eles não conseguem tratar.

Tudo o que se aplica aos animais sociais também se aplica ao homem. Nossos ancestrais macacos e os homens primitivos desenvolvidos destes eram todos indefesos, animais fracos que, como quase todos os macacos fazem, viviam em tribos. Aqui as mesmas motivações sociais e instintos tiveram que surgir e que, mais tarde, se transformaram em sentimentos morais no homem. Que nossos costumes e morais não são mais do que sentimentos sociais, sentimentos que encontramos nos animais, é sabido de todos; Darwin também falou sobre "os hábitos dos animais em relação a suas atitudes sociais que seriam chamados moral entre os homens". A diferença está somente na medida da consciência; tão logo estes sentimentos sociais se tornem claros aos homens, eles assumem o caráter de sentimentos morais. Aqui vemos que a concepção moral - que os autores burgueses consideram como a principal distinção entre homens e animais - não é específica aos homens, mas é um produto direto das condições existentes no mundo animal.

É na natureza da origem destes sentimentos morais que eles não vão além do grupo social que o animal ou o homem pertence. Estes sentimentos servem ao objetivo prático de manter o grupo unido; fora disso são inúteis. No mundo animal, a extensão e natureza do grupo social são determinadas pelas circunstâncias da vida e, portanto, o grupo quase sempre permanece o mesmo. Entre os homens, entretanto, os grupos, estas unidades sociais, estão sempre mudando de acordo com o desenvolvimento econômico e isto também muda o domínio de validez dos instintos sociais.

Os grupos antigos, na origem dos troncos dos selvagens e bárbaros, eram mais fortemente unidos do que os grupos animais já que estavam em concorrência com outros grupos, mas também porque faziam diretamente a guerra aos mesmos. Relacionamento familiar e uma língua em comum fortaleceram esta união ainda mais. Cada indivíduo dependia totalmente do apoio de sua tribo. Sob tais condições, os instintos sociais, os sentimentos morais, a subordinação do individual ao coletivo, tiveram de se desenvolver ao máximo. Com um desenvolvimento cada vez maior da sociedade, as tribos são dissolvidas e seu lugar tomado por entidades econômicas maiores, reunidas em cidades e povos.

Formações antigas são substituídas por novas e os membros desses grupos travam a luta pela existência em comum contra outros povos. Na mesma proporção do desenvolvimento econômico, o tamanho destas entidades aumenta, no seio das quais a luta de cada um contra o outro diminui e os sentimentos sociais se ampliam. Ao final dos tempos antigos, encontramos todos os povos conhecidos ao redor do Mar Mediterrâneo formando uma união, o Império Romano. Nessa época surgiu também a doutrina que estende os sentimentos morais  à humanidade inteira e formula a máxima de que todos os homens são irmãos.

Quando consideramos nossos tempos atuais, vemos que economicamente todos os povos formam uma unidade, embora muito frágil; no entanto reina um sentimento -embora relativamente abstrato- de uma fraternidade que engloba o conjunto dos povos civilizados. Mais forte ainda é o sentimento nacional, particularmente entre a burguesia, pois a nações constituem as entidades que servem à luta constante de uma burguesia contra outra. Os sentimentos sociais são mais fortes entre membros de uma mesma classe, pois as classes constituem as unidades sociais essenciais que expressam os interesses convergentes de seus membros. Assim vemos que as entidades sociais e os sentimentos sociais mudam na sociedade, segundo o progresso no desenvolvimento econômico. [2]

VIII. Ferramentas, pensamento e linguagem

A sociabilidade, com suas conseqüências, os sentimentos morais, é uma peculiaridade que diferencia o homem de alguns, mas não de todos os animais. Existem, entretanto, algumas peculiaridades que pertencem somente ao homem e que o separam do restante do mundo animal. Em primeiro lugar, a linguagem, em segundo, o raciocínio. O homem é também o único animal que usa ferramentas fabricadas por ele.

Os animais têm uma leve propensão em possuir estas propriedades, mas entre os homens estas desenvolveram características essencialmente novas. Muitos animais têm algum tipo de voz e por meio de sons eles podem comunicar suas intenções, mas somente o homem produz sons que servem como um meio de nomear coisas e ações. Animais também têm cérebros com os quais eles pensam, mas a mente humana mostra, como veremos mais tarde, um fato inteiramente novo, que chamamos pensamento racional ou abstrato. Animais também fazem uso de coisas inanimadas que servem para certos fins; por exemplo, a construção de ninhos. Macacos às vezes usam paus ou pedras, mas somente o homem usa ferramentas que ele mesmo fabrica deliberadamente com fins particulares. Estas tendências primitivas entre os animais nos mostram que as peculiaridades possuídas pelo homem lhes foram conseguidas, não por meio do milagre da criação, mas por um lento desenvolvimento. Compreender como desenvolveram no homem os primeiros sinais da linguagem, do pensamento e do uso de ferramentas, para chegar a novas capacidades é algo de primeira importância, pois implica a problemática da humanização do animal.

Só o ser humano, como animal social, foi capaz desta evolução. Animais vivendo isoladamente não podem chegar a tal estágio de desenvolvimento. Fora do âmbito da sociedade, a linguagem é tão inútil quanto um olho na escuridão e está fadada a morrer. A linguagem só é possível em sociedade e só nela é necessária como meio de entendimento entre seus membros. Todos os animais sociais possuem alguns meios de entendimento entre si para exprimir suas intenções, pois de outra maneira, eles não seriam capazes de executar certos planos conjuntamente. Os sons que foram necessários como meio de comunicação para o homem primitivo na concretização de suas tarefas devem ter se desenvolvido lentamente na invenção de nomes de atividades e depois nomes de coisas.

O uso de ferramentas também pressupõe uma sociedade, por isso é somente nela que as aquisições podem ser preservadas. Num estado de vida isolada cada um tem que fazer descobertas por si mesmo e, com a morte do descobridor, morre também a descoberta e cada um tem de começar tudo de novo, do zero. É somente através da sociedade que a experiência e o conhecimento de gerações anteriores podem ser preservados, perpetuados e desenvolvidos. Em um grupo ou tribo alguns poucos podem morrer, mas o grupo, de certa maneira é imortal. Ele permanece. O conhecimento no uso de ferramentas não nasceu com o homem, mas foi adquirido depois. Por isso é indispensável uma tradição intelectual, algo que só é possível na sociedade.

Enquanto essas características especiais do homem são inseparáveis da sua vida social, elas também mantêm fortes relações mútuas. Essas características não se desenvolveram isoladamente, mas todas progrediram em conjunto. O pensamento e a linguagem só podem existir e se desenvolver conjuntamente e isso é algo que cada um pode comprovar quando tentar representar a natureza de seu próprio pensamento. Quando pensamos ou refletimos, nós, na verdade, falamos conosco mesmos; observamos então que nos é impossível pensar claramente sem usar palavras. Onde não pensamos com palavras nossos pensamentos permanecem confusos e não podemos associar os vários pensamentos específicos. Qualquer um pode perceber isso por experiência própria. Isso se dá porque o assim chamado raciocínio abstrato é um pensamento perceptivo e pode acontecer apenas por meio de conceitos. Ora, nós podemos designar e sustentar este conceito apenas por meio de nomes. Toda tentativa de estender nossas mentes, toda tentativa de avançar nosso conhecimento tem de começar por distinguir e classificar através de nomes ou por dar aos velhos nomes um significado mais preciso. A linguagem é o corpo da mente, o material pelo qual toda a ciência humana pode ser construída.

A diferença entre a mente humana e a do animal foi muito adequadamente mostrada por Schopenhauer numa citação que também é feita por Kautsky [9] no seu livro Ética e Concepção Materialista da História (página 139-40 da edição em inglês). As ações dos animais dependem de percepções e motivações visuais, do que vê, ouve ou observa. Podemos sempre dizer que o que induziu o animal a fazer esse ou aquele ato, pois nós também podemos vê-lo se ficarmos atentos. Com os homens, no entanto, é completamente diferente. Não podemos prever o que ele irá fazer, pois não sabemos as causas que o induzem ao ato; estas são pensamentos em sua cabeça. O homem raciocina e, ao fazê-lo, todo seu conhecimento, o resultado de experiência anterior entra em ação e é então que decide como agir. As ações de um animal dependem de impressões imediatas, enquanto as do homem dependem de concepções abstratas, de pensamentos e conceitos. O homem "é ao mesmo tempo influenciado por delicadas causas invisíveis e sutis. Dessa maneira todos os seus movimentos dão a impressão de serem guiados por princípios e intenções que dão a eles a aparência de independência e evidentemente os distinguem daqueles movimentos dos animais."

Devido às suas necessidades físicas, homens e animais são forçados a procurar satisfazê-las na natureza que os circunda. A percepção sensorial é o impulso imediato e o motivo inicial; a satisfação dos desejos é o objetivo e fim do ato apropriado. Com o animal, a ação acontece imediatamente após a impressão. Ele vê sua presa ou comida e imediatamente salta, agarra, come ou faz o que é necessário para agarrá-la e isso é herdado como instinto. O animal ouve algum som hostil e imediatamente foge se suas pernas são bastante desenvolvidas para correr rapidamente ou deita como morto para não ser visto se suas cores servem como um protetor. No homem, no entanto, entre as impressões e atos vem à sua cabeça uma longa cadeia de pensamentos e considerações. Suas ações irão depender do resultado dessas considerações.

De onde vem essa diferença? Não é difícil ver que está estreitamente associado com o uso de ferramentas. Da mesma maneira que o pensamento insere-se entre as percepções e as ações do homem, a ferramenta insere-se entre o homem e o objeto que ele procura segurar. Além disso, desde que a ferramenta fica entre o homem e os objetos externos, é também para isso que o pensamento deve surgir entre a percepção e a execução. O homem não parte de mãos vazias para seu objetivo, seja seu inimigo ou a fruta a ser colhida, mas avança sobre ele de uma maneira indireta, pega uma ferramenta, uma arma (armas também são ferramentas) a qual usa para colher a fruta ou contra o animal hostil; por isso, em sua mente, percepção sensorial não pode ser seguida imediatamente pela ação, mas a mente deve percorrer um caminho: deve pensar primeiro nas ferramentas e então seguir para o objetivo. O percurso material causa o percurso mental; o pensamento suplementar é o resultado da ferramenta suplementar para a execução do ato.

Aqui tomamos o caso bem simples de ferramentas primitivas e os primeiros estágios de desenvolvimento mental. Quanto mais complicada se torna a técnica maior é o percurso material e como resultado a mente tem de percorrer caminhos maiores. Quando cada um fazia suas próprias ferramentas, a lembrança da fome e da luta devia orientar a mente humana para a ferramenta e sua fabricação para que ficasse pronta para ser utilizada. Aqui temos uma mais longa cadeia de pensamentos entre as percepções e a satisfação final das necessidades do homem. Quando voltamos para nossa própria época, vemos que essa cadeia é muito longa e complicada. O trabalhador que é demitido prevê a fome que está destinada a chegar; ele compra um jornal diário para ver se há alguma vaga para operários; ele vai à procura de ofertas de emprego, se oferece por um salário que apenas receberá mais tarde, com qual poderá comprar comida e se proteger da fome. Tudo isso será em primeiro lugar deliberadamente raciocinado na sua mente antes de ser colocado em prática. Que longo e tortuoso caminho que  a mente deve fazer antes de alcançar seu destino. Mas está de acordo com a elaboração complexa da nossa sociedade actual, no seio da qual o homem pode satisfazer suas necessidades só através de uma técnica altamente desenvolvida.

Schopenhauer chamava a nossa atenção sobre isso, o procedimento na mente do pensamento que antecipa a ação e deve ser entendido como a necessária conseqüência do uso de ferramentas. Mas não alcançamos ainda o essencial. O homem, no entanto, não administra apenas uma ferramenta e sim muitas, as quais aplica para diferentes propósitos e das quais pode escolher. O homem, por causa dessas ferramentas, não é como o animal. O animal nunca avança além das ferramentas e armas que a natureza lhe ofereceu, enquanto o homem faz suas ferramentas artificiais e as modifica de acordo com a sua vontade. Aqui reside a diferença fundamental entre o homem e o animal. O homem, sendo um animal que usa diferentes ferramentas, deve possuir a capacidade mental de escolhê-las. Em sua cabeça vários pensamentos vêm e vão, sua mente considera todas as ferramentas e as conseqüências de sua aplicação e suas ações dependem dessas considerações. Ele também combina um pensamento com outro e aferra-se rapidamente à idéia que encaixa com seus propósitos. Esta deliberação, esta comparação livre entre uma série de seqüências de reflexão, cada uma escolhida individualmente, esta propriedade que diferencia o raciocino humano do raciocino animal deve direitamente ser ligada ao uso de ferramentas escolhidas a vontade.

Os animais não têm essa capacidade; seria desnecessário para eles em razão de que não saberiam o que fazer com ela. Devido à sua forma corporal, suas ações são definidas dentro de estreitas fronteiras. O leão pode apenas pular sobre sua presa, mas não pode pensar em pegá-la correndo atrás dela. A lebre é formada de tal modo que possa fugir; não tem outros meios de defesa embora seja possível que gostaria de ter. Esses animais não têm nada a considerar exceto o momento de correr ou pular, o momento em que as percepções alcançam uma força suficiente para disparar a ação. Todo animal é formado de tal modo a se adaptar a algum modo de vida definido. Suas ações se tornam e são transmitidas como fortes hábitos, instintos. Esses hábitos não são imutáveis. Os animais não são máquinas, quando trazidos a diferentes circunstâncias eles podem adquirir hábitos diferentes. Fisiologicamente e considerando suas capacidades, o procedimento do cérebro não é diferente do nosso. A diferença reside unicamente praticamente em nível do resultado. Não é na qualidade de seus cérebros, mas na conformação de seus corpos que residem as restrições do animal. As ações do animal são limitadas por sua forma corpórea e pelo ambiente e consequentemente têm pouca necessidade de reflexão. O raciocínio humano seria, portanto, uma faculdade totalmente desnecessária para ele e apenas conduziria a um dano, ao invés de um benefício.

O homem, por outro lado, deve possuir essa habilidade porque exercita seu discernimento no uso de armas e ferramentas, as quais escolhe de acordo com exigências específicas. Se deseja matar o veloz cervo, ele pega o arco e flecha; se encontra o urso, usa o machado e se deseja abrir certa fruta dura, ao quebrá-la, pega um martelo. Quando ameaçado pelo perigo, o homem tem que considerar se deve correr ou se defender lutando com armas. Possuir um espírito alerta é próprio do movimento do mundo animal, mas a habilidade de pensar e raciocinar é indispensável ao homem no uso de ferramentas artificiais.

Essa forte conexão entre pensamentos, linguagem e ferramentas, cada qual impossível sem a outra, mostra que elas devem ter se desenvolvido ao mesmo tempo. Como esse desenvolvimento aconteceu, podemos apenas supor. Foi provavelmente uma mudança nas circunstâncias da vida que mudou os homens de seus antecessores macacos. Tendo migrado das florestas, o habitat original dos macacos, para as planícies, o homem teve de atravessar uma mudança completa de vida. A diferença entre os pés para correr e as mãos para agarrar devem ter-se desenvolvido então. Este ser trouxe das suas origens as duas condições fundamentais para um desenvolvimento a um nível superior: a sociabilidade e a mão do macaco, bem adaptada para agarrar objetos. Os primeiros objetos rudes, tais como pedras ou paus, vieram às mãos sem que fossem procurados e foram jogados fora. Isso deve ter se repetido tão freqüentemente instintiva e inconscientemente que deve ter deixado uma marca nas mentes daqueles homens primitivos.

Para o animal, a natureza circundante é uma unidade indiferenciada de cujos detalhes é inconsciente. Ele não pode distinguir entre os vários objetos, pois lhe falta o nome das partes distintas e dos objetos que nos permitem distingui-los. Na verdade este meio ambiente não é imutável. Às mudanças que significam comida ou perigo, o animal reage de maneira apropriada, por ações específicas. Globalmente, entretanto, a natureza fica indiferenciada e nosso homem primitivo, no seu mais baixo estágio, deve ter estado no mesmo nível de consciência. A partir desta globalidade se impõem progressivamente, pelo próprio trabalho, conteúdo principal da existência humana, essas coisas que serão utilizadas pelo trabalho. A ferramenta, às vezes, é qualquer elemento morto do mundo exterior e que age, às vezes, como se fosse um órgão do nosso próprio corpo, que é inspirado por nossa vontade, se situa por sua vez fora do mundo exterior e fora do nosso próprio corpo. O homem primitivo não percebe essas dimensões óbvias. A essas ferramentas, sendo objetos muito importantes, logo foram dadas algumas designações, foram designadas por um som que ao mesmo tempo nomeava a atividade específica. Devido à sua designação, a ferramenta se destaca como coisa peculiar do resto da natureza circundante. O homem começou assim a analisar o mundo por conceitos e nomes, a autoconsciência fez sua aparição, objetos artificiais foram intencional e conscientemente procurados e usados com pleno conhecimento no trabalho.

Esse processo - pois é um processo muito lento - marca o início de nossa transformação em homem. Assim que os homens deliberadamente procuraram e aplicaram certas ferramentas, nós podemos dizer que estes últimos foram "produtos"; desse estágio para a fabricação de ferramentas, há apenas um passo. O homem nasceu com o primeiro nome e o primeiro pensameno abstrato. Restava ainda um longo caminho: as primeiras ferramentas brutas diferiam de acordo com o uso; da pedra cortante temos a faca, o dardo, a broca e a lança; do pau nós temos a machadinha. Assim o homem primitivo é apto a enfrentar a fera e a floresta; ele se apresenta já como o futuro rei da terra. Com a maior diferenciação posterior das ferramentas, servindo mais tarde para a divisão do trabalho, a linguagem e o pensamento se desenvolveram em formas mais ricas e novas, e reciprocamente, o pensamento conduz o homem para o uso das ferramentas de um modo melhor, para aperfeiçoar as velhas e inventar novas.

Então vemos que uma coisa traz a outra. A prática das relações sociais e do trabalho são a fonte na qual a técnica, o pensamento, as ferramentas e a ciência têm sua origem e se desenvolvem continuamente. Pelo seu trabalho, o homem-macaco ascendeu à humanidade real. Pelo seu trabalho o homem macaco se elevou à verdadeira humanidade. O uso de ferramentas marca a grande ruptura que vai constantemente se ampliado entre os homens e os animais.

IX. Órgãos animais e ferramentas humanas

A principal diferença entre os homens e os animais reside neste ponto. O animal obtém sua comida e vence seus inimigos com seus próprios órgãos corporais; o homem faz a mesma coisa com a ajuda de ferramentas artificiais. Órgão vem do grego organon que também significa ferramentas ou instrumento. Os órgãos são ferramentas naturais do animal, um crescimento próprio do animal. As ferramentas são os órgãos artificiais dos homens. Melhor ainda, o que o órgão é para o animal, a mão e a ferramenta são para o homem. As mãos e as ferramentas realizam as funções que o animal deve realizar com seus próprios órgãos. Devido à construção da mão para segurar várias ferramentas, torna-se um órgão geral adaptado a todos os tipos de trabalho; as ferramentas são as coisas inanimadas que são apanhadas pela mão cada uma, por sua vez, e fazem dela um órgão que pode realizar uma variedade de funções.

Com a divisão dessas funções, um amplo campo de desenvolvimento é aberto para os homens que os animais não têm conhecimento. Pelo fato de a mão humana poder usar várias ferramentas, pode combinar as funções de todos os órgãos possíveis possuídos pelos animais. Todo animal é construído e adaptado para certo ambiente e modo de vida. O homem com suas ferramentas está adaptado a todas as circunstâncias e equipado para todos ambientes. O cavalo é feito para a pradaria e o macaco é feito para a floresta. Na floresta o cavalo estaria tão desamparado quanto o macaco estaria se trazido para a pradaria. O homem por outro lado, usa o machado na floresta e a pá na pradaria. Com suas ferramentas, pode forçar seu caminho em todas as partes do mundo e se estabelecer por toda parte. Enquanto quase todos os animais podem viver em regiões específicas, tais como suprem os seus desejos e se levados a diferentes regiões não podem existir, o homem conquistou o mundo inteiro. Todo animal tem, como um zoólogo expressou certa vez, sua força pelo meio da qual se mantém na luta pela existência e sua fraqueza, devido a qual cai presa de outros e não pode se multiplicar. Nesse sentido, o homem tem apenas força e não fraqueza. Devido às suas ferramentas, o homem é igual a todos os animais. Enquanto essas ferramentas não permanecem estagnadas, mas melhoram continuamente, o homem cresce acima de todo animal. Suas ferramentas fazem dele mestre de toda criação, o Rei da Terra.

No mundo animal há também um contínuo desenvolvimento e aperfeiçoamento de órgãos. Esse desenvolvimento, no entanto, está ligado com as mudanças do corpo do animal, que faz o desenvolvimento dos órgãos infinitamente lento, como ordenado por leis biológicas. No desenvolvimento do mundo orgânico, milhares de anos equivalem a pouco. O homem, no entanto, transferindo seu desenvolvimento orgânico para objetos externos foi capaz de se libertar da cadeia da lei biológica. As ferramentas podem ser transformadas rapidamente e a técnica faz progressos tão rápidos que, em comparação com o desenvolvimento dos órgãos animais, deve ser chamada de maravilhoso. Devido a esse novo curso, o homem tem sido capaz, dentro do curto período de alguns milhares de anos, de elevar-se acima do mais alto animal, tanto quanto que este último ultrapassa o menos evoluído. Com a invenção dessas ferramentas artificiais, o homem conseguiu de certa maneira colocar um fim à evolução animal. O filho do macaco se desenvolveu com uma velocidade fenomenal até ser um poder divino e tomar posse da terra com o seu domínio exclusivo. O calmo e até aqui livre desenvolvimento do mundo orgânico cessa de desenvolver de acordo com a teoria darwinista. É o homem que age como criador, domador, cultivador no mundo das plantas e dos animais; e é o homem que capina É o homem que muda todo o ambiente, fazendo as formas avançadas das plantas e animais se ajustarem ao seu objetivo e vontade.

Com a aparição das ferramentas, mudanças no corpo humano cessaram. Os órgãos humanos permanecem o que eram, com a exceção notória do cérebro. O cérebro humano teve que se desenvolver junto com as ferramentas; e, de fato, vemos que a diferença entre a mais alta e a mais baixa raça do gênero humano consiste principalmente no conteúdo de seu cérebro. Mas até mesmo o desenvolvimento deste órgão teve de parar num certo estágio. Desde o começo da civilização, certas funções do cérebro são cada vez mais substituídas por meios artificiais; a ciência é entesourada em livros. Nossa faculdade do raciocínio de hoje não é muito melhor do que a possuída pelos gregos, romanos ou até dos germânicos, mas nosso conhecimento tem crescido imensamente e isso é muito devido ao fato de que o órgão mental estava aliviado por seus substitutos, os livros.

Tendo aprendido a diferença entre os homens e os animais, vamos agora considerar como eles são afetados pela luta pela existência. Que essa luta é a causa da perfeição, na medida em que não se pode negar que o que é imperfeito é eliminado. Nessa luta os animais se tornam cada vez mais perfeitos. Aqui, no entanto, é necessário ser mais preciso na expressão e na observação do que consiste a perfeição. Sendo assim, não podemos mais dizer que os animais como um todo lutam e se tornam perfeitos. Os animais lutam e competem por meio de seus órgãos específicos, os que são determinantes na luta pela sobrevivência. Os leões não travam a luta por meio de suas caudas; as lebres não dependem dos seus olhos; nem os falcões são bem sucedidos por meio de seus bicos. Os leões levam adiante a luta por meio de seus músculos impulsores e seus dentes; as lebres confiam em suas patas e ouvidos e falcões são bem sucedidos por causa de seus olhos e asas. Se agora perguntarmos o que são essas lutas e o que compete, a resposta é a luta dos órgãos que se tornam cada vez mais perfeitos. Os músculos e dentes do leão, as patas e ouvidos da lebre e os olhos e as asas do falcão conduzem a luta. É na luta que os órgãos se tornam perfeitos. O animal como um todo depende desses órgãos e compartilha do seu destino, o dos fortes que serão vitoriosos ou dos fracos que serão derrotados.

Vamos agora fazer a mesma questão sobre o mundo humano. Os homens não lutam por meio de seus órgãos naturais, mas por meio de órgãos artificiais, por meio de ferramentas (e por armas que devemos entender como ferramentas). Aqui, também, o princípio da perfeição e da eliminação do imperfeito, através da luta, permanece verdadeiro. As ferramentas lutam e isso conduz a uma ainda maior perfeição de ferramentas. Aqueles grupos de tribos que usam melhores ferramentas e armas podem melhor assegurar sua subsistência e quando se torna uma luta direta com outra raça, a raça que é mais bem equipada com ferramentas artificiais irá ganhar e exterminará os mais fracos. As grandes melhorias da técnica e dos métodos de trabalho nas origens da humanidade, como introdução da agricultura e da criação de gado, fazem do homem uma raça fisicamente mais forte que sofre menos da dureza dos elementos naturais. Aquelas raças cujo material técnico é mais bem desenvolvido podem caçar ou subjugar aquelas cujos auxiliares artificiais não são desenvolvidas, podem ter o controle das melhores terras e desenvolver a civilização. A dominação da raça européia [3] é baseada sobre a supremacia técnica.

Aqui vemos que o princípio da luta pela existência, formulado por Darwin [8] e enfatizada por Spencer, tem um efeito diferente nos homens e nos animais. O princípio de que a luta conduz à perfeição das armas usadas na guerra, leva a resultados diferentes entre homens e animais. No animal, leva a um desenvolvimento contínuo dos órgãos naturais; que é a base da teoria da descendência, a essência do darwinismo. Nos homens, leva a um desenvolvimento contínuo das ferramentas, das técnicas e dos meios de produção. E isso é a base do marxismo.

Aqui vemos que marxismo e darwinismo não são duas teorias independentes, cada qual aplicada ao seu domínio especial, sem ter nada em comum com a outra. Na realidade, o mesmo princípio subjaz ambas as teorias. Elas formam uma unidade. O novo curso tomado pela aparição do homem, a substituição dos órgãos naturais pelas ferramentas, faz com que esse princípio fundamental se manifesta diferentemente nos dois domínios; aquele do mundo animal que se desenvolve de acordo com o princípio de Darwin [8], enquanto entre o gênero humano é o marxismo que define a lei do desenvolvimento. Quando os homens se libertaram do mundo animal, o desenvolvimento de ferramentas, dos métodos produtivos, da divisão do trabalho e do conhecimento se tornam a força propulsora do desenvolvimento social. É essa força que origina os diferentes sistemas, tais como o comunismo primitivo, o sistema camponês, o início da produção de mercadorias, o feudalismo e agora o capitalismo moderno. Só falta agora situar o modo de produção atual e sua superação na coerência proposta e aplicar neles corretamente a posição de base do darwinismo.

X. Capitalismo e Socialismo

A forma específica que a luta darwinista pela existência assume como força motriz para o desenvolvimento no mundo humano é determinada pela sociabilidade do homem e seu uso das ferramentas. Os homens travam a luta coletivamente, em grupos. A luta pela existência, enquanto ainda é levada adiante entre membros de diferentes grupos, contudo cessa entre membros do mesmo grupo e seu lugar é tomado pela ajuda mútua e o sentimento social. Na luta entre grupos, o equipamento técnico decide quem deve ser o vencedor; isso resulta no progresso da técnica. Essas duas circunstâncias levam a diferentes efeitos sob sistemas diferentes. Vamos ver de que maneira eles funcionam sob o capitalismo.

Quando a burguesia ganhou o poder político e fez do sistema capitalista o dominante, começou quebrando as algemas feudais e libertando o povo de todos os laços feudais. Era essencial para o capitalismo que todos os produtores estivessem aptos a tomar parte livremente na luta competitiva, sem que nenhum laço abafe sua liberdade de se mover; que nenhuma atividade estivesse paralisada ou limitada por deveres corporativos ou dificultada por estatutos jurídicos, pois apenas desta maneira era possível para a produção desenvolver sua capacidade total. Os trabalhadores devem ter livre comando de si mesmos e não estar amarrados por deveres feudais ou de guildas, pois apenas como livres trabalhadores eles podem vender sua força de trabalho aos capitalistas como uma mercadoria inteira e somente como trabalhadores livres os capitalistas podem empregá-los plenamente. É por essa razão que a burguesia varreu com todos os velhos laços e deveres do passado. Fez o povo completamente livre, mas ao mesmo tempo o deixou completamente isolados e sem proteção. Anteriormente o povo não estava isolado; eles pertenciam a alguma corporação; eles estavam sob a proteção de algum senhor ou comunidade e nisso eles achavam força. Eles eram parte de um grupo social para o qual eles tinham deveres e do qual eles recebiam proteção. Esses deveres a burguesia aboliu; destruiu as corporações e aboliu as relações feudais. A libertação do trabalho significou ao mesmo tempo que todo amparo foi retirado dele e que ele não podia mais confiar nos outros. Todos tinham que confiar em si mesmo. Sozinhos, livres de todos os laços e proteção, ele deve lutar contra tudo.

É por essa razão que, sob o capitalismo, o mundo humano muito se assemelha ao mundo dos animais predadores e é por esse exato motivo que os darwinistas burgueses procuraram pelo protótipo dos homens entre os animais que vivem isolados. A isso eles foram levados por sua própria experiência. Seu erro, no entanto, consistiu em considerar as condições capitalistas como as condições humanas eternas. A relação existente entre nosso sistema capitalista competitivo e os animais vivendo isolados, foi desta forma expressa por Engels [10] em seu livro Anti-Duhring [11] (página 293 na versão em inglês. Isso também pode ser encontrado na página 59 de Do socialismo utópico ao socialismo científico [12]) como segue: "Finalmente, a indústria moderna e a abertura do mercado mundial fizeram a luta universal e ao mesmo tempo deram a ela virulência inaudita. As vantagens em condições naturais ou artificiais de produção agora decidem a existência ou não existência de capitalistas individuais bem como indústrias e países inteiros. Ele, que cai é sem nenhum remorso jogado a parte. É a luta darwinista da existência individual transferida da natureza para a sociedade com intensificada violência. As condições de existência natural para o animal aparecem como o termo final do desenvolvimento humano."

O que é isso que leva adiante a luta na competição capitalista, a perfeição da qual decide a vitória?

Primeiro vêm as ferramentas técnicas, máquinas. Aqui de novo se aplica a lei de que a luta conduz à perfeição. A máquina que é mais aperfeiçoada exclui as menos aperfeiçoadas, as máquinas que não podem realizar muito e as ferramentas simples são exterminadas e a técnica industrial se desenvolve com passos gigantes para uma sempre crescente produtividade. Essa é a aplicação real do darwinismo na sociedade humana. A particularidade disto é que sob o capitalismo há a propriedade privada e detrás de toda máquina há um homem. Detrás da máquina gigante há um grande capitalista e detrás da pequena máquina há um pequeno burguês. Com a derrota da pequena máquina, o pequeno burguês, como capitalista, perece com todas suas esperanças e ilusões. Ao mesmo tempo a luta é uma corrida do capital. O grande capital é mais bem equipado; O grande capital vence o pequeno e desse jeito está ficando cada vez maior. Essa concentração de capital mina o próprio capital, pois diminui a burguesia cujo interesse é manter o capitalismo e aumenta a massa que procura aboli-lo. Nesse desenvolvimento, uma das características do capitalismo é gradualmente abolida. Neste mundo onde cada um luta contra todos e todos contra um, uma nova associação se desenvolve entre a classe operária, a organização de classe. As organizações da classe operária começam com o término da competição existente entre operários e combinando seus poderes separados em um grande poder em sua luta contra o mundo externo. Tudo que se aplica aos grupos sociais também se aplica a essa organização de classe, nascida de circunstâncias externas. Nas fileiras dessa organização de classe, causas sociais, sentimentos morais, sacrifício de se e dedicação ao conjunto do grupo inteiro se desenvolvem de uma maneira mais esplêndida. Essa organização sólida dá à classe trabalhadora a grande força que ela necessita para derrotar a classe capitalista. A luta da classe, que não é uma luta com ferramentas, mas para a posse de ferramentas, uma luta pela posse do equipamento técnico de toda humanidade será determinada pela força da ação organizada, pela força da nova organização de classe que surge. Através da classe trabalhadora já transparece um elemento da sociedade socialista.

Vamos agora olhar para o sistema de produção futuro levado adiante sob o socialismo. A luta pelo aperfeiçoamento das ferramentas, que marcou a história toda da humanidade, não cessa. Como antes no capitalismo, a máquina inferior será distanciada e substituída pela superior. Como antes, esse processo levará à maior produtividade do trabalho. Mas a propriedade privada tendo sido abolida, não haverá mais um homem detrás de cada máquina reivindicando a propriedade dela e compartilhando do seu destino. A concorrência entre eles só será um processo inofensivo, levado conscientemente a termo pelo homem que, depois de uma concertação racional, substituirá as máquinas menos desenvolvidas pela maquinaria mais desenvolvida. É num sentido metafórico que esse progresso será chamado de luta. Ao mesmo tempo cessa a luta mútua entre homens. Com a abolição das classes todo o mundo civilizado se tornará uma grande comunidade produtiva. Esta comunidade será como qualquer outra comunidade coletiva. Dentro dessa comunidade a luta mútua entre membros cessará e prosseguirá contra o mundo exterior. Mas em lugar das pequenas comunidades teremos então uma comunidade mundial. Isso significa que a luta pela existência pára. O combate contra o exterior não será mais uma luta contra nossa própria espécie, mas uma luta para subsistência, uma luta contra a natureza [4]. Mas devido ao desenvolvimento da técnica e da ciência, dificilmente poderá ser chamado de luta. A natureza submete-se ao homem e com muito pouco esforço de sua parte ela o abastece com abundância. Aqui um novo curso se abre para o homem: o homem ascendendo do mundo animal e prosseguindo sua luta pela existência pelo uso das ferramentas, cessa e um novo capítulo na história da humanidade se inicia.

Anton Pannekoek


 


[1] Esta idéia é presente na obra de Kautsky, citada e elogiada por Pannekoek,  La  ética e o concepto materialista de la história, como o ilustra a citação seguinte: "A lei moral é um impulso animal e nada mais. Daí procede seu caráter misterioso,  essa voz interior que não tem ligação alguma com o impulso exterior, como também nenhum interesse aparente; (...) A lei moral é um instinto universal, tão poderoso como o instinto de conservação ou de reprodução;  disso que retira sua força, seu poder que ao obedecermos sem refletir; daí nossa capacidade para decidir rapidamente em alguns casos, se uma ação é boa ou ruim, virtuosa ou daninha; daí também a força de decisão do nosso juízo moral e a dificuldade de demonstrar seu fundamento racional quando se busca analisar". A antropologia de Darwin está, além do mais, muito bem explicada na teoria do "efeito reversível da evolução" desenvolvida por Patrick Tort no seu livro L´effet Darwin: sélection naturelle e naissance de la civilisation (Éditions Du Seuil). Nossos leitores poderão encontrar uma apresentação deste livro em um artigo publicado na nossa página Web: "A propósito del libro El efecto Darwin: Una concepción materialista de los orígenes de la moral y la civilización [13]".

[2] Deve ser dito que Darwin se dá perfeita conta dessa escala crescente de sentimentos de solidariedade na espécie humana quando escreve: "A medida que o homem avança na civilização, e as pequenas tribos se reúnem em comunidades mais amplas, a razão mais simples deveria aconselhar a cada indivíduo que deveria estender seus instintos sociais e suas simpatias a todos os membros de uma mesma nação, por muito desconhecidos que lhe sejam. Uma vez alcançado esse ponto, só resta uma barreira artificial para impedir que suas simpatias se estendam  aos homens de todas as nações e de todas as raças. É certo que se esses homens estão separados dele por grandes diferenças de aparências exteriores ou de costumes, a experiência nos mostra que, por desgraça, é grande o tempo antes que os vejamos como nossos semelhantes" (A origem do homem, cap. IV.) (nota da CCI)

[3] Cientificamente falando, não existe raça européia. Dito isso, o fato de que Pannekoek use o termo "raça" para distinguir esse subconjunto de seres humanos não é nem muito menos uma concessão a não se sabe que racismo. A este plano, se inscreve na continuidade de Darwin para quem o racismo indignava e que se demarcava claramente das teorias racistas de cientistas do seu tempo como Eugène Dally. Além disso, deve ser lembrado que nos finais do século XIX e início do XX, o termo "raça" não tinha a conotação que tem hoje, como testemunha o fato de que alguns escritos do movimento operário inclusive falam (impropriamente, está claro) da raça dos operários (nota da CCI).

[4] A expressão "luta contra a natureza" não é correta. Trata-se de uma luta para dominar a natureza, estabelecendo a comunidade humana mundial que supõe que esta seja capaz de viver em harmonia total com a natureza (nota da CCI)

Darwinismo e Marxismo - Ia parte - (Anton Pannekoek)

  • 4743 leituras

Introdução da CCI

O ano de 2009 foi proclamado "Ano Darwin" no mundo inteiro, tanto por parte das instituições científicas como pelas editoras e as mídias. Com efeito, corresponde ao bicentenário do nascimento de Charles Darwin (12 de fevereiro de 1809) e aos cento e cinqüenta anos da publicação da sua primeira obra fundamental, Sobre a origem das espécies através da seleção natural, publicado em 24 de novembro de 1859. Atualmente nos encontramos diante de um sem número de conferências, livros, estudos e programas de televisão tratando de Darwin e sua teoria, que se bem permitem de quando em quando fazer-se uma idéia mais precisa desta, mais freqüentemente conseguem envolvê-la em uma névoa espessa na qual se torna difícil orientar-se. Isso é devido em parte ao fato que muitos autores, conferencistas e jornalistas, que se pretendem "especialistas em Darwin", não o conheciam há um ano e que o Ano Darwin, para eles como para os seus patrões, graças a uma rápida leitura de alguns artigos de Wikipédia, não é mais que uma boa ocasião para aumentar sua notoriedade ou suas receitas. Porém é também por outra causa que tanta confusão embrulha as concepções de Darwin. É que quando foram expostas na Origem das espécies, estas concepções passaram a ser um tema de primeira ordem a nível ideológico e político notadamente porque golpeavam brutalmente os dogmas religiosos do tempo, e também porque foram imediatamente instrumentalizadas por vários ideólogos da burguesia. O que estava em jogo à época, hoje continua presente, nas várias interpretações e falsificações cuja teoria de Darwin continua sendo objeto. Com a finalidade de permitir a nossos leitores compreenderem um pouco melhor, publicamos em duas partes o folheto de Anton Pannekoek, Darwinismo e marxismo, escrito em 1909 como motivo do centenário do nascimento de Darwin e que continua pelo essencial mantendo atualidade. O marxismo sempre tem se interessado pela evolução das ciências, que fazem parte integrante do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade e, também, porque considera que a perspectiva do comunismo não pode basear-se simplesmente em uma exigência moral de justiça, assim como foi para uma quantidade de "socialistas utópicos" do passado, mas também sobre o conhecimento científico da sociedade humana e da natureza da qual faz parte. Por isso, muito antes da publicação do folheto de Pannekoek, o mesmo Marx tinha dedicado em junho de 1873, um exemplar da sua obra principal o Capital, a Charles Darwin. Com efeito, Marx e Engels haviam reconhecido na sua teoria da evolução no âmbito do estudo dos organismos vivos, uma abordagem similar ao do materialismo histórico, como atestam esses dois extratos da sua correspondência:

  • "Darwin, a quem acabo de ler, é magnífico. Nunca houve até agora uma tentativa de demonstrar a evolução histórica na natureza de maneira tão esplendida, ao menos com tanto êxito" (Engels a Marx, 11 de dezembro de 1859)
    "Neste livro se encontra o fundamento, na história natural, de nossa concepção" (Marx a Engels, 19 de dezembro de 1860)[1]

O texto de Pannekoek, redigido com muita sensibilidade, nos proporciona um excelente resumo da teoria da evolução das espécies. Porém Pannekoek não só era um homem de ciência erudito (foi um astrônomo muito famoso). Era antes de tudo um marxista e um militante do movimento operário. Por isso no seu folheto Darwinismo e marxismo se esforça em criticar qualquer tentativa de aplicar esquemática e mecanicamente a teoria de Darwin da seleção natural à espécie humana. Pannekoek faz ressaltar claramente as analogias entre marxismo e darwinismo e dá conta da utilização, por parte dos setores mais progressistas da burguesia, da teoria da seleção natural contra os vestígios reacionários do feudalismo. Porém também critica a exploração fraudulenta pela burguesia da teoria de Darwin contra o marxismo, em particular as derivas do "darwinismo social", ideologia desenvolvida em particular pelo filósofo britânico Herbert Spencer (e retomada hoje pelos ideólogos do liberalismo para justificar a concorrência capitalista, a lei da selva, o cada um por si e a eliminação dos mais débeis).

Frente à volta das crenças obscurantistas saídas da noite dos tempos e, em particular, do "criacionismo" com seu avatar da "concepção inteligente" segundo a qual a evolução dos organismos vivos (e o aparecimento do próprio homem) corresponderia a um "plano" preestabelecido por uma "inteligência superior" de essência divina, aos marxistas lhes cabe reafirmar o caráter cientifico e materialista da teoria de Darwin e destacar o passo importante, que contribuiu para as ciências da natureza.

Obviamente, o folheto de Pannekoek deve estar situado no contexto dos conhecimentos científicos do seu tempo e algumas das suas visões, desenvolvidas na segunda parte (que publicaremos logo), hoje estão um tanto superadas por um século de investigações e descobertas cientificas (em particular, as da paleantropologia e a genética). Porém no essencial, sua contribuição (redigida em holandês e que até a data, foi traduzida só em inglês e português[2], segundo o que sabemos) é uma contribuição inestimável a história do movimento operário.

CCI (19 de abril de 2009)
  • Folheto de Anton Pannekoek

I. Darwinismo

Dificilmente dois cientistas poderiam ser mencionados, na segunda metade do século XIX, que tenham dominado a mente humana em um grau maior do que Darwin e Marx [14]. Seus ensinamentos revolucionaram a concepção que as grandes massas tinham sobre o mundo. Por décadas seus nomes estiveram na boca de todo o mundo e seus ensinamentos se tornaram o ponto central das lutas intelectuais que acompanham as lutas sociais de hoje. O motivo disso reside primeiramente no alto conteúdo científico de seus ensinamentos.

A importância científica do Marxismo assim como do Darwinismo consiste em sua fidelidade rigorosa à teoria da evolução, pertencendo o Darwinismo ao campo de análise do mundo orgânico, das coisas animadas, vivas, da natureza; e o Marxismo ao campo da sociedade. Esta teoria da evolução, entretanto, de modo algum era nova, pois já tinha sido defendida antes de Darwin [8] e Marx [14]. Hegel o filósofo, a fez mesmo o ponto central de sua filosofia. É, portanto, necessário observar mais de perto quais as realizações de Darwin [8] e de Marx neste campo.

A teoria que diz que plantas e animais se desenvolveram uns a partir dos outros foi primeiramente conhecida no século XIX. Em tempos passados a questão "de onde vêm todas estas milhares e centenas de milhares de diferentes espécies de plantas e animais que conhecemos?" era respondida: "no momento da criação Deus as criou todas conforme sua espécie". Esta teoria primitiva estava em conformidade com as experiências realizadas e com as mais velhas informações que poderiam ser obtidas. De acordo com essas informações, todas as plantas e animais conhecidos sempre foram os mesmos. Cientificamente, essa experiência foi assim expressa: "todas as espécies são invariáveis porque os pais transmitem suas características aos seus filhos".

Havia, entretanto, algumas peculiaridades entre plantas e animais que gradualmente necessitaram a formulação de uma concepção diferente. Então elas ficaram bem dispostas dentro de um sistema que foi primeiramente fundado pelo cientista sueco Lineu. De acordo com esse sistema, os animais estão distribuídos em reinos; estes reinos em classes; as classes em ordens; as ordens em famílias, as famílias em gêneros, cada gênero contendo algumas espécies. Quanto mais aparência há em suas características, mais próximos estão entre si os seres vivos no sistema menor é o grupo ao qual eles pertencem. Todos os animais classificados como mamíferos apresentam as mesmas características gerais em sua estrutura corpórea. Os animais herbívoros, animais carnívoros, macacos, que pertencem a ordens diferentes, são novamente diferenciados. Ursos, cachorros e gatos, todos os animais predadores, têm muito mais em comum na forma corporal do que têm com cavalos ou macacos. Esta concordância é ainda mais óbvia quando examinamos variedades das mesmas espécies; o gato, o tigre e o leão parecem-se mais entre si em muitos aspectos onde eles se diferem dos cachorros e ursos. Se nós sairmos da classe dos mamíferos para outras classes, tais como os pássaros ou os peixes, encontraremos maiores diferenças entre as classes do que encontramos no seio de uma classe. Há ainda, entretanto, uma leve semelhança na formação do corpo, do esqueleto e do sistema nervoso. Estas características desaparecem quando nos afastamos desta divisão principal, a qual abarca todos os vertebrados e vamos até os moluscos (animais de corpo mole) e os pólipos.

Todo mundo animal pode assim ser organizado dentro de divisões e subdivisões. Se todas as diferentes espécies de animais tivessem sido criadas inteiramente independentes de todas as outras, não haveria razão para tais categorias (divisões e subdivisões) existirem. Não haveria nenhuma razão que impedisse a exisência de mamíferos portadores de seis patas. Teríamos de assumir, então, que no momento da criação, Deus tomou o sistema de Lineu como um plano e criou todas as coisas de acordo com esse plano. Felizmente nós temos uma outra maneira de considerar isso. A semelhança na construção do corpo pode ser devida a um real relacionamento familiar. De acordo com essa concepção, a conformidade de peculiaridades demonstra qual a proximidade ou distância do relacionamento; assim como a semelhança de irmãos e irmãs é maior do que de parentes distantes. As espécies animais não foram, portanto, criadas individualmente, mas se desenvolveram umas a partir das outras. Elas formam um tronco que se iniciou de uma base simples e que se desenvolveu continuamente; os últimos e mais finos galhos são constituídas das espécies existentes atualmente. Todas as espécies de gatos descendem de um gato primitivo, o qual tal como o cachorro e o urso primitivos, é um descendente de algum tipo primitivo de animal carnívoro. O animal predador primitivo, o animal primitivo que tem cascos, e o macaco primitivo descenderam de um mamífero primitivo etc.

Esta teoria da descendência foi defendida por Lamarck e por Geoffroy St. Hilaire. Não foi, entretanto, recebida com aprovação geral. Estes naturalistas não puderam provar a correção desta teoria e, portanto, ela permaneceu somente como uma hipótese, uma mera suposição. Quando Darwin [8] apareceu, entretanto, com seu principal livro, A Origem das Espécies, caiu como um raio; sua teoria foi imediatamente aceita como uma verdade fortemente provada. A teoria da evolução, desde então, tornou-se inseparável do nome de Darwin [8]. Por quê?

Isto ocorreu particularmente devido ao fato de que através da experiência uma quantidade maior de material foi acumulada e deu suporte a esta teoria. Animais foram encontrados que não podiam ser facilmente encaixados na classificação, tais como os mamíferos ovíparos, peixes que têm pulmões e animais vertebrados sem vértebras. A teoria da ascendência reivindicava que estes são simplesmente os remanescentes da transição entre os principais grupos. Escavações revelaram restos fósseis que pareciam ser diferentes dos animais existentes atualmente. Estes restos mostraram-se, em parte, como sendo as formas primitivas dos nossos animais e que os animais primitivos desenvolveram-se gradualmente até os atuais. Então a teoria das células foi formada: cada planta, cada animal, consiste de milhões de células e tem se desenvolvido pela incessante divisão e diferenciação de células individuais. Tendo chegado a este ponto, o pensamento de que os organismos superiores são descendentes dos seres primitivos que possuem uma só célula, não poderia parecer estranho.

Todas estas novas experiências não puderam, entretanto, elevar a teoria à condição de verdade solidamente provada. A melhor prova da correção desta teoria seria a transformação real de uma espécie animal para outra ter acontecido ante nossos olhos, de modo que pudéssemos observá-la. Mas isso é impossível. Como então é possível provar de algum modo que formas animais estão realmente mudando para novas formas? Isto pode ser feito mostrando a causa, a força propulsora de tal desenvolvimento. Isto Darwin [8] fez. Darwin [8]descobriu o mecanismo do desenvolvimento animal e ao fazê-lo mostrou que sob certas condições algumas espécies animais necessariamente se desenvolverão e se transformarão em outras. Iremos agora esclarecer este mecanismo.

Seu principal fundamento é a natureza da transmissão, o fato de que os pais transmitem suas peculiaridades aos filhos, mas que ao mesmo tempo os filhos diferem de seus pais em alguns aspectos e também diferem entre si. É por essa razão que os animais da mesma espécie não são todos parecidos, mas diferem em todas as direções do tipo médio. Sem a assim chamada variação seria totalmente impossível para uma espécie animal se desenvolver em outra. Tudo o que é necessário para a formação de novas espécies é que as diferenças a partir do tipo central se tornem cada vez maiores, e que prossigam na mesma direção até que estas se tornem tão grandes que o novo animal não mais se pareça com aquele do qual ele descendeu. Mas onde está aquela força que poderia empurrar para frente uma sempre crescente variação na mesma direção?

Lamarck declarou que isto era devido ao uso e muito exercício de certos órgãos; que, devido ao exercício contínuo de certos órgãos, estes se tornam cada vez mais perfeitos. Assim como os músculos das pernas dos homens ficam mais fortes quando se corre muito, do mesmo modo o leão adquiriu suas poderosas patas e a lebre suas pernas velozes. Da mesma maneira as girafas conseguiram ter seus pescoços compridos porque para alcançar as folhas das árvores, as quais elas comiam, seus pescoços esticavam tanto que um animal de pescoço curto se desenvolveu e se transformou na girafa de pescoço longo. Para muitos esta explicação era inacreditável e não dava conta do fato de que o sapo devesse ter uma cor verde a qual serve a ele como uma boa proteção.

Para resolver a mesma questão, Darwin [8]voltou-se para uma outra linha de experiência. O criador de animais e o horticultor são capazes de fazer crescer artificialmente novas raças e variedades. Quando um horticultor quer cultivar certa variedade de planta com flores grandes, tudo o que ele tem de fazer é matar antes da maturidade todas aquelas plantas que têm flores pequenas e preservar aquelas que têm flores grandes. Se repetir isto por alguns anos sucessivamente, as flores serão sempre maiores, porque cada nova geração se assemelha à sua predecessora e nosso jardineiro, tendo sempre escolhido as maiores entre as grandes para o propósito de propagação, obtém sucesso em criar uma planta com flores muito grandes. Através desta ação, feita às vezes deliberadamente, às vezes acidentalmente, as pessoas criaram um grande número de raças de nossos animais domesticados, os quais diferem de sua forma original muito mais do que as espécies selvagens diferem entre si.

Se questionássemos um criador de animais sobre a transformação de um animal de pescoço curto em um animal de pescoço longo, não pareceria a ele uma impossibilidade. Tudo o que ele teria de fazer seria escolher aqueles que tivessem pescoços relativamente mais compridos, cruzá-los, matar os jovens que tivessem pescoços curtos e novamente cruzar os animais com pescoços longos. Se repetisse essa operação a cada nova geração o resultado seria que o pescoço tornar-se-ia cada vez mais longo e teríamos conseguido um animal parecido com a girafa.

Este resultado foi encontrado porque há uma vontade definida com um objetivo definido, o qual, para criar certa variedade, escolhe certos animais. Na natureza não há tal vontade e todos os desvios devem novamente ser ajustados através do cruzamento, de modo que é impossível para um animal continuar partindo do tipo original e ir sempre na mesma direção até tornar-se uma espécie complemente diferente. Onde então está o poder da natureza que escolhe os animais do mesmo jeito que faz um criador?

Darwin refletiu sobre este problema muito tempo antes que encontrasse sua solução na "luta pela existência". Nesta teoria temos o reflexo do sistema produtivo do tempo em que Darwin [8] viveu; por isso, foi à luta competitiva capitalista que serviu a ele como retrato da luta pela existência predominando na natureza. Não foi através de sua própria observação que esta solução se apresentou a ele. Veio a ele pela leitura dos trabalhos do economista Malthus [15]. Malthus tentou explicar que em nosso mundo burguês há muita fome, miséria e privação porque a população cresce muito mais rápido do que os meios de subsistência. Não há alimento suficiente para todos; as pessoas precisam, portanto, lutar com cada um pela sua existência e muitos cairão nesta luta. De acordo com esta teoria a competição capitalista, bem como a miséria existente, foi declarada como uma inevitável lei natural. Em sua autobiografia Darwin [8]declara que foi o livro de Malthus que o fez pensar sobre a luta pela existência:

  • "Em outubro de 1838, isto é, quinze meses depois que eu iniciei minha pesquisa sistemática, comecei a ler, por entretenimento, Malthus, no que concerne à população e estando bem preparado para apreciar a luta pela existência, que ocorre em todas as partes, por uma longa observação contínua dos hábitos dos animais e plantas, iluminou-me o fato de que sob estas circunstâncias variações favoráveis tenderiam a ser preservadas e variações desfavoráveis tenderiam a ser destruídas. O resultado disto seria a formação de novas espécies. Aqui, então, eu encontrei finalmente uma teoria pela qual trabalhar."

É um fato que o aumento do nascimento dos animais é maior do que a comida existente permite sustentar. Não há exceção à regra de que todos os seres orgânicos tendem a aumentar numericamente tão rapidamente que nossa Terra seria coberta muito brevemente pela descendência de um simples casal, se uma parte desta não fosse destruída. É por essa razão que a luta pela existência deve se impor. Cada animal tenta viver, faz o possível para comer e evita ser comido pelos outros. Com suas peculiaridades e armas específicas ele luta contra o mundo inteiro que lhe é antagônico, contra animais, frio, calor, aridez, inundações e outras ocorrências naturais que podem ameaçar destruí-lo. Acima de tudo, ele luta contra animais de sua própria espécie que vivem do mesmo modo que ele, têm as mesmas particularidades, usam as mesmas armas e vivem do mesmo alimento. Esta luta não é uma luta direta; a lebre não luta diretamente com a lebre, nem o leão com o outro leão - a não ser a luta pela fêmea - mas esta é uma luta pela existência, uma corrida, uma luta competitiva. Todos eles não podem alcançar uma idade adulta; a maior parte deles é destruída e somente aqueles que vencem a corrida permanecem. Mas quais são aqueles que vencem a corrida? Aqueles que, através de suas particularidades, através de suas estruturas corporais, são mais capazes de encontrar alimento ou de escapar de um inimigo; em outras palavras, aqueles que são mais adaptados às condições existentes sobreviverão. "Porque existem sempre mais indivíduos que nascem do que podem permanecer vivos, a luta pela sobrevivência deve começar novamente e aquela criatura que tem alguma vantagem sobre os demais, sobreviverá, mas como suas diferentes particularidades são transmitidas para as novas gerações, a natureza por si mesma faz a escolha e uma nova geração aparecerá contendo peculiaridades modificadas."

Aqui temos uma outra explicação para a origem da girafa. Quando a grama não mais cresce em alguns lugares, os animais devem se alimentar de folhas de árvores e todos aqueles cujos pescoços são muito curtos para alcançar as folhas vão perecer. Na própria natureza há seleção e ela seleciona somente aqueles que têm pescoços longos. Em referência à seleção feita pelo criador de animais, Darwin [8]chamou este processo de "seleção natural".

Este processo deve necessariamente produzir novas espécies. Pelo fato de demais originários de certa espécie nascerem, mais do que a quantidade existente de alimentos pode suprir, eles estão sempre tentando se espalhar por uma grande área. Para conseguir sua comida, aqueles que vivem nas florestas vão para as planícies, os que vivem na terra vão para a água e aqueles que vivem no chão sobem nas árvores. Sob estas novas condições, uma aptidão ou uma mudança é muitas vezes apropriada enquanto não era antes, e se desenvolve. Os órgãos mudam com o modo de vida. Adaptam se às novas condições de vida e a partir das velhas espécies uma nova se desenvolve. Este contínuo movimento das espécies existentes se ramificando em novos galhos resulta nestes milhares de animais diferentes diferenciando-se cada vez mais.

Enquanto a teoria darwinista assim explica assim a descendência geral dos animais, sua transmutação e formação a partir dos seres primitivos, ela explica, ao mesmo tempo a admirável adaptação em toda a natureza. Anteriormente esta admirável adaptação poderia somente ser explicada através da sábia e cuidadosa supervisão de Deus. Agora, entretanto, esta descendência natural é claramente entendida. Pois esta adaptação é nada mais do que adaptação aos meios de vida. Cada animal e planta estão exatamente adaptados a circunstâncias existentes e aqueles cuja construção está em menor conformidade com estas circustâncias serão exterminados na luta pela existência. O sapo verde, tendo descendido do sapo marrom, deve preservar sua cor protetora, porque todos aqueles que desviarem desta cor serão mais rapidamente descobertos por seus inimigos e destruídos ou encontrarão maiores dificuldades de obter seu alimento e deverão perecer.

Foi assim que Darwin [8] nos mostrou, pela primeira vez, que novas espécies continuamente formam-se originadas de velhas espécies. A teoria da ascendência, que até então era meramente uma inferência de muitos fenômenos que não podiam ser bem explicados de outra maneira, ganhou a certeza de uma funcionamento necessário de forças definidas e que poderia ser comprovado. É nisto que reside a principal razão pela qual esta teoria dominou tão rapidamente nas discussões científicas e chamou a atenção pública.

II. Marxismo

Se nos voltarmos para o marxismo imediatamente veremos uma grande conformidade com o darwinismo. Como com Darwin [8], a importância científica da obra de Marx [14]consiste em que ele descobriu a força propulsora, a causa do desenvolvimento social. Não teve que provar que tal desenvolvimento ocorria; todos sabiam que desde os tempos mais primitivos, novas ordens sociais sempre suplantaram as velhas formas, mas as causas e objetivos deste desenvolvimento eram desconhecidos.

Nesta teoria Marx procedeu com as informações que tinha à mão em sua época. A grande revolução política que deu à Europa o aspecto que ela tomou, a revolução francesa, era conhecida por todos por ter sido uma luta pela supremacia, conduzida pela burguesia contra a nobreza e a realeza. Depois dessa luta, novas lutas de classes surgiram. A luta levada adiante na Inglaterra pelos capitalistas manufatureiros contra a dominação política dos latifundiários dominava a política; ao mesmo tempo a classe operária revoltou-se contra a burguesia. O que foram todas essas classes? De que maneira elas se diferenciavam umas das outras? Marx provou que estas distinções eram devidas a várias funções que cada uma cumpria no processo produtivo. É no processo produtivo que as classes têm sua origem e é este processo que determina a que classe cada um pertence. Produção é nada mais do que o processo de trabalho social pelo qual os homens obtêm seus meios de subsistência da natureza. É a produção das necessidades materiais da vida que forma a estrutura principal da sociedade e que determina as relações políticas, as lutas sociais e as formas da vida intelectual.

Os métodos de produção mudaram continuamente com a passagem do tempo. De onde vêm essas mudanças? O modo de trabalho e as relações de produção dependem das ferramentas com as quais as pessoas trabalham; do desenvolvimento da técnica e dos meios de produção em geral. Pelo fato de as pessoas na Idade Média trabalharem com ferramentas rudes enquanto agora elas trabalham com maquinarias gigantes, tivemos naquele tempo um pequeno comércio e o feudalismo, enquanto agora temos o capitalismo. É também por essa razão que naquela época a nobreza feudal e a pequena-burguesia formavam as classes mais importantes enquanto atualmente é a burguesia e o proletariado que são as classes fundamentais.

É o desenvolvimento das ferramentas, destes auxiliares técnicos, que o homem conduz, que é a principal causa, a força propulsora de todo desenvolvimento social. Está subentendido que as pessoas estão sempre tentando aperfeiçoar estas ferramentas para que seu trabalho seja mais fácil e mais produtivo, e a prática que elas adquirem no seu uso leva seus pensamentos a outros e maiores aperfeiçoamentos. Devido a este desenvolvimento, um progresso técnico lento ou rápido ocorre, o que ao mesmo tempo muda as formas sociais do trabalho. Isto leva a novas relações de classe, novas instituições sociais e novas classes. Ao mesmo tempo lutas sociais, isto é, políticas, surgem. Aquelas classes predominantes sob o velho processo de produção tentam preservar artificialmente suas instituições, enquanto que as classes ascendentes tentam promover o novo processo de produção; e pelas lutas contra a classe dominante e pela conquista do poder, pavimentam o caminho para um ainda mais desembaraçado desenvolvimento da técnica.

Assim a teoria marxista descobriu a força propulsora e o mecanismo do desenvolvimento social. Desta forma, a teoria provou que a história não é algo errático e que os vários sistemas sociais não são o resultado do acaso ou de eventos acidentais, mas que existe um desenvolvimento regular em uma direção definida. Foi também provado que o desenvolvimento social não cessa com o nosso sistema, porque a técnica continua a se desenvolver.

Assim, ambos os ensinamentos, o de Darwin [8]e o de Marx, um no campo do mundo orgânico e o outro na esfera da sociedade humana, elevaram a teoria da evolução para uma ciência positiva.

Agindo dessa maneira, eles tornaram a teoria da evolução aceitável para as massas como uma concepção básica do desenvolvimento biológico e social.

III. Marxismo e luta de classes

Enquanto é verdade que para certa teoria ter uma influência duradoura na mente humana, é necessário ter um alto valor científico, isso, por si só não é suficiente. É certo que na maioria das vezes aconteceu que uma teoria científica de maior importância para a ciência não produziu qualquer interesse, todavia, com a provável exceção de uns poucos homens letrados. Como por exemplo, foi a Lei da Gravidade, de Newton. Esta teoria é a fundação da astronomia e é devido a ela que temos o conhecimento dos corpos celestes e podemos prever a chegada de certos planetas e eclipses. Mesmo assim, quando a Lei da Gravidade de Newton apareceu, somente uns poucos cientistas ingleses foram seus adeptos. As amplas massas não prestaram atenção a esta teoria. Ela se tornou conhecida da massa só através de um livro popular escrito por Voltaire [16] meio século mais tarde.

Não há nada de surpreendente nisto. A ciência tornou-se uma especialidade para certo grupo de homens letrados e seu progresso diz respeito somente a eles, como a fundição é a especialidade do ferreiro e um desenvolvimento na fundição de ferro diz respeito a ele também. Somente um conhecimento que a massa do povo pode fazer uso e que é visto por todos como uma necessidade vital, pode ganhar adeptos entre as grandes massas. Quando, então, vemos que certa teoria científica causa entusiasmo e paixão nas amplas massas, isto pode ser atribuído ao fato de que esta teoria serve a elas como uma arma na luta de classes. Pois é a luta de classes que envolve quase todo o povo.

Isto pode ser visto mais claramente no marxismo. Se os ensinamentos econômicos do marxismo não tivessem importância na moderna luta de classes, apenas poucos economistas profissionais gastariam tempo os estudando. No entanto, devido ao fato de que o marxismo serve como arma aos proletários na luta contra o capitalismo, é que as lutas científicas estão centradas nesta teoria. É devido ao serviço que esta [14] teoria presta que o nome de Marx é honrado por milhões de pessoas que conhecem muito pouco de seus ensinamentos e, por outro lado, é desprezado por milhares que não entendem nada de sua teoria. É pelo grande papel que cumpre a teoria marxista na luta de classes que é diligentemente estudada pelas amplas massas e domina a mente humana.

