A indignação tomou uma dimensão internacional
As consequências da crise capitalista são muito duras para a imensa maioria da população mundial: deterioração das condições de vida, desemprego prolongado durante anos, precariedade que torna impossível a mínima estabilidade vital, situações extremas de pobreza e fome.
Milhões de pessoas percebem com preocupação como se evapora a possibilidade de uma “vida estável e normal”, de “um futuro para os filhos”. Isto tem levado a uma profunda indignação, a sair da passividade, a tomar as ruas e as praças e se questionar sobre as causas de uma crise que, na sua fase atual, se prolonga há 5 anos.
A indignação tem se aprofundado pela arrogância, ganância e indiferença aos sofrimentos da maioria, com a que se comportam os banqueiros, políticos e demais representantes da classe capitalista. Mas também pela impotência que manifestam os governos diante dos graves problemas da sociedade: suas medidas só aumentam a miséria e o desemprego sem dar nenhuma solução.
O movimento de indignação se estendeu internacionalmente. Surgiu na Espanha onde o governo socialista adotou um dos primeiros e mais draconianos planos de austeridade; na Grécia, símbolo da crise da dívida soberana; nos Estados Unidos, templo do capitalismo mundial; no Egito e Israel, situados em cada uma das frentes do pior e mais arraigado conflito imperialista, o do Oriente Médio.
Apesar do efeito nocivo do nacionalismo (presença de bandeiras nacionais nas manifestações na Grécia, no Egito ou nos Estados Unidos), a consciência de que se trata de um movimento global começa a se desenvolver. Na Espanha a solidariedade com os trabalhadores na Grécia se expressa nos gritos "Atenas aguanta, Madrid se levanta" [Atenas resiste, Madrid se levanta]. Os grevistas de Oakland (EUA, novembro 2011) diziam "Solidariedade com o movimento de ocupações a nível mundial". No Egito, foi aprovada a Declaração do Cairo em apoio ao movimento nos Estados Unidos. Em Israel, se bradava "Netanyahu, Mubarak, El Assad, são a mesma coisa" e faziam contato com trabalhadores palestinos.
Atualmente o pico desses movimentos já passou e embora se despontem novas lutas (Espanha, Grécia, México) muitos se perguntam: Para que serviu essa maré de indignação? Ganhamos alguma coisa?
É necessário fazer um balanço considerando tanto o que foi positivo quanto as debilidades e limitações.
"Tomada da praça!": lema comum dos movimentos
Há décadas que não se via multidões ocupando ruas e praças para tentar lutar por seus próprios interesses, apesar das ilusões ou confusões que existem no seu seio.
Essas pessoas, os trabalhadores, os explorados, os rotulados como uns fracassados indolentes incapazes de ter iniciativas nem de fazer nada coletivamente, puderam se unir, compartilhar iniciativas e romper a passividade asfixiante à qual a normalidade cotidiana desse sistema nos condena.
Foi uma injeção de moral, o princípio do desenvolvimento da confiança na sua própria capacidade, a descoberta da força que dá a ação coletiva de massas. O cenário social está mudando. O monopólio sobre os assuntos públicos de políticos, experts, “grandes homens”, começa a ser colocado em questão por multidões anônimas que querem se fazer ouvir.
Trata-se de um frágil ponto de partida. As ilusões, as confusões, as inevitáveis altas e baixas do estado de ânimo, a repressão, os perigosos desvios impostos pelas forças de enquadramento com as quais o Estado Capitalista conta (os partidos de esquerda e os sindicatos), irão impor passos atrás, derrotas amargas. Trata-se de um caminho longo e difícil, repleto de obstáculos e onde não existe nenhuma garantia de triunfo, o próprio fato de começar a andar é a primeira vitória.
As Assembléias coração do movimento
As multidões não se limitaram à postura passiva de gritar seu mal-estar, tomaram posição ativa de se organizar em Assembleias. As Assembleias massivas materializam o lema da Primeira Internacional (1864) de que "A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores". Inscrevem-se na continuidade da tradição do movimento operário que explode na Comuna de Paris e toma sua expressão mais elevada na Rússia em 1905 e 1917, continuando na Alemanha de 1918, Hungria em 1919 e 1956 e Polônia em 1980.
Assembleias Gerais e Conselhos Operários são a forma genuína de organização da luta do proletariado e o núcleo de uma nova organização da sociedade.
Assembleias para se unificar massivamente, começando a romper as cadeias que nos atelam mais à escravidão assalariada: a atomização, o “cada um por si”, o fechamento no gueto do setor ou da categoria profissional.
Assembleias para pensar, discutir e decidir conjuntamente, tornar-se coletivamente responsáveis pelo que se decide, participando todos tanto da decisão como na execução do aprovado.
Assembleias para construir a confiança mútua, a empatia geral, a solidariedade, os quais não só são imprescindíveis para levar adiante a luta bem como serão os pilares de uma futura sociedade sem classes nem exploração.
2011 viu uma explosão da autêntica solidariedade que nada tem a ver com a hipócrita e interessada "solidariedade" que nos apregoam: manifestações em Madrid para libertar os detidos ou impedir que a polícia fizesse a detenção de imigrantes; atos massivos contra os despejos na Espanha, Grécia ou Estados Unidos; em Oakland "A assembléia de greve aprovou o envio de piquetes e ocupar qualquer empresa ou escola que punir empregados ou estudantes de qualquer forma por participar da Greve geral de 2 de novembro". Foi possível viver momentos, ainda que episódicos, onde qualquer um pudesse se sentir protegido e defendido por seus semelhantes, o que contrasta fortemente com a “normalidade” nessa sociedade que é um angustiante sentimento de falta de defesa e vulnerabilidade.
A cultura do debate: a luz que ilumina o futuro
A consciência necessária para que milhões de trabalhadores transformem o mundo não se adquire recebendo aulas magistrais ou palavras de ordem geniais de chefes iluminados, é o fruto de uma experiência de luta acompanhada e guiada por um debate massivo que analisa o vivido tendo em conta o passado, porém sempre para o futuro, pois como dizia um cartaz na Espanha "Não há futuro sem revolução".
A cultura do debate, isto é, a discussão aberta que parte do respeito mútuo e do escutar ao outro atentamente, começou a germinar não somente nas Assembléias como em torno delas: foram organizadas bibliotecas ambulantes, celebraram-se encontros, palestras, intercâmbios... Uma vasta atividade intelectual com meios precários foi improvisada nas ruas e praças. E, como as Assembléias, isto significou a retomada com a experiência passada do movimento operário.
Diante da cultura dessa sociedade que propõe lutar por “modelos de êxito” que são a fonte de milhões de fracassos, contra os estereótipos alienantes e falsificadores que martela a ideologia dominante e seus meios de comunicação, milhares de pessoas têm começado a procurar uma autêntica cultura popular, feita por elas mesmas, tratando de desenvolver um critério próprio, crítico e independente. Falaram da crise e das suas causas, do papel dos bancos etc. Falaram de revolução, ainda que nesse recipiente tenha se vertido muitos líquidos, às vezes confusos; falaram de democracia e ditadura, sintetizando nisso dois gritos complementares: "chamam de democracia e não o é" e "é uma ditadura e não se vê".
Já foram dados os primeiros passos para que apareça uma verdadeira política da maioria, para além do mundo de intrigas, mentiras e manobras obscuras que caracteriza a política dominante. Uma política que aborda todos os elementos que nos afetam, não só a economia ou a política, mas igualmente a destruição do meio ambiente, a ética, a cultura, a educação ou a saúde.
O proletariado tem a chave do futuro
Se tudo isso faz de 2011 o ano do princípio da esperança, temos de nos ater em um olhar lúcido e crítico sobre os movimentos vividos, seus limites e debilidades que são, ainda, imensos.
Se um número crescente de pessoas em todo o mundo se convence de que o capitalismo é um sistema obsoleto, que "para que a humanidade possa viver, o capitalismo deve morrer", existe a tendência a reduzir o capitalismo a um punhado de "males" (financeiros sem escrúpulos, ditadores impiedosos) quando é uma rede de relações sociais que tem de ser atacada na sua totalidade e não se dispersar perseguindo suas múltiplas e variadas manifestações (as finanças, a especulação, a corrupção dos poderes político-econômicos).
Está mais que justificado o rechaço à violência que o capitalismo exala por todos seus poros (repressão, terror e terrorismo, barbárie moral). No entanto, este sistema não poderá ser abolido por uma mera pressão pacífica e cidadã. A classe minoritária não abandona voluntariamente o poder e se guarnece em um Estado que na sua versão democrática se legitima com eleições a cada 4 ou 5 anos, com partidos que prometem o que nunca fazem e fazem o que nunca dizem; e com os sindicatos que mobilizam para desmobilizar e acabar assinando tudo o que a classe dominante lhes apresenta na mesa. Somente uma luta massiva, tenaz e obstinada, poderá dar aos explorados a força necessária para destruir os meios de abatimento com que o Estado conta, e tornar realidade o grito muito repetido na Espanha de "Todo o poder às Assembleias".
Embora o slogan de "somos 99% diante de 1%", tão popular no movimento de ocupações dos Estados Unidos, revela um princípio de compreensão das hemorrágicas divisões de classe que nos afetam, a maioria dos participantes nos protestos se vê como "cidadãos de cabeça erguida" que querem ser reconhecidos dentro de uma sociedade de "cidadãos livres e iguais".
No entanto, a sociedade está dividida em classes. Uma classe capitalista que tem tudo e não produz nada e uma classe explorada – o proletariado – que produz tudo e tem cada vez menos. O motor da evolução social não é o jogo democrático da "decisão de uma maioria de cidadãos" (este jogo é muito mais a máscara que encobre e legitima a ditadura da classe dominante) mas a luta de classes.
O movimento social necessita se articular ao redor da luta da principal classe explorada – o proletariado – que produz coletivamente as principais riquezas e assegura o funcionamento da vida social: fábricas, hospitais, escolas, universidade, escritórios, portos, construção, correios. Em alguns movimentos em 2011 começou a se perceber sua força: a onda de greves que aconteceu no Egito que obrigou a descartar Mubarak. Em Oakland (Califórnia) os "ocupantes" convocaram uma greve geral, indo ao porto e conseguindo apoio ativo de trabalhadores portuários e motoristas de caminhão. Em Londres os eletricistas em greve e os ocupantes de Saint Paul convergiram em ações comuns. Na Espanha, as assembleias na praça e alguns setores em luta tenderam a se unificar.
Não existe oposição entre luta de classe do proletariado moderno e as necessidades profundas das camadas sociais espoliadas pela opressão capitalista. A luta do proletariado não é um movimento particular ou egoísta mas a base do "movimento independente da imensa maioria" (Manifesto Comunista).
Retomando de maneira crítica as experiências de dois séculos de luta proletária, os movimentos atuais poderão se beneficiar das tentativas passadas de luta e libertação social. O caminho é longo e repleto de enormes obstáculos, e disso dava conta a tão repetida palavra de ordem na Espanha "Não é que estamos indo devagar, é que vamos muito longe". Ao criar um debate o mais amplo possível, sem nenhuma restrição nem obstáculos, para preparar conscientemente novos movimentos, poderá tornar realidade que OUTRA SOCIEDADE DISTINTA DO CAPITALISMO É POSSÍVEL.
Corrente Comunista Internacional (12-03-2011)
WWW.internationalism.org
A gravidade da situação enfrentada pela humanidade é cada vez mais óbvia. A economia capitalista mundial, após quatro décadas tratando de sua crise aberta, se afunda diante de nossos olhos. A perspectiva colocada pela destruição do meio ambiente aparece mais sombria a cada nova descoberta científica. Guerra, fome, repressão e corrupção formam parte da vida cotidiana de milhões de pessoas.
Ao mesmo tempo, a classe trabalhadora e outras camadas oprimidas da sociedade estão começando a resistir às exigências capitalistas de sacrifício e austeridade. Revoltas sociais, ocupações, manifestações e greves surgiram em toda uma série de países, do norte da África à Europa e da América do Norte à América do Sul.
O desenvolvimento de todos estes conflitos e contradições confirma mais que nunca a necessidade da presença ativa de uma organização de revolucionários, capaz de analisar rapidamente a evolução da situação, falar claramente com uma voz unificada por cima de fronteiras e continentes, participar diretamente nos movimentos dos explorados e contribuir no esclarecimento de seus métodos e fins.
Não é nenhum segredo que as forças que a CCI conta são extremamente limitadas comparadas com as responsabilidades enfrentadas. Estamos sendo, a nível mundial, testemunhas do surgimento de uma nova geração em busca de respostas revolucionárias diante da crise do sistema, mas é essencial para aqueles que simpatizam com as posições gerais de nossa organização entrar em contato com a CCI e contribuir para sua capacidade de intervenção e seu desenvolvimento.
Não estamos falando aqui de ingressar à nossa organização, embora mais adiante trataremos disto. Apreciamos qualquer tipo de contribuição e apoio daqueles que, de forma geral, estão de acordo com nossa política.
Primeiro, discutindo conosco. Escrevendo-nos, seja por carta, por email ou participando me nossos fóruns na internet (inglês e francês). Assistindo às nossas reuniões públicas ou às que fazemos com contatos. Colocando questões sobre nossas posições , análises, sobre a forma como escrevemos, o funcionamento da nossa página, etc.
Escreva para nossa página ou publicações, seja informando sobre atos nos quais tenha participado, de situação em seu centro de trabalho, setor ou bairro, ou com artigos mais desenvolvidos, contribuições teóricas, etc.
Ajude-nos a fazer traduções de/para diferentes línguas nas quais escrevemos: inglês, francês, espanhol, alemão, holandês, português húngaro, sueco, finlandês, russo, turco, bengali, coreano, japonês, chinês e filipino. Existe sempre muitos artigos para traduzir, incluindo alguns dos textos mais básicos de nossa organização. Se for capaz de fazer traduções para essas línguas ou outras, informe isso para nós.
Participe em nossas atividades públicas: vendendo nossa imprensa na rua, discutindo nossa imprensa ou nossos panfletos em piquetes, manifestações, ocupações. Ajude-nos a intervir em atos políticos, indo vocês mesmo a eles e defenda posições revolucionárias; contribua em discussões em fóruns da internet nos quais participamos regularmente, como www.libcom.org [1], ou www.revleft.space [2] (especificamente o fórum sobre a esquerda comunista: www.revleft.space [2]), www.red-marx.com [3], www.kaosenlared.net [4], etc.
Se também conhecer alguém que esteja interessada em discutir acerca de política revolucionária e da luta de classe forme círculos de discussão, fóruns de luta de classe ou grupos similares, nos quais ficaríamos muito felizes em participar e contribuir.
Contribua com suas habilidades e recursos: fotos, recursos gráficos, conhecimentos de informática, etc.
Contribua para a superação de nossas limitadas possibilidades econômicas fazendo doações regulares, assinando nossa imprensa, pegando cópias extras para você mesmo vendê-las a conhecidos, ou para colocá-las em livrarias.
Saudamos com entusiasmo as solicitações de companheiros que queiram levar seu apoio à organização a um nível mais alto ingressando nela.
Enquanto nem todos os simpatizantes ingressarão na organização, pensamos que ingressar nesta significa tomar parte na luta proletária em toda sua dimensão. O proletariado é por natureza uma classe cuja força reside em sua capacidade para a organização coletiva, e acima de tudo isto é válido para seus elementos revolucionários, que sempre buscaram se unir em organizações para defender a perspectiva comunista contra o peso da ideologia dominante. Ser membro da CCI possibilita que os companheiros participem diretamente nas reflexões e discussões que constantemente têm lugar em nossa organização e contribuir da forma mais efetiva à nossa intervenção na luta de classe. Para dar forma às análises e à política da CCI, o lugar mais útil para o militante individual é dentro dela, enquanto que para a organização como um todo, seus militantes são um recursos insubstituível que se pode contar e através do qual pode se desenvolver suas atividades em escala mundial.
Antes de se juntar à CCI, é essencial para qualquer companheiro ter uma discussão profunda sobre nossas posições políticas fundamentais, que estão ligadas de forma coerente com o marxismo e contidas em nossa plataforma [5] (/content/38/plataforma-da-corrente-comunista-internacional [5]), de modo que os que ingressam na CCI o fazem por uma convicção genuína e são capazes de defender nossas posições políticas porque possuem uma compreensão real delas. Também é importante a discussão de nossos estatutos organizativos e aceitar os princípios básicos e regras que guiam nosso funcionamento: como nos organizamos de forma coletiva a nível local, nacional e internacional, o papel dos congressos e dos órgãos centrais, como conduzimos os debates internos, o que se espera de nossos membros em termos de participação na vida da organização, e outras questões. As linhas básicas contidas em nossos estatutos podem ser encontradas no texto Estrutura e funcionamento das organizações revolucionárias (https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/organizacoes_revolucionarias_Conferencia_Internacional [6]).
Nesse sentido, estamos situados na tradição do partido bolchevique, que considerava um membro quem não só estava de acordo com o programa do partido, mas quem tinha a vontade de defendê-lo através de atividades da organização, e que, portanto, esteja preparado para aderir ao modo de funcionamento presente em seus estatutos.
Isto se trata de um processo que não ocorre de um dia para o outro, mas que leva tempo e paciência. Ao contrário dos grupos esquerdistas, trotskista e outros, que falsamente se revindicam como descendentes do bolchevismo, nós não buscamos “recrutar” a qualquer custo e, portanto, para acabarem sendo membros que não serão mais do que peões das manobras burocráticas da direção. Uma organização comunista real só pode florescer se seus membros possuem uma compreensão profunda de suas posições e análises e sejam capazes de tomar parte no esforço coletivo de aplicá-los e desenvolvê-los.
A política revolucionária não é um hobby: implica o compromisso intelectual e emocional para enfrentar as exigências da luta de classe. Mas tampouco é uma atividade de monges, à margem da vida e das preocupações do resto da classe trabalhadora. Não somos uma seita que busca regular cada aspecto da vida de nossos militantes, convertendo-os em fanáticos incapazes de qualquer pensamento crítico. Tampouco esperemos que cada militante seja um “expert” em todos os aspectos da teoria marxista ou que necessariamente tenha uma grande capacidade para escrever ou falar em público. Somos conscientes das diversas capacidades dos militantes em diferentes áreas. Baseamo-nos no princípio comunista de que de cada um contribua segundo seus meios, sendo a atividade coletiva a maneira de canalizar todas as energias individuais da forma mais efetiva.
A decisão de entrar em uma organização revolucionária não pode ser tomada ligeiramente às pressas. Mas ingressar na CCI significa ser parte de uma fraternidade mundial lutando para um fim comum: o único fim que realmente oferece um futuro à humanidade.
Abordando com o devido rigor a história da Revolução Russa de 1917, haveremos de tratar de duas figuras exponenciais naquele processo. A primeira delas é de Leon Bronstein Trotsky e a segunda é a figura “sacramentada” de Vladimir Ilitch Ulianov Lênin. Ambos merecem uma abordagem que bem retrate suas posturas políticas no andamento daquele formidável processo.
No caso de Leon Trotsky, temos insistido em ressaltar que, pelo papel jogado no aludido episódio histórico, existem dois Trotsky: o primeiro deles nasce junto aos embrionários grupos marxistas que terminam por compor o Partido Operário Social-Democrata Russo. O jovem Leon Trotsky que, dentre outras figuras, muito se espelhou no militante socialista, Pavel Axerold, a quem chamava de mestre, teve uma trajetória militante marcada pelo seu grande e inquestionável brilhantismo.
Já em 1903, quando foi defendida a proposta de organização partidária inspirada na obra de Vladimir Lênin “O que fazer?”, Trotsky, junto a outros grandes expoentes do socialismo, dentre eles Rosa Luxemburgo, dispensou severas e bem fundamentadas críticas à proposta leninista.
Assim como Rosa Luxemburgo, Trotsky, de então, lançando mão dos princípios do socialismo científico, proclamou que o modelo leninista de partido, de feição acentuadamente blanquista, levaria inevitavelmente, ao substituísmo e isso confrontaria com os princípios marxistas de que a obra de libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores e, portanto, não há lugar na História para partidos libertadores, como pretendia a proposta partidária formulada por Lênin. Dizendo melhor, não haveria e nem haverá lugar na História para que um grupo de pessoas profissionalizadas e bem treinadas na arte de conspirar e enganar o aparelho repressivo, tornar-se apto a assaltar o poder e, a partir daí, promover a libertação dos explorados e oprimidos. Tal concepção partidária, como bem enxergava Leon Trotsky, Rosa Luxemburgo e outros tantos próceres da causa socialista, redundaria, como já foi frisado, no substituísmo. Isso quer dizer que, um partido bem treinado, ultra-centralizado e disciplinado, substituiria as massas populares. Por seu turno, o ultra-centralismo e a disciplina férrea levariam a que o Comitê Central substituísse o partido. Por fim, uma figura “iluminada”, haveria de substituir o próprio Comitê Central. Essa tão inconteste profecia política, calcada nos fundamentos do socialismo científico, como não poderia deixar de ser, confirmou-se, e a atitude do Trotsky em denunciar esse determinismo histórico já demonstrava o seu grande valor enquanto militante e teórico socialista. Porém, a grandeza de Leon Trotsky não se resumiu apenas às tão bem fundadas e severas críticas que ele dirigiu a Vladimir Lênin no que concerne à sua proposta de modelo de partido, expressa no seu livro publicado em 1904, sob o título de “As nossas tarefas políticas”, obra tão zelosamente escondida pelo próprio Trotsky e, mais ainda, pelos seus seguidores. Em 1905, quando surge na Rússia tzarista um vigoroso movimento de rebelião das massas trabalhadoras e, dessa rebelião surgiram os conselhos populares, então chamados de sovietes, lá estava Leon Trotsky, participando desses eventos, e essa participação redundou na sua escolha como presidente da Comissão Executiva do Soviete de Petrogrado. Dois anos depois, Leon Trotsky em parceria com Parvus, desenvolveu a tese já colocada por Marx da Revolução Permanente, em que consistiria dizer que os países retardatários, ou seja, aqueles em que ainda não houvera se processado a revolução burguesa, a revolução de caráter democrático, numa constante progressão deveria desembocar no processo da revolução socialista que em tese se daria a partir dos países mais desenvolvidos e, caso essas revoluções não avançassem progressiva e ininterruptamente, haveriam de retroagir para seus patamares anteriores. Essa tese, que bem se aplicava aos países como a Rússia tzarista, a China dos senhores de guerra, a Índia e a Indonésia, não mereceu maiores atenções nos meios socialistas, particularmente não mereceu atenção nenhuma do Sr. Vladimir Ilitch Ulianov Lênin. Outros episódios políticos e teóricos se prestaram a revelar a grandeza de Leon Trotsky até o momento em que se desencadeou o processo da Revolução Russa em fevereiro de 1917. Naquele processo, através das teses de Abril, Vladimir Lênin aderiu à tese marxista-trotskista da Revolução Permanente e, para pesar da humanidade, Leon Trotsky, passou-se de malas e bagagens para o bolchevismo que ele tanto denunciara e essa adesão levou a que o nosso personagem encerrasse o momento mais fértil e mais consequente de sua militância política. Pôs-se um ponto final no primeiro e grandioso Trotsky, para dar lugar a um segundo Trotsky, que se revelou um grande agitador e articulador político e, como tal, conquistou a posição de Presidente do soviete de Petrogrado e comandante do Comitê Revolucionário Militar, prestou-se a conduzir, competentemente, a política externa da URSS, organizou e comandou o Exército Vermelho de gloriosos embates, enfim, foi um grande ativista, revelando o seu excepcional talento administrativo.
Por outro lado, brotou um Leon Trotsky que, ao lado de Lênin, se dispôs a atropelar as leis da História e a perseguir uma vitória a qualquer preço, quando, já em 1921, todos os elementos da derrota estavam colocados. Foi nesse momento fatídico momento histórico que Lênin e Trotsky propuseram a supressão do direito de tendência, a imposição do partido único, a supressão do livre debate pela instituição do monolitismo, a organização de uma polícia política, a criação de campos de concentração e trabalhos forçados para os dissidentes, fossem eles de direita ou socialistas e, dessa forma, contribuíram enfaticamente para estabelecer as bases de uma progressiva degradação política, cuja culminância foi a conquista plena do poder através da figura sinistra de Joseph Stalin.
Por que o segundo Trotsky, o Trotsky bolchevique, não fez nenhuma referência à Oposição Operária liderada por Alexandra Kollontai contra os desvios da revolução? Por que ao invés de acatar as críticas da Oposição Operária, o segundo Trotsky ocupou-se em caluniá-la e persegui-la? Por que o segundo Trotsky, que elogiara o soviete de Kronstadt, chamando-o de perola da revolução socialista, baseado em calúnias, resolveu reprimi-lo a ferro e fogo, como bem faria o próprio Stalin? Por que o segundo Trotsky não se propôs a fazer uma autocrítica afirmando textualmente que o primeiro Trotsky, junto a Rosa Luxemburgo, tinham plena razão quando denunciaram o bolchevismo? Por que o segundo Trotsky resolveu renegar o primeiro Trotsky para se empenhar na tarefa de falsificar a História para se colocar como leninista desde os primórdios? Por que o segundo Trotsky pôs de lado todo o seu domínio do socialismo cientifico para enveredar para o caminho do moralismo idealista, propagando ideias tais como “revolução traída”, “revolução desfigurada” e, sobretudo, a personificação do processo histórico quando lamentou o fato de que uma simples caçada de patos, que o tornara enfermo, havia tido um desfecho histórico tão trágico na medida em que o segundo Trotsky não pudera chegar a tempo ao enterro de Lênin. Por que o segundo Trotsky ao invés de se manter nos limites da dignidade que o seu passado assegurava, se envolveu nas disputas palacianas pelo título de herdeiro de Lênin chegando ao cúmulo de fazer acordos espúrios inclusive com Stalin? Por que o segundo Trotsky ao invés de tantos descaminhos de natureza idealista não cumpriu a mais soberba das tarefas históricas, que seria a de promover uma apreciação crítica, em profundidade, da Revolução Russa denunciando a sua inviabilidade, desde 1921, quando a contra-revolução mundial lograva seguidas vitórias e com mão de ferro desferia um golpe mortal ao projeto leninista-trotskista de vitória a qualquer preço? Por que o segundo Trotsky não recorreu às posições lúcidas manifestadas por socialistas da estirpe de Rosa Luxemburgo, Julio Martov, Pavel Axerold, Alexandra Kollontai, que desesperadamente apelou para que Lênin e Trotsky não tomassem o caminho do suicídio revolucionário?
Essas indagações merecem ser tratadas com o necessário rigor, para que assim possamos compreender que a tragédia da humanidade, cuja expressão é a situação política que hoje vivemos, tem como um dos seus fundantes a figura do segundo Trotsky.