A luta de classe proletária existia antes de Marx, pois é o resultado da exploração capitalista. Nada mais natural que os trabalhadores, sendo explorados, pensassem sobre a necessidade de outro sistema social onde a exploração fosse abolida e o reivindicassem. Mas tudo o que podiam fazer era ter esperança e sonhar com isso. Eles não estavam certos de como isso se passaria. Marx deu ao movimento operário e ao socialismo uma fundamentação teórica. Sua teoria social mostrou que os sistemas sociais estavam num fluxo contínuo onde o capitalismo era apenas uma forma temporária. Seus estudos sobre o capitalismo mostraram que devido ao desenvolvimento contínuo do aperfeiçoamento da técnica, o capitalismo deve necessariamente se desenvolver até chegar ao socialismo. Este novo modo de produção pode ser estabelecido somente pelos proletários em luta contra os capitalistas, os quais têm o interesse em manter o velho sistema de produção. O socialismo é, portanto, o fruto e o objetivo da luta de classe proletária.

Graças a Marx, a luta do proletariado adquiriu uma forma inteiramente diferente. O marxismo se tornou uma arma nas mãos do proletariado; no lugar de vagas esperanças ele deu um objetivo positivo e ao ensinar um claro reconhecimento do desenvolvimento social, Marx deu força ao proletariado e ao mesmo tempo criou os fundamentos para as táticas corretas a perseguir. É através do marxismo que os trabalhadores podem provar a transitoriedade do capitalismo e a necessidade e certeza da sua vitória. Ao mesmo tempo o marxismo destruiu as visões utópicas de que o socialismo seria conquistado pela inteligência e boa vontade de alguns homens sensatos; como se o socialismo fosse uma exigência por justiça e moral; como se o objetivo fosse estabelecer uma sociedade infalível e perfeita. Justiça e moralidade mudam de acordo com o sistema produtivo; e cada classe tem diferentes concepções delas. O socialismo só pode ser conquistado pela classe cujo interesse reside no socialismo e não é uma questão de um sistema social perfeito, mas de uma mudança nos métodos de produção, que leve a um degrau mais elevado, isto é, à produção social.

Pelo fato da teoria marxista do desenvolvimento social ser indispensável ao proletariado em sua luta, os proletários tentam fazer dela parte do seu ser interior, ela domina seus pensamentos, sentimentos, toda sua concepção do mundo. Porque o marxismo é a teoria do desenvolvimento social, no centro do qual estamos, ele se coloca como o ponto central dos grandes embates intelectuais que acompanham nossa revolução econômica.

IV. Darwinismo e luta de classes

Que o marxismo deve sua importância e posição somente pelo papel que cumpre na luta do proletariado, todos sabem. Com o darwinismo, entretanto, as coisas parecem diferentes para o observador superficial, pelo fato de o darwinismo lidar com uma nova verdade científica, que deve enfrentar os preconceitos religiosos e a ignorância. Todavia não é difícil ver que, na realidade, o darwinismo se submeteu às mesmas experiências, teve de sofrer as mesmas vicissitudes que o marxismo. O darwinismo não é uma mera teoria abstrata que foi adotada pelo mundo científico depois de discutida e testada de uma maneira puramente objetiva. Não, imediatamente depois de seu aparecimento, houve entusiastas defensores e apaixonados oponentes; o nome de Darwin [8], também, foi altamente honrado pelas pessoas que entenderam alguma coisa de sua teoria, ou desprezado por aqueles que não conheciam nada mais de sua teoria do que "o homem descendeu do macaco" e que eram certamente desqualificados para julgar de um ponto de vista científico a correção ou falsidade da teoria de Darwin [8]. O darwinismo, também, teve um papel na luta de classes e é devido a esse papel que a teoria se espalhou tão rapidamente e teve entusiastas defensores e venenosos oponentes.

O darwinismo serviu como uma ferramenta para a burguesia em sua luta contra a classe feudal, contra a nobreza, os direitos do clero e dos senhores feudais. Esta luta foi inteiramente diferente da luta que agora os proletários travam. A burguesia não era uma classe explorada se esforçando para abolir a exploração. Não! O que a burguesia queria era livrar-se do poder da velha classe dominante que estava em seu caminho. A burguesia queria ela própria governar, baseando suas exigências no fato de que ela era a classe mais importante que liderava a indústria. Que argumento poderia a velha classe, a classe que havia se tornado nada mais do que inútil parasita, apresentar contra a burguesia? Ela se apoiava na tradição, nos seus antigos "direitos divinos". Estes foram seus pilares. Com a ajuda da religião os padres mantiveram a grande massa na sujeição e pronta para se opor às exigências da burguesia.

Foi, portanto, por seu próprio interesse que a burguesia trabalhou para minar o direito "divino" dos governantes. A ciência natural tornou-se uma arma na oposição à crença e à tradição; a ciência e as recentes descobertas de leis naturais foram promovidas. Foi com estas armas que a burguesia lutou. Se as novas descobertas pudessem provar que o que os padres estavam ensinando era falso, a autoridade "divina" destes padres se reduziria a pó e os "direitos divinos" gozados pela classe feudal seriam destruídos. É claro que a classe feudal não foi derrotada por isso somente; como um poder material só pôde ser derrubado por um poder também material, mas as armas intelectuais se tornaram ferramentas materiais. Foi por essa razão que a burguesia ascendente deu tanta importância na ciência natural.

O darwinismo veio no tempo desejado. A teoria de Darwin [8]de que o homem descendeu de um animal mais primitivo destruiu todo o fundamento do dogma cristão. É por essa razão que tão logo o darwinismo apareceu, a burguesia o agarrou com grande entusiasmo.

Não foi o caso da Inglaterra. Aqui vemos novamente como foi importante a luta de classes para a expansão da teoria de Darwin [8]. Na Inglaterra a burguesia já dominava havia alguns séculos e, no seu conjunto, eles não tinha interesse em atacar ou destruir a religião. É por essa razão que embora esta teoria tenha sido amplamente lida na Inglaterra, mesmo assim não causou alvoroço em ninguém; ela simplesmente foi considerada como uma teoria científica sem grande importância prática. Darwin [8] considerou-a como tal e por medo que sua teoria pudesse chocar os preconceitos religiosos vigentes, ele propositalmente evitou aplicá-la imediatamente ao homem. Foi somente depois de numerosos adiamentos e depois de outros fazerem antes dele, que decidiu dar esse passo. Em uma carta a Haeckel ele deplorou o fato de que sua teoria deveria bater de frente com muitos preconceitos e tanta indiferença e que não tinha a perspectiva de viver o suficiente para vê-la transpor estes obstáculos.

Mas na Alemanha as coisas eram inteiramente diferentes e Haeckel corretamente respondeu a Darwin [8] que sua teoria teve uma recepção entusiasmada na Alemanha. Isso aconteceu porque no momento em que apareceu naquele país a teoria de Darwin [8], a burguesia estava se preparando para levar adiante um novo ataque ao absolutismo e ao junkerismo. A burguesia liberal era encabeçada pelos intelectuais. Ernest Haeckel, um grande cientista e de ainda maior ousadia, imediatamente esboçou em seu livro, "Criação Natural", conclusões mais ousadas contra a religião. Então, enquanto o darwinismo conhecia a recepção mais entusiasmada por parte da burguesia progressista, era amargamente rejeitado pelos reacionários.

A mesma luta também aconteceu em outros países europeus. Em todo lugar a burguesia liberal progressista tinha que lutar contra os poderes reacionários. Esses reacionários possuíam ou tentavam obter, através dos seguidores religiosos o poder cobiçado. Sob estas circunstâncias mesmo as discussões científicas eram imbuídas de entusiasmo e paixão da luta de classes. Os escritos que apareciam a favor ou contra Darwin [8] tinham, portanto, a marca de polêmicas sociais, a despeito do fato de que eles levavam os nomes de autores científicos. A litania dos escritos populares de Haeckel, quando olhada de um ponto de vista científico, é muito superficial, enquanto os argumentos e demonstrações de seus oponentes mostram tolices inacreditáveis que só podem ser encontradas nos argumentos usados contra Marx [14].

A luta travada pela burguesia liberal contra o feudalismo não tinha como objetivo ser levada até o fim. Foi particularmente devido ao fato de que em todo lugar os proletários socialistas faziam sua aparição, ameaçando todos os poderes dominantes, incluindo o da burguesia. A burguesia liberal se afrouxou, enquanto as tendências reacionárias ganharam força. O entusiasmo anterior em combater a religião apagou se inteiramente e enquanto é verdade que os liberais e os reacionários se mantiveram lutando entre si, na realidade, entretanto, eles se aproximaram. O interesse anteriormente manifestado na ciência como uma arma revolucionaria na luta de classes, desapareceu totalmente, enquanto que a tendência reacionária cristã que desejava que o povo conservasse sua religião tornou-se cada vez mais poderosa e brutal.

A estima pela ciência também sofreu uma mudança a par com a necessidade dela. Antes, a burguesia instruída tinha fundado na ciência uma concepção materialista do universo, de onde ela via a solução para o enigma deste. Agora o misticismo dominava cada vez mais; tudo o que foi explicado pela ciência apareceu como trivial, enquanto todas as coisas que permanecem sem explicação, apareciam como sendo muito grandes, abarcando as mais importantes questões vitais. Um estado de espírito feito de ceticismo, crítica e dúvida tomou cada vez mais o lugar do júbilo espírito anterior em favor da ciência.

Isto poderia também ser visto na posição tomada contra Darwin [8]. "O que demonstra esta teoria? Ela deixa sem resolução o enigma do universo! De onde vem esta maravilhosa natureza da transmissão; De onde vem a habilidade dos seres animados de se modificar tão adequadamente?" Aqui reside o misterioso enigma da vida, que não podia ser superado com princípios mecânicos. Então, o que restou do darwinismo à luz desta última crítica?

É claro, o avanço da ciência começou a permitir progressos rápidos. A solução de um problema sempre traz novos problemas à superfície para serem resolvidos, os quais estavam escondidos sob a teoria da transmissão. Essa teoria, que Darwin [8]teve que aceitar como uma base de investigação, continuava sendo estudada; uma calorosa discussão se colocou sobre os fatores individuais do desenvolvimento e a luta pela existência. Enquanto alguns cientistas dirigiram sua atenção à variação, a qual eles consideravam devida ao exercício e adaptação à vida (de acordo com o princípio posto por Lamarck), esta idéia foi expressamente negada por cientistas como Weissman e outros. Enquanto Darwin [8]somente supôs graduais e lentas mudanças, De Vries encontrou repentinos e abruptos casos de variação resultantes de súbitos aparecimentos de novas espécies. Tudo isto, enquanto fortalecia e desenvolvia a teoria da descendência, em alguns casos dava a impressão de que as novas descobertas despedaçavam a teoria darwinista e, portanto, cada nova descoberta que causasse esta impressão era saudada pelos reacionários como uma falência do darwinismo. Esta concepção social teve sua influência na ciência. Cientistas reacionários clamaram que um elemento espiritual é necessário. O sobrenatural e o insolúvel, que o darwinismo tinha varrido, foram re-introduzidos pela porta traseira. Era a expressão de uma tendência cada vez mais reacionária no seio daquela classe que, no início, tinha sido a porta-bandeira do darwinismo.

V. Darwinismo versus socialismo

O darwinismo prestou um serviço inestimável à burguesia na sua luta contra os velhos poderes. Foi, portanto, apenas natural que os burgueses devessem aplicá-lo contra seu futuro inimigo, o proletariado; não porque os proletários tivessem uma disposição contrária ao darwinismo, mas exatamente o oposto. Tão logo o darwinismo apareceu, a vanguarda do proletariado, os socialistas, saudaram a teoria darwinista, porque viam no darwinismo uma confirmação e um acabamento de sua própria teoria; não como alguns oponentes superficiais acreditavam, que ela queria basear o socialismo no darwinismo, mas no sentido em que a descoberta darwinista - de que mesmo no aparentemente estagnante mundo orgânico há um contínuo desenvolvimento - é uma gloriosa confirmação que completa a teoria marxista do desenvolvimento social.

Mesmo assim era natural para a burguesia fazer uso do darwinismo contra o proletariado. A burguesia teve que encarar dois exércitos e as classes reacionárias sabiam disso muito bem. Quando a burguesia ataca sua autoridade eles apontam o proletariado e previnem-na do desmoronamento da autoridade. Agindo assim, os reacionários tentam assustar os burgueses de tal modo que eles desistam de qualquer atividade revolucionária. É claro, os representantes burgueses respondem que não há nada a temer; que sua ciência apenas refuta a infundada autoridade da nobreza e sustenta os reacionários em sua luta contra os inimigos da ordem.

No congresso dos naturalistas, o cientista e político reacionário Virchow atacou a teoria darwinista sobre a base que esta dava suporte ao socialismo. "Cuidado com esta teoria", disse aos darwinistas, "pois esta teoria está intimamente relacionada com aquela que causou muito pavor no país vizinho". Esta alusão à Comuna de Paris, feita no famoso ano da caça aos socialistas, deve ter tido um grande efeito. O que deveria ser dito, entretanto, sobre a ciência de um professor que ataca o darwinismo com o argumento de que não é correto porque é perigoso! Esta censura, a de estar coligada com os revolucionários vermelhos, causou um grande aborrecimento em Haeckel, seu defensor. Ele não podia suportá-la. Imediatamente depois tentou demonstrar que é precisamente a teoria darwinista que mostra a insustentabilidade das reivindicações socialistas e que darwinismo e marxismo "relacionam-se um ao outro como água e fogo".

Vejamos a alegação de Haeckel, cujos principais pensamentos reaparecem na maior parte dos autores que baseiam seus argumentos contra o socialismo no darwinismo.

O socialismo é a teoria que pressupõe a igualdade natural entre as pessoas e se esforça promover a igualdade social; direitos e deveres iguais, iguais posses e gozo. O darwinismo, ao contrário, é a prova científica da desigualdade. A teoria da descendência estabeleceu o fato de que o desenvolvimento animal caminha sempre na direção de uma maior diferenciação ou divisão do trabalho; quanto mais superior o animal e se aproxima da perfeição, maior a desigualdade existente. O mesmo vale para a sociedade. Aqui também vemos a grande divisão do trabalho entre ofícios, classes etc. e quanto mais alto estivermos no desenvolvimento social, maiores as desigualdades de força, habilidade e capacidade. A teoria da descendência é, portanto, recomendável como "o melhor antídoto às aspirações do socialismo de igualitarismo total".

O mesmo vale, mas numa extensão maior, para a teoria darwinista da sobrevivência. O socialismo quer abolir a competição e a luta pela existência, mas o darwinismo nos ensina que esta luta é inevitável e é uma lei natural para todo o mundo orgânico. Não apenas esta luta é natural, como é útil e benéfica. Esta luta pela sobrevivência traz uma perfeição cada vez maior e essa perfeição consiste numa maior eliminação dos inaptos. Somente a minoria escolhida, aquela que é qualificada para suportar a competição, pode sobreviver; a grande maioria deve perecer. Muitos são chamados, mas poucos escolhidos. A luta pela existência resulta ao mesmo tempo na vitória do melhor, enquanto os piores e inaptos devem perecer. Isto pode ser lamentável, como é lamentável que todos devam morrer, mas o fato não pode ser negado nem mudado.

Gostaríamos de observar aqui como uma pequena mudança de palavras quase similares serve como defesa do capitalismo. Darwin [8] falou da sobrevivência do mais apto, daqueles que são melhores adaptados às condições. Vendo que nesta luta aqueles que estão mais bem organizados vencem os outros, os vencedores foram chamados de vigilantes e depois os "melhores". Esta expressão foi cunhada por Hebert Spencer. Vencendo em seu domínio, os vencedores na luta social, os grandes capitalistas foram proclamados a melhor gente.

Haeckel tomou para si e ainda mantém esta concepção. Em 1892 ele disse:

  • "O darwinismo, ou a teoria da seleção, é completamente aristocrática; ela é baseada na sobrevivência dos melhores. A divisão do trabalho gerou, por causas de desenvolvimento, uma variação cada vez maior nas características e sempre uma maior desigualdade entre indivíduos, em sua atividade, educação e condição. Quanto maior o avanço da cultura humana, maior a diferença e o fosso entre as várias classes existentes. O comunismo e as demandas apresentadas pelos socialistas ao reivindicar uma igualdade de condições e atividades é sinônimo de uma volta aos estágios primitivos da barbárie".

O filósofo inglês Hebert Spencer já tinha uma teoria do desenvolvimento social antes de Darwin [8]. Esta era a teoria burguesa do individualismo, baseada na luta pela existência. Mais tarde ele trouxe esta teoria para uma relação mais estreita com o darwinismo. "No mundo animal", ele disse, "os velhos, fracos e doentes perecem sempre e somente os fortes e saudáveis sobrevivem. A luta pela existência serve, portanto, como uma purificação da raça, protegendo-a da deterioração. Este é o feliz efeito desta luta, pois, se por acaso a luta cessasse e cada um tivesse a certeza de encontrar sua subsistência sem nenhuma luta, a raça necessariamente deterioraria. A ajuda dada ao doente, fraco e inapto causa uma degeneração geral na raça. Se a simpatia, encontrando suas expressões na caridade, vai além de limites razoáveis, ela frustra seus objetivos; ao invés de diminuir, aumenta o sofrimento para as novas gerações. O bom efeito da luta pela existência pode melhor ser visto nos animais selvagens. Todos eles são fortes e saudáveis porque sofreram milhares de perigos, nos quais aqueles que não estavam qualificados tiveram que perecer. Entre os homens e animais domésticos, a doença e a fraqueza são tão comuns devido ao fato de o fraco e o doente serem preservados. O socialismo, tendo como objetivo a abolição da luta pela existência no mundo humano, trará necessariamente um crescimento da deterioração física e mental".

Estas são as principais posições daqueles que usam o darwinismo como uma defesa do sistema burguês. Fortes como estes argumentos podiam parecer à primeira vista, não foram difíceis de ser superados pelos socialistas. Em grande medida, são os velhos argumentos usados contra o socialismo, mas desta vez com uma roupagem terminológica nova darwinista e mostram uma completa ignorância do socialismo bem como do capitalismo.

Aqueles que comparam o organismo social com o corpo animal deixam desconsiderado o fato de que os homens não diferem entre si como as várias células ou órgãos, mas somente em graus de sua capacidade. Na sociedade a divisão do trabalho não pode ir tão longe a ponto de que todas as capacidades devam perecer a custa de uma única. E mais, qualquer um que conheça alguma coisa de socialismo sabe que a eficiente divisão do trabalho não acabará com o socialismo; que sob o socialismo uma divisão real será possível. A diferença entre os trabalhadores, suas habilidades e os empregos não acabará; o que terminará é a diferença entre trabalhadores e exploradores.

Enquanto é verdadeiro que na luta pela existência aqueles animais fisicamente mais fortes, saudáveis e bem preparados sobrevivem, isto não acontece sob a competição capitalista. Aqui a vitória não depende da perfeição daqueles que estão na disputa. Enquanto o talento pelos negócios e o dinamismo podem jogar um papel no mundo pequeno burguês, com o desenvolvimento cada vez maior da sociedade, o sucesso depende cada vez mais da posse de capital. O capital maior vence o menor, mesmo sendo o último a disposição de alguém mais qualificado. Não são as qualidades pessoais, mas a posse de dinheiro, que decide quem será o vencedor da luta pela sobrevivência. Quando os pequenos capitalistas perecem, não é como homens, mas como capitalistas; eles não são varridos da existência física, mas da classe burguesa. Eles ainda existem, mas não mais como capitalistas. A competição existente no sistema capitalista é, portanto, algo diferente em requisitos e resultados da luta animal pela existência.

As pessoas que perecem como pessoas são membros de uma classe inteiramente diferente, uma classe que não participa da luta competitiva. Os trabalhadores não competem com os capitalistas, apenas vendem sua força de trabalho a eles. Não tendo propriedade alguma, eles não têm a oportunidade de medir suas grandes qualidades e entrar numa corrida com os capitalistas. Sua pobreza e sua miséria não podem ser atribuídas ao fato de que eles caíram na luta competitiva devido à sua fraqueza, mas porque eles foram muito mal remunerados pela sua força de trabalho e é por essa razão que, embora seus filhos nasçam fortes e saudáveis, eles perecem em massa, enquanto as crianças nascidas de pais ricos, mesmo nascendo doentes, permanecerão vivas por meio de alimentação e grandes cuidados dispensados a elas. Estas crianças pobres não morrem porque são doentes ou fracas, mas devido a causas externas. É o capitalismo quem cria todas as condições desfavoráveis por meio da exploração, redução de salários, crises de desemprego, péssimas moradias, longas jornadas de trabalho. É o sistema capitalista que causa a destruição de muitos fortes e saudáveis.

Assim os socialistas provam que diferentemente do mundo animal, a luta competitiva entre os homens não favorece os melhores e mais qualificados, mas destrói muitos indiviuos fortes e saudáveis devido à sua pobreza, enquanto aqueles que são ricos, mesmo fracos e doentes, sobrevivem. Os socialistas provam que a força pessoal não é o fator determinante, mas que este é algo exterior ao homem, isto é, a posse de dinheiro que determina quem deve sobreviver e quem deve morrer.

Anton Pannekoek


[1] É necessário destacar que, pouco tempo depois, em outra carta a Engels com data de 18 de junho de 1862, Marx retornará sobre essa apreciação fazendo esta crítica a Darwin: "É marcante ver como Darwin reconhece nos animais e nas plantas sua própria sociedade inglesa, com sua divisão do trabalho, sua concorrência, sua abertura de novos mercados, suas invenções e sua maltusiana luta pela vida. É o bellum omnium contra omnes de Hobbes (a guerra de todos contra todos), e recorda Hegel na Fenomenologia, onde a sociedade civil intervém enquanto que "reino animal do Espírito", quando em Darwin, é o reino animal o que intervém enquanto sociedade civil" (Marx-Engels. Correspondência, Ediciones Sociales, Paris, 1979). Em conseqüência, Engels retomará em parte esta crítica de Marx no Antiduring (Engels fará alusão ao "erro maltusiano" de Darwin) e na Dialética da natureza. Numa próxima publicação, voltaremos novamente sobre isto que se pode considerar como uma interpretação errônea da obra de Darwin por Marx e Engels.

[2] Esta versão em português provém inicialmente do site https://www.marxists.org/portugues/pannekoe/ano/darwinismo/index.htm [17], onde tinha sido traduzida muito provavelmente a partir da versão inglesa (1912. Nathan Weiser). Efetuamos alterações na tradução ora compilada, notadamente levando em conta a versão do autor publicada originalmente em holandes.

Gaza: A solidariedade com as vítimas da guerra implica lutar contra todos os exploradores!

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Publicamos a tomada de posição que foi inicialmente publicada na nossa "Web" em inglês no dia 31-12 - 08. Os acontecimentos têm evoluído desde então e no mesmo sentido que denunciamos: o uso sistemático de um terror brutal contra a população bombardeada por terra, mar e ar, e a entrada das tropas israelenses em Gaza na tarde de hoje 03-01-2009. Porém temos visto também, por outro lado, como entre a população mundial cresce a indignação diante dessas atrocidades e a hipocrisia das grandes potências. Desenvolve-se também um veemente desejo de solidariedade com a população palestina que está servindo de refém neste conflito entre frações da classe exploradora. O que os revolucionários denunciam - como manifestam magnificamente as contribuições dos nossos leitores que acabamos de publicar (ver em nossa "Web" em espanhol) - é que se pretenda desviar essa solidariedade para o podre terreno nacionalista de defesa de uma pátria contra outra, quando a única alternativa que pode libertar a humanidade do imperialismo, a guerra e a barbárie, é pelo contrario, o desenvolvimento do internacionalismo revolucionário até a abolição de todas as nações e as fronteiras e a edificação de uma autentica comunidade humana: o comunismo.

Após dois anos asfixiando a economia de Gaza (impedindo a entrada de combustíveis e medicamentos, bloqueando as exportações, negando aos trabalhadores palestinos a possibilidade de ir procurar trabalho no lado israelense da fronteira....); e depois de haver convertido gaza num imenso campo de prisioneiros do qual os palestinos têm tentado desesperadamente de fugir através da fronteira com o Egito, a máquina militar israelense está submetendo esse território enormemente populoso e empobrecido a um bombardeamento aéreo selvagem praticamente constante. Centenas de pessoas já perderam a vida e está esgotada a capacidade dos hospitais para prestar atendimento a uma interminável leva de feridos. A propaganda de guerra israelense que afirma que estão fazendo tudo possível para evitar vítimas civis é de repugnante cinismo: Quando os objetivos "militares" estão situados ao lado de áreas residenciais e inclusive as mesquitas e a universidade islâmica têm sido citadas como objetivos de guerra, distinguir entre o civil e o militar é uma completa falta de senso, e acaba tendo como conseqüência inevitável, uma taxa elevadíssima de vítimas entre a população, muitos delas crianças, mortos, mutilados, ou, em um numero maior ainda de casos de aterrorizados e traumatizados por toda vida, pela sucessão ininterrupta de ataques. No momento em que escrevíamos esta tomada de posição, o primeiro ministro de Israel Ehud Olmert alertava que a ofensiva empreendida só representava um primeiro passo. Os tanques se encontravam na fronteira e não se descartava uma operação terrestre em grande escala.

A desculpa apresentada por Israel para todas estas atrocidades - e que é respaldada pela administração Bush nos Estados Unidos - é a de que o Hamas não havia deixado de lançar foguetes contra a população israelense apesar do dito "cessar fogo". Esse mesmo argumento tinha sido utilizado para apoiar a invasão do sul do Líbano dois anos atrás. É certo, que tanto Hezbollah como Hamas se escudam hipocritamente por trás da população libanesa e palestina, com o que estas ficam expostas à vingança israelita. É certo também que, essas duas organizações querem apresentar o assassinato de um punhado de civis israelenses como um exemplo da "resistência" diante da ocupação militar por parte de Israel. Porém a resposta de Israel é a que sempre caracterizou toda potencia ocupante: fazer a população pagar por todas ações de uma minoria de milicianos. Isso se concretizou com o bloqueio econômico imposto por Israel depois do Hamas ter descartado o Fatah no controle da administração de Gaza. Aconteceu no Líbano e acontece hoje com o bombardeio de Gaza. Essa é a lógica de barbárie que preside todas as guerras imperialistas, nas quais ambos os bandos utilizam a população como alvo, sendo que isto acaba, quase invariavelmente, produzindo muito mais vítimas que os próprios soldados uniformizados.

E como acontece em todas as guerras imperialistas, os sofrimentos que inflige à população, a irracional destruição de hospitais e escolas, não levam mais que preparar o terreno para novas ondas de destruição. O objetivo declarado de Israel é esmagar o Hamas e colocar no poder em Gaza uma fração palestina mais "moderada". Porém inclusive os anteriores chefes da Inteligência israelense (pelo menos um dos mais,... inteligentes), deviam reconhecer a inutilidade dessa postura. A propósito do bloqueio econômico, um antigo oficial da Mossad, Yossi Alpher, declarava: "O bloqueio econômico de Gaza não cumpriu nem um só dos objetivos políticos que se tem perseguido. Não tem servido para fazer com que os palestinos passem a odiar o Hamas, mas pelo contrario tem resultado contraproducente. É simplesmente um inútil castigo coletivo". E isso torna ainda mais claro quanto aos ataques aéreos. Assim o historiador israelense Tom Segev assinala que "Israel sempre tem acreditado que fazendo sofrer a população civil palestina, esta acabaria rebelando-se contra seus dirigentes nacionais. Porém esta presunção tem demonstrado ser equivocada todas as vezes" (extraído como na citação anterior, do diário británico The Guardian, de 30-12-2008). O Hezbollah saiu reforçado no Líbano pela invasão Israelense naquele país em 2006, e a ofensiva sobre Gaza pode agora resultar o mesmo ao Hamas. Porém fortalecido ou debilitado, sem dúvida ele vai responder com futuras ataques à população civil Israelense, se não lançando muito mais foguetes, mais através de uma nova onda de ataques suicidas.

A "espiral de violência" é uma prova da decadência do capitalismo

Muitas personalidades mundiais tais como o Papa, ou Ban Ki-Moon, o secretário-geral da ONU, têm expressado repetidamente sua "preocupação" pelo fato de que essas ações de Israel só conduzem a aumentar ainda mais o ódio entre nações e acentuar a "espiral de violência" no Oriente Médio. É certo. O ciclo infernal de terrorismo e violência em Israel/Palestina vai embrutecendo a população e os combatentes de ambos bandos, criando assim novas gerações de fanáticos e de "mártires". Porem o que não expressam, nem o Vaticano nem a ONU, é que a descida aos infernos de ódio entre nações é resultante de um sistema social, que de todos os lados, se encontra em profunda decadência. A história não é muito diferente no Iraque onde sunitas e xiita se matam mutuamente. Nos Bálcãs onde os sérvios se atiram contra albaneses ou croatas e vice-versa; entre Índia e Paquistão, hindus contra muçulmanos; para não citar a situação na África onde se multiplicam os conflitos étnicos e centenas de guerras arrasam o continente. A explosão desses conflitos em todo o planeta demonstra que a atual sociedade não pode oferecer nenhum futuro ao gênero humano.

E não se fala muito da implicação das "potencias democráticas", tão "humanitárias" e "preocupadas" elas, para mexer nesses conflitos. Só se fala desta implicação por parte das potências que têm interesses imperialistas opostos. Assim por exemplo, a imprensa britânica não se calou acerca da implicação francesa nas matanças perpetradas pelas milícias hutus em Ruanda em 1994. Não é tão "comunicativa", em troca, quando se trata de dar conhecimento acerca da implicação dos serviços secretos britânicos e norte-americanos para manipular a divisão entre sunitas e xiitas no Iraque. No Oriente Médio, é muito conhecido que por trás de Israel se encontra os Estados Unidos, como que o Iran e a Síria respaldam o Hezbollah e Hamas. Porém por trás do, supostamente, mais "imparcial" papel jogado pela França, Alemanha, Rússia e outras potências, se esconde que na realidade essas buscam defender os seus interesses particulares.

O conflito no Oriente Médio tem seus aspectos e suas causas específicas, porém unicamente pode ser compreendido no contexto de uma máquina capitalista mundial que se encontra cada vez mais fora de controle. A proliferação de conflitos bélicos em grande extensão do planeta, o curso incontrolável da crise econômica, e a aceleração da catástrofe do meio ambiente colocam todos eles em evidencia esta realidade. Porém se o capitalismo é incapaz de oferecer a mínima esperança de paz e prosperidade, existe sim, em troca, um motivo para confiar no futuro: a revolta da classe explorada contra a brutalidade deste sistema, uma revolta que se expressa mais abertamente na Europa com os movimentos das jovens gerações operárias na Itália, França, Alemanha e, sobretudo, na Grécia. Trata-se de mobilizações que, dada a sua autentica natureza proletária, põem pela frente a necessidade de uma solidariedade de classe e a superação de toda divisão de caráter étnico ou nacional. Apesar da sua pouca maturidade, esses movimentos proporcionam desde já um exemplo que, eventualmente, pode ser seguido por trabalhadores dessas partes do planeta mais devastadas pelas divisões no seio da classe explorada. Não estamos falando de uma utopia. Nos últimos anos temos visto as greves dos trabalhadores do setor público em Gaza pela falta de pagamento dos seus salários (leia: Israel/Palestina: la lucha obrera a pesar de la guerra [18]), que tiveram lugar ao mesmo tempo que seus irmãos de classe israelenses empreendiam a luta para protestar contra a austeridade, que é por sua vez conseqüência do descomunal peso da economia de guerra em Israel. É muito improvável que estes movimentos foram conscientes um do outro, porém colocam em evidencia a comunidade objetiva de interesses que existe entre os trabalhadores de ambos os lados da trincheira imperialista.

A solidariedade com as populações que estão suportando terríveis sofrimentos nas zonas de guerra não deve implicar em eleger o "mal menor", ou apoiar o bando capitalista "mais débil" - neste caso Hezbollah ou Hamas - frente às potencias que, como Israel, demonstram mais descaradamente sua agressividade. Hamas já demonstrou ser uma força burguesa opressora dos trabalhadores palestinos quando atuou contra as greves dos trabalhadores do setor público porque agiam contra "os interesses nacionais", ou quando em luta contra o Fatah, submeteu a população de Gaza em uma sangrenta luta de frações pelo controle da zona. A solidariedade com quem está capturado na guerra imperialista, significa rechaçar e não tomar partido por nenhum dos bandos em conflito, e em troca desenvolver a luta de classes contra todos os exploradores e opressores do mundo.

(03-01-2009)

Recente e atual: 

  • Guerra [19]
  • Gaza [20]

Greves nas refinarias e centrais elétricas: Os trabalhadores começam a enfrentar o nacionalismo

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Durante duas semanas todos os meios de "comunicação" [1] lançaram uma campanha infame apresentando os trabalhadores britânicos como xenófobos. Esta generalização abusiva realizada a partir do fato real de que em uma greve na refinaria de Lindsdey os trabalhadores haviam começado sua mobilização caindo na armadilha nacionalista ao tomarem para si o slogan eleitoral de Mr.Brown "empregos britânicos para trabalhadores britânicos" na luta contra a contratação em condições muito inferiores as atuais de 300 trabalhadores Italianos e portugueses.

Nossos companheiros da secção da CCI na Inglaterra haviam criticado o erro desse setor dos trabalhadores mostrando por sua vez o fundamento da luta contra o desemprego em massa e a deterioração das condições de vida e denunciando o perigo que representa o veneno nacionalista [2].

Entretanto uma coisa é o erro e outra muito distinta é a imagem que tem se repetido até causar náusea apresentando os trabalhadores ingleses como uma horda de fanáticos xenófobos que seriam fervorosos partidários do BNP [3]. Em seus delírios alguns comentaristas chegam a afirmar que "os protestos sociais contra a crise derivaram no mais puro fascismo".

A burguesia aproveita os erros do proletariado para montar estrondosas campanhas de intoxicação. O proletariado por sua vez, aprende dos seus erros. "Tão gigantescos como seus problemas são seus erros. Nenhum plano firmemente elaborado, nenhum ritual ortodoxo válido para todos os tempos lhes mostra o caminho a seguir. A experiência histórica é seu único guia: sua via dolorosa para a liberdade está repleta não só de sofrimentos inenarráveis, como também de incontáveis erros. O fim da viagem, a libertação definitiva depende por completo do proletariado, de si este aprende com seus próprios erros. A autocrítica, a crítica cruel e implacável que vai até às raízes do mal, é vida e alento para o proletariado" [4]. Isto é o que tem sucedido na Inglaterra e o que constitui o objetivo do artigo que apresentamos em continuidade dos nossos camaradas britânicos: o erro nacionalista inicial tem começado a ser enfrentado por um novo desenvolvimento das lutas operárias.

E aqui vemos o papel cínico e indigno dos meios de "comunicação" que se arvoram de "informar verdadeiramente e com neutralidade"! Sobre este novo desenvolvimento da luta está reinando a mais densa conspiração do silêncio. Nenhuma palavra! Como se não existisse!

Nós trabalhadores devemos dar-nos nossos próprios meios de informação e comunicação para conhecer a verdadeira realidade das nossas experiências de luta. Meios que não ocultem nossos erros inevitáveis porém que ao mesmo tempo dêem conhecimento das experiências positivas que fazem avançar todo o proletariado mundial.

CCI

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A onda de greves selvagens [5] iniciada pela luta dos trabalhadores da construção e manutenção da refinaria de Lidsdey constitui uma das lutas mais importantes que aconteceu na Inglaterra nos últimos 20 anos.

Milhares de trabalhadores da construção em outras refinarias e centrais elétricas pararam em solidariedade. Tem sido celebradas reuniões massivas cotidianamente. Trabalhadores desempregados da construção, da metalurgia, dos portos e outros trabalhadores, têm se unido aos piquetes e as manifestações organizadas pelos trabalhadores das centrais elétricas e refinarias. Os trabalhadores não tem se sentido intimidados pelo caráter ilegal das suas ações ao expressar a solidariedade com os seus companheiros ameaçados de desemprego, lançar aos quatro cantos sua raiva diante da escalada de desemprego e a incapacidade completa do governo em fazer alguma coisa contra isso. Quando 200 trabalhadores polacos se uniram efetivamente na luta, esta alcançou seu momento mais alto pois isso significou um desafio ao nacionalismo que no início tinha envolvido o movimento.

A demissão de 300 trabalhadores subcontratados da refinaria petrolífera de Lindsdey, a proposta de recontratação por outra empreiteira que alocaria 300 trabalhadores italianos e portugueses (porém em salários mais baixos duvido a condições de vida inferiores) assim com o anúncio de que não se contrataria trabalhadores britânicos acendeu a pólvora entre os operários da construção. Nesses últimos anos tinha se desenvolvido a tendência em contratar operários da construção estrangeiros com resultado a acentuação da concorrência entre operários para os empregos, e no final das contas uma deterioração dos salários e nas condições de todos trabalhadores, ingleses ou estrangeiros. Isto, somado a onda de desemprego tanto na construção como nos demais setores por conta da recessão, estimulou a combatividade operária que tem se expressado nessas lutas.

Desde o início, o movimento teve de abordar uma questão fundamental que afeta não somente aos grevistas atuais mas a toda classe operária presentemente e no futuro: Será que é possível lutar contra o desemprego e outros ataques identificando-se como "trabalhadores britânicos" e voltando-se contra os "trabalhadores estrangeiros"? Ou pelo contrário devemos nos conceber como trabalhadores com interesses comuns a todos os trabalhadores, de qualquer lugar do mundo? Isso é uma questão política profunda que o movimento teve de encarar.

Desde o início, a luta parecia ser dominada pelo nacionalismo. A imagem que percorreu o mundo foi aquela de trabalhadores exibindo cartazes feitos a mão que proclamavam: "empregos britânicos para os trabalhadores britânicos" e as federações sindicais traziam seus cartazes confeccionados profissionalmente com o mesmo slogan. Os sindicatos oficiais o defenderam de maneira mais ou menos explicita e as mídias falaram de uma luta contra os trabalhadores estrangeiros e encontraram trabalhadores britânicos compartilhando tal opinião. O movimento de greve selvagem podia ser abafado pelo nacionalismo e evoluir para uma derrota, para uma derrota, com trabalhadores atacando outros trabalhadores, com os trabalhadores gritando maciçamente consignas nacionalistas e reivindicando que os empregos sejam concedidos aos "britânicos" e reclamando que italianos ou portugueses percam seus empregos. Com isso a capacidade geral da classe operária para a luta se tornaria seriamente prejudicada e a classe dominante teria reforçado sua capacidade de ataque graças a crescente divisão dos operários.

A cobertura da mídia (e o que alguns trabalhadores diziam) facilitava pensar que as demandas dos trabalhadores de Lindsey se reduziam a "Empregos britânicos para trabalhadores britânicos". Porém as coisas não eram tão simples. O que se discutiu e se votou nas Assembléias não tinha nada a ver com esse slogan e não se viu nelas hostilidade alguma para com os trabalhadores estrangeiros. Engraçado como as mídias não pegaram isso! As assembléias expressaram ilusões acerca da habilidade dos sindicatos para barrar a escalada dos empresários em colocar operários contra operários, porém em nenhum momento houve um nacionalismo patente. Apesar disso, a impressão geral criada pelas mídias era a dos grevistas opostos a operários estrangeiros.

O peso persistente do nacionalismo

O nacionalismo faz parte integral da ideologia capitalista. Cada burguesia nacional somente pode sobreviver competindo com os seus rivais a nível econômico e militar. Sua cultura, sua mídia, sua educação, suas atividades de lazer e desportivas, propagam o veneno nacionalista a todo o momento com objetivo de atar os pés e mãos da classe operária à nação. A classe operária não pode evitar ver-se afetada por essa ideologia. Porém o que torna crucial no movimento que estamos falando é que o peso do nacionalismo, após uma desorientação inicial, tem começado a ser desafiado pelos trabalhadores que têm abordado a questão no curso da luta mesma.

O slogan nacionalista "Empregos britânicos para trabalhadores britânicos", tomado do BNP por Gordon Brown, gerou muita perturbação entre os trabalhadores tanto os grevistas como a classe em geral. Muitos grevistas deixaram bem claro que eles não eram racistas e que não apoiavam o BNP. Além do mais, os intentos deste em intervir na luta foram amplamente rechaçados pelos trabalhadores.

Alem do rechaço ao BNP muitos trabalhadores entrevistados pela TV expressavam uma reflexão a propósito do que significava sua luta. Deixavam claro que não estavam contra os trabalhadores estrangeiros, que eles mesmos já tinham trabalhado fora, porém ao mesmo tempo diziam que estavam desempregados e que queriam que seus filhos tivessem um emprego e que "o trabalho devia se primeiro para os britânicos". Semelhantes pontos de vista acabam com a idéia que os trabalhadores britânicos e estrangeiros não têm os mesmos interesses e, portanto, a cair na armadilha nacionalista.

No entanto, o processo de reflexão se desenvolvia. Outros trabalhadores sublinhavam que os interesses eram comuns entre todos trabalhadores e que queriam que todos tivessem a oportunidade de encontrar um trabalho. "Fui despedido como estivador faz duas semanas. Tinha trabalhado em Cardiff e em Barry Docks durante 11 anos e venho aqui para ver como podemos abalar o governo. Acredito que todo o país deveria entrar em greve porque estamos perdendo toda indústria britânica. Porém não temos nada contra os trabalhadores estrangeiros. Não podemos culpá-los de ir procurar trabalho no local onde possa encontrar" (Guardian On Line 20-1-2009). Houve também trabalhadores que argumentaram que o nacionalismo era um grande perigo. Um trabalhador que havia trabalhado no estrangeiro advertiu em um foro de trabalhadores da construção, da utilização pelos empresários das divisões nacionais entre trabalhadores: "As mídias corporativos tem agitado os elementos nacionalistas apresentando os manifestantes com a pior imagem possível. O último que querem os empresários e o governo é que os trabalhadores britânicos se unam com os de fora. Acreditam que podem nos fazer enfrentar uns aos outros pelos empregos. Um calafrio lhes escorre pelo corpo quando vêem que nós não agimos assim". Outra intervenção no mesmo fórum assinalava que a luta se relacionava com as que aconteceram recentemente na Grécia e na França e sublinhava a necessidade de laços internacionais: "Os protestos massivos na França e na Grécia são o anúncio do que está para vir. Acredito que construir contatos com esses trabalhadores para impulsionar amplos protestos na Europa é melhor que os partidos culpáveis que temos, os empresários, os líderes sindicais vendidos e o Novo Trabalhismo que continuam aproveitando-se da classe trabalhadora". (Thebearfacts.org). Trabalhadores de outros setores interviram igualmente para opor-se aos slogans nacionalistas.

Estas discussões sobre o nacionalismo, tanto entre os grevistas como entre os trabalhadores em geral, alcançaram uma nova fase, no dia 3 de fevereiro, quando 200 trabalhadores poloneses se uniram a 400 trabalhadores britânicos, lançando-se todos em uma greve selvagem, na obras da construção da central elétrica de Langage (Plymouth), em solidariedade com os companheiros de Lindsey. As mídias fizeram tudo possível para ocultar esse ato de solidariedade internacional: a emissora local da BBC não disse nada e apenas se pôde ver alguma pequena nota em algum jornal a nível nacional.

A solidariedade desses companheiros poloneses era muito importante porque no ano anterior haviam se envolvido em uma luta idêntica. 18 trabalhadores haviam sido demitidos e os demais trabalhadores se lançaram na greve, inclusive os de origem polonesa. Os sindicatos tentaram transformar a luta em um protesto contra a presença de trabalhadores estrangeiros, no entanto a participação ativa dos operários poloneses fez fracassar tal manobra.

Os trabalhadores de Langage tinham consciência de que em Lindsey os sindicatos haviam imposto suas consignas nacionalistas. Por isso no dia seguinte da sua greve de solidariedade, durante uma assembléia de Lindsey apareceu um cartaz feito a mão que dizia "Central Elétrica de Langage - Os trabalhadores poloneses se unem a greve: Solidariedade!". Isso queria dizer uma destas duas coisas: ou bem, trabalhadores de Langage haviam feito as 7 horas de viagem para estar presentes na assembéia de Lindsey, ou bem algum trabalhador de Lindsey queria sublinhar sua ação.

Ao mesmo tempo, no piquete de Lindsey apareceu um cartaz que estava escrito em inglês e em italiano. Também no Guardian de 05-02-09 se informa que apareceram alguns cartazes que diziam "Trabalhadores do mundo uni-vos!" Vemos pois, que se expressam os primeiros passos de um esforço consciente de alguns trabalhadores para por adiante um genuíno internacionalismo proletário, um passo que levará a mais reflexão e discussão dentro da classe.

Tudo isso colocou a necessidade de que a luta avançasse para um nível superior tratando de desafiar diretamente o veneno nacionalista. O exemplo da solidariedade dos operários poloneses colocava a perspectiva de que milhares de trabalhadores dos grandes centros da Construção na Inglaterra e em particular das Olimpíadas no Leste de Londres, pudessem unir-se a luta. Existia também o perigo para a burguesia de que a mídia se não pudesse ocultar os slogans internacionalistas. Como as barreiras nacionalistas haviam começado a ser atacadas não foi uma surpresa de que o conflito foi tão rapidamente resolvido. Em 24 horas, sindicatos, empresários e governo prometeram 102 empregos extra para trabalhadores britânicos, além dos 300 para italianos e portugueses. Muitos grevistas se mostraram contentes porque não havia se perdido os 300 empregos de italianos e portugueses. Como disse uma grevista "porque temos de lutar para simplesmente conseguir trabalho?"

No curso de uma semana temos visto a extensão de greves selvagens maiores em décadas com assembléias massivas e ações ilegais de solidariedade sem a menor hesitação. Uma luta que poderia ter sido abafada pelo nacionalismo começou a colocá-lo em questão. Isso não significa que o perigo de nacionalismo esteja superado, pois é um perigo permanente, porém esse movimento proporciona às futuras lutas lições importantes. Desde já, o surgimento de um cartaz dizendo "trabalhadores do mundo uni-vos" em um piquete que se supunha ser a vanguarda do "nacionalismo xenófobo" não deixará de preocupar a classe dominante sobre o que está por vir.

Phil 7-2-09


 


[1] O nome que deveria ser dado a eles é "meios de deformação, desinformação e falsificação".

[2] Ler em espanhol https://es.internationalism.org/ccionline/2009_oil [21]

[3]. British Nationalisr Party, partido fascista inglês cujas origens se encontram nos anos trinta.

[4] Rosa Luxemburgo, A crise da Social-democracia.

[5] A expressão "greve salvagem" tem origem da época de 1968 e designa lutas travadas pelos operários independentes das convocatórias sindicais.

Honduras: o proletariado não tem que eleger campo em uma confrontação entre bandidos

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A crise política que tem se desenvolvido em Honduras com o golpe de estado ao presidente Manuel Zelaya no dia 28 de junho passado, não representa "um golpe a mais" nesta pobre e pequena "República das Bananas" de 7,5 milhões de habitantes. Este acontecimento tem repercussões geopolítica importantes e também a nível da luta de classes .

Os fatos

Zelaya, empresário e membro da oligarquia hondurenha, iniciou seu mandato no começo de 2006 como representante do Partido Liberal de Honduras, a direita. Desde o ano passado foi aproximando-se da "franquia" chavista do "Socialismo do Século 21"; em agosto de 2008, com o apoio do seu partido logrou que o Congresso aprovasse a incorporação de Honduras ao ALBA (Alternativa Bolivariana para América Latina e o Caribe), mecanismo criado pelo governo de Chávez para fazer frente à influência da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) promovida pelos Estados Unidos. Este acordo, que recebeu forte crítica de setores políticos e empresariais, facilitava ao estado hondurenho o pagamento da fatura do petróleo que tem um peso importante sobre a sua economia.

Ao ingressar na ALBA, Honduras contaria com um crédito de $400 milhões para compra de hidrocarbonetos da Venezuela a ser pagos em condições vantajosas; "ajuda importante para um país com um PIB de $10,8 milhões, segundo dados da CEPAL para 2006, cujos pagamentos por importações de hidrocarbonetos se estima que ultrapassam 30% do PIB, segundo a mesma fonte. Porém o "Socialismo do Século 21" não é uma simples franquia comercial, requer que os governantes que a adquiram, apliquem uma série de medidas populistas de fisionomia esquerdista; que o Executivo controle abertamente as instituições do Estado e os poderes públicos, e que ataque frontalmente as velhas "oligarquias" nacionais. É por esse motivo que Zelaya deu uma reviravolta política de 180º ao passar em poucos meses, de um liberal de direita para um esquerdista defensor dos pobres e do "socialismo".

Diante das proximidades das eleições de novembro deste ano, a partir de fevereiro do corrente ano Zelaya acelera a pressão sobre as instituições do estado para promover sua reeleição, o que gera conflitos entre o Executivo e os outros poderes públicos e inclusive com seu próprio partido. Em maio passado, apoiando-se em organizações populares e sindicais, pressiona as Forças Armadas para apoiar a realização de um plebiscito para emendar a constituição com vistas à reeleição; ação que é rechaçada pelo Alto comando militar. Em 24 de junho Zelaya destitui o chefe do Estado Maior Conjunto, que foi reconduzido de imediato pela Corte Suprema de Justiça, o que serve de detonante para o golpe de estado em 28 de junho, data prevista pelo Executivo para a realização da consulta popular. Nesse dia Zelaya é forçado pelas forças militares a sair de "Camisa e cueca" de Tegucigalpa (capital de Honduras) a São José (capital da Costa Rica). Com o apoio do Exercito e da Corte Suprema o Congresso nomeia Roberto Micheletti (presidente do Congresso) como novo presidente.

Nossa análise

É evidente que na raiz da crise política de Honduras estão as intenções imperialistas da Venezuela na região. Na medida em que o chavismo tem se consolidado, a burguesia venezuelana tem avançado no seu velho interesse geopolítico de fazer da Venezuela uma potencia regional; com este fim utiliza o projeto do "Socialismo do Século21", que se sustenta socialmente nas camadas mais depauperadas e utiliza o petróleo e suas receitas como arma de convencimento e coerção. O crescimento da pauperização, a decomposição das velhas classes dirigentes e a fragilização geopolítica dos Estados Unidos no mundo, tem permitido a burguesia venezuelana avançar de maneira progressiva com o seu projeto em vários países da região: Bolívia, Equador, Nicarágua, Honduras e alguns países do Caribe.

Por suas características populistas e o seu antiamericanismo "radical", o projeto chavista necessita do controle totalitário das instituições do Estado e a montagem de uma polarização política entre "ricos contra pobres", "oligarcas contra o povo", etc., o que o transforma em uma fonte permanente de ingovernabilidade para o próprio capital nacional. Para sua execução requer além do mais de mudar as Constituições através da criação de assembléias constituintes, que dão uma base legal às mudanças necessárias para avalizar as novas elites "socialistas" no poder, promovendo a reeleição presidencial, dentre outras medidas. O catecismo que é aplicado pelo chavismo é fartamente conhecido pelas burguesias da região.

Honduras é um desejado objetivo geoestratégico. do chavismo: lhe permitiria ter acesso no Atlântico centro-americano através do porto Cortés,  que também serve ao comércio exterior de El Salvador e Nicarágua; desta maneira a Venezuela disporia de um "canal" terrestre que  uniria o Atlântico com o Pacífico, através da Nicarágua e Honduras, e facilitaria seu controle sobre El Salvador; situação que dificultaria o desenvolvimento do Plano Puebla Panamá proposto pelo México e Estados Unidos.

De outro lado Honduras conta com as condições "naturais" para o desenvolvimento do projeto populista esquerdista de Chávez, pois é o terceiro país mais pobre da América depois do Haiti e da Bolívia. A massa de miseráveis que a crise inevitavelmente incrementa de forma acelerada, são os principais consumidores das falsas esperanças de sair da sua situação de miséria, esperanças que fazem parte do receituário do "Socialismo do Século 21". É para estas massas que se dirige a mensagem chavista, a qual necessita em permanente mobilização, com o apoio de sindicatos e partidos de esquerda e esquerdista, e das organizações sociais campesinas, indigenistas, etc.

O chavismo, resultado da decomposição da burguesia venezuelana e mundial, utiliza e adota as expressões de decomposição no seio das burguesias da região. Pela necessidade de polarizar a confrontação entre as frações burguesas, se transforma em um fator da ingovernabilidade que por si só tem a sua própria dinâmica pela decomposição. A recente crise em Honduras, que apenas se inicia, representa um agravante da situação nas "Repúblicas das Bananas" centro-americanas, que não conheciam crises como a atual desde os anos 80, quando os conflitos na Guatemala, El Salvador e Nicarágua, deixaram um saldo de quase meio milhão de mortos e milhões de exilados.

Evidências da Hipocrisia

Pouco antes do golpe de estado Chávez já havia posto em funcionamento sua maquinaria geopolítica, alertando aos presidentes "amigos", denunciando os militares "gorilas", etc. Consumado o golpe, convocou uma reunião de emergência na Nicarágua dos países integrantes da ALBA onde anunciava a suspensão do envio de petróleo para Honduras e ameaçava com o envio de tropas no caso de que a sede da embaixada venezuelana em Honduras fosse atacada. Além disso, colocou a disposição de Zelaya os recursos do Estado venezuelano: o Ministro de Relações Exteriores foi transformado em assistente pessoal do presidente deposto já que o acompanhava em seus périplos por vários países; os meios de comunicação do Estado, principalmente o canal internacional de TV Telesur, de forma massacrante transmitiram informações sobre Zelaya, vitimizando-o e colocando-o como um grande humanista e defensor dos pobres; o discurso de Zelaya na ONU foi transmitido na Venezuela em cadeia nacional de Rádio e TV.

Chávez faz insistentes chamados aos "povos da América" para defender a democracia ameaçada pelos "gorilas militares golpistas", possivelmente para fazer-nos esquecer o fato de que ele mesmo foi um deles ao encabeçar um golpe de estado na Venezuela contra o presidente social-democrata Carlos Andrés Perez em 1992. São precisamente esses "gorilas militares", a polícia do Estado chavista e tropas de choque que reprimem, não só as manifestações dos opositores ao regime, como também as próprias lutas dos trabalhadores na Venezuela, tal como Internacionalismo tem denunciado através de vários artigos em nosso Site (Ver El Estado "socialista" de Chavez nuevamente reprime y asesina proletarios, https://es.internationalism.org/node/2589 [22]).

Porém a montanha de hipocrisia abarca toda a "comunidade internacional". A OEA, a ONU, a CE e muitos outros países que têm condenado o golpe e pedido a recondução de Zelaya; muitos deles têm retirado seus embaixadores de Honduras. Porém isto não é mais que formalismos e consumo mediático para a mídia, para tentar tratar a doente democracia burguesa, e a essas organizações que cada vez mais perdem credibilidade.

Como explicar o comportamento dos Estados Unidos diante dessa crise?

Para surpresa da chamada "esquerda" e dos seus apêndices "esquerdistas", também os Estados Unidos tem condenado o golpe e tem pedido a recondução de Zelaya. Segundo a própria Secretária de Estado Hillary Clinton, a embaixada dos Estados Unidos em Honduras e Tom Shannon, subsecretário de Estado para o hemisfério ocidental, tiveram uma participação ativa nos meses que antecederam o golpe, segundo eles para evitar que se instalasse a crise. Devemos perguntar: Será que o problema escapou das mãos dos Estados Unidos? Tem tornado tão débil a diplomacia norte americana na região depois do governo Bush?

Não há que se descartar a possibilidade de que em efeito os Estados Unidos não tenham conseguido controlar as frações da burguesia hondurenha em disputa, o que refletiria o nível de decomposição nas filas da burguesia e das debilidades geopolíticas dos Estados Unidos no seu próprio "pátio traseiro", que o torna difícil controlar os efeitos do neo-populismo esquerdista de governos onde seus presidente são eleitos por vias democráticas (muitas vezes por ampla maioria), porém uma vez no poder tomam o Estado por assalto e se transformam em ditaduras abertas que com verniz democrático.

No entanto, vemos que não é assim. Ao condenar o golpe e exigir a recondução de Zelaya, os Estados Unidos utiliza a crise hondurenha para tentar "limpar a barra" na região que ficou bastante suja na administração Bush. De Obama ter atuado como Bush (quando, por exemplo, ele apoiou o golpe de estado contra Chávez em abril de 2002), havia dado argumentos para acender o antiamericanismo na região e debilitar a estratégia de abertura diplomática da nova administração.

Não há de descartar que os Estados Unidos tenham deixado que a crise hondurenha "seguisse seu curso" para utilizá-la no sentido de debilitar o chavismo na região. Ao atuar com o fez, os Estados Unidos obriga Chávez a ter que dar a cara para defender o seu "pupilo" Zelaya e mostrar seu real papel de incendiário na crise hondurenha. Por outro lado, permite que a OEA e outros dirigentes da região tentem solucionar uma crise, na qual os Estados Unidos seria "um a mais". Desta maneira, seria a "comunidade americana" a responsável pelo desenlace da crise, embora pouco a pouco vão surgindo as evidências que comprometem Chávez e Zelaya como responsáveis pela crise. O rechaço pelo novo governo hondurenho da decisão da OEA de repor Zelaya, o "fracasso" da gestão de Insulza na sua viagem de 13 de julho a Tegucigalpa e as ações do governo de Micheletti para impedir a aterrisagem do avião venezuelano que trazia Zelaya desde Washington no domingo 5 de julho, contribuíram para agravar a crise e desmascarar Chávez, que havia denunciado que por trás desses fatos está o "imperialismo Ianque" e convidou Obama, a "vitima do imperialismo" a intervir de maneira mais contundente em Honduras!!

Sem nenhuma dúvida a situação para os Estados Unidos é bastante complicada, pois de um lado necessita dar uma lição em Chávez e seus seguidores; por outro lado, a situação pode se tornar explosiva em momentos que tem outras prioridades geopolíticas como a intervenção no Afeganistão, a crise com a Coréia do Norte, etc. E ainda a decomposição da própria burguesia hondurenha e da burguesia da região incluída a venezuelana, pode gerar uma situação incontrolável.

Nas últimas horas foi dado conhecimento que Zelaya havia aceitado a mediação na crise do presidente Oscar Arias da Costa Rica, por solicitação da Secretária de Estado Hillary Clinton; o que indica o papel central que joga os Estados Unidos nessa crise.

Uma reflexão sobre a geopolítica regional

A crise em Honduras é de maior dimensão que a recente crise entre Colômbia, Equador e Venezuela com referência a questão da FARC, na qual também tiveram uma participação de primeiro plano o governo de Chávez. Nicarágua, aliada de Chávez, tem agendado um conflito com a Colômbia pelo arquipélago de Santo Andrés no Caribe.

Nestes conflitos se fala de mobilização de tropas, inclusive a Venezuela mobilizou suas tropas na fronteira com a Colômbia, quando do conflito com o Equador. Embora essas mobilizações cumpram um objetivo midiático para "distrair" o proletariado e a população, a realidade é que a burguesia, na sua entrada na crise e na decomposição utiliza cada vez mais a linguagem e os meios bélicos.

Como também a influência de Chávez e seus seguidores estão presentes nas últimas crises e confrontações na Bolívia, e na fraude eleitoral que a oposição denuncia nas eleições municipais passadas (prefeitos e conselheiros) na Nicarágua, e o governo peruano denuncia a intromissão da Bolívia e Venezuela nas confrontações em Bagua. O governo de Chávez, produto e fator da decomposição, não tem outra escolha senão prosseguir sua ofensiva para diante. Tem se associado a Estados e organizações que praticam o antiamericanismo de maneira radical: Iran, Coréia do Norte, Hamas, etc. . Por outro lado, na Venezuela há uma situação interna bastante grave como conseqüência da crise que afeta as receitas da venda do petróleo (que são fundamentais para a geopolítica do Estado venezuelano) e conseqüência também da emergência de lutas operárias, tudo isso pressionando o governo a manter um clima de tensão interno e externo.

Os Estados Unidos estão em desvantagem para colocar a ordem no seu pátio traseiro. Burguesias regionais como México, que poderiam conter a ação do chavismo e das crises políticas na sua área de influência natural como é a América Central, observamos que está envolvida na sua crise interna e nas confrontações contra o narcotráfico; um senador norte-americano chegou a dizer faz poucos meses que o Estado mexicano não existia. A Colômbia ponta de lança dos Estados Unidos na região, tem se limitado em conter a ofensiva de Chávez, com quem tem conseguido uma relação de equilíbrio bastante frágil. Brasil, que tem interesses econômicos na América Central (investimentos em agricultura para produção de bicombustíveis) e tem levado ações geopolíticas que o tem fortalecido como potência regional, parece que (de maneira idêntica aos outros países mencionados) não tem maior interesse em solucionar uma crise promovida por Chaves, seu competidor na região e possivelmente vai deixá-lo que se "cozinhe no seu próprio molho"; embora faça esforços para levar certa estabilidade na região, o faz como potencia que quer realizar seu próprio espaço e neste sentido também compete com os Estados Unidos.

As perspectivas para a região direcionam para um acirramento dos conflitos, o que sem dúvidas vai requerer fortes campanhas para ludibriar o proletariado. A polarização política se inscreve nessa perspectiva. Pensamos que a CCI e o meio internacionalista deveríamos debater com maior profundidade sobre esses aspectos, que se inscrevem na nossa visão das tensões inter imperialistas.

Quais são as conseqüências para o proletariado?

Não há dúvida que esta crise reforça a burguesia contra o proletariado. Volte ou não Zelaya, a polarização política já está instalada em Honduras e vai se ampliar. Nesse sentido é uma fonte de divisão e confrontação no seio da própria classe, tal como vemos na Venezuela, Bolívia, Nicarágua e no Equador.

Por outra parte, a burguesia utiliza a e vai utilizar a situação de Honduras para fortalecer a mistificação democrática; no sentido que esta seria capaz de fazer autocrítica para sanear as instituições do Estado. Nesse sentido, a mistificação eleitoral vai se fortalecer a nível regional com as próximas eleições em Honduras.

A crise vai acentuar a pobreza em um dos países mais pobres da América Central: as remessas que são enviadas pelos Hondurenhos que vivem fora do país, para suas famílias (que alcançam 25% do PIB) estão começando a escassear. De outro lado, a decomposição social que condena centenas de milhares de jovens a "viver" se integrando nas gangues, na criminalidade e nas drogas, inevitavelmente vai se acelerar com a crise e a decomposição política nas fileiras da burguesia. Essa massa de pobres forma um caldo de cultura para a emergência de outros Chávez, locais e regionais que semeiam esperanças nas massas despossuídas, porém que sabemos não representa nenhuma saída real.

É por isso que o proletariado hondurenho, regional e mundial e o meio internacionalista devem rechaçar de maneira clara qualquer apoio às forças burguesas nacionais ou regionais em disputa; devem rechaçar a polarização política induzida pelos conflitos inter-burgueses, que já tem ceifado muitas vidas na região, dentre elas vidas proletárias. A confrontação em Honduras é a expressão de que o capitalismo se afunda cada vez mais na decomposição, que leva a confrontações das frações burguesas a nível interno, das grandes, médias e pequenas potencias a nível regional; confrontações que a crise vai exacerbar.

Apesar da sua debilidade numérica, só a luta do proletariado hondurenho no seu terreno de classe, alavancado pela luta do proletariado regional e mundial poderá dar fim a toda essa barbárie.

Internacionalismo

Há noventa anos, a revolução alemã

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Há 90 anos a revolução proletária chegava a seu auge trágico com as lutas na Alemanha de 1918-19. Depois da revolução vitoriosa de Outubro 1917 na Rússia, a Alemanha passou a ser o principal campo de batalha da revolução mundial. Aí a batalha decisiva foi travada e perdida. O movimento revolucionário na Alemanha quase conseguiu provocar a queda da dominação de classe da burguesia alemã.

Mas de que revolução alemã trata-se? Até na própria Alemanha muitos operários nada sabem deste acontecimento. A contra-revolução, notadamente sob sua forma nazista e stalinista, afetou em muito a memória coletiva do proletariado. Será que realmente houve uma revolução alemã? Para responder essa pergunta, deixemos os eventos históricos falarem por eles mesmos.