Neste texto, nos colocamos do ponto de vista do método marxista, supondo que você também reivindica tal método. Caso não seja o caso, seria bom você precisá-lo em resposta para que o debate possa continuar se desenvolvendo sobre outra base.
Nada é mais estranho ao marxismo que uma atitude religiosa, a-crítica diante das "grandes figuras" do movimento operário. O marxismo é fundamentalmente a expressão de uma classe social, o proletariado, e não o de tal ou qual indivíduo, por mais brilhante que seja ele. Além disso, para esta classe, mais que para qualquer outra classe na história, o elemento coletivo é de longe o mais importante. É assim porque o proletariado:
Consequentemente, o marxismo só pode se conceber como pensamento coletivo cuja elaboração tanto da experiência coletiva das próprias massas operárias como das reflexões e análises dos inúmeros militantes no seio das organizações revolucionárias.
Considerado em si, cada marxista (e Marx o primeiro) pode cometer erros ou só alcançar uma visão parcial de uma questão. Assim, cabe aos demais militantes retificarem estes erros e completarem as análises incompletas. É a atitude que sempre tiveram os revolucionários mais eminentes, esses que enriqueceram mais o marxismo. Trata-se em particular dos protagonistas mais famosos da Revolução de 1917, Lênin e Trotsky. Hoje, o estudo da contribuição de Trotsky à Revolução de Outubro, e aos eventos que a seguiram, inevitavelmente tem que se apoiar sobre tal procedimento próprio ao marxismo e rejeitar categoricamente qualquer atitude fetichista que tende a fazer de Trotsky "um ícone inofensivo" como diz Lênin a propósito de Marx dentro "O Estado e a Revolução".
Trotsky é uma das mais famosas figuras do movimento operário. Na Revolução de 1917, ele deve ser considerado da mesma maneira como o faziam os trabalhadores desta época, como o alter-ego de Lênin. Reconhecer e saudar seus aportes à ação e ao pensamento do proletariado não deve nos impedir de criticar seus erros e fraquezas. Ele mesmo foi capaz de fazer esta crítica considerando o período que precede a 1917. Até deu uma forma excessiva a esta crítica afirmando que, sobre todas as questões onde ele tinha discordado com Lênin, era Lênin que tinha razão. Isso é verdade só parcialmente, como o veremos a seguir. Hoje, não se age como marxista, nem mesmo para pagar tributo a Trotsky, retomando ao pé da letra todas suas posições e análises que ele foi capaz desenvolver depois de 1917. Em relação a estas, todo marxista tem que ter a mesma atitude que Trotsky teve em relação a suas próprias posições antes 1917. Assim, a continuação desta contribuição se dá como objetivo evidenciar tanto os aportes fundamentais de Trotsky ao pensamento revolucionário como seus erros, erros que os seguidores transformaram em armas contra a luta revolucionária do proletariado.
Se Trotsky foi considerado em 1917 como o alterego de Lênin obviamente é devido a seus talentos de líder revolucionário: grande orador e escritor, militante valente, firme e resoluto, organizador eficaz e enérgico, estrategista militar talentoso, etc. Ele também é dotado de uma compreensão clara das alternativas históricas contidas nos eventos acontecendo frente a seus olhos, uma sensibilidade particular quanto ao estado de espírito, às necessidades, às aspirações e capacidades das massas operárias em ação. Aqui são as maiores qualidades que Trotsky mostrou ao longo de sua vida de revolucionário. É claro que estas qualidades são o resultado de um conhecimento profundo do marxismo, não o marxismo "professoral" como o de Kautsky, mas o marxismo vivo, inspirado pelo sopro das massas proletárias como o encontramos também numa revolucionária como Rosa Luxemburgo. Não é por casualidade que ambos os trabalhos mais importantes que foram escritos sobre as lições da revolução russa de 1905 sejam de Rosa Luxemburgo e Trotsky. Além disso, é necessário notar que estes dois trabalhos são complementares, o primeiro evidenciando a dinâmica que anima as massas operárias num período revolucionário, o outro estudando com profundidade este órgão novo na história que o proletariado cria para sua luta revolucionária: o soviete. São todas estas qualidades que permitem a Trotsky ser eleito duas vezes ao mesmo posto particularmente importante de presidente do Soviete de Petrogrado, em 12 anos de intervalo.
Estas qualidades de Trotsky fizeram dele o grande revolucionário do início do século XX que esteve mais adequado às necessidades do proletariado no momento dos seus movimentos revolucionários, algumas vezes mais do que Lênin. Podemos dar alguns exemplos:
Durante todo o período que vai de 1903 até 1917, Trotsky mostra uma incompreensão permanente do método de construção da organização. Suas tendências oportunistas e à conciliação sobre esta questão o levam a não poder ser envolvido ativamente no combate de Lênin para a construção de um real partido proletário na Rússia. Em particular, ele não entende a necessidade do trabalho de fração dentro da social-democracia russa, da intransigência e do rigor contra todas as tendências oportunistas, como condição da fundação de um partido revolucionário sólido. Na hora da fundação da Internacional Comunista, esta intransigência ainda está no centro do procedimento dos bolcheviques que são os principais animadores do 1º Congresso. Mas, posteriormente, notadamente a partir do 3º Congresso, enquanto a onda revolucionária começa a retroceder, os bolcheviques se distanciam cada vez mais deste rigor e desta intransigência que os permitiram construir o partido da Revolução de Outubro e de conduzir esta até à vitória. A preocupação da IC era de "ir às massas". No entanto, se por um lado as políticas de "infiltração nos sindicatos", de "parlamentarismo revolucionário", e depois dessas as de "frente única" e de "governo operário", foram de pouca eficiência em termos de influência da IC sobre as massas operárias que foram de derrota em derrota, contribuiu por outro lado, em grande medida, ao processo de degeneração oportunista dos partidos comunistas. Os bolcheviques e Lênin, em primeiro lugar, caem na ilusão que a sua presença na cabeça da IC podia protegê-la do oportunismo. A história demonstrou que não foi o caso, mas é uma lição que Trotsky foi incapaz de tirar. Quando ele decide, com atraso em relação a outras correntes de esquerda, criar uma oposição de Esquerda e agrupar as correntes que lutam contra a degeneração da IC e dos PC, ele retoma por conta própria, de maneira caricatural, a política da IC durante seus 3º e 4º congresso, política que a conduziu ao desastre, em vez de se apoiar na experiência e o rigor dos bolcheviques entre 1903 e 1917. Esta orientação o conduz, na cabeça da Oposição de Esquerda internacional, a uma política de manobras, sem princípio, onde se passa do dia para a noite da necessidade de proclamar novos partidos a essa outra necessidade do entrismo nos partidos social-democratas (que há muito tempo eram instrumentos da burguesia). É neste contexto que é fundada uma nova Internacional em 1938, no momento em que o mundo está no fundo do abismo da contrarrevolução. Para ter retido de Lênin só a política errônea que tinha preconizado frente ao refluxo da revolução em vez de se inspirar na política que ele tinha travado nos anos antes da revolução, política que Trotsky tinha combatido, este último não é capaz de nada mais que fundar uma corrente fraca, atravessada por repetidas crises e, sobretudo, gangrenada pelo oportunismo, uma corrente que durante a Segunda Guerra Mundial, ao participar desta, encontra-se com os partidos socialistas e comunistas no campo capitalista.
Uma entre as posições políticas do Trotskismo que mais contribui para sua participação na guerra imperialista (e assim para sua traição) é a "defesa da URSS" baseada na idéia que ainda existia neste país "conquistas operárias", que o Estado que administra o país é, mesmo "degenerado", um "Estado operário". De certa maneira, esta questão já tinha sido colocada em 1921 no debate sobre os sindicatos que tinha acontecido no partido bolchevique. Em poucas palavras, havia três posições frente à questão: "qual deve ser o papel de sindicatos na sociedade soviética?":
Na realidade, o erro principal de Trotsky (como a da Oposição operária que tem uma visão anarcossindicalista) consiste em considerar que tem "aquisições operárias" na Rússia e das quais o Estado é fiador. Fundamentalmente é esta visão que ele mantém posteriormente e que conduz à posição de "defesa da URSS".
Na realidade, Trotsky se afasta nesta questão da concepção marxista da transição do capitalismo ao socialismo. Para o marxismo (e é um entre os pontos que o distingue da visão de anarcossindicalista), o primeiro ato da revolução proletária é constituído pela tomada do poder político pelo proletariado, ao contrário da revolução burguesa onde a instauração do poder da burguesia na esfera política vem completar um processo inteiro de desenvolvimento das relações capitalistas de produção dentro da sociedade feudal. É só a partir do momento em que o proletariado poder estabelecer sua ditadura sobre o conjunto da sociedade que ele poderá atacar as relações de produção herdadas da sociedade antiga. E como a revolução comunista só pode ser mundial, a ditadura do proletariado para poder realmente atacar as relações de produção capitalista deve se estender em escala mundial, ou pelo menos à escala dos principais países industrializados. Trotsky tinha perfeitamente razão em considerar que a tese do "socialismo em um só país" constituía uma real traição do programa revolucionário. Porém, sua defesa da posição internacionalista (como já foi o caso durante a Primeira Guerra Mundial em outros aspectos) é fraca porque não baseada sobre uma compreensão clara da visão marxista. A única maneira de defender de maneira rigorosa a impossibilidade do "socialismo em um só país" é ao partir de que a real transformação econômica para o comunismo só pode começar quando o proletariado terá vencido politicamente em nível mundial. Até este momento, as medidas econômicas que podem ser tomadas a nível de um país (como era o caso de Rússia) só podem ser evocadas para permitir que o proletariado conserve seu poder político e impulsione a Revolução nos outros países. Mas em nada, estas medidas podem ser consideradas em si como "socialistas".
Os bolcheviques (esses que permaneceram fiéis ao internacionalismo) estavam bem conscientes de que a Revolução russa estava condenada se ela não pudesse se estender. Eles sabiam que a contrarrevolução conseguiria finalmente vencer também no seu país. Mas eles pensavam que a contrarrevolução viria do exterior ou, ainda, das outras classes que permaneciam na Rússia como o camponesinato. O que eles não entenderam num primeiro tempo é que a contrarrevolução não viria do "exterior", mas do "interior" do Estado que se estabeleceu no dia seguinte à revolução. É justamente o grande mérito de Lênin ter apreendido, a partir de 1921 e contra a concepção de Trotsky, que não havia nenhuma identidade de interesses entre este Estado e o proletariado. Na realidade, conforme o que Marx e Engels já tinham entrevisto, a noção de Estado proletário é errônea. Por exemplo, Engels escreveu: "podemos dizer pelo menos que o Estado é uma praga da qual o proletariado herda em sua luta para chegar a sua dominação de classe". O proletariado não pode se identificar com uma praga nem sequer quando é forçado a usá-la numa sociedade onde as classes ainda existem.
Na realidade, se, ao contrário do que reivindicam os anarquistas, o Estado permanece depois da tomada do poder pelo proletariado pelo fato que subsistam classes sociais, este é fundamentalmente um instrumento de conservação da situação adquirida, mas de jeito nenhum um instrumento da transformação das relações de produção para o comunismo. Neste sentido, a organização do proletariado como classe em conselhos operários tem que impor sua hegemonia sobre o Estado, mas nunca identificar-se com este. Ele deve ser capaz, se for necessário, de se opor ao Estado (como Lênin o tinha entendido). É exatamente porque, com a extinção da vida dos sovietes (inevitável por conta da derrota da Revolução mundial), o proletariado perdeu esta capacidade de agir e se impor ao Estado que este último pôde desenvolver suas próprias tendências conservadoras até se tornar o coveiro da Revolução, ao mesmo tempo em que ele absorveu na sua engrenagem o partido bolchevique, transformando a natureza dele.
Não abordamos todos os aspectos de sua carta, notadamente as críticas a Que fazer?. Compartilhamos algumas dentre elas, também achamos que uma outra importante está ausente. Ademais, achamos que valeria esclarecer o papel de Kollontai, particularmente em relação à Kronstadt, e responder a todos os "Por que", colocados com toda razão por você no seu texto. Faremos isso se lhe interessa continuar o debate sobre este aspecto. Para preparar nossa resposta, logo publicaremos um artigo a propósito dos debates entre revolucionários no início do século 20.
Saudações internacionalistas
CCI
Esta é a resposta da CCI ao artigo "Conselhos operários, Estado proletário, ditadura do proletariado" do Grupo Oposição Operária (OPOP) [1] do Brasil, publicado no número 148 da Revista Internacional [2].
A posição exposta no artigo da OPOP se reivindica integralmente da obra de Lênin, O Estado e a revolução, enfoque a partir do qual essa organização rechaça uma ideia central da posição da CCI. Embora reconhecendo a contribuição fundamental dessa obra para a compreensão da questão do Estado durante o período de transição, a CCI absorve a contribuição da experiência da Revolução Russa, das próprias reflexões de Lênin durante esse período e dos escritos fundamentais de Marx e Engels para tirar lições que conduzem a questionar a relação, até hoje classicamente admitida pelas correntes marxistas, de identidade entre Estado e ditadura do proletariado.
No seu artigo, a OPOP também desenvolve uma posição que lhes é própria relacionada ao que ela chama de "pré-Estado", ou seja, a organização dos conselhos operários antes da revolução, chamada a derrubar a burguesia e seu Estado. Voltaremos a essa questão posteriormente, considerando que antecipadamente é prioritário esclarecer nossas divergências com a OPOP no que toca à questão do Estado e do período de transição.
Para evitar que o leitor fique num vai e vem incessante com o artigo da OPOP da Revista Internacional nº 148, reproduziremos suas passagens que consideramos mais significativas.
Para a OPOP, "A separação antinômica entre o sistema de conselhos e o Estado pós-revolucionário" (...) "se constitui num deslocamento desde a concepção de Marx, Engels e Lênin até uma certa influência da concepção anarquista de Estado.", o que equivale a "quebrar a unidade que deve existir e persistir no âmbito da ditadura do proletariado." Com efeito, "tal separação coloca de um lado o Estado como uma estrutura administrativa complexa, a ser gerenciada por um corpo de funcionários — um absurdo na concepção de Estado simplificado de Marx, Engels e Lênin — e de outro uma estrutura política, no âmbito dos conselhos, a exercer pressão sobre a primeira (o Estado como tal)."
Segundo OPOP, esse seria um erro que se explicaria por essas incompreensões enquanto o Estado-comuna e suas relações com o proletariado é:
Para finalizar, a OPOP explica as lições supostamente errôneas tiradas pela CCI da Revolução Russa quanto ao caráter do Estado de transição por outro fator: ao não tomar em conta as condições desfavoráveis que teve de enfrentar o proletariado: "não compreender as ambiguidades que resultaram das circunstancias históricas e sociais especificas que bloquearam não só a transição, como mesmo o início da ditadura do proletariado na URSS. Aqui, deixa-se de compreender que os rumos tomados pela Revolução Russa — a menos que se considere a versão mais fácil e, portanto, também, mais fraca, de que os desvios do processo revolucionário foram implantados por Stalin e sua entourage — , não obedeceram à concepção de revolução, de Estado e de socialismo de Lênin, mas a restrições que emanavam do terreno social e político no qual se deu a montagem do Poder na URSS, entre os quais, só para lembrar, a impossibilidade da revolução na Europa, a guerra civil e a contra-revolução no interior da URSS, entre outros—, rumos esses alheios á vontade de Lênin e acerca dos quais ele próprio examinava e que marcou formulações reiteradamente ambíguas em todo o seu pensamento ulterior até a sua morte".
A diferença entre marxistas e anarquistas não reside em que os primeiros conceberiam o comunismo como uma sociedade com Estado e os segundos sem ele. Estamos todos totalmente de acordo em que o socialismo só pode ser uma sociedade sem Estado. É então muito mais nos pseudo-marxistas da socialdemocracia, herdeiros de Lassalle, que se concretizou essa diferença fundamental, já que para eles é o Estado que era o motor da transformação socialista da sociedade. Contrariamente a eles Engels redigiu esta passagem no Anti-During:
O verdadeiro debate com os anarquistas versa sobre o seu desconhecimento total de um período inevitável de transição e sobre sua vontade de dar na história um salto de olhos vendados e pés amarrados diretamente do capitalismo à sociedade comunista.
Quanto a esse tema da necessidade do Estado durante o período de transição, estamos então totalmente de acordo com a OPOP. Por isso só podemos ficar surpresos com a afirmação de que a posição da CCI "se constitui num deslocamento desde a concepção de Marx, Engels e Lênin até uma certa influência da concepção anarquista de Estado". De um ponto de vista marxista, como pode a nossa posição aproximar-se com a dos anarquistas que pensam que se pode abolir o Estado do dia para a manhã?
Se nos referimos ao escrito por Lênin em O Estado e a revolução enquanto a crítica marxista ao anarquismo sobre a questão do Estado, se pode ver que não confirma em nada a visão que tem a OPOP: "Marx sublinha propositadamente, afim de que não deturpem o verdadeiro sentido da sua luta contra o anarquismo, "a forma revolucionária e passageira" do Estado, necessária ao proletariado. O proletariado precisa do Estado só por um certo tempo. Sobre a questão da supressão do Estado, como objetivo, não nos separamos absolutamente dos anarquistas. Nós sustentamos que, para atingir esse objetivo, é indispensável utilizar provisoriamente, contra os exploradores, os instrumentos, os meios e os processos de poder político, da mesma forma que, para suprimir as classes, é indispensável a ditadura provisória da classe oprimida." [5]
A CCI está totalmente de acordo com essa formulação, exceto uma palavra: trata-se da caraterização de "revolucionária" dada a essa forma passageira do Estado. Esse matiz pode ser considerado uma variante das concepções anarquistas, como pretende a OPOP, ou pelo contrário, abre um debate muito mais profundo sobre a questão do Estado?
Efetivamente, sobre a questão do Estado, nossa posição difere da de O Estado e a revolução e da Crítica do Programa de Gotha no qual, durante o período de transição o "Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado" [6]. Essa é a questão de fundo do nosso debate: por que não pode haver identidade entre a ditadura do proletariado e o Estado do período de transição que surge após a revolução? Isto é uma ideia que choca muitos marxistas que, várias vezes, nos colocaram a seguinte questão: "De onde a CCI extrai sua posição sobre o Estado do período de transição?" A esta só podemos responder: "Pois bem, não saca da sua imaginação e sim da história, das lições que gerações de revolucionários extraíram, de reflexões e elaborações teóricas do movimento operário". E mais precisamente:
Foi com essa preocupação que a esquerda comunista da Itália realizou um trabalho de balanço da onda revolucionária mundial [7]. Segundo ela, a tomada do poder pelo proletariado não impede que continue existindo classes sociais, e consequentemente continua subsistindo um Estado, que fundamentalmente é um instrumento de conservação da situação adquirida, porém nunca um instrumento de transformação das relações de produção para o comunismo. Nessas condições, a organização do proletariado como classe, por meio dos conselhos operários, há de impor sua hegemonia sobre o Estado, porém nunca se identificar com ele. Tem de ser capaz, se necessário, de opor-se ao Estado, como começou a entender parcialmente Lênin em 1920-21. É justamente por isso que, ao se esgotar a vida nos sovietes (o que era inevitável devido ao fracasso da revolução mundial), o proletariado perdeu essa capacidade de atuar e se impor ao Estado que este último pôde desenvolver as tendências conservadoras que lhes são próprias até se transformar em coveiro da revolução na Rússia, absorvendo nas suas engrenagens o próprio Partido bolchevique e convertendo-o em instrumento da contrarrevolução.
O Estado e a revolução de Lênin foi em seu tempo a síntese mais acabada do que o movimento operário tinha produzido no que diz respeito às questões do Estado e do exercício do poder por parte da classe operária [8]. É uma ilustração excelente de como tem se esclarecido na história a questão do Estado. Baseando-se nela, vamos recordar agora as melhorias sucessivas que foi fazendo o movimento operário sobre a compreensão dessas questões:
A revolução de 1917 não deixou a Lênin o tempo para escrever no Estado e a revolução os capítulos dedicados aos aportes das revoluções russas de 1905 e de fevereiro de 1917. Conformou-se em identificar os sovietes como herdeiros naturais da Comuna de Paris. Pode-se acrescentar que, embora nenhum dos dois eventos permitisse ao proletariado tomar o poder político, não deixam ainda de proporcionar lições adicionais em relação à Comuna de Paris, no que toca ao poder da classe operária: os sovietes de deputados operários com base em assembleias nos locais de trabalho são mais adaptados à expressão da autonomia de classe do que foram as unidades territoriais da Comuna.
O Estado e a revolução não só é a síntese do melhor que o movimento operário havia escrito até então sobre o tema, como também contém desenvolvimentos próprios de Lênin que, por sua vez, são avanços. Quando extraíram lições essenciais da Comuna de Paris, Marx e Engels deixaram, no entanto ambiguidades enquanto a possibilidade para o proletariado de chegar pacificamente ao poder em certos países mediante o processo eleitoral, aqueles que dispõem precisamente de instituições parlamentares mais desenvolvidas e do aparato militar mais fraco. Lênin não teve medo de corrigir Marx, utilizando para isso o método marxista e situando a questão no marco histórico adaptado: "Em 1917, na época da primeira guerra imperialista, essa restrição de Marx cai. (…) Atualmente, tanto na Inglaterra como na América, "a condição prévia para uma revolução verdadeiramente popular" é igualmente a desmontagem, a destruição da "máquina do Estado"" [14].
Só uma visão dogmática poderia acomodar-se com a ideia de que O Estado e a revolução de Lênin seria a última e suprema etapa no esclarecimento da noção de Estado no movimento marxista. Se existe uma obra que é a antítese de semelhante visão é justamente esta. Nem a própria OPOP teme se afastar da letra de Lênin levando a seu extremo a ideia da citação anterior: "Nos dias atuais, a tarefa de estabelecer os conselhos como forma de organização estatal se coloca numa perspectiva não mais de um único país, mas sim na de escala internacional, sendo esse o desafio principal da classe operária." [15] (Revista internacional n° 148)
Redigido em agosto-setembro de 1917, O Estado e a revolução serviu muito rapidamente de arma teórica com a deflagração da Revolução de Outubro, com vistas a ação revolucionária para a derrubada do Estado burguês e a colocação do Estado-Comuna. As lições tiradas da Comuna de Paris foram assim submetidas a prova da história durante esses acontecimentos de uma magnitude muito mais considerável, da Revolução Russa e da sua degeneração.
OPOP responde por negar a essa pergunta na medida em que, segundo ela, as condições na Rússia eram tão desfavoráveis que não permitiram o estabelecimento de um Estado operário tal como descreve Lênin no Estado e a revolução. Nos censura de identificar "o Estado erguido na URSS pós-revolucionária — um Estado obrigatoriamente burocrático — com a concepção de Estado-Comuna de Marx, Engels e do próprio Lênin". E acrescenta:
Estamos de acordo com OPOP para afirmar que a primeira lição a tirar da degeneração da Revolução Russa é que esta foi produto do isolamento do bastião proletário devido à derrota das demais tentativas revolucionárias na Europa, em particular na Alemanha. Com efeito, não só é impossível em um só país a transformação das relações de produção para o socialismo, como também não é possível que se mantenha um poder proletário isolado em um mundo capitalista. Entretanto, não existiriam outras lições de grande importância a extrair dessa experiência?
Claro que sim! E OPOP extrai uma dentre elas, apesar de que contradiga explicitamente uma passagem de O Estado e a revolução que diz respeito à primeira fase do comunismo: "(…) [não será possível] a exploração do homem pelo homem, pois que ninguém poderá mais dispor, a título de propriedade privada, dos meios de produção, das fábricas, das máquinas, da terra." [17] Com efeito, o que foi demonstrado tanto pela Revolução Russa como pela contrarrevolução stalinista é que a simples transformação do aparato produtivo em propriedade de Estado não acaba com a exploração do homem pelo homem.
De fato, a Revolução Russa e sua degeneração são acontecimentos históricos de tal magnitude que é impossível não tirar lições dela. Pela primeira vez na história, acontece a tomada do poder político pelo proletariado em um país, como expressão mais avançada de uma onda revolucionária mundial, com o surgimento de um Estado chamado naquela época Estado proletário! Posteriormente acontece esse acontecimento também totalmente inédito na história do movimento operário, a derrota de uma revolução que não ocorre de uma forma clara e abertamente esmagada pela repressão selvagem da burguesia como também aconteceu quando da Comuna de Paris, mas como consequência de um processo de degeneração interna que acabou tomando a ignominiosa face do stalinismo.
Já nas semanas que se seguiram à Insurreição de Outubro, o Estado-Comuna é outra coisa diferente de "os operários armados" tal como descreve O Estado e a revolução [18]. Acima de tudo, com o isolamento crescente da revolução, o novo Estado se vê cada vez mais infectado pela gangrena da burocracia, cada vez mais distante dos órgãos eleitos pelo proletariado e os camponeses pobres. Muito longe de começar a decair, o novo Estado está invadindo toda a sociedade. Muito longe de dobrar-se à vontade da classe revolucionária, volta-se ao ponto central de uma espécie de degeneração e de contrarrevolução internas. Consequentemente os sovietes se esvaziam da sua vida. Os sovietes operários se transformam em apêndices dos sindicatos na gestão da produção. Assim, a mesma força que fez a revolução e que devia controlá-la foi perdendo sua expressão política autônoma e organizada. O vetor da contrarrevolução foi nada mais nada menos que o Estado, e quanto mais a revolução sofria dificuldades, mais o poder da classe operária ia se debilitando e mais o Estado-Comuna manifestava seu caráter não proletário, conservador, quando não reacionário. Vamos nos explicar quanto a essa caracterização.
Seria um erro se limitar à formulação de Marx na Crítica do programa de Gotha no que tange à caracterização do Estado do período de transição, identificando-o com a ditadura do proletariado. Existem outras caracterizações do Estado feitas pelos próprios Marx e Engels, e mais tarde por Lênin e pela Esquerda Comunista, que contradizem no fundo a fórmula "Estado-Comuna = ditadura do proletariado" para confluir à ideia de um Estado naturalmente conservador, incluindo o Estado-Comuna do período de transição.
O Estado de transição é a emanação da sociedade, não do proletariado
Como explicamos o surgimento do Estado? Engels não deixa a menor ambiguidade: "O Estado não é pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é "a realidade da ideia moral", nem "a imagem e a realidade da razão", como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites “ordem”. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado" [19]. Apesar de todas as medidas tomadas pelo proletariado considerando o Estado-Comuna de transição, este conserva, como todos os Estados das sociedades de classe do passado, esse caráter de ser um órgão conservador a serviço da manutenção da ordem econômica dominante. Isso tem implicações, a nível teórico e prático, com relação às questões seguintes: Quem exerce o poder durante o período de transição: o Estado ou o proletariado organizado em conselhos operários? Quem é a classe economicamente dominante da sociedade de transição? Qual é o motor da transformação social e do definhamento do Estado?
Pelo seu caráter, o Estado de transição não pode estar a serviço somente dos interesses de classe do proletariado
Em qualquer lugar onde tenha derrubado o poder político da burguesia, as relações de produção continuam sendo relações capitalistas inclusive se a burguesia já não esteja presente para se apropriar da mais-valia produzida pela classe operária. O ponto de partida da transformação comunista está condicionado pela derrota militar da burguesia em uma quantidade suficiente de países determinantes, o que permite dar uma vantagem política à classe operária a nível mundial. Este é o período que vai se desenvolvendo lentamente as bases do novo modo de produção em detrimento do antigo, até suplantá-lo e tornar-se modo dominante de produção.
Após a revolução e enquanto a comunidade humana mundial não esteja realizada, ou seja, enquanto a imensa maioria da população mundial não esteja integrada ao trabalho livre e associado, o proletariado continua sendo a classe explorada. Contrariamente às demais classes revolucionárias do passado, o proletariado não está destinado a transformar-se em uma classe econômica dominante. É por isso que, embora a ordem imposta pela revolução já não seja a da dominação política e econômica da burguesia, o Estado que surge durante esse período como garantia da nova ordem econômica, não pode intrinsecamente estar a serviço do proletariado. Pelo contrário, este tem de forçá-lo no sentido de seus interesses de classe.
O papel do Estado de transição: integração da população não exploradora à gestão da sociedade e da luta contra a burguesia
Em O Estado e a revolução, o próprio Lênin diz que o proletariado necessita de um Estado não só para acabar com a resistência da burguesia, mas também para levar o resto da população não exploradora na direção do socialismo: "O proletariado necessita do Poder do Estado, organização centralizada da força, organização da violência, tanto para esmagar a resistência dos exploradores como para dirigir a enorme massa da população, os camponeses, a pequena burguesia, os semiproletários, na obra de "por em marcha" a economia socialista" [20].
Apoiamos este ponto de vista de Lênin segundo o qual o proletariado deverá arrastar com ele a imensa maioria da população pobre e oprimida, na qual o próprio proletariado pode ser minoritário, para poder derrotar a burguesia. Não existe outra alternativa a essa política. Como se concretizou na revolução russa? Durante esta, surgiram dois tipos de sovietes: por um lado, os sovietes operários baseados essencialmente nos locais de produção e agrupando o proletariado, chamados também conselhos operários; por outro lado, os sovietes baseados em unidades territoriais (os sovietes territoriais) nos quais participavam ativamente todas as camadas não exploradoras na gestão local da sociedade. Os conselhos operários organizavam o conjunto da classe operária, isto é, a classe revolucionária. Os sovietes territoriais [21], por sua parte, elegiam delegados revogáveis destinados a formar parte do Estado-Comuna [22], que tem como função a gestão da sociedade em seu conjunto. Num período revolucionário, o conjunto das camadas não exploradoras, apesar de ser favoráveis à derrubada da burguesia e contra a restauração de sua dominação, não está por isso ganho à ideia da transformação socialista da sociedade. Até pode lhe ser hostil. De fato, a classe operária frequentemente é minoritária dentro do conjunto da população não exploradora. Isso é o que explica o porquê, durante a Revolução Russa, foram tomadas medidas que tinham como sentido reforçar o peso da classe operária no seio do Estado-Comuna: 1 delegado para 125.000 camponeses, 1 delegado para 25.000 operários das cidades). Isso não dispensa o fato de que a necessidade de mobilizar a população majoritariamente camponesa na luta contra a burguesia e de integrá-la no processo de gestão da sociedade tenha dado à luz, na Rússia, a um Estado que não era composto somente pelos delegados operários dos sovietes, mas também por delegados soldados e camponeses pobres.
As advertências do marxismo contra o Estado, embora este fosse do período de transição
Em sua introdução de 1891 a A guerra civil na França redigido por ocasião do vigésimo aniversário da Comuna de Paris, Engels não teme por em evidência traços comuns a todos os Estados, sejam os clássicos Estado burgueses ou o Estado-Comuna do período de transição: "na realidade, o Estado não é outra coisa senão uma máquina para a opressão de uma classe por uma outra e, de facto, na república democrática não menos do que na monarquia; no melhor dos casos, um mal que é legado ao proletariado vitorioso na luta pela dominação de classe e cujos piores aspectos ele não poderá deixar de cortar imediatamente o mais possível, tal como no caso da Comuna, até que uma geração crescida em novas, livres condições sociais, se torne capaz de se desfazer de todo o lixo do Estado." [23]
Considerar o Estado como "um mal que é legado ao proletariado vitorioso na luta pela dominação de classe" é uma ideia que se situa perfeitamente no prolongamento de que o Estado é uma emanação da sociedade (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado) em seu conjunto e não do proletariado revolucionário. Isto tem implicações importantíssimas quanto à relação entre este Estado e a classe revolucionária. Apesar de que não pudessem ser esclarecidas totalmente antes da Revolução Russa, Lênin em O Estado e a revolução soube se inspirar nelas insistindo fortemente que os operários submetessem os funcionários do Estado a uma supervisão e um controle constantes, particularmente desses elementos do Estado que encarnam mais claramente uma continuidade com o antigo regime, como os "experts" técnicos e militares que os sovietes tiveram que utilizar.
Lênin também desenvolve um fundamento teórico que diz respeito à necessidade de uma atitude saudável de necessária desconfiança do proletariado com relação ao novo Estado. No capítulo "As bases econômicas da extinção do Estado", explica que devido a seu papel de defender em certos aspectos a situação do "direito burguês", pode se definir o Estado durante o período de transição como sendo "um Estado burguês, sem a burguesia!" [24]. Embora esta formulação seja mais uma chamada a refletir que uma clara definição do caráter do Estado de transição, Lênin entendeu o essencial: na medida em que o papel do Estado é de defender um estado de coisas que ainda não é comunista, o Estado-Comuna revela seu caráter fundamentalmente conservador e é o que o deixa particularmente vulnerável à dinâmica de contrarrevolução.
Uma intervenção de Lênin em 1920-21 que põe em evidência a necessidade do proletariado poder se defender contra o Estado
Essas percepções, possivelmente, favoreceram uma certa lucidez em Lênin sobre o que ocorria na Rússia, particularmente, durante o debate de 1920-21 sobre os sindicatos [25], debate que o opôs em especial a Trotsky que era partidário da militarização do trabalho e para quem o proletariado tinha que se identificar com o "Estado proletário" e até subordinar-se a ele. Embora Lênin mesmo estivesse prisioneiro da espiral do processo de degeneração da revolução, defendeu aí a necessidade que os trabalhadores mantivessem órgãos de defesa de seus próprios interesses [26], inclusive contra o Estado de transição, ao mesmo tempo em que repetiu suas advertências quanto ao crescimento da burocracia de Estado. Nos termos seguintes, Lênin apresenta o marco do debate sobre a questão, em um discurso em uma reunião de delegados comunistas no fim de 1920:
"(...) o camarada Trotsky (...) pretende que a defesa dos interesses materiais e espirituais da classe operária não é missão dos sindicatos em um Estado operário. Isso é um erro. O camarada Trotsky fala de “Estado operário”. Permita-me dizer que isto é uma abstração. É compreensível que em 1917 falássemos do Estado operário; mas agora se comete um erro manifesto quando nos diz: "Para que a classe operária defender, e defender frente a quem, se não há burguesia e o Estado é operário?" Não de todo operário; aí está o quê da questão. Nisto consiste cabalmente um dos erros fundamentais do camarada Trotsky. (...) O Estado não é, na realidade, operário, mas operário e camponês. Isto em primeiro lugar. E disto decorre. (Bukharin [interrompe]: "Que Estado? Operário e camponês?") E embora o camarada Bukharin grite atrás "Que Estado? Operário e camponês?", não lhe responderei. Quem quiser, pode recordar o Congresso dos Sovietes que acaba de se celebrar e nele encontrará a resposta.
Mas tem mais. No programa de nosso Partido – documento muito bem conhecido pelo autor de O ABC do comunismo – já vemos que nosso Estado é operário com uma deformação burocrática. E tivemos que lhe apor – como dizer? – esta lamentável etiqueta, ou coisa assim. Eis aí a realidade do período de transição. Pois bem, dado este gênero de Estado, que se cristalizou na prática, os sindicatos não têm nada a defender?, pode-se prescindir deles para defender os interesses materiais e espirituais do proletariado organizado em sua totalidade? Isto é completamente falso do ponto de vista teórico (...) Nosso Estado de hoje é tal que o proletariado organizado em sua totalidade deve se defender, e nós devemos utilizar estas organizações operárias para defender os trabalhadores frente a seu Estado e para que os trabalhadores defendam nosso Estado" [27].
Consideramos que esta reflexão é muito esclarecedora e da maior importância. Arrastado na dinâmica degenerescente da revolução, Lênin não esteve, infelizmente, em condições de aprofundá-la (pelo contrário, voltará logo sobre a caracterização do Estado operário-camponês). Por outro lado, sua intervenção tampouco provocou (e devido ao próprio Lênin) uma reflexão nem um trabalho em comum com a Oposição Operária encabeçada por Kollontai e Chliapnikov, que naquele momento expressou uma reação proletária tanto contra as teorizações burocráticas de Trotsky como contra as verdadeiras distorções burocráticas que estavam corroendo o poder proletário. No entanto, essa válida reflexão não foi perdida por parte do proletariado. Como já assinalamos, foi o ponto de partida de uma reflexão mais profunda por parte da Esquerda Comunista de Itália sobre o caráter do Estado do período de transição, que essa organização conseguiu transmitir às novas gerações de revolucionários.
O proletariado é a força de transformação revolucionária da sociedade, não o Estado
Umas das ideias fundamentais do marxismo é que a luta de classes é o motor da história. Não é o por acaso que esta ideia esteja presente na primeira frase da primeira parte do Manifesto Comunista: "A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes" [28], não o Estado cuja função histórica é precisamente a de "amortecer o choque, mantê-lo no limites da ordem" [29]. Essa característica do Estado das sociedades de classe também se aplica à sociedade de transição, na qual a classe operária segue sendo a força revolucionária. O próprio Marx já distinguiu claramente, falando da Comuna de Paris, a força revolucionária do proletariado e o Estado-Comuna: "… a Comuna não é o movimento social da classe operária e, assim, o movimento de uma regeneração de toda a humanidade, mas os meios organizados de ação. A Comuna não suprime as lutas de classes, pelas quais a classe operária se esforça pela abolição de todas as classes e, consequentemente, de qualquer dominação de classe (…) mas ela oferece o contexto racional em que essa luta de classes possa recorrer suas diferentes fases do modo mais racional e humano" [30].
A característica do proletariado após a revolução, ao mesmo tempo classe dominante politicamente e ainda explorada economicamente, acarreta que, tanto no plano econômico como no político, Estado-Comuna e ditadura do proletariado sejam por essência antagônicos:
Para poder assumir sua missão histórica de transformação da sociedade e acabar com a dominação econômica e política de uma classe sobre outra, a classe operária assume sua dominação política sobre o conjunto da sociedade por meio do poder internacional dos conselhos operários, do monopólio do controle das armas e o fato de ser a única classe armada permanentemente. Sua dominação política também se exerce sobre o Estado. Esse poder da classe operária é por outro lado inseparável da participação efetiva e ilimitada das imensas massas da classe, de sua atividade e organização e só acaba quando qualquer tipo de poder político tornar-se supérfluo, quando as classes tenham desaparecido.
Esperamos ter contestado de forma suficientemente argumentada às críticas que nossa posição suscitaram na OPOP em relação ao Estado de transição. Estamos conscientes de não ter contestado especificamente a várias objeções concretas e explícitas (por exemplo, "as tarefas organizativas e administrativas que a revolução coloca (...) cuja implementação deve ser assumida diretamente pelo proletariado vitorioso.”). Se não fizemos neste artigo, é porque nos pareceu necessário dar previamente e com prioridade as linhas gerais históricas e teóricas de nosso marco de análise uma vez que, ademais, estas já são com frequência uma resposta explícita às objeções da OPOP. Podemos voltar a desenvolvê-las em outro artigo se for necessário.
Por fim, consideramos que, por ser essencial, essa questão do Estado no período de transição não é, portanto, a única cujo esclarecimento teórico e prático tenha consideravelmente avançado após a experiência da Revolução Russa: o mesmo ocorre em relação à questão do papel e do âmbito do partido proletário. Seu papel é o de exercer o poder? Seu lugar é no Estado em nome da classe operária? Não. Em nossa opinião, estes são os erros que contribuíram para a degeneração do Partido Bolchevique. Esperamos também poder voltar sobre esse tema em um próximo debate com a OPOP.
Silvio (9/8/2012)
[1] OPOP, Oposição Operária, que existe no Brasil. Veja suas publicações na página revistagerminal.com. Há anos que a CCI mantém com a OPOP relações fraternas e de cooperação concretizadas em discussões sistemáticas entre ambas organizações, panfletos ou declarações assinadas em conjunto (“Repressão à greve de bancários no Brasil” <https://pt.internationalism.org/icconline/2008/repressao-a-greve-de-bancarios-no-brasil [9]>) ou intervenções públicas comuns (“Duas novas reuniões públicas conjuntas no Brasil (OPOP-CCI)”, a propósito das lutas das futuras gerações de proletários <https://pt.internationalism.org/icconline/2006/opop-cci> [10]) bem como a participação recíproca de delegações nos congressos de nossas organizações.
[2] https://pt.internationalism.org/ICConline/2012/Debate_no_meio_revolucion... [11]íodo_de_transicao__Conselhos_operarios_Estado_proletario
[3] Nota de Engels presente na edição francesa (traduzida por nós): "O Estado popular livre, reivindicação inspirada por Lassalle e adotada no Congresso de unificação de Gotha, foi objeto de uma crítica fundamental de Marx na Crítica do programa de Gotha. "
[4] Engels, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico. <https://www.marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/cap03.htm> [12]
[5] Lênin, O Estado e a Revolução, Capítulo IV, "Esclarecimentos Complementares de Engels", ponto 2, "Polêmica com os Anarquistas", <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap4.htm [13]>.
[6] Marx, Crítica do programa de Gotha. <https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm [14]>.
[7] Esquerda Comunista da Itália: do mesmo modo que o oportunismo na Segunda Internacional provocou uma resposta proletária que se concretizou nas correntes de esquerda, também houve correntes da esquerda comunista que resistiram às maré do oportunismo na Terceira Internacional. A esquerda comunista foi essencialmente uma corrente internacional com expressões em muitos países, da Bulgária até Grã Bretanha e dos Estados Unidos até a África do Sul. Mas seus representantes mais importantes estavam justamente nos países onde a tradição marxista alcançou sua maior solidez: Alemanha, Itália e Rússia.
Na Itália, por outro lado, a Esquerda Comunista – que tinha ocupado inicialmente uma posição majoritária dentro do Partido Comunista da Itália – foi particularmente clara sobre a questão da organização e isso lhe permitiu não só empreender uma importante batalha contra o oportunismo dentro da Internacional em declínio, mas além disso gerar uma fração comunista que fosse capaz de sobreviver ao desastre do movimento revolucionário e desenvolver a teoria marxista durante a sombria noite da contrarrevolução. No início dos anos 20, seus argumentos a favor do abstencionismo contra a participação em parlamentos burgueses, contra fundir a vanguarda comunista com grandes partidos centristas para dar una ilusão de "influência de massas", contra os slogans de Frente Única e "governo dos trabalhadores", se basearão também numa profunda compreensão do método marxista. Para mais detalhes veja "A esquerda comunista e a continuidade do marxismo": <https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista [15]>.
[8] Leia, em especial, sobre o tema nosso artigo "El Estado y la revolución (Lenin) – Una brillante confirmación del marxismo" (da série "El comunismo no es un bello ideal, sino que está a la orden del día de la historia", Revista internacional nº 91): <https://es.internationalism.org/rint91-comunismo> [16]. Muitos dos temas abordados em nossa resposta a OPOP estão mais desenvolvidos nesse artigo.
[9] Marx e Engels, Manifesto Comunista. Cap. II – "Proletários e comunistas". Boitempo Editorial, p. 58.
[10] Marx, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Cap. 7, <https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/cap07.htm [8]>
[11] Lênin, O Estado e a revolução, Capítulo III, "A Experiência da Comuna de Paris - Análise de Marx – 1. Onde Reside o Heroísmo da Tentativa dos Comunardos". Na realidade, a expressão utilizada aqui por Lênin é uma adaptação de uma citação de Marx em uma carta a Bracke de 5 de maio de 1875 sobre o programa de Gotha: "Cada passo de movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas", <https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/05/05.htm [17]>
[12] Marx, Manifesto Comunista. Prefácio à edição alemã de 1872. Boitempo Editorial, p. 72.
[13] Ibid.
[14] Lênin, O Estado e a revolução, Capítulo III, op. cit. <https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/05/05.htm [17]>
[15] OPOP, "Conselhos operários, Estado proletário, ditadura do proletariado"
[16] Ibid.
[17] Lênin, O Estado e a revolução, op. cit., Capítulo V, "As Condições Económicas do Definhamento do Estado – 3. Primeira fase da Sociedade Comunista". <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap5.htm [18]>
[18] Essa fórmula é extraída desta passagem: "Uma vez derrubados os capitalistas, uma vez quebrada, pela mão de ferro dos operários armados, a resistência dos seus exploradores, uma vez demolida a máquina burocrática do Estado atual, estaremos diante de um mecanismo admiravelmente aperfeiçoado, livre do "parasita", e que os próprios trabalhadores, unidos, podem muito bem pôr em funcionamento, contratando técnicos, contramestres e guarda-livros e pagando-lhes, a todos, pelo seu trabalho, como a todos os funcionários "públicos" em geral, um salário de operário." (Lênin, O Estado e a revolução, op. cit., Cap. III –3. Supressão do Parlamento). <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap3.htm [19]>
[19] Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, "Capítulo IX: Barbárie e civilização". Ed. Expressão Popular, 1ª ed. p. 213
[20] Lênin, El Estado y la revolución, op. cit., Capítulo II, "La experiencia de los años 1848-1851 – 1. En vísperas de la revolución". <https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/1910s/estyrev/hoja3.htm [20]> Tradução nossa.
[21] Em nossa série de cinco artigos da Revista Internacional "O que são os Conselhos Operários?", evidenciamos as diferenças sociológicas e políticas existentes entre conselhos operários e sovietes territoriais. Os conselhos operários são os conselhos de fábrica. Ao seu lado há também os conselhos de bairro, estes últimos integrando trabalhadores das pequenas fábricas e dos comércios, os desempregados, jovens, aposentados, as famílias que formam parte da classe operária como um todo. Os conselhos de fábrica e bairros (operários) desempenharam um papel decisivo em vários momentos do processo revolucionário (veja o segundo [21] e o terceiro [22] artigo da série). Desse modo, não foi por casualidade que com o processo de degeneração da revolução os conselhos de fábrica desapareceram no fim de 1918 e os conselhos de bairro no fim de 1919. Os sindicatos desempenharam um papel decisivo na destruição dos conselhos de fábrica (sobre isso veja o quinto artigo da série, ainda sem tradução para português: "Los Soviets ante la cuestión del Estado [23]").
[22] Também participaram de fato nesse Estado, e de maneira cada vez mais importante, os experts, os dirigentes do Exército Vermelho e da Checa, etc.
[23] Engels, Introdução à edição de 1891 de A Guerra Civil em França. <https://www.marxists.org/portugues/marx/1891/03/18.htm [24]>
[24] Lênin, O Estado e a revolução, op. cit., Capítulo V, "As Condições Económicas do Definhamento do Estado – 4. Fase Superior da Sociedade Comunista". Este é o contexto da citação de Lênin: "Na sua primeira fase, no seu primeiro estágio, o comunismo não pode, economicamente, estar em plena maturação, completamente libertado das tradições ou dos vestígios do capitalismo. Daí, esse fato interessante de se continuar prisioneiro do "estreito horizonte do direito burguês". O direito burguês, no que concerne à repartição, pressupõe, evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é nada sem um aparelho capaz de impor a observação de suas normas. Segue-se que, durante um certo tempo, não só o direito burguês, mais ainda o Estado burguês, sem burguesia, subsistem em regime comunista!"
[25] Sobre este tema vejam, entre outras coisas, nosso artigo "Comprender la derrota de la Revolución Rusa", da série "El comunismo no es un bello ideal, está a la orden del día de la historia", Revista Internacional no 100. "1921: el proletariado y el Estado de transición [25]"
[26] Trata-se de sindicatos que naquele momento eram considerados ainda por todos como autênticos defensores dos interesses do proletariado. Isto se explica pelo atraso da Rússia, onde a burguesia não desenvolveu um sofisticado aparato estatal capaz de reconhecer a utilidade dos sindicatos como instrumentos da paz social. Por isso, todos os sindicatos que se formarão antes e até durante a revolução de 1917, não eram obrigatoriamente inimigos de classe. Houve particularmente uma forte tendência à criação de sindicatos industriais que seguiam expressando certo conteúdo proletário.
[27] Lenin, "Sobre los sindicatos, el momento actual y los errores del camarada Trotski", 30 de diciembre de 1920. Tradução nossa. <https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/oe12/lenin-obrasescogidas11-12.pdf [26]>
[28] Marx e Engels, Manifesto Comunista. Cap. I – "Burgueses e proletários". Boitempo Editorial, p. 40.
[29] Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, op. cit., p. 213.
[30] Marx, A Guerra Civil em França, primeiro rascunho. Ed. sociales, p. 217. Traduzido por nós do francês.
[31] Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, op. cit., p. 213.
Publicamos aqui uma contribuição de um grupo político do campo proletário, OPOP [1], sobre o Estado no período de transição e suas relações com a organização da classe operária durante esse período. Embora este tema não seja de uma "atualidade imediata", desenvolver a teoria que permitirá ao proletariado levar a cabo sua revolução é uma das responsabilidades fundamentais das organizações revolucionárias. Por isso saudamos o empenho da OPOP em clarear uma questão que será da maior importância para a revolução futura, se vencedora, de modo a possibilitar sua extensão em escala mundial e a transformação da sociedade legada pelo capitalismo para uma sociedade sem classes e sem exploração.
A experiência da classe operária já aportou sua contribuição ao esclarecimento prático e à elaboração teórica dessa questão. A breve experiência da Comuna de Paris, na qual o proletariado tomou o poder durante dois meses, esclareceu sobre a necessidade de destruir o Estado burguês (e não de conquistá-lo como pensavam os revolucionários até então) e da revogabilidade permanente dos delegados eleitos pelos proletários. A Revolução Russa de 1905 fez surgir os órgãos específicos, os conselhos operários, órgãos de poder da classe operária. Após a erupção da Revolução Russa em 1917, Lênin condensou na sua obra O Estado e a Revolução as aquisições do movimento proletário sobre esse tema naquele momento. É dessa ideia resumida por Lênin no conceito de Estado proletário, o Estado dos Conselhos, que se reivindica o texto da OPOP que aqui publicamos.
Segundo a OPOP, o fracasso da Revolução Russa (devido ao seu isolamento internacional) não permite tirar novas lições em relação à postura de Lênin. E sobre essa base, a OPOP rechaça a concepção da CCI que questiona a noção de "Estado Proletário". Ao longo da sua crítica, a contribuição da OPOP toma o cuidado de delimitar os desacordos entre nossas organizações, o que saudamos, colocando em evidência que temos em comum a concepção segundo a qual "os conselhos operários terão de possuir um poder ilimitado (...) e ser a alma da ditadura revolucionária do proletariado".
O ponto de vista da CCI sobre a questão do Estado não é mais do que o prolongamento da reflexão teórica levada a cabo pelas frações da esquerda (especialmente a italiana) surgidas contra a degeneração dos partidos da Internacional Comunista. Embora seja totalmente acertado afirmar que a causa fundamental da degeneração da Revolução Russa foi o seu isolamento internacional, não é por isso que essa experiência não pôde aportar lições sobre o papel do Estado, permitindo desse modo enriquecer a base teórica constituída pelo livro O Estado e a Revolução de Lênin. Contrariamente à Comuna de Paris, que foi claramente vencida pela repressão implacável da burguesia, a contrarrevolução na Rússia (ao não ter sido possível a extensão da revolução) surgiu, por assim dizer, "a partir de dentro", a partir da degeneração do próprio Estado. Como entender esse fenômeno? Como e por que a contrarrevolução pôde tomar essa forma? Nossa crítica à posição do "Estado proletário" defendida na obra de Lênin , assim como em certas formulações de Marx e Engels que vão no mesmo sentido, baseia-se precisamente nos aportes teóricos elaborados a partir dessa experiência.
Evidentemente, contrariamente aos aportes "positivos" da Comuna, as lições que tiramos do papel do Estado são "negativas" e, nesse sentido, se trata de uma questão aberta, que não foi resolvida pela história. Porém como já dissemos mais acima, a responsabilidade dos revolucionários é preparar o futuro. Publicaremos, em um próximo número da Revista Internacional uma resposta às teses desenvolvidas pela OPOP. Podemos evocar aqui, de forma muito resumida, as idéias essenciais que serão desenvolvidas na dita resposta [2]:
[1] OPOP, Oposição Operária, radicada no Brasil. Confira suas publicações em: revistagerminal.com. A CCI mantém relações fraternas e de cooperação que tem se concretizado em discussões sistemáticas entre ambas organizações, panfletos ou declarações assinadas conjuntamente (O ATAQUE AOS TRABALHADORES - No Brasil e no mundo", <https://pt.internationalism.org/icconline/2006/opop-cci-volkswagen-brasil [27]> ou também ("Duas novas reuniões Públicas conjuntas no Brasil (OPOP-CCI)", <https://pt.internationalism.org/icconline/2006/opop-cci [28]> e a participação recíproca de delegações nos congressos de ambas organizações.
[2] Já expostas nos artigos "Période de transition – Projet de Resolution", Revue internationale no 11 (https://fr.internationalism.org/rint11/periode_de_transition.htm [29]) e "O estado no período de transição" <https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_período_de_transicao [30]>"".
Dos pontos que foram levantados até o momento em discussão entre OPOP e a CCI, uma questão que ficou por demais em evidencia é a importância de se travar um debate de maneira mais sistemática acerca do Estado durante a fase socialista de transição para o comunismo. Nesta questão os companheiros da CCI possuem uma concepção diferente da nossa, no que se refere basicamente aos conselhos, estruturas genuínas da classe operaria, estabelecidos enquanto órgãos de um Pré-Estado e do Estado propriamente dito. Para a CCI o Estado é uma coisa e o Conselho, outra, totalmente diferente. Para nós, os conselhos são as formas em que a classe operária se constitui organizadamente em Estado, ditadura do proletariado.