O contexto: traição da social-democracia, dos sindicatos e da retomada da luta de classe

A onda revolucionária mundial iniciou como oposição à Guerra; e isso simplesmente dois ou três anos depois da maior derrota política do movimento operário. Essa foi constituída pela queda da internacional socialista pela traição da maior parte dos partidos social-democratas que votaram a favor dos créditos de guerra, avalizando assim sua aprovação à guerra e seu alistamento a um campo imperialista. Os sindicatos assumiram essa política, mobilizando o proletariado no massacre dos seus irmãos de classe além das fronteiras.

Para os revolucionários de então, era importante que fosse a classe operária que colocasse um termo à guerra pela revolução. Qualquer outro cenário de final de guerra teria significado somente um "cessar-fogo" até a próxima guerra.

Em 1917 na Alemanha, já tinha acontecido greves massivas em solidariedade com a revolução russa. Em 1918, o proletariado na Rússia esperava ardentemente a revolução na Alemanha, perspectiva apoiada pela existência de greves massivas estourando nas grandes cidades. Entretanto, isso era somente o prelúdio da revolução. Os soldados cansavam da guerra, muitos desertavam enquanto a população na retaguarda sofria de fome.

E a revolução estourou não em Berlin onde se podia esperá-la, mas no litoral, em Wilhelmshaven.

Ao estourar, a revolução coloca um termo à guerra

No dia 4 de novembro 1918, uma parte dos marinheiros da frota se sublevou. Os rebeldes foram levados para Kiel onde a execução os esperava. O que aconteceu em reação a isso para impedir tal fim trágico? A solidariedade se expressou concretamente e foi estimulada por essa outra parte dos marinheiros que não participaram nesse primeiro ato da rebelião. Passaram três dias em discussão, com os operários e os estivadores, sobre o que fazer. No terceiro dia, milhares de operários se juntaram a eles numa grande passeata de demonstração de força.

Era o início da revolução cujo destino devia ser decidido em Berlim. Já chegavam à capital as tropas contra-revolucionarias que tinham sido utilizadas com êxito para massacrar a revolução finlandesa.

Em Berlim, no dia 9 de novembro, mais de 100.000 operários saíram das fábricas na madrugada, dirigindo-se para o centro da cidade. Fizeram paradas no caminho para arrastar massas operárias e também diante dos quartéis. Esperavam o pior, mas, apesar disso, a determinação era grande para tentar convencer os soldados. Havia cartazes dizendo "Irmãos, não atirem!". A tensão aumentava e os soldados abriram os quartéis, ajudaram a erguer a bandeira vermelha e acompanharam as massas. A guerra foi encerrada e iniciou a revolução alemã. Mas a dominação do capital não estava ainda derrubada.

O SPD[1], pilar da resistência ao desenvolvimento da revolução

Ao meio dia, diante da pressão das massas reunidas na frente do Reichstag, o reformista Scheidemann - traidor - proclamou a república alemã livre. Pouco tempo depois, Karl Liebknecht e outros prisioneiros que tinham sido libertados pelo proletariado revolucionário, estavam com 100 000 operários na frente do palácio do imperador. Proclamou a república socialista e chamou à luta pela revolução mundial. Nesse intervalo, os delegados de fábrica ocupavam uma sala do Reichstag redigindo um chamamento aos soldados e operários de Berlim para que elegessem, no dia seguinte, delegados ao conselho de operários e soldados. O conselho nomeou um governo socialista provisório sob a direção de Friedrich Ebert, chefe da fração reformista - traidora -da social-democracia.

À noite do mesmo dia, Ebert assinava um acordo secreto com o alto comando geral militar com a finalidade de esmagar a revolução.

Era o final da dominação imperial na Alemanha, por enquanto a batalha real entre proletariado e o capital estava ainda à frente.

Apesar da revolução do dia 9 de novembro ter sido liderada pelos operários, Rosa Luxemburgo chamou essa primeira fase de "revolução dos soldados", pois a principal preocupação tinha sido a paz. Uma vez a guerra acabada, a revolução tinha de enfrentar as ilusões dos soldados e operários na social-democracia. Richard Müller, delegado de fábrica e que, como Trotski na Rússia foi eleito presidente do conselho geral dos operários e soldados, confirmou que, nas reuniões do conselho, muitos soldados estavam quase para linchar qualquer revolucionário estigmatizando a social-democracia como contra-revolucionária.

Apesar disso, segundo os revolucionários, a revolução se mantinha proletária, pois tinha criado conselhos operários e de soldados, os próprios órgãos de poder. A própria existência destes órgãos, apesar de serem dominados pela social-democracia, constituía uma declaração de guerra aos próprios órgãos de poder na Alemanha. Isso significava o começo da guerra civil na Alemanha. A questão fundamental era: Serão os conselhos e a classe operária capazes de impulsionar para diante o projeto revolucionário? O tempo jogava a favor do proletariado, pois era cada vez mais claro que, apesar do fim da guerra, seus problemas não deixavam de exigir uma solução urgente: a fome, a inflação, as reduções de salário, a aceleração do desemprego, etc.

No final de 1918, foi realizado o congresso do Spartakusbund e dos comunistas internacionalistas da Alemanha (Esquerda de Bremen). Foi o congresso de fundação do KPD.

As reivindicações econômicas tinham jogado um papel secundário durante a revolução de novembro. Precisava da segunda fase caracterizada pela luta massiva do conjunto do proletariado combinando as reivindicações econômicas e políticas.

Naturalmente, a contra-revolução não estava alheia. Estava ocupada em preparar o esmagamento da revolução através de provocações. A social-democracia era o cérebro dessa estratégia que se apoiava sobre as ilusões de muitos operários sobre este partido que consideravam ainda como proletário, apesar dele ter traído a classe operária em 1914.

A guerra civil na Alemanha 1918 - 19

O estado de dissolução do exército dificultava sua utilização como instrumento do terror branco. É por conta disso e com objetivo de assumir esta tarefa que foram fundados Corpos-Francos que, mais tarde, constituirão a coluna vertebral do movimento nazista.

A Social-democracia justificava nas mídias o terror branco na luta contra os "Spartaquistas assassinos". Ao mesmo tempo, o principal jornal social-democrata, Vorwärts, instigava abertamente o assassinato de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo.

Houve três ofensivas abertas da burguesia contra a revolução:

  • A primeira: No dia 6 de dezembro, a sede do jornal spartaquista Rote Fahne foi atacada; e logo depois uma manifestação de Spartacus foi atacada de surpresa perto do centro da cidade; houve uma tentativa de deter e assassinar Liebknecht. Em reação houve as primeiras manifestações em solidariedade com o Spartakusbund em Berlin e greves na indústria pesada na Alta-Silésia e em Ruhr.
  • A segunda ofensiva da contra-revolução foi o assalto da divisão de marinheiros armados que ocupavam o arsenal em Berlim. A presença desta constituía uma mera provocação à burguesia, pois tinham trazido a revolução do litoral para a capital. Campanhas das mídias preparando a ação militar acusaram os marinheiros de serem assassinos, ladrões e Spartaquistas. Assim que os marinheiros foram atacados, numerosos operários, mulheres e filhos, despertados pelo barulho chegaram espontaneamente para apoiá-los. Muitos entre eles, sem nenhuma arma, ficaram entre os soldados e os alvos de seus tiros, os marinheiros. Sua coragem e capacidade de persuasão fizeram com que os soldados baixassem suas armas e tomassem as de seus oficiais. No dia seguinte, em Berlim, houve a manifestação mais massiva desde o início da revolução, desta vez contra o SPD.

O SPD e as elites militares se deram conta de que os ataques diretos contra símbolos da revolução, como Liebknecht ou a divisão de marinheiros, só faziam fortalecê-la, pois resultavam em reações de solidariedade e de protesto no seio do proletariado. É a razão pela qual o alvo da terceira ofensiva não teve nada a ver com tal símbolo: o chefe de polícia de Berlim, Emil Eichhorn, membro da esquerda da USPD, fração centrista da Social-democracia, oscilando entre a direita reformista e traidora e a esquerda marxista, os Spartaquistas. Foi por "capricho do destino" que tal homem se encontrava em tal lugar. A contra-revolução esperava pouca solidariedade dos operários para Eichhorn, e uma reação limitada do proletariado em Berlim poderia ser esmagada antes dela receber o apoio da província. Ai começou uma campanha contra o prefeito Eichhorn. Mas os operários entenderam que o ataque ao prefeito era um ataque à revolução. No dia seguinte, 500 000 operários manifestaram em Berlim.

Todas essas reações do proletariado constituíram na realidade etapas na direção da revolução permitindo ao proletariado fortalecer a confiança em si mesmo.

Nesse período, o Rote Fahne do KPD apoiava a necessidade de novas eleições nos conselhos, totalmente dominados pelo SPD e pelo USPD para que se refletisse neles a evolução dos operários para as posições da esquerda. Além disso, conclamava o armamento dos operários sem deixar de evidenciar que a hora da tomada do poder não tinha chegado ainda, pois o resto do país não estava tão avançado como em Berlim.

Uma armadilha fatal contra a revolução em janeiro de 1919

Os chefes revolucionários se reuniram para dar objetivos a essa massa de 500 000 operários nas ruas de Berlim. Participaram 70 delegados de fábrica (esquerda do USPD e próximos ao KPD), Karl Liebknecht e Wilhelm Pieck pelo KPD e, mais tarde, alguns chefes da USPD. Tinham recebido relatórios informando que algumas guarnições militares tinham expressado sua vontade em participar da insurreição armada. Os chefes revolucionários estavam indecisos. Chegaram outras informações dizendo que o bairro "dos jornais", e em particular o Vorwärts, tinha sido ocupado. Aí perderam a cabeça. De repente Karl Liebknecht se posicionou a favor da tomada do poder. A greve geral foi votada e houve uma grande maioria a favor de derrubar o governo e manter a ocupação do bairro dos jornais (só seis votaram contra). Além disso, fundaram um Comitê provisório de iniciativa revolucionária. O proletariado tinha caído na armadilha. Logo foi comprovado que os relatórios recebidos eram falsos.

A direção do KPD ficou horrorizada quando soube da insurreição proposta. Neste instante, era claro que as advertências de Rosa Luxemburgo contra uma insurreção prematura não tinham sido entendidas. O que podia ser feito para libertar o proletariado desta armadilha? O KPD logo encontrou uma postura comum. Até agora tinha sido contra uma insurreição prematura. Já que o erro foi cometido, julgaram que deviam apoiar totalmente a classe nesta orientação. Só a tomada do poder em Berlim podia doravante impedir um derramamento de sangue.

Apesar dos operários terem evoluído para a esquerda desde 1918 e desconfiarem cada vez mais da social-democracia isso não implicava que a liderança política estava claramente entre as mãos do KPD. Não havia tal liderança revolucionaria clara e reconhecida do proletariado e isso constituía uma fraqueza crucial para ele. Na realidade a liderança estava nas mãos dos centristas da USPD. Sua política de oscilações confundia os operários, especialmente quando o Comitê provisório de iniciativa revolucionária (do qual os membros do KPD tinham saído) iniciou negociações com o SPD em lugar de combatê-lo.

Chegou o momento que era esperado pela reação há muito tempo. O terror branco atacou com força através da artilharia, de assassinatos, atos de violência contra os operários e soldados, maltratando mulheres e crianças. Além disso, a contra-revolução lançou rapidamente a caça sistemática contra Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Mas a batalha não estava ainda definida.

Diante da inflação, das demissões, do desemprego massivo, as greves massivas se estenderam no país inteiro, particularmente na Alta-Silesia, na Renânia, em Westphalia (ao longo do Ruhr) e na Alemanha central. A região do Ruhr especificamente era muito combativa com milhões de mineiros e operários siderúrgicos implicados nas greves e outras ações.

Enquanto a greve de massa se expandia no país inteiro, a Berlim revolucionária lutava pela sua sobrevivência.

No dia 15 de janeiro, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram detidos e brutalmente assassinados pelos Corpos Francos. No dia seguinte a mídia disseminava a mentira segundo a qual Rosa Luxemburgo foi linchada pela multidão exasperada e que Liebknecht foi morto quando tentou fugir. Alguns dias mais tarde, já estava claro que tudo isso era mentira. Quando os operários tomaram conhecimento do assassinato foram tomados por um sentimento de horror. No dia 25 de janeiro, o carrasco Noske do SPD pôde proclamar o estado de guerra em Berlim sem ter medo das reações do proletariado. O SPD instalou uma ditadura militar.

A luta pelo prosseguimento da revolução foi derrotada

Diante da repressão na Renânia e Westphalia, a greve retomou vigor em todo país até que as guarnições militares como nas cidades de Erfurt e Merseburg deram explicitamente seu apoio aos operários revolucionários. Nesse instante, a greve tinha alcançado seu auge. A única possibilidade de passar para uma etapa superior era que os operários de Berlim se juntassem a greve. No dia 25 de fevereiro a greve geral era total e o governo tinha fugido para a pequena cidade de Weimar. Depois de ter assistido aos atos sangrentos do SPD em Berlim e em outros locais, os operários não acreditavam mais nos seus apelos pela paz.

O SPD tentou impedir a greve em Berlim por todos os meios. O conselho geral do soviete hesitava. A decisão foi finalmente tomada pelos próprios operários que enviaram delegados das grandes fábricas para informar ao conselho que todas as fábricas já tinham votado a greve. A greve geral se expandiu na cidade inteira. Diante desta situação, os delegados do SPD no conselho operário e de soldados votaram a favor da revolução, contra a linha de seu partido.

Foi um momento trágico: o proletariado de Berlim conseguiu mais uma vez se levantar para seguir seus irmãos e irmãs de classe, porém tarde demais. A greve na Alemanha central, que tinha esperado tanto por um sinal de Berlim, estava acabando. O trauma de Janeiro 1919 tinha sido fatal. A hora da contra-revolução tinha chegado. O terror branco foi desencadeado no país inteiro, mais particularmente em Berlim. Milhares de operários revolucionários e revolucionárias foram caçados e assassinados. Entre eles, Jogiches.

Conclusão

Terminamos destacando os ensinamentos essenciais da revolução alemã:

  • Ela foi feita pelas massas proletárias e teve como primeiro efeito o de obrigar a buguesia colocar um termo final à Primeira Guerra mundial para não correr o risco de precipitar o desenvolvimento da revolução mundial;
  • Faltou pouco para que a revolução conseguisse derrubar a burguesia na Alemanha. Obviamente tal conclusão teria levado à possibilidade da vitória da revolução em escala mundial;
  • Um fator essencial da derrota era que a revolução alemã foi confrontada com um inimigo muito mais forte do que na Rússia. O SPD, partido socialista, contribuiu em muito para dar essa força à burguesia. Com efeito, soube aproveitar-se da confiança que ainda gozava no seio da classe operária para assumir o papel de verdugo da revolução e do proletariado.

       Corrente Comunista. Internacional


[1] Partido Social-democrata de Alemanhã.

O que é o marxismo?

  • 13050 leituras

Se hoje colocamos a questão, deve-se em muito porque vimos florescer nos dias atuais, nas livrarias, particularmente na Europa, este tipo de título na capa de revistas:

  • Marx ainda está vivo (Challenges, dezembro 2007)
  • Marx, de volta (Correio Internacional, julho 2008)
  • Marx, as razões de um renascimento (O magazine literário, Outubro de 2008)
  • A grande volta de Marx (O novo observador, agosto de 2009)

Todos eles, no seu estilo, bajulam o gênio deste "grande pensador".

Este amor repentino pode surpreender. Há pouco, alguns anos atrás, Marx era apresentado como o diabo. Françoise Giroud (jornalista e mulher política na França) até escreveu uma biografia de Jenny Marx, a mulher de Karl, intitulada nada menos de que Jenny Marx ou a mulher do diabo! Tudo era culpa dele: os horrores do stalinismo, os campos de trabalho na Sibéria e na China, a ditadura de Ceausescu. Segundo essa propaganda, quase que Marx pariu o regime sanguinário de Pol Pot no Camboja.

Então, porque esta reviravolta? Acontece que a crise econômica passou por aí. A situação atual inquieta profundamente a classe operária. E uma parte dela, uma parte ainda pequena, tenta entender porque o capitalismo está caduco? Como resistir à degradação das condições de vida? Como lutar? E, sobretudo, - o que é mais difícil hoje - saber se realmente outro mundo é possível.

Naturalmente, para conseguir essas respostas, alguns se dirigem a Marx. Tem que assinalar que as vendas do Capital aumentaram recentemente. Obviamente, não é um fenômeno massivo; ele não considera o conjunto da classe operária. Mas isso, este início de reflexão já inquieta a burguesia.

A burguesia tem horror de que os operários comecem a pensar por si sós. Ela está sempre preparada para enchê-los de sua propaganda, de suas mentiras ou hoje de sua visão de Marx, de sua visão do marxismo.

Hoje, apresentar Marx como o diabo não basta mais par impedir que haja um interesse por sua obra. Muito bem, então a burguesia tem de mudar de tática: ela se apresenta adocicada, amável e reverente diante do velho barbudo para melhor apunhalá-lo pelas costas.

Segundo todas estas revistas, Marx foi realmente um gênio:

  • um gênio em economia. Não foi ele, como dizem eles, que tinha denunciado, bem antes do papa o papel desastroso do dinheiro principal fator de injustiça?
  • um grande filósofo;
  • um grande sociólogo;
  • e até um precursor da ecologia!

A burguesia esta pronta para reconhecer todos os talentos de Marx .... Todos, tudo e qualquer coisa, salvo um, que era um grande combatente da classe operária.

Tem muitas coisas a serem discutidas em torno da questão O que é o marxismo? O tema é muito amplo. Este curto texto tem como objetivo defender uma idéia essencial para nós: Marx não foi um acadêmico ou um pensador encerrado no seu gabinete. Marx foi um revolucionário. E o marxismo é uma arma teórica forjada pela classe operária para derrubar o capitalismo. Para dizê-lo de outra maneira, como Lênin, "O marxismo é a teoria do movimento libertador do proletariado" (A falência da segunda internacional, 1915).

Como a classe operária conquistou Marx para o comunismo

Marx não nasceu comunista. Ele se tornou comunista. E foi a classe operária que o converteu. Quando jovem, Marx era muito crítico em relação às teorias comunistas. Para ele, nessa época, as idéias comunistas são idealistas e democráticas. Eis o que dizia destas:

  • - Elas não podem ser creditadas de uma realidade teórica e menos ainda prática[1].
  • - "O comunismo é uma abstração dogmática" (Carta a Ruge)

Na realidade, desde que na terra existem oprimidos, os homens sonham com um mundo melhor, com um tipo de paraíso na terra, onde todos os homens seriam iguais, onde reinaria a justiça social. Era o caso dos escravos. Também o dos servos (camponeses). Na grande revolta de Spartacus contra o império romano, os escravos revoltados tentaram estabelecer comunidades. As primeiras comunidades cristãs pregavam a fraternidade humana e tentaram instituir um comunismo dos bens. John Ball, um entre os líderes da grande revolta dos camponeses na Inglaterra em 1381 (e houve muitas revoltas camponesas contra o feudalismo) dizia: "Nada poderá caminhar direito na Inglaterra enquanto tudo não for gerado em comum; até que não existam mais nem lordes e sequer vassalos".

Entretanto, só podia tratar-se de um sonho. Um belo sonho, mas um sonho. Na Grécia ou Roma antiga, na idade média, etc., edificar um mundo comunista era impossível.

  • Primeiro porque concretamente a sociedade não produzia bastante para satisfazer o conjunto das necessidades. Só uma minoria, ao explorar a maioria, podia viver no conforto.
  • Também não existia uma força social bastante potente capaz construir um mundo comunista: os escravos ou camponeses só podiam ser massacrados a cada revolta.

Em resumo, nessas condições, as idéias comunistas só podiam ser utópicas.

A classe operária, como classe explorada, retomou por sua conta esses velhos sonhos. No século 18 e no início do 19°, na Inglaterra e, sobretudo, na França, ela tentou instaurar comunidades "comunistas". Pensadores tentaram elaborar a partir da sua imaginação um mundo perfeito. É por isso que além de serem utópicos, esses projetos eram dogmáticos, como Marx os caracterizava.

Essas idéias comunistas eram dogmáticas, pois totalmente inventadas a partir de ideais intemporais e imutáveis como era a idéia de Justiça, do Bem, da Igualdade. Essas idéias não se elaboravam pouco a pouco com uma ida e volta permanente entre a realidade e o cérebro dos homens, mas a realidade era convidada a bem querer aceitar as exigências do pensamento e seus desejos de Justiça, Igualdade, etc. 

Então, o que fez Marx mudar de idéia? Porque ele vai finalmente aderir ao comunismo? É a experiência da luta de classe. Através da luta dos tecelões de Silésia em 1844 ou, pouco mais tarde, da luta do proletariado na França em 1848, Marx vai perceber na realidade deste combate o motor indispensável da transformação do mundo, uma promessa viva e dinâmica para o futuro, uma possibilidade pela primeira vez de marchar para o comunismo.

Eis algumas linhas que demonstram até que ponto Marx foi impressionado pelo que viveu: "Quando os artesãos comunistas se associam, sua finalidade é inicialmente a doutrina, a propaganda (...)  . A vida em sociedade, a associação, a conversa, que por sua vez tem a sociedade como fim, lhes bastam. Entre eles, a fraternidade dos homens não é nenhuma fraseologia, mas sim uma verdade, e a nobreza da humanidade brilha nessas figuras endurecidas pelo trabalho." (Manuscritos Economicos e Filosóficos -terceiro manuscrito- pag.21 - Karl Marx, Os pensadores, Abril Cultural, 1978 )

Esta descrição lírica expressa que Marx se dá conta que, ao contrário das classes exploradas do passado, o proletariado é uma classe que trabalha de maneira associada. Isso significa, para começar, que só pode defender seus interesses imediatos por meio de uma luta associada, ao unir suas forças. Mas isso significa também que a resposta final a sua condição de classe explorada só pode residir na criação de uma real associação, de uma sociedade fundada na livre cooperação. E sobretudo, esta associação tem pela primeira vez "os meios de suas ambições" porque pode se apoiar sobre os progressos enormes, resultado da indústria capitalista. Tecnicamente a abundância se torna possível. Com os progressos trazidos pelo capitalismo, é doravante possível satisfazer as necessidades de toda humanidade. E tudo isso Marx entendeu graças à classe operária.

O marxismo é uma arma teórica que só podia ser forjada pela classe operária.

Para resumir. Ao colocar-se do ponto de vista da classe operária e ao aderir a seu combate revolucionário, ao considerar as potencialidades do proletariado e as contradições e crises que atingem o capitalismo, Marx e Engels, pouco a pouco chegaram a entender que o comunismo se tornava  ao mesmo tempo possível e necessário.

Possível:

  • Por conta do desenvolvimento das forças produtivas, em escala mundial, sem a qual não poderia haver abundância nem completa satisfação das necessidades humanas;
  • Graças à entrada em cena do proletariado, primeira classe explorada que, ao afrontar o capital mundial, será levada a ser o coveiro do velho mundo.

Necessário:

  • Por conta da natureza necessariamente efêmera do capitalismo.

Marx e Engels nunca teriam entendido isso se não tivessem sido, antes de tudo, combatentes da classe operária!

Com efeito, só uma classe cuja emancipação é necessariamente acompanhada pela emancipação de toda humanidade; cuja dominação sobre a sociedade não implica uma nova forma de exploração, mas a abolição de toda exploração; só esta classe podia ter uma apreensão marxista da história humana e das relações sociais.

Todas as outras classes eram e ainda são incapazes disso. Já dissemos isso a propósito dos escravos ou dos servos. Para eles, outro mundo só podia ser imaginário; seu procedimento e seu pensamento só podiam ser utópicos, idealistas. Quanto às classes dominantes, os donos, os nobres ou os burgueses, não podiam e não podem ainda hoje encarar a realidade, estudar objetivamente a evolução da história humana e seu próprio mundo, pois irremediavelmente estariam na obrigação de ver que sua classe, seu mundo, seus privilégios estão condenados a desaparecer.

A nobreza achava que era investida de um desígnio divino e, por isso, eterno. Como podia ela entender qualquer coisa relativa à evolução das sociedades humanas?

Outro exemplo, mais concreto e atual. Marx é hoje saudado por muitos economistas que procuram no seu célebre Capital soluções para enfrentar a crise atual. Seria melhor que não se cansassem inutilmente, pois não vão entender nada na obra de Marx. Se Marx mergulhou na economia, não foi por gostar, pois detestava isso. Foi para entender como, e através de quais mecanismos o capitalismo estava gangrenado a partir do seu âmago e assim condenado a morte. Seu objetivo era totalmente diferente dos economistas da nossa época. Não se tratava para ele de encontrar a cura para as doenças do capitalismo, mas de combatê-lo e preparar sua derrubada. O que obviamente é inaceitável, até insuportável, para todos estes doutores em ciências e demais especialistas da mistificação ideológica.

Adotar um procedimento científico e objetivo sobre a questão da história das sociedades humanas, sobre a questão social, isso significa necessariamente se dar conta que existiram diferentes modos de produção: o comunismo primitivo, o escravismo, o feudalismo e o capitalismo; e talvez depois tenha o comunismo.

Porque essa sucessão?  Porque as capacidades produtivas da humanidade evoluíram, e também evoluiu a maneira cuja sociedade se organizava para produzir. E o motor desta evolução é a luta de classe. Com isso, dá claramente para entender porque o marxismo - este procedimento científico e objetivo aplicado à história das sociedades e à questão social - é necessariamente inacessível à burguesia. Muito simplesmente porque a conclusão lógica deste procedimento é que o capitalismo deve desaparecer e, com ele, os privilégios da burguesia.

 O marxismo: um método científico revolucionário e vivo

Quando nos fala hoje a torto e a direito de Marx e do marxismo, a burguesia tenta escamotear essa realidade combatente do marxismo por detrás das suas mentiras e falsificações. Como dizia Lênin, em O estado e a revolução, a burguesia tenta converter os revolucionários em ídolos inofensivos, depois de tê-los perseguido quando vivos. Na mesma passagem de seu texto, ele diz também palavras particularmente apropriadas à propaganda atual cujo objetivo é "emascular a substancia de seu ensinamento revolucionário, o trinchante deste; trata-se de atenuá-lo, aviltá-lo" [2].

Devemos, ao contrário, afirmar que Marx era um combatente revolucionário. E até mais: só um militante revolucionário pode ser marxista. Esta unidade entre o pensamento e a ação é justamente um entre os fundamentos do marxismo. Com efeito, não se trata apenas de interpretar o mundo como fizeram até agora os filósofos, "trata-se agora de transformá-lo" [3] como assinala Marx nas Teses sobre Feuerbach. No Manifesto comunista encontramos também essa insistência sobre o fato que "As concepções teóricas dos comunistas não se apóiam de maneira alguma sobre idéias inventadas" por reformadores, mas sim "expressam as condições reais de uma luta de classes que existe"  [4].

O marxismo não é uma disciplina acadêmica, como também não é um sem número teorias mudas e bastante inofensivas, sequer uma utopia, uma ideologia, um dogma. Ao contrário! É o que expressa o estilo flamejante de Rosa Luxemburgo que citaremos como conclusão: "O marxismo não é representado por meia dúzia de pessoas que se conferem mutuamente o direito de se apresentarem como ‘especialistas', pessoas em que a grande massa tem de acreditar cegamente, como fazem os fiéis do islamismo.

Marxismo é forma revolucionária de cosmovisão, sempre em busca de novas descobertas, que nada mais detesta que a cristalização em formas de validade definitiva, e a melhor maneira de garantir seu vigor é dedicar-se à autocrítica e atentar para a História." (Rosa Luxemburg,  A Acumulação do Capital - Cap.Anticrítica,pag. 402  - Os Economistas- Ed.Nova Cultural )


[1] "Não se pode conceder às idéias comunistas na sua forma atual nem uma realidade teórica,  muito  menos ainda desejar sua realização prática, ou só considerá-las como possíveis." (O comunismo e a Allgemeine Zeitung d'Augsbourg)

[2] "Os grandes revolucionários foram sempre perseguidos durante a vida; a sua doutrina foi sempre alvo do ódio mais feroz, das mais furiosas campanhas de mentiras e difamação por parte das classes dominantes. Mas, depois da sua morte, tenta-se convertê-los em ídolos inofensivos, canonizá-los por assim dizer, cercar o seu nome de uma auréola de glória, para "consolo" das classes oprimidas e para o seu ludíbrio, enquanto se castra a substância do seu ensinamento revolucionário, embotando-lhe o gume, aviltando-o." (O estado e a revolução-www.marxists.org/./estadoerevolucao/index.htm  [23])

[3]  "Os fllósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo" (Teses contra Feuerbach- Karl Marx, Os pensadores, Abril Cultural, 1978; pag.53)

[4] As conclusões teóricas dos comunistas não se baseiam, de forma alguma, em idéias ou

princípios inventados ou descobertos por este ou aquele pretenso reformador do mundo.

São apenas a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existentes, de um

movimento histórico que se desenvolve diante de nossos olhos. (Manifesto comunista- culturabrasil.pro.br/manifestocomunista.htm)

 

Qual relação entre as previsões de Marx e a crise econômica atual?

  • 6981 leituras

Vimos florescer nos dias atuais nas livrarias, particularmente na Europa, títulos de revistas bajulando o gênio deste "grande pensador" que foi Marx. Há pouco, alguns anos atrás, Marx era apresentado como o diabo. Então, porque esta reviravolta? Acontece que a crise econômica emergiu, uma crise que dificilmente cujo caráter de superprodução dificilmente pode ser negado, tal como é difícil contradizer o fundamento das análises de Marx, embora a burguesia tudo faça para obscurecer as implicações de tais análises.

As contradições mortais da sociedade burguesa

O Manifesto de 1848 começa com a famosa passagem sobre a história que além de tudo é a história da luta de classes. É ela que aponta que, em todos os modos de produção anteriores, o tecido social tinha se desmoronado desde o seu interior, tendo resultado "seja na transformação social da sociedade no seu conjunto seja na destruição das duas classes em luta" (Capítulo Burgueses e proletários do Manifesto). Na sociedade burguesa, o destino do proletariado é de ser o coveiro da ordem burguesa.

O espírito do Manifesto não esperava que a confrontação decisiva entre as classes resultasse simplesmente da simplificação das diferenças de classes no capitalismo. Era preciso que o sistema não fosse mais capaz de funcionar "normalmente"; que tivesse alcançado o ponto em que "... a burguesia se tornou incapaz de continuar assumindo seu papel de classe dirigente e de impor à sociedade a lei das condições de existência de sua classe" (Idem). Em outros termos, a derrubada da sociedade burguesa se torna uma necessidade vital para sobrevivência da classe explorada e da vida social.

O Manifesto percebia os sinais precursores deste momento que se aproximava através das crises que devastavam periodicamente a sociedade capitalista nessa época. O Manifesto destaca os seguintes elementos que caracterizam essas crises:

  • Elas são o resultado da superprodução de mercadorias. As imensas forças produtivas acionadas pelo capitalismo se chocam com os limites da forma de apropriação e de distribuição. Como Marx ia explicá-lo mais tarde, não se tratava de superprodução em relação às necessidades. Ao contrário, essa resultava do fato que as necessidades da grande maioria são necessariamente limitadas pela existência de relações de produção antagônicas. Tratava-se de superprodução em relação à demanda efetiva, quer dizer demanda apoiada por uma capacidade de pagamento;
  • o capitalismo dispõe de mecanismos para superar suas crises: a destruição de capital e "a conquista de novos mercados e a melhor exploração dos antigos" que permitiam escapar temporariamente do congestionamento do mercado nas zonas já conquistadas pelo capitalismo. Pela expressão "destruição de capital", Marx queria essencialmente dizer não a destruição física de fábricas e de máquinas não lucrativas, mas a destruição de valor pelo fato da crise torná-los inúteis. Isso, como Marx iria explicar posteriormente, devia ter um efeito benéfico sobre a taxa de lucro;
  • estes mecanismos destinados a evitar as contradições só faziam preparar o caminho para crises cada vez mais destruidoras. Em resumo, o capitalismo avançava necessariamente em direção a um impasse histórico.

Contra os militantes impacientes de seu próprio partido que pensavam que as massas podiam ser empurradas à ação pela simples vontade, Marx evidenciava que o proletariado teria provavelmente de travar lutas durantes décadas antes de chegar à confrontação decisiva com seu inimigo de classe.

É essa convicção que o levou a se dedicar ao estudo - melhor dizer à critica - da economia política, uma investigação profunda e ampla que ia tomar a forma escrita dos Grundrisse e dos quatros volumes do Capital. Para entender as condições materiais da revolução proletária, era necessário entender mais profundamente as contradições inerentes do modo de produção capitalista, as debilidades fatais que acabariam em condená-lo à morte.

A superprodução reside nas relações sociais capitalistas

Adam Smith e Ricardo tinham defendido o ponto de vista segundo o qual o valor das mercadorias baseava-se sobre o trabalho real dos homens. Marx evidenciou que, como os modos de produção anteriores, o capitalismo era fundado sobre a extração do sobretrabalho da classe explorada, que tomava a forma da extração da mais-valia, o tempo de trabalho livre extorquido ao operário, o que é dissimulado no contrato social. Depois Marx demonstra a diferença entre o modo de produção capitalista e os modos anteriores que não procuravam acumular riquezas, mas consumí-las, enquanto que no capitalismo o problema toma a forma de superprodução

As crises de superprodução que aparecem durante a segunda e a terceira década do século XIX são um indicativo da existência de barreiras insuperáveis no modo de produção burguês.

O capitalismo é a primeira forma econômica que generalizou a produção de mercadorias para a venda e o lucro no conjunto do processo de produção e distribuição. É nesta especificidade que se devia encontrar a tendência à superprodução.

Marx localizava as crises de superprodução nas próprias relações sociais que definem o capital como modo de produção específico: a relação do trabalho assalariado no seio da qual "A maioria dos produtores - os operários - nunca podem consumir o equivalente da sua produção, pois além deste equivalente, eles devem fornecer a mais-valia ou o sobreproduto. Para poder consumir ou comprar nos limites das suas necessidades eles sempre devem ser superprodutores, sempre produzir além das suas necessidades" (Teorias da mais-valia)

Obviamente, o capitalismo não inicia cada fase do processo de acumulação com um problema imediato de superprodução: nasceu e se desenvolveu como um sistema em expansão constante para novos domínios de troca lucrativos, na economia interna e em escala mundial ao mesmo tempo. Mas pelo fato desta contradição inevitável relativa à relação de trabalho assalariado, esta expansão constante é uma necessidade do capital para que possa rechaçar ou ultrapassar a crise de superprodução.

Marx continua mostrando que, quando uma extensão do mercado mundial permite ao capitalismo superar suas crises e continuar o desenvolvimento das forças produtivas, essa própria extensão se torna rapidamente incapaz de absorver o novo desenvolvimento da produção. Para ele, essas extensões não poderiam constituir um processo eterno: existem limites inerentes à capacidade do capital de se tornar um sistema realmente universal. Uma vez alcançados, esses limites levarão o sistema para o abismo (Grundrisse).

Assim, chegamos à conclusão que a superprodução é o primeiro fator que anuncia a falência do capitalismo. Ela é a evidência concreta, no capitalismo, da fórmula fundamental de Marx que explica a ascensão e o declínio de todos os modos de produção que existiram até o momento: ontem forma de desenvolvimento (neste caso, a extensão geral da produção de mercadorias) se torna hoje um obstáculo à continuidade do desenvolvimento das forças produtivas da humanidade.

A queda da taxa de lucro

Uma entre as críticas feitas por Marx aos economistas políticos (Adam Smith, Ricardo, ...) considera sua incoerência quando negam a superprodução de mercadorias enquanto admitem a superprodução de capital.

Entretanto, Marx, em particular no terceiro volume do Capital, demonstra que o fato do capital tender a se tornar superabundante, particularmente na sua forma de meios de produção, não pode ser um motivo de consolação para burguesia.

Com efeito, esta superabundância só faz desenvolver outra contradição mortal, a tendência à queda da taxa de lucro que Marx qualificava assim: "Entre todas as leis da economia política moderna, é a mais importante que há." (Grundrisse). Esta contradição também está inscrita nas relações sociais fundamentais do capitalismo: os capitalistas são, de maneira permanente, obrigados a revolucionar o processo de produção frente à pressão da concorrência. Isso significa aumentar a proporção entre o trabalho morto das máquinas e o trabalho vivo dos homens. Visto que só este último tem essa capacidade de acrescentar o valor (isso sendo o "segredo do lucro capitalista"), o capitalismo é confrontado à tendência intrínseca à diminuição da proporção de novo valor contido em cada mercadoria. É assim que se manifesta a tendência à queda da taxa de lucro.

Sobre este tema, nos Grundrisse, as reflexões de Marx ressaltam seu anúncio explícito da perspectiva do capitalismo: como as formas anteriores de servidão, não pode evitar entrar numa fase de obsolescência e senilidade na qual uma tendência crescente à autodestruição colocará diante da humanidade a necessidade de desenvolver uma forma superior de vida social.

O círculo vicioso das contradições capitalistas

Marx reconhece a existência de contratendências à queda da taxa de lucro, que fazem desta um obstáculo à produção capitalista a longo prazo e não no plano imediato: o aumento da intensidade da exploração; a queda do salário abaixo do valor da força de trabalho, a queda do preço de elementos do capital constante e o comércio exterior. A maneira de Marx tratar esta questão, em particular expressa como as duas contradições, superprodução e queda da taxa de lucro, são estreitamente ligadas. O comércio exterior exige em parte o investimento em fontes de força de trabalho mais baratas (como se vê hoje no fenômeno do outsourcing). Sobretudo, na mesma secção sobre o comércio exterior, fala-se também das "necessidades que lhe são inerentes, em particular aquela de um mercado cada vez mais extenso" (O Capital, Livro III). Isso também está ligado à necessidade de compensar a queda da taxa de lucro porque, mesmo se cada mercadoria contém menos lucro, contanto que o capitalismo possa vender mais bens, ele pode perceber uma massa maior de lucro. Mas aqui outra vez o capitalismo choca-se aos seus limites inerentes: "O mesmo comércio externo desenvolve o modo de produção capitalista no mercado interno, conseqüentemente a diminuição do capital variável em relação ao capital constante, e gera, por outro lado, a superprodução em relação aos mercados externos; produz por conseguinte, outra vez, a longo prazo, um efeito contrário." (Idem)

Procurando escapar de uma das suas contradições, a queda da taxa de lucro, o capitalismo fez apenas confrontar-se aos limites da outra, a superprodução. Assim Marx concebia a inevitabilidade "dos conflitos agudos, das crises, das convulsões..." dos quais já tinha falado no Manifesto. O aprofundamento dos seus estudos da economia política capitalista o tinha confirmado no seu ponto de vista segundo qual o capitalismo atingiria um ponto onde teria esgotado a sua missão progressista e passaria a ameaçar a própria capacidade da sociedade humana de reproduzir-se. Marx não especulou sobre a forma precisa que tomaria esta queda. Não pôde assistir a emergência das guerras imperialistas mundiais que, procurando ao mesmo tempo "resolver" a crise econômica para capitais específicos, tendiam a ficarem cada vez mais devastadoras para o capital como um todo e constituir uma ameaça crescente para a sobrevivência da humanidade. Do mesmo modo, tinha conseguido apenas enxergar a tendência do capitalismo em destruir o ambiente natural no qual, em última instância, baseia-se qualquer reprodução social. Por outro lado, pôs a questão do fim da época ascendente do capitalismo em termos muito concretos: a partir de 1858, Marx considerava que a abertura de vastas regiões como a China, a Austrália e a Califórnia ao capitalismo indicava que a tarefa de criar um mercado mundial e uma produção mundial baseada nesse mercado chegava ao seu fim; em 1881, dizia que o capitalismo tornara-se nos países avançados um sistema "regressivo", embora nos dois casos, pensasse que o capitalismo ainda tinha um caminho a realizar (sobretudo nos países periféricos) antes que deixasse de ser um sistema ascendente a nível global.

Inicialmente, Marx concebia os seus estudos do capital como uma parte de um trabalho mais vasto que abraçaria outros domínios de investigação como o Estado e a história do pensamento socialista. De fato, a sua vida foi demasiada curta para concluir até mesmo a parte "econômica". É por isso que o Capital permaneceu uma obra incompleta. Ao mesmo tempo, pretender elaborar uma teoria final decisiva da evolução capitalista teria sido alheio às premissas fundamentais do método de Marx, que considerava a história como um movimento sem fim e dialético necessariamente cheio de surpresas. Por conseguinte, na esfera da economia, Marx não trouxe resposta definitiva sobre qual contradição (o problema do mercado ou o da queda da taxa de lucro) ia jogar o papel mais decisivo na abertura das crises que terminariam por levar o proletariado a revoltar-se contra o sistema. Mas uma coisa é evidente: a superprodução de mercadorias como a superprodução de capital é a prova que a humanidade finalmente atingiu a etapa onde se tornou possível atender às necessidades da vida de todos e, por conseguinte, criar a base material para a eliminação de todas as divisões de classe. Que populações morram de fome enquanto as mercadorias que não podem ser vendidas acumulam-se nos armazéns ou que as fábricas que produzem os bens necessários para a vida fechem porque a sua produção não é lucrativa, o fosso imenso entre a potencialidade contida nas forças produtivas e o seu encerramento nas relações decorrentes da lei do valor, qualquer causa fornece os fundamentos da emergência de uma consciência comunista àqueles que são confrontados diretamente às conseqüências dos absurdos do capitalismo.

A situação atual

A compreensão que temos da dinâmica do capitalismo nos conduz a datar a sua entrada em decadência com o rompimento da Primeira Guerra Mundial[1]  As duas décadas de prosperidade que serão consecutivas à Segunda Guerra Mundial constituem apenas uma exceção ao agravamento da situação econômica. Também nos conduz a analisar a crise aberta no fim dos anos 1960 como um novo episódio das convulsões do capitalismo que, pela segunda vez na história, poderá constituir a base material para um novo assalto revolucionário por parte do proletariado.

Desde o fim dos anos 1960, recessões afetaram oficialmente os Estados Unidos em 1969, 1973, 1980, 1981, 1990 e 2001. A solução utilizada a cada momento pela burguesia americana para enfrentar estas dificuldades é evidenciada pela curva da dívida da qual o declive aumenta fortemente a partir de 1973 e desmedidamente a partir dos anos 1990. Todas as burguesias do mundo têm com efeito agido da mesma maneira.

Estes quarenta últimos anos se resumem, por conseguinte, em uma sucessão de recessões e uma subida exponencial da dívida mundial, onde cada nova dívida tem por função criar artificialmente os mercados necessários à uma retomada da atividade econômica, para sair da recessão.

Desde 1966, a dívida é cada vez menos eficaz para gerar o crescimento de modo que o volume da dívida mundial está mais e mais desproporcional em relação à riqueza real da economia mundial. É este fenômeno que traduz o fato de que a dívida constitui uma porcentagem sempre maior do PIB, agora efetivamente superior a 100% em alguns países.

Atualmente e particularmente após as somas colossais mobilizadas nos últimos dois anos para tentar frear a recessão mais profunda desde a Segunda Guerra Mundial e potencialmente mais grave que a dos anos 1930, uma nova etapa da dinâmica da crise do capitalismo está aberta. No melhor dos casos, ver-se-ão apenas retomadas de curta duração no seio de um curso geral à recessão. Constitui a condição de um desenvolvimento da luta de classes em escala mundial que pode desembocar no questionamento revolucionário deste sistema. 


 


[1] Manifesta-se mesmo no auge da prosperidade capitalista, o que pôde alimentar a tese segundo a qual, contrariamente ao posicionamento do conjunto da vanguarda revolucionária naquela época, o conflito mundial não respaldava necessariamente a entrada nesta fase da vida do capitalismo, a da sua decadência, dominada pela permanência de contradições insuperáveis. Realmente, para além da exacerbação das rivalidades entre grandes potências, a Primeira Guerra Mundial encontra a sua origem em uma das contradições fundamentais do capitalismo, o caráter necessariamente limitado dos mercados extracapitalistas. Embora nessa época, não existisse globalmente ainda uma escassez de tais mercados, garantir-se o acesso a estes era uma necessidade vital para todas as potências capitalistas, cujo preço teve de  ser pago na guerra.

Que método científico deve usar-se para compreender a ordem social existente, as condições e meios de sua superação? (II)

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Este artigo continua a investigação do método científico e histórico que Marx, Engels e seus sucessores desenvolveram na sua obra [1].

Ascensão e declínio nos modos de produção anteriores

  • "Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno, podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade." (Marx, Prefácio à Introdução à Economia Política, Ed. Ed. Martins Fontes, 1977) [2].

Esta breve passagem, que abrange virtualmente toda a história escrita, poderia dar lugar a vários livros que tratassem de interpretá-lo. Mas nossa intenção é nos fixar em dois aspectos: a questão geral do progresso histórico e as características da ascendência e da decadência nas formações sociais anteriores ao capitalismo.

Pode-se falar em progresso?

Assinalamos [3] que um dos efeitos das catástrofes do século XX foi um ceticismo geral sobre a idéia do progresso, uma noção que parecia muito mais evidente no século XIX. Isto levou a alguns pensadores "radicais" a concluir que a visão marxista do progresso histórico é justamente uma dessas ideologias do século XIX que serve de apologia da exploração capitalista. Embora habitualmente se apresentem como novas, essas críticas só fazem freqüentemente colocar de acordo com a moda os tão gastos argumentos de Bakunin e os anarquistas, que proclamavam que a revolução era possível em qualquer momento histórico e acusavam os marxistas de ser vulgares reformistas por argumentar que a época da revolução ainda não tinha amanhecido, o qual requeria que a classe operária se organizasse a longo prazo para a defesa de suas condições de vida dentro da ordem social existente. Os antiprogressistas costumam começar como críticos "marxistas" da noção de que o capitalismo é hoje decadente, insistindo em que muito pouco mudou na vida do capital desde os dias em que Marx escrevia sobre ele, exceto possivelmente no terreno puramente quantitativo - economia mais desenvolvida, crises mais profundas, guerras mais amplas. Mas os mais conseqüentes se desfazem rapidamente de uma vez de toda a carga do materialismo histórico, insistindo em que o comunismo poderia ter se produzido em qualquer época anterior da história. Realmente os mais conseqüentes de todos são os primitivistas, que argumentam que não houve absolutamente nenhum progresso na história com a emergência da civilização, ou mais precisamente do descobrimento da agricultura que a fez possível: essa evolução é vista como uma terrível mudança de orientação equivocada, dado que a época mais feliz da vida humana seria, segundo eles, o estágio de caçadores-coletores nômades. Essas correntes só podem logicamente desejar o colapso final da civilização e o sacrifício da humanidade, para que os poucos sobreviventes possam voltar à prática da caça e da coleta.

Marx foi muito firme sobre a idéia de que só o capitalismo tinha preparado o caminho para a superação dos antagonismos sociais e a criação de uma sociedade que permitisse à humanidade desenvolver-se plenamente. Como expõe no Prefácio: "As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esta contradição." (Marx, Prefácio à Introdução à Economia Política, Ed. Ed. Martins Fontes, 1977).

O capitalismo criou pela primeira vez as condições para uma sociedade comunista mundial: unificando todo o globo em torno de seu sistema de produção; revolucionando os instrumentos de produção até o ponto que finalmente é possível uma sociedade de abundância; e fazendo surgir uma classe cuja emancipação só pode ser feita mediante a emancipação do conjunto da humanidade - o proletariado, a primeira classe explorada da história que leva em si as sementes de uma nova sociedade. Para Marx era inconcebível que a humanidade pudesse ter saltado essa etapa na história e ter instaurado uma sociedade comunista duradoura e global na época do despotismo, do escravismo ou da servidão.

Mas o capitalismo não surgiu de um nada: a sucessão de modos de produção anteriores ao capitalismo tinha preparado por sua vez o caminho deste, e nesse sentido, o desenvolvimento global desses sistemas sociais contraditórios, ou seja, divididos em classes, representou um movimento progressivo na história humana, que desembocou, ao final, na possibilidade material de uma comunidade mundial sem classes. Não teria sentido, pois, reivindicar-se da herança de Marx e simultaneamente rechaçar a noção de progresso histórico.

Entretanto existe varias concepções do progresso: certamente uma concepção burguesa, e oposta a ela, uma concepção marxista.

Para começar, enquanto que a burguesia tendeu a ver que toda a história levava inexoravelmente ao triunfo do capitalismo democrático em uma marcha linear ascendente, em que todas as sociedades anteriores foram em todos os aspectos inferiores à ordem atual das coisas, o marxismo afirmou o caráter dialético do movimento histórico. De fato a própria noção de ascensão e declínio dos modos de produção, significa que pode ter tanto retrocessos como avanços no processo histórico. No Anti-Dühring, quando fala de Fourier e sua antecipação do materialismo histórico, Engels chama a atenção sobre o vínculo entre a visão dialética da história e a noção de ascensão e declínio: "Onde mais se eleva Fourier, entretanto, é no modo por que concebe a história da sociedade. [...] Como se vê Fourier maneja a dialética com a mesma maestria de seu contemporâneo Hegel. Diante dos que se empavonam falando da ilimitada capacidade humana de perfeição, salienta com a mesma dialética, que toda fase histórica tem, ao mesmo tempo, um lado ascendente e outro descendente e projeta esta concepção sobre o futuro de toda a humanidade." (Engels, Anti-Dühring, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979, pág. 226).

O que Engels diz aqui é que não há nada automático no processo da evolução histórica. Como no processo da evolução natural, o "aperfeiçoamento humano" não está programado de antemão. Como veremos, pode haver de fato vias sociais mortas, análogas à extinção dos dinossauros - sociedades que não só declinam, mas também desaparecem completamente, sem que sua evolução origine nada novo.

Ademais, até quando há progresso, este tem geralmente um caráter muito contraditório. A destruição da produção artesã, em que o produtor obtém satisfação, tanto do processo de produção como de seu produto final, e sua substituição pelo sistema fabril, com suas rotinas implacavelmente tediosas, é um exemplo disto. Entretanto, Engels explica mais contundentemente quando descreve a transição do comunismo primitivo à sociedade de classes. Em "A Origem da Família, Da Propriedade Privada e do Estado", depois de mostrar tanto as imensas potencialidades como as limitações inerentes à vida tribal, Engels chega às seguintes conclusões a respeito de como deveríamos contemplar o advento da civilização:

  • "O poderio dessas comunidades primitivas não poderia deixar de ser destruído e foi destruído. Desfez-se, contudo, por influências que desde o início nos aparecem como uma degradação, uma queda da singela grandeza moral da velha sociedade gentílica. Os interesses mais vis -a baixa cobiça, a brutal avidez de prazeres, a sórdida avareza, o roubo egoísta da propriedade comum- inauguram a nova sociedade civilizada, a sociedade de classe; os meios mais ultrajantes minam e perdem a velha sociedade sem classes das gens: o furto, a violência, a perfídia, a traição. E a nova sociedade, através dos dois mil e quinhentos anos de sua existência, não tem sido senão o desenvolvimento de uma pequena minoria às expensas de uma grande maioria explorada e oprimida; e continua a sê-lo, hoje mais que nunca" (Engels, A Origem da Família, Da Propriedade Privada e do Estado, em K. Marx e F. Engels, Obras Escolhidas, Editora Alfa-Omega, págs. 80)

Esta visão dialética também se refere à futura sociedade comunista, que na grande passagem de Marx, dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 se descreve como um "retorno do homem a si mesmo como ser social, ou melhor, verdadeiramente humano, retorno esse integral, consciente, que assimila toda a riqueza do desenvolvimento anterior." (Editora Martin Claret, 2002, pág. 138). Da mesma forma, o comunismo do futuro se vê como um renascimento, a um nível mais alto, do comunismo do passado. Assim, Engels conclui seu livro sobre as origens do Estado com uma eloqüente frase tirada do antropólogo Lewis Morgan, antecipando um comunismo que "Será uma revivesvência da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gens, mas sob uma forma superior" (Op. cit. Pag. 143).

Mas com todas essas precisões, é evidente desde o Prefácio, que a noção de progresso, de "épocas progressivas", é fundamental para o pensamento marxista. Segundo a grandiosa visão do marxismo, começando (pelo menos!) pelo surgimento do gênero humano, e seguindo pela aparição da sociedade de classes até o desenvolvimento do capitalismo, e o grande salto ao reino da liberdade que nos espera no futuro, "não se pode conceber o mundo como um conjunto de coisas acabadas, mas como um conjunto de processos, em que as coisas que parecem estáveis, da mesma forma que seus reflexos no cérebro do homem, isto é, os conceitos, passam por uma série ininterrupta de transformações, por um processo de surgimento e caducidade, nas quais em última instância se impõe sempre uma trajetória progressiva, apesar de todo o seu caráter fortuito aparente e de todos os recuos momentâneos." (Engels, "Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã", em K. Marx e F. Engels, Obras Escolhidas, Editora Alfa-Omega, págs. 195). Visto desta distância, tal e como foram as coisas, é evidente que há um processo real de desenvolvimento: no terreno da capacidade do ser humano para transformar a natureza por meio do desenvolvimento de ferramentas mais sofisticadas; na compreensão subjetiva de si mesmo e do mundo a seu redor; e, portanto, em sua capacidade para liberar suas potencialidades latentes e viver uma vida conforme a suas mais profundas necessidades.

A sucessão dos modos de produção

Do comunismo primitivo à sociedade de classes

Quando Marx dá um esboço dos principais modos de produção que se sucederam na história, não pretende absolutamente ser exaustivo. Para começar, só menciona as formas sociais antagonistas quer dizer, as principais formas de sociedades de classes, e não menciona as diferentes formas de sociedades não exploradoras que as precederam. Além disso, nos tempos de Marx, os estudos das formas sociais pré-capitalistas ainda estavam em seus primórdios, de modo que, simplesmente, não era possível ter uma lista completa de todas as sociedades existentes até então. Na realidade, inclusive para o estado atual dos conhecimentos históricos essa tarefa é muito difícil de completar. No extenso período entre a dissolução das relações sociais comunistas primitivas, que tiveram sua expressão mais clara entre os caçadores nômades do paleolítico, e as sociedades de classe plenamente formadas, que constituíram as civilizações históricas, houve numerosas formas intermediárias e de transição, e também formas que simplesmente terminaram em uma via histórica morta; e nosso conhecimento delas é muito limitado [4].

O fato de no Prefácio não se incluir as sociedades comunistas primitivas e as sociedades pré-classistas não significa absolutamente que Marx não considerasse importante estudá-las; pelo contrário. Os fundadores do método materialista histórico reconheceram desde o início que a história humana não começa com a propriedade privada, mas com a propriedade comunal: "A primeira forma da propriedade é a propriedade tribal. Ela corresponde à fase não desenvolvida da produção, em que um povo se alimenta da caça e da pesca, da criação de gado ou, no máximo, da agricultura. Neste último caso, a propriedade tribal pressupõe uma grande quantidade de terras incultas. Nessa fase, a divisão do trabalho é, ainda, bem pouco desenvolvida e se limita a uma maior extensão da divisão natural do trabalho que já existia na família" (Marx e Engels, A Ideologia alemã, Boitempo Editorial 2007, pág. 90)

Quando a investigação posterior confirmou essas apreciações -particularmente o trabalho de Lewis Henry Morgan sobre as tribos da América do Norte- Marx mostrou-se extremamente entusiasmado e dedicou muito tempo em seus últimos anos a aprofundar o problema das relações sociais primitivas, especificamente sobre a questão que lhe apresentava o movimento revolucionário na Rússia (ver o capítulo Comunismo do passado, comunismo do futuro [5] em nosso livro (em inglês) O comunismo não é um belo ideal, mas uma necessidade material). Para Marx, Engels, e também para Rosa Luxemburgo, que escreveu bastante sobre isto em sua Introdução à Economia Política (1907), o descobrimento de que as formas originárias das relações humanas estavam apoiadas, não no egoísmo e na concorrência, mas na solidariedade e na cooperação, e de que séculos, e até milênios depois do advento da sociedade de classes seguisse existindo um apego profundo e persistente para as formas sociais comunais, particularmente entre as classes oprimidas e exploradas, era para eles uma contundente confirmação da visão comunista e uma arma poderosa contra as mistificações da burguesia, para quem a ânsia de poder e da propriedade são inerentes à natureza humana.

N'A Origem da Família, Da Propriedade Privada e do Estado, de Engels, nas Notas Etnográficas de Marx, e na Introdução à Economia Política de Luxemburgo, há um profundo respeito pelo valor, pela moralidade e pela criatividade artística dos povos "selvagens" e "bárbaros". Mas não há nenhuma idealização dessas sociedades. O comunismo que se praticava nas primeiras formas de sociedade humana não foi engendrado pela idéia da igualdade, mas sim pela necessidade. Era a única forma possível de organização social em condições em que as forças produtivas do homem ainda não podiam gerar um excedente suficiente para manter uma elite privilegiada, uma classe dominante.

As relações comunistas primitivas surgiram com toda probabilidade com o desenvolvimento do gênero humano, uma espécie cuja capacidade para transformar seu entorno em função da satisfação de suas necessidades materiais a distinguia de outras do reino animal; e permitiram aos seres humanos chegar a ser a espécie dominante do planeta. Mas, se fizermos uma generalização partindo do que sabemos das formas mais arcaicas de comunismo primitivo, encontradas nos aborígenes da Austrália, onde a forma de apropriação do produto social é completamente coletiva [6], também freiam o desenvolvimento da produtividade individual, com o resultado de que as forças produtivas permaneceram virtualmente estáticas durante milênios. Em qualquer caso, as mudanças nas condições materiais e meio ambientais, como o crescimento da população, em algum momento fizeram insustentável o coletivismo extremo das primeiras formas de sociedade humana, que se converteu em um obstáculo ao desenvolvimento de técnicas de produção (como o pastoreio e a agricultura) que pudessem alimentar a uma população mais numerosa, ou à população que agora vivia em condições sociais e meio ambientais modificadas [7].

Como assinala Marx, "A história da decadência das comunidades primitivas (seria errôneo as colocar todas em um mesmo plano; assim como nas formações geológicas, nas históricas existe toda uma série de tipos primários, secundários, terciários, etc.) ainda está por se escrever. Até agora não tivemos mais que uns pobres esboços... (mas)  as causas de sua decadência se desprendem de dados econômicos que lhes impediam de superar certo grau de desenvolvimento» (Primeiro rascunho da carta a Vera Zasulich, 1881. Tradução nossa). O declínio do comunismo primitivo e o surgimento das divisões de classes não escapa às normas gerais expostas no Prefácio: as relações que os seres humanos estabeleceram para satisfazer suas necessidades tornam-se cada vez mais incapazes de cumprir sua função original, e portanto entram em uma crise básica cujo resultado é que, ou as comunidades que mantêm essas relações desaparecem completamente, ou, do contrário, substituem as velhas relações por outras novas mais capazes de desenvolver a produtividade do trabalho humano. Já vimos que Engels insistia em que, num determinado momento histórico, "O poderio dessas comunidades primitivas não poderia deixar de ser destruído e foi destruído." Por que? Porque "A tribo era a fronteira do homem, para os estranhos como para si mesmo: a tribo, a gens, e suas instituições eram sagradas e invioláveis, constituíam um poder superior dado pela natureza, ao qual todo indivíduo ficava submetido sem reservas em seus sentimentos, idéias e atos. Por mais imponentes que nos pareçam, os homens de então mal se distinguiam uns dos outros; estavam, como diz Marx, presos ao cordão umbilical da comunidade primitiva" (A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, op. cit, pág. 80)

Considerando os descobrimentos da antropologia, poder-se-ia questionar a afirmação de Engels sobre a falta total de individualidade nas sociedades tribais. Mas a visão que subjaz nesta passagem segue sendo plenamente válida: que em muitos dos momentos chave e das regiões chave, os velhos métodos e relações comunais se converteram em uma trava ao desenvolvimento, e com toda contradição que possa parecer, o surgimento gradual da propriedade privada, da exploração de classe e de uma nova fase na autoalienacão dos seres humanos, converteram-se em "fatores de desenvolvimento".

O modo de produção "asiático"

O termo "modo de produção asiático" é controverso. Infelizmente, Engels omite incluir este conceito em seu trabalho primitivo sobre o surgimento da sociedade de classes, A Origem da Família, Da Propriedade Privada e do Estado, embora a obra de Marx já continha numerosas referências a ele. Depois, o erro de Engels foi agravado pelos stalinistas, que virtualmente excomungaram totalmente o conceito, introduzindo uma visão da história extremamente mecânica e linear, que em todas partes percorria as fases de comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e comunismo. Este esquema tinha diferentes vantagens para a burocracia stalinista: por um lado, muito depois da revolução burguesa deixar de estar na ordem do dia da história, permitia-lhe considerar como  progressistas as burguesias que se desenvolviam em países como a Índia ou a China após ter batizado como "feudais" as antigas formações sociais  despóticas orientais nestes países; e isso permitia-lhe evitar embaraçosas críticas sobre sua própria forma de despotismo estatal, posto que no conceito de "despotismo asiático", é o Estado e não uma classe de proprietários individuais, quem assegura diretamente a exploração da força de trabalho: os paralelismos com o capitalismo de Estado stalinista são evidentes.

Entretanto, investigadores sérios argumentam, como Perry Anderson em um apêndice a seu livro Lineages of the Absolutist State (1979), que a caracterização feita por Marx da Índia e outras sociedades contemporâneas como formas de um "modo asiático" definido de produção estava apoiada em uma falsa informação e que, de todas formas, o conceito se fez tão amplo, que carece de um significado preciso.

Não há dúvida de que o epíteto "asiático" é bastante confuso. Numa certa medida, todas as sociedades de classes originárias tomaram a forma analisada por Marx com esse nome, seja a sociedade suméria, no Egito, na Índia, na China, ou em regiões mais remotas, como a América Central e América do Sul, África e no Pacífico. Está fundada na comunidade rural herdada da época anterior à emergência do Estado. O poder estatal, freqüentemente personificado por uma casta sacerdotal, apoiava-se no sobreproduto (produto excedente) extraído das comunidades rurais em forma de tributo, ou, no caso da construção de grandes projetos (irrigação, templos, etc.), de jornadas de trabalho obrigatórias. Pode existir o escravismo, mas não é a forma dominante de trabalho. Poder-se-ia argumentar que, se estas sociedades mostravam muitas diferenças significativas, têm em comum o que é mais crucial do ponto de vista da classificação dos diferentes modos de produção com relações antagonistas: as relações sociais através das que se extrai o sobretrabalho (trabalho excedente) da classe explorada.

Quando se examina o fenômeno da decadência nestas formas sociais há, assim como nas sociedades "primitivas", certas características específicas em que estas sociedades parecem mostrar uma extraordinária estabilidade, o que se pode comprovar em que muito raramente (se é que ocorreu alguma vez) "evoluíram" para um novo modo de produção sem ser derrotadas por fora. Seria, entretanto, um erro considerar que a sociedade asiática não tem sua própria história. Há uma enorme diferença entre as primeiras formas despóticas que emergiram no Havaí ou América do Sul, que estão mais perto de suas raízes tribais originárias, e os gigantescos impérios que se desenvolveram na Índia ou China, que deram lugar a formas culturais extremamente sofisticadas.

Entretanto subsistem umas características de base -a centralidade da comunidade rural- que dão a chave da natureza "invariável" destas sociedades.

  • "Aquelas pequenas comunidades indianas antiqüíssimas, por exemplo, que em parte ainda continuam a existir baseiam-se na posse comum das terras, na união direta entre agricultura e artesanato e numa divisão fixa do trabalho, que no estabelecimento de novas comunidades serve de plano e de projeto. Constituem organismos de produção que bastam a si mesmos, variando suas áreas de produção de 100 a alguns milhares de acres. A maior parte dos produtos é destinada ao autoconsumo direto da comunidade não como mercadoria, sendo portanto a própria produção independente da divisão do trabalho mediada pelo intercâmbio de mercadorias no conjunto da sociedade indiana. Apenas os produtos excedentes transformam-se em mercadorias, parte deles só depois de chegar às mãos do Estado, para o qual flui desde tempos imemoriais certo quantum como renda natural... O organismo produtivo simples dessas comunidades auto-suficientes, que se reproduzem constantemente da mesma forma e, se forem destruídas acidentalmente, são de novo reconstruídas no mesmo lugar, com o mesmo nome, oferece a chave para o segredo da imutabilidade de sociedades asiáticas que contrastam de maneira tão impressionante com a constante dissolução e reconstrução dos Estados asiáticos e com as incessantes mudanças de dinastias. A estrutura dos elementos econômicos fundamentais da sociedade não é atingida pelas tormentas desencadeadas no céu político." (Karl Marx, O Capital, Livro I, vol. 1, cap. XII, pág. 449-451, Ed. Nova Cultural, São Paulo 1996)

Neste modo de produção, as barreiras ao desenvolvimento da produção de mercadorias eram muito mais fortes que no império romano ou no feudalismo, e essa é certamente a razão pela qual, nas regiões onde se tornou dominante, o capitalismo aparece, não como fruto do velho sistema, mas sim como invasor estrangeiro. Tem que destacar também que a única sociedade "oriental" que até certo ponto desenvolveu seu próprio capitalismo independente foi o Japão, onde já se tinha anteriormente um sistema feudal.

Assim, nesta forma social, o conflito entre as relações de produção e a evolução das forças produtivas mostra-se mais como estancamento que como decadência, visto que, enquanto as dinastias se sucedem, consumindo-se em incessantes conflitos internos e esmagando a sociedade sob o peso de enormes projetos de Estado "faraônicos", a estrutura social fundamental permanece imutável; e se não emergiram novas relações de produção, então, estritamente falando, os períodos de decadência deste modo de produção não constituem realmente épocas de revolução social. Isto é bastante consistente com o método global de Marx, que não propõe uma via de evolução unilateral ou predeterminada para todas as formas de sociedade, mas contempla a possibilidade de que algumas sociedades cheguem a um ponto morto a partir do qual não é possível nenhuma evolução posterior. Também deveríamos recordar que algumas das expressões mais isoladas desse modo de produção se afundaram completamente, muitas vezes porque alcançaram os limites de crescimento em um meio ambiente ecológico particular. Este parece ter sido o caso da cultura Maia, que destruiu sua própria base agrícola por um excessivo desmatamento. Neste caso houve inclusive uma deliberada "regressão" impulsionada por uma grande parte da população, que abandonou as cidades e voltou para a caça e a coleta, embora se preservassem assiduamente os velhos calendários e tradições maias. Outras culturas, como a da ilha de Páscoa, parece que desapareceram completamente, muito provavelmente devido a conflitos de classe irresolúveis, à violência e à fome.

Escravismo e feudalismo

Marx e Engels nunca negaram que seu conhecimento das formações sociais primitiva e asiática era muito limitado, devido ao estado dos conhecimentos contemporâneos. Sentiam-se com mais confiança quando escreviam sobre a sociedade "antiga" (quer dizer, as sociedades escravistas da Grécia e Roma) e o feudalismo europeu. Certamente o estudo dessas sociedades desempenhou um papel significativo na elaboração de sua teoria da história, visto que forneceram exemplos muito claros do processo dinâmico pelo qual um modo de produção sucedia a outro. Isto é evidente nos primeiros escritos de Marx (A ideologia alemã) onde localiza o surgimento do feudalismo nas condições provocadas pela decadência de Roma.

  • "A terceira forma é a da propriedade feudal ou estamental. Se a Antigüidade baseou-se na cidade e em seu pequeno território, a Idade Média baseou-se no campo. A escassa população existente espalhada por uma vasta superfície e que não teve um grande crescimento com a chegada dos conquistadores, condicionou essa mudança de ponto de partida. Ao contrário da Grécia e de Roma, o desenvolvimento feudal começa, pois, num terreno muito mais extenso, preparado pelas conquistas romanas e pela expansão da agricultura vinculada a essas conquistas. Os últimos séculos do Império Romano em declínio e sua conquista pelos bárbaros destruíram uma enorme quantidade de forças produtivas; a agricultura havia diminuído, a indústria decaíra pela falta de mercados, o comércio adormecera ou fora violentamente interrompido e as populações da cidade e do campo haviam diminuído. Essas condições preexistentes e o modo de organização da conquista por elas condicionado desenvolveram a propriedade feudal, sob a influência da organização militar germânica. A propriedade feudal, tal como a propriedade comunal e tribal, baseia-se igualmente numa comunidade em que não são mais os escravos, como para os antigos, mas sim os pequenos camponeses servos da gleba que formam a classe imediatamente produtora." (A Ideologia alemã, op. cit, pág. 90-91)

O próprio termo de decadência está acostumado evocar imagens dos últimos tempos do Império Romano - de orgias e imperadores romanos ébrios de poder, de combates de gladiadores presenciados por grandes multidões sedentas de sangue. Essas cenas tendem a focalizar-se nos elementos "superestruturais" da sociedade romana, mas refletem uma realidade que se produzia nos próprios fundamentos do sistema escravista; e por isso revolucionários como Engels e Rosa Luxemburgo tomaram a licença de assinalar a decadência de Roma como uma espécie de presságio do que esperava à humanidade se o proletariado não conseguisse derrubar o capitalismo: «a decadência de toda a civilização, com as conseqüências, como na antiga Roma, do despovoamento, da desolação, da degenerescência, um grande cemitério» (Rosa Luxemburgo, A Crise da Social-Democracia, conhecida  também como Folheto do Junius;  Editorial Presença, pág. 23. Lisboa, 1974).

A antiga sociedade escravista era uma formação social muito mais dinâmica que o modo asiático, embora este fizesse sua própria contribuição ao surgimento da antiga cultura grega, e assim ao modo escravista de produção em geral (o Egito, em particular, era considerado como um venerável depositário da sábia inteligência). Este dinamismo fluía em grande parte do fato, como dizia um contemporâneo da época, de que «tudo está à venda em Roma»: a forma mercantil tinha avançado até o ponto de que as velhas comunidades agrárias eram cada vez mais uma linda lembrança de uma idade de ouro perdida, e mesmo uma massa de seres humanos tinham se convertido em mercadorias que se podiam comprar e vender nos mercados de escravos. Embora restassem grandes áreas da economia onde o trabalho produtivo era levado a cabo por pequenos camponeses ou artesãos, a produção a cargo de grandes exércitos de escravos assumia cada vez mais um papel chave nos pontos centrais da economia antiga -as grandes fazendas, as obras públicas e as minas. Essa grande "invenção" do mundo antigo foi, durante um grande período de tempo, uma formidável "forma de desenvolvimento" que permitiu aos cidadãos livres organizar-se em poderosos exércitos que, conquistando novas terras para o Império, forneceram novas reservas de trabalho escravo. Mas por essas mesmas razões, chegou claramente um ponto em que o escravismo se transformou em um firme obstáculo ao desenvolvimento posterior. Sua natureza inerentemente improdutiva jazia no fato de que não proporcionava absolutamente nenhum incentivo para que o produtor entregasse o melhor de suas capacidades produtivas, nem dava tampouco ao proprietário de escravos nenhum incentivo para que investisse em desenvolver melhores técnicas de produção, visto que a obtenção de novos escravos era sempre a opção mais barata. Daí a defasagem extraordinária entre os avanços filosófico/científicos dos pensadores, cujo tempo livre estava sustentado pelo trabalho dos escravos, e a aplicação prática extremamente limitada dos avanços teóricos ou técnicos. Este foi o caso, por exemplo, com o moinho de água, que desempenhou um papel tão crucial no desenvolvimento da agricultura feudal. Realmente foi inventado na Palestina no começo do primeiro século D.C., mas seu uso não se generalizou nunca no Império romano. Em um determinado ponto, portanto, a incapacidade do modo escravista de produção de aumentar radicalmente a produtividade do trabalho fez cada vez mais impossível manter os enormes exércitos necessário para fazê-lo funcionar. Roma tinha ido além das suas possibilidades, apanhada em uma contradição insolúvel que se expressou em todos os aspectos conhecidos de sua decadência.

No Passagens da Antiguidade ao feudalismo (1974), o historiador Perry Anderson enumera algumas das expressões econômicas, políticas e militares desse estancamento das forças produtivas da sociedade romana, um estancamento causado pela relação escravista, em princípios do século III: "Pela metade do século, houve um colapso total na cunhagem da prata,[...]e, pelo final do século, os preços do milho haviam disparado verticalmente a níveis 200 vezes acima dos índices do início do Principado. A estabilidade política degenerou rapidamente ao mesmo tempo que a estabilidade monetária. Nos caóticos cinqüenta anos entre 235 e 284 houve nada menos que 20 imperadores, 18 dos quais tiveram morte violenta, um esteve cativo no exterior e outro foi vítima da peste - tudo isso, expressivas demonstrações dos tempos. As guerras civis e as usurpações eram virtualmente ininterruptas, de Máximo Trácio a Diocleciano. Estas eram combinadas com uma devastadora seqüência de invasões estrangeiras e ataques ao longo das fronteiras, penetrando o interior. [...] O torvelinho político doméstico e as invasões estrangeiras logo trouxeram sucessivas epidemias em seu rastro, enfraquecendo e reduzindo as populações do Império já diminuídas pelas destruições da guerra. As terras eram abandonadas e a escassez no abastecimento da produção agrícola aumentava. O sistema de taxação se desintegrava com a depreciação da moeda corrente e as obrigações fiscais revertiam-se em entregas em espécie. A construção de cidades foi abruptamente detida, o que está comprovado arqueologicamente por toda a Europa; em algumas regiões os centros urbanos perdiam cor e se retraíam. " (Perry Anderson, Passagens da Antiguidade ao feudalismo. pág 80-81 Ed. Brasiliense, São Paulo, 2000).

Anderson continua mostrando como, em resposta a esta profunda crise, o poder do Estado romano, apoiado fundamentalmente num exército reorganizado e ampliado, cresceu enormemente e conseguiu uma certa estabilidade que durou uns cem anos. Mas uma vez que "A expansão do Estado [...] foi seguida por um retraimento da economia...» (Perry Anderson, op. cit, pág. 88), esta renovação simplesmente preparou o caminho ao que ele chama «a crise final da Antigüidade», impondo a necessidade de abandonar progressivamente a relação escravista. Um fator igualmente chave no desaparecimento do modo de produção escravista foi a generalização das revoltas de escravos e de outras classes exploradas e oprimidas em todo o Império no quinto século DC (como as dos chamados Bagaudas [8]), que se produziram em uma escala muito mais ampla que a rebelião do Spartacus no século I -embora esta última é lembrada muito justamente por sua incrível audácia e profundo desejo por um mundo melhor.

A decadência de Roma, portanto, correspondia precisamente à fórmula de Marx, e tomou um caráter claramente catastrófico. Apesar dos esforços recentes dos historiadores burgueses para apresentá-la como um processo gradual e imperceptível, manifestou-se como uma crise devastadora de subprodução em que a sociedade era cada vez menos capaz de produzir as necessidades básicas da vida -uma verdadeira regressão das forças produtivas, em que numerosas áreas do saber e da técnica foram enterradas e perdidas durante séculos. Isto não tomou a forma de uma queda repentina de uma só direção (como já assinalamos, a grande crise do terceiro século seguiu um relativo ressurgimento que não terminou até a onda final de invasões bárbaras) mas era inexorável.

O colapso do sistema do Império Romano foi a pré-condição para o surgimento de novas relações de produção em que uma camada importante de proprietários de terras deu o passo revolucionário de eliminar o trabalho escravista substituindo-o pelo sistema de colonos - precursor da servidão feudal e no que o produtor, embora estivesse obrigado a trabalhar para a classe dos propreitários de terra, recebia também sua própria parcela de terra para cultivar. O segundo ingrediente do feudalismo, mencionado por Marx na passagem que citamos de A Ideologia alemã, foi o elemento bárbaro "germânico", que combinava a hierarquia emergente de uma aristocracia guerreira com os restos da propriedade comunal, que foi obstinadamente mantida pelo grupo de camponeses. Seguiu um longo período de transição, em que as relações escravistas não tinham desaparecido completamente e o sistema feudal se afirmava gradualmente, chegando a sua verdadeira implantação só a partir dos primeiros séculos do novo milênio. E embora, como já assinalamos, em muitos aspectos (urbanização, relativa independência da religião do pensamento artístico e filosófico, medicina, etc.) a ascensão da sociedade feudal significou uma notável regressão em relação às aquisições da Antigüidade, as novas relações sociais, em contrapartida, suscitaram, tanto no senhor como no servo, um interesse direto no aumento do rendimento de sua parte de terra, e permitiram a generalização de uma série importante de avanços técnicos na agricultura: o arado de ferro e o arreio de ferro, que permite conduzir os cavalos, o moinho de água, a rotação de culturas (aragem, sistema de tripartição do terreno), etc. O novo modo de produção permitiu assim o renascimento das cidades e um novo florescimento da cultura cuja máxima expressão gráfica foram as grandes catedrais e as universidades que surgiram nos séculos XII e XIII.

Mas como antes o sistema escravista, o feudalismo também começou a alcançar seus limites "externos".

  • "Nos cem anos seguintes (do século XIII), uma crise geral maciça tomou conta de todo o continente [...] O determinante mais profundo desta crise geral provavelmente estará num "emperramento" dos mecanismos de reprodução do sistema até o ponto das suas capacitações básicas. Em particular, parece claro que o motor básico da recuperação dos solos, que impulsionara toda a economia feudal por três séculos, acabou ultrapassando os limites objetivos da estrutura social e das terras disponíveis. A população continuou a crescer e a produção caiu nas terras marginais ainda disponíveis para uma recuperação aos níveis da técnica existente, e o solo deteriorava por causa da pressa ou do mau uso. As últimas reservas de terra regenerada eram normalmente de qualidade pobre, solo muito fino ou úmido, mais difícil de cultivar, e onde eram semeadas plantações inferiores, como a aveia. As terras aradas mais antigas, por outro lado, estavam sujeitas ao desgaste e deterioração pela própria antigüidade de seu cultivo..." (Anderson, Passagens da Antiguidade ao feudalismo, op cit, pág 191-192,)

À medida que a expansão da economia feudal agrária tropeçou contra essas barreiras, produziram-se conseqüências desastrosas na vida da sociedade: más colheitas, fomes, queda dos preços do grão combinado com aumentos galopantes dos preços das mercadorias produzidas nos centros urbanos:

  • «Este processo contraditório afetou drasticamente a classe nobre, pois seu modo de vida se havia tornado cada vez mais dependente dos bens de luxo produzidos nas cidades [...] enquanto o cultivo nas propriedades senhoriais e as obrigações servis de suas propriedades produziam rendimentos progressivamente decrecentes. O resultado foi um declínio nos rendimentos senhoriais, que por sua vez liberou uma onda de lutas sem precedentes enquanto os cavaleiros tentavam recuperar suas fortunas em todos os cantos com pilhagens. Na Alemanha e na Itália, esta busca dos saques numa época de escassez produziu o fenômeno do banditismo desorganizado e anárquico entre senhores feudais [...] Acima de tudo, a Guerra dos Cem Anos na França - uma combinação sanguinária de guerra civil entre as casas de Valois e de Borgonha e uma luta internacional entre a Inglaterra e a França, envolvendo também Flandres e as forças ibéricas - afundou o mais rico país da Europa numa desordem e miséria sem paralelos. Na Inglaterra, o epílogo da última derrota continental na França foi o gangsterismo dos barões da Guerra das Rosas [...]Para completar o panorama desolador, esta crise estrutural era determinada por mais uma catástrofe conjuntural: a invasão da Peste Negra, vinda da Ásia em 1348» (Idem, pág 194.)

A peste negra, que aniquilou um terço da população européia, acelerou o desaparecimento final da servidão. Produziu uma escassez crônica de mão de obra no campo, obrigando a nobreza a trocar a tradicional renda de trabalho feudal ao pagamento de salários; mas ao mesmo tempo, os nobres trataram de voltar atrás o relógio, impondo restrições draconianas aos salários e ao movimento dos trabalhadores (uma tendência que se desenvolveu em toda a Europa e cuja codificação clássica é o Estatuto dos Trabalhadores -1351-, decretado na Inglaterra imediatamente depois da peste negra). Um dos resultados posteriores desta reação da nobreza foi provocar uma luta de classes generalizada, em que uma das mais famosas expressões também se produziu na Inglaterra, com as grandes revoltas camponesas de 1381. Mas houve sublevações comparáveis por toda a Europa neste período (As "jaqueries" francesas, as revoltas de "trabalhadores" em Flandres, a revolta de Ciompi em Florença, etc.).

Como na decadência da antiga Roma, as crescentes contradições do sistema feudal no plano econômico, tiveram assim suas repercussões no plano político (guerras, revoltas sociais) e na relação entre os seres humanos e a natureza; e por sua vez, todos estes elementos aceleraram e aprofundaram a crise geral. Como em Roma, a decadência geral do feudalismo foi resultado de uma crise de subprodução, da incapacidade das velhas relações sociais para impulsionar a produção das necessidades básicas da vida diária. É importante destacar que, embora a lenta emergência das relações mercantis nas cidades atuou como um fator de dissolução dos laços feudais e foi acelerada pelos efeitos da crise geral (guerras, fomes, a peste), as novas relações sociais não puderam decolar realmente até que o velho sistema entrasse em um estado de contradição interna, que deu lugar a um grave declínio das forças produtivas:

  • "Uma das conclusões mais importantes que permite o exame da grande queda do feudalismo europeu é que - ao contrário do que crêem os marxistas -, a figura característica de uma crise num modo de produção não é aquela em que vigorosas forças (econômicas) de produção explodem triunfais através de relações (sociais) retrógradas e prontamente restabelecem uma produtividade mais alta e uma sociedade sobre suas ruínas. Pelo contrário: as forças de produção tendem habitualmente a paralisar e recuar no quadro das relações de produção existentes; estas, assim, devem ser radicalmente mudadas e reordenadas antes que novas forças de produção possam ser criadas e combinadas para um modo de produção globalmente novo. Em outras palavras, as relações de produção, em geral, mudam anteriormente às forças de produção numa época de transição e não vice-versa" (Idem. pág 197). Como na decadência de Roma, um período de regressão do velho sistema foi a precondição para o florescimento de um novo modo de produção.

De novo, como no período da decadência de Roma, a classe dominante tratou de preservar seu cambaleante sistema por meios cada vez mais artificiais. A aprovação de leis brutais para controlar a mobilidade da mão de obra e a tendência dos trabalhadores rurais de fugir para as cidades, a tentativa de governar as tendências centrífugas da aristocracia por meio da centralização do poder monárquico, o uso da inquisição para impor um rígido controle ideológico sobre todas as expressões de pensamento "heréticas" e dissidentes, a corrupção e as armadilhas com as moedas para "solucionar" o problema do endividamento da realeza... ***todas essas tendências foram tentativas de um sistema moribundo de adiar sua extinção final, mas não podiam evitá-la. Para falar a verdade, em grande medida os mesmos meios usados para preservar o velho sistema se transformaram em pontes do novo sistema: assim foi, por exemplo, com a monarquia centralista dos Tudor na Inglaterra, que em grande parte criou as condições necessárias para o surgimento do estado-nação moderno.

Muito mais claramente que na decadência de Roma, a época de declínio feudal foi também uma época de revolução social, no sentido de que de seu ventre surgiu uma classe genuinamente nova e revolucionária, uma classe com uma visão de mundo que desafiava as velhas instituições e ideologias, e um modo de economia que via na relação feudal um obstáculo intolerável a sua expansão. A revolução burguesa fez sua entrada triunfante na história na Inglaterra em 1640, embora tivesse que esperar um século e meio antes de sua vitória ainda mais espetacular na França na década de 1790. Era possível a revolução burguesa se desenvolver durante um peróodo tão amplo pois constituía o ponto culminante político de um longo processo de desenvolvimento econômico e social dentro do velho sistema, e também porque seguiu ritmos diferentes nas diferentes nações.

A transformação das formas ideológicas

  • "Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material - que se deve comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas conseqüências." (Marx, Prefácio à Introdução à Economia Política, Ed. Martins Fontes, 1977).

Todas as sociedades de classe se mantêm por uma combinação de repressão sem disfarces e controle ideológico, que a classe dominante exerce por meio de suas numerosas instituições: família, religião, educação, etc. A ideologia não é nunca um puro reflexo passivo da base econômica, mas sim contém sua própria dinâmica, que em certos momentos pode impactar ativamente nas relações sociais subjacentes. Em sua afirmação da concepção materialista da história, Marx se viu obrigado a distinguir entre "a alteração material das condições econômicas" e "as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito", porque até a data, a forma dominante de estudar a história tinha posto a ênfase nas últimas em detrimento do primeiro.

Quando se analisam as transformações ideológicas que se produzem em uma época de revolução social, é importante recordar que se em última instância estão determinadas pelas condições econômicas de produção, não é de uma forma rígida e mecânica, e menos ainda porque tais períodos não são nunca exclusivamente de puro declínio ou degradação, mas sim estão marcados por uma crescente confrontação entre forças sociais antagonistas. O característico dessas épocas é que a velha ideologia dominante, que corresponde cada vez menos à realidade social cambiante, tende a decompor-se e dar lugar a novas visões de mundo que podem servir para inspirar e mobilizar ativamente às classes sociais opostas à velha ordem. No processo de decomposição, as velhas ideologias - religiosa, filosófica, artística - cedem freqüentemente ao pessimismo, o niilismo e a obsessão pela morte; enquanto as ideologias das classes ascendentes ou rebeldes são mais freqüentemente otimistas, vitalistas e antecipam o começo de um mundo radicalmente transformado.

Para pôr um exemplo: no período dinâmico do sistema escravista, a filosofia tendia a expressar, dentro dos limites do período, os esforços do gênero humano por "conhecer-se a si mesmo", segundo a frase que fez imortal Sócrates - para compreender a dinâmica real da natureza e da sociedade por meio do pensamento racional, sem a intermediação do divino. Em seu período de decadência, a filosofia tendia a recuar para a justificação do desespero ou da irracionalidade, como no neoplatonismo e suas vinculações aos numerosos cultos esotéricos que floresceram nas últimas décadas do Império.

Esta tendência não pode se compreender, entretanto, de forma unilateral: nos períodos de decadência, as velhas religiões e filosofias também foram confrontadas à ascensão de novas classes revolucionárias, ou a rebelião dos explorados, e estas, geralmente, também tomaram uma forma religiosa. Assim, na antiga Roma, a religião cristã, embora estivesse certamente influenciada por cultos esotéricos orientais, começou como um movimento de protesto dos despossuídos contra a ordem dominante, e mais tarde, como um poder estabelecido por direito próprio, foi um marco para a preservação de muitas das aquisições culturais do mundo antigo. Esta dialética entre a velha e a nova ordem foi também uma característica das transformações ideológicas durante a decadência do feudalismo. Por um lado: «O período de estancamento conheceu o auge do misticismo em todas suas formas. A forma intelectual, com o "A arte de morrer" -Ars moriendi Séc. XV-, e sobretudo, "A imitação de Cristo" (XIV-XV). A forma emocional, com as grandes expressões de piedade popular, exacerbadas pela influência dos elementos incontrolados do clero mendicante: os "flagelantes" perambulavam pelas zonas rurais, rasgando seus corpos com chicotes nas praças dos povoados para apelar à sensibilidade humana e chamar os cristãos a arrepender-se. Estas manifestações deram lugar a um imaginário de duvidoso gosto, como as fontes de sangue, que simbolizavam ao redentor. Muito rapidamente o movimento oscilou para a histeria, e a hierarquia eclesiástica teve que intervir contra os elementos desordeiros, para impedir que suas pregações fizessem aumentar o número de vagabundos [...] Desenvolveu-se a arte macabra... O texto sagrado preferido pelas mentes mais ilustradas era o Apocalipse.» (J. Favier, De Marco Polo à Christophe Colomb, traduzido do francês por nós).

Por outro lado, o afundamento do feudalismo também conheceu a ascensão da burguesia e sua visão de mundo, que se expressou no magnífico florescimento da arte e da ciência no período do Renascimento. E inclusive movimentos místicos e milenares, como os anabatistas estiveram freqüentemente, como assinalou Engels, intimamente ligados às aspirações comunistas das classes exploradas. Esses movimentos ainda não podiam apresentar uma alternativa historicamente viável ao velho sistema de exploração e seus sonhos milenares se orientavam mais para um passado primitivo que para um futuro mais adiante, mas, apesar de tudo, desempenharam um papel chave no caminho que levou a destruição da hierarquia medieval decadente.

Numa época decadente, o declínio cultural geral nunca é absoluto: no plano artístico, por exemplo, o estancamento das velhas escolas, também pode ser rebatido por novas formas que expressam, sobretudo, um protesto humano contra uma ordem cada vez mais desumana. E o mesmo pode dizer do plano da moral. Se a moral for, em última instância, uma expressão da natureza social do ser humano, e se os períodos de decadência são expressão da quebra das relações sociais, então tenderão a caracterizar-se por uma quebra concomitante da moralidade, uma tendência ao colapso dos laços humanos básicos e ao triunfo dos impulsos antissociais. A perversão e a prostituição do desejo sexual, o florescimento do roubo, da fraude e do assassinato gratuitos, e, sobretudo, a supressão da ordem moral na guerra, põem-se à ordem do dia. Mas nem sequer isto deveria ser visto de forma rígida e mecânica, e concluir que os períodos de ascendência estão marcados por um comportamento humano superior, e os períodos de decadência por uma queda repentina de infâmia e depravação. A ruptura e o desmoronamento das velhas certezas morais podem expressar igualmente o auge de um novo sistema de exploração, em comparação com o qual a velha ordem pode parecer comparativamente benigna, como assinala o Manifesto Comunista a respeito da ascensão do capitalismo:

  • «Onde passou a dominar, destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas. Dilacerou sem piedade os laços feudais, tão diferenciados, que mantinham as pessoas amarradas a seus 'superiores naturais', sem por no lugar qualquer outra relação entre os indivíduos que não o interesse nu e cru do pagamento impessoal e insensível ‘em dinheiro'. Afogou na água fria do cálculo egoísta todo fervor próprio do fanatismo religioso, do entusiasmo cavalheiresco, e do sentimentalismo pequeno-burguês. Dissolveu a dignidade pessoal no valor de troca e substituiu as muitas liberdades, conquistadas e decretadas, por uma determinada liberdade, a de comércio. (Contraponto Editora, 1997, pág. 10)

E apesar disso, a compreensão de Marx e Engels do que Hegel chamava "a astúcia da razão" era de tal envergadura, que foram capazes de reconhecer que este declínio "moral", esta mercantilização do mundo, era de fato uma força de progresso que colaborava em erradicar a estática ordem feudal atrás dela e diante dela preparava o caminho para a ordem moral genuinamente humana que se perfilava no horizonte.

Gerrard

 


[1] ver Revista internacional nº 134 ou https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/decadencia_do_capitalismo_Que_m%C3%A9todo_cient%C3%ADfico [24]

[2] Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia política, ver referência em Revista Internacional nº 134.

[3] Ler a primeira parte deste artigo.

[4]  Por exemplo, as sociedades sedentárias de caçadores, já bastante hierarquizadas, que foram capazes de armazenar amplas reservas de alimentos, as diferentes formas semicomunistas de produção agrária, os "impérios tributários" formados por pastores semibárbaros como os Hunos e os Mongóis.

[5] Esse capítulo tem tradução em espanhol: https://es.internationalism.org/rint81marx [25]

[6] Entre as tribos australianas, quando o modo de vida tradicional ainda era vigente, o caçador que trazia a peça não guardava nada para si, mas entregava imediatamente o produto à comunidade seguindo a tradição que marcavam certas estruturas complexas de parentesco. Segundo o trabalho do antropólogo Alain Testart, Le Communisme Primitif, 1985, o termo de comunismo primitivo só deveria aplicar-se aos australianos, a quem ele vê como a última reminiscência de uma relação social que provavelmente foi a regra durante o período paleolítico. Isto é matéria de debate. Certamente, inclusive entre os povos nômades de caçadores-colectores há amplas diferenças em relação à forma como se distribui o produto social, mas todos eles dão prioridade à manutenção da comunidade, e como assinala Chris Knight em seu trabalho Blood Relations, Menstruation and the origins of culture, 1991, o que ele chama "own-kill rule" (quer dizer, limites prescritos sobre o que o caçador pode consumir das peças que matou) está amplamente estendido entre os povos caçadores.

[7] Deve se ter em conta que a dissolução das relações sociais primitivas não foi um acontecimento que se produziu de uma vez por todas a partir de um determinado momento, mas sim seguiu diferentes ritmos em diferentes parte do mundo; é um processo que se desenvolve durante milênios e que só agora está chegando a seus trágicos últimos capítulos nas regiões mais remotas do planeta, como no Amazonas ou na selva de Bornéu.

[8] O termo bagauda, (bagaudae em latim; em bretão bagad. Em galês significava «tropa»), utiliza-se para designar aos integrantes de numerosos bandos que participaram de uma longa série de rebeliões, conhecidas como as revoltas bagaudas, que se deram na Gália e Espanha durante o Baixo Império, e que continuaram desenvolvendo-se até o século V. Seus integrantes eram principalmente camponeses ou colonos que escapavam de suas obrigações fiscais, escravos fugidos ou indigentes. (Wikipédia)

Resolução sobre a situação internacional (XVIIIe congresso da CCI)

  • 3958 leituras

Crise econômica

1. Em 6 de março de 1991, depois do afundamento do bloco do Leste e a vitória da coalizão no Iraque, o presidente George W. Bush pai anunciava, ante o congresso dos EUA, o nascimento de uma "nova ordem mundial", apoiada no "respeito do direito internacional". Esta nova ordem traria ao planeta paz e prosperidade. O "fim do comunismo" significava o "triunfo definitivo do capitalismo liberal". Alguns, como o "filósofo" Francis Fukuyama, prediziam inclusive o "fim da história". Mas a história, a verdadeira, e não a dos discursos de propaganda apressou-se a ridicularizar essas mentiras. Como paz, o ano 91 ia ser o início da guerra na ex-Iugoslávia que conduziu centenas de milhares de mortos no próprio coração da Europa, um continente que tinha evitado esta praga desde quase meio século. Igualmente, a recessão de 93 e logo o afundamento dos "Tigres" e dos "Dragões" asiáticos em 97, logo a nova recessão de 2002, que pôs fim à euforia provocada pela "bolha internet", arranharam sensivelmente as ilusões sobre a prosperidade anunciada por Bush pai. Mas o típico dos discursos da classe dominante hoje é esquecer os discursos da véspera. Entre 2003 e 2007, o tom dos discursos oficiais dos setores dominantes da burguesia foi eufórico, celebrando o êxito do "modelo anglo-saxão" que permitia lucros exemplares, taxas de crescimento vigorosas do PIB e inclusive uma baixa significativa do desemprego. Não havia palavras bastante elogiosas para celebrar o triunfo da "economia liberal" e os benefícios da "desregulamentação". Mas desde o verão de 2007 e, sobretudo, 2008, esse beato otimismo se derreteu como neve ao sol. Desde então, no centro dos discursos burgueses, as palavras "prosperidade", "crescimento", "triunfo do liberalismo" desapareceram discretamente. À mesa do grande banquete da economia capitalista se convidou alguém que parecia ter sido expulso para sempre: a crise, o espectro de uma "nova grande depressão" parecida com a dos anos 30.

2. Segundo os próprios responsáveis burgueses, todos os "especialistas" da economia, incluídos os louvadores mais incondicionais do capitalismo, a crise atual é a mais grave que tinha conhecido o sistema desde a Grande Depressão que começou em 1929. Segundo a OCDE: "A economia mundial é vítima de sua recessão mais profunda e mais sincronizada há décadas" (Relatório intermediário de março 2009). Alguns inclusive não vacilam em considerar que é ainda mais grave e que a razão pela que seus efeitos não são tão catastróficos como os dos anos 30 se fundamentam no fato de que, desde aquele tempo, os dirigentes do mundo, muito experimentados aprenderam a encarar esse tipo de situação, evitando, em particular, uma debandada (cada um por si) geral: "Embora se tenha qualificado às vezes esta severa recessão mundial de "grande recessão", estamos longe de uma nova "Grande Depressão" como a dos anos 30, graças à qualidade e à intensidade das medidas que os governos estão tomando. A "grande depressão" agravou-se pelos terríveis erros de política econômica, desde medidas monetárias restritivas até a política de "cada um por si", com a forma de proteções comerciais e desvalorizações competitivas. Em contrapartida, a recessão atual suscitou geralmente boas respostas" (idem).

Entretanto, embora todos os setores da burguesia constatem a gravidade das convulsões atuais da economia capitalista, as explicações que dão, mesmo sendo freqüentemente divergentes entre si, são evidentemente incapazes de captar o verdadeiro significado dessas convulsões e a perspectiva que anunciam para toda a sociedade. Para alguns, a responsável pelas dificuldades agudas do capitalismo é a "desordenada finança", o fato de terem sido criados desde princípios dos anos 2000, toda uma série de "produtos financeiros tóxicos" que favoreceram uma explosão de créditos sem garantia suficiente para ser reembolsados. Outros afirmam que o capitalismo sofre de um excesso de "desregulamentação" em escala internacional, orientação que se encontrou no centro da economia Reagan, instaurada desde finais dos anos 80. Outros, por fim, representantes da esquerda do capital em especial, pensam que a causa profunda se apóia em uma insuficiência das rendas salariais, que obrigam aos assalariados, sobretudo nos países mais desenvolvidos, a uma fuga cega nos empréstimos para ser capazes de satisfazer suas necessidades elementares. Sejam quais seja suas diferenças, entretanto, o que caracteriza a todas essas "interpretações", é que consideram que não é o capitalismo, enquanto modo de produção, o que deve ser questionado, mas sim tal ou qual forma do sistema. E, precisamente, é esse ponto de partida o que impede que todas essas interpretações desçam ao fundo para compreender as causas verdadeiras da crise atual e o que está em jogo.

3. De fato, só uma visão global e histórica do modo de produção capitalista permite compreender, medir e tirar as perspectivas da crise atual. Hoje, é algo que ocultam todos os "especialistas" da economia, aparece abertamente a realidade das contradições que assaltam ao capitalismo: a crise de superprodução do sistema, sua incapacidade para vender a massa de mercadorias que produz. Não há superprodução com relação às necessidades reais da humanidade, que estão muito longe de estar satisfeitas, mas sim superprodução com relação aos mercados solventes, e aos meios de pagamento dessa produção. Os discursos oficiais, assim como as medidas adotadas pela maioria dos governos, focalizam se na crise financeira, na quebra dos bancos, mas na realidade, o que os comentaristas denominam "economia real" (em oposição à economia "fictícia"), está ilustrando  o fato seguinte: não passa um dia sem que se anunciem fechamentos de fábrica, demissões em massa, quebras de empresas industriais. Que a General Motors, que durante décadas foi a primeira empresa do mundo, deva unicamente sua sobrevivência a um apoio maciço dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que a Chrysler se declarou oficialmente em quebra, e passou para o controle da Fiat italiana, é significativo dos problemas de fundo que afetam à economia capitalista. Deste modo, a queda do comércio mundial, a primeira desde a Segunda Guerra Mundial e que a OCDE avaliou em - 13,2 % para 2009 atesta a incapacidade para as empresas de encontrar compradores para sua produção.

Esta crise de superprodução, evidente hoje, não é uma simples conseqüência da crise financeira como pretendem nos passar a maioria dos "especialistas", mas sim reside nas engrenagens mesmas da economia capitalista, como o pôs em relevo o marxismo há um século e meio. Enquanto existia a conquista do mundo pelas metrópoles capitalistas, os novos mercados permitiram superar as crises momentâneas de superprodução. Com o final da conquista, a essas metrópoles, no início do século XX, especialmente a que chegou tarde ao concerto da colonização, Alemanha, não ficou outro remédio a não ser atacar as zonas de influência das demais, provocando a Primeira Guerra Mundial, antes que se expressasse plenamente a crise de produção. Esta, em compensação, manifestou-se claramente com o crack de 1929 e a Grande Depressão dos anos 30, arrastando os principais países capitalistas na fuga cega do belicismo e em uma Segunda Guerra Mundial que superou, de longe, à Primeira em massacres e barbárie. O conjunto das medidas adotadas pelas grandes potências após essa guerra, especialmente a organização sob tutela norte-americana dos grandes componentes da economia capitalista, tais como a moeda (Bretton Woods), a instauração pelos Estados de políticas neo-keynesianas, e as repercussões positivas da descolonização referente aos mercados, permitiram durante quase três décadas ao capitalismo mundial dar a ilusão de que por fim tinha superado suas contradições. Mas essa ilusão recebeu um golpe de primeira importância em 1974, com a aparição de uma violenta recessão, sobretudo na primeira economia mundial. Essa recessão não foi o princípio das grandes dificuldades do capitalismo, visto que sucedeu à de 1967 e as crises sucessivas da libra e do dólar, duas moedas fundamentais no sistema de Bretton Woods. Na realidade, foi desde o fim dos anos 60 que o neo-keynesianismo deu a prova de seu fracasso histórico, como tinha destacado naquele tempo os grupos que iam formar a CCI. Mas para o conjunto dos comentaristas burgueses e para a maioria da classe trabalhadora, foi o ano de 1974 que marcou o início de um período novo na vida do capitalismo pós-guerra, sobretudo com o reaparecimento de um fenômeno que se acreditava definitivamente desaparecido nos países desenvolvidos, o desemprego em massa. Foi então também quando o fenômeno da fuga cega no endividamento se acelerou muito sensivelmente: foram os países do terceiro mundo os que se encontraram na frente do endividamento e constituíram durante um tempo a "locomotiva" da retomada econômica. Esta situação teve fim no começo dos anos 80 com a crise da dívida, a incapacidade dos países do terceiro mundo para reembolsar os empréstimos que lhes tinham permitido por certo tempo ser uma saída mercantil para a produção dos grandes países industriais. Mas nem por isso se acabou a fuga no endividamento. EUA começou a tomar o lugar de "locomotiva", mas à custa de um aumento considerável de seu déficit comercial e, sobretudo, orçamentário, política que pôde levar a cabo graças ao papel privilegiado de sua moeda nacional como moeda mundial. O slogan de Reagan era então "o Estado não é a solução, mas o problema" para justificar a liquidação do neo-keynesianismo; mas os Estados Unidos, com seus enormes déficits orçamentários, continuou sendo o agente principal na vida econômica nacional e internacional. Entretanto, os "reaganomics", cuja primeira inspiradora era Margaret Thatcher na Grã-Bretanha, eram essencialmente um desmantelamento do "Estado do bem-estar", quer dizer ataques sem precedentes contra a classe trabalhadora que contribuíram para superar a inflação galopante que afetou o capitalismo no fim dos anos 70.

Durante os anos 90, uma das "locomotivas" da economia mundial foram os "Tigres" e os "Dragões" asiáticos que tiveram taxas de crescimento espetaculares, mas à custa de um endividamento considerável que os levou a convulsões espetaculares em 1997. No mesmo momento, a "nova e democrática" Rússia, a qual também decretou suspensão dos pagamentos, decepcionou cruelmente quem tinha apostado no "final do comunismo" para reaquecer duradouramente a economia mundial. Por sua vez, a "bolha internet" no fim dos anos 90, que era na realidade uma especulação desenfreada sobre as empresas "high-tech", estourou em 2001-2002, acabando com o sonho de um relançamento da economia mundial mediante o desenvolvimento de novas tecnologias da informação e da comunicação. Foi então que o endividamento conheceu uma nova aceleração, sobretudo graças ao desenvolvimento espetacular das hipotecas na construção em vários países, e em particular nos EUA Este país reforçou seu papel de "locomotiva" da economia mundial, mas à custa de um crescimento imenso das dívidas - especialmente na população norte-americana - apoiadas em todo tipo de "produtos financeiros" que pretensamente tinham a intenção de evitar a suspensão de pagamentos. Na realidade, a proliferação dos débitos duvidosos nem ao menos fez desaparecer seu caráter de espada de Démocles de cima da cabeça da economia norte-americana e mundial. Muito pelo contrário, essa dispersão não fez senão acumular no capital dos bancos "ativos tóxicos", origem de seu afundamento a partir de 2007.

4. Não é pois a crise financeira o que originou a recessão atual. Muito ao contrário, o que faz a crise financeira é ilustrar que a fuga em direção ao endividamento, que permitiu superar a superprodução, não pode prosseguir eternamente. Cedo ou tarde, a "economia real" se vinga, isto significa que a base das contradições do capitalismo, a superprodução, a incapacidade dos mercados de absorver a totalidade das mercadorias fabricadas, volta para primeira fila.

Nesse sentido, as medidas que se decidiram em março do 2009 no G20 de Londres, duplicar as reservas do Fundo Monetário Internacional, apoiar massivamente a Estados cujo sistema bancário está em bancarrota, animar estes a aplicar políticas ativas de relançamento da economia à custa de um salto espetacular dos déficits orçamentários, não resolveriam em nenhum caso a questão de fundo. A fuga cega na dívida é um dos ingredientes da brutalidade da recessão atual. A única "solução" que a burguesia é capaz de instaurar é... uma nova corrida cega no endividamento. O G20 não pôde inventar uma solução à crise pela simples razão de que esta não tem solução. O G20 devia servir para evitar o cada um por si que caracterizou os anos 30. Pretendia também restabelecer um pouco de confiança entre os agentes econômicos, porque essa confiança, no capitalismo, é um fator essencial que se encontra no centro mesmo de seu funcionamento, o crédito. Assim, este último fato, a insistência na importância da "psicologia" nas convulsões econômicas, a colocação em cena do discurso frente às realidades materiais, certifica o caráter fundamentalmente ilusório das medidas que poderá tomar o capitalismo frente à crise histórica de sua economia. Na realidade, mesmo que o sistema capitalista não vá se derrubar como um castelo de cartas e que a queda da produção não vai continuar indefinidamente, a perspectiva é a de um afundamento crescente em seu atoleiro histórico, quer dizer a volta a uma escala cada vez major das convulsões que hoje lhe afetam. Há quatro décadas, a burguesia não foi capaz de impedir o agravo contínuo da crise. Hoje parte de uma situação muito pior que a do fim dos anos 60. Apesar de toda a experiência adquirida durante décadas, não poderá fazer nada melhor, mas será pior ainda. Em especial, as medidas de inspiração neo-keynesianas propostas pelo G20 de Londres (que vão até a nacionalização dos bancos em situação difícil) não poderão em nenhum caso restabelecer a mínima "saúde" do capitalismo, visto que o princípio de suas grandes dificuldades, em fins dos anos 60, foi o resultado precisamente da quebra definitiva das medidas neo-keynesianas adotadas depois da Segunda Guerra Mundial.

5. O agravamento brutal da crise capitalista surpreendeu fortemente à classe dominante, mas não surpreendeu absolutamente aos revolucionários. Como coloca em relevo a resolução adotada pelo precedente congresso internacional antes mesmo de se estender o pânico do verão de 2007: "Hoje mesmo (...), as ameaças que se acumulam sobre o setor imobiliário nos Estados Unidos, um dos motores da economia norte-americana, e que suportam o risco de catastróficas quebras bancárias, causam angústia e incerteza nos âmbitos econômicos" (Ponto 4).

Esta resolução também jogava por terra as grandes expectativas suscitadas pelo "milagre chinês": "longe de representar um "novo impulso" da economia capitalista, o "milagre chinês" e o de outras economias do Terceiro mundo, não é mais que um novo aspecto da decadência do capitalismo. Além disso, a extrema dependência da economia chinesa de suas exportações é um verdadeiro fator de fragilidade frente à contração da demanda de seus clientes atuais, contração que por outro lado não pode deixar de se produzir, particularmente quando a economia norte-americana se veja obrigada a pôr ordem no endividamento abismal que lhe permite atualmente ser a "locomotiva" da demanda mundial. Assim, igual ao "milagre" que representavam as taxas de crescimento de duas cifras dos "tigres" e "dragões" asiáticos teve um doloroso final em 1997, o "milagre" chinês atual, apesar de que suas origens são diferentes e de dispor de melhores cartas, terá que se enfrentar cedo ou tarde à dura realidade do estancamento histórico do modo de produção capitalista" (Ponto 6). A queda da taxa de crescimento da economia chinesa, a explosão do desemprego que provoca, em particular, a volta forçada a seu local de origem de dezenas de milhões de camponeses alistados nos presídios industriais para tentar se salvar de uma miséria insuportável vêm confirmar totalmente esta previsão.

Na realidade, a capacidade da CCI de prever o que ia ocorrer não se apóia em um mérito particular de nossa organização. Seu único "mérito" reside no método marxista, na vontade de concretizá-la permanentemente na análise da realidade mundial, em sua capacidade de resistir às sirenes que proclamam a "quebra definitiva do marxismo".

Tensões imperialistas

6. A confirmação da validade do marxismo não só se relaciona à vida econômica da sociedade. No centro das mistificações que se estenderam a princípios dos anos 90 estava a abertura de um período de paz para o mundo inteiro. O fim da "Guerra fria", o desaparecimento do Bloco do Leste, apresentado em seu tempo por Reagan como o "Império do Mal" iam pôr fim aos conflitos militares através dos quais se realizou o enfrentamento entre os dois blocos imperialistas desde 1947. Frente a esse tipo de mistificações sobre a possibilidade de paz no capitalismo, o marxismo sempre disse que é impossível para os Estados burgueses superar suas rivalidades econômicas e militares, especialmente no período de decadência. Por isso é que, já desde janeiro 1990, podíamos escrever:

"O desaparecimento do guarda imperialista russo, e o que disso vai resultar para o guarda norte-americano a respeito de seus principais "sócios" de ontem, abrem completamente as portas a rivalidades mais localizadas. Essas rivalidades e enfrentamentos não poderão, por agora, degenerar em conflito mundial, inclusive supondo que o proletariado não fosse capaz de opor-se a ele. Em contrapartida, com o desaparecimento da disciplina imposta pela presença dos blocos, esses conflitos poderiam ser mais violentos e numerosos e, em especial, está claro, nas áreas em que o proletariado é mais fraco" (Revista internacional n° 61, "Depois do afundamento do Bloco do Leste, instabilidade e caos"). O cenário mundial não demoraria em confirmar esta análise, notadamente com a primeira guerra no Golfo em janeiro de 1991 e a guerra na antiga Yugoslávia a partir do outono desse mesmo ano. Desde então, os enfrentamentos sangrentos e bárbaros não tem cessado. Não podemos enumerar todos, porém podemos sublinhar:

  • A continuidade da guerra na antiga Yugoslávia, com a intervenção direta, sob a direção da OTAN, dos Estados Unidos da América e das principais potencias européias em 1999;
  • As duas guerras na Chechenia;
  • numerosas guerras que não tem parado de fazer estragos no continente africano (Ruanda, Somália, Congo, Sudão, etc.)
  • As operações militares de Israel contra o Líbano e, recentemente, na faixa de Gaza;
  • A guerra no Afeganistão de 2001 que  tem prosseguimento ainda hoje;
  • A guerra no Irak de 2003, cujas conseqüências continuam pesando dramaticamente no país, porém inclusive no iniciador dessa guerra, a potência norte-americana.

O sentido e as implicações da política dessa potência já foram analisados desde muito tempo pela CCI: "... o espectro da guerra mundial tem deixado de ameaçar o planeta, porém ao mesmo tempo temos assistido a um desencadeamento de antagonismos imperialistas e de guerras locais nas quais estão implicadas diretamente as grandes potências, começando pela primeira e principal: Estados Unidos. A esse país, que desde muitos anos deu para si o papel de "gendarme mundial", lhe cabia prosseguir e reforçar esse papel diante da nova "desordem mundial" surgida ao final da guerra fria. Na realidade, se os Estados Unidos tem se encarregado desse papel, não é muito menos, para contribuir na estabilidade do planeta, mas, sobretudo, para tentar restabelecer sua liderança mundial, posta constantemente em questionamento, sobretudo por parte dos seus antigos aliados, devido a que já desapareceu a ameaça do bloco adverso, ao não existir mais a argamassa que aglutinava cada um dos blocos imperialistas, . Após o desaparecimento completo da "ameaça soviética", o único meio que resta a potência estadunidense para impor sua disciplina e fazer alarde do que constitui sua força principal, a enorme superioridade da sua potencia militar. E ao fazer assim, a política imperialista dos Estados Unidos tem se convertido em um dos principais fatores de instabilidade do mundo" ("Resolução sobre a situação internacional", XVIIº Congresso da CCI, Ponto 7).

7. A chegada do democrata Barak Obama à cabeça da primeira potência mundial suscitou muitas ilusões sobre uma possível mudança de orientação da estratégia dos EUA, uma mudança que permitiria a abertura de "uma era de paz". Uma das bases dessas ilusões é que Obama foi um dos poucos senadores americanos a votar contra a intervenção militar no Iraque em 2003 e que, contrariamente a seu competidor republicano McCain, comprometeu-se a retirar do Iraque as forças dos EUA. Entretanto, essas ilusões se depararam logo com a realidade dos fatos. Obama previu retirar as forças norte-americanas do Iraque, mas foi para reforçar seu recrutamento no Afeganistão e no Paquistão. Por outro lado, a continuidade da política militar dos EUA fica bem ilustrada em que a nova administração reconduziu em suas funções ao secretário de Defesa, Gates, que foi nomeado pelo Bush.

Na realidade, a nova orientação da diplomacia norte-americana não põe absolutamente em dúvida o marco recordado mais acima. Segue tendo o objetivo de recuperar a liderança dos EUA no planeta graças a sua superioridade militar. Assim, a orientação de Obama a favor do incremento do papel da diplomacia tem, em grande parte, a finalidade de ganhar tempo e, portanto, postergar o momento das inevitáveis intervenções imperialistas das forças militares americanas, que estão hoje dispersas e esgotadas demais para fazer simultaneamente as guerras no Iraque e Afeganistão.

Entretanto, como tem sublinhado freqüentemente a CCI, existem no seio da burguesia dos EUA duas opções para alcançar esses fins:

  • A opção do Partido Democrata, que pretende associar o máximo possível outras potências nestas intervenções;
  • A opção majoritária entre os Republicanos, que consiste em tomar a iniciativa das ofensivas militares e as impor a todo custo às demais potências.

A primeira opção foi realizada no fim dos anos 90 pela administração Clinton na ex-Iugoslávia, onde conseguiu obter que as potências principais da Europa ocidental, Alemanha e França especialmente, cooperassem e participassem dos bombardeios da OTAN na Sérvia para obrigar este país a abandonar Kosovo.

A segunda opção é tipicamente a do início da guerra contra Iraque em 2003, que se fez contra a oposição muito decidida da Alemanha e França, associadas neste caso com a Rússia no seio do Conselho de Segurança da ONU.

Entretanto, nenhuma dessas duas opções foi capaz até agora de dar uma reviravolta na perda da liderança dos EUA. A política de "vai ou racha" que se ilustrou entre os dois mandatos do George Bush filho, conduziu não só ao caos iraquiano, um caos que não está superado ainda, mas também a um isolamento crescente da diplomacia americana, ilustrada, particularmente, no fato de que alguns países que a apoiaram em 2003, como a Espanha ou Itália, abandonaram o navio da aventura iraquiana em plena navegação (e isso sem contar com o distanciamento mais discreto do governo de Gordon Brown em relação ao apoio incondicional que Tony Blair deu a essa aventura). Por seu lado, a política de "cooperação", a preferida dos Democratas, não permite realmente assegurar uma "fidelidade" das potências às que quer associar nas aventuras militares, sobretudo porque deixa uma margem de manobra mais importante a essas potências para que façam valer seus próprios interesses.

Hoje, por exemplo, a administração Obama decidiu adotar uma política mais conciliadora em relação ao Irã e mais firme a respeito de Israel, duas orientações que vão ao sentido da maioria dos países da União Européia, Alemanha e França em particular, dois países que desejam recuperar uma parte da influência que ao seu tempo tiveram no Irã e Iraque. Entretanto, essa orientação não impedirá que siga havendo conflitos de interesse importantes entre esses dois países, Alemanha e França, e EUA, sobretudo na esfera do leste europeu (onde a Alemanha tenta conservar relações "privilegiadas" com a Rússia) ou africana (onde duas facções que estão pondo sangue e fogo no Congo, estão apoiadas uma pela França e a outra pelos Estados Unidos).

Mas geralmente, o desaparecimento da divisão do mundo em dois grandes blocos imperialistas rivais abriu a porta à emergência de ambições imperialistas de segundo plano, novos protagonistas da desestabilização da situação internacional. Esse é o caso, por exemplo, do Irã, que pretende conquistar uma posição dominante no Oriente Médio atrás das bandeiras de "resistência" ao "grande Satã" EUA e do combate contra Israel. Com meios muito mais importantes, a China quer estender sua influência para outros continentes, África em especial, onde sua presença econômica em crescimento deve servir para arraigar nesta zona do mundo uma presença diplomática e militar, como já está ocorrendo na guerra no Sudão.

Assim, a perspectiva para o planeta depois da eleição da Obama no comando da primeira potência mundial não é muito diferente da situação que prevaleceu até agora: continuação dos enfrentamentos entre potências de primeiro ou segundo plano, continuação da barbárie bélica com conseqüências cada vez mais trágicas (fomes, epidemias, deslocamentos massivos) para as populações que vivem nas zonas disputadas. Inclusive pode-se esperar que a instabilidade que provocará o agravamento considerável da crise em toda uma série de países da periferia deverá intensificar os enfrentamentos entre facções militares dentro desses países com a participação, como sempre, das potências imperialistas. Diante desta situação, a única coisa que Obama e sua administração poderão fazer é prosseguir a política belicista de seus predecessores, como se está vendo no Afeganistão, uma política que é sinônimo de barbárie bélica crescente.

A crise ambiental

8. De tal maneira que as "melhores disposições" declaradas por Obama no plano diplomático não impedirão em nada que se prossiga o agravamento e o caos militar pelo mundo, como tão pouco impedirá que a nação que ele dirige continue sendo um fator ativo desse caos, a reorientação norte americana que anuncia hoje e no que se refere ao meio ambiente não impedirá que este continue degradando-se. Esta degradação não é uma questão de boa ou má vontade dos governos, por muito poderosos que sejam. Cada dia que passa coloca em evidência mais e mais a verdadeira catástrofe meio ambiental que ameaça o planeta: tempestade cada vez mais violenta em países que até agora não as sofria, secas, ondas de calor, degelo das calotas polares, países ameaçados de inundação pelo mar... As perspectivas são cada vez mais sombrias. Essa degradação do meio ambiente contém além do mais a ameaça de agravamento dos enfrentamentos bélicos, especialmente com o esgotamento das reservas de água potável, que estará em jogo em novos conflitos.

Como sublinhava a resolução adotada pelo congresso internacional anterior: "Por conseguinte, como pôs em evidência a CCI há mais de 15 anos, o capitalismo em decomposição leva em si ameaças consideráveis para a sobrevivência da espécie humana. A alternativa anunciada por Engels no final do século XIX: "socialismo ou barbárie", converteu-se ao longo do século XX em uma sinistra realidade. O que o século XXI nos oferece como perspectiva é simplesmente socialismo ou destruição da humanidade. Este é o verdadeiro risco que a única força social capaz de destruir o capitalismo enfrenta, a classe trabalhadora mundial". (ponto 10).

Luta de classes

9. Esta capacidade da classe trabalhadora para acabar com a barbárie engendrada pelo capitalismo em decomposição, para tirar a humanidade da sua pré-história e abrir as portas do "reino da liberdade", como disse Engels, já está se forjando desde agora nas lutas cotidianas contra a exploração capitalista. Após a queda do boco do Leste e dos regimes pretendidos "socialistas", as campanhas ensurdecedoras sobre "o fim do comunismo", quando não "da luta de classes", deram um golpe brutal na consciência e na combatividade da classe trabalhadora. O proletariado sofreu então um profundo retrocesso em ambos os planos, que se for propagando durante mais de dez anos. Só a partir de 2003, como a CCI havia posto varias vezes em destaque, a classe trabalhadora mundial tem dado provas que havia superado esse retrocesso, que tinha voltado ao caminho das lutas contra os ataques capitalistas. Desde 2003, não se tem desmentido essa tendência, os dois anos que nos separam do congresso anterior têm conhecido uma continuidade em todas as partes do mundo. Tem se podido observar inclusive, em certos momentos, uma notável simultaneidade dos combates operários em escala mundial. Por exemplo, no início de 2008, vários países se viram afetados ao mesmo tempo por lutas operárias: Rússia, Irlanda, Bélgica, Suíça, Itália, Nova Zelândia, Venezuela, México, Estados Unidos, Canadá e China.

Também temos assistido lutas operárias muito significativas durante os dois anos passados. Sem pretender ser exaustivos, podemos citar alguns exemplos:

  • No Egito, durante o verão de 2007, com greves massivas no setor têxtil que encontraram a solidariedade ativa de numerosos setores (estivadores, transportes, saúde...);
  • Dubai, em novembro de 2007, quando os operários da construção (essencialmente imigrantes) se mobilizaram massivamente.
  • Na frança, em novembro de 2007, quando os ataques contra as pensões de aposentadorias provocaram uma greve muito combativa entre os ferroviários, com vários exemplos de laços de solidariedade com os estudantes que na ocasião estavam mobilizados contra a tentativa do governo de acentuar a segregação social na universidade, greve que revelou abertamente o papel de sabotadores das grandes centrais sindicais, especialmente a CGT e a CFDT, obrigando a burguesia dar destaque ao seu aparato de enquadramento das lutas operárias.
  • Na Turquia, no final de 2007, quando a greve com duração de mais de um mês de 25.000 trabalhadores de Turk Telecom foi a maior mobilização do proletariado nesse país desde 1991, e isso no mesmo momento em que o governo daquele país estava comprometido em uma operação militar no Norte do Iraque;
  • Na Rússia, em novembro de 2008, quando houve greves importantes em São Petersburgo (na fábrica Ford por exemplo) testemunho da capacidade dos trabalhadores para superar a intimidação policial muito presente por parte do FSB (antiga KGB);
  • Na Grécia, no final de 2008, em clima de enorme descontentamento que já havia se expressado anteriormente, a mobilização de estudantes contra a repressão se beneficiou de uma profunda solidariedade por parte da classe trabalhadora da qual alguns setores tem ultrapassado o sindicalismo oficial; uma solidariedade que não se limitou ao interior das fronteiras do país, pois esse movimento encontrou um eco e simpatia bastante significativo em muitos países europeus;
  • Na Inglaterra, onde a classe operária havia suportado uma série de derrotas cruéis durante os anos 80 e onde a greve selvagem (greve contra a vontade dos sindicatos) na refinaria de Linsay, no início de 2009, foi um dos movimentos mais significativos da classe operária desse país desde há mais de duas décadas; esse movimento deu prova da capacidade da classe operária de ampliar as lutas, em particular, e se conheceu o início de um enfrentamento contra o peso do nacionalismo com manifestações de solidariedade entre operários britânicos e operários imigrantes, poloneses e italianos.

10. O agravamento considerável da crise econômica do capitalismo hoje está claro, é um fator de primeira importância no desenvolvimento das lutas operárias. Desde já, em todos os países do mundo, os operários estão ameaçados por demissões massivas, pelo aumento massivo do desemprego. Muito concretamente, profundamente, o proletariado faz a experiência da incapacidade do sistema capitalista de permitir um mínimo decente de vida aos trabalhadores que explora. Mais ainda, torna-se ainda mais incapaz de dar-lhes a mínima expectativa de futuro as novas gerações da classe trabalhadora, o que é um autêntico fator de angústias e de desespero não só para eles, como também para seus pais. Assim vão amadurecendo as condições para que a idéia da necessidade de derrubar esse sistema possa desenvolver significativamente no seio do proletariado. Porém para estar capacitado em orientar-se para uma perspectiva revolucionária, não lhe basta à classe operária perceber que o sistema capitalista está em um beco sem saída, que terá de deixar passagem a outra sociedade. Também tem de ter a convicção de que essa perspectiva é possível e que tenha a capacidade de realizá-la. E é precisamente nesse terreno que a burguesia tem logrado marcar pontos muito importantes contra a classe trabalhadora após a queda do pretendido "socialismo real". Por um lado, tem conseguido generalizar a idéia de que a perspectiva comunista não é nada mais que um sonho: "o comunismo não funciona: a prova está em que tem sido abandonado em proveito do capitalismo pelas populações que o viviam".  Por outro lado, tem logrado fazer nascer entre a classe trabalhadora um forte sentimento de impotência devido à incapacidade desta em desenvolver lutas massivas. E neste sentido, a situação hoje é muito diferente da do ressurgimento histórico da classe nos finais dos anos 1960. Naquele momento, com a imensa greve de maio de 1968 na França e o outono quente italiano de 1969, o caráter massivo das lutas proletárias evidenciou que a classe operária poderia ser uma força de primeiro plano na vida da sociedade e que a idéia de que poderia um dia jogar abaixo o capitalismo não era um sonho irrealizável. Entretanto devido a que a crise do capitalismo só estava nos seus inícios, a necessidade imperiosa de derrubar esse sistema não tinha todavia as bases materiais para disseminar entre os trabalhadores. Pode resumir-se essa situação assim: No final dos anos 1960, a idéia que a revolução era possível podia estar relativamente divulgada, porém a idéia que fosse indispensável não podia impor-se. Hoje ao contrário, a idéia de que a revolução é necessária pode ter um eco nada desprezível, porém a idéia que seja possível está pouco divulgada.

11. Para que a possibilidade de que a revolução comunista possa ganhar um terreno significativo na classe trabalhadora, é necessário que esta possa adquirir confiança nas suas próprias forças, e isso passa pelo desenvolvimento das suas lutas massivas. O imenso ataque que está sofrendo já em escala internacional deveria ser a base objetiva para as lutas. No entanto, a forma principal que está tomando hoje esse ataque, os desempregos massivos, não favorece, em um primeiro tempo, a emergência de tais movimentos. Em geral, e isso se tem comprovado freqüentemente nos últimos 40 anos, as épocas de forte aumento do desemprego não são propícias para lutas mais importantes. O desemprego, as demissões massivas, têm uma tendência a provocar certa paralisia momentânea na classe. Esta se vê submetida a uma chantagem pela parte dos patrões: "se não está contente, existem muitos trabalhadores aqui dispostos a lhe substituir". A burguesia pode utilizar esta situação para provocar uma divisão inclusive uma oposição entre os que perdem o seu trabalho e os que têm o "privilégio" de mantê-lo. Além do mais, os patrões e os governos escudam através de um argumento "decisivo". "Não temos a culpa se o desemprego aumenta e se os demitimos: a culpa é da crise". Finalmente, diante do fechamento de empresas, a arma da greve se torna inoperante, acentuando-se assim o sentimento de impotência dos trabalhadores. Em uma situação histórica na qual o proletariado não sofreu uma derrota decisiva, ao contrario do que tinha acontecido nos anos 1930, as demissões massivas, que já começaram hoje, poderão provocar combates muito duros, inclusive explosões de violência. Porém, em um primeiro momento, serão provavelmente combates desesperados e relativamente isolados, embora se beneficiem de uma simpatia real de outros setores da classe trabalhadora. Por isso, se, no período vindouro não assistirmos a uma resposta de envergadura diante dos ataques, não deveremos por isso considerar que a classe há renunciado em lutar pela defesa dos seus interesses. Em uma segunda etapa, quando será capaz de resistir às chantagens da burguesia, quando se imporá a idéia de que só a luta unida e solidária pode frear a brutalidade dos ataques da classe dominante, sobretudo quando esta vai tentar fazer com que os trabalhadores paguem os colossais déficits orçamentários que estão se acumulando por causa dos planos de salvação dos bancos e retomada da economia, será então que combates operários de grande amplitude poderão desenvolver-se melhor. Isso não quer dizer que os revolucionários se mantenham ausentes das lutas atuais. Estas fazem parte das experiências que deve atravessar o proletariado para ser capaz de abrir uma nova etapa no seu combate contra o capitalismo, e incube as organizações comunistas colocar, nas lutas mesmas, a perspectiva geral do combate proletário e dos passos suplementares que deverá dar nessa direção.