A concepção marxista do Estado proletário concebe, no curto prazo, a idéia da necessidade de um instrumento de dominação de classe, e, no longo prazo, acena com a idéia de uma outra necessidade, a do fim do próprio Estado. O que o marxismo propõe é que deverá prevalecer no comunismo—a sociedade sem classes—, a desnecessidade da opressão de homem ou mulher, não existindo mais segmentos sociais dispostos em relação de antagonismo social, como o que se estabelece hoje a partir da apropriação privada dos meios de produção e da separação entre os produtores diretos e os próprios meios de produção. Para o marxismo o desaparecimento do Estado e, portanto, da dominação de uma classe sobre outra não é decorrência de imperativos morais, mas uma condição objetiva, uma vez mais, necessariamente, em decorrência do desaparecimento da escassez dos meios de reprodução da própria vida humana em sociedade.
Portanto, já a sociedade, então, altamente evoluída e desenvolvida, passará a um estagio de auto-governo e administração das coisas, onde não se necessitará de nenhuma organização transitória até então experimentada a partir do homo sapiens, nem muito menos dos conselhos, que é a forma de Estado mais evoluída (embora simplificada e a caminho da auto-extinção) que a classe operaria utilizará para a passagem da primeira fase do comunismo (o socialismo) para a fase superior da sociedade sem classes. Mas, para que se chegue a esse estagio, deverá a classe operaria, muito tempo antes, construir o seu mecanismo de transição, os conselhos, em escala planetária.
Cabe nesse momento às organizações comunistas não a fiscalização—muito menos de fora para dentro—do Estado, mas sim a luta continua, de dentro do próprio Estado-Comuna, para que o Estado operário atinja a sua luta mais revolucionária, construído pela classe operaria e pelo conjunto do proletariado através dos conselhos. Os conselhos, por sua vez, deverão sim, vestir a camisa dos que lutam pela do novo Estado, tendo o entendimento de que são eles o próprio Estado.
O Estado dos Conselhos é revolucionário tanto na forma quanto no conteúdo. Ele difere, na essência, do Estado burguês, da(s) sociedade(s) capitalista(s), assim como das demais sociedades que o precederam. O Estado dos Conselhos existe em função do estabelecimento da classe operaria em classe dominante tal qual está colocado no Manifesto do Partido Comunista de 1848, elaborado por Marx e Engels. Neste sentido, as funções que lhe cabem diferem radicalmente das do Estado burguês capitalista, na medida em que se processa uma mudança, uma transformação quantitativa e qualitativa num só momento de ruptura do velho poder estatal para a nova forma de organização social: o Estado dos Conselhos.
O Estado dos Conselhos é, ao mesmo tempo e dialeticamente, a negação política e social da ordem anteriormente estabelecida; por isso mesmo ele é, também dialeticamente, a negação e a afirmação da forma Estado: negação quando dá inicio à sua própria extinção e extinção simultânea de toda e qualquer forma de Estado; afirmação como potencialização extrema de sua força, pressuposto de sua própria negação—na medida que um Estado pós-revolucionário fraco seria impotente para resolver a sua própria existência ambígua: dar cabo à tarefa da repressão à burguesia como premissa de seu passo decisivo, o ato de seu desaparecimento. Enquanto no Estado burguês a relação entre ditadura versus democracia se dá através de uma relação combinada de unidade contraditória (dialética) em que a ampla maioria é submetida através da dominação política e militar da burguesia, no Estado dos Conselhos esses pólos são invertidos e o proletariado, que antes tinha uma participação politicamente nula, devido ao processo de manipulação e exclusão das decisões a que está submetido, passa a desempenhar o papel dominante no processo de luta de classes, estabelecendo aí a mais ampla democracia política de que se tem notícia na historia, que, como não poderia deixar de ser, estará também combinada com o estabelecimento da ditadura da maioria explorada sobre uma minoria despojada e expropriada, que tudo fará para organizar o movimento da contra-revolução.
É assim o Estado dos Conselhos, a expressão máxima da ditadura do proletariado, que usará esse poder não só para garantir a mais ampla democracia para os trabalhadores em geral e à classe operaria em particular, mas, antes e acima de tudo, pra reprimir de forma organizada ao extremo, as forcas da contra-revolução.
O Estado dos Conselhos condensa em si, como já foi dito, a unidade entre conteúdo e forma. No período de situação revolucionaria, em que os bolcheviques organizaram a insurreição na Rússia em outubro 1917, foi quando esta questão ficou mais clara. Ali, naquele período, era impossível fazer-se distinção entre o projeto de poder da classe operaria, o socialismo, o conteúdo portanto, e a forma de organização, o Estado de novo tipo, que se queria construir baseado nos sovietes. Socialismo, poder operário e sovietes eram a mesma coisa, de forma que não se podia falar de um sem entender que se estava falando automaticamente do outro. Assim, não é pelo fato de se ter construído uma organização estatal posterior cada vez mais distante da classe operaria na Rússia que devemos deixar de lado a tentativa revolucionaria de se estabelecer o Estado os Conselhos.
Os sovietes (conselhos), através de todos os mecanismos e elementos da burocracia que foram herdados foram, na URSS, destituídos de seu conteúdo revolucionário para se constituírem em um órgão institucionalizado nos moldes de um Estado burguês. Mas, por conta disso, não significa que tenhamos de deixar de lado a tentativa de se construir um Estado de novo tipo, cuja estrutura básica de funcionamento esteja devidamente acertada naquilo que de mais importante a classe operaria criou no seu processo histórico de luta, enquanto forma de organização que precisa ser aperfeiçoado em diversos aspectos, mas que, desde basicamente a Comuna de Paris, de 1871, vem sendo colocada como ensaios gerais da construção do Estado-Conselho.
Nos dias atuais a tarefa de estabelecer os conselhos como forma de organização estatal se coloca numa perspectiva não mais de um único país, mas sim à escala internacional e é este o desafio principal da classe operaria. Portanto, entender que o Estado dos Conselhos é a tentativa que nos propomos neste breve ensaio, uma elaboração teórica para um ponto que a historia da classe operaria já colocou no seu exercício pratico de enfrentamento com as forças do capital. Passemos à analise.
Para evitar repetições e redundâncias, dá-se por visto, neste escrito, que assumimos à la letre todas as definições teóricas e políticas de principio que definem o corpo doutrinário de O Estado e a Revolução de Lênin. Em adendo esclarecemos ao leitor que só lembraremos de premissas leninistas na medida em que sejam imprescindíveis à necessária fundamentação de alguns postulados que uma oportuna atualização de assunto tão urgente requer; e que, ademais, só o faremos na medida em que forem necessárias para esclarecer e fundamentar o intento teórico-político aqui posto, a saber: o das relações entre o sistema de conselhos e o Estado proletário (= ditadura do proletariado) com sua forma ex-ante, o pré-Estado.
De outro ângulo de visão, a mesma e já citada obra de Lênin também se revela igualmente útil e insubstituível, porquanto ela encerra o apanhado mais completo de passagens de Engels e Marx acerca do Estado da fase de transição—de tal maneira que temos à mão densa fartura das posições mais avançadas e autorizadas, em toda a literatura política já produzida, acerca do Estado e da Revolução.
Comentando Engels, Lênin faz, em duas passagens de seu escrito, as seguintes afirmações: "O Estado é o produto e a manifestação do fato de as contradições de classe serem inconciliáveis (...) segundo Marx, o Estado não poderia surgir nem manter-se se a conciliação de classes fosse possível" e "... o Estado é um organismo de dominação de classe, um organismo de opressão de uma classe por outra" (os destaques em itálico são do autor). Conciliação e dominação, dois conceitos muito precisos na doutrina do Estado de Marx, Engels e Lênin. Conciliação significa negação de toda e de qualquer contradição entre os termos de dada relação e, na esfera social, na ausência de contradição na constituição ontológica das classes sociais fundamentais no âmbito de uma formação social qualquer. Por outro lado, falar de Estado não faz sentido—como historicamente está provado—em sociedades, como nas sociedades primitivas, simplesmente porque não existem classes sociais, exploração, opressão e dominação de uma classe sobre outra. Por outro lado, falando-se da mesma constituição ontológica das classes sociais, dominação é noção que exclui esta outra, hegemonia, de vez que uma situação de hegemonia supõe compartilhamento—apenas desigual—de posições num mesmo contexto estrutural. Disso resulta que, no terreno da socialidade burguesa, que se estende ao da revolução, em cujos contextos burguesia e proletariado se situam e se batem em posições diametralmente antagônicas, não faz sentido falar de hegemonia da burguesia sobre o proletariado, ao passo que faz sentido falar de hegemonia entre frações da burguesia que compartilham do mesmo poder de Estado e de hegemonia do proletariado sobre as classes que com ele compartilham do objetivo comum da tomada do poder pela via da derrubada do inimigo estratégico comum.[1]
Noutra passagem, citando Engels, Lênin fala da força pública, este pilar característico do Estado burguês—o outro é a burocracia—constituída de todo um aparato militar repressivo e especializado, que se coloca separado e acima da sociedade e "... que já não coincide diretamente com a organização da própria população em força armada." O destaque desse componente básico da ordem burguesa tem aqui uma intenção clara: mostrar como, no contraponto, é igualmente incontornável a constituição de uma força armada, muito mais forte e consistente, do proletariado em armas para reprimir, com decisão mais resoluta ainda, o inimigo de classe batido mas ainda não abatido, a burguesia. Em que instancia da ditadura do proletariado deve situar-se esta força repressiva é assunto a ser tratado em capitulo próprio do presente escrito.
O outro pilar sobre o qual se assenta o poder burguês é a burocracia, composta de funcionários do Estado, que gozam de privilégios cumulativos, entre os quais honorários diferenciados, cargos vitalícios, sinecuras perpétuas, no âmbito do qual se somam todas as vantagens provenientes das inerentes práticas da uma larga e recorrente corrupção. Se as milícias populares ganham força redobrada à medida que sofrem uma simplificação estrutural, também aqui acontece aumento da eficácia das tarefas executivas, legislativas e judiciárias, na mesma medida em que são também simplificadas—e justo pela mesma razão: as tarefas de execução, dos tribunais e das funções legislativas ganham força no mesmo diapasão em que são assumidas diretamente pelos trabalhadores em circunstancias nas quais a revogabilidade dos cargos é estabelecida com vistas a coibir, desde o início, a tendência ao ressurgimento das castas, mal do qual padecem todas as sociedades que foram paridas de revoluções "socialistas" em toda a extensão do século XX.
Burocracia e força pública profissional, as duas vigas mestras nas quais se apóia o poder político da burguesia; os dois complexos esteios cujas funções deverão ser substituídas pelos próprios operários em estruturas simplificadas—a caminho da extinção—, porém muito mais eficazes e mais fortes; simplificação e força que se opõem num movimento que acompanha todo o processo de transição até que não exista mais nenhum traço da última sociedade de classe. O problema que devemos resolver agora é: qual a instancia que, para Marx, Engels e Lênin, deve assumira ditadura do proletariado?
O nosso trio não deixa qualquer duvida quanto a isto: "... o proletariado servir-se-á da sua supremacia política para arrancar, pouco a pouco, todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, quer dizer, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível a quantidade de forças produtivas." Ou seja, Estado proletário (sic) = "proletariado organizado em classe dominante." "O Estado, isto é, o proletariado organizado em classe dominante." (sic). Até aqui, a trajetória do raciocínio de Lênin, Engels e Marx é o seguinte: o proletariado derruba, pela revolução, a burguesia do poder; em derrubando a máquina estatal da burguesia, estará destruindo a referida máquina de Estado para, ato continuo, erguer o seu Estado, simplificado e em vias de extinção, o qual mais forte—porque dirigido pela classe revolucionaria—, assume duas ordens gerais de tarefas: reprimir a burguesia e construir o socialismo (como fase de transição para o comunismo).
Mas, de onde Marx retira esta convicção de que a ditadura do proletariado é o Estado proletário? Da Comuna de Paris ... simplesmente! Com efeito, "... A Comuna foi composta por conselheiros, eleitos por sufrágio universal nos diversos bairros da cidade. Eram responsáveis e podiam ser substituídos em qualquer momento. A maioria dos seus membros era, naturalmente, operários ou representantes reconhecidos da classe operária." (o destaque em itálico é nosso) A questão avançou muito mais o que ele quer dizer exatamente com isso?): os membros do Estado proletário (sic), Estado-Comuna, são eleitos nos conselhos de bairros, o que não quer dizer que não existam conselhos de operários que se coloquem à testa de tais conselhos—como na Rússia, com os sovietes. A questão da hegemonia da direção operária está garantida pela maioria dos operários nesses conselhos—e, obviamente, pela ação de direção que o partido deve exercer em tais instâncias.
Falta apenas um ingrediente para articular a proposta de Estado proletário, Estado-Conselho, Estado-Comuna, Estado socialista ou ditadura do proletariado: o método de tomada de decisões—e é aqui que se formula e se compreende este princípio universal que muitos marxistas não conseguem compreender, que é o centralismo democrático: ".. esse centralismo democrático não é, de maneira alguma entendido por Engels no sentido burocrático que lhe dão os ideólogos burgueses e pequeno-burgueses e, entre esses últimos, os anarquistas. O centralismo, para Engels, não exclui de forma alguma uma larga autonomia administrativa local que, na condição de as `comunas` e as regiões defenderem de sua livre vontade a unidade do Estado, suprime incontestavelmente toda a burocracia e todo o `autoritarismo` vindo de cima." Vê-se também que o termo e o conceito de centralismo democrático não é criação do stalinismo, como querem alguns—que tentam descaracterizar este método essencialmente proletário—, mas do próprio Engels e nem assume, por isso mesmo, a conotação pejorativa impressa pelo centralismo burocrático utilizado pela nova burguesia de Estado na URSS.
A separação antinômica entre o sistema de conselhos e o Estado pós-revolucionário constitui um equívoco por mais de um motivo. Um deles reside numa postura que se constitui num deslocamento desde a concepção de Marx, Engels e Lênin até uma certa influência da concepção anarquista de Estado. Separar Estado proletário de sistema de conselhos é o mesmo que quebrar a unidade que deve existir e persistir no âmbito da ditadura do proletariado. Tal separação coloca de um lado o Estado como uma estrutura administrativa complexa, a ser gerenciada por um corpo de funcionários—um absurdo na concepção de Estado simplificado de Marx, Engels e Lênin—e de outro uma estrutura política, no âmbito dos conselhos, a exercer pressão sobre a primeira (o Estado como tal). Esta concepção, que resulta de uma acomodação de uma visão influenciada pelo anarquismo com a identificação do Estado Comuna com o Estado burocrático (burguês) saído das ambiguidades da Revolução Russa, coloca o proletariado fora do Estado pós-revolucionário, criando, aí sim, uma dicotomia que é, ela própria, a sementeira de uma nova casta a se reproduzir no corpus administrativo apartado organicamente dos Conselhos.
Um outro motivo do mesmo equivoco, que está casado com o motivo anterior, reside no estabelecimento de uma estranha relação de identificação a-crítica do Estado erguido na URSS pós-revolucionária—um Estado obrigatoriamente burocrático—com a concepção de Estado-Comuna de Marx, Engels e do próprio Lênin, erro que consiste em não compreender as ambigüidades que resultaram das circunstancias históricas e sociais especificas que bloquearam não só a transição, como mesmo o início da ditadura do proletariado na URSS. Aqui, deixa-se de compreender que os rumos tomados pela Revolução Russa—a menos que se considere a versão mais fácil e, portanto, também, mais fraca, de que os desvios do processo revolucionário foram implantados por Stalin e sua entourage— , não obedeceram à concepção de revolução, de Estado e de socialismo de Lênin, mas a restrições que emanavam do terreno social e político no qual se deu a montagem do Poder na URSS, entre os quais, só para lembrar, a impossibilidade da revolução na Europa, a guerra civil e a contra-revolução no interior da URSS, entre outros—, rumos esses alheios á vontade de Lênin e acerca dos quais ele próprio examinava e que marcou formulações reiteradamente ambíguas em todo o seu pensamento ulterior até a sua morte; ambigüidades que se localizavam mais das marchas e contra-marchas da revolução—e que se refletiam no pensamento que tentava compreendê-las—do que na concepção teórico-politica de Lênin e dos chefes bolcheviques que mantinham concordância com ele.
Um terceiro motivo deste equívoco consiste em não considerar que as tarefas organizativas e administrativas que a revolução coloca, desde logo, na ordem do dia são tarefas políticas incontornáveis, cuja implementação deve ser assumida diretamente pelo proletariado vitorioso. Assim, questões candentes como a planificação centralizada—cuja forma burocrática, no sistema GOSPLAN (Comissão Central de Planificação), foi por muito tempo confundida com "centralização socialista"— apenas para falar daquele aspecto mais digno de nota, não são questões meramente "técnicas", mas sumamente políticas, e que, como tais, não podem ser delegadas, ainda que "fiscalizadas", desde fora, pelos conselhos (delegadas ou "fiscalizadas" pelos conselhos), para um corpo de funcionários situados fora do sistema de conselhos nos quais estavam os operários mais conscientes (difícil de entender). Hoje se sabe que o sistema ultra-centralizado da planificação "socialista" não era nada além de um aspecto da própria centralização burocrática do capitalismo de Estado "soviético" que mantinha o proletariado alheio e afastado de todo o sistema de definição de metas, das decisões acerca do que deveria ser produzido e de como distribuído, alocação de recursos, etc. Se se tratasse de uma verdadeira planificação socialista, tudo isso deveria passar por uma ampla discussão no âmbito dos conselhos, ou seja, do Estado-Comuna, de vez que o Estado proletário se confundiria com o sistema-conselho—já que o Estado socialista era "uma `máquina` muito simples, quase sem `máquina`, sem aparelho especial (o grifo é nosso), pela simples organização das massas armadas (como, diremos nós por antecipação, os Sovietes dos deputados operários e soldados)".
Uma outra incompreensão reside em não perceber que a verdadeira simplificação do Estado-Comuna implica, conforme está expresso por Lênin nas palavras logo acima transcritas, num mínimo de estrutura administrativa e que tal estrutura é tão mínima—e em processo de simplificação/extinção—que pode ser assumida diretamente pelo sistema de conselhos; e que, portanto, não faz sentido usar como referencia o Estado "soviético" da URSS para questionar o Estado socialista que Marx e Engels viram nascer da Comuna de Paris. De fato, ao se estabelecer um traço de união entre o Estado dos Conselhos e o Estado burocrático saído da Revolução Russa está-se dando ao Estado proletário uma estrutura burocrática que um verdadeiro Estado pós-revolucionário, simplificado e em vias de simplificação/extinção não possui, mas que exatamente nega.
Aliás, o caráter e a extensão do Estado dos Conselhos (= Estado proletário = Estado Socialista = Ditadura do Proletariado = Estado-Comuna = Estado Transitório) estão maravilhosamente resumidos nesta passagem escrita pelo próprio Lênin: "... o `Estado`, é ainda necessário, mas já é um Estado transitório, já não é o Estado propriamente dito (...)". Mas, direis, se esta era a verdadeira concepção de Estado socialista de Lênin, por que ele não o "aplicou" na URSS depois da Revolução de Outubro, sendo que o que se viu foi exatamente o oposto de tudo isso, distorções que vão desde a extrema centralização burocratizada (desde o Exército à burocracia estatal e às unidades de produção) à mais brutal repressão aos marinheiros do Kronstadt? Pois é, tudo isso só revela como revolucionários do porte de Lênin podem eventualmente se ver envolvidos por contradições e ambigüidades de tal monta—e este era o exato contexto nacional e internacional da Revolução de Outubro—que podem levá-los, na prática, a ações e decisões muitas vezes diametralmente opostas às suas maiores convicções. No caso de Lênin e do Partido bolchevique, bastava uma das impossibilidades—que eram muitas—para levar a revolução a rumos não desejados. Uma só era mais do que suficiente: a situação de isolamento de uma revolução que não podia recuar, mas que se viu isolada e que não teve outra alternativa senão a de tentar abrir caminhos ã construção do socialismo num só país, a Rússia Soviética—tentativa contraditória que foi iniciada já nos tempos de Lênin e Trotsky. O que eram o Comunismo de Guerra, a NEP, entre outros empreendimentos, senão isto?
E aí, como ficamos nós? Devemos fazer finca-pé nas concepções de Estado, programa, revolução e partido de Lênin, Marx e Engels e tentar, num futuro qualquer, quando problemas concretos como o da internacionalização da luta de classe, entre outros, apontarem para possibilidades concretas para a revolução e para a construção socialistas em vários países, para objetivarmos e plasmarmos socialmente aquelas concepções de Marx, Engels e Lênin ou, inversamente, abrimos mão, diante das primeiras dificuldades, daquelas posições de princípio, trocando-as por figurações políticas rebaixadas que só trarão o abandono da perspectiva da revolução e da construção do socialismo?
a) O Estado-Conselho
Depois de analisar as premissas econômicas da supressão das classes sociais, vale dizer, as premissas "para que `todos` possam realmente participar na gestão do Estado", Lênin, sempre tomando como referência as formulações de Engels e Marx, afirma que "com tais premissas econômicas, pode-se muito bem, depois de ter derrubado os capitalistas e os funcionários, substituí-los imediatamente, de um dia para o outro, pelo controle da produção e da repartição, pelo registro do trabalho e dos produtos, pelos operários armados, por todo o povo armado." "Registro e controle, eis o essencial, tanto ‘para por em marcha’ como para o funcionamento da sociedade comunista na sua primeira fase. Nesta, todos os cidadãos se transformam em empregados assalariados do Estado." Mais adiante: "Em regime socialista, toda a gente governará alternadamente e se habituará depressa a que ninguém governe." A etapa do socialismo "... colocará a maior parte da população em condições que permitiam a todos, sem exceção, desempenhar as `funções publicas..."
Todos os cidadãos, bem lembrado, organizados no sistema de conselhos, ou por outra, no Estado operário, já que, para Marx, Engels e Lênin, a simplificação das tarefas chegará a um ponto que as tarefas "administrativas" básicas, reduzidas ao extremo, não só poderão ser assumidas pelo proletariado e o povo em geral, como poderão ser assumidas diretamente pelo sistema de conselhos—que é, ao fim e ao cabo, o próprio Estado. Qual é o verbo principal desta frase????
Assim, o Estado proletário, Estado socialista, ditadura do proletariado não é outra coisa senão o Sistema de Conselhos—e o Sistema de Conselhos, que garantirá a hegemonia da classe operária em toda a sua extensão, assumirá diretamente, sem que seja necessário nenhum corpo administrativo especifico, tanto a defesa do socialismo como as funções de gestão estatal e das unidade produtivas.. Por fim, essa unidade da ditadura do proletariado, será assegurada pela unidade política-administrativa simplificada, numa mesma totalidade chamada de Estado-Conselho.
b) O pré-Estado-Conselho
O Sistema de Conselhos que, na situação ex-post, deverá assumir a transição no âmbito estrutural (implantação das novas relações de produção, eliminação de todas as hierarquias na produção, negação de todo vestígio de toda e qualquer forma mercantil, etc.) e superestrutural (eliminação de toda hierarquia herdada do Estado burguês, de toda burocracia, negação de toda ideologia herdada da formação social anterior, etc.) é o mesmo Sistema de Conselhos que, na situação ex-ante, constituiu a organização revolucionária que derrubou a burguesia e seu Estado. Trata-se, pois, de um mesmo corpus que trocou de ênfases nas duas etapas de um mesmo processo da revolução social: cumprida a tarefa insurrecional, dar inicio à execução da nova tarefa que terá levado a termo a verdadeira revolução social—a ruptura de uma formação que caducou e a inauguração de uma nova formação social, o socialismo, logo em marcha de transição para a formação social comunista, a segunda formação social sem classes sociais da História (a primeira é, como se sabe, a sociedade primitiva).
Pois bem, é a este sistema de conselhos que chamamos de pré-Estado (proletário). Está visto que tal denominação não tem, pelo seu conteúdo, nada de original, posto que foi, é e será sempre uma realidade corriqueira nos processos revolucionários inaugurados pela Comuna de Paris. Ali, os communards que tomaram o Poder a partir das comunas, foram os mesmos que assumiram o poder de Estado—ditadura do proletariado—e que inauguraram, ainda que com evidentes erros de juventude, a montagem de uma ordem socialista. Processo semelhante voltou a acontecer em Outubro de 1917. A primeira experiência não pôde, nas circunstâncias em que aconteceu, completar-se e foi abatida pela força contra-revolucionaria burguesa passados apenas pouco mais de dois meses de uma memorável existência. A segunda, como se sabe, também não pôde ser completada por conta da ausência de condições, externas e internas, entre as quais a impossibilidade de lavar a termo a construção do socialismo num só país.
Nos dois casos houve um pré-Estado, mas, também nos dois casos, um pré-Estado que, se de um lado pôde levar a termo a insurreição, por outro não pôde ser preparado, com a antecedência necessária, para as tarefas da construção do socialismo. No caso de 1917, somente nas vésperas de Outubro é que o único partido (o partido bolchevique) que tinha as condições teóricas para preparar a vanguarda da classe organizada nos sovietes, sobretudo no de São Petersburgo, não pôde ensinar à classe senão as tarefas urgentíssimas da insurreição. A nós parece que, não obstante a consciência—principalmente em Lênin—da importância cabal dos sovietes desde 1905, somente depois de Fevereiro de 1917 é que, no caso de Lênin, esta consciência se tornou convicção. Daí porque o partido de Lênin não teve o cuidado de jogar toda a carga pesada da melhor militância de seus quadros de massa nos sovietes (os mencheviques lá chegaram mais cedo), inclusive—e já que o seu retorno, depois do seu aparecimento, em 1905, era facilmente dedutível—na preparação prévia dos operários para um ressurgimento dos sovietes mais cedo e com uma formação também prévia mais potencializada—formação, mesmo que para a vanguarda mais resoluta da classe organizada nos sovietes, que deveria incluir, sob o fogo de um debate sem tréguas entre tais operários, as questões da tomada insurrecional do poder e as noções de toda a teoria marxista acerca da constituição do Estado operário e da construção do socialismo. Esse debate faltou, quer por falha na percepção da importância do sovietes desde mais cedo, quer por falta de tempo de levar o debate aos operários dos sovietes a apenas dois meses da insurreição. Seja como for, o resultado é que a não preparação da vanguarda da classe para a tomada do poder e a organização imediata, sob a sua presença, sua direção e sua intervenção, para a construção do socialismo, funcionou como um dos fatores adversos para a constituição de uma autêntica ditadura do proletariado, com base na representação nos conselhos, na URSS. Tal lacuna, em grande medida provocada pela ausência de um pré-Estado comme il faut, isto é, de um pré-Estado que constituísse uma escola da revolução, foi um embaraço a mais do malogro da Revolução Russa de 1917.