12. O caminho que conduz aos combates revolucionários e à derrubada do capitalismo é ainda longo e difícil. Cada dia que passa tem-se uma prova suplementar da necessidade dessa derrubada, porém a classe trabalhadora terá, no entanto que atravessar etapas essenciais antes de tornar-se capaz de realizar essa tarefa:

  • Reconquistar sua capacidade de apoderar-se das suas lutas, posto que hoje em dia, a maioria delas, sobretudo nos países desenvolvidos, continuam amplamente submetidas ao império sindical (contrariamente ao que podemos comprovar durante os anos 1980);
  • Desenvolver sua aptidão para evitar mistificações e as armadilhas burguesas que lhes obstruem o caminho para as lutas massivas e o restabelecimento da confiança em si mesma posto que, se o caráter massivo das lutas dos finais dos anos 1960 pode em grande parte explicar-se porque a burguesia foi surpreendida após decênios de contra-revolução, evidentemente hoje já não é assim;
  • Politizar suas lutas, o seja sua capacidade de inscrevê-las em sua dimensão histórica, de concebê-las como um momento do vasto caminho histórico do proletariado contra a exploração e a abolição desta.

Esta última etapa é evidentemente a mais difícil de deslanchar, devido a:

  • A ruptura, provocada no conjunto da classe pela contra-revolução, entre suas lutas do passado e as suas lutas atuais;
  • A ruptura orgânica entre as organizações revolucionárias por causa dessa situação;
  • O retrocesso da consciência no conjunto da classe após o desmoronamento do stalinismo;
  • O peso deletério da decomposição do capitalismo sobre a consciência do proletariado;
  • A capacidade da classe dominante para fazer surgir organizações (tais como o Novo Partido Anticapitalista na França e Die Link na Alemanha) cuja vocação é ocupar o espaço dos partidos stalinistas, hoje desaparecidos ou moribundos, ou da socialdemocracia, desconsiderada por decênios de gestão da crise capitalista, e que, por ser novas, têm a capacidade de alimentar mistificações importantes na classe trabalhadora.

De fato, a politização dos combates do proletariado está ligada com o desenvolvimento da presença no seu seio mesmo da minoria comunista. A constatação das débeis forças atuais do meio internacionalista é um dos indicadores do caminho que falta percorrer antes que a classe trabalhadora possa empreender suas lutas revolucionárias e fazer surgir seu partido mundial, órgão essencial sem o qual será impossível a vitória da revolução.

O caminho é longo e difícil, porém em nada pode se transformar em um fator de desânimo para os revolucionários, da paralisia do seu compromisso na luta proletária. Muito pelo contrário!

Saudação às novas secções da CCI na Turquia e Filipinas

  • 3702 leituras

Nos últimos congressos da CCI assinalávamos uma tendência internacional para o surgimento de novos grupos e elementos que se orientam em direção das posições da Esquerda Comunista, e destacávamos tanto a importância desse processo, como a responsabilidade que se impõe a nossa organização.

  • "Os trabalhos deste XVIº congresso...tem colocado no centro das suas preocupações o exame da retomada dos combates da classe operária e as responsabilidades que essa retomada traz para nossa organização, especialmente diante do surgimento de uma nova geração que está se dirigindo para uma perspectiva revolucionária" [1]
  • "A responsabilidade das organizações revolucionárias, e da CCI em particular, é participar plenamente da reflexão que já está se desenvolvendo no interior da classe trabalhadora, não só intervindo ativamente nas lutas que já estão se desenvolvendo, mas também estimulando a posição dos grupos e elementos que procuram se unir ao seu combate" [2]
  • "O congresso também fez um balanço positivo da nossa política em relação a grupos e indivíduos cuja perspectiva é a defesa e a aproximação das posições da Esquerda comunista (...) O aspecto mais positivo dessa política tem sido, sem sombra de dúvidas, a capacidade da nossa organização para estabelecer e reforçar laços com outros grupos que estão situados no terreno revolucionário, cuja ilustração é a participação de quatro deles no XVIIº congresso" [3]

E foi assim que nosso último congresso internacional, pela primeira vez em um quarto de século, deu as boas vindas as delegações de diferentes grupos que mantêm claramente posições de classe internacionalistas (OPOP do Brasil, o SPA da Coréia, EKS da Turquia e o grupo Internasyonalismo das Filipinas, (embora este último não pôde estar presente fisicamente). Desde então tem continuado os contatos e as discussões com outros elementos e grupos de outras partes do mundo, especialmente na América Latina, onde temos realizado reuniões públicas no Perú, Equador e República Dominicana [4]. As discussões com os companheiros de EKS e Internasyonalismo os tem levado a reivindicar sua candidatura para integrar-se na CCI dado o acordo com nossas posições. Por todo um tempo essas discussões têm se desenvolvido no marco de um processo de integração, cujas linhas gerais são descritas no texto "como se fazer militante da CCI" [5] que se publica na nossa página na Internet [6].

Durante este período, os companheiros têm se implicado em profundas discussões da nossa plataforma, mantendo-nos regularmente informados dos seus debates. Várias delegações da CCI têm lhes visitado e através das discussões têm podido comprovar sua profunda convicção militante e a clareza do seu acordo com nossas posições e nossos princípios organizacionais. Ao concluir essas discussões, a última sessão plenária do órgão central da CCI tomou a decisão de integrar ambos os grupos como novas secções da nossa organização.

A maioria das secções da CCI estão na Europa [7], e na América [8], e até agora a única secção fora desses continentes era a da Índia. A integração destas duas novas secções na nossa organização amplia de maneira importante a extensão geográfica da CCI.

Filipinas é um extenso país em uma região do mundo que recentemente tem vivido um rápido crescimento industrial, com o conseqüente aumento do número de operários - para não mencionar a diáspora de 8 milhões de trabalhadores filipinos emigrados por todo o mundo. Esse crescimento tem alimentado nos últimos anos muitas ilusões sobre um "novo alento" do capitalismo mundial. Hoje ao contrário, está claro que os países "emergentes" não têm mais oportunidades de escapar dos estragos da crise que os "velhos" países capitalistas. As contradições do capitalismo vão pois agravar violentamente nos próximos anos nesta região, e isso provocará inevitavelmente movimentos sociais, que não vão limitar-se a revoltas de fome como as que vimos na primavera de 2007, como também incluirá lutas da classe operária.

A formação de uma secção na Turquia reforça a presença da CCI no continente asiático, mais especialmente em uma região próxima a um dos pontos críticos mais efervescentes das tensões imperialistas hoje em dia: Oriente Médio. Na realidade os companheiros de EKS já intervieram por meio de um panfleto no ano passado para denunciar as manobras militares da burguesia turca no norte do Iraque [9].

A CCI tem sido acusada mais de uma vez de ter uma visão "eurocentrista" do desenvolvimento das lutas operárias e da perspectiva revolucionária, porque tem insistido no papel decisivo do proletariado nos países da Europa Ocidental:

"Só quando a luta proletária afetar o coração econômico e político do dispositivo capitalista, quer dizer quando:

  • Resulta, portanto impossível colocar em marcha um cordão sanitário econômico, pois estarão afetadas as economias mais ricas.
  • Não surte efeito o cordão sanitário político porque estaremos diante de uma confrontação entre o proletariado mais desenvolvido e a burguesia mais poderosa.

Então, e só então, esta luta dará o sinal da extensão revolucionária mundial.

E só aplicando golpes no coração e o cérebro da fera capitalista que o proletariado poderá acabar com ela.

A história tem situado, desde há muitos séculos, o coração e o cérebro do mundo capitalista na Europa ocidental. Ali onde o capitalismo deu seus primeiros passos, a revolução mundial dará os seus, pois ambas as coisas estão estreitamente relacionadas. Ali é onde estão reunidas na sua forma mais avançada todas as condições para a revolução que antes enumeramos (...)

É pois na Europa Ocidental, ali onde o proletariado tem uma maior experiência de luta, onde, dede muitas décadas, se confronta diretamente aos enganos anti-operários  mais elaborados, onde a classe operária poderá desenvolver plenamente a consciência política indispensável para sua luta pela revolução[10]".

Nossa organização já respondeu a essa crítica de "eurocentrismo"

  • "Não se trata, de maneira alguma de uma visão "eurocentrista". É o mundo burguês que se desenvolveu a partir da Europa, gerou o proletariado mais antigo e, portanto, o que acumula uma experiência maior" (Id.).

Sobretudo, nunca temos considerado que os revolucionários não têm um papel vital a jogar nos países da periferia do capitalismo:

  • "o colocado anteriormente não quer dizer que a luta de classes ou a atividade dos revolucionários, careça de sentido em outras regiões do mundo. A classe operária é uma. A luta de classes existe em todos os lugares onde se enfrentam proletários e capital. Os ensinamentos das diferentes manifestações desta luta ocorram onde ocorra, são válidas para toda a classe. Em particular a experiência das lutas nos países da periferia influenciará a luta nos países centrais. A revolução será, igualmente, mundial e afetará todos os países. As correntes revolucionárias da classe serão valiosíssimas em todos os lugares onde o proletariado se defronte com  a burguesia, quer dizer, em todo o mundo"(Id).

Isso se aplica obviamente a países como a Turquia ou Filipinas.

Nesses países, a luta para defender as idéias comunistas é realmente difícil. Tem de enfrentar as mistificações clássicas que a classe dominante emprega para bloquear o desenvolvimento da luta e da consciência da classe operária (ilusões democráticas e eleitorais, sabotagem das lutas operárias pelo aparato sindical, veneno do nacionalismo). Porém mais além disso, a luta da classe operária e dos revolucionários se confronta direta e imediatamente, não só com as forças oficiais de repressão do governo, como também com forças armadas de oposição ao governo, como o PKK na Turquia, ou os diferentes movimentos guerrilheiros nas Filipinas, cuja brutalidade e falta de escrúpulos é completamente igual a do governo respectivo, pela simples razão de que também defendem o capitalismo: embora sob uma aparência diferente. Esta situação faz a atividade das novas secções da CCI mais perigosa que nos países da Europa e da América do Norte.

Antes da sua integração na CCI, a secção das Filipinas já tinha uma página na internet em Tagalog (o idioma oficial do país) e em inglês (amplamente empregado nas Filipinas).

As condições presentes tornam impossíveis para os camaradas editar uma imprensa sob forma impressa regularmente (exceto panfletos ocasionais) e nossa página na internet será o meio principal para difundir nossas posições naquele país. A secção da Turquia continuará publicando Dunya Bevrimi, que se converte agora em publicação da CCI no país.

Como escrevemos na Revista Internacional nº122: "Saudamos a estes camaradas que vêm para as posições comunistas e para nossa organização. Nós lhes dizemos: 'Vocês fizeram uma boa escolha, a única escolha possível se tem a perspectiva de integrar-se no combate pela revolução proletária. Porém não escolheram o mais fácil. Não vão ver êxitos rápidos, haverão de ter paciência e tenacidade e não se desmoralizar quando os resultados não estejam a altura das vossas esperanças. Porém não estarão sós, os militantes atuais da CCI estarão do vosso lado e são conscientes da responsabilidade que o passo que tem deram representa para eles' " (XVIº congresso da CCI, op cit). Estas palavras se dirigiam a todos os elementos e grupos que têm escolhido tomar a responsabilidade da defesa das posições da Esquerda Comunista, e se aplicam obviamente em primeiro lugar às duas novas secções que se somaram a organização.

Às duas novas secções, e aos camaradas que fazem parte, uma calorosa e fraternal saudação de boas vindas de toda a CCI.


[1] Revista Internacional nº 122, "Preparemo-nos para os combates de classe e o ressurgimento de novas forças comunistas"

[2] Revista Internacional nº 130, "Resolução sobre a situação internacional" (https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2008/Resolucao_situacao_intern... [26])

[3] Revista Internacional nº 130, "Um fortalecimento internacional do campo proletário"

[4] Ver nossa página na internet em espanhol; "Reunión Pública en República Dominicana: al encuentro de las posiciones de la Izquierda Comunista [27]", "Reunión Pública de la CCI en Perú: Hacia la construcción de un medio de debate y clarificación [28]" e " Reunión pública de la CCI en Ecuador: un momento del debate internacionalista [29]".

[5] "A CCI acolheu sempre com entusiasmo aos novos elementos que querem integrar-se em suas filas. (...)Entretanto, este entusiasmo não significa que tenhamos uma política de recrutamento por recrutamento como as organizações trotskistas. Nossa política tampouco é a de integrações prematuras sobre bases oportunistas, sem claridade prévia (..)A CCI não é uma gaveta de alfaiate. Não está interessada no proselitismo.

Tampouco somos mercadores de ilusões. Por isso nossos leitores que se colocam a questão: «O que terá que fazer para ser da CCI?» têm que compreender que se integrar na CCI leva tempo. Todo camarada que propõe sua candidatura tem que se armar de paciência para empreender um processo de integração em nossa organização. É primeiro um meio para que o candidato verifique por ele mesmo a profundidade de sua convicção para que a decisão de ser militante não se tome à ligeira, por um momento de "inspiração". É também e sobre tudo, a melhor garantia que podemos lhe oferecer para que sua vontade de compromisso militante não se salde por um fracasso ou uma desmoralização."

[6] https://pt.internationalism.org/icconline/2006_como-se-fazer-militante [30] 

[7] Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Inglaterra, Itália, Holanda, Suécia, Suíça.

[8] EEUU, Brasil, México, Venezuela.

[9] Ler em inglês: "EKS leaflet: against the Turkish army's latest Operation" (https://en.internationalism.org/icconline/2008/02/turkey [31]

[10] Revista Internacional nº 31; "o proletariado da Europa Ocidental em uma posição central da generalização da luta de classes"

Será que o trotskismo pertence ao campo do proletariado?

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Todas as organizações que, no mundo, reivindicam o trotskismo, reivindicam também Marx, a revolução de 1917 na Rússia, ostentam sua oposição ao capitalismo e chamam ao derrubamento deste com objetivo a instauração da sociedade comunista. Também formulam críticas, às vezes muito severas, aos partidos socialistas e comunistas que culpam por sua complacência com a ordem social existente. Estas organizações baseiam sua imagem "revolucionária" sobre a sua filiação com Trotsky e, segundo elas, representariam a continuidade do movimento revolucionário. Estas afirmações devem ser avaliadas baseando-se na própria história do movimento trotskista.

O retrocesso da onda revolucionaria mundial de 1917-23, resultado de sua incapacidade em se estender vitoriosamente alem da Rússia, deu lugar a um processo de degeneração dentro da Internacional Comunista e do poder soviético na Rússia onde o partido bolchevique se fundiu mais e mais com o aparelho de estado burocrático. Dentro da Internacional, os intentos de ganhar apoio das massas em uma fase de retrocesso destas, engendraram "soluções" oportunistas: notadamente a insistência crescente na importância dada ao trabalho no Parlamento e sindicatos, e, sobretudo, a política de Frente Única com os partidos socialistas a qual atirou ao lixo a claridade ganha com tanto empenho a respeito da natureza doravante capitalista destes partidos. 

Do mesmo modo que o crescimento do oportunismo na Segunda Internacional tinha provocado uma resposta proletária na forma de correntes de esquerda, representadas notadamente por Lênin e Rosa Luxemburgo, também a maré do oportunismo na Terceira Internacional  foi resistida pelas correntes da Esquerda comunista [1]. Mas precisamente porque era um partido verdadeiramente proletário, o partido bolchevique também produziu numerosas reações internas contra sua própria degeneração. Lênin mesmo - quem em 1917 tinha sido o mais claro porta-voz da ala esquerda do partido - fez algumas críticas pertinentes à queda do partido no burocratismo, particularmente para o fim de sua vida; e pelo mesmo período, Trotsky se converteu no principal representante de uma Oposição de esquerda que procurava restaurar as normas de um funcionamento proletário no partido, e que continuou combatendo as expressões mais notáveis da contra-revolução stalinista, particularmente a teoria do "socialismo em um só país". Entretanto, não mais na Rússia em primeiro de que no mundo depois, Trotsky soube perceber a pertinência das criticas da Esquerda comunista contra a degeneração dos partidos comunistas. Pior ainda, ele foi um ardente defensor da virada oportunista iniciada durante o terceiro congresso da Internacional comunista e confirmada durante o quarto, especificamente sobre a questão da frente única com organizações da burguesia.

Em seguida e até a Segunda Guerra mundial, Trotsky continuará com o mesmo procedimento oportunista que o levará a tomar posições alheias aos interesses de classe do proletariado, notadamente quando dos movimentos sociais de 1936 na França e durante a Guerra de Espanha. Totalmente desnorteado, incapaz de entender a realidade do curso histórico para a guerra aberto pela derrota da onda revolucionaria mundial, Trotsky pensava de maneira errada que a revolução estava caminhando, o único obstáculo a sua emergência era para ele ... "a crise da direção revolucionaria". Seu Programa de transição, ajuntamento oportunista de medidas de capitalismo de Estado era, segundo a sua visão, destinado a mobilizar as massas sobre a base de "reivindicações transitórias". A fundação da IV° internacional em 1938, de maneira totalmente artificial e sem relação nenhuma com a atividade real das massas, corresponde ao mesmo procedimento errado de Trotsky.

O Programa de transição constituiu a base programática do que ia devir o trotskismo em seguida. Entretanto, entre Trotsky e o trotskismo, não existe uma verdadeira continuidade ainda que Trotsky tenha amplamente aberto o caminho para este último. Com efeito, entre ambos há a guerra imperialista que constitui uma prova de verdade para toda organização que reivindica a causa do proletariado: se abandona o internacionalismo, assina sua passagem ao campo da burguesia. Não é certo que Trotsky teria seguido até o fim sua lógica oportunista sem questioná-la como indicam em particular o testemunho de seu par Natalia e seus próprios escritos (A URSS na guerra) onde declara sua vontade de revisar sua opinião caso o governo burocrático na URSS sobrevivesse à guerra mundial. Trotsky não viveu bastante para sabermos como teria evoluído. Em contrapartida a participação do trotskismo na Segunda Guerra mundial, notadamente através dos movimentos da Resistência, assina o abandono definitivo por esta corrente do internacionalismo proletário. Como aconteceu nos partidos da segunda e terceira internacional, cuja traição foi acompamhada do surgimento de correntes fiéis ao proletariado e o internacionalismo (partidos comunistas provenientes dos partidos socialistas e frações de esquerda provenientes dos partidos comunistas), a traição da corrente trotskista provocou também o surgimento de correntes proletárias. Assim durante e depois da Segunda Guerra mundial se formaram grupos provenientes desta corrente sobre a base da defesa do internacionalismo. Foi notadamente o caso nas organizações trotskistas grega (União Comunista Internacionalista em torno de Aghis Stinas), francesa (Socialismo ou Barbárie do qual um fundador, Cornelius Castoriadis, tinha pertencido também à UCI grega), austríaca (RKD, Revolutionäre Komunistische Deutschland), espanhola (Fomiento obrero revolucionario). Em seguida, Natalia Trotsky se associará a procedimento, rompendo com a Quarta internacional através de uma carta em 9 de maio 1951 enviada a seu Comitê executivo.

O segundo congresso desta em 1948, ao ignorar, depois de tê-las abafada, as críticas feitas a sua política belicista veio ratificar a passagem da Quarta internacional e do trotskismo em geral para o campo da burguesia.

É com intento de ilustrar e explicitar esta analise do trotskismo que publicamos a presente compilação de artigos que, pela maior parte entre eles, já foram reunidos, em outros idiomas, dentro de uma brochura intitulada O trotskismo contra a classe operária cuja última edição foi publicada em 1990 [2]. A grande maioria dos artigos publicados a seguir indicado foram escritos em diferentes datas, antes do desmoronamento do stalinismo. E a razão pela qual, neles, se fala no presente desta situação em que o mundo era dividido em dois blocos imperialistas rivais, o do oeste e o do leste, este último sendo apresentado pelos trotskistas como dirigido por um Estado operário degenerado que se tratava de defender contra as "agressões do imperialismo".

CCI (Agosto de 2009)


[1] Para mais informações sobre a esquerda comunista, ler nosso artigo A esquerda comunista e a continuidade do marxismo: https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista [32].

[2] Na medida em que estes artigos não foram concebidos inicialmente para fazer parte de uma brochura, encontra-se inevitavelmente repetições entre eles, como o leitor poderá constatá-lo.

Apresentação à edição em francês de O trotskismo contra a classe operária

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O desaparecimento do bloco russo, a falência evidente e definitiva do stalinismo no plano econômico, político e ideológico, constituíram os acontecimentos históricos mais importantes desde a segunda guerra mundial juntamente com o ressurgimento internacional do proletariado no final dos anos 60. Um acontecimento de tal amplitude já produziu repercussões sobre a consciência da classe operária, e isso tanto mais no que concerne a uma ideologia e um sistema político apresentado durante mais de meio século por todos os setores da burguesia, como "socialista" e operário. Com efeito, o stalinismo, é o símbolo e a ponta de lança da mais terrível contrarrevolução da história que desaparece.

Porém um desencadeamento de mentiras acompanhou este acontecimento e, em primeiro lugar, a principal e mais canalha dentre elas: a que pretende que esta crise, esta falência do stalinismo, é a do comunismo e do marxismo. Democratas e stalinistas sempre têm se encontrado, acima das suas oposições, em uma santa aliança cujo primeiro fundamento é afirmar aos operários que foi o socialismo que reinou no leste europeu apesar das suas deformações. Para Marx, Lênin, Luxemburgo e para o conjunto do movimento marxista, o comunismo sempre significou o fim da exploração do homem pelo homem, o fim das classes, o fim das fronteiras, não sendo possível este, mas que em escala mundial, em uma sociedade onde reine a abundância, onde o "reino do governo dos homens ceda lugar ao da administração das coisas" e cujo fundamento é "a cada um segundo suas necessidades, de cada um segundo suas capacidades".

Pretender que havia algo de "comunista" ou da entrada na via do "comunismo" na URSS e nos países do Leste onde reinava completamente a exploração, miséria, penúria generalizada, representa a maior mentira de toda a história da humanidade.

Esta série de artigos da imprensa da CCI põe em evidência a origem dos erros de Trotsky, mostra como fundamentalmente ele não soube reconhecer a tempo o fracasso da revolução proletária mundial e por isso o da revolução na Rússia. Desde sua expulsão da Rússia, em 1929, até seu assassinato, Trotsky não fez mais que interpretar o mundo ao contrário e participar ativamente à defesa das posições oportunistas que se desenvolveram com o refluxo revolucionário: conquista dos sindicatos, parlamentarismo, aliança com frações da burguesia, apoio às lutas de libertação nacional, governo operário e camponês.

Enquanto a tarefa daquele momento era o reagrupamento das energias revolucionárias sobreviventes da derrota para empreender antes de tudo um balanço político completo da onda revolucionária, Trotsky ao invés de ver um proletariado completamente derrotado via o proletariado "sempre em ascensão". Devido a isto a IV Internacional criada há mais de 50 anos, não foi mais que um casarão vazio através do qual o movimento real da classe operária não podia passar, pela simples e trágica razão do refluxo contrarrevolucionário. Toda ação de Trotsky baseada nesse erro contribuiu para dispersar as já muito fracas forças revolucionárias existentes nos anos 30 e ainda pior, colocar no lamaçal capitalista do apoio "crítico" aos governos do tipo "frentes populares" e da participação na guerra imperialista. O corolário de análises errôneas de Trotsky sobre o período consistia em considerar que o movimento revolucionário sempre em marcha havia perdido momentaneamente sua direção política. A partir daí, todo meio se tornava válido para tentar impulsionar ou direcionar os "partidos operários degenerados" que eram os ditos partidos comunistas stalinistas, embora estes já tinham passado ao campo da contrarrevolução. Todo meio se tornava bom para tentar colocar-se à frente do movimento.

Os epígonos de Trotsky não têm feito mais que explorar, em benefício da burguesia, este raciocínio equivocado do velho revolucionário para afundar ainda mais a classe operária na contrarrevolução. Retomando os erros do seu mestre e lavando até a sua caricatura, as organizações trotskistas não demandaram muito tempo para galgar e ocupar francamente seu lugar no tabuleiro político burguês, ao lado de todos aqueles que de uma ou outra maneira trabalham com a finalidade de que se perpetue este sistema de exploração. Seu apoio a URSS de Stalin, aos PC´s stalinistas, à social-democracia, às frentes populares, à participação da quase totalidade das organizações trotskistas na Resistência durante a Segunda Guerra Mundial, consumaram-se outras tantas ligações na sua passagem para o campo da burguesia, no seu abandono das posições comunistas internacionalistas desembocando com o apoio a todas as lutas de libertação nacional [1].

Agora que já não há nenhuma dúvida sobre a natureza burguesa dos países do Leste, dos seus Estados e dos PC´s, os trotskistas - qualquer que sejam suas "denúncias" dos atuais regimes bárbaros do Leste e das "proclamações de inocência" em relação ao seu conluio com o stalinismo - já não podem ocultar que são real e profundamente : contrarrevolucionários, mistificadores e inimigos da classe operária, como era o stalinismo.

Mas além da compreensão das fases históricas que têm marcado a passagem do trotskismo ao campo da burguesia, resta atualmente para a classe operária a questão do posicionamento das organizações trotskistas diante da luta de classe.

Desde a retomada da luta de classes nos finais dos anos 60, a atitude das organizações trotskistas, em geral, pode ser resumida assim: durante o período dos anos 70, quando os partidos de esquerda e os sindicatos dominavam bem a situação, quando estavam em uma posição forte onde podiam manter a ilusão no seio da classe operária de que eles eram capazes de propor outra política "a favor dos operários", e que "permitiria sair da crise", nesses movimentos, os trotskistas tem sustentado abertamente a esquerda e os sindicatos sob pretextos falaciosos, tipo "vão num bom sentido". Pelo contrário, nos anos 80, quando a tendência era a situação de lutas abertas e massivas em que os partidos de esquerda e sindicatos tendiam perder o controle da situação, o papel dos trotskistas consistia então, "ao lado dos operários", em criticar fortemente a esquerda e os sindicatos e em tratar de se colocar como representantes verdadeiros, de "base", dos operários para sabotar as lutas e devolvê-las ao leito dos sindicatos, explicando que não se pode passar por cima deles e que havia de trabalhar sobretudo pela sua renovação, certamente elegendo-os chefes do sindicato.

A edição desta série de artigos tem por objetivo principal colocar em evidência a natureza burguesa do trotskismo e a fronteira de classe que o separa do proletariado e das suas verdadeiras organizações revolucionárias.

(Segundo a apresentação de Fevereiro 1990)


 


[1] É assim que os trotskistas têm consolidado seu lugar eminente em um campo imperialista burguês: o dos países do pacto de Varsóvia e têm concorrido para a edificação do mito do socialismo na Argélia, Cuba, Vietnam, Camboja, etc. Nesses países numerosos proletários têm sido massacrados em nome do socialismo.

Trotsky e o trotskismo

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O reaparecimento do proletariado na cena da história mundial, no fim dos anos 60, impõe-nos voltar sobre sua experiência histórica e evocar as grandes figuras do movimento operário, suas contribuições, seus papéis. Partindo desta necessidade desejamos aqui, assinalar o papel imenso de Trotsky no movimento revolucionário proletário e, em contrapartida, dissociá-lo claramente de seus epígonos os quais são, atualmente, uma fração da burguesia.

Trotsky, o revolucionário, o internacionalista

É impossível encerrar Trotsky em papéis secundários, é um gigante do movimento operário do mesmo título que Lênin ou Rosa Luxemburgo. Se Stálin fez tudo para ele desaparecer da cena da história, os trotskistas, mumificando-o e retomando para desenvolver todos os erros que cometeu durante os anos 30, limitando seu pensamento unicamente ao programa da IV Internacional, só fazem reduzir a nada seu papel e sua contribuição verdadeira.

Para matar ou tornar inofensivo um pensamento revolucionário, basta torná-lo fixo, encerrá-lo em princípios ou dogmas que não devem ou não podem evoluir. Esse é o objetivo que teve a burguesia ao criar duas teorias, o "leninismo" e o "trotskismo", que jamais existiram durante a vida de Lênin ou Trotsky [1]. É fácil citar mil exemplos da evolução do pensamento de Lênin ou de Trotsky durante sua vida para mostrar como um pensamento revolucionário é capaz de evoluir, de modificar-se, para dar conta da complexidade dos movimentos sociais e da luta de classes. Em relação a nós, tratamos de utilizar o método de Marx, que consiste em fazer viver a teoria revolucionária - que nos legou o movimento operário -, não considerando nenhum texto como sagrado e passando-o pelo fogo saudável da crítica e a isso aplicamos ao pensamento do próprio Trotsky [2]. Para os revolucionários nada é intangível; só o método de investigação, o marxismo, permanece como bússola na compreensão de mais situações históricas e políticas.

A partir do 5º Congresso da IC, a teoria do "leninismo" [3] serviu, mediante a "bolchevização", para arregimentar todos os PCs excluindo todos os oposicionistas. O trotskismo nasce verdadeiramente na morte de Trotsky. Seus epígonos não souberam fazer viver seu pensamento e converteram em um dogma e uma teoria contrarrevolucionária levando até suas últimas conseqüências as posições políticas contidas no "Programa de Transição" da IV Internacional [4]. Portanto, não é correto falar de "trotskismo" nem como teoria nem como movimento político antes de 1940.

Para nós, sem deixar de reconhecer o revolucionário Trotsky e seu papel, não se trata em nenhum sentido de evitar submetê-lo à crítica, e temos numerosos desacordos com ele, como veremos.

Trotsky na ascensão revolucionária (1903-1922)

No início do século XX, Trotsky se encontra entre quem, como Rosa Luxemburgo, capta a grande importância histórica das lutas de massas que se desenvolve na Rússia e, em particular, a dos conselhos operários desde sua aparição em 1905 [5]. Enquanto que o próprio Lênin não compreende de imediato que é "a forma enfim encontrada" da tomada do poder e da ditadura do proletariado, Trotsky escreve: "o soviet imediatamente se tornou a própria organização do proletariado; seu objetivo é lutar pela conquista do poder revolucionário". Devido à compreensão da situação política em 1905, Trotsky pôde jogar um papel determinante no curso dos acontecimentos, e assim foi eleito presidente do comitê executivo do conselho operário de Petrogrado de outubro de 1905.

No entanto, nos debates fundamentais que atravessa a Social-Democracia no início do século sobre a questão do "papel do partido", ele adota uma posição centrista. Assim, no 2º Congresso do POSDR (Partido Operário Social-democrata da Rússia) em 1903 encontra-se ao lado dos mencheviques contra Lênin. Mesmo se tinha razão ao criticar em Nossas tarefas políticas a visão jacobina e substitucionista de Lênin (visão desenvolvida em Um passo adiante, dois passos atrás) [6] nesse momento era mais fundamental tomar posição contra a visão frouxa dos mencheviques [7].

Este debate provocaria a cisão entre bolcheviques e mencheviques. A posição "matizada" de Trotsky fazia amplas concessões à frouxidão dos mencheviques, enquanto que a de Lênin permitiria aos bolcheviques forjar uma organização de combate mais sólida, mais decidida, para a luta de classes.

Em contrapartida, durante a 1ª Guerra Mundial, Trotsky está entre o punhado de revolucionários e de internacionalistas presentes em Zimmerwald que não traíram a classe trabalhadora [8].

Não nos estenderemos longamente sobre seu papel, de primeiro plano no curso da revolução russa, porque é, verdadeiramente, o homem da revolução. É suficiente recordar que, desde o início do período revolucionário, unifica-se, com os bolcheviques aderindo-se às "Tese de abril" [9] que não estão muito distantes das tese da Revolução permanente [10] que ele defendeu antes da 1ª Guerra Mundial. Depois, durante a insurreição, mostra-se como um dos mais decididos e mais brilhantes organizadores da tomada do poder, ele é o animador do Comitê Militar Revolucionário, braço armado do soviet de Petrogrado. Durante todo o período que segue à revolução, ele é juntamente com Lênin a figura central do partido, do governo dos soviets e da III Internacional. Graças a seu talento de organizador, chega a forjar o Exército Vermelho (1918) à frente do comissariado de guerra, o que permite ganhar a guerra civil (1918-1921) contra os exércitos brancos apoiados pelas potências da Entente [11].

O oportunismo e a incompreensão da mudança no curso histórico

Trotsky é o homem, o organizador da insurreição e da tomada do poder em 1917, mas um novo período se abre com maiores dificuldades para os revolucionários e a classe trabalhadora com o final da onda revolucionária mundial. Neste período, terá que ser capaz de compreender a situação para enfrentá-la, e não é fácil para os revolucionários que acabam de vencer e de tomar o poder, modificar suas orientações na expectativa da revolução proletária nos países centrais particularmente a Alemanha. No início dos anos 20, os revolucionários russos devem: assegurar [12] o poder à espera da revolução na Europa.

Em meio a esta tendência descendente e desfavorável para a ação da classe trabalhadora é que surge a luta pelo poder na URSS durante a enfermidade de Lênin e que se agrava após sua morte em 1924. Esta luta conduziu à derrota de Trotsky, que esteve à frente da primeira Oposição de 1923, em seguida à frente "da Oposição unificada" (1925-1926) reagrupando desta vez aos membros da primeira oposição com Zinoviev e Kamenev e outros "velhos bolcheviques". Neste período Trotsky se mostra indeciso, incapaz de conduzir uma luta conseqüente contra a degeneração do Partido e da Internacional, limitando-se em um combate no interior do partido russo [13].

Depois da 6ª Plenária da IC, os oponentes começam a organizar-se em todos os países, embora de maneira dispersa, cada um por sua parte em lugar de unir seus esforços. A Oposição no PC belga é majoritária; em novembro de 1927 o comitê central adota uma resolução protestando contra a exclusão de Trotsky do PCUS (15 votos contra 3). A Oposição é muito influente na Espanha, mas destaca-se, sobretudo a Esquerda Italiana que tem uma importância que ultrapassa seu número por sua contribuição histórica e teórica. Estão, enfim, as oposições, francesa e alemã, que são desvinculadas entre si e dispersas em vários grupos, sem homogeneidade política.

É em 1929, com a expulsão de Trotsky da URSS, quando a Oposição Internacional de Esquerda (OIE) organiza-se de maneira mais centralizada e conseqüente. Este acontecimento é de uma importância capital para o movimento revolucionário, é a possibilidade oferecida aos diferentes grupos ou núcleos oposicionistas de reagrupar-se, de entrar em contato, de organizar-se. O papel de Trotsky vai ser decisivo. O que vai fazer? De fato, no curso deste período ele terá um papel negativo, a política pessoal que vai levar no seio da Oposição leva à dissipação e à dispersão das energias revolucionárias.

Sua política se funda sobre a convicção de que o período continua sendo favorável para a revolução. Mas, teria que tirar todas as lições da onda revolucionária dos anos 20, fazer um "balanço" e sobre esta base estabelecer uma plataforma política, sólida, para consolidar o movimento revolucionário. É isto a que se propõe a Fração italiana: "o problema central da crise do movimento comunista reside na localização e na análise de quais causas que nos levaram ao desastre atual" [14]. Para a Conferência de abril de 1930, a Fração tinha elaborado um documento que insiste sobre esta necessidade de um balanço e um reexame dos acontecimentos passados, "o que se traduz no estabelecimento de uma plataforma, único meio que pode guiar uma oposição comunista" [15].

No entanto, Trotsky prefere um "avanço do movimento" a um programa político coerente. Esta política conduziu a questões pessoais de "chefes" no seio da Oposição. Trotsky apoiou quem seguia cegamente às suas orientações políticas, o que o conduziu freqüentemente a apoiar agentes da GPU infiltrados no seio da OIE ou a indivíduos problemáticos: Mille, os irmãos Sobolevicius, "Etienne" ou Mollinier... Todos os grupos oposicionistas conseqüentes: Esquerda belga, alemã, espanhola e militantes revolucionários de valor serão descartados ou expulsos como Rosmer, Nin, Landau e Hennaut. Uma vez completo este trabalho destruidor, poderá reunir a Conferência da Oposição (fevereiro 1933), somente com militantes aduladores de Trotsky. E para terminar, exclui a Esquerda Italiana sem debate (da mesma forma que tinha sido expulsa da Internacional stalinizada), enquanto esta continua combatendo no seio da Oposição apesar de todas as manobras tramadas contra ela para obrigá-la a se demitir.

O que é grave nesta época é que Trotsky compreende a situação política ao contrário de sua evolução real. Ele acredita que a revolução ainda é possível e que basta uma verdadeira organização política bolchevique para vencer. Em 1936, escreve em La Lutte Ouvriére, sob o título "A revolução francesa começou" [16] e sobre a Espanha, "os operários do mundo inteiro esperam fervorosamente a nova vitória do proletariado espanhol" [17]. Aqui está o que conduziu Trotsky a malversar os princípios e a procurar por todos os meios ganhar jovens elementos inexperientes nas idéias revolucionárias, além de recomendar o "entrismo" nos partidos social-democratas (agosto 1934 na SFIO - (Section Francaise de I'Internationale ouvrière, Partido Socialista Francês) que tinham traído à classe trabalhadora ao votar os créditos de guerra em 1914, unindo-se ao campo burguês. Esta visão errônea de Trotsky conduziu à fundação da IV Internacional em setembro de 1938.

A Esquerda Italiana, com justa razão, analisa o período como contrarrevolucionário, onde o papel dos revolucionários é fazer o "balanço" da experiência passada e preservar os militantes para estarem preparados quando o curso se invertesse para um novo período revolucionário. A tarefa da hora não era, portanto, a formação de uma nova internacional.

Os extravios e os erros fatais de Trotsky vão, de maneira natural, conduzi-lo a formar a Quarta Internacional às vésperas da guerra. Para ele, "a crise da humanidade se reduz à crise da direção revolucionária". Esta concepção idealista explica toda sua política errônea durante esta época. "O principal obstáculo na via da transformação da situação pré-revolucionária em situação revolucionária, é o caráter oportunista da direção do proletariado". Apoiando-se nesta visão Trotsky propõe seu "Programa de Transição". Trata-se de "ajudar às massas, no processo de suas lutas cotidianas a encontrar o ponto entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista". E esta ponte, Trotsky pretende construí-la propondo um "sistema de reivindicações transitórias". O movimento operário conhecia perfeitamente este problema, não era novo. A Social-Democracia o chamava, antes da guerra de 1914, programa "intermediário" entre o programa "mínimo" que expressava as reivindicações imediatas da classe trabalhadora e o programa "máximo" que expressava o objetivo final: o socialismo.

Mas atualmente o movimento operário encontra-se em um período em que a revolução comunista é possível. É por isso que todo programa intermediário não cria uma "ponte" mas uma verdadeira "barreira", confunde a consciência da classe trabalhadora e semeia ilusões nocivas como a de obtenção de reformas possíveis e duradouras no sistema capitalista.

Sobre a base dos erros da IV Internacional, o "Programa de Transição" avança o princípio fundamental da participação nos sindicatos, o apoio crítico aos partidos chamados "operários", às "frentes únicas" e às "frentes antifascistas", aos governos "operários e camponeses", às medidas capitalistas de Estado (prisioneiro da experiência na URSS) mediante a "expropriação dos bancos privados", "a estatização do sistema de crédito", "a expropriação de certos ramos da indústria" e medidas como "o controle operário" sobre a produção ou "a escala móvel de salários". Esta concepção conduz à defesa do Estado operário degenerado russo. E a nível político, prevê a revolução democrática e burguesa nas nações oprimidas devendo passar pelas "lutas de libertação nacional". Aqui se reconhecerá tudo o que hoje continuam defendendo os trotskistas, quaisquer que seja sua orientação.

Entretanto, embora Trotsky tenha aberto a porta a seus epígonos que, repetindo o Programa de Transição - ao qual conduziram seus erros políticos -, fizeram uma teoria contrarrevolucionária de apoio a um campo imperialista, o da Rússia, durante a Segunda Guerra Mundial, não devemos confundi-lo com os que se reclamam dele atualmente. Trotsky continuou sendo durante toda sua vida um militante revolucionário apesar da linha "centrista" que defendeu durante os anos 30 com todos seus erros. É assim que, durante as premissas da Segunda Guerra Mundial, teve ainda a força de questionar algumas entre suas posições políticas, particularmente sobre a natureza da URSS. Dizia em um último folheto - A URSS na guerra - que se o stalinismo saísse vencedor e reforçado da guerra, então teria que rever o conceito que tinha acerca da URSS. É o que fez Natalia Trotsky utilizando a lógica do pensamento de seu companheiro e rompendo com a IV Internacional sobre a natureza da URSS, em 9 de maio de 1951 [18], como outros trotskistas, especialmente Munis [19].

(Révolution Internationale n° 179, órgão da CCI na França; maio de 1989).


[1] Ler nosso artigo O "leninismo": uma criação do stalinismo - Lênin: um combatente da classe operária. https://pt.internationalism.org/icconline/2007/leninismo-stalinismo [33]

[2] Trotsky aplicou a si mesmo este método quando voltou, por exemplo, sobre seu papel na repressão e esmagamento da comuna do Kronstadt (artigo de 25 de julho de 1939)

[3] Os dois termos de "trotskismo" e de "leninismo" foram inventados por Zinoviev em 1923 para as necessidades da luta contra Trotsky, e para soldar a nova "troika" (o comitê de três membros) à frente do PC da URSS e da Internacional. O próprio Zinoviev explica isso aos militantes do PC de Leningrado que o tinham seguido na questão de "trotskismo" quando se uniram dois anos mais tarde, em 1926, com Trotsky: "Era a luta pelo poder. Toda a arte consistia em saber reler as antigas divergências com as novas. É justamente por isso que o "trotskismo" foi posto em primeiro plano..."

[4] Atualmente o termo de trotskismo abrange o programa da IV Internacional, quer dizer, o programa de "transição" que os trotskistas atuais repetem como papagaios, a todo momento, servindo-se deste contra a classe operária.

[5] Cf. seu livro: 1905

[6] Em julho de 1904, Rosa Luxemburgo faz também a crítica das concepções de organização de Lênin em Questões de organização na social-democracia russa, publicada em Die Neue Zeit.

[7] Ao redor de questões práticas e de como se forja o partido se dá a ruptura, especialmente acerca da discussão sobre o artigo 1 dos Estatutos, que definia quem é um membro do partido e suas responsabilidades.

[8] "Era possível transportar todos os internacionalistas em 4 automóveis". Trotsky, Minha vida

[9] Pelo contrário, Lênin deve convencer o partido bolchevique e seus órgãos dirigentes sobre o fato que a revolução proletária está na ordem do dia na Rússia.

[10] Esta teoria é desenvolvida em seu livro Balanço e perspectivas redigido depois de 1905, continuando a de Parvus em Guerra e Revolução que indica que o sistema capitalista se desenvolve como um sistema mundial, a maturidade revolucionária da sociedade burguesa não deve ser medida mais que com o padrão do mercado mundial considerado como totalidade. E um novo ciclo de crise se abria. O limiar desta nova época especialmente de guerra imperialista, abria-se com a guerra russo-japonesa. Isso tinha conseqüências, a guerra devia catalizar a crise social e econômica na Rússia de entrada, levando, possivelmente, a queda do tzarismo. Uma vez a Rússia inflamada, nesta atmosfera de crise generalizada e da intensidade das conexões na Europa, a revolução poderia estender-se ao Ocidente. Nota-se de início toda a importância do pensamento de Parvus sobre Trotsky e sobre os bolcheviques em seguida. Entretanto, constata-se igualmente como estas concepções coincidem com as da Esquerda da social-democracia européia particularmente com a de Rosa Luxemburgo.

[11] O massacre da comuna de Kronstadt não pode ser imputado unicamente a Trotsky. Toda a III Internacional carrega a responsabilidade. Os revolucionários acreditavam então na possibilidade de um novo impulso da onda revolucionária no coração da Europa, e por conseqüência tinha que se sustentar, por todos os meios. Isto não aconteceu e nós captamos, atualmente, a amplitude do erro cometido por todos os revolucionários da época.

[12] Este período chamado de "comunismo de guerra" conhece grandes discussões no PCUS. É quando nasce a "Oposição Operária" que tendia a impor a primazia dos sindicatos sobre o aparelho econômico. Trotsky defende a "militarização dos sindicatos" para criar uma nova dinâmica econômica. A maioria do partido com Lênin chama à necessária separação dos sindicatos do Estado e a necessidade do emprego de medidas de "persuasão" para criar a necessária mobilização operária. Com efeito, os camponeses se separavam da revolução e se opunham a mais requisições nas cidades a penúria castigava e os operários se desmobiIizavam; é nesta atmosfera que se produziram greves nos grandes centros como Petrogrado e a revolta de Kronstadt.

[13] Bordiga tinha lhe pressionado para que se tornasse o porta-voz de uma Oposição de Esquerda a nível internacional, especialmente no 5º Congresso da IC (junho 1924). Trotsky solicita a Bordiga aprovação da moção do 13° congresso do PCUS que condena a oposição (23-31 maio) para evitar que fossem excluídos.

[14] Carta da Fração italiana a Trotsky de 19 de Junho 1930.

[15] Em Prometeo n °1, abril 1930. Para mais informações, ver livro da CCI A Esquerda Comunista da Itália (em espanhol).

[16] Em La Lutte Ouvriére do 9 de Junho 1936.

[17] Artigo de 30 de Julho 1936 publicado em La Lutte Ouvriére em 9 de Agosto. Tudo isso é amplamente explicitado no programa: "A nova ascensão revolucionária e as tarefas da IV Internacional" apresentado na Conferência pela IV Internacional de 29 e 31 de julho de 1936

[18] Pode-se ler a carta de Natalia Trotsky no link seguinte: https://www.marxists.org/portugues/sedova/1951/05/09.html [34]

[19] Cf. "Em memória de Munis, militante da classe operária [35]", Revista Internacional n° 58, 3er. trimestre.

O trotskismo: filho da contrarrevolução

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Os grupos trotskistas, independentemente das divergências que justificam sua existência separada, se apresentam todos, sem exceção, como os continuadores da política revolucionária do partido bolchevique e da III Internacional. Nisso não se distinguem de outras frações da esquerda do capital que, para justificar uma atividade contrarrevolução no seio da classe trabalhadora, reivindicam-se de lutas passadas desta e dos órgãos que se dotaram. Porém, para dar corpo ao que afirmam, os grupos trotskistas se apóiam sobre dois fatos:
  • 1º) No seio da III Internacional se desenvolve a partir de 1924 uma reação ao "stalinismo" nascente, a "Oposição de Esquerda", na Rússia primeiro, e em seguida internacionalmente, que, sob a direção de Trotski, dá nascimento em 1938 a IV Internacional da qual os grupos trotskistas atuais tem origem.
  • 2º) Apoiando-se sobre os quatro primeiros congressos da IC a "Oposição de Esquerda" prossegue sua atividade política e, a partir de certas posições do 2º, 3º e 4º congressos, Trotsky elabora as posições políticas comuns aos grupos que se reivindicam dele.

De fato a "relação" que estabelecem entre os revolucionários dos anos 20 e eles mesmos não têm mais consistência na medida em que:

  • Por um lado, retomam por sua conta e convertem em princípios políticos imutáveis o que constituíram os "erros" do movimento operário da época e não as posições revolucionárias que a onda revolucionária de 1917-1923 tinha permitido destacar;
  • Por outro lado, é a partir dessas posições erradas (das quais tinha se convertido em ardoroso defensor desde o 2º congresso da IC) que Trotski elabora as posições fundamentais do "trotskismo", posições erradas que serviram, durante 50 anos de contrarrevolução, de garantia de "esquerda" à política antiproletária da burguesia.

Primeiras reações operárias à degeneração da IC

A guerra de 1914 em que se enfrentaram as principais potências imperialistas, marca a entrada do sistema capitalista na sua fase de decadência "inaugurando a era das guerras, crises e revoluções sociais" (I Congresso da IC). Em reação à Primeira Guerra Mundial, o proletariado surgiu internacionalmente e viu a sua fração russa tomar o poder a partir da insurreição de Outubro de 1917. A luta da classe operária vai prosseguir durante vários anos, sobretudo na Alemanha, Itália e Hungria... Dentro deste contexto geral as organizações revolucionárias que se reagrupam na IC durante seu primeiro congresso em 1919 adotam, à luz da revolução russa, as orientações políticas que são a manifestação do enorme passo que a classe operária mundial acaba de dar. Nesse sentido, rechaça as concepções da II Internacional e dos "centristas" tipo Kautsky como burguesas (reformismo, parlamentarismo, nacionalismo...) e chama a classe operária a instaurar a ditadura dos Conselhos Operários.

Entretanto o fracasso sangrento do proletariado na Alemanha e na Hungria, em seguida, já anuncia o refluxo da luta mundial e vem reforçar o isolamento da revolução na Rússia que os esforços empregados pela classe operária em 1920-21 não lograram frear.

Desde os primeiros sinais do refluxo, as concepções que haviam prevalecido no curso do período progressista do capitalismo (parlamentarismo, sindicalismo, no marco da luta por reformas), e que continuam manifestando-se no seio da classe operária vão pesar cada vez mais sobre a IC. É o que traduz o retorno progressivo às velhas táticas tomadas do arsenal da social-democracia. Isso desde o 2º Congresso da IC, e, sobretudo, durante os 3º e 4º: conquista dos sindicatos, parlamentarismo, alianças com frações da burguesia, lutas de libertação nacional, governo operário e camponês. Na Rússia, onde o proletariado havia tomado o poder, o isolamento da revolução vai fazer com que as confusões do partido bolchevique sobre a natureza do poder da classe operária (é o partido que exerce o poder) lhes conduzem a tomar medidas opostas aos interesses da classe operária: submissão dos sovietes ao partido, envolvimento dos trabalhadores nos sindicatos, assinatura do Tratado de Rappalo (diplomacia secreta de Estado com Estado: direito para as tropas alemãs entrar em território russo para o treinamento militar), repressão sangrenta das lutas operárias (Kronstadt, Petrogrado 1921). Porém a adoção de tais orientações pelo partido bolchevique e a IC, que vão jogar um papel de acelerador do refluxo das quais eram expressão, não se faz sem suscitar oposições no seu interior.

É assim que no 3º Congresso da IC, os que Lênin denominou "esquerdistas", reagrupados no seio do KAPD, se levantam contra o retorno ao parlamentarismo, ao sindicalismo, e mostram como estas posições vão contra as adotadas no primeiro congresso que tentavam sacar as implicações para a luta do proletariado do novo período aberto pela Primeira Guerra Mundial.

É também neste congresso onde a Esquerda Italiana que dirige o Partido Comunista da Itália reage vivamente - embora em desacordo profundo com o KAPD - contra a política sem princípios de aliança com os "centristas" e a desnaturalização dos PC pela entrada em massa de frações saídas da social-democracia.

O significado da Oposição de Esquerda

Porém é na própria Rússia (tendo em conta as confusões do partido bolchevique que se manifestam no contexto de isolamento da revolução) onde aparecem as primeiras oposições. É assim que desde 1918, o "Komunist" de Bukharin e Ossinsky, coloca em guarda o partido contra o perigo de assumir uma política de capitalismo de Estado. Três anos mais tarde, depois de ter sido excluído do partido bolchevique, o "Grupo Operário" de Miasnikov leva a luta na clandestinidade em estreita relação com o KAPD e o PCO da Bulgária até 1924 quando desaparece sob os repetidos golpes da repressão da qual foi objeto. Este grupo critica o partido bolchevique por começar a sacrificar os interesses da revolução mundial em proveito da defesa do Estado russo, reafirmando que só a revolução mundial poderia permitir a manutenção da revolução na Rússia.

Portanto, contrariamente ao que fazem acreditar os trotskistas, que guardam silêncio sobre essas oposições, essas tendências, que se posicionavam resolutamente no ponto de vista dos interesses proletários não esperaram a Trotsky e a "Oposição de Esquerda" para lutar pela defesa das aquisições fundamentais da revolução na Rússia e da Internacional Comunista.

È somente depois do fracasso da política da IC na Alemanha em 1923 e na Bulgária em 1924, feita de uma mescla de "frentismo" e "putchismo" (golpismo), que começa a constituir-se no seio do partido bolchevique e mais precisamente nas suas esferas dirigentes, a corrente conhecida sob o nome de "Oposição de Esquerda".

Esta "Oposição de Esquerda" se cristalizará em torno de chefes prestigiados do partido bolchevique, como Trotsky, Preobrasensky, Ioffé, porém não encontra verdadeiro eco numa classe operária que sai ensangüentada da guerra civil. Os pontos sobre os quais leva a luta são expressos no que concerne a Rússia, através da sua consigna: "fogo sobre o kulak, os NEPmen [1], a burocracia". Por uma parte, critica a política interclassista do "enriqueçam no campo" recomendada por Bukharin e, por outra parte, ataca a burocracia do partido e seus métodos (execuções, internamentos, deportações, suicídios, exílio de Trotsky).

Em escala internacional, a partir de 1925-26, a "Oposição de Esquerda" se levanta contra a constituição do "comitê anglo-russo" e a aliança com as Trade-Unions (sindicatos ingleses) que acabaram de fazer fracassar a grande greve geral dos trabalhadores ingleses. Por outra parte, sob o impulso de Trotsky, a Oposição de Esquerda leva uma luta resoluta contra a política criminal da IC "stalinizada" na China preconizando a ruptura do jovem Partido Comunista Chinês com o Koumintang e as diversas forças burguesas pseudoprogressistas. Afirma que os interesses do proletariado mundial não devem sacrificar-se à política e os interesses do Estado russo.

Por outro lado, empreende a luta contra a teoria do socialismo em um só país (desenvolvida por Bukharin a pedido de Stálin). No 14º congresso do Partido Comunista Russo, onde se adota esta tese, só a voz dos membros da oposição de esquerda se faz escutar para rechaçá-la.

É, pois, como reação proletária aos efeitos desastrosos da contrarrevolução que aparece, se desenvolve e logo morre a Oposição de Esquerda na Rússia. Porém o fato mesmo que tenha aparecido tão tardiamente pesa duramente sobre suas concepções e sua luta. Mostra-se de fato incapaz de compreender a natureza real do "fenômeno stalinista" e "burocrático", prisioneira como está de suas ilusões sobre a natureza do Estado russo. É assim que, ainda criticando as orientações de Stálin, ela é parte atuante da política de controle sobre a classe operária mediante a militarização do trabalho sob a égide dos sindicatos. Faz-se também o defensor do capitalismo de Estado que quer impulsionar mais adiante mediante uma industrialização acelerada.

Quando luta contra a teoria do socialismo em um só país não chega a romper com as ambigüidades do partido bolchevique sobre a defesa da "Pátria soviética" E seus membros, Trotsky à frente, se apresentam como os melhores partidários da defesa "revolucionária" da "pátria socialista".

Prisioneira deste tipo de concepções, proíbe-se todo combate verdadeiro contra a reação stalinista limitando-se a criticar certos efeitos.

Por outra parte, na medida em que concebe a si mesma não como uma fração revolucionária buscando defender teórica e organizacionalmente as grandes lições da Revolução de Outubro, mas só uma oposição leal ao Partido Comunista Russo, nunca se livra de certa política manobrista feita de alianças sem princípios visando mudar o curso de um partido quase totalmente gangrenado (é assim que Trotsky buscará o apoio de Zinoviev e Kamenev que não cessaram de caluniá-lo desde 1923). Por todas essas razões, pode-se dizer que a Oposição de Esquerda de Trotsky na Rússia permanecerá sempre sem alcançar as oposições proletárias que se manifestavam desde 1918.

A Oposição de Esquerda Internacional

Em nível internacional, começam a aparecer em diferentes secções da Internacional Comunista tendências e indivíduos que manifestam sua oposição à política cada vez mais abertamente contrarrevolucionária desta última. Apesar de uma troca de correspondência entre algumas dessas tendências e membros da "Oposição de Esquerda" na Rússia, não se logra criar imediatamente nenhum laço sólido entre eles. Terá que se esperar até 1929, quando na Rússia os "oposicionistas de esquerda" são perseguidos e assassinados pelos stalinistas, para que comece a constituir-se ao redor e sob o impulso de Trotsky exilado, um reagrupamento dessas tendências e indivíduos que adota o nome de "Oposição de Esquerda Internacional". Esta constitui em muitos aspectos o prolongamento do que havia representado a constituição e a luta da Oposição de Esquerda na Rússia. Retoma suas principais concepções e se reivindica dos quatro primeiros congressos da IC. Por outra parte perpetua a política manobrista que caracterizava a Oposição de Esquerda na Rússia.

Em grande medida essa oposição é um reagrupamento sem princípios de todos que, notadamente, querem fazer uma crítica de "esquerda" do stalinismo. Proíbe-se total e verdadeiramente a clarificação política em seu interior e reserva a Trotsky, a quem o vê como o próprio símbolo da Revolução de Outubro, a tarefa de se fazer porta-voz e "teórico". Mostrar-se-á rapidamente incapaz nestas condições de resistir os efeitos da contrarrevolução que se desenvolve em escala mundial sobre a base da derrota do proletariado internacional.

A Contrarrevolução

A derrota do proletariado mundial, que os fracassos na Alemanha em 1923 e na China em 1927 vieram ratificar, ao invés de marcar um retrocesso momentâneo do movimento proletário, abre de fato o momento contrarrevolucionário mais longo e mais profundo que a classe operária conheceu na sua história.

Com efeito, desmoralizada pelos seus fracassos sucessivos, novamente atomizada e submetida à ideologia burguesa, a classe operária mostra-se incapaz de se opor ao curso em direção à guerra e na qual se introduz, de novo, o sistema capitalista, que havia entrado em uma fase histórica onde não cessa de ser corroído por suas contradições insuperáveis. Em todas as partes onde, confrontada à miséria que lhe impõe o capital em crise, a classe operária tenta ainda resistir mediante sua luta, se defronta não somente com os partidos social-democratas que se mostraram ao longo da onda revolucionária dos anos 20 como os cães de guarda do capital, como também desde então aos partidos "comunistas" stalinistas. Estes passados de corpo e alma ao campo do capital assumem sua função de desvio das lutas operárias e alistamento na via do nacionalismo e na lógica dos enfrentamentos inter-imperialistas preparando a segunda carnificina imperialista.

Dentro deste contexto geral de contrarrevolução que se acompanha de um profundo retrocesso da luta de classes e da consciência do proletariado, torna-se cada vez mais difícil para as frações e tendências que se reivindicam da revolução comunista resistir à penetração das idéias burguesas no seu interior, de lutar na contracorrente para manter-se e desenvolver as aquisições do movimento revolucionário passado. Até mais por conta de que, contrariamente a contrarrevolução que acompanhou a derrota da Comuna de Paris e que não deixou nenhuma ilusão sobre a natureza de classe dos "versalhenses" verdugos da classe operária, a contrarrevolução que triunfa não só foi feita deixando atrás de si centenas de milhares de cadáveres operários, como também mistificando a classe operária sobre sua natureza. Na medida em que triunfa, através de um lento processo de degeneração da IC e da Revolução Russa, favorecendo todas as ilusões da classe operária na manutenção da natureza "proletária" do Estado russo e dos partidos comunistas que, ao continuarem reivindicando-se de outubro de 1917, vão poder justificar sua política de serviço ao capital.

A "Oposição de Esquerda" que compartilha e, portanto, difunde essas ilusões constitui-se neste período de contrarrevolução e retoma sem criticá-los, por sua vez, os erros da IC que contribuíram ativamente para o refluxo da onda revolucionária dos anos 20 e as concepções falsas da Oposição de Esquerda russa que conduziu a estagnação na luta contra Stalin.

De 1929 a 1933, concebe-se como "oposição leal" à política da IC, que tenta atuar a partir do seu interior, enquanto que desde a adoção por esta da teoria do "socialismo em um só país" vinha confirmar sua morte como órgão proletário e a passagem dos seus partidos para o campo do capital. A partir de 1933, embora "compreendesse" por fim a função contrarrevolucionária dos partidos stalinistas e se orientasse para a constituição de organizações distintas dos PC's, a Oposição de Esquerda continua considerando-os como "operários" e atua, consequentemente, desenvolvendo até o absurdo as concepções falsas que haviam precedido sua constituição, e que vão mostrar-se cada vez mais claramente como justificações de "esquerda" da contrarrevolução triunfante.

Durante o período que antecede a celebração do congresso de fundação da IV Internacional em 1938, tendo em conta a heterogeneidade da "Oposição de Esquerda", é o próprio Trotsky quem elabora a partir dos erros da IC as táticas e orientações que ainda hoje, com algumas diferenças de interpretação maiores ou menores, servem de fundamento à atividade contrarrevolucionária dos grupos trotskistas no seio da classe operária e que estão na sua forma acabada no "programa de transição".

Na metade dos anos 30 o movimento trotskista vai ser conduzido à capitulação frente à contrarrevolução colocando-se a reboque da política das Frentes Populares destinados a envolver o proletariado atrás da bandeira nacional, quer dizer, para preparar a guerra. Neste sentido, o movimento trotskista abandona objetivamente o princípio fundamental do movimento operário, o internacionalismo proletário que, na época da decadência do capitalismo, na época das "crises, guerras e revoluções", mais ainda que no passado, em que o proletariado podia desenvolver sua luta por reformas no seio das fronteiras nacionais, constitui o critério decisivo de pertencimento ao campo do proletariado e do comunismo.

"Estado operário degenerado" e defesa da URSS

Prisioneiro das concepções errôneas da Oposição de Esquerda russa, Trotsky, assimilando a medida de nacionalização da produção - ou seja, passagem da propriedade privada dos meios de produção a uma propriedade do Estado - com uma medida "socialista", vai situar-se no mesmo terreno dos stalinistas que justificam a manutenção e a intensificação da exploração da classe operária em nome da construção do socialismo em um só país. Na verdade, embora condenando esta teoria como burguesa, Trotsky é levado a reconhecer implicitamente a possibilidade que seja destruída, ao menos em parte, dentro das fronteiras nacionais, a lei do valor, significa dizer a produção para o intercâmbio, a extorsão e a acumulação de mais-valia mediante o salariado, a separação dos produtores dos seus meios de produção.

Incapaz de reconhecer na "burocracia" que se desenvolve na URSS o inimigo hereditário do proletariado que renascia sobre a base das relações de produção capitalistas que haviam persistido ainda depois da tomada do poder político pelo proletariado em 1917, Trotsky não compreenderá a função de gestão e conservação destas relações por esta "burocracia" que ele crê "operária" quando é completamente burguesa. Na realidade Trotsky se transformará no paladino do capitalismo de Estado russo limitando-se a promover uma revolução "política" que restaurará a "democracia proletária".

É assim que, em 1929, defenderá a intervenção do exército russo na China onde o governo de Chiang Kai-shek cassava os funcionários russos encarregados de gerenciar o ramal do transiberiano que passa pelo território chinês e reveste de uma importância estratégica desde o ponto de vista dos interesses nacionais do capital russo. Nessa ocasião, Trotsky lança a consigna tristemente famosa "Pela pátria socialista sempre, pelo stalinismo, jamais", que dissociava os interesses stalinistas (quer dizer capitalistas) dos interesses nacionais da Rússia. Com isso apresentava aos proletários uma "pátria" a defender, enquanto trabalhadores não têm pátria, traçando finalmente a via do apoio ao imperialismo russo.

Antifacismo, Frentismo, Sindicalismo

Incapaz de distinguir a natureza e a função contrarrevolucionária e burguesa dos partidos stalinistas e até dos partidos social-democratas, Trosky vai perceber as mistificações desenvolvidas por estes partidos (antifascismo democrático especialmente, frente popular,...) como meios para fortalecer a Oposição de Esquerda e capazes de levar ao surgimento de um novo partido revolucionário.

Nos zigue-zagues dos stalinistas e nas manobras dos social-democratas, cada vez Trotsky vai enxergar brechas provocadas pela pressão de uma classe operária da qual não alcança compreender sua derrota histórica. Chamando à frente única, a unidade sindical, não faz mais do que jogar o jogo da própria contrarrevolução que tem a necessidade de voltar a utilizar os velhos mitos para desorientar ainda mais a classe operária, para conduzi-la a uma nova guerra mundial. Na aliança antifascista das frentes populares, espanhola e francesa, Trotsky passa a ver um impulso para a política revolucionária, uma base para o reforço das posições trotskistas pela via do entrismo... nos partidos socialistas. Cada nova tática de Trotsky será um passo a mais na capitulação e submissão à contrarrevolução.

Retomando por outro lado, seguindo os bolcheviques, a palavra de ordem do "direto dos povos a dispor de si mesmo", que expressava a ilusão destes últimos sobre a possibilidade para uma nação sob a dominação imperialista de "libertar-se" sem cair sob as tutela de outro imperialismo, Trotsky e os grupos que participam no congresso de fundação da IV Internacional qualificaram a guerra entre China e Japão como uma guerra de libertação nacional da China que deveria ser apoiada. Desde esta época encontram- se assim colocadas as bases que vão fundamentar o apoio verbal e algumas vezes ativo dos grupos trotskistas às lutas de libertação nacional que, na época do capitalismo decadente, são outros tantos lugares de enfrentamento entre os diversos blocos imperialistas e nos quais o proletariado não pode servir mais que como bucha de canhão.

O programa político adotado no congresso de fundação da IV Internacional, redigido pelo próprio Trotsky, e que serve de base de referência aos grupos trotskistas atuais, retoma e agrava as orientações de Trotsky que havia precedido esse congresso (defesa da URSS, frente única operária, análise errônea do período...), porém além do mais tem como eixo uma repetição vazia de sentido do programa mínimo do tipo social-democrata (reivindicações "transitórias"), programa que se tornou caduco pela impossibilidade de reformas desde a entrada do capitalismo na sua fase de decadência, de declínio histórico.

O Programa de Transição abriu caminho à integração definitiva do movimento trotskista na corte dos partidários do capitalismo de Estado que, em nome da instauração de medidas "socialistas", tentarão envolver a classe operária depois da Segunda Guerra Mundial nas reconstruções nacionais, quer dizer na reconstrução do capital.

As frações comunistas de Esquerda

Diante da contrarrevolução mais profunda de toda a história do movimento operário, as Frações Comunistas de Esquerda que haviam aparecido nos anos 20 e que haviam lutado desde essa época contra a degeneração e os erros da IC, viram-se arrastadas também pelo fluxo da contrarrevolução. Foi assim que os elementos da Esquerda Alemã, que apesar de estar entre os primeiros a levantarem-se contra o retorno a IC das táticas social-democratas e a romper com ela, tenderam a perder-se sob diversas vias: abandonando toda atividade política ou caindo na ideologia conselhista que rechaçava a necessidade do partido e a própria revolução russa. É a Esquerda Comunista Italiana que vai assegurar, apesar das debilidades certas e inevitáveis, o essencial do trabalho de defesa das posições de classe. É ela quem apesar de um isolamento dramático, vai assegurar todo um trabalho de compreensão política e teórica dos efeitos da derrota do proletariado, chegando até reivindicar a validade de certas posições da IC que Bordiga não havia colocado em questão (como a questão nacional). Sobre certo número de pontos cruciais, a Esquerda Italiana se oporá as orientações de Trotsky. (ver o artigo A esquerda comunista e a continuidade do Marxismo [2])

Porém, qualquer que tenha sido seus limites, estas frações, contrariamente a Oposição de Esquerda de Trotsky, permitiram manter a tradição revolucionária. É também graças a elas que atualmente a débil corrente revolucionária tem conseguido renascer e desenvolver-se.

Quanto à corrente trotskista dos anos 1930, depois das suas capitulações e apesar do assassinato de Trotsky em 1940 pelo stalinismo, passar-se-á com mala e cuia  ao campo do capital, alistando-se no campo do imperialismo democrático e do imperialismo russo.

(Révolution Internationale N° 26 e 27, órgão da CCI na França; Junho e Julho de 1976)


[1] NEPmen é uma palavra russa criada com a união das palavras NEP (Nova Política Econômica) e a palavra inglesa men (homens ou indivíduos). Referia aos indivíduos que durante o período em que vigorou a NEP na URSS (1921-29), e ficou autorizadas a instalação e abertura de negócios privados, tornaram-se empresários e altos executivos em empresas privadas.) Fonte: Wikipedia

[2] https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista [32]

A classe não identificada: a burocracia soviética segundo Leon Trotsky

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Qual era a natureza do sistema que existiu em nosso país durante o período soviético? Esta é uma das principais questões da história e de certo modo das demais ciências sociais. E não tem nada a ver com uma questão acadêmica: tem laços muito estreitos com o período contemporâneo, pois não se podem entender as realidades do dia de hoje sem entender as de ontem.

Assim se pode resumir esta questão: qual era a natureza do sujeito central do sistema soviético que determinou o desenvolvimento do país, ou seja, da burocracia dirigente? Quais eram suas relações com outros grupos sociais? Que motivações e necessidades determinavam sua atividade?

Torna-se impossível estudar seriamente estes problemas sem estudar a obra de Leon Trotsky, um dos primeiros a tentar entender e analisar o caráter do sistema soviético e de sua camada dirigente. Trotsky dedicou vários trabalhos a este problema, embora sua visão mais geral, mais concentrada, sobre a burocracia está exposta em seu livro A Revolução traída, publicado há 60 anos.

A burocracia: principais características

Recordemos as principais características da burocracia tais como as define Trotsky em seu livro.

  • 1) O nível superior da pirâmide social na URSS está composto pela "única camada social privilegiada e dominante, no pleno sentido da palavra "; esta camada "que, sem realizar um trabalho produtivo direto, manda, administra, dirige, distribui penalidades e recompensas ". Segundo Trotsky, está composta por 5 a 6 milhões de pessoas [1].
  • 2) Esta camada que dirige tudo está fora de controle das massas que produzem os bens sociais. A burocracia reina; as massas trabalhadoras "obedecem e se calam" [2].
  • 3) Esta camada mantém relações de desigualdade material na sociedade: "carros conversíveis para os "ativistas", perfumes franceses para "nossas senhoras" e margarina para os operários, armazéns de luxo para os privilegiados e a imagem das comidas finas exposta na vitrine para a plebe" [3]. Em geral, as condições de vida da classe dirigente são parecidas com as da burguesia: "contém todos os níveis: da pequena burguesia mais provinciana a grande burguesia das cidades" [4] .
  • 4) Esta camada não é dirigente unicamente no plano objetivo: também se comporta subjetivamente como o dono absoluto da sociedade. Segundo Trotsky, tem "uma consciência específica de classe dirigente"[5].
  • 5) Sua dominação se mantém mediante a repressão e sua prosperidade está apoiada "na apropriação oculta do trabalho de outros". "A minoria privilegiada vive em detrimento da maioria enganada" [6].
  • 6) Existe uma luta social latente entre esta camada dirigente e a maioria oprimida dos trabalhadores [7].

Assim Trotsky vai descrevendo a sociedade russa: existe uma camada social bastante numerosa que controla de forma monopolística a produção e, por conseguinte, seu produto, que faz sua grande parte desse produto (quer dizer que exerce uma função de exploração), cuja unidade se apóia na compreensão de seus interesses materiais comuns e que se opõe à classe dos produtores.

Como denominam os marxistas uma camada social que tem semelhantes características? Não existe mais que uma resposta: é a classe social dirigente no pleno sentido da palavra.

Trotsky leva o leitor a essa conclusão. Entretanto ele não chega até aí, embora note que na URSS a burocracia "é algo mais que uma simples burocracia" [8]. Algo mais. Porém o que? Trotsky não o diz. E não só se cala, mas também dedica um capítulo inteiro em negar uma essência classista à burocracia. Depois de sabiamente dizer "A", depois de descrever uma burguesia dirigente exploradora, Trotsky recua e se nega a dizer "B".

O stalinismo e o capitalismo

Trotsky também volta atrás quando trata outra questão, a comparação entre o regime burocrático stalinista e o sistema capitalista. "Mutatis mutandis, o governo soviético se situa com respeito à economia em seu conjunto como o capitalista com respeito a uma empresa privada", diz-nos Trotsky no capítulo 2 da Revolução traída [9].

No capítulo IX escreve: "a passagem das empresas às mãos do Estado não mudou outra coisa a não ser a situação jurídica (sublinhado pelo AG) do operário; de fato vive na necessidade trabalhando certo número de horas por um salário determinado (...) Os operários perderam até a mínima influencia quanto à direção das empresas. Trabalhando a toque de caixa, vivendo em condições muito precárias , sem liberdade de deslocar-se, sofrendo até na oficina o mais terrível regime policialesco, dificilmente o operário pode se sentir um "trabalhador livre". O funcionário para ele é um chefe, o Estado é um amo" [10].

Neste mesmo capítulo Trotsky assinala que a nacionalização da propriedade não acaba com a diferença social entre as camadas dirigentes e as camadas submetidas: as primeiras desfrutam de todos os bens possíveis e as demais sofrem a miséria como antes e vendem sua força de trabalho. Diz o mesmo no capítulo IV: "a propriedade estatal dos meios de produção não transforma em ouro o esterco e não lhe dá uma auréola de santidade ao "sweating system", o sistema do suor" [11].

Tais teses parecem conferir claramente fenômenos essenciais do ponto de vista marxista. Marx sempre pôs em evidência que a característica principal de qualquer sistema social não era constituída por suas leis nem suas "formas de propriedade", cuja análise em si não conduz mais que a uma metafísica estéril [12]. O fator decisivo é constituído pelas relações sociais reais, e fundamentalmente o comportamento dos grupos sociais com respeito ao sobreproduto social.Pode um modo de produção apoiar-se em várias formas de propriedade, como demonstra o exemplo do feudalismo. Na Idade Média, estava apoiado na propriedade feudal privada das terras nos países ocidentais enquanto que nos países orientais se apoiava na propriedade feudal de Estado. Entretanto, em ambos os casos, feudais eram as relações de produção, apoiavam-se na exploração feudal sofrida pela classe dos camponeses produtores.

No livro III do Capital, Marx define como característica principal de qualquer sociedade "a forma econômica específica com a que se extrai diretamente o trabalho gratuito do produtor". O que desempenha um papel decisivo então são as relações entre os que controlam o processo e os resultados da produção e os que a realizam; a atitude dos proprietários das condições de produção com respeito aos mesmos produtores: "Aqui é onde descobrimos o mistério mais profundo, as bases ocultas de qualquer sociedade" [13].

Já recordamos o marco das relações entre a camada dirigente e os produtores tal como a descreve Trotsky. Por um lado "os proprietários dos meios de produção" reais encarnados no Estado (quer dizer a burocracia organizada) e pelo outro os proprietários "pela lei", na realidade os trabalhadores despossuídos de seus direitos, os assalariados a quem "lhes extrai o trabalho gratuito". Não se pode senão tirar uma só conclusão lógica: do ponto de vista de sua natureza, não há nem a sombra de uma diferença fundamental entre o sistema burocrático stalinista e o capitalismo "clássico".

Também aqui, Trotsky após haver dito "A" e mostrado a identidade fundamental entre ambos sistemas se nega a dizer "B". Ao contrário, nega-se categoricamente a identificar a sociedade stalinista como capitalismo de Estado e avança a idéia de que na URSS existiria uma forma específica de "Estado operário" no qual o proletariado continuaria sendo a classe dirigente do ponto de vista econômico e não sofreria exploração, embora esteja "politicamente expropriado".

Para defender essa tese, Trotsky invoca a nacionalização das terras, dos meios de produção, de transporte e de câmbio assim como o monopólio do comércio exterior, ou seja, utiliza os mesmos argumentos "jurídicos" que ele mesmo tinha refutado de forma muito convincente (vejam-se citações mais acima).

Na Revolução traída começa negando que a propriedade estatal possa "transformar o esterco em ouro" para afirmar mais adiante que o fato mesmo da nacionalização basta para que os trabalhadores oprimidos se convertam em classe dirigente.

O esquema que encobre a realidade

Como explicar semelhante coisa? Por que Trotsky, o propagandista, o impiedoso crítico do stalinismo, que constata os fatos demonstrando que a burocracia é uma classe dirigente e um explorador coletivo, por que esse Trotsky contradiz o Trotsky, o teórico que tenta analisar os fatos expostos?

Pode-se, evidentemente, aventar duas causas principais que impediram Trotsky superar essa contradição. São tanto de tipo teórico, como de tipo político.

Na Revolução Traída, Trotsky tenta refutar teoricamente a tese da essência de classe da burocracia propondo argumentos muito frágeis, entre eles o fato de que esta "não possui nem títulos nem ações" [14]. Por que teria a cúpula dominante que as possuir? É uma evidência que a posse de "ações ou obrigações" em si não tem a menor importância: o importante está em saber se tal ou qual grupo social se apropria ou não de um sobreproduto do trabalho dos produtores diretos. Se for assim, a função de explorar existe independentemente da distribuição de um produto que pode ser apropriado seja ele como ganho baseado em ações ou seja em pagamentos e privilégios do cargo. O autor de A Revolução Traída não é mais convincente quando nos diz que "os representantes da camada dirigente não deixam seu status privilegiado em forma de herança" [15]. É pouco provável que Trotsky tivesse pensado seriamente que os próprios filhos da elite pudessem tornar-se camponeses ou operários.

Do nosso ponto de vista, não se tem de procurar nestas explicações superficiais a causa fundamental pela qual Trotsky se negou a considerar a burocracia como a classe social dirigente. Tem-se que procurar na convicção que tinha de que a burocracia não podia converter-se em elemento central de um sistema estável, unicamente capaz de "traduzir" os interesses de outras classes, mas falsificando-os.

Durante os anos 20, esta convicção já era a base do esquema dos antagonismos sociais da sociedade "soviética" adotado por Trotsky, para quem o marco de todos esses antagonismos se reduzia a uma dicotomia estrita: proletariado-capital privado. Não fica nesse esquema nenhum lugar para uma "terceira força". A ascenção da burocracia foi considerada como o resultado da pressão da pequena burguesia rural e urbana sobre o partido e o Estado. A burocracia foi considerada como um grupo vacilante entre os interesses dos operários e os dos "novos proprietários", incapaz de servir corretamente nem a uns nem a outros. Depois do primeiro golpe sério contra sua estabilidade, o regime de dominação de tal grupo instável "entre as classes", não podia mais que se afundar-se e esse grupo se cindir. Isto é o que Trotsky predizia no fim dos anos 20 [16].

Entretanto, os acontecimentos se desenvolveram de outra forma na realidade. Depois de um conflito mais violento entre o grupo de camponeses e a pequena burguesia, a burocracia nem se afundou nem se cindiu. Depois de ter feito capitular facilmente às "direitas" minoritárias em seu seio, começou a liquidar a NEP, "os kulaks como classe", desenvolvendo uma coletivização e industrialização forçadas. Isto surpreendeu a Trotsky e aos seus partidários, pois estavam seguros de que os "apparátchiki" centristas não seriam capazes de fazê-lo por natureza! Nada estranho quando o fracasso das previsões políticas da oposição trotskista a arrastaram a um declive catastrófico [17].

Em sua vã tentativa de encontrar uma porta de saída, Trotsky mandou de seu exílio cartas e artigos nos quais demonstrava que se tratava de um desvio do aparelho que "indevidamente ia fracassar sem alcançar o menor resultado sério" [18]. Inclusive quando pôde comprovar a inconsistência prática de suas idéias sobre o papel "dependente" da burocracia "centrista", o líder da oposição continuou obstinadamente com o seu fracassado esquema. Suas reflexões teóricas da época da "grande virada decisiva" chamam a atenção pelo seu descolamento da realidade. Escreve por exemplo em fins de 1928: "O centrismo é a linha oficial do aparelho. O portador desse centrismo é o funcionário do Partido... Os funcionários não constituem uma classe. Que linha de classe representa o centrismo?". Trotsky negava, portanto, à burocracia inclusive a possibilidade de ter uma linha própria; chegou até às conclusões seguintes: "Os proprietários em ascensão têm sua expressão, embora frouxa, na fração direitista. A linha proletária está formada pela oposição. O que resta ao centrismo?. Se se subtraírem as quantidades mencionadas, fica... o camponês médio..." [19]. E Trotsky escreve isto enquanto o aparelho stalinista está levando a cabo uma campanha de violência contra precisamente esses camponeses médios e preparando a liquidação de sua formação econômica!.

E Trotsky continuou esperando a próxima desintegração da burocracia em elementos proletários, burgueses e "os que ficarão apartados". Predisse o fracasso do poder dos "centristas" inicialmente como resultado do fracasso da impossível "coletivização total", e depois como resultado de uma crise econômica no final do primeiro plano qüinqüenal. No seu Projeto de plataforma da oposição de esquerda internacional sobre a questão russa, redigido em 1931, chega inclusive a considerar a possibilidade de uma guerra civil quando se apartarem os elementos do aparelho estatal e do Partido "dos dois lados da barricada"[20].

Apesar destas previsões, não só se manteve o poder stalinista e unificou a burocracia, mas também, além disso, fortaleceu seu poder totalitário. Entretanto Trotsky permaneceu considerando o sistema burocrático da URSS como muito débil, e até pensou durante os anos 30 que esse poder da burocracia podia afundar-se a qualquer momento. Por isso não pensava que pudesse considerá-la como uma classe. Trotsky expressou esta idéia claramente em seu artigo "A URSS em guerra" (setembro de 1939): "Não nos equivocaremos se lhe dermos o nome de nova classe dirigente à oligarquia bonapartista uns poucos anos ou meses antes que desapareça vergonhosamente?"[21].

Vimos assim como todos os prognósticos feitos por Trotsky sobre o destino da burocracia "soviética" dirigente foram rebatidos um após o outro pelos fatos em si. Nunca quis, entretanto mudar de opinião. Considerava que a fidelidade a um esquema teórico valia mais de que qualquer outra coisa. Mas essa não é a única causa, pois Trotsky era mais político que teórico e geralmente preferia abordar os problemas mais de forma "política concreta" que de forma "sociológica abstrata". E aqui vamos verificar outra das causas importantes da sua obstinada negativa em denominar as coisas por seu nome.

Terminologia e política

Ao examinar a história da oposição trotskista durante os anos 20 e início dos 30, pode-se ver que a base da sua estratégia política estava em apostar na desintegração do aparelho governante na URSS. A condição necessária para uma reforma do Partido e do Estado era segundo Trotsky a aliança de uma hipotética "tendência de esquerdas" com a Oposição. "O bloco com os centristas [a fração stalinista do aparelho - A.G.] é, em princípio, plausível e possível, escreve em finais de 1928. "E será esse agrupamento no partido o que poderá salvar a revolução" [22]. Ao desejar esse bloco, os líderes da Oposição tentavam não repelir os burocratas "progressistas". Esta tática explica, em particular, a atitude mais que equivocada dos líderes da Oposição com respeito à luta de classes dos trabalhadores contra o Estado, sua negativa em criar seu próprio partido, etc.

Trotsky continuou alimentando suas esperanças em uma aliança com os "centristas" até depois de seu exílio. Sua aspiração de aliar-se com parte da burocracia dirigente era tão grande que esteve até disposto a transigir (em certas condições) com o secretário geral do comitê central do PC russo. Um exemplo muito claro disto é o episódio sobre a palavra de ordem "Demitir Stálin!". Em março de 1932, Trotsky publicou uma carta aberta ao Comitê executivo central da URSS em que fazia este chamamento: "Temos que realizar finalmente o último conselho insistente de Lênin: demitir Stalin" [23]. Entretanto, poucos meses depois, no outono desse mesmo ano, já tinha dado marcha a ré justificando assim: "Não se trata da pessoa de Stalin, mas da sua fração... A palavra de ordem "demitir Stalin!" pode e será entendida indevidamente como um chamamento a derrubada da fração atualmente no poder e, em seu sentido mais amplo, do aparelho. Não queremos derrubar o sistema, e sim transformá-lo..." [24]. Em seu artigo-entrevista inédito escrito em dezembro de 1932, Trotsky deixou as coisas claras sobre a atitude em relação aos stalinistas: "Hoje como ontem, estamos dispostos a uma cooperação multiforme com a atual fração dirigente. Pergunta: por conseguinte, estão vocês dispostos a cooperar com o Stálin?; resposta: sem a menor duvida!" [25].

Naquele tempo, já vimos mais acima, Trotsky condicionava a possibilidade de evolução de uma parte da burocracia stalinista para a "cooperação multiforme" com a Oposição a uma próxima "catástrofe" do regime, considerada como inevitável pela "precariedade" da posição social da burocracia [26]. Apoiando-se nessa "catástrofe", os líderes da Oposição não viam mais solução que a aliança com o Stálin para salvar da contrarrevolução burguesa o Partido, a propriedade nacionalizada e a economia planejada".

E a "catástrofe" não se produziu: a burocracia era mais forte e sólida do que Trotsky acreditava. O Burô político não respondeu aos chamados para uma "cooperação honrada das frações históricas" no PC [27]. Finalmente, durante o outono de 1933, depois de um sem número de vacilações, Trotsky rechaçou a esperança utópica de reformas do sistema burocrático com participação dos stalinistas e chamou a "revolução política" na União Soviética.

Entretanto esta mudança de tática dos trotskistas não significou em nada uma revisão radical de seu ponto de vista quanto ao caráter da burocracia, do Partido nem do Estado, nem tampouco como um rechaço definitivo das esperanças em uma aliança com suas tendências "progressistas". Ao escrever A Revolução Traída, considerava, em teoria, a burocracia como uma formação frágil submetida a antagonismos crescentes. No Programa de transição da IVª Internacional (1938), declara que todas as tendências políticas estão presentes no aparelho governamental da URSS, incluída a "bolchevique de verdade". A esta Trotsky vê como uma minoria na burocracia, entretanto bastante importante: não fala de uns quantos "apparátchiki", mas sim da fração" desta camada que conta 5 ou 6 milhões de pessoas. Segundo ele, esta fração "bolchevique de verdade" é uma reserva potencial para a Oposição de esquerda. E, além disso, o líder da IVª Internacional pensou ser plausível a formação de uma "frente única" com a parte stalinista do aparelho em caso de tentativas da contrarrevolução capitalista que ele pensava em 1938, que já estavam se preparando [28].

Quando se analisa as idéias de Trotsky sobre o caráter da oligarquia burocrática e em geral das relações sociais na URSS expressas na A Revolução Traída temos que ter em conta essas orientações políticas: a primeira (ao final dos anos 20 e início dos 30), a cooperação com os "centristas" ou seja com a maioria da burocracia "soviética" dirigente ; a segunda (a partir de 1933), a aliança com sua minoria "bolchevique de verdade" e da "frente única" com a fração dirigente stalinista.

E no caso de que Trotsky tivesse visto na burocracia "soviética" totalitária uma classe dirigente exploradora, inimiga encarniçada do proletariado, quais teriam sido as conseqüências políticas? Em primeiro lugar tivesse que rechaçar a menor idéia de união com parte desta classe - a própria tese da existência de semelhante fração "bolchevique de verdade" na classe burocrática exploradora teria parecido tão absurda como a de sua suposta existência na mesma burguesia, por exemplo. Em segundo lugar, em tal caso, uma suposta aliança com stalinistas para lutar contra a "contrarrevolução capitalista" teria sido então um pouco parecida com uma "frente popular", política denunciada firmemente pelos trotskistas, pois teria sido um bloco formado entre classes inimigas, em vez de ser uma "frente única" em uma mesma classe, idéia aceitável na tradição bolchevique-leninista. Em poucas palavras, constatar a essência de classe da burocracia teria sido fatal para a estratégia política de Trotsky. E naturalmente não quis.

Assim vemos como a questão de determinar o caráter classista da burocracia não é algo terminológico ou abstrato, e sim muito mais importante.

O destino da burocracia

Tem-se que fazer justiça a Trotsky: no final de sua vida começou a revisar sua visão da burocracia stalinista. Pode-se constatar no seu livro Stálin, sua obra mais amadurecida embora inacabada. Ao examinar os acontecimentos decisivos do final do ano 1920 e início de 1930, quando a burocracia monopolizou totalmente o poder e a propriedade, Trotsky já considera então o aparelho estatal e o Partido como forças sociais principais na luta por dispor do "excedente de produção do trabalho nacional". Esse aparelho estava movido pela aspiração de controlar de forma absoluta esse sobreproduto e não pela pressão do proletariado ou da Oposição (o que Trotsky tinha acreditado em outra época) que tivessem obrigado aos burocratas a entrar em guerra de morte contra os "elementos pequeno burgueses" [29]. Por conseguinte, os burocratas não "expressavam" interesses alheios e não "vacilavam" entre dois pólos, pelo contrário se manifestavam enquanto grupo social consciente dos seus próprios interesses. Eles ganharam a luta pelo poder e pelos lucros por ter derrotado os seus competidores. Eles dispuseram do monopólio do sobreproduto (ou seja a função de proprietário real dos meios de produção). Depois de tê-lo confessado, Trotsky já não pôde continuar ignorando o problema do caráter classista da burocracia. Quando fala dos anos 20, diz-nos: "A substância do Termidor (soviético) (...) era a cristalização de uma nova camada privilegiada, a criação de um novo substrato pela classe economicamente dirigente (sublinhado pelo A.G.). Havia dois pretendentes a essa função: a pequena burguesia e a própria burocracia"  [30]. Assim é como o substrato tinha nutrido dois pretendentes para desempenhar a função de classe dirigente, só faltava saber quem venceria: foi a burocracia. A conclusão aqui fica clara: a burocracia foi a que se converteu em classe social dirigente. Na realidade, depois de ter preparado essa conclusão, Trotsky prefere não levar até o final sua reflexão. Entretanto dá um grande passo para frente.

Em seu artigo "A URSS em guerra", publicado em 1939, Trotsky deu um passo a mais para esta conclusão: admite como possível que teoricamente "o regime stalinista (seja) a primeira etapa de uma nova sociedade de exploração". Certamente, continua afirmando que tem outra visão, que considera que tanto o sistema soviético como a burocracia governante não são a nada mais que uma "recaída episódica" no processo de transformação de uma sociedade burguesa em sociedade socialista. Afirmou, entretanto sua vontade de revisar suas opiniões em caso do governo burocrático na URSS sobrevivesse à guerra mundial,, guerra que já tinha começado e se estendia a outros países [31].

Já sabemos assim como tudo ocorreu. A burocracia (que, segundo Trotsky, não tinha nenhuma missão histórica, situava-se "entre as classes", era autônoma e precária, nada era mais que uma "recaída episódica" mudou finalmente de forma radical a estrutura social da URSS através da proletarização de milhões de camponeses e pequeno burgueses, realizou uma industrialização apoiada na superexploração dos trabalhadores, transformou o país em superpotência militar, sobreviveu à guerra mais terrível, exportou suas formas de dominação para a Europa Central e do Leste, e o sudoeste da Ásia. Trotsky teria revisado suas idéias sobre a burocracia após desses acontecimentos? É difícil afirmá-lo: faleceu durante a Segunda Guerra Mundial e não pôde ver a formação de um "campo socialista". Entretanto, durante as décadas posteriores à guerra, a maior parte de seus adeptos políticos continuaram repetindo literalmente os dogmas teóricos de A Revolução Traída.

A história foi rebatendo evidentemente os pontos principais da análise trotskista sobre o sistema social na URSS. Um fato basta para prová-lo: nenhuma das "realizações" da burocracia citadas acima está de acordo com o esquema teórico de Trotsky. Entretanto inclusive hoje, alguns pesquisadores (para não falar dos representantes do movimento trotskista) continuam pretendendo que as idéias do autor da Revolução traída e seus prognósticos sobre o destino de uma "casta" dirigente foram confirmadas pelo fracasso do regime do PCUS e pelos acontecimentos seguintes na URSS e nos países do "bloco soviético". Trata-se da predição de Trotsky segundo a qual o poder da burocracia estava destinado a cair inevitavelmente, seja através da pressão de uma "revolução política" da massa dos trabalhadores, seja posteriormente através de um golpe social burguês contrarrevolucionário [32]. Por exemplo, o autor da série de livros apologéticos sobre Trotsky e a oposição trotskista, V.Z. Rogovin [33], escreve: "a "variante contrarrevolucionária" das predições de Trotsky se realizou com cinqüenta anos de atraso, mas de forma muito precisa" [34].

Onde está tão extrema precisão?

O essencial da "variante contrarrevolucionária" dos prognósticos de Trotsky se apoiava em suas predições sobre o naufrágio da burocracia como camada dirigente. "A burocracia está vinculada inseparavelmente à classe dirigente no sentido econômico [trata-se neste caso do proletariado -A.G.], alimenta-se de suas raízes sociais, mantém-se e cai com ela" (sublinhado por A.G.)[35]. Supondo-se que nos países da Ex-união Soviética tenha ocorrido uma contrarrevolução social que tenha feito a classe operária perder seu poder econômico e social, segundo Trotsky, a burocracia deveria ter se afundado com ela.

Caiu de verdade? Deixou lugar a uma burguesia vinda não se sabe de onde? Segundo o Instituto de Sociologia da Academia de Ciências da Rússia, mais de 75% da "elite política" russa e mais de 61% de sua "elite dos negócios" têm suas origens na Nomenclatura do período "soviético" [36]. Por consequência, continuam sendo as mesmas mãos as que estão agarradas às mesmas posições dirigentes da sociedade, no social, no econômico e no político. A origem da outra parte da elite tem uma explicação simples. A socióloga O. Krishtanovskaia diz: "além da privatização direta... cujo principal ator foi a parte tecnocrática da Nomenclatura (economistas, banqueiros profissionais...) criaram-se quase espontaneamente estruturas comerciais que pareciam não ter nenhum tipo de relações com a Nomenclatura. À sua frente estavam homens jovens cuja biografia não mostrava nenhum laço com a Nomenclatura. Entretanto, seu êxito comercial nos mostra que ao não fazer parte da Nomenclatura eram entretanto seus homens de confiança, seus "agentes de trustes", ou seja plenipotenciários" (sublinhado pelo autor -A.G.) [37]. Isto demonstra claramente que não é um "partido burguês" qualquer (de onde ia sair se considerarmos a suposta ausência de burguesia sob o regime totalitário?) que tomou o poder e conseguiu utilizar como lacaios a uns quantos elementos originários da antiga "casta" governante, mas sim é a mesma burocracia a que organizou a transformação econômica e política de sua dominação, mantendo-se como proprietária do sistema.

Contrariamente às previsões de Trotsky, a burocracia não se afundou. Pudemos constatar entretanto a realização do outro aspecto de seus prognósticos, que se refere à cisão iminente da "camada" social dirigente entre elementos proletários e burgueses e a formação em seu seio de uma fração "bolchevique de verdade"? Está claro que os líderes dos partidos "comunistas" formados pelos escombros do PCUS pretendem todos atualmente desempenhar o papel de verdadeiros bolcheviques, defensores autênticos da classe operária. Entretanto nem o próprio Trotsky reconheceria como "elementos proletários" Zuganov e Ampilov [38], pois a meta de sua luta "anticapitalista" não é mais que a restauração do antigo regime burocrático sob sua fórmula stalinista clássica ou "estatal patriótica".

Enfim Trotsky predisse a variante "contrarrevolucionária" da queda da burocracia do poder em termos quase apocalípticos: "O capitalismo não poderia (o que é duvidoso) reinstaurado na Rússia mais que através um golpe contra-contrarrevolucionária cruel que faria dez vezes mais vítimas que a revolução de Outubro e a guerra civil. Se caírem os Sovietes, o poder será tomado pelo fascismo russo, em cuja comparação os regimes do Musolini e Hitler pareceriam instituições filantrópicas" [39]. Não temos que considerar semelhante predição como um exagero acidental, pois é resultado inevitável de todas as visões teóricas de Trotsky sobre a natureza da URSS, e em particular da sua convicção profunda de que o sistema burocrático soviético servia, a sua maneira, os interesses das massas trabalhadoras, garantindo suas "conquistas sociais". Admitia, pois naturalmente que a transição contrarrevolucionária do stalinismo ao capitalismo se acompanharia da sublevação das massas proletárias para defender o Estado "operário" e "sua" propriedade nacionalizada. E só um regime feroz de corte fascista seria capaz de vencer e derrotar a forte resistência dos operários contra a "restauração do capitalismo".

Está claro que Trotsky não podia supor que em 1989-91 a classe operária não defenderia de maneira alguma a nacionalização da propriedade nem tampouco do aparelho estatal "comunista", nem que, ao contrário, contribuiria ativamente para sua abolição. Porque os trabalhadores não viam nada no antigo sistema que justificasse sua defesa; a transição à economia de mercado e a desnacionalização da propriedade não produziram nenhum tipo de lutas sangrentas entre classes, e nenhum regime de tipo fascista foi necessário. Assim, nesse plano, não se pode falar de realização das predições de Trotsky.

Se a burocracia "soviética" não fosse uma classe dirigente e, seguindo Trotsky, não fosse nada mais que o "guarda" do processo de distribuição, a restauração do capitalismo na URSS exigiria uma acumulação primitiva do capital. Com efeito, os propagandistas russos contemporâneos utilizam muito esta expressão: "acumulação primitiva do capital". Entretanto não a entendem em geral mais que como enriquecimento de tal ou qual pessoa, acumulação de dinheiro, de bens de produção ou outros bens em mãos de "novos russos". Mas isto não tem nada a ver com a compreensão científica da acumulação primitiva do capital descoberta por Marx no Capital. Ao analisar a gênese do Capital, Marx sublinhava que "sua acumulação chamada "primitiva" não é outra coisa que um processo histórico de separação do produtor dos meios de produção" [40] . A formação do exército de assalariados mediante o confisco da propriedade dos produtores é uma das condições principais para a formação de uma classe dirigente. Foi necessário formar uma classe de assalariados mediante a expropriação dos produtores durante os anos 90, nos países da ex-URSS?

Evidentemente que não. Essa classe de assalariados já existia, os produtores não controlavam os meios de produção nem muito menos havia alguém a ser expropriado. Por conseguinte, o tempo de acumulação de capital já tinha passado.

Quando Trotsky vincula a acumulação primitiva à ditadura cruel e à efusão de sangue, sem dúvida tinha razão. Marx também escreveu que "o capital [vem ao mundo] jorrando sangue e lama por todos seus poros" e em sua primeira etapa necessita "uma disciplina sanguinária" [41]. O erro de Trotsky encontra-se unicamente no fato de vincular a acumulação primitiva à uma próxima e hipotética contrarrevolução, mas de que não quis ver como essa contrarrevolução (com todos seus atributos necessários de tirania política e matanças em massa) estava ocorrendo diante dos seus olhos. Os milhões de camponeses exauridos, morrendo de fome e de miséria, os trabalhadores privados de todos os direitos e condenados a trabalhar até o esgotamento e cujas tumbas foram os alicerces que serviram para construir os edifícios previstos pelos qüinqüênios stalinistas, os incontáveis prisioneiros do gulag: essas sim que são as verdadeiras vítimas da acumulação primitiva na URSS. Os possuidores atuais da propriedade não precisam acumular o capital, basta-lhes redistribuir entre eles mesmos transformando o capital de Estado em capital privado corporativo [42]. Mas esta operação não necessita de uma mudança de sociedade nem das classes dirigentes, não necessita grandes cataclismos sociais. Se não se entender isto, não se pode entender nem a história "soviética" nem a atualidade russa.

Conclusão. A concepção trotskista da burocracia, que sintetizou a série de enfoques teóricos fundamentais e das perspectivas políticas de Trotsky, não foi capaz de explicar nem o que era o stalinismo nem sua evolução. Pode dizer-se outro tanto, de outros postulados da análise trotskista sobre o sistema social da URSS (o Estado "operário", o caráter "pós-capitalista" das relações sociais, a "dupla" função do stalinismo...). Entretanto, Trotsky conseguiu ao menos resolver o problema em outro sentido: fez uma fundamentada e fulminante crítica das teses sobre a construção do "socialismo" na União "Soviética". O que não era pouco naquela época.

A.G. (Moscou 1997)


[1] León D. Trotski, A Revolução Traída. Tradução nossa

[2] Idem

[3] Idem

[4] Idem

[5] Idem

[6] Idem

[7] Idem

[8] Idem

[9] Idem

[10] Idem

[11] Idem

[12] Marx, Miséria da filosofia, cap. 2. Tradução nossa

[13] Marx, o Capital, Livro III. Tradução nossa

[14] Leon D. Trotsky, A Revolução Traída. Tradução nossa

[15] Idem

[16] Artigo "Rumo a nova etapa", Centro russo de coleções de documentos da nova história (CRCDNH), fundo 325, lista 1, dossiê 369, p.1-11. Tradução nossa

[17] Por volta de 1930, a Oposição perdeu dois terços de seu efetivo, incluída quase toda sua "direção histórica" (10 pessoas das 13 que assinaram a "Plataforma dos bolcheviques-leninistas" em 1927).

[18] CRCDNH, F. 325, L. 1, o. 175, P. 4, 32-34. Tradução nossa

[19] Idem, d. 371, P. 8.

[20] Boletim da Oposição (BO), 1931, nº 20, P. 10. Tradução nossa

[21] Idem, 1939, nº 79-80, P. 6.

[22] Idem, 1939, nº 79-80, P. 6.

[23] BO, 1932, nº 27, p.6. Tradução nossa

[24] BO, 1933, nº 33, P. 9-10.

[25] Cf. P. Broué, "Trotsky e o bloco das oposições de 1932 ", no Cahiers Léon Trotsky, 1980, nº 5, P. 22. Paris. Tradução nossa

[26] Trotski, Cartas e correspondência, Moscou, 1994. Tradução nossa

[27] Idem

[28] BO, 1938, nº 66-67, P. 15.

[29] Trotski, Staline, editions Grasset, Paris, 1948, P. 546 e 562. Tradução nossa

[30] Idem, p.562.

[31] Trotski, a URSS na guerra. Tradução nossa

[32] Trotski, A Revolução Traída.

[33] Vadim Rogovin era, na época "soviética", um dos principais propagandistas oficiais e comentaristas da política social do PCUS, professor do Instituto Russo de Sociologia. Durante a Perestroika se converteu em antistalinista e admirador incondicional de Trotsky. É autor de uma série de livros em que faz a apologia de Trotsky e de suas idéias.

[34] V.Z. Rogovin, A Neo-NEP stalinista, Moscou, 1994, P. 344.

[35] BO, 1933, nº 36-37, P. 7.

[36] Krishtanovskaia O. "A oligarquia financeira na Rússia", na Izvestia de 10/01/1996. Tradução nossa

[37] Idem

[38] Zuganov é o chefe da Partido comunista "renovado" e rival principal de Yeltsin na última eleição presidencial. Viktor Ampilov é o dirigente principal do movimento stalinista "duro" na Rússia, fundador do "Partido comunista operário russo". Advoga pela restauração do totalitarismo "clássico" dos anos 30.

[39] BO, 1935, nº 41, P. 3.

[40] BO, 1935, nº 41, P. 3.

[41] Idem

[42] Fazendo uma conclusão analógica depois de alguns estudos sociológicos concretos, O. Krishtanovskaia escreve: "Se analisar atentamente a situação na Rússia durante os anos 90 (...) comprova-se que unicamente os físicos torpes que decidiram fazer-se "brockers", ou os engenheiros em tecnologia convertidos em proprietários de quiosques ou de cooperativas comerciais, fizeram uma "acumulação primitiva". Sua passagem por essa acumulação acabou quase sempre em compra de ações do MMM [uma pirâmide financeira], cujos resultados são bem conhecidos e alcançaram escassas vezes a etapa de "acumulação secundária" " (Izvestia, 10/01/96). Tradução nossa

Os erros fatais de Trotsky

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Uma análise errada do ciclo

Contrariamente à atividade dos "trotskistas" depois de 1945, aquela da corrente trotskista de 1938, tal como derivava do programa de transição, estava ao menos relacionada com uma tentativa de apreciação da natureza do período (a agonia mortal do capitalismo, a ausência de desenvolvimento das forças produtivas, a próxima emergência do proletariado revolucionário). Ainda que esta análise tivesse sido correta, não teria justificado os desvios oportunistas e ativistas de Trotski. Porém, é ainda a preocupação que eles terão perdido: fundar sua atividade sobre uma compreensão da situação objetiva.

Todos os segmentos da obra teórica e política de Trotski estão ligados nesta época, por um só e mesmo fim: a convicção de uma ascensão revolucionária do proletariado. Trotski sempre percebeu o retrocesso mundial da revolução como um fenômeno temporário, resultado de uma interrupção momentânea do ciclo de lutas iniciado em 1917. Nesta perspectiva, as derrotas, longe de abrir todo um ciclo contrarrevolucionário, longe de arrebatar todas as aquisições organizacionais do ciclo anterior, não representavam ante seus olhos mais que uma pausa instável, prelúdio de novas explosões.

Nestas condições, não há de surpreender-se que tenha sido totalmente incapaz de perceber as implicações da profundidade do retrocesso do proletariado, em particular através o desenvolvimento do oportunismo no seio do que tinha sido a vanguarda, advogando ele mesmo as regressões políticas importantes que se manifestaram a partir do segundo congresso da Internacional comunista. Isso testemunha sua defesa das organizações pretensamente "operárias", que continuam sendo "conquistas" a defender apesar de seus chefes. Este é o fundamento de sua percepção da burocracia russa como uma "bola no topo de uma pirâmide", dos sindicatos, das "aquisições" de Outubro. Partindo destas premissas, Trotski cometeu mais um erro de grande importância, considerando o fascismo como uma reação a um perigo de revolução proletária, enquanto este tinha conseguido se desenvolver exclusivamente porque a curva da luta de classe já estava em queda. Isso levou Trotski a pensar nada menos que na Alemanha em 1933, a pressão da classe poderia "obrigar" o PC e a SD a organizar o contra-ataque!. É igualmente esta convicção que justificava aos olhos de Trotski, a criação de uma "Internacional" artificial, arcabouço apressado destinado a atrair a vanguarda, a qual ele estava persuadido que se mantinha como aquisição de lutas anteriores ao seio das organizações stalinistas e social-democratas.

Apenas semelhante visão pode explicar que em plena debandada do proletariado (1936) Trotski tenha logrado escrever sem duvidar: "Na França, os reformistas têm conseguido... canalizar e frear ao menos momentaneamente a torrente revolucionária. Nos Estados Unidos fazem tudo que podem para conter e paralisar a ofensiva revolucionária das massas" e enfim na Alemanha "os sovietes cobrirão o país antes que Weimar reúna uma nova assembléia constituinte..."

Trotski não tinha compreendido que desde o esmagamento da revolução alemã (1923), última esperança de uma recuperação do movimento, se havia imposto a contra-revolução, ou seja, o capital decadente, o que impõe sua lógica a todas as conquistas, a todas as organizações permanentes e que desviava para seus próprios fins as lutas. Crise, fascismo, New Deal, Frente Popular, guerras locais e logo guerra generalizada, divisão do mundo, guerra fria, reconstrução, não seriam mais que momentos da contra-revolução arrogante, segura dela mesma, que sobre o cadáver da revolução, adentra as aquisições anteriores do movimento e as esvazia de seu conteúdo proletário. No curso deste ciclo sangrento, bárbaro, inumano, todas as iniciativas de classe são desviadas até o terreno da defesa de uma fração do capital contra outra.

É verdade que em 1938 o capitalismo encontrava-se em um marasmo espantoso e que até 1947-49 jamais a miséria das massas havia sido tão aguda. Porém, o que importava compreender era o seguinte: quando o proletariado como classe autônoma, tinha sido eliminado da cena, era o capitalismo que tentava superar a crise por seus próprios meios. Nada será dispensado à classe operária: é com seu sangue e suas ilusões que será estabelecido o novo mapa do mundo, de Catalunha a Stalingrado e de Dresde a Varsóvia. E é com o suor dos trabalhadores que será "reconstruída" a economia capitalista mundial.

Nestas condições, o papel dos revolucionários não era correr atrás das massas desmoralizadas, deixando seus princípios de lado, e tomando parte em cada um dos episódios da luta interna do capital, nem ruminar a poção milagrosa "transitória" destinada a criar a "ponte" entre sua passividade e a revolução, mas entregar-se a um trabalho de estudo crítico das experiências passadas e de preparação teórica, defendendo os princípios de classe e resistindo a todas as tentações ativistas e impacientes.

Esse trabalho o tem cumprido algumas minúsculas frações saídas das "Esquerdas" italiana e alemã, bem ou mal, porém o têm cumprido. Que tenham sofrido elas mesmas a pressão do período, que tenham pegado no curso desta interminável travessia enfermidades sectárias e dogmáticas ou pelo contrário empiristas, não muda nada o fato que é graças a sua lucidez como nós podemos atualmente caracterizar o trotskismo.

A natureza da URSS

Desde a Segunda Guerra mundial a questão da natureza da URSS não é uma discussão aberta entre revolucionários, mas uma fronteira de classe para os internacionalistas. A caracterização do capitalismo russo como um Estado "operário" conduz à defesa de um imperialismo em um conflito armado. Ela reconhece de fato um papel progressista ao stalinismo e à acumulação nacional: em uma palavra, ao capital envolto com frases "socialistas". Conduz por outra parte à defesa das nacionalizações, ou seja, à tendência do capitalismo decadente ao capitalismo de Estado.

Esta semeadura da confusão entre os trabalhadores porque proclama, queira ou não, que não é possível para a classe operária sair do falso dilema em que tem sido encerrada por décadas e do qual apenas começa a sair: eleger entre o capital russo ou o capital ocidental.

Isto não é tudo, a teoria do "Estado operário degenerado" obscurece igualmente a compreensão do que é o capitalismo. Implícita ou explicitamente, a análise de Trotski que reduz o capitalismo a certo número de características, formais, jurídicas, parciais, fixas (a propriedade individual dos meios de produção, sua venda, o direito de herança, etc.). Proíbe-se a si mesma penetrar no coração das contradições do sistema. Não reconhece essas contradições na URSS porque na realidade não as reconhece tampouco nos países capitalistas tradicionais.

Caracterizar a URSS como um Estado operário, é de entrada e antes de tudo afirmar que na época da dominação do capital em escala mundial, seria possível para um Estado nacional escapar ao menos parcialmente às leis do modo de produção capitalista. Tal concepção monstruosa não pode descansar mais que sobre uma visão completamente falsa do capitalismo como que sistema histórico e mundial.

Consideremos um instante um caso puramente imaginário e absurdo. Imaginemos que a Rússia protegida por uma muralha impenetrável, viva na mais completa autarquia frente o mercado mundial. Suponhamos também que nenhuma das "categorias" aparentes do capitalismo possa ser descoberta; que o sistema considerado em si mesmo apresenta o aspecto de uma gigantesca sociedade de escravidão generalizada, sem intercâmbio exterior nem interior, sem dinheiro, sem capital. Suponhamos ainda que os escravos sejam remunerados em espécie e que o Estado "organiza" toda a economia até o último parafuso ou grão de trigo.

E então, ainda neste caso extremo e puramente hipotético, teríamos o direito de afirmar que sem assalariado, sem intercâmbio, sem capital, as LEIS da sociedade russa estariam inteiramente determinadas pelas do mercado mundial e que sem "valor" reconhecível, a LEI do valor constituiria a LEI que se oculta atrás de cada uma das manifestações desta economia.

A autarquia não é mais que uma forma de concorrência. Mesmo se a acumulação estatal não tivesse a forma capital/dinheiro, o excedente a forma mais-valia e os produtos do trabalho, a forma comercial, é a concorrência com o capital mundial que determinaria diretamente a taxa, o ritmo e a forma desta acumulação; é ela e somente ela, a que permitiria compreender as relações sociais de produção e sua dinâmica e não a "maldade", o "autoritarismo", o "parasitismo" ou o "burocratismo" dos "gerentes".

A simples necessidade de manter esta autarquia exigiria a exploração feroz, intensiva, taylorista, sem cessar, acrescentada dos trabalhadores. Mais a concorrência internacional capitalista se agrava, mais a produtividade do trabalho aumenta, mais novos procedimentos técnicos, novas armas apareceram, e mais a autarquia dependeria da capacidade dos "burocratas" de acrescentar a produtividade de sua parte, de inventar novos procedimentos, novas armas. Não é mais que seguindo passo a passo às necessidades impostas pela concorrência mundial que os faraós deste Estado imaginário poderiam edificar as muralhas que lhes deram a ilusão de "escapar" de suas leis. É por isto que estaríamos perfeitamente no direito de qualificar estes faraós como funcionários do capital, capitalistas, porque não seriam mais que os representantes no seio desta fortaleza da necessidade inelutável de acumular, necessidade que é totalmente imposta pelo CAPITAL, enquanto modo de produção mundial. Ainda vestindo o aspecto de uma negação aparente das "categorias" do capitalismo, tal Estado não seria mais que a personificação extrema do sistema, porque longe de exercer-se mediante tudo um jogo de oferta e demanda e de ser obstaculizadas por restos pré-capitalistas, as leis do capitalismo mundial se exerceriam diretamente por intermédio dos funcionários deste Estado, verdadeiros sátrapas do capital internacional.

Ainda nesse caso extremo seria completamente legítimo chamar os burocratas russos capitalistas tal como era legítimo para Marx chamar assim aos escravistas do sul dos Estados Unidos porque, dizia ele, não são escravistas mais do que num sistema capitalista (e relacionados a este). Em um mundo capitalista, ainda no país imaginário dos faraós modernos, o despotismo no seio da fábrica estaria subordinado à anarquia do mercado, e a "planificação" às leis cegas da concorrência.

Desgraçadamente para os sustentáculos da absurda teoria do "Estado operário degenerado", a realidade contradiz ainda mais implacavelmente os fundamentos de sua análise. Efetivamente, não somente a Rússia não vive na autarquia, mas, além disso, todas as manifestações essenciais do capitalismo se acham abertamente estabelecidas na Rússia mesma, não somente no sentido tomado mais acima, mas igualmente sob uma forma "interna" facilmente reconhecível. Os trabalhadores russos são remunerados sob a forma de salário-dinheiro. Este fato por si só implica a existência do intercâmbio, da produção mercantil, da lei do valor, da dominação do trabalho morto sobre o trabalho vivo, do lucro capitalista e da baixa de sua taxa. Ainda para os míopes trotskistas que analisariam a Rússia isoladamente!

Porém os herdeiros da "revolução traída" se mostram incapazes de compreender a identidade das tarefas sociais dos proletários russos ou americanos, chineses ou franceses, polacos ou alemães. Os dos países chamados "socialistas" não devem deixar-se enganar pelas consignas "reformistas" ("democracia", "redução dos privilégios", "autogestão"...) e os dos países capitalistas tradicionais pelos discursos sonoros contra os "trustes" e as -especulações- ou os "parasitas". As tarefas dos operários dos dois blocos se confundem: destruir o Estado burguês primeiramente em escala mundial e em seguida destruir a forma valor dos produtos do trabalho (ou seja, o fato que sejam trocados por intermédio de um equivalente geral, segundo o tempo de trabalho social necessário para sua fabricação) abolindo em escala global a separação dos trabalhadores dos meios de produção e toda concorrência, nacional ou internacional. Destruindo a relação salarial de trabalho (intercâmbio da mercadoria força de trabalho por um salário) e a produção mercantil (intercâmbio de mercadorias). Isto é levar à morte o capital, que não é nem o "poder dos monopólios", nem de "duzentas famílias" senão uma relação social. Todo o resto: "nacionalizações", "controle operário sobre os lucros" não são mais que propostas para administrar melhor o capitalismo.

Nos países do Leste, o trotskismo se apresenta como uma corrente reformista que luta pela revolução "política" que deixaria intactas as relações de produção capitalistas acrescentando simplesmente mais palavras: "controle operário" e "democracia operária". Como não chega a compreender que o capitalismo de Estado não é mais que a realização das tendências intimas do capitalismo tradicional na época de seu declive, se revela incapaz de superar mediante o pensamento e a prática o marco destas tendências e não faz mais que avançar um programa máximo que se mantém aquém da destruição das relações capitalistas.

Na hora em que o capital submete a toda a humanidade a suas próprias necessidades, não é possível ser revolucionário em Paris e reformista em Gdansk, ou internacionalista em Turim e chauvinista em Moscou.

A guerra da Espanha

A tomada de posição de Trotski a respeito da guerra da Espanha devia revelar a profundidade de sua regressão em relação aos princípios comunistas e internacionalistas. Por crítico que foi, seu apoio à Frente Popular, ao Estado burguês democrático e à guerra imperialista que travavam, constituía o signo precursor do afundamento da 4ª Internacional no chauvinismo no curso da segunda guerra mundial.

A posição de Trotski durante a chamada guerra "civil" é uma obra mestra de centrismo. Começa partindo em maltratar com violência a "democracia burguesa" e declarando que só a ação independente do proletariado pode assegurar sua própria vitória. Critica ferozmente não somente o papel contra-revolucionário dos stalinistas, mas também o dos anarquistas, do POUM, qualificado a justo título de "ala esquerda da frente popular". No entanto, o grande ex-revolucionário russo declara aceitar o comando oficial, enquanto "não sejamos bastante fortes para derrubá-lo" e põe em guarda o proletariado contra toda tentativa de destroçar atualmente o governo de Négrin... o que "não serviria mais que ao fascismo". (Tomo II de seus Escritos). De um extremo belicismo na verdade, preconiza "delimitar-se claramente das traições e dos traidores, sem deixar de ser os melhores combatentes da frente". (Idem)

A posição de Trotski se fundava sobre uma análise completamente falsa das relações de classe na Espanha. Considerava que no seio da classe "republicana" se desenvolvia "uma revolução híbrida, confusa, meio cega e meio surda", que se tratava de transformar em revolução socialista. Descrevia a luta entre as duas frentes como luta entre duas classes sociais, subjugadas, uma pela democracia burguesa, outra pelo "fascismo". Em suma para Trotski, o exército proletário com chefes burgueses: "se à frente dos operários e camponeses armados, ou seja da Espanha republicana, tivesse existido revolucionários e não agentes covardes da burguesia..." (Idem). Se houvesse revolucionários à frente do Estado burguês...! Não é Louis Blanc quem fala, é o homem que um dia esteve à frente do soviete de Petrogrado!

Na época, a fração da "Esquerda Italiana" reagrupada ao redor da revista "Bilan" teve um diagnóstico radicalmente diferente ao que estava na base desta visão fantasmagórica de uma revolução "meio consciente" (?) que avançava em batalhões compactos para o massacre sob as ordens dos "agentes covardes da burguesia". De fato, como o mostraram os camaradas de Bilan, se o levantamento de julho de 36 contra os facciosos havia constituído uma primeira emergência do proletariado sobre suas próprias bases de classe (greve, armamento autônomo dos operários, milícias...), no entanto, "a fração democrática dos representantes do capital havia conseguido encerrar o proletariado em um terreno antifascista de guerra civil, alistar os operários em um exército permanente burguês e substituir completamente as frentes de classe por frentes territoriais".

O ataque frontal não havia tido êxito, porém a burguesia democrática ia conseguir fixar a classe operária sobre uma base em que não poderia mais se afirmar como força autônoma.

Desde então a guerra "republicanos - nacionalistas" não era mais que um conflito inter-capitalista, onde os operários totalmente submetidos ao Estado burguês se faziam massacrar por interesses que não eram os seus. Além disso, como todo conflito entre dois Estados burgueses, a carnificina espanhola se voltou imediatamente numa expressão da guerra imperialista mundial onde os diferentes países tomaram mais ou menos clara posição, evidentemente sob o manto de "fascismo" ou "antifascismo", e onde os operários e os camponeses pobres regaram seu sangue ao som dos canhões franceses, alemães, russos, etc.

Em tais condições, a única oportunidade, por ínfima que fosse de ver abrir-se um processo revolucionário, era opor às frentes imperialistas as frentes da luta de classe sem nenhum medo de debilitar a frente republicana e chamando os operários a serem os "melhores combatentes" da frente de classe que eles mesmos deviam instituir no seio das duas frentes imperialistas e não do "heróico" vencedor exército burguês. Os eternos "realistas" gritaram que ele havia favorecido a Franco, porém a única oportunidade de combater Franco era levar a luta de classe às regiões que ocupava e para ele fazia falta para começar que esta emergira sem nenhum compromisso, ali onde se encontravam as frações mais avançadas do proletariado, nas chamadas zonas "livres". Ainda que se declarasse em geral de acordo com esta verdade elementar de que os operários deviam cumprir a revolução social contra Caballero e Franco, Trotski foi conduzido por sua visão superficial das coisas a tomar partido de maneira "crítica" por um exército imperialista.

Até o final da guerra em 1938-39 Trotski radicaliza sua linguagem ao ponto de retomar as teses da "Esquerda Italiana", porém sem romper jamais com sua catastrófica concepção segundo o qual no interior de uma guerra conduzida por um Estado capitalista pode desenvolver-se um processo revolucionário que não transtorne completamente a disposição das frentes e que sob a direção de um exército burguês permanente podia caminhar uma "revolução inconsciente".

Desta capitulação até aquela do conjunto do movimento trotskista durante a Guerra de 1940-45, não havia mais que meio passo.

O programa de transição

O programa de transição é a continuação direta da estratégia da Internacional Comunista a partir de seus 2º e 3º Congressos. A discussão sobre a tática "transitória" é de uma importância fundamental. Esta traz à luz a divergência infranqueável que separa os revolucionários dos trotskistas. Não podemos aqui esgotar a riqueza da questão que é a da relação dialética entre lutas econômicas e políticas, o movimento e o fim, a classe e o programa, etc... Porém podemos tentar demarcar o nó do problema e mostrar ao mesmo tempo que Trotski não o aborda tampouco e se contenta com acomodar os velhotes social-democratas em um molho"radicalizado".

Um programa mínimo na época que não pode havê-lo

Trotski pretende "superar" a tradicional separação entre programa mínimo e máximo, estabelecendo um programa de reivindicações transitórias suscetíveis de ligarem as demandas imediatas com a revolução. Este objetivo de ir mais além da ruptura herdada do século XIX é louvável. Mas precisamente, Trotski cai exatamente no defeito que denuncia. Ao estabelecer um programa que não é o programa comunista, Trotski reconhece a necessidade de que se houvesse dois programas comunistas! Porém o segundo se quer tem uma razão de ser, deve estar composto de reivindicações que não superem o marco burguês (senão, faria parte do programa comunista), portanto de reivindicações "mínimas". Ao reconhecer que pudesse existir na hora do declive do capitalismo, outro programa diferente ao da revolução comunista, Trotski divide novamente o processo proletário e seu curso em duas etapas: atualmente as reivindicações imediatas, amanhã o programa revolucionário. Que pretenda que as primeiras conduzam ao segundo não muda nada: Os social-democratas o afirmavam também!

Há que ser coerente: Ou bem existe um só programa e este é o programa máximo, ou bem existem dois e então se recai na velha dicotomia programa máximo / programa mínimo.

Por tanto, longe de estabelecer a relação entre o movimento elementar e o objetivo final, o programa de transição os dissocia. A melhor prova do fato que o programa de transição não é mais que um programa mínimo coberto com uma capa de fraseologia "radical", é que abunda em demandas reformistas e que o programa comunista se acha totalmente ausente (mesmo se Trotski reconhecia aqui é ali a necessidade da revolução).

É assim que se encontra o "controle operário" (sobre o capital), o governo "operário e camponês", a reivindicação das "grandes obras públicas", a expropriação de certos (?) ramos da indústria entre as mais importantes para a existência nacional (!) ou de certos grupos da burguesia entre os mais parasitas (!!!)", "um sistema único de crédito, segundo um plano racional que corresponde aos interesses de toda a nação (?!)", "um banco estatal único" e outras sandices menos dignas ainda do programa comum da esquerda. Em nenhuma parte se encontra a destruição do Estado burguês, a ditadura do proletariado, a destruição da concorrência, das nações, do intercâmbio e da forma valor dos produtos do trabalho, do assalariado. Trotski deseja modernizar, estatizar o capital e generalizar o assalariado, Marx, em troca, desejava destruir o capital e abolir o assalariado."

"Porém" nos responderão os trotskistas, "nós estamos de acordo, somente que é o programa final e, entretanto, queremos outro programa para mobilizar as massas", bem, porém então deixem de andar hipocritamente pelos ramos e reconheçam que têm necessidade de dois programas, um "mínimo" e outro "máximo", um para a luta e outro para os discursos, um para os dias de semana e outro para o domingo! E por favor, deixem de zombar dos social-democratas, que pelo menos eles o reconhecem abertamente.

Um esquema utópico e burocrático

Os comunistas não têm um programa para a sociedade capitalista. Porém é óbvio que lhe concedem uma importância decisiva às lutas elementares que surgem espontaneamente de seu solo. Não compartilham o desdém acadêmico dos intelectuais burgueses por essas questões "quantitativas". Sabem que a crise social produz lutas de resistência às condições sociais de existência tais como se manifestam cotidianamente para os trabalhadores, levando à tomada de consciência da necessidade de transformar a sociedade. Porém é justamente porque conhecem as formidáveis possibilidades de ampliação, de desenvolvimento dos combates econômicos sobre o terreno revolucionário, que não os encerram por adiantado em reivindicações rígidas. Todo catálogo de reivindicações fixado ao inicio de um movimento de classe obstaculiza o aprofundamento desse movimento o fixando sobre aspectos parciais antes que tenha tempo de expandir-se, de alcançar sua amplitude.

Os revolucionários se guardam como da peste de aprisionar como Trotski a riqueza, a força e as potencialidades da luta em um programa de reivindicações rígidas e em um esquema doutrinário.

Não somente o programa de transição é reformista pelo conteúdo de suas demandas, mas, além disso, porque toda sua lógica consiste em encerrar o movimento no saco estreito de suas consignas, mesmo antes que comece a desdobrar suas gigantescas possibilidades de crescimento.

Trotski não se contenta em desejar fixar o processo da luta de classe sobre aspectos parciais. Tem, além disso, a pretensão de "programar" a sucessão de formas de luta, desde a greve até a insurreição. Trotski deseja fazer avançar o movimento em uma espécie de jogo da oca saído de sua imaginação dogmática. Acredita que a luta vai primeiro a tal espaço, imediatamente sob o impulso de tal consigna passa ao espaço seguinte. E por fim, depois de haver "transitado" docilmente nos passos previstos, chega ao objetivo final.

O movimento real não segue nenhum esquema burocrático. Greves, lutas econômicas, lutas políticas, comitês de greve, iniciativas informais, ocupações, Sovietes: a luta não se desenvolve segundo um plano preconcebido, senão que suas formas se engendram mutuamente, se interpenetram, se sucedem, desaparecem e voltam no momento menos esperado.

Marx escrevia que os comunistas não têm princípios particulares sobre os quais pretenderiam modelar o movimento prático da luta da classe. Esta frase é mais profunda do que se pensa. Significa que não corresponde à organização de revolucionários definir de maneira idealista as formas e as reivindicações por antecipação. Isso o fará o proletariado mesmo no fogo da ação, segundo as circunstâncias.

Em nossa época uma grande parte dos movimentos de classe parte sem reivindicações precisas e não é mais que após certa relação de forças que se coloca o problema de fixar objetivos precisos, negociar, etc. É esta ausência de limites a priori que implica a possibilidade da extensão do movimento, de seu aprofundamento, de sua radicalização.