Como o próprio Lênin sempre assinalou, os revolucionários comunistas são homens e mulheres que devem ter uma formação teórica marxista muito sólida. Uma formação marxista sólida requer conhecimentos acerca da dialética, da economia política, do materialismo histórico e dialético que facultarão aos quadros e militantes de um partido de quadros não só analisar e compreender as conjunturas passadas e presentes, como também captar, no essencial, processos que podem ser previstos em pelo menos em seus traços mais gerais (essas ordens de predição podem ser constatadas em muitas das analises feitas ao longo dos Cadernos Filosóficos de Lênin). Daí que uma verdadeira formação marxista pode assegurar aos quadros e militantes de um autêntico partido comunista a faculdade de prever, com antecipação, os cenários possíveis de desdobramento de uma crise com a atual, e que prever todo um largo processo de situações revolucionarias não constitui nenhum "bicho de sete cabeças".
Mais que isso, é perfeitamente previsível prever (com certeza) a coisa mais óbvia desse mundo—até porque, aqui e ali, já começam a vir à tona formas embrionárias—: a criação, desde este exato momento, de formas embrionárias de conselhos que deverão ser analisadas, ab imo pectore, sem preconceito, portanto, para, uma vez interpretadas teoricamente, voltar (o que ou quem vai voltar aos trabalhadores?)) aos trabalhadores para que corrijam os erros e as lacuna de tais experiências, para que as potencializem em número e em conteúdo, até que se tornem, em futuro próximo—esta garantia nos é dada pelo estagio avançado em que se encontra a crise estrutural do capital—, no bojo de situações revolucionárias concretas, o sistema de conselhos, formado na interação dialética de pequenos círculos (nos locais de trabalho, de estudos e de moradia), comissões (de fabricas) e de conselhos (de bairros, de regiões, de zonas industriais, nacionais, etc.) que deverá constituir-se, ao mesmo tempo, na peça dorsal da insurreição e, no futuro, órgão da ditadura revolucionária do proletariado.
Para a CCI, como para nós, os conselhos operários devem deter um poder ilimitado e, como tais, devem constituir-se nos órgãos básicos do poder operário, além de que devem constituir-se a alma da ditadura revolucionária do proletariado. Mas, logo a partir daí, surgem as nossas diferenças a este respeito. E quais são essas diferenças? Em primeiro plano está a separação abissal, para nós incorreta, que a CCI estabelece entre os Conselhos e o Estado-Comuna, como se este Estado-Comuna e os Conselhos fossem coisas qualitativamente distintas. Depois de operar esta separação, a CCI coloca um traço de ligação segundo o qual os Conselhos passariam a exercer pressão e controle sobre "o semi Estado do período de transição", para que esse mesmo Estado(-Comuna)—que, na visão da CCI, "não é o portador nem o agente ativo do comunismo"—não cumprisse o seu papel imanente de conservador do statu quo (sic) e "obstáculo" à transição.
Para a CCI, "o Estado tende sempre a aumentar-se desmedidamente", resultando "num terreno de predileção a toda a lama arrivistas e outros parasitas (que) recruta facilmente os seus quadros entre os (...) resíduos e vestígios da antiga classe dominante em decomposição." [2] E arremata esta sua visão do Estado socialista afirmando que Lênin "pôde constatar (esta função do Estado) quando fala(va) do Estado como a reconstituição do antigo aparelho de Estado czarista" e quando afirmava que o Estado parido da Revolução de Outubro tendia "a escapar ao nosso controle e gira(r) no sentido contrário que queremos, etc." Para a CCI "o Estado proletário é um mito" e que "Lénine rejeitava-o, recordando que era ‘um governo dos trabalhadores e dos camponeses com uma deformação burocrática’". Mais ainda, para a CCI "a grande experiência da revolução russa está lá para testemunhar. Cada cansaço, cada insuficiência, cada erro do proletariado tem imediatamente por consequência o reforço do Estado, e contrariamente, cada vitória, cada reforço do Estado faz-se despojando ligeiramente mais o proletariado. O Estado alimenta-se do enfraquecimento do proletariado e a sua ditadura de classe. A vitória de um é a derrota do outro." [3] Também afirma, noutras passagens, que "o proletariado guarda sua ampla e inteira liberdade em relação ao Estado. Sob nenhum pretexto, o proletariado não saberia reconhecer a primazia de decisão dos órgãos do Estado sobre a da sua organização de classe: os conselhos operários, e deveria impôr o contrário"; que o proletariado "não saberia tolerar a ingerência e a pressão de nenhuma espécie do Estado na vida e a atividade da classe organizada que exclui qualquer direito e possibilidade de repressão do Estado"; que "o proletariado conserva o seu armamento fora de qualquer controle do Estado"; e que, finalmente, etc., etc." "a condição primeira é a não .identificação da classe com o Estado."
O que dizer da visão dos companheiros da CCI acerca do Estado-Comuna? Em primeiro lugar que nem Marx, nem Engels e nem Lênin, como se viu nos comentários feitos mais atrás do O Estado e a Revolução, endossam a concepção de Estado expressa pela CCI. Como vimos, o Estado Comuna era, para eles, o Estado dos Conselhos e a expressão do poder do proletariado e da sua ditadura de classe. Para Lênin, o Estado pós-revolucionário não só não era um mito, como pensa a CCI, como era, sim, o Estado proletário" Com que direito se pode chamar a este Estado que a CCI concebe de Estado-Comuna?
Em segundo lugar, como também já analisamos mais atrás, a separação antinômica entre o sistema de conselhos e o Estado pós-revolucionário, proposta pela CCI, opera um deslocamento desde a concepção de Marx, Engels e Lênin até uma certa influência da concepção anarquista de Estado. E aqui temos de reiterar o que já dissemos mais atrás, vale dizer, que separar Estado proletário de sistema de conselhos é o mesmo que quebrar a unidade que deve existir e persistir no âmbito da ditadura do proletariado e que tal separação coloca de um lado o Estado como uma estrutura administrativa complexa, a ser gerenciada por um corpo de funcionários—um absurdo na concepção de Estado simplificado de Marx, Engels e Lênin—e de outro uma estrutura política, no âmbito dos conselhos, a exercer pressão sobre a primeira (o Estado como tal).
Em terceiro lugar, repetimos: esta concepção, que resulta de uma acomodação de uma visão influenciada pelo anarquismo com a identificação do Estado Comuna com o Estado burocrático (burguês) saído das ambiguidades da Revolução Russa, coloca o proletariado fora do Estado pós-revolucionário, criando, aí sim, uma dicotomia que é, ela própria, a sementeira de uma nova casta a se reproduzir no corpus administrativo apartado organicamente dos Conselhos. A CCI não tem o direito e confundir a concepção de Estado de Lênin com o Estado parido das ambigüidades da Revolução de Outubro de 1917. Quando Lênin se queixava das atrocidades do Estado como ele se configurou na URSS, ele não estava a descartar a sua concepção de Estado-Comuna, mas dos desvios que o Estado russo tomou depois de Outubro.
Em quarto lugar, a CCI não considera, como nós consideramos, que as tarefas organizativas e administrativas que a revolução coloca, desde logo, na ordem do dia são tarefas políticas incontornáveis, cuja implementação deve ser assumida diretamente pelo proletariado vitorioso—como também já afirmamos mais atrás.
Em quinto lugar, os companheiros da CCI parecem não se dar conta de que, também como já afirmamos mais atrás, a verdadeira simplificação do Estado-Comuna implica, conforme está expresso por Lênin, num mínimo de estrutura administrativa e que tal estrutura é tão mínima—e em processo de simplificação/extinção—que pode ser assumida diretamente pelo sistema de conselhos.
Em sexto e último lugar, é unicamente assumindo diretamente e por dentro, as tarefas simplificadas de defesa e da transição/construção socialista do Estado-Conselho, que a classe operaria vai ter as condições de evitar que se instale um xisto estatal estranho ao Estado-Conselho e de exercer controle não só sobre o que se passa dentro do Estado como em toda a amplitude da sociedade. Para isso, vale lembrar, o Estado proletário, Estado-Comuna, Estado socialista, Ditadura do Proletariado, não é outra coisa senão o sistema de conselhos que terá assumido tarefas básicas de organização—em milícias, jornadas, brigadas de trabalho e outras modalidades de tarefas igualmente revolucionárias (revogabilidade de cargos, salários iguais,, etc.), tarefas também igualmente simplificadas de luta e de organização de uma sociedade de transição. Como o arguto comentarista da Comuna escreveu, "... a Comuna, entretanto, não era nenhuma espécie de órgão parlamentar, mas um grupo de trabalho com funções, ao mesmo tempo, legislativas e executivas. Sua organização previu a criação de dez comissões: militar, finanças, justiça, segurança, trabalho, alimentação, indústria e comércio, ensino e serviços públicos, sendo que os representantes de cada comissão integravam uma Comissão Executiva, responsável pelas políticas gerais da Comuna." Para isso não será necessário criar nenhum monstrengo administrativo, muito menos burocrático ou qualquer outra forma herdada ou que lembre do/o Estado burguês destruído ou do/o estado burocrático do capitalismo de Estado da ex-URSS.
Seria ótimo que a CCI se debruçasse no O Estado e a Revolução de Lênin, exatamente sobre a defesa que ele, apoiado em Engels e Marx, justifica o Estado-Comuna como o Estado dos Conselhos, Estado Proletário, Ditadura do Proletariado, passagens por nós ressaltadas neste pequeno escrito.
[1] Este é um exemplo das confusões e ambiguidades do acervo de categorias teóricas e políticas, ao lado de outras, como a mais central delas, sociedade civil, introduzidas por Antonio Gramsci na doutrina marxista, levadas até seus limites lógicos e políticos por seus seguidores e cujas aporias foram brilhantemente exploradas por Perry Anderson no seu já clássico As antinomias de Gramsci.
[2] Nota da redação: "O estado no período de transição"; https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_per [31]íodo_de_transicao
[3] Ibidem.
Faz mais de um ano que o mundo é atravessado por uma potente vontade de mudança. Apareceu até um desejo real de mudar o sistema capitalista. Esta ideia se afirmou e se propagou com uma grande velocidade particularmente entre a juventude de muitos países do planeta. Além dos acontecimentos que varreram os países de África do Norte e aqueles que sacudiram ainda a Síria, estas preocupações foram particularmente presentes no movimento dos indignados e no dos "Ocupy".
Estes movimentos de contestação de dimensão internacional são o produto direto da violência da crise econômica e da degradação brutal das condições de vida. Na Espanha, Grécia, Portugal, Israel, Chile, Estados-Unidos, Grã-Bretanha, África do Norte ou subsaariana, em outras palavras, nos quatros cantos do mundo, a mesma angústia diante do futuro está presente em todas as discussões, quaisquer que sejam as gerações, mas especialmente na juventude. Contudo, além das questões do desemprego, da precariedade, é a dificuldade de ter uma perspectiva que mais gera inquietação. O que fazer? Como lutar? Contra quem? O mundo das finanças? A direita? Os dirigentes? E, sobretudo, será que outro mundo é possível no capitalismo? E se não for possível sob o capitalismo, como fazer, como viver fazendo com que milhares de seres humanos possam existir sem morrer de fome, de frio ou sob as bombas de tal ou qual clã guerreiro, grande ou pequeno, que pretenda ser "democrático" ou "terrorista".
Uma entre as respostas que emerge é a necessidade de "reformar", "democratizar" o capitalismo. As mídias, muitos intelectuais, ou também a esquerda fazem a maior propaganda a favor deste "combate pela democracia". As organizações altermundialistas, como Attac, todas defendem a mesma coisa, “mais democracia”, e na Espanha, DRY (Democracia Real Ya) roubou para si a “representação” oficial do movimento.
Este início de combate orientado a favor da “democracia” encontrou por outro lado um sucesso importante. No início de janeiro, os ocupantes da “aldeia de barracas” de Saint-Paul em Londres estenderam uma bandeira imensa pedindo também a “democratização” do capitalismo.
A “primavera árabe” revelou aos olhos de todos que clãs no poder na Tunísia, no Egito, na Síria, na Líbia espoliavam e reprimiam impunemente há muito tempo as populações, mantendo sua dominação pelo terror, pela repressão com a bênção das grandes “democracias” ocidentais. A contestação que literalmente explodiu no ano passado, estimulada pelo desenvolvimento da miséria, conseguiu levantar este enorme peso das costas e foi um incentivo para todos os explorados do mundo.
Na Europa, berço da democracia ocidental, o descontentamento focalizou sobre uma “elite dirigente” incapaz, desonesta e cheia de dinheiro. Na França, Sarkozy foi denunciado por vários livros como o presidente dos ricos. Outro livro, A oligarquia dos incapazes, escrito por jornalistas, pesquisadores ou intelectuais evidencia como a burguesia francesa é feita de clãs que sugam o sangue e o suor dos explorados e da sociedade inteira para seus interesses particulares. Estes costumes de bandido não são novos por parte da burguesia que fez pior que todas as classes exploradoras da história, mas tomam uma proporção tão grande que só pode gerar mais indignação e repugnância. Por toda a parte, a constatação é a mesma: a burguesia é uma classe de corruptos, sem moralidade, sem humanidade.
Na Espanha, a rejeição das elites tomou uma forma mais política. Um movimento amplo de contestação desenvolveu-se, no início, em plena campanha eleitoral, período tradicionalmente calmo no que se refere às lutas. Enquanto todas as mídias e todos os responsáveis políticos focalizavam a atenção sobre o “poder” das urnas, as ruas estavam efervescentes e cheias de assembléias e discussões de todo tipo. Uma ideia estava muito presente: “direita e esquerda, é a mesma merda”. Às vezes deu até para ouvir a palavra de ordem “todo o poder para as assembleias!”.
Mas o que isso significa? Que cresce a ideia por toda a parte no mundo que com todos os governos é efetivamente a “mesma merda” e que não adianta mudar de governo. O que mudaram as eleições “democráticas” na Tunísia, Egito e também na Espanha? Nada! O que a saída de Berlusconi ou de Papandreou mudou na Itália e na Grécia? Nada! Os planos de austeridade são cada vez mais duros e insuportáveis. Eleições ou não, a sociedade é dirigida por uma classe dominante, um minoria ínfima, que mantém seus privilégios sobre nas costas da maioria e a espreme cada vez mais. Na realidade, o que revelam fundamentalmente todos estes movimentos é uma vontade crescente de não mais se deixar manobrar, de tomar seu destino em suas próprias mãos; é a ideia que são as massas que devem organizar a sociedade. Atrás do “todo o poder às assembleias”, há uma aspiração real para construir uma sociedade onde não é mais uma minoria que decide das nossas vidas, mas somos nos que as tomamos em mãos próprias.
Entretanto, uma nova questão é colocada:
Sim, ser dirigidos por uma minoria de privilegiados é insuportável. Sim, cabe a nós tomar nossas vidas em mãos próprias. Mas quem é “nós”? Na resposta dada pelos movimentos atuais, “nós” é “todo o mundo”. “Todo o mundo” deveria dirigir a sociedade atual, isto é o capitalismo, através de uma democracia real. Mas aí aparecem os verdadeiros problemas: a quem pertence o capitalismo senão aos capitalistas? Este sistema não existe e sobrevive justamente através desta exploração feroz e fazendo-a perdurar? Exploração que constitui a própria essência do sistema. A democracia, como existe hoje, é a gestão do mundo por uma elite, uma minoria, há mais de dois séculos através da violência, da expropriação, da guerra. E se a exploração da grande maioria da humanidade por esta minoria perdura é porque esta democracia é o meio ideal encontrado por esta mesma elite para manter seu poder. O capitalismo, ditatorial ou democrático, só pode ser um sistema de exploração.
Vamos até o fim do raciocínio. Imaginamos uma sociedade capitalista dotada de uma democracia perfeita e ideal onde “todo o mundo” decidiria coletivamente tudo. Na Suíça ou em algumas aldeias ditas autogeridas ou no programa político de alguns políticos, encontramos esta noção de “democracia participativa”. E daí, gerir uma sociedade de exploração não significa suprimir esta exploração. Nos anos 1970 muitos operários levaram em frente uma reivindicação de autogestão na qual acreditavam com muita convicção: “Sem mais patrões, nós mesmos produzimos e nos pagamos”. Operários da Lip (uma marca de relógios) na França, como muitos outros, aprenderam a duras penas que a autogestão não acaba com a exploração: acreditaram na possibilidade de poder gerir “coletivamente” e de maneira “igualitária” “sua” empresa. Mas, por conta das leis incontornáveis do capitalismo, na própria lógica do mercado capitalista, chegaram até a aceitar sua auto-dispensa e isso de maneira muito livre e democrática. Eram seus próprios donos e se mandaram para a rua. Assim, dá para perceber que hoje, no capitalismo, a democracia mais próxima da “perfeição” não adiantaria em nada para construir uma nova sociedade. A democracia, no capitalismo, não é um órgão de poder que o proletariado deveria conquistar nem um órgão de abolição do capitalismo. É um modo de gestão do capitalismo e de dominação da burguesia!
Claro, somos cada vez mais numerosos em sonhar numa sociedade onde a humanidade tomaria sua vida em mãos próprias, onde seria dona de suas decisões, que não seria dividida entre exploradores e explorados mas unida e igualitária. Mas a questão fica completamente sem solução se não é colocada esta outra questão: quem pode construir este mundo? Quem pode permitir que amanhã a humanidade tome a sociedade em mãos próprias. Todo o mundo? Não se pode! Pois “todo o mundo” não tem interesse em por fim ao capitalismo. Por exemplo, a grande burguesia lutará obviamente sempre para defender até o fim seu sistema e sua posição dominante sobre a humanidade, mesmo se por isso ela tivesse que ensanguentar o mundo inteiro, inclusive nas “grandes democracias”. E neste “todo o mundo”, tem também os artesãos, os brilhantes, os latifundiários. Em breve, os elementos da pequena burguesia que ou sonha ainda com a ascensão social ou (quando é ameaçada de proletarização) é presa pela nostalgia de um passado idealizado onde ela era única no comando, onde não tinha que prestar conta a ninguém. O fim da propriedade privada não faz parte de seus projetos, muito pelo contrário.
Para se tornar dono da sua própria vida, a humanidade deve sair do capitalismo. Ora, a única força que tem a condição de assumir este projeto é o proletariado. Entre todas as camadas exploradas, as que o capitalismo gerou e as que sobreviveram do passado, é somente o proletariado que pode derrubar o sistema. A classe operária, a classe fundamental que produz, agrupa os assalariados de fábrica e das oficinas, do setor privado como do público, os aposentados e os jovens trabalhadores, os desempregados e os precarizados. No passado, o feudalismo superou a escravidão através de lutas onde os senhores feudais trouxeram uma nova ordem econômica. A burguesia, ao custo de lutas sanguentas, desenvolveu uma nova ordem econômica superior. Em cada ocasião, um sistema de exploração foi suplantado e substituído por outro. Contudo, só o capitalismo desenvolveu bastante riqueza para fazer com que a humanidade não viva mais na penúria, mas sim na abundância. E também criou a classe capaz de ser seu coveiro, a classe produtora das riquezas: o proletariado. Este proletariado constitui a primeira classe na história que é ao mesmo tempo explorada e revolucionária.
Até que enfim, hoje, os próprios explorados podem derrubar o sistema dominante e construir um mundo sem classes e sem fronteiras. Sem fronteiras, pois a classe operária é internacional. Ela sofre em toda a parte a mesma dominação capitalista. Ela tem em toda parte os mesmos interesses. Desde 1848, seu grito de reagrupamento é: “Os proletários não têm pátria. Proletários de todos os países, uni-vos!”. Essa mensagem que não é uma palavra vazia, que não é uma fórmula para fazer bonito e iludir o resto da população, foi carregada por todas as lutas operárias massivas, da comuna de Paris, de 1917, da Polônia 1980, pois essa mensagem expressa a alma profunda do proletariado e a ideia fundamental que seu futuro é ligado ao conjunto da humanidade.
Todos os movimentos do ano passado, os do Oriente Médio, dos indignados, dos "Occupy" reivindicaram-se uns dos outros, dum país a outro, expressando mais uma vez que não há fronteiras pela luta dos explorados e dos oprimidos. Mas estes movimentos de contestação também demonstraram uma grande fraqueza: a força viva dos explorados, a classe operária, não tem ainda consciência dela mesma, de sua existência, de sua força, de sua capacidade de se organizar como classe. Por conta disso, ela ainda está dispersa no “todo o mundo” e iludida pela perspectiva de um "capitalismo mais democrático”, que não é nada mais que uma armadilha ideológica.
Para fazer a revolução internacional triunfar e edificar uma nova sociedade, a nossa classe deve desenvolver sua luta, sua unidade, sua solidariedade e, sobretudo sua consciência de classe. É preciso para isso que ela consiga desenvolver o debate no seu seio, as discussões mais largas, vivas, animadas para desenvolver sua compreensão do mundo, deste sistema, da natureza de seu combate.
Os debates devem ser livres e abertos a todos que querem tentar responder às múltiplas questões colocadas aos explorados: Como desenvolver a luta? Como nos organizar? Como enfrentar a repressão? Mais eles devem ser fechados àqueles que vêm sabotar as discussões de várias maneiras. Na luta revolucionária do proletariado, a maior liberdade existe no seu seio, mas são excluídos do debate os que só têm como interesse manter e defender a exploração capitalista.
O movimento dos indignados e dos "Ocupy" expressou essa característica da vontade de debater, esta efervescência incrível, esta criatividade das massas em ação que caracterizam nossa classe quando luta. Tal fenômeno foi presente, por exemplo, em maio de 68 onde se discutia em todas as esquinas de rua. Mas sua força criadora é hoje diminuída, até paralisada por sua incapacidade em excluir da sua luta e de seus debates aqueles que trabalham com muita dedicação à sobrevida do sistema atual, como a um médico que luta pela vida de um doente em estado terminal. Se quisermos jogar pelo lixo da história palavras como lucro, exploração, repressão e serem por fim os donos das nossas vidas, o caminho a seguir deverá necessariamente se livrar dessas chamadas ilusórias a "democratizar o capitalismo" e de todos os elogiadores de um capitalismo mais humano. Para pôr um fim à exploração, há só uma solução, a revolução, sim, a proletária.As próximas eleições presidenciais na Venezuela, em 7 de outubro, são um momento de máxima tensão entre as facções burguesas do chavismo e da oposição. Tanto estes últimos, agrupados na Mesa da Unidade Democrática (MUD), tendo como candidato Henrique Capriles, como os oficialistas, contando com o candidato perpétuo Hugo Chávez, puseram em funcionamento suas máquinas partidárias, e com elas bilhões de bolívares, para tentar mobilizar e ganhar os votos, principalmente das massas de trabalhadores já exaustos devido aos 13 anos de confrontação política desde o estabelecimento do regime chavista no poder.
A ascensão de Chávez foi o resultado do alto grau de decomposição da burguesia venezuelana, principalmente de suas forças políticas que governaram até sua chegada ao poder em 1999. Graças a sua elevada aceitação popular, vários setores do capital deram seu apoio naquele momento com o objetivo de atacar os altos níveis de corrupção, estabelecer a institucionalidade e, sobretudo, a governabilidade, quer dizer, para tentar melhorar o sistema de opressão e exploração segundo os interesses da nação da burguesia. As forças opositoras, ainda que debilitadas, tomaram várias medidas de força contra o regime, como o golpe de Estado de 2002 e a paralisação petroleira de finais desse ano, que não foram bem sucedidas e que acabaram por fortalecer Chávez no poder, o que se refletiu na sua reeleição em 2006.
Depois de mais de uma década de chavismo, a nova situação está levando os diferentes grupos da burguesia a um conflito aberto para disputar o poder central do Estado. As forças contrárias ao regime se beneficiam da baixa popularidade do chavismo, devido a duas causas principais:
A estratégia do candidato oposicionista, baseada em visitas diárias a distintas cidades e povoados do país (“casa por casa”) busca explorar a negligência social e os fracassos do regime chavista, gerando, segundo algumas pesquisas, uma recuperação de sua candidatura. Sua estratégia de apresentar programas sociais de corte populista similares aos do chavismo e evitar confrontações diretas deu algum resultado. No entanto, o chavismo insiste nas “conquistas” que seu projeto representa para os pobres e se apresenta como o “guarda necessário” para evitar a anarquia do capital venezuelano em seu conjunto.
O chavismo, mesmo com todas as suas debilidades (enfermidade de Chávez, perda de governos regionais, confrontações de interesses em suas fileiras, etc.) não visualiza sua saída do poder e nos últimos meses se orienta a não deixar ao azar nenhum detalhe que possa significar alguma vantagem para a oposição: inscrição forçada de empregados públicos no oficialista Partido Socialista Unido de Venezuela, obstáculos aos votantes no estrangeiro, especialmente em Miami e Espanha, neutralização de partidos que apoiam a oposição (PODEMOS, PPT, COPEI) através de sentenças do Tribunal Superior de Justiça, etc., além de construir uma hegemonia de comunicação que lhe dá uma vantagem absoluta quanto à propaganda eleitoral.
Chávez também considera outros cenários no caso de perder as eleições. Desde já anuncia que a oposição tem preparado um plano para denunciar uma fraude eleitoral. Nestas estratégias se apoia como sempre nos poderes do Estado, mas particularmente no Exército, que abandonou sua posição de “força profissional a serviço da nação, não beligerante e apolítica”. Nesse sentido, são frequentes as ameaças de Chávez e seu séquito contra os opositores.
O oficialismo acusa a oposição de não querer declarar, desde agora, que aceitará o ditame do Conselho Nacional Eleitoral (CNE); por isso, dizem que estão em alerta diante da possibilidade dos opositores poderem causar um estado de comoção nacional quando o CNE anunciar o triunfo de Chávez. Por sua parte, a oposição coloca que não pode assinar um “cheque em branco” a um árbitro que é parcial, já que não sanciona as faltas do oficialismo às regras que o mesmo árbitro impôs, embora o faça com a oposição. Em suma, trata-se pura e claramente de um enfrentamento interburguês onde cada bando usa as artimanhas próprias de sua classe para somar a maior parte de forças possíveis a suas candidaturas.
O proletariado venezuelano deve ficar alerta para não ser vítima desta “batalha final” protagonizada pelas forças do capital nacional e para a qual vão tentar arrastá-lo.
O chavismo conta com armas ideológicas muito poderosas para levar a um enfrentamento “os pobres” e “os excluídos”, que têm a esperança que Chávez cumpra com suas promessas, sobretudo as das Missões, “contra a burguesia depredadora, que quer voltar ao passado”. Mas se prepara para se enfrentar também com as armas se necessário, e para isso conta com a Milícia Bolivariana e também com suas forças de choque que agrupam vários “coletivos”, tanto em Caracas como no interior do país, armados pelo próprio Estado.