Movimento e programa

Os revolucionários não condenam nem fetichizam nenhuma forma da luta de classe. Seu papel não é modelar o movimento, senão fecundá-lo expressando seu sentido geral, portanto fazendo tudo para impedir que os sindicatos e esquerdistas limitem suas potencialidades e ocultem sua significação e sua direção.

Devemos ser ao mesmo tempo extremamente flexíveis e extremamente firmes. Flexíveis para que como membros da classe, saibamos nas circunstâncias mais diversas retomar, amplificar as formas, as reivindicações que surgem espontaneamente da massa, formular o que as massas sentem, lançar consignas unificadoras porque vão no sentido da extensão e da radicalização do movimento. Firmes para que como organização defendamos o programa comunista. Tal é nossa função especifica, porque é em torno deste programa que se reagrupam os trabalhadores mais conscientes que atraem aos outros e é a partir desta visão do objetivo que destacamos do movimento as tendências revolucionárias.

Trotski está pela flexibilidade no programa e o abandono do objetivo final e pelo dogmatismo rígido frente ao movimento! O comunismo é o sentido do movimento. Abandonar o comunismo é trair a essência mesma do movimento, é impedir sua única realização: o comunismo.

 (Adaptação do texto original de Março de 1973)

O trotskismo, defensor da guerra imperialista

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O trotskismo deixa de ser uma corrente do movimento operário quando passa definitivamente para o campo do capitalismo no curso da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Durante a segunda carnificina imperialista deste século, a IV° Internacional trotskista rechaça a consigna derrotista dos bolcheviques: Transformar a guerra imperialista em guerra civil! que tinha sido o marco de reagrupamento das forças revolucionárias proletárias contra a Primeira Guerra mundial. Os trotskistas realmente, defenderam o campo do imperialismo democrático e do stalinismo contra os imperialistas fascistas chamando à transformação da "guerra imperialista em uma verdadeira guerra pela defesa da URSS e contra o fascismo". É da maior importância para os revolucionários de hoje compreenderem o processo de contrarrevolução que dizimou e corrompeu numerosas forças do movimento revolucionário durante cinco décadas (na Rússia e outras partes). O modo em que essa degeneração afetou o trotskismo em particular, até ficar perdido para o movimento proletário constitui o tema deste artigo. O trotskismo não perece fisicamente como tendência política (salvo em países como a Rússia) como foi o caso de outras correntes proletárias nos anos 30 ou durante a guerra. Perece de maneira insidiosa, ao deixar de ser um fator de resistência revolucionária e de reagrupamento que tinha sido durante os anos que antecederam a guerra, ainda que fosse profundamente confuso acerca de numerosos pontos fundamentais.

Os trotskistas atualmente se empenham em deformar ou ocultar a importância das suas atividades durante a segunda guerra mundial. Só os mais cínicos e os mais estúpidos deles defendem esta parte da sua trajetória sem nenhuma vergonha. Porém no geral os trotskistas se mostram muito discretos em discutir suas atividades durante a guerra, na medida em que isso faria vir à luz do dia que suas declarações de "internacionalismo" e de "anti-stalinismo" autênticos não são outra coisa além de mentiras. A verdade é que os trotskistas durante a última grande guerra levaram à prática o que até então só haviam defendido com palavras ainda que temos de recordar que no curso da guerra civil espanhola, em 1936-38, os trotskistas participaram neste conflito inter-imperialista, aliando-se ao lado da república. Nesta época, o próprio Trotsky pretendia que os revolucionários deviam ser "bons soldados" do exército republicano! [1]

Rumo ao campo do capital

Às vésperas da segunda guerra mundial, o trotskismo já estava imerso na política reacionária do "mal menor". Havia se incorporado ao coro antifascista da burguesia democrática, melhor dizendo, aos seus preparativos de guerra, usando a desculpa de que o antifascismo representava uma "ponte para as massas". E era efetivamente uma ponte! Porém uma ponte construída pelas burguesias imperialistas democráticas e stalinistas com o objetivo de militarizar o proletariado e a população na preparação de uma nova divisão do mercado mundial.

Assim que Hitler chega ao poder em 1933, Trotsky chega até exortar o imperialismo americano a apoiar a Rússia para opor-se a ameaça do Japão e Alemanha! [2]. Esta perspectiva "transitória", "tática" de apoio a um campo imperialista contra outro (sem admitir abertamente) foi colocada em prática pelo trotskismo sob múltiplas expressões nos anos 30: apoio a "resistência colonial" na Etiópia, China, México, apoio a Espanha republicana, etc. Esta perspectiva "transitória", "tática" de apoio a um campo imperialista contra outro também foi muito clara durante todo este período (Polônia, Finlândia, 1939) dissimulado por detrás da palavra de ordem de "defesa da pátria soviética"

O começo da guerra

As atividades dos trotskistas durante a Segunda Guerra mundial onde, fora raras exceções, participaram ativamente nos movimentos de resistência financiados pelos imperialismos "aliado" e stalinista, constituíram o passo definitivo, lógico, do movimento trotskista para o campo do capital. A partir de então a natureza de classe do trotskismo como corrente política não podia ser mais que capitalista. Os cães de guarda mais radicais e mais ruidosos da ala esquerda do capitalismo, é o que todas as organizações trotskistas, grandes ou pequenas, tem sido desde a guerra.

Na Europa os trotskistas utilizaram três argumentos principais para justificar a participação na guerra imperialista ao lado da democracia burguesa e do stalinismo:

  • 1) "A defesa incondicional da URSS" (o que significava o apoio ao imperialismo russo).
  • 2) A defesa da democracia burguesa (enquanto um "mal menor") contra o fascismo (o que significava o apoio a um bando de gangsteres imperialistas contra outro. O que é uma posição social-patriota e não uma posição comunista internacionalista!)
  • 3) A questão "nacional" na Europa. Esta tinha-se tornado segundo o trotskismo uma realidade depois da ocupação pelo exército alemão da França, Bélgica, Holanda, Noruega, etc. As massas desejavam a "independência nacional" diante do "invasor nazista" segundo seu linguajar. O combate das nações oprimidas da Europa teria sido  nada menos que progressista e isso obrigaria os trotskistas a encontrar uma "ponte" direcionada às aspirações das massas. As "massas" incluíam certamente, Roossevelt, Churchil, De Gaulle, a GPU além de todo o aparato de Estado Imperialista da Europa que tinha sido abalado pelo imperialismo alemão, italiano e japonês. A "ponte" que buscavam os trotskistas não era muito difícil de encontrar. Foi avidamente posta de pé com a ajuda do ouro e das armas dos aliados que financiaram a resistência e os maquis (guerrilheiros).

Com estas três justificativas, os trotskystas na França, Bélgica, Itália, etc. se uniram à resistência e foram muito ativos. Na França, em todas partes onde os trotskystas alcançaram uma certa influência no interior do exército alemão (como em Brest por exemplo), chamaram os soldados alemães a entregar suas armas a resistência "pela defesa da URSS". Para os trotskystas franceses, o imperialismo alemão era o "inimigo nº1" [3]. As publicações em alemão dos trotskistas franceses (em particular o grupo La vérité, o Partido Operário Internacionalista) conclamavam aos soldados alemães na França a voltar suas armas contra seus oficiais e a Gestapo e a confraternizar com o maquis (a guerrilha) (significa dizer com as tropas de uma parte da burguesia francesa). Porém não chamavam as tropas do maquis a voltarem suas armas contra seus próprios oficiais da resistência ou contra os agentes stalinistas que dirigiam o maquis [4]

Alguns trotskistas franceses "criticaram" esses "desvios nacionalistas" praticados pelos patriotas trotskistas mais toscos. Porém todos defendiam as premissas políticas do trotskismo que conduzem implacavelmente ao abandono do internacionalismo (apoio à Rússia, à democracia burguesa, etc.) Não foi um acidente se essas críticas nunca levaram a nenhum desses grupos "ortodoxos" (inclusive o "mais puro" dentre eles, a União Comunista de Barta, precursor do grupo francês Lutte Ouvrière) a abandonar as posições burguesas do trotskismo. Para todos os trotskistas franceses que criticavam os "desvios nacionalistas" no seu seio, estas eram o resultado de "erros" ou de "oportunismo" e não uma questão decisiva que implicasse a passagem das fronteiras de classe.

Os melhores inimigos de Hitler

Nos Estados Unidos, o "Socialist Workers Party" (SWP) prometia ao governo travar um "verdadeiro combate" contra Hitler com a única condição de que a administração Roosevelt lhe permitisse atuar no "controle sindical da circunscrição" e na economia de guerra. Estas ofertas não foram aceitas e por outro lado não impediu o SWP de ser perseguido por engano, como um "perigo claro e presente" contra o esforço de guerra americano no juizado de Minneapolis em 1941. Embora Cannon e o resto da direção do SWP se postaram aos pés do júri, isso não os salvou da condenação a pena de prisão, relativamente curtas. Porém sua atitude diante da justiça não foi simplesmente o resultado da sua covardia pessoal; era lógica em função da capitulação, anterior à guerra, do trotskismo diante da ideologia antifascista do imperialismo democrático.

Algumas semanas depois que Trotsky foi assassinado por ordem de Stálin, Cannon desenvolve até o fim a lógica implícita na própria política oportunista de Trotsky diante da guerra. Por ocasião de uma conferência especial que o SWP promoveu em Chicago no mês de setembro de 1940, Cannon defendia a "proletarização" das forças armadas americanas: "Desejamos combater Hitler. Nenhum operário deseja ver esse bando de bárbaros facistas invadirem este país ou qualquer país que seja. Porém desejamos combater o fascismo sob uma direção na qual possamos ter confiança... Não permitiremos jamais que suceda o que sucedeu na França... Os trabalhadores por eles mesmos devem tomar este combate contra Hitler, contra todo aquele que usurpe seus direitos... A contradição entre o patriotismo da burguesia e o das massas deve ser o ponto de partida da nossa atividade revolucionária. Devemos basearmos na realidade da guerra e na reação das massas aos acontecimentos da guerra" (Os marxistas na segunda guerra mundial - de Brian Pearce).

Assim as "aspirações das massas" constituem a razão dada para determinar o apoio do trotskismo ao imperialismo dos aliados. Porém esta suposta aspiração "antifascista" do proletariado não existia em nenhuma parte em 1939, sobretudo à escala inventada pelo trotskismo. E ainda se isso fosse o caso, teria representado a dominação da ideologia democrática burguesa sobre a consciência da classe no seio do proletariado. Uma coisa que os revolucionários deveriam ter combatido (o que fizeram na realidade, mas não os trotskistas), exatamente como Lênin e os bolcheviques lutaram contra outras formas de patriotismo nacional que encerrava as massas durante a Primeira Guerra Mundial.

Porém o trotskismo compreendia que este apoio ao imperialismo deveria basear-se em certa vontade de resistência do proletariado contra a barbárie. Esse era o único caminho que para arrastar os operários a apoiar um campo da burguesia contra outro na guerra imperialista. A ideologia antifascista foi a mistificação ideal que necessitava o capital para esta finalidade, o stalinismoe o trotskismo foram seus seus principais propagadores no seio da classe operária durante a guerra. Os trabalhadores ingleses que produziam os blindados para o exército russo por exemplo, foram autorizados a escrever "Greetings to Uncle Jô" ("saudações ao tio Stálin") no lado dos blindados, o que os animava a trabalhar mais duramente e a produzir mais blindados em menos tempo. O trotskismo jamais se opuseram a tais campanhas. O fato de que os blindados foram mais tarde utilizados para os planos imperialistas da Grã Bretanha, para assassinar e mutilar outros trabalhadores fardados, não contava para os trotskistas desde o momento em que os blindados iriam defender a "pátria dos trabalhadores".

A ideologia antifascista dos trotskistas serviu de justificativa para a defesa de todos os imperialismos aliados, inglês, russo, francês, americano, etc. Isso quer dizer que o trotskismo tinha numerosos grandes chefes na época, tal como hoje.

Munis e Natalia Trotsky rompem com o trotskismo

As atas judiciais oficiais do juizado de Minneapolis jamais foram oferecidos ao público pelo SWP americano. A versão editada pelo SWP (sob o título "O Socialismo em Julgamento") difere das atas oficiais em vários pontos importantes. Os propósitos de Cannon reportados na ata oficial argumentam com efeito a favor de uma orientação pró-americana e expressam as lamentações de um patriota americano incompreendido. No entanto, na versão do SWP os piores excessos de Cannon são devidamente eliminados, embora o tom vil da declaração da defesa não desaparece jamais. O trotskista espanhol Grandizo Munis que se opunha à posição defensista do SWP e dos seus partidários irmãos escreveu em 1942 uma crítica fraternal do SWP durante o julgamento que se traduz em Qual política para os revolucionários? Marxismo ou ultra-esquerdismo? A resposta de Cannon igualmente publicada neste folheto ilude e portanto confirma as críticas de Munis. Este responde em O SWP e a guerra imperialista, uma crítica mais elaborada da atitude no julgamento, que reduzia a nada os argumentos em favor do social patriotismo sustentados pelo SWP. Este folheto não foi posto em circulação pelo SWP apesar do fato de que Munis ainda era formalmente membro dirigente da IV internacional (em 1946)

Natalia Trotsky, que mais tarde seguiu o caminho de Munis e da maioria dos trotskistas espanhóis e rompeu com o trotskismo em 1951, levanta as mesmas acusações contra a IV internacional. É importante notar que Munis, Péret, Natalia Trotsky e outros revolucionários deste período foram capazes de ver que a "defesa incondicional da URSS" de Trotsky tinha sido uma das cortinas de fumaça atrás das quais o trotskismo capitulava frente aos seus próprios imperialismos nacionais (na França, Grã-bretanha, Bélgica, Estados Unidos...) Estes revolucionários tiveram obviamente de revisar sua posição sobre a Rússia e a reconheceram enquanto capitalismo de Estado. Porém as críticas de Munis e Peret sobre o trotskismo iam mais além da questão russa. Continham também uma denuncia profunda - embora parcial - das concepções e da prática do Comitnern (Internacional Comunista) no passado.

O segundo congresso da IV Internacional, em 1948 ignora naturalmente o conteúdo das críticas de Munis. Assim este congresso prova que o trotskismo tinha aderido, sem ser profundamente sacudido enquanto corpo unido, ao campo burguês. A traição ao internacionalismo, em uma guerra imperialista é o critério definitivo para determinar a natureza burguesa de uma organização política anteriormente proletária. O congresso de 1948 ratificou esta traição.

Os grupos trotskistas que revisaram posteriormente sua posição sobre a Rússia (por exemplo, as tendências Chaulieu, Tony Clif, Johnson-Forest, etc...) ignoraram ou foram incapazes de denunciar implacavelmente o papel do trotskismo durante a guerra e por conseguinte a maior parte dos erros pro gramáticos de fundo do Comintern no passado (apoio a libertação nacional, trabalho nos sindicatos, parlamentarismo, frentes únicas etc.) retornaram ao esquerdismo ou ainda à política de esquerda.

O congresso de 1948 não ratificou somente o patriotismo dos trotskistas durante a guerra, adotou igualmente a defesa total do stalinismo. Isto constitui uma das razões principais da existência do trotskismo atualmente. Em 1949 Tito, que executou trotskistas em Belgrado em 1941, disporá do apoio da IV° Internacional; em 1950 a teoria da "assimilação estrutural" será ruminada pelo trotskismo com a finalidade de demonstrar que os países do Leste da Europa deveriam ser defendidos da mesma maneira que o Estado "operário" russo original.

A Segunda Guerra Mundial não termina com a vitória do proletariado, mas com sua derrota absoluta. Porém segundo o trotskismo o balanço foi finalmente positivo porque a economia nacionalizada russa tinha sido exportada para a Europa do Leste. O fato que isto tenha se realizado sobre as costas de mais de 50 milhões de cadáveres, depois do desmembramento imperialista de todo planeta, não tinha a mínima importância. A lógica bárbara da política capitalista do trotskismo fica contida na afirmação de que as "formas de propriedade socialistas" podem expandir-se no mundo por meio do maior assassino do proletariado: o stalinismo! A Liga Spartaquista americana (Spartacist League) carregou esta concepção reacionária até sua conclusão mais horrível quendo afirma em 1964 que em "que o guarda chuva nuclear soviético deve cubrir Hanói"! Para os trotskistas, a consigna original dos bolcheviques contra a guerra se transforma no seu contrário: transformar a guerra imperialista... em barbárie imperialista.

No campo do capital para sempre

O papel do trotskismo atualmente consiste em defender o imperialismo, tal como fez em 1939-45. A maioria destes grupos stalinistas de esquerda nos Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, etc., já estão firme e legalmente associados ao aparato político do Estado capitalista e da política da esquerda do capital (os sindicatos, os partidos stalinistas e social-democratas).

Para o trotskismo atualmente o mundo do pós-guerra está dividido por uma luta entre dois campos sociais diferentes e inimigos: o mundo imperialista ocidental de um lado e Rússia mais seus "Estados operários degenerados estruturalmente assimilados" do outro (além de alguns outros "Estados operários" que vegetam entre estes dois campos). A luta de classes descrita por Marx com tanta precisão, paixão e convicção está completamente desaparecida na visão de mundo trotskista. A divisão de classes que separa o proletariado mundial da burguesia mundial não é mais a luta central que forma a base da sociedade capitalista. No seu lugar, a humanidade estaria confrontada a uma luta entre Estados nacionais, entre "sistemas econômicos" supostamente opostos: o capitalista ao oeste, o "socialismo" no Leste. O que significa que o trotskismo põe a classe operária mundial a reboque das políticas adotadas pelo Estado "operário" (quer dizer da política exterior russa). Como estas políticas devem ser progressistas, o proletariado deve defendê-las independente da necessidade da sua própria luta de classe. Além disso, a classe está obrigada a defender todos estes Estados que os trotskistas têm classificado como "Estados operários". Isto é feito completamente em sintonia com a política "internacional" preconizada em 1928 pelo Comintern stalinista ao proletariado mundial.

  • "A União Soviética é a verdadeira pátria do proletariado, é a defensora mais firme dos seus interesses e é fator principal da sua libertação internacional. Isto obriga o proletariado mundial a contribuir para o êxito da edificação socialista na União Soviética, e a defender o país da ditadura do proletariado por todos os meios contra os ataques das potencias capitalistas" (Programa da Internacional Comunista, VI Congresso 1928).

Os trotskistas atualmente saúdam não a uma mas numerosas "Uniões Soviéticas", que "necessitam" da defesa incondicional do proletariado mundial. Embora Trotsky tenha afirmado em 1940 que a questão da conservação da forma de propriedade do Estado nacionalizado na Rússia estava subordinada à questão da extensão da revolução mundial, para o trotskismo de hoje, a revolução mundial desapareceu completamente e só se trata de uma questão de apoio ao stalinismo, embora de maneira "crítica"

Em 1940 Trotsky realizou a falsa previsão a propósito do desenvolvimento do stalinismo:

  • "a alternativa histórica colocada de maneira extrema se apresenta como segue: ou o regime de Stálin é um resíduo repugnante no processo de transformação da sociedade burguesa em uma sociedade socialista, ou o regime de Stálin é a primeira etapa de uma nova sociedade de exploração. Se o segundo prognóstico se revelou correto, então seguramente a burocracia se transformará em uma nova classe exploradora. No entanto se o proletariado se revelar atualmente incapaz de cumprir a missão colocada à frente no curso do desenvolvimento, não ficará nada salvo o reconhecimento de que o programa socialista, baseado nas contradições da sociedade capitalista, era uma utopia" (Em Defesa do Marxismo, A URSS na Guerra"; Tradução nossa).

Porém Trotsky insistia também no fato que só o final da 2ª Guerra mundial decidiria finalmente a natureza de classe do stalinismo. Como temos visto, os trotskistas responderam à guerra traindo o internacionalismo e apoiando o imperialismo russo que demonstrou sem equívocos sua natureza de potência capitalista. Contudo a maioria dos trotskistas saudou o fim da guerra, o avanço do exército vermelho na Europa do Leste e Alemanha como uma grande vitória do socialismo! Na realidade o exército vermelho - como todos exércitos no conflito - acabava com toda possibilidade de resistência proletária que surgia em oposição a guerra. E o exército stalinista era ainda um dos mais experimentados e mais capazes de desarmar e massacrar o proletariado. Aqui, por exemplo temos o que dizia a propagandista Ilya Ehrenburg, uma hiena stalinista, a propósito dos operários alemães no começo dos anos 40:

  • "Se os operários alemães realizassem uma revolução e se aproximassem do exército vermelho como irmãos, seriam abatidos como cachorros" (citado em "invading Socialist Society" pela tendência Johnson-Forest, setembro de 1947).

Ao final da guerra, suas próprias mãos manchadas de sangue de operários devido a sua marcha "heróica" na resistência antifacista, os trotskistas, cúmplices dos aliados e do stalinismo, não podiam aceitar tal qual o último prognóstico pessimista de Trotsky que via no stalinismo como uma nova classe social no caso da derrota da sua superação pelos operários russos. Para eles, a guerra foi uma grande vitória do proletariado. Paradoxalmente o trotskismo de pós-guerra continuou ao seu modo a falsa lógica da perspectiva pessimista e não marxista de Trotsky em 1940. O fim da guerra viu a consolidação e extensão do stalinismo. E que fizeram os trotskistas frente a isso? De acordo com as teses de Trotsky, o stalinismo certamente seria completamente reacionário no plano internacional. No entanto, se pôs a criar novos "Estados operários" em todas as partes! Não episodicamente, nem conjunturalmente, como na Polônia em 1939, mas de maneira permanente. Também atribuem à burocracia a tarefa progressista de "criar cada vez mais Estados "operários" nos séculos por vir!" (Pablo)

Que papel resta então ao trotskismo, o auto denominado "partido mundial da revolução socialista"? Nenhum, salvo o de advogado do stalinismo.

Em 1951 durante a guerra da Coréia, os dirigentes trotskistas - senhores Mandel, Frank y outros Stalin menores - acusaram de maneira ignóbil Natalia Trotsky de sucumbir às "pressões" do imperialismo quando ela rompeu com a IV Internacional e descreveu a Rússia como uma potência capitalista de Estado. Só o aviltamento total desses renegados poderia fazê-los acusar os revolucionários de seus próprios crimes! A Stálin o que é de Stálin! Um dos principais deveres dos revolucionários atualmente é a denúncia implacável do trotskismo como um aborto sangrento do stalinismo. O passado dos trotskistas fala por si mesmo.

(World Revolution nº 21, dezembro de 1987, órgão da CCI na Grã-Betanha)


[1] As posições adotadas por Bilan durante a guerra da Espanha estão publicadas na nossa série Espanha 1936: Franco e a República massacram o proletariado; https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2007/Espanha_1936_Franco_e_a_Republica_massacram_o_proletariado.htm [36]

[2] Citado por Isaac Deutscher em O "Profeta no Exílio" Trotski 1920-1940

[3] Os trotskystas se uniram aos stalinistas para denunciar os verdadeiros internacionalistas como agentes de Hitler e de Mussolini contribuindo com isso na sua perseguição e extermínio. Os sobreviventes da Esquerda Italiana continuaram no entanto difundindo sua propaganda derrotista e internacionalista contra a guerra, apesar das condições difíceis de clandestinidade. Com efeito, é no apogeu da guerra imperialista, as revistas Internationalisme na França e Prometeu na Itália , apareceram pela primeira vez.

[4] As atividades patrióticas dos trotskistas franceses durante a Segunda Guerra mundial são notadamente evocadas em Les enfants du prophète (Os filhos do profeta) de J. Rousel nas edições Spartacus-Paris 1982. Porém não existe um trabalho, concernente ao movimento trotiskista no seu conjunto.

O trotskismo deixa de ser uma corrente do movimento operário quando passa definitivamente para o campo do capitalismo no curso da segunda guerra mundial (1939-1945). Durante a segunda carnificina imperialista deste século, a IV° Internacional trotskista rechaça a consigna derrotista dos bolcheviques: Transformar a guerra imperialista em guerra civil! que tinha sido o marco de reagrupamento das forças revolucionárias proletárias contra a Primeira Guerra mundial. Os trotskistas realmente, defenderam o campo do imperialismo democrático e do stalinismo contra os imperialistas fascistas chamando à transformação da "guerra imperialista em uma verdadeira guerra pela defesa da URSS e contra o fascismo". É da maior importância para os revolucionários de hoje compreenderem o processo de contrarrevolução que dizimou e corrompeu numerosas forças do movimento revolucionário durante cinco décadas (na Rússia e outras partes). O modo em que essa degeneração afetou o trotskismo em particular, até ficar perdido para o movimento proletário constitui o tema deste artigo. O trotskismo não perece fisicamente como tendência política (salvo em países como a Rússia) como foi o caso de outras correntes proletárias nos anos 30 ou durante a guerra. Perece de maneira insidiosa, ao deixar de ser um fator de resistência revolucionária e de reagrupamento que tinha sido durante os anos que antecederam a guerra, ainda que fosse profundamente confuso acerca de numerosos pontos fundamentais.

Os trotskistas atualmente se empenham em deformar ou ocultar a importância das suas atividades durante a segunda guerra mundial. Só os mais cínicos e os mais estúpidos deles defendem esta parte da sua trajetória sem nenhuma vergonha. Porém no geral os trotskistas se mostram muito discretos em discutir suas atividades durante a guerra, na medida em que isso faria vir à luz do dia que suas declarações de "internacionalismo" e de "anti-stalinismo" autênticos não são outra coisa além de mentiras. A verdade é que os trotskistas durante a última grande guerra levaram à prática o que até então só haviam defendido com palavras ainda que tenhamos de recordar que no curso da guerra civil espanhola, em 1936-38, os trotskistas participaram neste conflito inter-imperialista, aliando-se ao lado da república. Nesta época, o próprio Trotsky pretendia que os revolucionários deviam ser "bons soldados" do exercito republicano! [1]

Rumo ao campo do capital

Às vésperas da segunda guerra mundial, o trotskismo já estava imerso na política reacionária do "mal menor". Havia se incorporado ao coro antifascista da burguesia democrática, melhor dizendo, aos seus preparativos guerreiros, usando a desculpa de que o anti-fascismo representava uma "ponte para as massas". E era efetivamente uma ponte! Porém uma ponte construída pelas butguesias imperialistas democráticas e stalinistas com o objetivo de militarizar o proletariado e a população na preparação de uma nova divisão do mercado mundial.

Assim que Hitler chega ao poder em 1933, Trotsky chega até exortar o imperialismo americano a apoiar a Rússia para opor-se a ameaça do Japão e Alemanha! [2]. Esta perspectiva "transitória", "tática" de apoio a um campo imperialista contra outro (sem admitir abertamente) foi colocada em prática pelo trotskismo sob múltiplas expressões nos anos 30: apoio a "resistência colonial" na Etiópia, China, México, apoio a Espanha republicana, etc. Esta perspectiva "transitória", "tática" de apoio a um campo imperialista contra outro também foi muito clara durante este período todo (Polônia, Finlândia, 1939) dissimulado por detrás da consigna de "defesa da pátria soviética"

O começo da guerra

As atividades dos trotskistas durante a Segunda Guerra mundial onde, fora raras exceções, participaram ativamente nos movimentos de resistência financiados pelos imperialismos "aliado" e stalinista, constituíram o passo definitivo, lógico, do movimento trotskista para o campo do capital. A partir de então a natureza de classe do trotskismo como corrente política não podia ser mais que capitalista. Os cães de guarda mais radicais e mais ruidosos da ala esquerda do capitalismo, é o que todas as organizações trotskistas, grandes ou pequenas, tem sido desde a guerra.

Na Europa os trotskistas utilizaram três argumentos principais para justificar a participação na guerra imperialista ao lado as democracia burguesa e o stalinismo:

  • 1) "A defesa incondicional da URSS" (o que significava o apoio ao imperialismo russo).
  • 2) A defesa da democracia burguesa (enquanto um "mal menor") contra o fascismo (o que significava o apoio a um bando de gangsteres imperialistas contra outro. O que é uma posição social-patriota e não uma posição comunista internacionalista!)
  • 3) A questão "nacional" na Europa. Esta tinha-se tornado segundo o trotskismo uma realidade depois da ocupação pelo exercito alemão da França, Bélgica, Holanda, Noruega, etc. As massas desejavam a "independência nacional" diante do "invasor nazi" segundo seu linguajar. O combate das nações oprimidas da Europa teria sido "progressista" nada menos e isso obrigaria os trotskistas encontrar uma "ponte" direcionada às aspirações das massas. As "massas" incluíam supostamente, Roossevelt, Churchil, De Gaulle, a GPU além de todo o aparato de Estado Imperialista da Europa que tinha sido abalado pelo imperialismo alemão, italiano e japonês. A "ponte" que buscavam os trotskistas não era muito difícil de encontrar. Foi avidamente posta de pé com a ajuda do ouro e as armas dos aliados que financiaram a resistência e os maquis (guerrilheiros).

Com estas três justificativas, os trotskystas na França, Bélgica, Itália, etc. se uniram a resistência e foram muito ativos. Na frança, em todas partes ode os trotskystas alcançaram uma certa influência no interior do exército alemão (como em Brest por exemplo), chamaram os soldados alemães a entregar suas armas a resistência "pela defesa da URSS". Para os trotskystas franceses, o imperialismo alemão era o "inimigo nº1" [3]. As publicações em alemão dos trotskistas franceses (em particular o grupo La vérité, o Partido Operário Internacionalista) conclamavam aos soldados alemães na frança a voltar suas armas contra seus oficiais e a Gestapo e a confraternizar com o maquis (a guerrilha) (significa dizer com as tropas de uma parte da burguesia francesa). Porém não chamavam as tropas do maquis a voltarem suas armas contra seus próprios oficiais da resistência ou contra os agentes stalinistas que dirigiam o maquis [4]

Alguns trotskistas franceses "criticaram" esses "desvios nacionalistas" praticados pelos patriotas trotskistas mais toscos. Porém todos defendiam as premissas políticas do trotskismo que conduzem implacavelmente ao abandono do internacionalismo (apoio à Rússia, a democracia burguesa, etc.) Não foi um acidente se essas críticas jamais levaram a nenhum desses grupos "ortodoxos" (inclusive o "mais puro" dentre eles, a União Comunista de Barta, precursor do grupo francês Lutte Ouvrière) a abandonar as posições burguesas do trotskismo. Para todos os trotskistas franceses que criticavam os "desvios nacionalistas" no seu seio, estas eram o resultado de "erros" ou de "oportunismo" e não uma questão decisiva que implicasse a passagem das fronteiras de classe.

Os melhores inimigos de Hitler

Nos Estados Unidos, o "Socialist Workers Party" (SWP) prometia ao governo travar um "verdadeiro combate" contra Hitler com a única condição de que a administração Roosevelt lhe permitisse atuar no "controle sindical da circunscrição" e na economia de guerra. Estas ofertas não foram aceitas e por outro lado não impediu o SWP de ser perseguido por engano, como um "perigo claro e presente" contra o esforço de guerra americano no juizado de Minneapolis em 1941. Aembora Cannon e o resto da direção do SWP se postaram aos pés do júri, isso não os salvou da condenação a pena de prisão, relativamente curtas. Porem sua prestação ante a justiça não foi simplesmente o resultado da sua covardia pessoal; era lógica em função da capitulação, anterior à guerra, dos trotskismo diante da ideologia antifascista do imperialismo democrático.

Algumas semanas depois que Trotski foi assassinado por ordem de Stálin, Cannon desenvolve até o fim a lógica implícita na própria política oportunista de Trotsky diante da guerra. Por ocasião de uma conferência especial que o SPW promoveu em Chicago no mês de setembro de 1940, Cannon defendia a "proletarização" das forças armadas americanas: "Desejamos combater Hitler. Nenum operário deseja ver esse bando de bárbaros facistas invadirem este país ou qualquer país que seja. Porém desejamos combater o fascismo sob uma direção na qual possamos ter confiança... Não permitiremos jamais que suceda o que sucedeu na França... Os trabalhadores por eles mesmos devem tomar este combate contra Hitler, contra todo aquele que usurpe seus direitos... A contradição entre o patriotismo da burguesia e o das massas deve ser o ponto de partida da nossa atividade revolucionária. Devemos basearmos na realidade da guerra e na reação das massas aos acontecimentos da guerra" (Os marxistas na segunda guerra mundial - de Brian Pearce).

Assim as "aspirações das massas" constituem a razão dada para determinar o apoio do trotskismo ao imperialismo dos aliados. Porém esta suposta aspiração "antifascista" do proletariado não existia em nenhuma parte em 1939, sobretudo à escala inventada pelo trotskismo. E ainda se isso fosse o caso, teria representado a dominação da ideologia democrática burguesa sobre a consciência da classe no seio do proletariado. Uma coisa que os revolucionários deveriam ter combatido (o que fizeram na realidade, mas nao os trotskistas), exatamente como Lênin e os bolcheviques lutaram contra outras formas de patriotismo nacional que encerrava as massas durante a Primeira Guerra mundial.

Porém o trotskismo compreendia que este apoio ao imperialismo deveria basear-se em certa vontade de resistência do proletariado contra a barbarie. Tal era o único caminho que para arrastar os operários a apoiar um campo da burguesia contra outro na guerra imperialista. A ideologia antifascista foi a mistificação ideal que necessitava o capital para esta finalidade, o stalinismoe o trotskismo foram seus seus principais propagadores no seio da classe operária durante a guerra. Os trabalhadores ingleses que produziam os blindados para o exército russo por exemplo, foram autorizados a escrever "Greetings to Uncle Jô" ("saudações ao tio Stálin") no lado dos blindados, o que os animava a trabalhar mais duramente e a produzir mais blindados em menos tempo. O trotskismo jamais se opuseram a tais campanhas. O fato de que os blindados foram mais tarde utilizados para os desígnios imperialistas da Gran Bretanha, para assassinar e mutilar outros trabalhadores uniformizados, não contava para os trotskistas desde o momento em que os blindados iriam defender a "pátria dos trabalhadores".

A ideologia antifascista dos trotskistas serviu de justificativa para a defesa de todos os imperialismos aliados, inglês, russo, francês, americano, etc. Isso quer dizer que o trotskismo tinha numerosos grandes chefes na época, tal como hoje.

Munis e Natalia Trotsky rompem com o trotskismo

As atas judiciais oficiais do juizado de Minneapolis jamais foram oferecidos ao público pelo SWP americano. A versão editada pelo SWP (sob o título "O Socialismo em Julgamento") difere das atas oficiais em vários pontos importantes. Os propósitos de Cannon reportados na ata oficial argumentam com efeito a favor de uma orientação pro americana e expressam as lamentações de um patriota americano incompreendido. No entanto, na versão do SWP os piores excessos de Cannon são devidamente eliminados, embora o tom vil da declaração da defesa não desaparece jamais. O trotskista espanhol Grandizo Munis que se opunha à posição defensista do SWP e dos seus partidários irmãos escreveu em 1942 uma crítica fraternal do SWP durante o julgamento que se traduz em Qual política para os revolucionários? Marxismo ou ultra-esquerdismo? A resposta de Cannon igualmente publicada neste folheto ilude e portanto confirma as críticas de Munis. Esta replica em O SWP e a guerra imperialista, uma crítica mais elaborada da atitude no julgamento, que reduzia a nada os argumentos em favor do social patriotismo sustentados pelo SWP. Este folheto não foi posto em circulação pelo SWP apesar do fato de que Munis era ainda formalmente membro dirigente da IV internacional (em 1946)

Natalia Trotski, que mais tarde seguiu o caminho de Munis e da maioria dos trotskistas espanhóis e rompeu com o trotskysmo em 1951, levanta as mesmas acusações contra a IV internacional. É importante notar que Munis, Péret, Natalia Trotsky e outros revolucionários deste período foram capazes de ver que a "defesa incondicional da URSS" de Trotski tinha sido uma das cortinas de fumaça atrás das quais o trotskismo capitulava frente aos seus próprios imperialismos nacionais (na França, Grã-bretanha, Bélgica, Estados Unidos...) Estes revolucionários tiveram obviamente de revisar sua posição sobre a Rússia e a reconheceram enquanto capitalismo de Estado. Porém as críticas de Munis e Peret sobre o trotskismo iam mais além da questão russa. Continham também uma denuncia profunda - embora parcial - das concepções e da prática do Comitnern no passado.

O segundo congresso da IV Internacional, em 1948 ignora naturalmente o conteúdo das críticas de Munis. Assim este congresso prova que o trotskismo tinha aderido, sem ser profundamente sacudido enquanto corpo unido, ao campo burguês. A traição ao internacionalismo, em uma guerra imperialista é o critério definitivo para determinar a natureza burguesa de uma organização política anteriormente proletária. O congresso de 1948 ratificou esta traição.

Os grupos trotskistas que revisaram posteriormente sua posição sobre a Rússia (por exemplo, as tendências Chaulieu, Tony Clif, Johnson-Forest, etc...) porém ignoraram ou foram incapazes de denunciar implacavelmente o papel do trotskismo durante a guerra e por conseguinte a maior parte dos erros pro gramáticos de fundo do Comintern no passado (apoio a libertação nacional, trabalho nos sindicatos, parlamentarismo, frentes únicas etc.) retornaram ao esquerdismo ou ainda à política de esquerda.

O congresso de 1948 não ratificou somente o patriotismo dos trotiskistas durante a guerra, adotou igualmente a defesa total do stalinismo. Isto constitui uma das razões principais da existência do trotskismo atualmente. Em 1949 Tito, que executou trotiskistas em Belgrado em 1941, disporá do apoio da IV° Internacional; em 1950 a teoria da "assimilação estrutural" será ruminada pelo trotskismo com a finalidade de demonstrar que os países da Europa do Leste deveriam ser defendidos da mesma maneira que o Estado "operário" russo original.

A segunda guerra mundial não termina com a vitória do proletariado, mas com sua derrota absoluta. Porém segundo o trotskismo o balanço foi finalmente positivo porque a economia nacionalizada russa tinha sido exportada para a Europa do Leste. O fato que isto tenha se realizado sobre as costas de mais de 50 milhões de cadáveres, depois do desmembramento imperialista de todo planeta, não tinha a mínima importância. A lógica bárbara da política capitalista do trotskismo fica contida na afirmação de que as "formas de propriedade socialistas" podem expandir-se no mundo por meio do maior assassino do proletariado: o stalinismo! A Liga Spartaquista americana carregou esta concepção reacionária até sua conclusão mais horrível quendo afirma em 1964 que em "que o guarda chuva nuclear soviético deve cubrir Hanói"! Para os trotskistas, a consigna original dos bolcheviques contra a guerra se transforma no seu contrário: transformar a guerra imperialista... em barbárie imperialista.

No campo do capital para sempre

O papel do trotskismo atualmente consiste em defender o imperialismo, tal como fez em 1939-45. A maioria destes grupos stalinistas de esquerda nos Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, etc., estão já firme e legalmente associados ao aparato político do Estado capitalista e da política da esquerda do capital (os sindicatos, os partidos stalinistas e socialdemocratas).

Para o Trotskismo atualmente o mundo do pós-guerra está dividido por uma luta entre dois campos sociais diferentes e inimigos: o mundo imperialista ocidental de um lado e Rússia mais seus "Estados operários degenerados estruturalmente assimilados" do outro (além de alguns outros "Estados operários" que vegetam entre estes dois campos). A luta de classes descrita por Marx com tanta precisão, paixão e convicção está completamente desaparecida na visão de mundo trotskista. A divisão de classes que separa o proletariado mundial da burguesia mundial não é mais a luta central que forma a base da sociedade capitalista. No seu lugar, a humanidade estaria confrontada a uma luta entre Estados nacionais, entre "sistemas econômicos" supostamente opostos: o capitalista ao oeste, o "socialismo" no Leste. O que significa que o trotskismo põe a classe operária mundial a reboque das políticas adotadas pelo Estado "operário" (quer dizer da política exterior russa). Como estas políticas devem ser progressistas, o proletariado deve defendê-las independente da necessidade da sua própria luta de classe. Além disso, a classe está obrigada a defender todos estes Estados que os trotskistas têm classificado como "Estados operários". Isto é feito completamente em sintonia com a política "internacional" preconizada em 1928 pelo Comintern stalinista ao proletariado mundial.

  • "A União Soviética é a verdadeira pátria do proletariado, é a defensora mais firme dos seus interesses e é fator principal da sua libertação internacional. Isto obriga ao proletariado mundial em contribuir para o êxito da edificação socialista na União Soviética, e a defender o país da ditadura do proletariado por todos os meios contra os ataques das potencias capitalistas" (Programa da internacional Comunista, VI congresso 1928).

Os trotskistas atualmente saúdam não a uma mas numerosas "Uniões Soviéticas", que "necessitam" da defesa incondicional do proletariado mundial. Ambora Trotski tenha afirmado em 1940 que a questão da conservação da forma de propriedade do Estado nacionalizado na Rússia estava subordinada à questão da extensão da revolução mundial, para o trotskismo de hoje, a revolução mundial desapareceu completamente e só se trata de uma questão de apoio ao stalinismo, embora de maneira "crítica"

Em 1940 Trotski realizou a falsa previsão a propósito do desenvolvimento do stalinismo:

  • "a alternativa histórica colocada de maneira extrema se apresenta como segue: seja o regime de Stálin é um resíduo repugnante no processo de transformação da sociedade burguesa em uma sociedade socialista, seja o regime de Stálin é a primeira etapa de uma nova sociedade de exploração. Se o segundo prognóstico se revelou correto, então seguramente a burocracia se transformará em uma nova classe exploradora. No entanto se o proletariado se revelar atualmente incapaz de cumprir a missão colocada à frente no curso do desenvolvimento, não ficará nada salvo o reconhecimento de que o programa socialista, baseado nas contradições da sociedade capitalista, era uma utopia" (Em "Defesa do Marxismo").

Porém Trotski insistia igualmente no fato que só o final da 2ª Guerra mundial decidiria finalmente a natureza de classe do stalinismo. Como temos visto, os trotskistas responderam à guerra traindo o internacionalismo e apoiando o imperialismo russo que demonstrou sem equívocos sua natureza de potência capitalista. Contudo a maioria dos trotskistas saudaram o fim da guerra, o avanço do exército vermelho na Europa do Leste e Alemanha como uma grande vitória do socialismo! Na realidade o exército vermelho - como todos exércitos no conflito - acabava com toda possibilidade de resistência proletária que surgia em oposição a guerra. E o exército stalinista era ainda um dos mais experimentados e mais capazes de desarmar e massacrar o proletariado. Aque por exemplo temos o que dizia a propagandista Ilya Ehrenburg, uma hiena stalinista, a propósito dos operários alemães no começo dos anos 40:

  • "Se os operários alemãs realizarem uma revolução e se aproximarem do exercito vermelho como irmãos, seriam abatidos como cachorros" (citado em "invading Socialist Society" pela tendência Johnson-Forest, setembro de 1947).

Ao final da guerra, suas próprias mãos manchadas de sangue de operários devido a sua marcha "heróica" na resistencia antifacista, os trotskistas, cúmplices dos aliados e do stalinismo, não podiam aceitar tal qual o último prognóstico pessimista de Trotsky que via no stalinismo como uma nova classe social no caso da derrota da sua superação pelos operários russos. Para eles, a guerra foi uma grande vitória do proletariado. Paradoxalmente o trotskismo de pós-guerra continuou ao seu modo a falsa lógica da perspectiva pessimista e não marxista de Trotski em 1940. O fim da guerra viu a consolidação e extensão do stalinismo. E que fizeram os trotskistas frente a isso? De acordo com as teses de Trotski o stalinismo seria supostamente completamente reacionário no plano internacional. Porém se pôs a criar novos "Estados operários" em todas as partes! Não episodicamente, conjunturalmente, como na Polônia em 1939, mas de maneira permanente. Se denominar uma nova classe exploradora- (o que não é, pois o Estado stalinista não é mais que uma simples fração da classe capitalista mundial), os trotskistas o consideram como tal nos fatos. Também atribuem à burocracia a tarefa progressista de criar cada vez mais Estados "operários" nos séculos por vir! (Pablo)

Que papel resta então ao trotskismo, o auto denominado "partido mundial da revolução socialista"? Nenhum, salvo o de advogado do stalinismo.

Em 1951 durante a guerra da Coréia, os dirigentes trotskistas - senhores Mandel, Frank y outros menores Stalin acusaram de maneira ignóbil Natalia Trotski de sucumbir às "pressões" do imperialismo quando ela rompeu com a IV Internacional e descreveu a Rússia como uma potencia capitalista de Estado. Só o aviltamento total desses renegados poderia fazê-los acusar os revolucionários de seus próprios crimes! A Stalin o que é de Stalin! Um dos principais deveres dos revolucionários atualmente é a denuncia implacável do trotskismo como um aborto sangrento do stalinismo. O passado dos trotskistas fala por si mesmo.

(World Revolution nº 21, dezembro de 1987, órgão da CCI na Grã-Betanha)


[1] As posições adotadas por Bilan durante a guerra da Espanha estão publicadas na nossa série Espanha 1936: Franco e a República massacram o proletariado; https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2007/Espanha_1936_Franco_e_a_Republica_massacram_o_proletariado.htm [36]

[2] Citado por Isaac Deutscher em O "Profeta no Exílio" Trotski 1920-1940

[3] Os trotskystas se uniram aos stalinistas para denunciar os verdadeiros internacionalistas como agentes de Hitler e de Mussolini contribuindo com isso na sua perseguição e extermínio. Os sobreviventes da Esquerda Italiana continuaram no entanto difundindo sua propaganda derrotista e internacionalista contra a guerra, apesar das condições difíceis de clandestinidade. Com efeito, é no apogeu da guerra imperialista, as revistas Internationalisme na França e Prometeu na Itália , apareceram pela primeira vez.

[4] As atividades patrióticas dos trotskistas franceses durante a Segunda Guerra mundial são notadamente evocadas em Les enfants du prophète (Os filhos do profeta) de J. Rousel nas edições Spartacus-Paris 1982. Porém não existe um trabalho, concernente ao movimento trotiskista no seu conjunto.

A Segunda Guerra mundial e o passo das organizações trotskistas para a contrarrevolução

  • 4901 leituras

A IIª guerra mundial e passagem dos Trotskistas à contrarevolução

Atualmente é possível ter acesso aos documentos [1] que dão testemunho do papel contra-revolucionário de todas as seitas Trotskistas durante a segunda guerra mundial. Mas os fatos superam todo entendimento, e é ainda com maior vigor e repugnância que devem ser denunciados quando suas posições políticas são lidas.

Fosse qual fosse o grupo ao qual pertenciam, os Trotskistas renegaram, abandonado o campo operário e o internacionalismo proletário no curso da segunda guerra mundial. As posições revolucionárias clássicas do movimento operário sobre a guerra imperialista no século XX: derrotismo revolucionário, rejeição de toda palavra de ordem nacionalista e combate contra a própria burguesia de seu próprio país, foram pisoteadas por todos os Trotskistas.

A defesa de um campo imperialista: a URSS leva-os naturalmente ao terreno nacionalista e burguês através de táticas conjunturais muito diversas, mas todas contra-revolucionárias.

É assim que enredados pelos interesses de um campo burguês, participaram da guerra imperialista e o que é mais dramático, conduziram os operários que lhes seguiam a se fazer massacrar pelos interesses que não são os seus, mas o de um campo imperialista.

Da ocupação da França à entrada da URSS na guerra (Junho 1940-Junho 1941)

As duas frações Trotskistas existentes na França em 1939 (provenientes do ex -POI e do ex -PCI) foram excluídas uma depois da outra do PSOP de Marceau Pivert [2]. Os Trotskistas, depois de ter realizado toda uma política de entrismo a social-democracia quer dizer no campo inimigo dos trabalhadores, tinham efetivamente recomeçado as mesmas políticas de entrismo com os "socialistas de esquerda" do PSOP. São excluídos durante o outono de 1939 depois da declaração de guerra. Tomam então atitudes opostas, ambas apoiando, no entanto a uma fração da burguesia:

  • 1) O comitê francês pela IV internacional, que reagrupa a antigos militantes do POI do pré-guerra, sustenta à fração "democrática" gaulista [3].
  • 2) Os militantes do ex PCI de pré-guerra apóiam à fração fascista.
O "comitê francês pela IVª Internacional"

Este se constituiu a partir de  ex-militantes do POI (fração reconhecida pela IV internacional). Ele publica em 1940 as Teses nacionais do comitê francês (boletim do Comitê pela IV internacional), adotadas em 20 de setembro de 1940 por unanimidade do comitê central, que consideravam a França como uma "nação oprimida", "semicolonial". Estas teses conduzem esta fração a defender a idéia de que era necessário libertar o estado nacional antes de fazer a revolução. É a posição clássica dos Trotskistas, válida para todas as nações do terceiro mundo. Por esta via, esta fração apoiará ao que chama as "aspirações libertadoras das massas" e de maneira "crítica", a resistência". Ainda que a partir de um ponto de vista Trotskista, estas posições vão tão longe na abjeção nacionalista e contra-revolucionária que serão condenadas em seguida pelas teses da Conferência européia da IV internacional de fevereiro de 1944 [4]: "em lugar de distinguir entre o nacionalismo da burguesia vencida (...) e o "nacionalismo" das massas (...) a direção do POI considera como progressista a luta de sua própria burguesia, não toma distância face ao gaulismo e se conforma em dar-lhe uma forma de terminologia mais "revolucionária". Pondo a burguesia francesa imperialista e vencida no mesmo nível que o das burguesias coloniais, a direção do POI adquire uma concepção completamente falsa da questão nacional e difunde perigosas ilusões quanto ao caráter das organizações nacionalistas que, longe de constituir "aliados" hipotéticos para o proletariado revolucionário, são como a vanguarda contra-revolucionária do imperialismo"

Esta condenação não resolve em nada do ponto de vista revolucionário; pelo contrário confirma as posições nacionalistas da IV Internacional e seu apoio "critico" ao movimento de massas da Resistência.

Efetivamente, ao prosseguir a leitura destas Teses é constatado que criticam igualmente a atitude da outra fração, o ex-PCI, conhecido a partir de 1943 com o nome de "Comitê Comunista Internacionalista" (CCI), de ter uma atitude "sectária".

Evidentemente que esta fração não é a melhor.

O ex-PCI

Ele publica então La Seule Voie [A Via Única]. Por que a conferência européia da IV Internacional critica suas políticas nas Teses? Porque esta se isola das massas! Isso quer dizer que os primeiros a se misturar com as massas nacionalistas teriam então a Razão? Sim! O texto de condenação prossegue denunciando o CCI "que recusa obstinadamente distinguir entre o nacionalismo da burguesia e o movimento de resistência das massas".

A conferência européia confirma de fato e oficialmente nestas Teses, o apoio do movimento trotskista à Resistência.

As orientações políticas desta fração (do ex-PCI) são igualmente nacionalistas e não têm nada a invejar daquelas do Comitê francês. Com efeito, a organização deu "como missão" a Henri Molinier [5] e Roger Foirier a de trabalhar "no interior de uma organização fascista e entre seus círculos dirigentes" [6]. Henri Moliner jogou um papel relativamente importante no Rassemblement National Populaire [Agrupamento Nacional Popular] (RNP) de Marcel Deat, que era um movimento favorável ao nazismo [7]. Este "entrismo" seria justificado por esta corrente com a idéia de que os alemães ganhariam a guerra e que o fascismo seria instalado por um longo período na Europa. Neste contexto as organizações fascistas se convertiam em organizações de massas, e teria que se aprender a conviver com elas.

A IV Internacional se encontrava desde a sua criação gangrenada pelo centrismo, mas com a guerra mundial perde tudo o que ainda lhe restava de orientação marxista.

Tanto a um como a outro grupo, a defesa do Programa de transição e a posição de "não se isolar das massas" levam-os a sustentar uma fração da burguesia contra outra e por meio disto, conduzem os operários à guerra em favor de um campo imperialista.

Voltemos às orientações do Comitê francês o mais apto para mistificar os operários ao lutar contra o fascismo, a outra fração era menos perigosa sob o ponto de vista dos trabalhadores, porque a classe operária na França não pensava então que Hitler ou Pétain defendessem seus interesses!

La Verité  [A Verdade] órgão do Comitê francês

Escreve: "Integrar-nos no movimento de patriotismo popular, ampliar nossa base de ação, (...) não pode mais do que nos permitir progredir e enraizar nossa atividade nas massas (...) E o renascimento de nosso país depende da iniciativa do povo da França (...) Só a iniciativa popular pode reviver a França. Só os comitês formados para criá-la, organizá-la, dirigí-la, podem substituir as engrenagens da França defunta (...) A França não sairá do atoleiro mais do que pela iniciativa das massas populares, unidas na luta por uma nova França" [8].

Não se pode fazer nada melhor em matéria de chauvinismo e em chamados aos operários a se fazer massacrar na guerra imperialista através da Resistência. Para culminar, La Verité (n° 6, 15 nov 1940) lança a palavra de ordem de criação de Comitês de vigilância nacional, "para controlar o movimento". Tratava-se de dirigir, organizar o "movimento de comemoração do 11 de novembro de 1918" (festa da vitória do imperialismo francês durante a Primeira Guerra mundial) depois da manifestação nacionalista em Paris, sob o Arco do Triunfo, em 11 de novembro de 1940.

A entrada da URSS na guerra (Junho de 1941)

Desde a entrada na guerra por parte da URSS, a política dos Trotskistas evolui e tende a se homogeneizar no apoio comum à URSS. Porque, claro, "é necessário defender à URSS" [9] e por isso, "constituir comitês operários de resistência". Mas não se atrevem ainda a falar abertamente da Resistência: a Resistência francesa gaulista contra o ocupante é caracterizada então pelo Comitê francês como um movimento anti-imperialista da pequena burguesia. Mas a criação dos Comitês operários de resistência são apesar de tudo, a preparação e a porta entreaberta para defender abertamente a futura Resistência.

Nas teses adotadas em 1942 [10] pode-se encontrar uma expressão adornada de verborréia radical para camuflar de fato, uma política também burguesa, guerreira e chauvinista: "Na situação atual, a raiva da pequena e média burguesia se dirige naturalmente contra a dominação sobre a Europa do capital financeiro alemão e da Gestapo".

Eis aqui como através deste apoio "critico", os Trotskistas se justificam e se arrojam na guerra imperialista. A Social-democracia francesa durante a primeira guerra mundial tinha então justificado, seu apoio à burguesia francesa pela luta contra a reação prussiana. Os Trotskistas adornam sua participação na guerra imperialista com justificativas igualmente falaciosas. Para estes últimos tratava-se de lutar contra a Gestapo e o capital financeiro alemão. Onde está a diferença? Lênin e os revolucionários romperam com a Social-democracia e fundaram a 3ª Internacional para romper contra esta política militarista e imperialista. É toda esta experiência do movimento operário que os Trotskistas pisoteiam com estas Teses sobre a questão nacional.

Estas teses foram criticadas pelos grupos que publicam La Lutte de Classes e La Seule Voie (o ex-PCI) que as consideram como abandonos do derrotismo revolucionário e como "stalinismo de esquerda" [11]. Mas o que fizeram estes grupos?

La lutte de classes

Esta crítica que pode parecer revolucionária oculta de fato as mesmas posições burguesas de fundo. Já Falamos do ex-PCI.  A política do grupo La lutte de classes (ou grupo Barta, ancestral do agrupamento Lutte Ouvriere atual que cindiu do Comitê francês pela IV Internacional em outubro de 1939 para separar-se "de um meio pequeno burguês cujas práticas organizacionais procedem mais da social-democracia que de um bolchevismo verdadeiro" [12] não se encontra muito afastada fundamentalmente destes últimos. Toma partido pela URSS, o que quer dizer que esta confraria Trotskista, como as outras, acorrenta a classe operária na defesa de um campo imperialista: o campo stalinista contra o campo fascista: "É necessário ajudar à URSS por meio de uma política independente de classe. É necessário impedir que a máquina de guerra do imperialismo alemão funcione contra a URSS derrubando o capitalismo europeu (...). O Grupo Comunista (IV Internacional) chama os trabalhadores franceses a dar uma ajuda acentuada e sistemática à União Soviética (...) É necessário sabotar ao máximo a "reabilitação" imperialista. Nem um voluntário para prolongar a guerra!. Este texto termina com: "viva o exército vermelho!" " (La lutte de classes n° 3, nov. de 1942). Este apoio ao campo imperialista russo é justificado por este grupo com o argumento de que a URSS continua sendo um Estado "vermelho" fundado sobre "a economia planificada" [13]. E isso justifica então ações de sabotagem e uma atividade armada contra o aparelho militar alemão [14]. É assim, que este grupo Trotskista defendia a necessidade da luta contra o STO (Serviço de Trabalho Obrigatório) na Alemanha, e isso, ainda por meio da ação de sabotagem. "Os operários conscientes devem duplicar as possibilidades mínimas de ação legal, por meio da organização de núcleos clandestinos formados por operários seguros que considerarão todos os meios de propaganda e de ação que permitam à classe operária ganhar terreno". [15]

É assim, que um de seus militantes, Mathieu Bucholz que se ocupava da sabotagem ao STO, desapareceu [16], vítima certamente dos stalinistas. O grupo Lutte de masses justifica esta forma de resistência à Alemanha com a idéia de que todo operário francês que partia ao trabalho obrigatório nas fábricas alemãs, deixava livre então a um operário alemão que podia partir a bater-se na frente do Leste contra o exército vermelho e o "Estado operário degenerado", a URSS (!). É claro que esta palavra de ordem não tem nada a ver com a palavra de ordem internacionalista de denúncia a todos os campos imperialistas, para voltar suas armas contra sua própria burguesia. Esta palavra de ordem se aplicava do mesmo modo contra o Estado russo. Para Lutte de classes trata-se de sabotar os esforços de um campo imperialista para ajudar a outro, a URSS!

Como o vimos, Lutte Ouvriere que atualmente se vangloria de um suposto "internacionalismo" de seus ancestrais não tem nada a invejar dos outros grupos Trotskistas. A defesa do "Estado operário degenerado", a URSS, conduziu-lhe a enviar os proletários à carnificina imperialista.

E o cúmulo da abjeção. Face à Resistência não somente L.O. (Grupo francês Lutte Ouvrière [Luta Operária] que publica Lutte de classes [Luta de classes] jamais a denunciou, mas ao contrário, impulsionou os operários a participarem ativamente nela. É assim que o número 24 de Lutte de classes de 8 de fevereiro de 1944 desenvolve uma defesa "radical" e "revolucionária" da Resistência: "Onde quer que estejas, na Alemanha, (...) no maquis (N. do t: guerrilha rural da Resistência) ou nos grupos de partisans, se não podes ocultar-te nas cidades, não esqueças que és filho da classe operária que luta contra os capitalistas. (...) Nos grupos de resistência, nos maquis, exige teu armamento e a eleição democrática dos chefes pelos membros dos grupos".

Durante este período, é o Comitê francês pela IV Internacional quem leva a palma do chauvinismo. A 31 de março de 1943, La Verité [A Verdade] num artigo intitulado A segunda frente e a frente operária escreve: "Os aliados contribuirão primeiramente com as armas: seria indigno de revolucionários recusá-las, porque, sem armas, a luta contra o imperialismo, qualquer que seja, é impossível. Mas não é suficiente discutir sobre "a insurreição nacional", é necessário definir os meios e os objetivos. Libertação do território...)"..Eis aí como com uma fraseologia revolucionária a classe operária é chamada a fazer-se massacrar e continuar a guerra em favor de um campo que não é o seu. Claramente, diz aos operários: "É necessário fazer a guerra primeiro, é necessário fazer a união nacional com a burguesia, liberar o território e depois... será talvez a questão para vocês, a revolução".

Os revolucionários sabem o que esta linguagem chauvinista de chamados à união nacional entre todas as classes quer dizer. É a mesma linguagem que a Social-democracia utilizou durante a guerra de 1914 para justificar o alistamento da classe operária na guerra imperialista. Os revolucionários não têm mais do que uma só política, a defesa dos interesses da classe operária que são totalmente antagônicos aos da burguesia, aos do Estado capitalista. A política dos Trotskistas, como a da social-democracia conduz ao abandono do proletariado de seu terreno de classe, à sua derrota e a mais massacres de milhões dos seus. Mas em um período em que a classe se encontra vencida, como era o caso no momento da segunda guerra mundial, tais declamações "revolucionárias" são então ainda mais graves, porque empurram a classe operária à maior desmoralização terminando com a derrota. Eis aqui como, sob uma linguagem radical, os Trotskistas tocaram o fundo da abjeção e desempenharam para a classe operária o papel de recrutadores para os interesses imperialistas da burguesia.

Da reunificação do movimento Trotskista à "Libertação" (de Fevereiro ao verão de 1944)

O início do ano 1944 abre para os Trotskistas franceses e europeus um período chave: o avanço do exército vermelho faz as tropas alemãs retrocederem para além das fronteiras dos Estados bálticos e da Polônia e a situação da luta de classe na Itália anunciam sinais de crise revolucionária na Europa. Para enfrentar esta situação, os 2 grupos: o Comitê francês convertido novamente em 1940 em POI (Parti Ouvrier Internationaliste, [Partido Operário Internacionalista]) e o Comité Communiste Internationaliste [Comitê Comunista Internacionalista] se reagrupam em 1944 para formar um novo PCI (Parti Communiste Internationaliste, [Partido Comunista Internacionalista].

Os Trotskistas apóiam então a Resistência e enviam assim os operários ao massacre ainda que não desempenhassem um papel quantitativamente importante nos "maquis" devido ao fato afortunado de seu pequeno número, salvo na Bretanha (região francesa) onde o responsável era André Calves [17].

Nas Teses sobre a liquidação da segunda guerra imperialista e o levantamento revolucionário (IV Intetnationale n° 4, 5 de fev.-mar. de 1944) adotadas na Conferência européia da IV Internacional, é dito "Ante o caráter, em parte espontâneo do movimento dos partisans, expressão da revolta aberta e inevitável de amplas camadas trabalhadoras contra o imperialismo alemão... os B-L (bolcheviques-leninistas) estão obrigados a tomar em consideração esta vontade de luta das massas... Assim, os B-L não podem se contentar em denunciar que estas organizações trabalham a serviço do imperialismo... As seções da IV Internacional devem continuar esta política, tanto fora das organizações de partisans como no interior destas últimas". Dito de outra maneira, para ser menos dissimulado do que a conferência européia da IV Internacional, "podemos (enquanto Trotskistas) trabalhar no interior de organizações de partisans ainda que sejam nacionalistas".

Citemos alguns fatos!

  • Em 26 de maio de 1944 La Verité (órgão do PCl) demanda aos operários "estabelecer relações com os partisans vermelhos (!), os camponeses pobres...". Os Trotskistas chegam até a publicar uma revista dirigida aos partisans, Ohé partisans! [Ei partisans!] sob a responsabilidade de André Calves que tinha entrado nos FTP (Franco-Atiradores e Partisans: grupos armados paramilitares) da coluna Fabien.
  • Yvan Craipeau (membro do comitê central do PCI) entra em contato com Albert Bayet, presidente da Federação Nacional da Imprensa Francesa, para a legalização de La Verité [A Verdade] e estuda com ele a possibilidade de se tornar membro do Comitê Nacional da Resistência (CNR). Este último se mostra favorável e acerta a autorização à La Verité para aparecer desde agosto de l944 com fundos governamentais [18]. É o PCF (Partido Comunista Francês) quem vai se opor em seguida sob o pretexto de que La Verité não era um órgão da Resistência.
  • Mas é o chamado à "insurreição nacional" o que os mete definitivamente na participação de maneira efetiva e física no alistamento do proletariado em um campo imperialista: o dos anglo-americanos e russos. Os grupos operários criados desde 1943 (criados pelo ex-CCI), sobretudo o da seção de Puteaux-Surennes servirão de massa de manobra durante a "libertação" de Paris ao lado do PCF e outras organizações nacionalistas. Sob palavras de ordem "radicais" e de coloração "proletária" como: "estar com as massas" (boletim interno do POI), "greve geral", "milícias operárias" por oposição às "milícias patrióticas" do PCF, os operários serão empurrados a servir como carne de canhão em um combate que não é o seu. Neste registro, os Trotskistas se orgulham ainda que se lamentem... de não ter tido mais do que uma só seção com uma organização militar que representa uma milícia armada de 80 operários [19].

Seus grandes feitos armados...! O responsável militar do PCI, Henri Molinier é morto desde o início da insurreição "nacional" por um obus; um grupo de Trotskistas participa no assalto do Senado e outros na ação dos FTP. Assim André Calvés com a companhia FTP Saint-Just executa o prefeito colaborador de Puteaux, Barthélemy, antes de ser nomeado comissário técnico de sua companhia durante "a insurreição".

Limitaremos-nos a esses exemplos. É amplamente suficiente para pôr em evidência sua participação efetiva na segunda guerra mundial, para denunciar sua política nacionalista e sua passagem ao campo da contra-revolução durante a segunda guerra imperialista. Não se trata de erros isolados. É o resultado da política seguida pelo Secretariado europeu da IV Internacional e por todas suas seções européias.

Quanto ao grupo francês L.O (Lutte Ouvrière [Luta operária]) sob a cobertura do purismo, serve para emendar ao resto da "família". Retomemos o raciocínio de L.O.

  • De uma parte L.O. reivindica o "purismo" Trotskista que desejaria não ter tido uma posição de defesa de sua burguesia nacional [20]. Todo este jargão hipócrita não impede L.O. de reclamar sempre o Trotskismo que colaborou em todos seus componentes com a burguesia e de manter sempre boas relações com o secretariado Internacional da IV Internacional e com sua seção francesa atual, a LCR. Claramente, L.O. no fundo não tem nada a replicar contra as posições contrarrevolucionárias, burguesas e nacionalistas defendidas pela IV Internacional oficial durante a Segunda Guerra imperialista mundial [21].
  • Por outra parte, o "purismo" de Lutte de classes [Luta de classes] (ancestral da L.O.) não existe. Este grupo não tem nada a invejar dos seus primos Trotskistas: "O lugar de todo operário consciente é na milícia do povo: é somente aí onde pode lutar verdadeiramente por si mesmo e sua classe" (Autodefesa operária contra os bandos fascistas! artigo no n° 13 de 22 de junho de 1944).

É necessário afirmar alto e claro que L.O. participou como os outros da "insurreição nacional" e enviou os operários para se matarem em um terreno que não é o seu. A esse respeito há que a denunciar como os outros grupos Trotskistas.

A política dos Trotskistas nos Estados Unidos

Nos Estados Unidos onde o secretariado internacional da IV° Internacional se encontrava, o partido norte-americano (S.W.P, Socialist Workers Party, [Partido Socialista dos Trabalhadores]) que detinha a maioria no interior do Comitê Executivo Internacional, toma uma posição pacifista. Assim, quando os Estados Unidos entram na guerra em 1941 o SWP "aplaca" a posição do derrotismo revolucionário que é em "princípio" a sua. O partido não organiza nem manifestação, nem comício contra a entrada na guerra dos EUA. A burguesia acreditando estar às voltas com revolucionários internacionalistas e temendo que se levantem contra sua política guerreira incrimina 21 de seus dirigentes. Não somente o SWP não reage como ainda enquanto estes 21 dirigentes são acusados pelo governo de serem "internacionalistas" e de quererem transformar a guerra em guerra civil, se defendem firmemente negando tal acusação em seu processo de Minneapolis. Não se pode ser mais claro na submissão ao Estado burguês!

Natalia Trotsky e a seção espanhola da IV° Internacional se indignam ante esta atitude [22], mas mantêm ainda a ilusão de que as seções européias ao final da guerra poderão "corrigir" a corrente Trotskista. Teriam que voltar à realidade quando a política chauvinista e nacionalista das seções européias foi conhecida. Natalia Trotsky e Munis rompem então com o conjunto da corrente Trotskista [23]). O conjunto dos acontecimentos relatados aqui falam por si mesmos e denunciam a corrente Trotskista, a que se passou como um todo ao campo do capital.


[1] Les Trotskistes et la guerre [Os trotskistas e a guerra], 1940-44. Ed. Enthropos. Paris 1980.

[2] O Parti Socialiste Ouvrier et Paysan [Partido Socialista Operário e Camponês] nasceu o 8 de junho 1938 com uma cisão do SFIO social-democrata.

[3] Do nome do general De Gaulle, homem político francês de direita

[4] CF Teses sobre a situação no movimento operário e as perspectivas de desenvolvimento da IV° da conferencia

[5] Henri Molinier é o irmão de Raymond Molinier, militante bem conhecido desde os anos 1930 nas fileiras trotskistas.

[6] Sobre a política do Secretariado unificado da IV° internacional, comissão de Março 1944, 2P. Arquivas R. Prager e PCI, secretariado geral :"Esclarecimento considerando a atitude do companheiro Roger Foirier diante das organizações  antifascistas de jovens e do movimento da IV° Internacional desde 1940"

[7] Cf. Les Trotskiste et la guerre [Os trotskistas e a guerra]

[8] Só o povo da França pode reconstruir a França, em La Vérité [A Verdade]

[9] La Vérité [A Verdade]

[10] Tesess sobre a questão nacional (adotadas a unanimidade em julho de 1942 pelas secções da IV° internacional) em Quatrième internatinale [Quarta internacional] N° 2

[11] Volta a Lênin, 10 de fevereiro 1943, em Bulletin intérieur [boletim interno] do POI N° 12. O comitê francês pela IV° tinha tomado o nome de POI, Parti Ouvrier Internationaliste [Partido Operário Internacionalista] durante sua conferencia internacional dos 26 e 27 de dezembro 1942.

[12] Informe sobre a organização em La lutte de classes [A luta de classes], julho de 1943.

[13] As vitórias do exercito vermelho serão a vitória do socialismo em La lutte de classes [A luta de classes] n° 10, 28 de fevereiro 1943.

[14] O avanço soviético aproxima a hora da revolução socialista na Europa. Viva os Estados Unidos socialistas de Europa! em La lutte de classes [A luta de classes] n° 8, 20 de janeiro 1943.

[15] La lutte de classes [A luta de classes] n° 26, 16 de março 1944.

[16] La lutte de classes [A luta de classes] n° 67, 18 de setembro 1945.

[17] Les Trotskiste et la guerre [Os trotskistas e a guerra] p. 205. Resistente desde os primeiros momentos, André Calves  escreveu um livro em 1984 (Sem botas nem medalhas) onde se mostra muito crítico com as divisões imperantes no "movimento de resistência ainda que o faça a partir de uma postura democrática e antifascista.

[18] Entrevista com Albert Demazière, citado em Les Trotskistes et la guerre [Os trotskistas e a guerra]

[19] Entrevista com Raoul, citado em Les Trotskistes et la guerre [Os trotskistas e a guerra]

[20] Vimos como na realidade os antepassados deste grupo participaram de ações de sabotagem do STO.

[21] Natalia Trotski (Carta do 9 de maio 1951 em Les enfants du prophète [Os filhos do profeta]

[22] Munis em  Les enfants du prophète [Os filhos do profeta] p. 97 e sua brochura Le SWP et la guerre impérialiste [O SWP e a guerra imperialista].

[23] Explicacion y llamamiento a los militantes, grupos e secciones de la IV° Internacional. Setembro de 1949, secção espanhola da IV° Internacional.

A função dos trotskistas atuais

  • 3931 leituras

Trinta anos depois do congresso de fundação da IV Internacional, os grupos políticos que perpetuavam a tradição trotskista vegetavam à sombra dos partidos comunistas stalinistas e às vezes ainda, alguns, em seu interior. Desde finais dos anos 60, entretanto, esses grupos viram reforçadas suas fileiras e sua importância no seio do aparelho político do capital. Mas esta mudança notável não pode explicar-se por uma transformação de suas posições políticas. O que se constata realmente é a persistência dos erros de Trotsky levados até o absurdo, quer dizer, a defesa dos interesses burgueses. Os grupos trotskistas de hoje, todos são a continuidade da política contrarrevolucionária dos trotskistas durante a 2ª guerra mundial e defensores do famoso "Programa de Transição" quaisquer que sejam por outra parte as diferenças de interpretação que cada um desses grupos possa fazer. Que se julgue:

Garantia de esquerda e correia de transmissão dos sindicatos

O programa de transição estabelecia como princípio fundamental que os militantes da IV Internacional deviam participar dos sindicatos. O resultado foi que em todas as partes os trotskistas se tornaram fiéis guardiões do enquadramento das máquinas sindicais. Certo que, eles criticam as eternas "traições" das "direções burocráticas", mas omitem, obviamente, de ajudar à classe operária a lutar contra os sindicatos. Para os trotskistas, trata-se de preservar a "forma" sindical, o "conteúdo" do sindicalismo e somente eliminar alguns punhados de maus "burocratas", como se estes últimos não fossem o puro produto da forma e o conteúdo do sindicalismo na fase de decadência do capitalismo! De fato para os trotskistas trata-se de competir com os burocratas colocados no seu mesmo terreno, e quando chegam, à através de manobras, ocuparem um mandato sindical, os trotskistas se revelam como perfeitos dublês  dos stalinistas ou dos social-democratas.

Assim, enquanto a classe operária abandona a via sindical, os trotskistas tentam dar uma aparência de vida proletária a estes verdadeiros órgãos de polícia nas empresas que são os sindicatos. Embutidos nas engrenagens dos sindicatos, os trotskistas fazem parte dos que preparam as derrotas das lutas operárias, sua sabotagem e seu enquadramento. Militantes de base sempre, delegados sindicais freqüentemente, chefes sindicais às vezes, eles participam do conjunto de campanhas de mistificação organizadas pelos diferentes sindicatos e mantêm todas as ilusões que subsistem no seio da classe operária (reformismo, corporativismo, fetichismo da fábrica, chauvinismo, legalismo, etc)

Quando os operários nas lutas enfrentam os sindicatos e alguns sindicalizados rasgam sua carta de adesão, os trotskistas propõem a conciliação com os sindicatos, tenta fazer retornar às filas sindicais quem as abandona sobre bases ilusórias do tipo: "voltemos para os sindicatos para lutar contra as direções traidoras!", o que desorienta ainda mais os operários... Certos trotskistas chegam a propor a adesão a dois sindicatos ao mesmo tempo para favorecer a unidade sindical fraudulentamente assimilada à unidade operária. Claramente, se trata para os trotskistas, com inúmeros métodos sórdidos, de propor aos operários pressionar aqueles que "os traem" para que se unam e tornem "democráticos" (quer dizer, outorguem mais postos aos trotskistas e pervertam ainda mais operários combativos). Em todos os casos o papel dos trotskistas contribui sempre para fortalecer e afirmar o enquadramento sindical.

Quando nas lutas surgem comitês de greve, os trotskistas, que têm a cara de pau de apresentarem-se como partidários de verdadeiros órgãos unitários da classe operária, são evidentemente os primeiros a exigir que os sindicatos possam continuar expressando e ser representados. Cada vez, em nome da solidariedade e da unidade operária e da extensão da luta, demandam, ou melhor, imploram o apoio dos sindicatos, permitindo-lhes assim retomar em suas mãos o movimento graças a seu aparelho burocrático, de retomar o controle de mais lutas "espontâneas" a fim de poder quebrá-las.

De fato, garantia de esquerda e correias de transmissão dos sindicatos, os trotskistas (tal como o resto dos outros esquerdistas ) ao mascarar a natureza e a função real de tais órgãos antiproletários, participam ativamente no desarmamento da classe.

Cúmplices dos massacres do proletariado

O Programa de Transição destacava, mediante a palavra de ordem de "frente única operária" e o de "governo operário e camponês" a luta pela união dos partidos que se reclamavam da classe operária e ainda do campesinato... Mais de trinta anos depois, continuam apresentando os partidos social-democratas e stalinistas como partidos "operários" que teriam o simples defeito de serem "reformistas" (quando a base material do reformismo desapareceu desde o início do século com a entrada do capitalismo em sua decadência), os trotskistas chamam à unidade destes últimos e convidam os trabalhadores a levá-los ao poder. Quer dizer a levar ao poder (aí onde não estão) os assassinos dos operários e revolucionários alemães, russos ou espanhóis nos anos 20 e trinta, aos fornecedores de bucha de canhão das duas últimas carnificinas mundiais e de todos os enfrentamentos imperialistas posteriores. Certo, eles "criticam" a política levada por estes partidos, pedem-lhes uma vez ou outra que "rompam com a burguesia" (!!!), o que é o cúmulo do cinismo! Cada vez que o Estado capitalista necessitou dos partidos de esquerda, para reprimir a classe operária, para alistá-la na guerra, para reconstruir e administrar a economia nacional, para assegurar o bom funcionamento dos poderes públicos, dos serviços "sociais", responderam e continuam respondendo "presente"... Pedir-lhes que "rompam com a burguesia", é lhes pedir para trocar de natureza, de aconselhar o capital que faça o hara-kiri [1], é pedir que um tanque de guerra se transforme em ambulância. Semelhante política, criminosa e absurda, conduz a:

  • reforçar as ilusões dos operários sobre a natureza desses partidos que não têm de operário mais que o sangue de inúmeros proletários que tem feito derramar;
  • fazer regressar para o interior da esquerda, mediante uma crítica pseudorradical, os elementos que se desvencilharam;
  • preparar o massacre da classe operária nas mãos destes mesmos partidos de esquerda.

Peças de reposição do aparelho de Estado

O Programa de Transição afirmava a necessidade de participar das eleições e do parlamento. Desde o pós-guerra de 1945 - a continuidade obriga! - os trotskistas não faltaram em uma só das eleições que dão o ritmo à vida política da burguesia decadente. Desde finais dos anos 60, na França, por exemplo, os trotskistas apostaram fundo neste tipo de intervenção.

Começam por recordar - às vezes, não sempre- essa realidade que o terreno eleitoral não é verdadeiramente o terreno de luta para a classe operária, mas depois destas polidas referências dos princípios revolucionários, tiram a melhor justificativa para a participação no circo eleitoral burguês destinado a desviar e mistificar a consciência da classe operária. Os pretextos invocados são do mais "realista": "Os operários não compreenderiam que em tais circunstâncias, os revolucionários não tivessem nada a dizer", "é a ocasião, o momento em que toda a atenção dos operários se concentra sobre as eleições, de fazer uma agitação revolucionária, de utilizar as tribunas que nos oferece a burguesia". O que quer dizer claramente: "os operários são mistificados, atomizados, conservam ilusões sobre as eleições, então participamos da manutenção desta situação de mistificação."

Quanto à agitação "revolucionária" dos trotskistas, resume-se em apoiar de palavra "as lutas legítimas dos trabalhadores" (o que qualquer padre de esquerda pode fazer), "exigir" dos partidos "operários" que defendam verdadeiramente os interesses dos trabalhadores e rompam, é obvio, com a burguesia, em "denunciar à direita" em uma linguagem mais radical que o da própria esquerda, de vez em quando, alguma referência aos conselhos operários ou à violência de classe. Tudo isso se reserva, sobretudo, para o início da campanha, ou para o primeiro turno das eleições (segundo o sistema eleitoral)... depois do qual, bem entendido, fiéis a sua verdadeira natureza de "apoio crítico" da esquerda do capital, chama freqüentemente o voto por esta última com o fim, dizem eles, de "não contrariar" o nível de "consciência" da classe operária que eles confundem cinicamente com as ilusões dos operários. Como o dizia o grupo trotskista Lutte Ouvriere, "nenhuma de nossas vozes deve lhe faltar"... para poder assumir sua função de defensor do capital nacional no mais alto nível do aparelho de Estado. Novamente, a função dos trotskistas e esquerdistas em geral, é fazer voltar para ao terreno eleitoral e democrático os operários que se afastam e isso com toda uma fraseologia pseudorrevolucionária que serve finalmente para engajar os operários no meio da esquerda e especialmente os que começam a perder as ilusões nela. Por outro lado, terá que se recordar que aí onde os trotskistas alcançaram certo peso eleitoral, a classe operária pagou caro (Ceilão, Bolívia,...)

Defesa «radical»do capitalismo de Estado

O Programa de Transição destacava uma série de reivindicações econômicas chamadas "transitórias" na medida em que, supostamente, respondiam às necessidades objetivas das massas, ao mesmo tempo eram inaceitáveis pelo capitalismo. Deviam permitir, se a classe operária lutasse por fazê-las cumprir, uma dinâmica de luta de classe em que os trotskistas apareceriam como os dirigentes "naturais" do proletariado e lhe conduziria à revolução. A lógica das reivindicações "transitórias" consistia em dar uma natureza intrinsecamente revolucionária a determinadas exigências econômicas formuladas de antemão pelos peritos "em revolução" que os trotskistas supõem ser .

Trinta anos depois, esta problemática tomou toda sua significação contrarevolucionária... Atualmente, as reivindicações salariais "radicais", a escala móvel de salários, a repartição das horas de trabalho, as nacionalizações sem indenização e sob "controle operário" das empresas em quebra, bancos, monopólios, etc., toda a miscelânea reivindicativa que os trotskistas destacam não serve mais que para enganar e iludir os trabalhadores seja mediante uma reciclagem do papel dos sindicatos, ou mediante as mistificações "autogestionárias" como o "controle operário"; no que concerne às reivindicações salariais, os trotskistas se contentam sobrepujando em relação às reivindicações oficiais da esquerda acrescentando alguma percentagem. A escala móvel de salários é uma medida utópica que não faria mais que manter o nível de exploração da classe operária alcançado no momento de sua aplicação, e implicaria um reforço do peso dos sindicatos encarregados evidentemente de "controlar" a aplicação desta escala móvel. A repartição das horas entre todos os trabalhadores é uma proposta de racionalização da exploração capitalista que implica na permanência do trabalho assalariado, o caráter semiutópico desta proposta não deve ocultar seu conteúdo demagógico e reacionário. Quanto às nacionalizações, são perfeitamente aceitáveis pelo capitalismo e desde que são aplicadas em grande escala, não tem melhorado a sorte da classe operária, nem facilitado sua luta. Quanto ao "controle operário", não é mais que uma forma entre outras das mistificações eleitas pela burguesia para fazer a classe operária participar na gestão de sua própria exploração sob o controle do Estado burguês. Pode-se julgar o caráter "revolucionário" de tais reivindicações.

Mediante este sistema de reivindicações tão elaborado e que varia ademais segundo os diferentes grupos trotskistas que, não deixam de brigar a respeito do oportuno de tal ou qual reivindicação específica, contribuem em vários níveis para debilitar e desviar as lutas operárias:

  • Reforçam as ilusões dos operários em relação à possibilidade de obter melhorias duradouras de suas condições de vida e de trabalho no capitalismo decadente.
  • Participam do isolamento das lutas operárias no marco econômico do capital, na oficina, na fábrica, na categoria ou na corporação, e na nação.
  • Atuam como partidários das medidas de capitalismo de Estado no seio da classe operária passando estas medidas como marcos para o "socialismo". Igualmente aos outros partidos de esquerda se situam, portanto no terreno da manutenção do capitalismo decadente.
  • Mantêm, com sua hábil separação entre luta econômica e luta política da classe operária, a dificuldade para a classe operária de tomar consciência de sua força, de seu papel histórico, do conteúdo revolucionário de suas lutas reivindicativas.
  • Retardam, portanto o surgimento da revolução proletária esperando manter a classe operária em uma simples visão "sindicalista" de sua luta.

Por outro lado, os trotskistas continuam sustentando que na URSS a economia teria algo de "socialista", que o Estado reflete relações de produção que a classe operária deveria conservar (dado que as teria instaurado em 1917!!), assim que o proletariado russo não deveria: nem destruir o Estado que lhe oprime, nem transformar radicalmente o sistema econômico no qual é explorado ferozmente. Assim, quando os operários russos, como os do mundo inteiro, lutavam e lutam contra a exploração furiosa que sofrem, confrontam-se violentamente com os sindicatos, a polícia do Estado, o exército "vermelho", atacam o "Partido Comunista" no poder, quer dizer o Estado capitalista fiador de sua exploração e miséria, os trotskistas destacam a luta por uma simples mudança de equipe no seio das engrenagens do aparelho de Estado, a luta para trocar os "maus" burocratas pelos "bons."... São os defensores mais nocivos do capitalismo de Estado que propõem aos operários a sua "democratização".

Apóstolos do imperialismo russo

O Programa de Transição preconizava a "defesa incondicional da URSS" em caso de guerra e destacava por outro lado a ordem de independência nacional para os países atrasados submetidos ao imperialismo.

Fiéis à letra de tais orientações, apesar de seus desacordos sobre a maneira de concretizá-las atualmente, os trotskistas no seu conjunto não perderam, desde o fim da segunda guerra mundial, uma só ocasião de apoiar ao bloco imperialista russo contra o bloco imperialista americano.

Detrás de uma linguagem antiimperialista demagógica, têm militado para que o imperialismo americano abandone suas incursões nas regiões e nos países do globo que constituem o objeto da rivalidade entre os dois grandes blocos, quer dizer para que deixe o lugar ao imperialismo russo.

Sob pretexto de "lutar pela independência nacional" - quer dizer pelo direito de cada burguesia de poder explorar sem compartilhar a "sua" própria classe operária no marco "das fronteiras nacionais de seu Estado" - os trotskistas chamaram os operários dos países do "terceiro mundo" para se envolver e morrer ao lado da fração da burguesia nacional "mais progressista", "menos reacionária" ou "mais revolucionária" que se revelará de fato ser a mais "pró-russa".

De fato os trotskistas lutaram para que os trabalhadores do mundo inteiro apóiem essas "lutas de libertação nacional" abrindo ainda mais o fosso entre os proletários de cada país, fazendo-os assassinar-se entre eles, desviando-os de seu verdadeiro inimigo: a burguesia mundial, cada burguesia nacional, cada imperialismo.

Assim, como se viu, a atividade dos grupos trotskistas desde finais dos anos 60 se inscreve completamente na linha da degeneração dos anos 30 e da sua passagem ao campo burguês durante a Segunda Guerra mundial. O crescimento relativo dos grupos trotskistas nestes últimos anos se explica, à luz das mudanças acontecidas na vida do capitalismo no final dos anos 60 e sua entrada em uma nova fase de crise econômica, com o ressurgimento das lutas do proletariado mundial. É à luz dos problemas e necessidades que se impõem ao capital que se pode compreender o reforço do lugar dos trotskistas.

 (Revolution Internationale N° 28, órgão da CCI na França; Agosto de 1976)


[1] Harakiri é um dos mais intrigantes e fascinantes aspectos do código de honra do samurai: consiste na obrigação ou dever do samurai de suicidar-se em determinadas situações, ou quando julga ter perdido a sua honra.

Um encontro de comunistas internacionalistas em América latina

  • 4326 leituras

Publicamos na seqüência a Tomada de Posição comum adotada por 7 grupos e organizações presentes em 8 países da América Latina[1] que dá conta dos trabalhos de um Encontro Internacionalista celebrado recentemente[2].

Este encontro, cujo projeto havia sido formulado há um ano, foi possível em primeiro lugar pela emergência desses grupos que, na sua grande maioria (excetuando a OPOP e a CCI) não existiam até 3 anos atrás. Em segundo lugar, este Encontro não teria sido possível sem a existência de uma vontade comum de todos os participantes em romper o isolamento e desenvolver um trabalho conjunto[3].

A base deste trabalho foi a aceitação pelos participantes dos critérios - expostos na Tomada de Posição - que reconhecem como constituintes de uma delimitação entre o campo do proletariado e o campo da burguesia.

A primeira atividade deste Encontro era necessariamente a discussão política que permitisse lograr o entendimento sobre as convergências e divergências existentes entre os participantes com o objetivo de elaborar um marco de discussões que levasse a um esclarecimento dos desacordos.

Saudamos calorosamente o fato de este Encontro ter acontecido e igualmente ter sido capaz de suscitar discussões importantes como a situação atual da luta de classes internacional e a natureza da crise que está sacudindo o capitalismo. Temos plena confiança que a continuidade do debate poderá alcançar conclusões frutíferas[4].

Somos conscientes de que o Encontro tem o significado de um pequeno passo no caminho que leva a constituição de um pólo internacional de referência cuja existência, debates públicos e intervenção, possam orientar aos companheiros, coletivos e grupos que estão emergindo no mundo inteiro a procura de uma resposta proletária internacionalista à situação cada vez mais grave para a qual o capitalismo empurra a humanidade.

Porém, se compararmos com experiências passadas - por exemplo, as Conferências Internacionais da Esquerda Comunista celebradas faz 30 anos[5] - este Encontro significa uma superação de certas debilidades que se manifestaram à época. Enquanto as conferências foram incapazes de adotar uma tomada de posição comum diante da guerra do Afeganistão que significou uma grave ameaça, hoje a Tomada de Posição adotada unanimemente pelos participantes defende com clareza as posições proletárias diante da crise do capitalismo.

Em particular queremos destacar a firme denuncia que a Tomada de Posição realiza das alternativas capitalistas de "Esquerdas" que hoje estão em voga em todo o continente americano e que provocam muitas ilusões em escala mundial. Desde os Estados Unidos com o fenômeno Obama até a Patagônia argentina, o continente se vê sacudido por governos que dizem defender aos pobres, aos trabalhadores, aos marginalizados e que se apresentam como portadores de um capitalismo "social", "humano", ou, nas suas versões mais "radicais" - como é o caso de Chavez na Venezuela, Morales na Bolívia e Correa no Equador - pretendem representar nada menos que o "socialismo do século XXI".

Parece-nos da maior importância que diante dessas enganações se erga um pólo unitário de minorias internacionalistas, fraternal e coletivo, que abra o caminho para discutir e formular posições de solidariedade internacional, de luta de classes intransigente, de combate pela revolução mundial, diante do capitalismo de Estado, o nacionalismo, a perpetuação da exploração representada por esses "novos profetas"

CCI (26-04-09)

Tomada de posição comum

A luta pelo comunismo autêntico, ou seja, por uma sociedade sem classes, sem miséria e sem guerras, volta a suscitar um interesse crescente por parte de minorias do mundo inteiro. Como testemunho disto, em março de 2009, por iniciativa da CCI - Corrente Comunista Internacional; e da OPOP - Oposição Operária foi celebrado na America do Sul um Encontro de discussão internacionalista no qual participaram diferentes grupos, círculos e indivíduos da America Latina que se situam claramente sobre as posições internacionalistas e proletárias.

Além da CCI e da OPOP, participaram os grupos :

  • Grupo de Luta Proletária (Peru),
  • Anarres (Brasil),
  • Liga pela Emancipação da Classe Trabalhadora (Costa Rica e Nicarágua),
  • Núcleo de Discussão Internacionalista da República Dominicana
  • Grupo de Discussão Internacionalista do Equador.

Camaradas do Peru e do Brasil também participaram do encontro. Outros camaradas de outros países manifestaram a sua intenção em participar, porém, não puderam fazê-lo por razões materiais ou administrativas.

Todos os participantes se reconhecem nos critérios que resumimos a seguir e que, em linhas gerais, haviam servido igualmente para a celebração da conferência dos grupos da Esquerda Comunista dos anos 1970 e 1980:

  • 1) Reclama-se o caráter proletário da Revolução de outubro de 1917 e da IC comunista, submetendo essas experiências a um balanço crítico que orientem novas tentativas revolucionárias do proletariado.
  • 2) Rechaçar sem reservas a idéia de que hoje existam no mundo países com regimes socialistas e com governo operário, mesmo que sejam qualificados como "degenerados"; rechaçar de igual maneira qualquer forma de governo capitalista de Estado, tais como aqueles que se sustentam sob a ideologia do ″socialismo do século XXI″.
  • 3) Denunciar a todos os Partidos Socialistas e os Partidos Comunistas e todos seus acólitos como partidos do capital.
  • 4) Rechaçar categoricamente a democracia burguesa, o Parlamentarismo, e os processos eleitorais, armas com as quais a burguesia tem logrado reiteradas vezes enquadrar e desviar as lutas proletárias: eleger entre democracia e ditadura, fascismo e antifascismo.
  • 5) Defender a necessidade de que os revolucionários internacionalistas avancem até a formação de uma organização internacional da vanguarda proletária, arma indispensável para a revolução da classe proletária.
  • 6) Defender o papel dos Conselhos Operários como órgãos de poder proletário, assim como a autonomia da classe trabalhadora em relação a outras classes e segmentos de classes da sociedade.

Neste encontro foram pautadas as seguintes discussões:

  • 1. O papel do proletariado e a sua situação atual, a correlação de força entre as classes;
  • 2. A situação do capitalismo (no qual se desenvolvem as lutas atuais) e como reflexão mais global a decadência e/ou a crise estrutural do capitalismo;
  • 3. A devastação do meio ambiente, acelerada sobremaneira pelo sistema capitalista, pondo em risco a existência de vida no planeta.

Este ponto não foi discutido durante o encontro por falta de tempo.

Ficou acordado que será discutido através dos canais a serem criados na Internet.

Sobre o Ponto 1, Foram usados exemplos relativos à America Latina para ilustrar as análises sobre o estágio atual da luta de classes, porém a preocupação da maior parte das intervenções foi concebê-las como parte da situação geral do combate do proletariado em escala internacional. Dito isto, o Encontro decidiu expressar uma insistência particular na denuncia dos diferentes governos que se dizem de esquerda, que dirigem a maior parte dos países da América Latina, como inimigos mortais do proletariado e de sua luta; também decidiu denunciar  aqueles que apóiam mesmo que "criticamente" esses governos. De igual maneira, o Encontro denunciou a criminalização das lutas dos trabalhadores por parte desses governos e postulou que a classe trabalhadora não pode ter ilusões com os métodos legalistas e democráticos e que esta só deve confiar em sua própria luta autônoma. Esta denuncia se aplica especialmente aos seguintes governos:

  • Kirchner na Argentina,
  • Morales na Bolívia, Lula no Brasil,
  • Correa no Equador,
  • Ortega na Nicarágua,
  • E muito especialmente o governo de Chaves na Venezuela, cujo pretendido "socialismo do século XXI" não é outra coisa senão que uma enorme mentira destinada a controlar e a reprimir a luta do proletariado naquele país e enganar os trabalhadores dos demais países.

Sobre o ponto 2, todos os participantes concordaram sobre a gravidade da crise atual do capitalismo, a necessidade de compreendê-la mais profundamente desde uma perspectiva teórica e histórica.

Como conclusão, os participantes concordaram sobre os seguintes aspectos:

  • A celebração do encontro constitui uma manifestação da tendência atual de desenvolvimento das lutas e da tomada de consciência revolucionária do proletariado em escala internacional;
  • O agravamento considerável da atual crise do capitalismo não pode, ao final, mais do que reforçar a tendência ao desenvolvimento das lutas dos trabalhadores, fazendo cada vez mais necessária a defesa das posições revolucionárias dentro do proletariado;
  • Neste sentido, todos os participantes acham necessária a continuação do esforço despendido na celebração deste Encontro com o objetivo de se constituir em uma parte ativa na luta do proletariado internacional;

De maneira concreta, como primeiro passo desse esforço, decidimos o seguinte:

  • 1) A abertura de um site na Internet em língua espanhola e portuguesa, sob a responsabilidade coletiva dos grupos participantes do Encontro. Foi considerada também a possibilidade de publicar um folheto em língua espanhola, baseado no conteúdo do sitio na Internet.
  • 2) A publicação nesse site:
  • da presente tomada de posição (que será igualmente publicada no site dos grupos participantes),
  • das contribuições que serviram de preparação para este encontro,
  • de uma síntese das atas das diferentes discussões celebradas e de todas as contribuições dos grupos e elementos presentes assim como de todo outro grupo ou camarada que se reconheça nos princípios e preocupações que animaram o Encontro

Entre estas preocupações, o Encontro assinala muito especialmente a necessidade de um debate aberto e fraternal entre os revolucionários e rechaça todo tipo de sectarismo ou qualquer espírito de seita.


[1] México, República Dominicana, Brasil, Costa Rica, Nicarágua, Equador, Peru e Venezuela.

[2] Os assistentes foram Oposição Operária -OPOP- (Brasil), LECO (Liga por la Emancipación de la Clase Obrera, Costa Rica - Nicarágua) Anarres (Brasil), GLP (Grupo de Lucha Proletaria), Grupo de Discusión Internacionalista de Ecuador, Núcleo de Discussão Internacionalista da República Dominicana, assim como companheiros destes países que participaram a título individual

[3] Temos dado conta desta efervescência na América Latina no nosso artigo Duas Novas secções da CCI. Ver, https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/Saudacao_as_novas_seccoes_da_CCI_na_Turquia_e_Filipinas [37]

[4] Dentre as decisões do Encontro uma foi a de criar um fórum na Internet onde se publicarão a Tomada de Posição comum e os debates.

[5] Ver, por exemplo, o artigo da Revista Internacional n° 16, Segunda conferencia de los grupos de la izquierda comunista https://es.internationalism.org/node/2065 [38]

 

Uma voz internacionalista em Israel

  • 3333 leituras

O artigo que reproduzimos abaixo foi inicialmente publicado no site israelense de Indymedia, bem como no site Libcom.org (em inglês). Foi escrito por um companheiro em Israel que, apesar de se encontrar numa posição extremamente minoritária, sentiu a necessidade de denunciar a febre patriótica que assola Israel/Palestina depois do ataque israelense em Gaza. Sua decisão de dar a conhecer finalmente esta declaração se deve, em parte, ao fato de que numerosos participantes do referido fórum Libcom (entre os quais estão o próprio coletivo Libcom, a CCI, bem como o EKS, grupo da Esquerda comunista na Turquia) mostramos-lhe nossa solidariedade e lhe animamos a fazê-lo. Trata-se, sem dúvida, de uma modesta, porém significativa contribuição, à emergência de uma verdadeira oposição ao nefasto nacionalismo que habitualmente se apodera de todo o Oriente Médio. 

(10/1/09)

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O que é uma bandeira.

Uma tentativa de apresentar uma perspectiva internacionalista sobre a atual situação na Cisjordânia depois do ataque israelense à faixa de Gaza.

Muita gente em Israel recordará uma coisa dos protestos do sábado, 03/01/2009: que os organizadores foram à Corte Suprema para ter garantias de que lhes seria permitido utilizar uma bandeira palestina.

Agora, eu sou favor de que qualquer um possa ir a toda parte com a bandeira que quiser ou sem bandeira. Mas cabe perguntar-se: Por que levar a bandeira da Palestina que é a mesma que anteriormente a OLP utilizava?

O objetivo destes protestos é, supostamente, o de deter o ataque a Gaza. O que tem a ver a bandeira palestina com isso? Podem nos dizer que: "Bom, é um apoio à Resistência palestina" A essa resposta eu replicaria: "De que resistência palestina estamos falando?". Na faixa de Gaza os palestinos mais sensatos desejam tirar o inferno da área atacada, não resistirem sendo bombardeados. E até onde teria que resistir esses bombardeios? Até poder fazer sinais aos combatentes que chegam?

Esta bandeira representa o nacionalismo palestino, da mesma forma que a bandeira israelense representa o nacionalismo israelense. Agora, muitos dos leitores deste site provavelmente poderão associar o nacionalismo israelense com a violência, a opressão, e com o delgado véu que utilizam os capitalistas para ocultar sua dominação sobre nosso país. Mas por que não aplicamos a mesma análise ao nacionalismo palestino?

Como dissemos, os palestinos na Cisjordânia estão sendo brutalmente oprimidos e reprimidos quando tentam protestar contra essa mesma guerra. Por quê? Porque a Autoridade Palestina não quer nem ouvir crítica alguma nem mover-se o mínimo da sua autêntica razão de ser, subcontratada que foi por Israel para o controle dos Territórios Ocupados .

Há exatamente alguns meses, esses mesmos líderes do Hamas que agora - escondidos em seus bunkers e complexos de segurança-, gravaram suas mensagens de resistência ao "seu" povo, recusaram pagar aos professores, destruíram os sindicatos palestinos, mataram palestinos inocentes nas ruas quando se enfrentaram com seus concorrentes do Fatah. Também atiram foguetes contra alvos civis aleatórios em lugar de destinar recursos para melhorar verdadeiramente a situação dos palestinos superexplorados e desempregados.

Enquanto protestamos contra o brutal bombardeio de Gaza por parte do nacionalismo israelense, devemos também recordar que o nacionalismo palestino é simplesmente menos poderoso, porém não menos brutal. Infelizmente a polêmica sobre a bandeira contribui para fortalecer o nacionalismo como um ideal, tornando mais fácil desqualificar a quem se oponha ao governo, pois lhe converteria automaticamente num apoiador do "inimigo".

Certamente isto é cinicamente utilizado para justificar o fracasso de tais protestos. Este protesto tinha sido convocado pela frente Hadash [1] do Partido Comunista Israelense, um dia antes do início oficial da campanha eleitoral deste partido. E Hadash precisa estender a sua base eleitoral entre os votantes nacionalistas palestinos do interior da Linha Verde [2] para manter sua presença eleitoral nas próximas eleições face às ameaças que representam partidos como os Nacionalistas Seculares (Al-Tajmua) e o Movimento Muçulmano. E isto, uma vez mais, é dar a mão ao nacionalismo, e definitivamente, dar a mão aos capitalistas.

E isso só conduzirá a uma repetição de ciclos de violência que não poderão desaparecer até que compreendamos que esses nacionalismos não fazem mais do que nublarmos a consciência e impedir que nos fixemos na questão essencial: que estamos sendo enviados para matar e morrer, para enfrentarmos a serviço de pessoas que não servem aos nossos interesses senão aos seus próprios. E isto vale tanto para Israelenses como para Palestinos. Desatemos o nó górdio do nacionalismo e avançaremos no nosso caminho de uma melhor vida para todos.

 (A versão deste artigo no Indymedia finaliza com um "link" ao artigo da CCI sobre Gaza: ver https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/Gaza_A_solidariedade_com_... [39])



[1] Nota da CCI: Hadash é um partido político esquerdista israelense que se define como "Partido Árabe-Judeu". Muitos de seus eleitores e líderes são cidadãos árabe-israelenses em Israel. Tem três deputados no parlamento israelense( Extraído de Wikipedia).

[2] Nota da CCI: A Linha Verde separa Israel da Cisjordânia.

XVIIIº congresso da CCI: rumo ao agrupamento das forças internacionalistas

  • 3508 leituras

No final de maio, a CCI celebrou o seu XVIIIº Congresso Internacional. Como sempre temos feito até hoje, e como é tradição do movimento operário, oferecemos aos nossos leitores da nossa imprensa os principais ensinamentos deste congresso porque não é algo que pertence a nossa organização e sim que interessa a toda classe trabalhadora, da qual faz parte a CCI.

Na resolução sobre as atividades da CCI adotada pelo congresso, se diz:

"A aceleração da situação histórica, inédita na história do movimento proletário, se caracteriza pela conjunção destas duas dimensões:

  • a extensão da crise econômica aberta mais grave da existência do capitalismo, combinada com a exacerbação de tensões interimperialistas e de um avanço lento, porém progressivo, em profundidade e em extensão do amadurecimento na classe operária, iniciado desde 2003;
  • e o desenvolvimento de um meio internacionalista, particularmente perceptível nos países da periferia do capitalismo.

Essa aceleração realça ainda mais a responsabilidade política da CCI,  colocando exigências mais elevadas em termos de análises teórico-políticas e de intervenção na luta de classe, e em direção dos elementos em busca (...)"

O balanço que se pode fazer do XVIIIº Congresso Internacional da nossa organização deve, pois, basear-se na sua capacidade para fazer frente a essas responsabilidades.

Para uma organização comunista verdadeira e séria, sempre é delicado declarar de alto e bom som que tal ou qual das suas ações foi um êxito. E isso por várias razões.

Em primeiro lugar, porque a capacidade de uma organização que luta pela revolução comunista para estar à altura das suas responsabilidades não se julga a curto, mas a longo prazo, visto que o seu papel, embora seja permanentemente ancorado na realidade histórica da sua época, consiste, a maior parte do tempo, não em influir na realidade imediata, pelo menos em larga escala, mas sim em preparar os acontecimentos futuros .

Em segundo lugar, porque para os membros de uma organização sempre existe o perigo de "enfeitar as coisas", mostrar uma indulgência excessiva diante das debilidades de um coletivo a cuja vida entregam seus esforços e que têm permanentemente o dever de defender contra os ataques de todos os partidários da sociedade capitalista, reconhecidos ou ocultos. Na história sobram exemplos de militantes convencidos e entregues a causa do comunismo, que por "patriotismo partidário" não foram capazes de identificar as debilidades, as derivas, quando não a traição da sua organização. Ainda hoje, entre os elementos que defendem uma perspectiva comunista, continua havendo que consideram que seu grupo, cujos efetivos podem varias vezes contar-se com os dedos de uma mão, é o único "Partido comunista internacional" ao qual se unirão as massas proletárias um dia no futuro e que, refratários a qualquer crítica ou a qualquer debate, consideram os demais grupos do meio proletário como falsários.

Conscientes desse perigo de fazer ilusões, e com a prudência necessária que se deriva dele, não tememos afirmar que o XVIIIº Congresso da CCI se colocou a altura das exigências enunciadas mais acima e criou as condições para que possamos prosseguir nesta direção.

Não podemos aqui dar conta de todos os elementos que possam cimentar esta afirmação.  Só destacaremos os mais importantes:

  • o congresso começou seus trabalhos pela ratificação da integração de duas novas secções territoriais, nas Filipinas e Turquia;
  • A presença no congresso de quatro grupos do meio proletário;
  • a abordagem de abertura na nossa organização para o exterior demonstrada , em particular, por essa  presença;
  • sua vontade de analisar com lucidez as dificuldades e debilidades que tem de superar nossa organização;
  • o ambiente fraterno e entusiasta que animou o congresso.

A integração de duas novas secções territoriais

Nossa imprensa já deu conta da integração das novas secções da  CCI nas Filipinas e Turquia (a responsabilidade do congresso era validar a decisão de integração que tinha sido adotada pelo órgão central da nossa organização no início de 2009)[i]. Como escrevemos naquela ocasião: "A integração dessas duas novas secções amplia consideravelmente sua extensão geográfica". Precisávamos também os dois fatos seguintes que se referem a essas integrações:

  • não se deveram a um "recrutamento" apressado e corrido (da maneira trotskista e inclusive, infelizmente, a de alguns grupos do campo proletário) mas que eram resultado, como é a prática na CCI, de todo um trabalho de debates profundos durante vários anos com os companheiros de EKS na Turquia e de Internasyonalismo nas Filipinas, trabalho do qual já falamos na nossa imprensa;
  • Contribuiu para desmentir totalmente as acusações "de eurocentrismo" que varias vezes foram feitas contra a nossa organização.

A integração de duas novas secções não é um fato freqüente na nossa organização. A última integração remonta a 1995 com a secção da Suíça. Quer dizer, a entrada dessas duas secções (que vinha depois da constituição de um núcleo no Brasil, em 2007) foi vivida pelo conjunto dos militantes da CCI como um acontecimento muito importante e muito positivo. Essas integrações confirmam tanto as análises que nossa organização tem feito durante anos sobre o novo potencial de desenvolvimento da consciência de classe contido na situação histórica atual, como a validade da política dirigida aos grupos e elementos que se orientam para posições revolucionárias. E ainda mais porque estavam presentes no congresso as delegações de quatro grupos do meio internacionalista.

A presença dos grupos internacionalistas

No balanço que fizemos do congresso anterior da CCI, destacamos toda a importância que havia dado ao mesmo a presença, pela primeira vez há décadas, de quatro grupos do meio internacionalista procedentes do Brasil, Coréia, Filipinas e Turquia. Desta vez estavam também presentes quatro grupos do dito meio.  Porém não foi em nada uma espécie de "imobilismo", posto que dois dos grupos presentes no último congresso se converteram desde então em secções da CCI e que tivemos a satisfação de acolher dois novos grupos: um segundo grupo vindo da Coréia e um grupo com base na América Central (Nicarágua e Costa Rica), a LECO (Liga pela emancipação da Classe Operária) que havia participado do "Encontro de comunistas internacionalistas" [ii] da América Latina há alguns meses com o impulso da CCI e da OPOP, o grupo internacionalista  do Brasil com o qual a nossa organização mantém relações fraternas e positivas há alguns anos. Este grupo esteve mais uma vez presente no nosso congresso. Foram convidados outros grupos que haviam participado também no "encontro", porém não puderam enviar uma delegação porque a Europa está se convertendo cada vez mais em um baluarte contra as pessoas que não nasceram no "clube" tão fechado dos "países ricos".

A presença dos grupos do meio internacionalista foi algo muito importante para o êxito do congresso e, em particular, nos debates. Estes camaradas mostraram todos plenamente sua amizade perante os militantes da nossa organização, formularam perguntas, em particular sobre a crise econômica e a luta de classes, em termos aos quais não estamos acostumados nos nossos debates internos, o que estimulou a reflexão do conjunto da nossa organização.

E, finalmente, a presença desses camaradas foi também uma confirmação a mais da vontade de abertura da CCI, um objetivo colocado há vários anos, uma abertura para os demais grupos proletários e também para os elementos que se aproximam das posições comunistas. Para pessoas fora da nossa organização, não é muito fácil fazer o que falávamos antes, se iludir; ou iludir aos demais. Expressão da abertura tem sido também nossas inquietações e reflexões, especialmente frente à investigação e os descobrimentos no âmbito científico [iii], que se concretizaram no convite de um membro do mundo científico a uma sessão do congresso.

O convite a um cientista

Para celebrar à nossa maneira "o ano Darwin" e manifestar o desenvolvimento na nossa organização do interesse pelas questões cientificas, pedimos a um estudioso especializado no tema da evolução da linguagem (autor, em particular, de "Aux origens Du langage" ("Rumo à origem da linguagem") que fizesse uma apresentação diante do congresso dos seus trabalhos, baseados evidentemente nos métodos darwinianos. As reflexões originais de Jean-Louis Dessalles [iv]) sobre a linguagem, seu papel no desenvolvimento dos vínculos sociais e da solidariedade na espécie humana, tem uma relação com as reflexões e debates que temos desenvolvido, e continuam desenvolvendo-se na nossa organização sobre a ética e a cultura do debate. Após exposição do pesquisador se seguiu com um debate que tivemos que limitar no tempo devido às dificuldades da ordem do dia, porém que continuaria durante horas considerando que os temas abordados apaixonaram a maioria dos participantes do congresso.

Queremos aqui agradecer a Jean-Louis Dessalles que aceitou, mesmo não compartilhando nossas idéias políticas, dedicar parte do seu tempo para enriquecer a reflexão na nossa organização. Também queremos agradecer o tom amistoso das respostas dadas às perguntas e objeções dos militantes da CCI.

O Debate sobre a situação internacional

Os trabalhos do congresso abordaram os pontos clássicos próprios de um congresso internacional:

  • a análise da situação internacional;
  • as atividades e a vida da nossa organização.

A Resolução sobre a situação internacional, que também publicamos, é como uma síntese dos debates do congresso sobre a analise do mundo atual. É evidente que não se pode tratar todos os aspectos abordados nos referidos debates (nem nos informes preparatórios). Tem três objetivos principais:

  • Entender as verdadeiras causas e o que está em jogo com o agravamento atual e sem precedentes da crise econômica do sistema capitalista, diante de todas as mentiras que os partidários deste sistema não param de propalar;
  • Entender o impacto sobre os conflitos imperialistas que necessariamente terá a ascensão ao poder do democrata Barak Obama na primeira potência mundial, que foi apresentado como portador de uma nova "repartição de cartas" nestes conflitos e de uma esperança de que se atenuem;
  • Extrair as perspectivas para a luta de classes, especialmente nas condições criadas pelos brutais ataques que tem começado sofrer o proletariado por causa da violência da crise econômica.

Sobre o primeiro aspecto (a compreensão do que está em jogo com a crise atual do capitalismo), é importante destacar os seguintes aspectos:

"...a crise atual é a mais grave que tem conhecido o sistema desde a Grande Depressão que começou em 1929. (...) Muito ao contrário, o que faz a crise financeira é ilustrar que a fuga em direção ao endividamento, que permitiu superar a superprodução, não pode prosseguir eternamente (...) Na realidade, mesmo que o sistema capitalista não vá se derrubar como um castelo de cartas (...) a perspectiva é a de um afundamento crescente em seu atoleiro histórico, quer dizer a volta a uma escala cada vez major das convulsões que hoje o afetam ".

O Congresso não pode, obviamente, dar respostas definitivas a todas as questões colocadas pela crise atual do capitalismo. Por um lado, porque cada dia agrega novas repercussões, obrigando os revolucionários a dedicar uma atenção constante e permanente à evolução da situação e a prosseguir o debate a partir desses novos elementos. Por outro lado, porque nossa organização não é homogênea sobre vários aspectos de análises da crise do capitalismo. Não é muito menos, a nosso parecer, uma prova de debilidade da CCI. Durante toda a história do movimento operário, os debates nunca cessaram, no marco do marxismo, sobre o tema das crises do sistema capitalista. A CCI já começou a publicar alguns aspectos dos seus debates internos sobre esse tema [v] pois tais debates não são "propriedade privada" da nossa organização, mas que pertencem ao conjunto da classe operária. E estamos determinados a prosseguir neste caminho. Além disso, a Resolução sobre as perspectivas da atividade da nossa organização, adotada pelo congresso, pede explicitamente que se desenvolvam os debates sobre outros aspectos da análise da crise atual para que a CCI esteja armada o melhor possível para responder claramente as questões colocadas à classe trabalhadora e aos elementos que estão decididos a comprometer-se na luta para jogar abaixo o capitalismo.

No que se refere à nova "repartição de cartas" após a eleição de Obama, a resolução responde muito claramente que:

"a perspectiva para o planeta após a eleição de Obama à cabeça da primeira potência mundial não é muito diferente da situação que tem prevalecido até agora: continuidade dos enfrentamentos entre potências de primeiro ou segundo plano, continuidade da barbárie bélica com conseqüências cada vez mais trágicas (fome, epidemias, desemprego massivo) para as populações que vivem nas zonas disputadas"

Por fim, no que se refere a perspectiva da luta de classes, a Resolução, como os debates, tenta avaliar o impacto do agravamento brutal da crise capitalista:

"O agravamento considerável da crise econômica do capitalismo hoje está claro, é um fator de primeira importância no desenvolvimento das lutas operárias. (...) Assim vão amadurecendo as condições para que a idéia da necessidade de derrubar este sistema possa desenvolver-se significativamente no seio do proletariado. Porém para ser capaz de orientar-se para uma perspectiva revolucionária, não basta a classe operária perceber que o sistema capitalista está em um beco sem saída, que teria de deixar passagem a outra sociedade. Porém para estar capacitado em orientar-se para uma perspectiva revolucionária, não lhe basta à classe operária perceber que o sistema capitalista está em um beco sem saída, que terá de deixar passagem a outra sociedade (...) Para que a possibilidade de que a revolução comunista possa ganhar um terreno significativo na classe trabalhadora, é necessário que esta possa adquirir confiança nas suas próprias forças, e isso passa pelo desenvolvimento das suas lutas massivas. O imenso ataque que está sofrendo já em escala internacional deveria ser a base objetiva para as lutas. No entanto, a forma principal que está tomando hoje esse ataque, os desempregos massivos, não favorece, em um primeiro tempo, a emergência de tais movimentos (...) Por isso, se no período vindouro não assistirmos a uma resposta de envergadura diante dos ataques, não deveremos por isso considerar que a classe renunciou em lutar pela defesa dos seus interesses. Em uma segunda etapa (...),será então que combates operários de grande amplitude poderão desenvolver-se melhor".

Os debates sobre as atividades e a vida da CCI

Foi apresentado um informe para fazer um balanço das principais posições nos debates de fundo que estão se desenvolvendo na CCI. Durante os dois últimos anos, temos dedicado uma parte importante dos ditos debates à questão econômica, cujas divergências já mencionamos neste artigo.

Outro aspecto dos nossos debates foi dedicado a questão da natureza humana , dando lugar a um debate animado, alimentado por muitas contribuições valiosas. Este debate está longe de acabar, expressa uma convergência global com os textos de orientação publicados na Revista Internacional, "La confianza y la solidariedad em la lucha del proletariado" (nº 111), "Marxismo y ética" (nº127) e "La cultura del debate, una arma de la lucha de clases" (nº 131), porém continua havendo muitas interrogações ou reservas que se colocam sobre tal ou qual aspecto. Assim que estiverem suficientemente desenvolvidos para poder ser publicados externamente, a CCI, de acordo com a tradição do movimento proletário, não deixará de fazê-lo. Indicamos finalmente o surgimento recente de um desacordo profundo com os três textos citados anteriormente ("recente" com respeito à publicação já antiga de alguns deles); essa posição defendida por um camarada da secção da Bélgica-Holanda que saiu recentemente da organização considera estes textos como não marxistas (veja mais abaixo).

Quanto às atividades e a vida da CCI, o congresso fez um balanço com saldo positivo para o período precedente, inclusive considerando que continuamos com debilidades que devem ser superadas:

"O balanço de atividades dos dois anos passados demonstra a vitalidade política da CCI, sua capacidade para compreender a situação histórica, para abrir-se ao exterior, ser um fator ativo no desenvolvimento da consciência de classe, sua vontade de implicar-se nas iniciativas de trabalho comum com outras forças revolucionárias. (...) E no aspecto da vida interna da organização, o balanço de atividade é também positivo, apesar de dificuldades reais que continuam existindo, sobretudo no tecido organizativo e, em certa medida, no que se refere a centralização" (Resolução sobre as atividades da CCI).

O congresso dedicou, efetivamente, parte dos seus debates para examinar as debilidades organizativas que subsistem na CCI. De fato elas não são algo nada "específico", mas que são próprias de qualquer organização do movimento operário permanentemente submetida ao peso da ideologia burguesa ambiente. A verdadeira força de tais organizações, como assim foi com o partido bolchevique, sempre consistiu em manter-se em condições de encará-las com lucidez para poder combatê-las. Esse mesmo espírito animou os debates do congresso sobre esta questão.

Um dos pontos que se discutiu foi, em particular, o das debilidades que afetaram a nossa secção na Bélgica-Holanda, da qual se afastaram alguns militantes recentemente, em particular, engendradas pelas acusações emitidas pelo camarada M. Desde algum tempo, ele acusava a nossa organização e especialmente a comissão permanente do seu órgão central, de dar as costas à cultura do debate sobre a qual o congresso precedente havia discutido amplamente [vi] considerando-a como uma necessidade para a capacidade das organizações revolucionárias de colocar-se a altura das suas responsabilidades. O camarada M., que defendia uma posição minoritária sobre a análise da crise capitalista, se considerava vítima de "ostracismo" e considerava que as suas posições eram desprestigiadas de forma deliberada para que a CCI não pudesse discutir delas. Diante de tais acusações, o órgão central da CCI decidiu constituir uma comissão especial cujos três membros foram designados pelo próprio camarada M. e que, após vários meses de trabalho, de conversações e de exame de centenas de páginas de documentos, chegou à conclusão que não tinham o menor fundamento. O congresso não pode senão lamentar que nem o camarada M. nem parte dos camaradas que o seguiram, tenham esperado que esta comissão entregasse suas conclusões antes de abandonar a CCI.

Na realidade, o congresso pôde constatar, em particular na discussão que dedicou a seus debates internos, que existe hoje na nossa organização uma verdadeira preocupação para fazer avançar a cultura do debate. E isto não só puderam comprovar os militantes da CCI: os delegados das organizações convidadas chegaram às mesmas conclusões dos trabalhos do congresso:

"A cultura do debate da CCI, dos camaradas da CCI, é impressionante. Quando voltar a Coréia, compartirei minha experiência com meus camaradas." (um dos grupos vindo da Coréia)

"É [o congresso] uma boa ocasião para clarificar minhas posições; em muitas discussões, encontrei uma verdadeira cultura do debate. Creio que devo fazer o máximo para desenvolver as relações entre [meu grupo] e a CCI e tenho a intenção de fazê-lo.  Espero que possamos trabalhar juntos um dia por uma sociedade comunista" (outro grupo da Coréia) [vii].

A CCI não pratica a cultura do debate a cada dois anos no seu congresso internacional e sim, como atestou a intervenção da delegação da OPOP no debate sobre a crise econômica, faz parte da relação permanente entre nossas organizações. Esta relação é capaz de ser reforçada apesar das divergências sobre distintos temas, dentre eles a análise da crise econômica: "Quero em nome da OPOP, saudar a importância deste congresso. Para a OPOP, a CCI é uma organização irmã, como eram irmãos o partido de Lênin e o de Rosa Luxemburg. Significa que havia entre um e outro divergências, em toda uma série de enfoques, de opiniões e, portanto de concepções teóricas, porém havia sobretudo uma unidade programática no que se refere à necessidade da derrubada revolucionária da burguesia e à instauração da ditadura do proletariado, da expropriação imediata da burguesia e do capital".

A outra dificuldade observada na Resolução de atividades se refere à questão da centralização. Para superar estas dificuldades o congresso colocou também na sua ordem do dia o debate de um texto mais geral relativo à questão da centralização. Este debate, se já foi útil para reafirmar e dar precisão às concepções comunistas sobre esta questão para a "velha guarda" da nossa organização, se revelou particularmente importante para os novos companheiros e as novas secções que se integraram recentemente a CCI.

Com efeito, uma das características significativas do XVIIIº Congresso da CCI foi a presença, que os "antigos" constataram com agradável surpresa, de um número relativamente elevado de "caras novas" entre as quais a jovem geração, especialmente, estava presente.

O entusiasmo pelo futuro

A presença importante de jovens participantes no congresso foi um fator importante do dinamismo e de entusiasmo que impregnou seus trabalhos. Contrariamente aos meios de comunicação burgueses, a CCI não cultiva o que poderia chamar-se "juvenilismo", porém a entrada de uma nova geração de militantes em nossa organização - e que também é a característica dos demais grupos participantes considerando a juventude da maioria dos seus delegados - é da maior importância para a perspectiva da revolução proletária. Por um lado, como os Icebergs, é a "ponta emergente" de um profundo processo de tomada de consciência na classe operária mundial. Por outro, cria as condições de um revezamento das forças comunistas. Como disse a Resolução adotada pelo congresso: "O caminho que conduz aos combates revolucionários e a derrubada do capitalismo está ainda longe e difícil (...) porém em nada pode ser um fator de desânimo para os revolucionários, de paralisia do seu compromisso na luta proletária. Muito pelo contrário!" Embora os "velhos" militantes da CCI conservem toda sua convicção e seu compromisso, é a essa nova geração que caberá dar uma contribuição decisiva aos combates revolucionários futuros do proletariado. E de agora em diante, o espírito fraterno, a vontade de união, assim como a de lutar contra as armadilhas da burguesia, o sentido da responsabilidade, todas as qualidades amplamente compartilhadas pelos elementos desta nova geração presentes no congresso - militantes da CCI ou dos grupos convidados - são o melhor indício para sua capacidade de colocar-se à altura da sua responsabilidade. Isso é o que disse, dentre outras coisas, a intervenção do jovem delegado da LECO, sobre o Encontro internacionalista que foi celebrado na América Latina há alguns meses: "O debate que começamos a desenvolver reúne grupos e indivíduos que buscam uma unidade sobre bases proletárias e requerem espaços de debate internacionalista, necessita este contato com os delegados da Esquerda comunista. A radicalização da juventude e minorias na América Latina, na Ásia, permitirá que este pólo de referência esteja identificado por mais grupos ainda que cresçam numérica e politicamente. Isto nos dará armas para intervir, para enfrentar as armadilhas que são propostas pelo esquerdismo, o "socialismo do século XXI", o sandinismo, etc. A posição alcançada no Encontro Latino já é uma arma proletária. Saúdo as intervenções dos camaradas, que expressam um verdadeiro internacionalismo, uma preocupação para esta projeção política e numérica da Esquerda comunista a nível mundial".

CCI (12 de julho de 2009)


[i] Leia Saudação às novas secções da CCI na Turquia e Filipinas [37]. https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/ [40]

[ii] Sobre este encontro, leia Um encontro de comunistas internacionalistas em América latina. https://pt.internationalism.org/ICConline2009/Um_encontro_de_comunistas_... [41]

[iii] Como já evidenciamos, nos diversos artigos que publicamos recentemente sobre Darwin e o darwinismo.

[iv] O leitor que queira ter uma idéia dessas reflexões pode consultar a página WEB de J-L Dessalles: https://perso.telecom-paristech.fr/jld/ [42]

[v] Ver particularmente, na Revista Internacional n° 138, o artigo de debate: Em defesa da tese do capitalismo de Estado keynesiano-fordista.

[vi] Veja a este respeito "17o congreso de la CCI: un refuerzo internacional del campo proletario"  e nosso texto de orientação "La cultura del debate: un arma de la lucha de clase" (Revista internacional nos 130 y 131).

[vii] Esta impressão sobre a qualidade da cultura do debate que se manifestou no congresso também foi assinalada pelo cientista que convidamos e que nos enviou a seguinte mensagem: "Agradeço uma vez mais pela excelente relação mútua que houve com a "comunidade Marx". É verdade que passei um bom momento com vocês".


URL de origem:https://pt.internationalism.org/cci/200901/209/icconline-2009

Ligações
[1] https://www.marxists.org/espanol/tematica/histsov/pcr-b/cap4.htm [2] http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp [3] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2008/epoca_das_guerras_e_das_revolucoes_Decadencia_do_capitalismo.htm [4] https://pt.internationalism.org/tag/1/2/decad%C3%AAncia-do-capitalismo [5] https://www.charlesdarwin.fr/ [6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Fita_de_M%C3%B6bius [7] https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Darwin_e_o_Movimento_Operario [8] https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/d/darwin.htm [9] https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/k/kautsky.htm [10] https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/e/engels.htm [11] https://www.marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/index.htm [12] https://www.marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/index.htm [13] https://es.internationalism.org/cci-online/200904/2538/a-proposito-del-libro-el-efecto-darwin-una-concepcion-materialista-de-los-ori [14] https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/m/marx.htm [15] https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/m/malthus.htm [16] https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/v/voltaire.htm [17] https://www.marxists.org/portugues/pannekoe/ano/darwinismo/index.htm [18] https://es.internationalism.org/accion-proletaria/200701/1242/israelpalestina-la-lucha-obrera-a-pesar-de-la-guerra [19] https://pt.internationalism.org/tag/2/18/guerra [20] https://pt.internationalism.org/tag/2/35/gaza [21] https://es.internationalism.org/ccionline/2009_oil [22] https://es.internationalism.org/node/2589 [23] http://www.marxists.org/./estadoerevolucao/index.htm  [24] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/decadencia_do_capitalismo_Que_m%C3%A9todo_cient%C3%ADfico [25] https://es.internationalism.org/rint81marx [26] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2008/Resolucao_situacao_internacional_adotada_17_congresso_CCI.html [27] https://es.internationalism.org/node/2446 [28] https://es.internationalism.org/node/2107 [29] https://es.internationalism.org/node/2247 [30] https://pt.internationalism.org/icconline/2006_como-se-fazer-militante [31] https://en.internationalism.org/icconline/2008/02/turkey [32] https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista [33] https://pt.internationalism.org/icconline/2007/leninismo-stalinismo [34] https://www.marxists.org/portugues/sedova/1951/05/09.html [35] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200608/1028/en-memoria-de-munis-militante-de-la-clase-obrera [36] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2007/Espanha_1936_Franco_e_a_Republica_massacram_o_proletariado.htm [37] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/Saudacao_as_novas_seccoes_da_CCI_na_Turquia_e_Filipinas [38] https://es.internationalism.org/node/2065 [39] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/Gaza_A_solidariedade_com_as_v%C3%ADtimas_da_guerra_implica_lutar_contra_todos_os_exploradores [40] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/ [41] https://pt.internationalism.org/ICConline2009/Um_encontro_de_comunistas_internacionalistas_em_America_latina
 [42] https://perso.telecom-paristech.fr/jld/