As forças de oposição, por sua vez, ainda que não tornem pública sua estratégia de defesa do voto em caso de situações de força, não vão ficar de braços cruzados. Dentro das forças opositoras encontram-se partidos da velha guarda como o social-democrata Ação Democrática, que tem décadas de experiência na organização de forças de choque; em suas fileiras há também organizações de esquerda e esquerdistas, que em suas origens apoiaram ao chavismo, que conhecem muito bem os métodos de confrontação.
Nós trabalhadores devemos ter presente que não há possibilidade de superar nossa situação de precariedade e exploração com uma mudança de governo. A crise do capitalismo está presente e ganhe quem ganhar, seja Chávez ou Capriles, as medidas de austeridade e a precariedade vão piorar.
Não podemos cair na armadilha ideológica que nos colocam quando nos dizem que se trata de uma confrontação entre “comunismo” e democracia, ou entre “povo” e “burguesia”. Chávez e Capriles defendem dois programas capitalistas de Estado, que se baseiam na exploração da força de trabalho do proletariado venezuelano.
A briga eleitoral é somente um momento na confrontação entre as facções do capital nacional. O proletariado deve evitar cair nas batalhas entre facções da burguesia, romper com as ideologias democratistas, tirar as lições de suas lutas, continuar seu esforço por encontrar sua identidade de classe, sua unidade e sua solidariedade, para assim poder afirmar-se em seu próprio terreno de classe, única alternativa para começar a se defender dos ataques da burguesia contra suas condições de vida.
Internacionalismo Venezuela, agosto de 2012.
No artigo editorial da Revista Internacional nº 146 dávamos conta da luta desenvolvida na Espanha.[1] Pouco depois, seu exemplo contagiou a Grécia e Israel.[2] Neste artigo nos propomos tirar lições destes movimentos e ver que perspectivas colocam diante de uma situação de quebra do capitalismo e de ataques implacáveis ao proletariado e à grande maioria da população mundial.
Para compreendê-los é indispensável rejeitar categoricamente o método predominante na sociedade atual, profundamente imediatista e empirista, no qual se vê cada acontecimento em si mesmo, desvinculado tanto do passado como do futuro e limitado ao país onde tem lugar. Este método fotográfico é um reflexo da degeneração ideológica da classe capitalista, pois: "(...) o único projeto que esta classe é capaz de propor à sociedade é o de resistir dia a dia, golpe a golpe e sem esperança de êxito, ao afundamento do modo de produção capitalista". [3]
Uma fotografia nos mostrará um protagonista feliz que exibe um amplo sorriso, mas ele pode ocultar tanto a careta de desgosto que tinha um segundo antes ou o rito de preocupação um segundo depois. Não podemos ver os movimentos sociais com esse enfoque. É preciso vê-los à luz do passado que os fez amadurecer e do futuro para o qual apontam, é preciso concebê-los em escala mundial e não dentro do poço nacional onde ocorrem; e, sobretudo, deve-se compreender sua dinâmica, não no que são num momento dado, senão no que podem vir a ser, dadas as tendências, forças e perspectivas que carregam consigo e que virão à tona, mais cedo ou mais tarde.
No começo do século XXI escrevemos uma série de dois artigos intitulada Por que o proletariado ainda não derrubou o capitalismo? [4]. Nela recordávamos que a revolução comunista não é uma fatalidade, sua realização necessita da união de dois fatores, o objetivo e o subjetivo. O objetivo é proporcionado pela decadência do capitalismo [5] e pelo "desenvolvimento de uma crise aberta da sociedade burguesa, prova evidente de que as relações de produção capitalista devem ser substituídas por outras relações de produção" [6]. O subjetivo está baseado na ação coletiva e consciente do proletariado.
O artigo reconhece que o proletariado falhou nas convocações que a história lhe fez. Assim, diante da primeira – a Primeira Guerra Mundial – a tentativa de resposta – a onda revolucionária mundial de 1917-23 – foi finalmente esmagada; diante da segunda – a Depressão de 1929 – esteve totalmente ausente como classe autônoma; diante da terceira – a Segunda Guerra Mundial – não apenas esteve ausente, mas acreditou que a democracia e o estado do bem-estar – mitos manipulados pelos vencedores – eram uma vitória. Depois, com a volta da crise no final dos anos 1960, "(...) não falhou à convocação, mas também pudemos medir a quantidade de obstáculos que teve diante de si e que frearam sua progressão no caminho em direção à revolução proletária" [7]. Este freio pôde ser comprovado diante de um novo acontecimento de grande envergadura – em 1989, a queda dos regimes falsamente apresentados como "comunistas" – frente à qual não apenas não foi um fator ativo, senão que, além disso, foi vítima de uma formidável campanha anticomunista que o fez retroceder, tanto em sua consciência quanto em sua combatividade.
A partir de 2007 abre-se o que poderíamos chamar de "a quinta convocação da história". A crise que se manifesta mais abertamente mostra o fracasso, praticamente definitivo, das políticas que o capitalismo havia lançado para acompanhar a emergência de sua crise econômica insolúvel. O verão de 2011 colocou em evidência que as enormes somas empregadas não estancam a hemorragia e o capitalismo está escorregando pela ladeira da Grande Depressão, de uma gravidade muito superior à de 1929.[8]
Mas num primeiro momento, apesar dos golpes que chovem sobre ele, o proletariado parece igualmente ausente. Previmos esta reação em nosso XVIII Congresso Internacional (2009): "em um primeiro momento, serão provavelmente combates desesperados e relativamente isolados, embora se beneficiem de uma simpatia real de outros setores da classe trabalhadora. Por isso, se, no período vindouro não assistirmos a uma resposta de envergadura diante dos ataques, não deveremos por isso considerar que a classe há renunciado em lutar pela defesa dos seus interesses. Em uma segunda etapa, quando será capaz de resistir às chantagens da burguesia, quando se imporá a ideia de que só a luta unida e solidária pode frear a brutalidade dos ataques da classe dominante, sobretudo quando esta vai tentar fazer com que os trabalhadores paguem os colossais déficits orçamentários que estão se acumulando por causa dos planos de salvação dos bancos e retomada da economia, será então que combates operários de grande amplitude poderão desenvolver-se melhor" [9].
No entanto, os movimentos atuais na Espanha, Israel e Grécia mostram que o proletariado está começando a assumir essa "quinta convocação da história", a preparar-se para ela, a dotar-se dos meios para vencer! [10]
Na série antes citada, dizíamos que dois dos pilares nos quais o capitalismo – ao menos nos principais países – apoiou-se para manter subjugado o proletariado eram a democracia e o que se costuma chamar de "Estado do bem-estar". Contudo, o que revelam os três movimentos é que esses pilares começam a ser questionados – ainda que de forma muito confusa – por seus participantes, o que vai ser alimentado pela evolução catastrófica da crise.
Nos três movimentos destacou-se a raiva contra os políticos e, em geral, contra a democracia. Também se manifestou a indignação porque os ricos e seu pessoal político estão cada vez mais ricos e mais corruptos; foi rechaçado que a grande maioria seja tomada por uma mercadoria a serviço dos lucros escandalosos da minoria exploradora, mercadoria que se atira à miséria quando os "mercados não vão bem", enfim, foram denunciados os programas de austeridade brutais dos quais ninguém fala nas campanhas eleitorais e, no entanto, são a principal ocupação daqueles que ganham as eleições.
É evidente que esses sentimentos não são nenhuma novidade: falar mal dos políticos é, por exemplo, algo que vem se dando de forma muito generalizada nos últimos 30 anos. Igualmente está claro que esses sentimentos podem ser desviados para becos sem saída como tentaram insistentemente as forças burguesas que operam nos três movimentos: em direção de uma democracia "mais participativa" em direção de uma "regeneração da democracia" etc.
Mas o que resulta uma novidade significativa é que esses temas que, queira ou não, apontam para um questionamento da democracia, do Estado burguês e seus aparelhos de dominação, são objeto de debates em Assembleias Massivas. Não é o mesmo ruminar o cansaço da democracia de forma fragmentada, passiva e resignada, que abordar a questão coletivamente em debates nas assembleias. Mais além das falsas respostas, das confusões, dos becos sem saída, que indubitavelmente circulam nelas e que devem ser debatidos com a maior energia e paciência, o importante é que o problema se coloque publicamente porque leva em germe uma evidente politização de grandes massas e, de outro lado, encerra o princípio de questionar a democracia, que tantos serviços prestou ao capitalismo ao longo do último século.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o capitalismo instaurou o denominado "Estado do bem-estar" [11]. Este foi um dos principais pilares da dominação capitalista nos últimos 70 anos. Produziu a ilusão de que o capitalismo teria superado seus aspectos mais brutais: o Estado-providência garantiria uma segurança diante do desemprego e da aposentadoria e proporcionaria, além disso, saúde e educação gratuitas, moradias sociais, etc..
Esse "Estado Social" – complemento da democracia política – já sofreu amputações significativas nos últimos 25 anos, nos quais a situação atual se encaminha em direção ao seu puro e simples desaparecimento. Na Grécia, na Espanha e em Israel (neste último país mais polarizado sobre o grave problema da escassez de moradia para os jovens), a inquietude por essa eliminação de mínimos sociais esteve no centro das mobilizações. É claro que se tentou desviá-las em direção a "reformas" da constituição, à obtenção de leis que "garantam" tais benefícios, etc. Mas a onda de inquietude crescente ajudará a questionar esses diques com que se pretende controlar os trabalhadores.
O câncer do ceticismo domina a ideologia atual e infecta igualmente o proletariado e suas próprias minorias revolucionárias. Como já dissemos mais acima, o proletariado faltou a todas as convocações que durante quase um século de decadência capitalista a história lhe fez. Isto provoca em suas fileiras uma dúvida angustiante sobre sua própria identidade e capacidades como classe a ponto de em muitos ambientes combativos se chegar até a rejeitar o termo "classe operária"! [12] Mas este ceticismo é ainda mais forte porque é alimentado pela decomposição do capitalismo [13]: a desesperança, a ausência de todo projeto concreto de futuro, favorecem a incredulidade e a desconfiança em relação a toda perspectiva de ação coletiva.
Os movimentos da Espanha, Israel e Grécia – com todas as debilidades que arrastam – começam a ministrar um remédio eficaz contra o câncer do ceticismo. Não unicamente em si mesmos, mas pelo que significam em uma continuidade de lutas e esforços de consciência que vêm dando no proletariado mundial desde 2003! [14] Não são uma tormenta que explode repentinamente num céu azul, mas a demonstração de que as pequenas nuvens, chuvas finas, tímidos relâmpagos dos últimos 8 anos se condensaram e alcançaram uma nova qualidade,.
Desde 2003, o proletariado começa a se recuperar do longo retrocesso da combatividade e da consciência induzidos pelos acontecimentos de 1989. Este processo de recuperação segue num ritmo lento, contraditório e muito sinuoso. Manifesta-se em:
Em 2006 surgem dois movimentos – na França a luta dos estudantes contra o Contrato de Primeiro Emprego e na Espanha a greve massiva de Vigo [15] que, apesar da distância, da diferença de condição ou idade, apresentam características similares: Assembleias Gerais, extensão a outras camadas operárias, massividade dos protestos... É como um primeiro abalo que, na aparência, não tem continuidade. [16]
Um ano depois estoura uma embrionária greve de massas no Egito, a partir de uma grande fábrica têxtil.[17] No começo de 2008 têm lugar lutas isoladas, mas coincidentes em um bom número de países, tanto da periferia como do centro do capitalismo. Outro elemento destacável é a proliferação de revoltas de fome em 33 países no primeiro trimestre de 2008, que no caso do Egito são apoiadas e em parte dirigidas pelo proletariado. No final de 2008, estoura a revolta da juventude proletária da Grécia, apoiada por minorias de operários. Em 2009 vemos germes de atitudes internacionalistas em Lindsay (Grã-Bretanha) e uma explosiva greve generalizada no sul da China (junho de 2009).
Depois do retrocesso inicial do proletariado pelo primeiro impacto da crise, como assinalamos antes, ele começou a lutar de forma muito mais decidida: na França, no outono de 2010, ocorrem protestos massivos contra a reforma das pensões com o aparecimento de tentativas de Assembleias interprofissionais; a juventude britânica se rebela em dezembro de 2010 contra o brutal aumento das taxas escolares. 2011 mostra as grandes revoltas sociais no Egito e na Tunísia. Parecia que o proletariado estava tomando impulso para uma nova explosão: o movimento de indignados da Espanha e depois na Grécia e Israel.
Estes três movimentos não podem ser compreendidos sem tudo o que acabamos de analisar. São como um primeiro quebra-cabeças que une as pequenas peças adquiridas ao longo de 8 anos. Mas a força do ceticismo é grande e muitos se perguntam: como qualificá-los de movimentos de classe se não se apresentam como tais e não partem, nem por regra geral suscitam greves ou assembleias nos centros de trabalho?
Na Espanha, na Grécia e em Israel o movimento chama a si mesmo de "indignados", conceito válido para a classe operária [18], mas que não revela imediatamente tudo aquilo que é portador. Sua aparência é a de uma revolta social devida essencialmente a dois fatores:
A perda da identidade como classe
O proletariado passou por um longo retrocesso que lhe infligiu um dano significativo na sua confiança em si mesmo e na consciência de sua própria identidade: "Após a queda do bloco do Leste e dos supostos regimes "socialistas", as campanhas ensurdecedoras sobre "o fim do comunismo", quando não "da luta de classes", deram um golpe brutal na consciência e na combatividade da classe trabalhadora. O proletariado sofreu então um profundo retrocesso em ambos os planos, que se propagou por mais de dez anos. (...) Por outro lado, a burguesia conseguiu fazer nascer entre a classe operária um forte sentimento de impotência devido à incapacidade dela desenvolver lutas massivas". [19] Isso explica em parte porque a participação do proletariado como classe não foi dominante no movimento de indignados, no entanto ele esteve presente através da participação de indivíduos operários (assalariados, grevistas, aposentados, estudantes...) que trataram de esclarecer, de se implicar de acordo com seus instintos, mas que carecem da força, da coesão, da clarividência que proporciona o assumir-se coletivamente como classe.
Essa perda de identidade faz que o programa, a teoria, as tradições, os métodos do proletariado, não sejam reconhecidos como próprios pela imensa maioria dos operários. Por isso, a linguagem, as formas de ação, até os símbolos que aparecem no movimento de indignados bebem de outras fontes. Isto significa um lastro perigoso que deve ser combatido pacientemente para que se produza uma reapropriação crítica de todo o acervo teórico, de experiência, das tradições, que o movimento operário acumulou ao longo de dois séculos.
A presença de camadas sociais não proletárias
Entre os indignados há uma forte presença de camadas sociais não proletárias, em particular uma classe média em claro processo de proletarização. Com relação a Israel, nosso artigo sublinhava: "Outro elemento é o de etiquetá-los como movimento de "classe média" para minimizar sua importância. É claro que, como ocorreu em outros lugares, observa-se uma ampla revolta social que pode expressar a insatisfação de diferentes camadas da sociedade, do pequeno empresário ao operário, todos afetados pela crise mundial, a crescente separação entre ricos e pobres, e, num país como Israel, a piora das condições de vida pela demanda insaciável da economia de guerra. Mas "classe média" converteu-se em um termo abstrato, que pode se referir a qualquer um com estudos ou um emprego, e em Israel, no norte da África, Espanha ou Grécia, crescentes setores de jovens que estudaram se veem empurrados para as fileiras do proletariado, trabalhando em empregos precários, se é que encontram trabalho onde qualquer um pode ser contratado". [20]
Se o movimento parece ser vago e indefinido, isso não nega seu caráter de classe, sobretudo se vemos as coisas em sua dinâmica, na perspectiva de futuro, como apreciam os companheiros do TPTG (Ta Paidia Tis Galarias) a respeito do movimento na Grécia: "O que todo o espectro político encontra de inquietante neste movimento assembleísta é que a ira e a indignação do proletariado de base (e das camadas pequeno-burguesas) já não se expressa através dos canais de mediação dos partidos políticos e dos sindicatos. Portanto, não é tão controlável, e é potencialmente perigoso para o sistema representativo político e sindical em geral" [21].
A presença do proletariado não reside em que se constitua a força dirigente do movimento, ou que a mobilização desde os centros de trabalho constitua seu eixo, mas em uma dinâmica de busca, de clareza, de preparação do terreno social, de reconhecimento do combate que se apresenta. Isto é o que marca sua importância mesmo que se saiba que ainda é um pequeno passo, extremamente frágil. Com relação à Grécia, os companheiros do TPTG falam que o movimento "(...) constitui uma expressão da crise das relações de classe e da política em geral. Nenhuma outra luta se expressou de uma maneira mais ambivalente e explosiva nas últimas décadas" [22]. Com relação a Israel, um jornalista assinala – em sua linguagem – "não foi a opressão o que manteve a ordem social em Israel, ao menos no que diz respeito à comunidade judaica. Foi a doutrinação – a existência de uma ideologia dominante, para usar um termo apreciado pelos teóricos críticos. E foi esta ordem cultural que foi abalada nestes protestos. Pela primeira vez uma parte importante da classe média judia – é muito cedo para avaliar seu tamanho – reconheceu que seu problema não era em relação a outros israelitas, ou aos árabes, ou a um político concreto, mas com toda a ordem social, com todo o sistema. É neste sentido que se trata de um acontecimento único na história de Israel" [23].
Sob essa ótica, podemos compreender os traços destas lutas que são característicos e que futuras lutas poderão retomar com espírito crítico e desenvolver a um nível muito mais claro:
Não pretendemos glorificar estes movimentos. Nada mais alheio ao método marxista que fazer de uma determinada luta – por mais importante e rica em lições que seja – um modelo definitivo, acabado e monolítico que simplesmente haveria que seguir cegamente. Olhando lucidamente estes movimentos, compreendemos suas debilidades e problemas.
A presença de uma "ala democrática"
Esta empurra o movimento para a consecução de uma "verdadeira democracia". Esta postura está representada por várias correntes políticas, algumas de direita, como acontece na Grécia. Está claro que os meios de comunicação e os políticos se apoiam nela para fazer com que todo o movimento se identifique com ela.
Nós, revolucionários, temos que combater energicamente as mistificações, as falsas medidas, os argumentos falaciosos, desta postura. No entanto, por que, apesar de tantos anos de enganos, armadilhas e decepções com a democracia, existe ainda uma forte propensão a deixar-se enganar pelos cantos da sereia? Podemos apontar três causas:
Mas haveria uma causa mais profunda sobre a que é necessário chamar a atenção. Em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, Marx constata que "as revoluções proletárias (...) recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos". [27] Hoje, os acontecimentos estão pondo em evidência a quebra do capitalismo, a necessidade de destruí-lo e construir uma nova sociedade. Isto, para um proletariado que duvida de suas próprias capacidades, que não recobrou sua identidade, leva-o – e o levará por todo um tempo – a agarrar-se a pregos ardentes, a falsas medidas de "reforma" e "democratização", ainda que duvidando delas. Tudo isso, indiscutivelmente, proporciona uma margem de manobra para a burguesia, que lhe permite semear a divisão e a desmoralização e, em consequência, dificulta precisamente a recuperação dessa confiança e dessa identidade de classe.
O veneno do apoliticismo
Trata-se de uma velha debilidade do proletariado que se arrasta desde 1968 e que tem sua raiz na enorme decepção e no profundo ceticismo que produziram a contrarrevolução stalinista e social-democrata e que induz à tendência de crer que toda opção política, incluída a que se reivindica do proletariado, é um vil engano, conteria em seu núcleo o verme da traição e da opressão. Isto é explorado pelas forças burguesas que atuam dentro do movimento para, ocultando sua própria identidade e impondo a farsa de que "intervêm como cidadãos livres", controlar as Assembleias e sabotá-las a partir de dentro. É o que assinalam com clareza os companheiros de TPTG: "No começo havia um espírito comunitário nas primeiras tentativas de auto-organizar a ocupação da praça e, oficialmente, não se tolerava os partidos políticos. No entanto, os esquerdistas e especialmente os da SYRIZA (Coalizão da Esquerda Radical) rapidamente se envolveram na assembleia de Sintagma e tomaram importantes posições no grupo que se formou para gerir a ocupação da praça. Mais concretamente, meteram-se no grupo de ‘secretaria’ e no responsável pela ‘comunicação’. Estes dois grupos são os mais importantes porque organizam a agenda das assembleias, assim como o fluir da discussão. É preciso saber que esta gente não declara abertamente sua filiação política e se apresentam como ‘indivíduos’". [28]
O perigo do nacionalismo
Este está mais presente na Grécia e em Israel. Como denunciam os companheiros do TPTG: "O nacionalismo (sobretudo em sua forma populista) é dominante e é favorecido tanto pelos vários grupos de extrema direita, como pelos partidos de esquerda e de esquerdistas. Inclusive para muitos proletários ou pequeno-burgueses golpeados pela crise que não estão filiados a partidos políticos, a identidade nacional se apresenta como o último refúgio imaginário quando tudo vem abaixo rapidamente. Atrás dos lemas contra o ‘Governo vendido e estrangeiro’ ou pela ‘salvação do país’, pela ‘soberania nacional’ e por uma ‘nova constituição’ subjaz um profundo medo e alienação para a qual a ‘comunidade nacional’ se apresenta como uma solução unificadora mágica".
A reflexão dos companheiros é tão certeira como profunda. A perda de identidade e a falta de confiança do proletariado em suas próprias forças, o processo lento que segue a luta no resto do mundo, favorece esse "agarrar-se à comunidade nacional" como refúgio utópico diante de um mundo inóspito e cheio de incertezas.
Assim, por exemplo, as consequências dos cortes na saúde e educação, dado o problema real de que tais serviços são cada vez piores, são utilizados para enquadrar as lutas nos cárceres nacionalistas de reclamar uma "boa educação" porque isso nos faria competitivos no mercado mundial e uma "saúde a serviço de todos os cidadãos".
O medo e a dificuldade para assumir a confrontação de classe
A ameaça angustiante de desemprego, a precariedade massiva, a fragmentação crescente dos empregados – divididos inclusive no próprio centro de trabalho em uma inextrincável rede de subcontratação numa incrível variedade de modalidades de emprego – exercem um poderoso efeito intimidatório e tornam muito difícil o reagrupamento dos trabalhadores para a luta. Esta situação não pode ser superada nem com chamamentos voluntaristas para a mobilização nem com admoestações aos trabalhadores por sua suposta "comodidade" ou "covardia".
Isso faz que a passagem a uma mobilização massiva de desempregados, precarizados, dos centros de trabalho e estudo, resulte muito mais difícil do que pudesse parecer à primeira vista, provocando uma vacilação, uma dúvida e um agarrar-se a "assembleias" que cada vez são mais minoritárias e cuja "unidade" favorece às forças burguesas que operam dentro delas. Isso dá uma margem de manobra à burguesia para preparar seus golpes baixos contra as Assembleias Gerais. É o que denunciam certeiramente os companheiros do TPTG: "A manipulação da principal assembleia na Praça Sintagma (há outras quantas em vários bairros de Atenas e cidades gregas), por membros não declarados de partidos e organizações de esquerdas é evidente e é um obstáculo real a qualquer direção de classe do movimento. No entanto, devido à profunda crise de legitimação do sistema político de representação em geral, eles também têm que ocultar sua identidade política e manter um equilíbrio entre um discurso geral e abstrato sobre a "autodeterminação", a "democracia direta", a "ação coletiva", o "antirracismo", "a mudança social", etc. de um lado, e o nacionalismo extremo e o comportamento de valentões de alguns indivíduos de extrema direita que participam em grupos da praça". [29]
É evidente que "para que a humanidade possa viver, o capitalismo deve morrer" [30], mas o proletariado está ainda muito longe de alcançar a capacidade para fazê-lo. O movimento de indignados põe uma primeira pedra.
Na série mencionada no princípio, dizíamos: "(...) uma das razões pelas quais não se realizaram as previsões dos revolucionários sobre o advento da revolução foi que subestimaram a força da classe dirigente, especialmente sua inteligência política" [31]. Esta capacidade da burguesia para empregar sua inteligência política contra as lutas segue mais evidente que nunca! Assim, por exemplo, os movimentos de indignados nos três países foram completamente silenciados nos demais ou foi dada uma versão light sobre eles de "renovação democrática". Mas, igualmente, a burguesia britânica foi capaz de aproveitar o descontentamento para canalizá-lo em direção a uma revolta niilista que lhe serviu de álibi para reforçar a repressão e intimidar qualquer resposta de classe. [32]
Os movimentos de indignados puseram uma primeira pedra no sentido de que deram os primeiros passos para que o proletariado recupere a confiança em si mesmo e sua própria identidade como classe. Mas isto está ainda muito longe, pois se necessita para isso do desenvolvimento de lutas massivas, desde um terreno diretamente proletário, que coloquem em evidência que a classe operária é capaz de oferecer uma alternativa revolucionária frente ao desastre do capitalismo e especialmente frente às camadas sociais não exploradoras.
Não sabemos como se chegará a essa perspectiva e devemos estar atentos às capacidades e iniciativas das massas, como ocorreu no caso do movimento 15 M na Espanha. O que sabemos é que para ir em direção a ela, um fator essencial será a extensão internacional das lutas.
Os três movimentos levantaram o germe de uma consciência internacionalista: no movimento de indignados da Espanha falava-se com frequência que sua fonte de inspiração era a Praça Tahrir no Egito [33], ao mesmo tempo em que buscou uma extensão internacional de seu combate – além de se fazer em meio a importantes confusões. Por sua parte, os movimentos de Israel e Grécia declararam de forma explícita que seguiam o exemplo dos indignados da Espanha. Em Israel, os manifestantes portavam cartazes que diziam que "Netanyahu, Mubarak e El Assad são a mesma coisa", o que mostra não somente um princípio de consciência de quem é o inimigo, mas também uma compreensão ao menos inicial de que sua luta tem lugar junto com os explorados desses países e não contra eles no marco da defesa nacional [34]. "Em Jaffa, dezenas de manifestantes árabes e judeus levaram cartazes em hebreu e árabe que diziam ‘Árabes e judeus queremos casas a preços acessíveis’ e ‘Jaffa não é somente para os ricos’ (...) estiveram produzindo protestos de judeus e árabes contra os despejos destes últimos do bairro Sheikh Jarrah. Em Tel Aviv, estabeleceram-se contatos com residentes em campos de refugiados nos territórios ocupados, que visitaram as tendas do movimento e debateram com os manifestantes" [35]. Os movimentos no Egito e na Tunísia em um campo, e de Israel no outro campo imperialista, mudam os dados da situação em uma zona que é provavelmente o principal centro de confrontação imperialista do mundo, como diz nosso artigo: "A atual onda internacional de revoltas contra a austeridade capitalista abre as portas a outra solução: a solidariedade de todos os explorados acima das divisões nacionais ou religiosas; luta de classe em todos os países com o fim último de uma revolução mundial que seja a negação de qualquer fronteira nacional e do Estado. Faz um ou dois anos, este fim aparecia como algo utópico no melhor dos casos. Hoje, cada vez mais gente vê uma revolução global como uma alternativa realista a uma ordem capitalista que está desmoronando" [36].
Os três movimentos contribuíram para a força de uma ala proletária: tanto na Grécia como na Espanha, mas também em Israel [37], "uma ala proletária" bastante ampla com relação ao passado vai emergindo em busca da auto-organização, a luta intransigente a partir de posições de classe e do combate pela destruição do capitalismo. Os problemas, mas também as potencialidades e perspectivas desta ampla minoria, não podem ser abordadas com consistência no marco deste artigo. O que é evidente é que se constitui uma ferramenta vital que o proletariado produziu para a preparação dos combates futuros.
[1] Ver As mobilizações dos indignados na Espanha e suas repercussões no mundo: um movimento carregado de futuro </content/313/mobilizacoes-dos-indignados-na-espanha-e-suas-repercussoes-no-mundo-um-movimento [32]>. Na medida em que no referido artigo analisávamos em detalhe esta experiência, não repetiremos o que ali foi desenvolvido.
[2] Ver os artigos sobre estes movimentos em https://es.internationalism.org/node/3185 [33] e "Notas preliminares para un análisis del “Movimiento de asambleas populares” (TPTG, Grecia) [34]".
[3] "Revolução Comunista ou destruição da humanidade" Manifesto do IX Congresso da CCI, 1991.
[5] Para debater este conceito crucial de decadência do capitalismo, ver entre muitos outros: "Decadencia del capitalismo (X) – Para los revolucionarios, la Gran Depresión confirma la caducidad del capitalismo [37]".
[6] Revista Internacional, nº 103, op. cit.
[7] Revista Internacional, nº 104, op. cit.
[9] Ver Resolução sobre a situação internacional (XVIIIe congresso da CCI) em <https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Resolucao_sobre_a_situacao_internacional_XVIIIe_congresso_da_CCI [39]>
[10] "Privado de todo ponto de apoio econômico no seio da sociedade capitalista, sua única e verdadeira força, além de seu número e organização, é sua capacidade para tomar consciência plena da natureza, dos objetivos e dos meios de seu combate." Revista Internacional nº 103, op. cit.
[11] "As nacionalizações, assim como algumas medidas ‘sociais’ (como a maior carga do Estado no sistema de saúde) eram medidas perfeitamente capitalistas (estas) tinham o maior interesse em dispor de operários em boa saúde (...). Essas medidas capitalistas serão apresentadas como vitórias operárias." Revista Internacional nº 104, op. cit.
[12] Aqui não podemos desenvolver as razões pelas quais a classe operária é a classe revolucionária da sociedade e por que seu combate representa o futuro para todas as demais camadas sociais não exploradoras, uma questão muito candente, como logo veremos, no movimento de indignados. Remetemos como material para o debate a série de dois artigos da Revista Internacional nº 73 [40] e 74 [41], "¿Quién podrá cambiar el mundo?".
[13] Ver Revista Internacional nº 107, "Teses sobre a decomposição [42]".
[14] Ver os diferentes artigos de análise da luta de classe em nossa Revista Internacional.
[15] Ver https://es.internationalism.org/rint/2006/125_tesis [43] e "Huelga del metal de Vigo: Los métodos proletarios de lucha [44]"
[16] A burguesia esconde cuidadosamente estas experiências: as revoltas de rua niilistas de novembro de 2005 na França são muito mais conhecidas – inclusive nos ambientes politizados – que o movimento consciente dos estudantes 5 meses depois.
[17] Ver "Egipto, el germen de la huelga de masas [45]".
[18] A indignação se distingue, por um lado, da resignação e, por outro lado, do ódio. Diante da dinâmica insuportável do capitalismo, a resignação expressa um sentimento passivo – tende-se a rechaçá-lo, mas ao mesmo tempo não se vê como enfrentá-lo. Por sua vez, o ódio expressa um sentimento ativo – a rejeição se transforma em combate – mas trata-se de um combate cego, sem perspectiva e sem uma reflexão para elaborar um projeto alternativo, senão que é meramente destrutivo, abraça uma soma de respostas individuais, mas não gera nada coletivo. A indignação expressa a transformação ativa da rejeição acompanhada pela tentativa de lutar de maneira consciente, buscando a elaboração concomitante de uma alternativa, é, pois, coletiva e construtiva. " A indignação leva à necessidade de uma regeneração moral, de uma mudança cultural, as propostas que se fazem –inclusive embora pareçam ingênuas ou peregrinas – manifestam uma ânsia, ainda tímida e confusa, de "querer viver de outra maneira"("Da Praça Tahrir à Puerta del Sol em < https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/Da_Praca_Tahrir_a_Puerta_... [46] >)
[19] Ver Resolução sobre a situação internacional (XVIIIe congresso da CCI) em <https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Resolucao_sobre_a_situacao_internacional_XVIIIe_congresso_da_CCI [39]>
[20] Protestas en Israel: “¡Mubarak, Assad, Netanyahu son lo mismo!” Ver: https://es.internationalism.org/node/3185 [33]
[21] Ver: "Notas preliminares para un análisis del “Movimiento de asambleas populares” (TPTG, Grecia) [34]".
[23] Protestas en Israel: “¡Mubarak, Assad, Netanyahu son lo mismo!” Ver: https://es.internationalism.org/node/3185 [33]
[24] Ver: "Notas preliminares para un análisis del “Movimiento de asambleas populares” (TPTG, Grecia) [34]".
[25] Teses sobre o movimento dos estudantes da primavera 2006 na França. <https://pt.internationalism.org/icconline/2006_estudiantes_franca [47]>
[26] Ver O que há por trás da campanha contra os violentos pelos incidentes de Barcelona? https://es.internationalism.org/node/3130 [48]
[28] Ver: "Notas preliminares para un análisis del “Movimiento de asambleas populares” (TPTG, Grecia) [34]".
[29] Ibid.
[30] Slogan da Terceira Internacional.
[31] Revista Internacional nº 104.
[32] Os motins na Inglaterra e a perspectiva sem futuro do capitalismo. Ver: <https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/Os_motins_na_Inglaterra_e_a_perspectiva_sem_futuro_do_capitalismo [50]>
[33] A Praça da Catalunha em Barcelona foi rebatizada pela Assembleia de "Praça Tahrir", o que além de mostrar uma vontade internacionalista, foi uma bofetada no nacionalismo catalão, que considera esta Praça seu símbolo mais apreciado.
[34] Citado por nosso artigo sobre a luta em Israel: "Um deles ao ser perguntado se os protestos estavam inspirados pelos acontecimentos nos países árabes, respondeu: ‘Há muita influência do que se passou na Praça Tahrir...Há muita com certeza. Quando a gente compreende que tem o poder, que podemos nos organizar a nós mesmos, que não necessitamos que o governo nos diga o que tem que ser feito, podemos começar a dizer ao governo o que queremos.’"
[35] Ibid.
[36] Ibid.
[37] Neste movimento "Alguns alertaram abertamente do perigo de que o governo possa provocar enfrentamentos armados ou inclusive uma nova guerra para restaurar a ‘unidade nacional’ e dividir o movimento" (ibid.), o que revela – mesmo que seja de forma ainda implícita – um distanciamento da política imperialista do Estado israelita de "união nacional" a serviço da economia de guerra e da guerra.
O século XXI vai começar. Que contribuição trará à humanidade? No número 100 da nossa Revista internacional, pouco depois das celebrações realizadas pela burguesia pela chegada do ano 2000, escrevíamos: "Assim acaba o século, o século mais bárbaro e trágico da história: na decomposição da sociedade. Se a burguesia conseguiu celebrar com fartura o ano 2000, é pouco provável que possa fazer o mesmo no ano 2100. Seja porque terá sido derrubada pelo proletariado ou a sociedade terá retrocedido à Idade da Pedra". O que está em jogo, pode claramente se colocar nesses termos: o que será o século XXI depende inteiramente do proletariado. Ou é capaz de fazer a revolução, ou chegará à destruição de toda civilização e da humanidade. Apesar dos belos discursos humanistas e das declarações eufóricas que nos diz cada dia, a burguesia não fará nada para evitar tão sombria saída. De modo algum se trata de uma questão de boa ou má vontade da sua parte ou da parte de seus governos. São as contradições insuperáveis do seu sistema social, o capitalismo, que conduzem de forma inevitável à sua perdição. Desde há uma década, tivemos que suportar cotidianamente as campanhas sobre o "fim do comunismo", ou seja, da classe operária. Por isso é necessário reafirmar com força, apesar das dificuldades que o proletariado tem e pode encontrar, que não existe nenhuma outra força na sociedade capaz de resolver as contradições que a destroem.
É justamente o fato de a classe operária não ter sido capaz até o momento de cumprir sua tarefa histórica de destruir o capitalismo, a razão pela qual o século XX se afundou na barbárie. Por isso, o proletariado só será capaz de encontrar a força que necessita para cumprir suas responsabilidades históricas se for capaz de compreender as razões pelas quais falhou nas situações em que a história exigiu suas responsabilidades no século que está terminando. Este artigo, se propõe contribuir, modestamente, a esta tarefa.Antes de examinar as causas do fracasso do proletariado para cumprir sua tarefa histórica ao longo do século XX, é necessário tratar uma questão sobre a qual os revolucionários nem sempre tem manifestado uma clareza suficiente.
A revolução comunista é inevitável?
A questão é fundamental já que da sua resposta depende, em grande parte, a capacidade da classe operária em compreender plenamente a dimensão da sua tarefa histórica. Um grande revolucionário como Amadeu Bordiga afirmou, por exemplo, que "... a revolução socialista é tão certa como se já tivesse ocorrido...". E não foi o único que emitiu tal idéia. Podemos encontrá-la também em certos escritos de Marx, de Engels ou de outros marxistas.
No Manifesto Comunista podemos ler uma afirmação que pode ser interpretada no sentido de que a vitória do proletariado não será inevitável: "...opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito" [1]. No entanto, esta constatação se aplica unicamente às classes do passado. No que diz respeito ao enfrentamento entre proletariado e burguesia, a saída não coloca dúvidas: "O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo e involuntário, substitui o isolamento dos operários, resultante da competição, por sua união revolucionária resultante da associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria retira dos pés da burguesia a própria base sobre a qual ela assentou o seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis" [2].
Na realidade, nos termos empregados pelos revolucionários, há frequentemente uma confusão entre o fato de que a revolução comunista é absolutamente necessária, indispensável para salvar a humanidade e seu caráter certo.
Na nossa opinião, o mais importante, evidentemente, é demonstrar, e o marxismo assim tem tentado, desde seus inícios que:
No entanto, todo o século XX põe em relevo a imensa dificuldade desta tarefa histórica. O século que termina nos permite, particularmente, compreender melhor que, para a revolução comunista, absoluta necessidade não quer dizer certeza, que a partida não se ganha antes de jogar, que a vitória do proletariado ainda não está escrita no grande livro da História. De fato, além da barbárie em que caiu esse século, a ameaça de uma guerra nuclear que tinha pesado como uma espada de Dâmocles sobre o mundo durante mais de 40 anos permitiu ver, quase tocar, o fato de que o capitalismo poderia ter destruído a sociedade. Esta ameaça está no momento descartada pelo fato do desaparecimento dos grandes blocos imperialistas, mas as armas que podem por fim a sociedade humana continuam aí, tanto como os antagonismos entre os Estados que podem chegar um dia a utilizá-las.
Por outra parte, desde finais do século passado, evocando explicitamente a alternativa "Socialismo ou Barbárie", Engels, redator com Marx de O Manifesto Comunista, voltou atrás a propósito da ideia do caráter inevitável da revolução e da vitória do proletariado. Hoje em dia, é muito importante que os revolucionários digam claramente à sua classe, e para fazê-lo devem estar realmente convencidos, que não há fatalidade, que a partida não se ganha de antemão e que o que está em jogo na sua luta não é nem mais nem menos que a sobrevivência da humanidade. Somente se for consciente da amplitude da sua tarefa, do que verdadeiramente está em jogo, que a classe operária poderá encontrar a vontade e a força para acabar com o capitalismo. Marx dizia que a vontade é a manifestação de uma necessidade. A vontade do proletariado para fazer a revolução comunista será maior quanto mais imperiosa seja a seus olhos a necessidade de tal revolução.
Por que a revolução comunista não é uma fatalidade?
Os revolucionários do século passado, inclusive não dispondo da experiência do século XX para dar uma resposta a essa pergunta, ou ao menos para formulá-la claramente, nos deram, entretanto, os elementos para abordar a resposta.
"Revoluções burguesas, como a do século 18, avançam impetuosamente de êxito em êxito, os seus efeitos dramáticos atropelam-se, os homens e as coisas parecem iluminados por fogos de artifícios, o êxtase é o espírito de cada dia; mas essas revoluções têm vida curta, chegam rapidamente ao seu apogeu e um longo mal-estar se apodera da sociedade, antes de ter aprendido a apropriar-se serenamente dos resultados dos seus períodos de ímpeto e tempestade. Em contrapartida, as revoluções proletárias, como as do século 19, criticam-se constantemente a si próprias, interrompem-se continuamente na sua própria marcha, voltam ao que parecia terminado, para começá-lo de novo, troçam profunda e cruelmente das hesitações dos lados fracos e da mesquinhez das suas primeiras tentativas, parece que apenas derrubam o seu adversário para que este tire da terra novas forças e volte a levantar-se mais gigantesco frente a elas, retrocedem constantemente perante a indeterminada enormidade dos seus próprios fins, até que se cria uma situação que torne impossível qualquer retrocesso e as próprias circunstâncias gritam: Hic Rhodus, hic salta! [Aqui está Rodes, salta aqui!]". [3]Esta citação muito conhecida de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, escrito por Marx no início de 1852 (ou seja, algumas semanas depois do golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851) dá conta do difícil e tortuoso curso da revolução proletária. Tal idéia foi recolhida, cerca de 70 anos depois, por Rosa Luxemburgo em um artigo que escreveu às vésperas do seu assassinato, pouco depois da insurreição de Berlim ser esmagada em janeiro de 1919: "...Desta contradição entre a tarefa que se impõe e a ausência, na etapa inicial do processo revolucionário, das condições prévias que permitam a sua realização, resulta que as lutas parciais terminaram com uma derrota formal. Porém a revolução [proletária] é a única forma de “guerra” – e esta é também uma lei vital que lhe é própria – na qual a vitória final só pode ser obtida através de uma série de "derrotas". (...) As revoluções não nos deram nada até agora a não ser derrotas, mas justamente essas derrotas inevitáveis que são a garantia reiterada da vitória final. (...) Com uma condição, é claro! Estudar em que circunstâncias foi produzida cada derrota". [4]
Essas citações evocam essencialmente o curso doloroso da revolução comunista, a série de derrotas que marcam seu caminho para a vitória. Mas, ao mesmo tempo, permitem colocar em evidência duas idéias essenciais:
É justamente a diferença entre as revoluções burguesas e a revolução proletária que permite compreender porque esta última não há de ser considerada como uma certeza.
De fato, a especificidade das revoluções burguesas, ou seja, a tomada do poder político exclusivo pela classe capitalista, é que elas não constituem o ponto de partida, mas o de chegada, de todo processo de transformação econômica no seio da sociedade. Uma transformação econômica na qual as antigas relações de produção, ou seja, as relações de produção feudais, são progressivamente substituídas pelas relações de produção capitalistas que servem de apoio a burguesia para a conquista do poder político:
"Dos servos da Idade Média nasceram os moradores dos primeiros burgos; desta população municipal saíram os primeiros elementos da burguesia.
A descoberta da América, a circunavegação da África abriram um novo campo de ação à burguesia emergente. Os mercados das Índias Orientais e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e das mercadorias em geral imprimiram ao comércio, à indústria e à navegação um impulso desconhecido até então; e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição.
A organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, já não satisfazia as necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina.
Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais, a procura por mercadorias continuava a aumentar. A própria manufatura tornou-se insuficiente; então, o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos. (...)
Vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de transformações no modo de produção e de circulação.
Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia foi acompanhada de um progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada e autônoma na comuna, aqui república urbana independente, ali terceiro estado tributário da monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, base principal das grandes monarquias, a burguesia, com o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno". [5]
Totalmente diferente é o processo da revolução proletária. Enquanto as relações de produção capitalista puderam desenvolver progressivamente no seio da sociedade feudal, as relações de produção comunistas não podem se desenvolver no seio da sociedade capitalista dominadas por relações mercantis e dirigidas pela burguesia. A idéia de um desenvolvimento progressivo de “ilhas de comunismo” no seio do capitalismo pertence ao ideário do socialismo utópico e foi combatida pelo marxismo e o movimento operário desde meados do século passado. Isto também é certo para outra variante dessa mesma idéia, a das cooperativas de produção ou de consumo que não podiam nem podem fugir das leis do capitalismo e que no “melhor dos casos”, transformam os operários em pequenos capitalistas quando não os tornam em exploradores de si mesmos. Na realidade, em virtude de ser a classe explorada do modo de produção capitalista, privada por definição de qualquer meio de produção, a classe operária não dispõe no seio do capitalismo, e não pode dispor, de pontos de apoio econômicos para a conquista do poder político. Pelo contrário, o primeiro ato de transformação comunista da sociedade consiste na tomada do poder político em escala mundial pelo conjunto do proletariado organizado em Conselhos Operários, ou seja, um ato consciente e deliberado. A partir dessa posição após a tomada do poder político, a ditadura do proletariado, este poderá transformar progressivamente as relações econômicas, socializar o conjunto da produção, abolir as trocas mercantis, sobretudo o primeiro dentre todos eles, o sistema de trabalho assalariado, e criar uma sociedade sem classes.
A revolução burguesa, a tomada do poder político exclusivo pela classe capitalista, era inevitável na medida em que ela era o resultado de um processo econômico, inevitável em um momento determinado da vida da sociedade feudal, um processo no qual a vontade política consciente dos homens pouco tinha que fazer. Em função das condições existentes em cada país, ela pode intervir mais ou menos no início no desenvolvimento do capitalismo pelo que este tomou diferentes formas: mudança violenta do Estado monárquico, como na França, ou conquista progressiva de posições políticas pela burguesia no seio desse Estado, como foi o caso da Alemanha. Em outras ocasiões foi possível obter uma república, como nos Estados Unidos ou uma monarquia constitucional, da qual o exemplo mais típico é o representado pelo regime monárquico da Inglaterra, ou seja, a primeira nação burguesa. No entanto, em todos os casos, a vitória política final da burguesia estava assegurada. Inclusive quando as forças políticas revolucionárias da burguesia sofreram reveses (como ocorreu na França com a Restauração ou na Alemanha com o fracasso da revolução de 1848), isso pouco influiu no avanço no plano econômico e igualmente no plano político.
Para o proletariado, a primeira condição de êxito da sua revolução é evidentemente que existam as condições materiais de transformação comunista da sociedade, condições que são dadas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo.
A segunda condição da revolução proletária reside no desenvolvimento de uma crise aberta da sociedade burguesa, prova evidente de que as relações de produção capitalista devem ser substituídas por outras relações de produção.
Mas, uma vez que essas condições materiais estejam presentes, disso não se depreende forçosamente que o proletariado seja capaz de fazer sua revolução. Privado de todo ponto de apoio econômico no seio da sociedade capitalista, sua única verdadeira força, além de seu número e organização, é sua capacidade para tomar consciência plena da natureza, dos objetivos e dos meios do seu combate. Este é o sentido profundo da citação de Rosa Luxemburgo que reproduzimos acima. E esta capacidade do proletariado para tomar consciência não se desprende automaticamente das condições materiais nas quais vive, já que não está escrito em nenhuma parte que poderá adquirir essa consciência antes que o capitalismo possa conseguir afundar a sociedade na barbárie total ou na destruição.
E um dos meios dos que o proletariado dispõe para evitar cair nesta última saída, salvando também o conjunto da sociedade, é justamente tirar todas as lições das suas derrotas anteriores, como recordava Rosa Luxemburgo. É necessário, particularmente, compreender por que não foi capaz de fazer sua revolução ao longo do século XX.
Revolução e contrarrevolução
É com freqüência que os revolucionários tendam subestimar as potencialidades do proletariado em um momento dado. Marx e Engels não puderam evitar essa tendência já que, quando redigiram O Manifesto Comunista, no início de 1848, apresentaram a revolução comunista como algo iminente e que a revolução burguesa na Alemanha, que sucedeu poucos meses depois, serviria para que aquele tomasse o poder naquele país. Esta tendência se explica perfeitamente pelo fato de que os revolucionários, e por isso precisamente o são, aspiram com todas as suas forças à destruição do capitalismo e a emancipação da sua classe e daí a impaciência que é acometida com frequência. No entanto, contrariamente aos elementos pequeno-burgueses ou os que estão influenciados pela ideologia da pequena burguesia, são capazes de reconhecer rapidamente a imaturidade das condições para a revolução. De fato, a pequena burguesia é por excelência uma classe que, politicamente falando, vive o presente, e que não tem nenhum papel histórico a desempenhar. O imediatismo e a impaciência (“A revolução já” como conclamavam os estudantes de 1968) são próprios dessa categoria social da qual, quem sabe durante uma revolução proletária, uma parte dos seus elementos poderão se unir ao combate da classe operária, mas na sua maior parte tende a se aliar com o mais fortes, ou seja, com a burguesia. Ao contrário, os revolucionários proletários, expressão de uma classe histórica, são capazes de superar a impaciência e implicar-se decididamente na paciente e difícil tarefa de se preparar para os futuros combates de classe.
Por isso em 1852, Marx e Engels, reconheceram que as condições da revolução proletária não estavam maduras em 1848 e que o capitalismo devia viver ainda um amplo desenvolvimento para que essas condições chegassem. Desse modo, estimaram que se devia dissolver sua organização, a Liga dos Comunistas, que havia sido fundada nas vésperas da revolução de 1848, antes que esta caísse sob a influência de elementos impacientes e aventureiros (a tendência Willich-Schapper).
Em 1864, quando participaram na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), Marx e Engels pensaram, de novo, que a hora da revolução havia chegado, mas justamente antes da Comuna de Paris de 1871, se deram conta de que o proletariado ainda não estava preparado, já que o capitalismo ainda tinha diante de si todo um potencial de desenvolvimento da sua economia. Após a derrota da Comuna de Paris, que significou uma grave derrota para o proletariado europeu, compreenderam que o papel histórico da AIT tinha terminado e que era necessário preservá-la da ação de elementos impacientes e aventureiros (como Bakunin) representados principalmente pelos anarquistas. Por isso, no Congresso de Haia de 1872, intervieram com determinação para conseguir a exclusão de Bakunin e sua Aliança para a Democracia Socialista e, do mesmo modo, propuseram e defenderam a decisão de transferir o Conselho Geral da AIT de Londres para Nova York, longe das intrigas que estavam se desenrolado por parte de toda uma série de elementos que ambicionavam se apoderar da Internacional. Esta decisão correspondia de fato a uma decisão de suspender a AIT, para que depois da Conferência da Filadélfia pudessem pronunciar sua dissolução em 1876.
Assim, as duas revoluções que tinham se produzido até aquele momento, a de 1848 e a Comuna, haviam fracassado porque as condições materiais da vitória do proletariado ainda não existiam. Será no período seguinte, em que se conhecerá o desenvolvimento mais pujante da história do capitalismo, quando essas condições se deram.
Esse é um período de grande desenvolvimento do movimento operário. É nesse momento quando se criam os sindicatos na maior parte dos países, e é quando se fundam Partidos Socialistas de massas que, em 1889, se reagruparam no seio da Internacional Socialista (II Internacional).
Na maior parte dos países da Europa Ocidental, o movimento operário organizado ganhava mais e mais posições. Embora seja correto que durante certo tempo os governos perseguiram os partidos socialistas (assim foi na Alemanha entre 1878 e 1890, aplicando as chamadas “leis anti-socialistas”), esta política em pouco tempo tendeu a ser modificada em favor de uma atitude mais benévola para eles. Então, esses partidos se converteram em verdadeiros poderes na sociedade, até o ponto em que, em certos países, dispunham do grupo parlamentar mais forte e davam a impressão de que podiam conseguir o poder no seio do Parlamento. O movimento operário parecia ter se convertido em invencível. Para muitos, aproximava-se a hora em que se poderia derrubar o capitalismo se apoiando nessa instituição especificamente burguesa: a democracia parlamentar.
Paralelamente ao auge das organizações operárias, o capitalismo conheceu uma prosperidade sem igual, dando a impressão de que seria capaz de superar as crises cíclicas que o havia afetado no período anterior. No seio dos partidos socialistas desenvolveram-se tendências reformistas que consideravam que o capitalismo tinha conseguido superar suas contradições econômicas e que, por isso, não era necessário acabar com ele por meio da revolução. Apareceram teorias, como a de Bernstein, que considerava que havia que “revisar” o marxismo, em particular, para abandonar sua visão “catastrófica”. A vitória do proletariado seria, portanto, o resultado de toda uma série de conquistas obtidas no terreno parlamentar e sindical.
Na realidade, ambas as forças antagônicas que pareciam desenvolver sua potência paralelamente, o capitalismo e o movimento operário, estavam minados a partir de seu interior.
O capitalismo, de um lado, vivia seus últimos dias de glória (que tinha ficado na memória coletiva como a Belle époque). Enquanto, no domínio econômico, sua prosperidade parecia não ter fim, particularmente nas potências emergentes que a Alemanha e os Estados Unidos eram, a chegada da sua crise histórica era notada fortemente com a ampliação do imperialismo e do militarismo. Os mercados coloniais, como Marx tinha colocado em evidência meio século antes, tinham sido um fator fundamental para o desenvolvimento do capitalismo. Cada país capitalista avançado, incluindo os pequenos como Holanda e Bélgica, tinha constituído seu império colonial como fonte de matérias primas e mercados para dar saída às suas mercadorias. Precisamente no fim do século XIX, o mundo capitalista estava inteiramente repartido entre as velhas nações burguesas. Desde então, o acesso a cada uma delas a novos mercados e a novos territórios as conduziam a um enfrentamento direto na zona “privada” de seus rivais. O primeiro choque ocorreu em setembro de 1898 na Fachoda, Sudão, conflito no qual França e Inglaterra, as duas principais potências coloniais, estiveram a ponto de se enfrentarem. Os objetivos daquela (controlar o Alto Nilo e colonizar um eixo Oeste-Leste, Dacar-Djibuti) chocou com a ambição da Inglaterra (fazer a fusão de um eixo Norte-Sul com um eixo Cairo-Cidade do Cabo). Finalmente, França retrocedeu e os dois rivais decidiram chegar a um “Entendimento Cordial” diante da pressão e das ambições de um terceiro em discórdia com ambições tão grandes como era reduzido seu império colonial, ou seja, Alemanha. As ambições gananciosas imperialistas alemãs com relação às demais potências européias se concretizaram, alguns anos mais tarde, entre outros acontecimentos no incidente de Agadir em 1911, no qual uma fragata alemã se apresentou com a vontade de ofender a França e suas ambições no Marrocos. O outro aspecto dos apetites imperialistas da Alemanha no terreno colonial se concretizou no impressionante desenvolvimento da sua marinha de guerra, frota que ambicionava competir com a frota inglesa pelo controle das vias marítimas.
Também, nesse aspecto, a vida do capitalismo mudou de forma radical nos inícios do século XX: ao mesmo tempo que se multiplicavam as tensões e os conflitos armados que envolviam mais ou menos ocultamente as potências burguesas européias, houve um importante incremento do armamento dessas potências ao tempo em que se tomavam medidas sistemáticas para o aumento dos efetivos militares (como a da duração do serviço militar na França, a lei dos “três anos”).
Este aumento das tensões imperialistas e do militarismo, do mesmo modo que as grandes manobras diplomáticas entre as principais nações europeias que reforçavam suas alianças respectivas para a guerra, foi evidentemente objeto de grande atenção por parte dos grandes partidos da Segunda Internacional. Esses, no seu congresso de 1907 em Stuttgart, dedicaram uma importante resolução a esta questão, resolução que integrava uma emenda apresentada especialmente por Lênin e Rosa Luxemburgo na qual se colocava explicitamente que: "... se, apesar de tudo, eclodir uma guerra, os socialistas têm o dever de atuar para que esta finalize o quanto antes possível e devem utilizar por todos os meios a crise econômica e política provocada pela guerra para despertar o povo e assim acelerar a queda da dominação capitalista". [6]
Em novembro de 1912, a Internacional Socialista convocou um Congresso extraordinário (Congresso de Basileia) para denunciar a ameaça de guerra e chamar a mobilização do proletariado contra ela. O Manifesto desse Congresso colocava a burguesia em guarda: "... Que os governos burgueses não esqueçam que a guerra franco-alemã deu lugar à insurreição da Comuna e a guerra russo-japonesa colocou em marcha o movimento das forças revolucionárias da Rússia. Para os proletários, é crime disparar um contra os outros em favor dos capitalistas, do orgulho das dinastias ou dos comprometimentos dos tratados secretos...".
Assim, na aparência, o movimento operário tinha se preparado para enfrentar o capitalismo no caso deste último desencadeasse a barbárie guerreira. Por outra parte, naquela época, entre a população dos diferentes países europeus, e não unicamente entre a classe operária, existia um forte sentimento de que a única força da sociedade que poderia impedir a guerra era a Internacional Socialista. Na realidade, da mesma forma que o sistema capitalista estava minado desde o seu interior e se aproximava inexoravelmente a época da sua falência histórica, o movimento operário, apesar da sua força aparente, seus poderosos sindicatos, os "êxitos eleitorais crescentes" de seus partidos, tinha se debilitado notavelmente e se encontrava nas vésperas de uma catástrofe. Mais ainda: o que constituía essa força aparente do movimento operário era na realidade sua fraqueza. Os êxitos eleitorais dos partidos socialistas ampliaram excepcionalmente as ilusões democráticas e reformistas entre as massas operárias. Do mesmo modo, o enorme poder das organizações sindicais, especialmente na Alemanha e no Reino Unido, se transformou, na realidade, em um instrumento de defesa da ordem burguesa e de alistamento dos operários para a guerra e a produção de armamentos.
Também convém recordar, que no início do verão de 1914, após o atentado em Sarajevo contra o herdeiro do trono austro-húngaro, as tensões militares começaram a se acelerar a passos gigantes para a guerra, os partidos operários, não só deram mostra de impotência, como aportaram, além disso, na maioria dos casos, seu apoio à própria burguesia nacional. Na França e Alemanha, até contatos diretos foram estabelecidos entre os dirigentes dos partidos socialistas e o governo para discutir sobre quais políticas adotar para conseguir o alistamento para a guerra. E quando irrompeu, como um só homem, esses partidos deram seu pleno apoio ao esforço de guerra da burguesia e conseguiram implicar as massas operárias na tão terrível sangria. Enquanto os governos de plantão apelavam à "grandeza" das suas nações respectivas, os partidos socialistas empregavam argumentos mais adaptados ao seu papel de recrutadores dos operários. Não se tratava, segundo eles, de guerras a serviço de interesses burgueses para, por exemplo, recuperar Alsácia e Lorena, mas de uma guerra para proteger a "civilização" contra o "militarismo alemão", como diziam na França. Do outro lado do Reno, não era uma guerra em defesa do imperialismo alemão sim uma guerra "pela democracia e pela civilização" contra a "tirania e a barbárie czarista". Mas com discursos diferentes, os dirigentes socialistas tinham o mesmo objetivo que a burguesia: realizar a "União nacional", enviar os operários à matança e justificar o estado de exceção, ou seja, a censura militar, a proibição das greves e das manifestações operárias, e de todas as publicações e reuniões que denunciavam a guerra.
O proletariado não pôde impedir a eclosão da guerra mundial
Foi uma terrível derrota para ele, mas uma derrota sofrida sem combates abertos contra a burguesia. No entanto, a luta contra a degeneração dos partidos socialistas, degeneração que conduziu a sua traição no verão de 1914 e a eclosão da matança imperialista, havia começado muito antes, para ser mais preciso no final do século XIX e início do século XX. Assim, no partido alemão, Rosa Luxemburgo tinha levado a batalha contra as teorias revisionistas de Bernstein justificadoras do reformismo. Oficialmente o partido havia rechaçado tais teorias, porém, alguns anos mais tarde, ela teve de reiniciar o combate não só contra a direita do partido, mas também contra o centro representado principalmente por Kaustky, cuja linguagem mais radical servia, na realidade, de máscara para o abandono da perspectiva da revolução. Na Rússia, em 1903, os bolcheviques travaram uma luta contra o oportunismo no seio do partido social-democrata, no início sobre problemas de organização, depois a propósito da natureza da revolução de 1905 e da política que deviam desenvolver no seu seio. Mas essas correntes revolucionárias no seio da Internacional Socialista eram, no seu conjunto, muito fracas, por mais que os Congressos dos partidos socialistas e da Internacional adotassem, frequentemente, suas posições.
Na hora da verdade, os militantes socialistas que defendiam posições internacionalistas e revolucionárias se encontraram tragicamente isolados. Na Conferência internacional contra a guerra de setembro de 1915 em Zimmerwald (Suíça), os delegados (entre os que se encontravam também elementos do centro, vacilantes entre as posições da esquerda e a direita) cabiam em quatro táxis, como recordava Trotski. Este terrível isolamento não os impediu prosseguir seu combate, apesar da repressão que se abateu sobre eles (na Alemanha, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, os dois principais dirigentes do grupo Spartacus que defendiam o internacionalismo, conheceram a prisão e o encarceramento em fortalezas militares).
De fato, as terríveis provas da guerra, as matanças, a fome, a exploração feroz que reinava nas fábricas da retaguarda começaram despertar as mentes dos operários que em 1914 tinham se deixado levar à carnificina com a "flor no fuzil" [7]. Os discursos sobre a "civilização" e a democracia se esgotaram diante da realidade da inaudita barbárie na qual se afundava a Europa e com a repressão de qualquer tentativa de luta operária. Assim, a partir de fevereiro de 1917, o proletariado na Rússia, que já tinha passado pela experiência de uma revolução em 1905, se levantou contra a guerra e contra a fome. Com seus atos, e nos fatos, concretizou resoluções adotadas pelos Congressos de Stuttgart e Basiléia da Internacional Socialista. Lênin e os bolcheviques compreendem que tinha soado a hora da revolução e animavam os operários a não se conformarem com a queda do czarismo e sua substituição por um governo "democrático". Tinha que se preparar para a derrubada da burguesia e a tomada do poder pelos sovietes (os conselhos operários). Esta perspectiva se cumpriu efetivamente na Rússia em outubro de 1917. Imediatamente, o novo poder anima a seguir seu exemplo com a finalidade de acabar com a guerra e derrubar o capitalismo. De certo modo, os bolcheviques e com eles todos os revolucionários dos demais países, chamam o proletariado mundial para que esteja presente neste novo evento histórico após ter faltado ao de 1914.
O exemplo russo é seguido pela classe operária de outros países particularmente na Alemanha onde, um ano mais tarde, o levantamento de operários e camponeses derrota o regime imperial de Guilherme II e obriga a burguesia alemã a retirar-se da guerra colocando, assim, fim a quatro anos de uma barbárie nunca antes vivida pela humanidade. No entanto, a burguesia tinha tirado as lições da sua derrota na Rússia. Neste país o Governo provisório instaurado após a revolução de Fevereiro de 1917 foi incapaz de satisfazer uma das reivindicações essenciais dos operários, a paz. Acossados pelos seus aliados da Entente, França e Inglaterra, manteve-se na guerra o que provocou uma rápida queda nas ilusões que as massas operárias e de soldados haviam depositado nele, contribuindo para sua radicalização. A derrubada da burguesia, e não só do regime czarista, aparece como a única maneira de por fim à matança. Na Alemanha, ao contrário, a burguesia teve a maior pressa em deter a guerra nos primeiros dias da revolução. A burguesia apresenta como uma vitória decisiva a derrubada do regime imperial e a instauração de uma república. Imediatamente chama o partido socialista para tomar as rédeas do governo, o qual obtém o apoio do Congresso de Conselhos Operários, dominado precisamente, pelos socialistas. Mas, sobretudo, o novo governo exige imediatamente o armistício aos aliados da Entente, que estes atendem sem mais demora. Além disso, os da Entente fazem de tudo para permitir ao novo governo alemão fazer frente à classe operária. Por exemplo, a França restitui imediatamente ao exército alemão 16.000 metralhadoras que lhe foi confiscado como espólio de guerra. Metralhadoras que seriam utilizadas mais tarde para esmagar a classe operária.
A burguesia alemã, com o partido socialista à sua frente, aplica um golpe terrível no proletariado em janeiro de 1919. Arma uma provocação, conscientemente, para incitar uma insurreição prematura dos operários de Berlim. A insurreição acaba com um banho de sangue e seus principais dirigentes revolucionários, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht (e mais tarde Leo Jogiches), são assassinados. Apesar disso, a classe operária alemã ainda não está definitivamente derrotada. Até 1923 levará a cabo tentativas revolucionárias [8]. No entanto, todas essas tentativas serão derrotadas, assim como as tentativas revolucionárias ou os vigorosos movimentos da classe operária que se deram em outros países durante esse período (por exemplo, na Hungria, em 1919, e Itália, na mesma época) [9].
De fato, o fracasso do proletariado na Alemanha sela a derrota da revolução mundial, a qual terá um último sobressalto na China em 1927, afogado também em sangue.
Ao mesmo tempo que se desenvolve a onda revolucionária na Europa foi fundada em Moscou, em março de 1919, a Internacional Comunista (IC) ou Terceira Internacional, que reagrupa as forças revolucionárias de todos os países. No momento da sua fundação só existem dois grandes partidos comunistas, o da Rússia e o da Alemanha, este último constituído alguns dias antes da derrota de janeiro de 1919. Esta internacional fomenta, em todos os países, a criação de partidos comunistas que rechaçam o chauvinismo, o reformismo e o oportunismo que engoliu os partidos socialistas. Os partidos comunistas são a direção da revolução mundial, porém foram constituídos tarde demais por conta das condições históricas presentes no seu nascimento. Quando a Internacional Comunista realmente se constitui, ou seja, no seu II Congresso em 1920, o momento mais forte da onda revolucionária já tinha passado e o capitalismo mostra que é capaz de recuperar a situação, tanto no plano econômico como no político. A classe dominante conseguiu, sobretudo, quebrar o impulso revolucionário ao colocar um final ao seu principal alimento, a guerra imperialista. Com o fracasso da onda revolucionária mundial, os partidos comunistas, que se formaram contra a degeneração e a traição dos partidos socialistas, acabaram se degenerando um após outro.
Vários são os fatores dessa degeneração dos partidos comunistas. O primeiro é que aceitam nas suas filas toda uma série de elementos que já eram "centristas" dentro dos partidos socialistas, e que saíram deles mediante uma rápida conversão à fraseologia revolucionária, beneficiando-se assim do imenso entusiasmo revolucionário do proletariado mundial pela Revolução Russa. Outro fator, ainda mais decisivo, foi a degeneração do principal partido dessa internacional, o que tinha maior autoridade, o Partido bolchevique que tinha conduzido a Revolução de Outubro e foi o principal protagonista da fundação da Internacional. Com efeito, esse partido alçado na direção do Estado é absorvido progressivamente por ele; e, devido ao isolamento da revolução, vai se convertendo cada vez mais em defensor dos interesses da Rússia em detrimento da sua função de baluarte da revolução mundial. Além disso, como não pode haver "socialismo em um só país" e a abolição do capitalismo só pode ser feita em escala mundial, o Estado russo se transforma progressivamente em defensor do capital nacional russo, um capital no qual a burguesia está formada principalmente pela burocracia do Estado e, portanto, do partido. O Partido bolchevique vai se transformando progressivamente de partido revolucionário em partido burguês e contrarrevolucionário, apesar da resistência de um grande número de verdadeiros comunistas, como Trotsky, que mantém de pé a bandeira da revolução mundial. E foi assim que, em 1925, o partido bolchevique, apesar da oposição de Trotsky, adota como programa "a construção do socialismo em um só país", um programa promovido por Stálin, e que é uma verdadeira traição ao internacionalismo proletário. Um programa que em 1928 vai se impor à Internacional Comunista, o que será sua morte definitiva.
Após isso, os partidos comunistas nos diferentes países irão passando ao serviço do seu capital nacional, apesar da reação e do combate de toda uma série de frações de esquerda que serão excluídas uma após a outra. Os partidos comunistas que haviam sido ponta de lança da revolução mundial se convertem em ponta de lança da contrarrevolução: a contrarrevolução mais terrível da história.
A classe operária não só perdeu o segundo encontro com a história, mas ainda ia se afundar no pior período que jamais tinha vivido, que fica muito bem refletido no título do livro do escritor Victor Serge: É meia noite no século.
Enquanto na Rússia o aparato do partido comunista se converte em classe exploradora e também em instrumento de uma repressão e opressão das massas operárias e camponesas sem comparação com os do passado, o papel contrarrevolucionário dos partidos comunistas fora da Rússia se concretiza, nos anos 30, na preparação do alistamento do proletariado na Segunda Guerra Mundial, ou seja, a resposta burguesa à crise aberta que vive o capitalismo a partir de 1929.
Justamente esta crise aberta, a terrível miséria que se abate sobre as massas operárias durante os anos 30, poderia ter constituído um potente fator de radicalização do proletariado mundial e da tomada de consciência da necessidade de acabar com o capitalismo. Mas o proletariado vai faltar a este terceiro encontro com a história.
Na Alemanha, país chave para a revolução proletária, onde se encontra a classe operária mais concentrada e experimentada do mundo, vive uma situação similar à da classe operária na Rússia. Como ela, a classe operária alemã tinha empreendido o caminho da revolução e sua conseqüente derrota foi ainda mais terrível. O aniquilamento da revolução alemã não foi obra dos nazistas, mas dos partidos "democráticos", e em primeiro lugar do partido socialista [social-democrata]. Mas justamente porque o proletariado tinha sofrido essa derrota, o partido nazista, que naquele momento correspondia melhor às necessidades políticas e econômicas da burguesia alemã, pôde terminar a tarefa da esquerda empregando o terror para aniquilar toda luta proletária e alistando, por esse mesmo meio principalmente, os operários na guerra.
De outro lado, nos países da Europa ocidental onde o proletariado não tinha feito a revolução e, portanto, não tinha sido aniquilado fisicamente, o terror não era o melhor meio para alistar os operários na guerra. Para alcançar resultado a burguesia tinha que empregar mistificações como as que tinham utilizado com êxito em 1914 e que tinham servido para levar o proletariado à Primeira Guerra Mundial. Nesta tarefa os partidos stalinistas cumpriram de maneira exemplar seu papel burguês. Em nome da "defesa da pátria socialista" e da democracia contra o fascismo, esses partidos desviaram sistematicamente as lutas operárias para becos sem saída, desgastando assim a combatividade e a moral do proletariado.
A moral do proletariado ficou muito afetada pela derrota da revolução mundial durante os anos 20. Após um período de entusiasmo pela idéia da revolução comunista, muitos operários perderam a esperança na perspectiva comunista. Um dos fatores da sua desmoralização foi constatar que a sociedade instaurada na Rússia não era nenhum paraíso, como apresentado pelos partidos stalinistas, o que facilita sua recuperação pelos partidos socialistas. Entretanto, a maioria dos que ainda continuavam acreditando na perspectiva revolucionária caem nas redes dos partidos stalinistas que lhes dizem que essa perspectiva passa pela "defesa da pátria socialista" e pela vitória sobre o fascismo que havia se instaurado na Itália e, sobretudo, na Alemanha.
Um dos episódios chave nessa desorientação do proletariado mundial foi a guerra da Espanha que não foi, longe disso, uma revolução, mas ao contrário foi um dos preparativos militares, diplomáticos e políticos da Segunda Guerra Mundial.
A solidariedade que os operários do mundo inteiro quiseram expressar para seus irmãos de classe na Espanha, os quais se levantaram espontaneamente diante do golpe fascista de 18 de julho, é canalizada e enrolada nas Brigadas internacionais (dirigidas principalmente por stalinistas), com a reivindicação de "armas para Espanha" (na realidade para o governo burguês da "Frente Popular") e também pelas mobilizações antifascistas que, de fato, permitem o alistamento dos operários dos países "democráticos" na guerra contra Alemanha.
Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, o que estava sendo considerado como a grande força do proletariado (os poderosos sindicatos e partidos operários) era, na realidade, sua debilidade mais considerável. O mesmo cenário se repete diante da Segunda Guerra Mundial, embora os atores sejam de algumas maneiras diferentes. A grande força dos partidos "operários" (os partidos stalinistas e também os partidos socialistas, unidos em uma aliança antifascista), as grandes "vitórias" contra o fascismo na Europa ocidental, a suposta "pátria socialista", são todas elas marcas da contrarrevolução, de uma debilidade do proletariado sem precedentes. Uma debilidade que o levará de pés e mãos atados à segunda carnificina imperialista.
O proletariado diante da Segunda Guerra Mundial
A Segunda Guerra Mundial ultrapassa de longe o horror da Primeira. O novo grau de barbárie mostra que prossegue o afundamento do capitalismo na sua decadência. Contudo, contrariamente ao que passou em 1917 e 1918, não é o proletariado que faz com que ela termine. A guerra continua até o esmagamento completo de um dos campos imperialista. Na realidade o proletariado não ficou totalmente sem resposta durante a carnificina. Na Itália de Mussolini, por exemplo, se desenvolveu um vasto movimento de greves, em 1943, no Norte industrial que levou as forças dirigentes da burguesia a colocar Mussolini fora do caminho e colocar no seu lugar um almirante pró-aliado, Bodoglio. Igualmente, no fim de 1944 e início de 1945, se produzem movimentos de revolta contra a fome e a guerra em várias cidades alemãs. Mas o que ocorreu durante e Segunda Guerra Mundial não é em nada comparável ao acontecido durante a Primeira. E isso por várias razões. Em primeiro lugar, porque antes de declarar a Segunda Guerra Mundial, a burguesia contava com a experiência da Primeira e por isso se dedicou a esmagar prévia e sistematicamente o proletariado não só física, como também ideologicamente. Uma das expressões dessa diferença é que se os partidos socialistas traíram a classe operária no momento da [primeira] guerra, os partidos comunistas cometeram sua traição bem antes de ser desencadeada a Segunda Guerra Mundial. Uma das conseqüências desse fato é que no seu seio não ficou a menor corrente revolucionária, contrariamente ao que havia passado durante a Primeira Guerra Mundial em que a maioria dos militantes que logo formaram os partidos comunistas tinham sido membros anteriormente dos partidos socialistas. E na terrível contrarrevolução que se abateu durante os anos 30, só um pequeno punhado de militantes continuou defendendo as posições comunistas, isolados completamente de todo contato direto com a classe operária, completamente submetida à ideologia burguesa. Foi impossível desenvolver um trabalho no seio de partidos com influência na classe operária, diferente dos revolucionários durante a Primeira Guerra Mundial, não só porque tinha sido expulsos desses partidos, mas porque neles já não existia o menor sopro de vida proletária. Aqueles que tinham mantido posições revolucionárias quando da eclosão da Primeira Guerra Mundial, como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, puderam encontrar um eco crescente da sua propaganda entre os militantes da social-democracia à medida que a guerra fazia romper suas ilusões. Nada disso nos partidos comunistas: a partir do começo dos anos 30, se convertem em um terreno totalmente estéril e no qual não pode surgir nenhum pensamento proletário e internacionalista. Durante a guerra, alguns pequenos grupos revolucionários que tinham mantido os princípios internacionalistas não tinham nenhum impacto significativo na classe, que estava totalmente atrelada à ideologia antifascista.
A outra razão pela qual não há um ressurgimento proletário durante a Segunda Guerra Mundial é que a burguesia mundial, instruída pela experiência do final da Primeira, toma suas medidas para prevenir qualquer ressurgimento nos países vencidos, onde a burguesia era mais vulnerável. Na Itália, por exemplo, o meio pelo qual a classe dominante faz frente à sublevação de 1943 caracteriza-se por uma divisão de tarefas entre o exército alemão, que ocupa diretamente o norte da Itália restabelecendo o poder de Mussolini, e os aliados que desembarcam no sul. No norte, são as tropas alemãs as que restabelecem a ordem com tal brutalidade que obriga os operários, que tinham mais se destacado nos movimentos de 1943, a se refugiarem nas guerrilhas, de onde, amputados das suas bases de classe, se convertem em presa fácil da ideologia antifascista e de "libertação nacional". Ao mesmo tempo, os Aliados interrompem sua marcha para o Norte, dizendo que havia de deixar que a Itália "se cozinhasse no seu próprio molho" (nas palavras de Churchill) com a finalidade de deixar que o "mal", a Alemanha, faça o trabalho sujo da repressão antioperária deixando que as forças democráticas, particularmente o partido stalinista, tomem o controle ideológico sobre a classe operária.
Essa mesma tática se empregou na Polônia, enquanto o "Exército Vermelho" está a poucos quilômetros de Varsóvia, Stálin deixa que se desenvolva, sem dar nenhum apoio, a insurreição nesta cidade. O exército alemão tem as mãos livres para perpetrar um autêntico banho de sangue e arrasar completamente a cidade. Quando vários meses depois o Exército Vermelho entra em Varsóvia, os operários dessa cidade que podiam lhes causar problemas tinham sido totalmente aniquilados e desarmados.
Na própria Alemanha, os Aliados se encarregam de esmagar qualquer tentativa de levante operário, por isso realizam primeiro uma abominável campanha de bombardeios nos bairros operários (em Dresde em 13 e 14 de fevereiro de 1945, os bombardeios que causam mais de 250.000 mortos, três vezes mais que em Hiroshima). Ou seja, os Aliados rechaçam todas as tentativas de armistício proposta por vários setores da burguesia alemã incluídos militares de renome como o marechal de campo Rommel ou o chefe dos serviços secretos o almirante Canaris. Para os Aliados, deixar a Alemanha unicamente em mãos da burguesia alemã, inclusive dos setores antinazistas, é impensável. A experiência de 1918 quando o governo que tinha tomado o regime imperial tinha grandes dificuldades para restabelecer a ordem, permanecia ainda na memória dos políticos burgueses. Por isso decidem que os vencedores devem se incumbir diretamente da administração da Alemanha vencida e ocupar militarmente cada porção do seu território. O proletariado alemão, aquele gigante que durante décadas tinha sido o farol do proletariado mundial e que, entre 1918 e 1923, tinha feito tremer o mundo capitalista, estava agora humilhado, oprimido, disperso em uma multidão de pobres sombras que buscavam os escombros para encontrar seus mortos e seus objetos familiares, submetidos à benevolência dos "vencedores" para poder comer e sobreviver. Nos países vencedores, muitos operários tinham entrado na Resistência com a ilusão, propagada pelos partidos stalinistas, de que a luta contra o nazismo era o prelúdio da derrubada da burguesia. Na realidade, nos países sob o domínio da URSS, os operários se viam obrigados a apoiar a implantação dos regimes stalinistas (como durante o Golpe em Praga de 1948), regimes que uma vez consolidados desarmam os operários e exercem sobre eles o terror mais brutal. Nos países dominados pelos Estados Unidos, como França ou Itália, os partidos stalinistas no governo pedem que os operários devolvam as armas porque a tarefa do momento não é a revolução, mas a "reconstrução nacional".
Assim, por todas as partes em uma Europa que não é nada mais que um imenso campo de ruínas, no qual centenas de milhões de proletários sobrevivem em condições de vida e de exploração muito piores do que aconteceram na Primeira Guerra Mundial, onde a fome ronda permanentemente, onde o capitalismo estende mais que nunca sua barbárie, a classe operária não tem a força de empreender o mínimo combate de importância contra o poder capitalista. A Primeira Guerra Mundial tinha ganho para o internacionalismo milhões de trabalhadores, a Segunda os arrastou à infâmia do chauvinismo mais abjeto, da caça ao "boche" [10] e aos "colaboracionistas".
O proletariado tinha chegado ao fundo do poço. O que lhe é apresentado, e o que ele interpreta como sua grande "vitória", o triunfo da democracia frente ao fascismo, é na realidade sua maior derrota histórica. O sentimento de vitória que experimenta, a crença nas "virtudes sagradas" da democracia burguesa que essa vitória implica, essa mesma democracia que o levou a duas carnificinas imperialistas e que esmagou a revolução no começo dos anos 20, a euforia que o domina é a melhor garantia da ordem capitalista. E o período de reconstrução, do "boom" econômico da pós-guerra, da melhoria momentânea das condições de vida, não permite, ao proletariado, medir a dimensão da derrota sofrida.
De novo o proletariado falta ao encontro com a história. Mas nesta ocasião não é porque tenha chegado demasiado tarde ou mal preparado: simplesmente ficou ausente da cena histórica.
Na segunda parte deste artigo veremos como ele voltou à cena histórica, mas também o quanto comprido ainda é o seu caminho.
Fabienne
[1] Marx e Engels, Manifesto Comunista. Ed. Boitempo, p.42.
[2] Ibid, p. 51.
[3] Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. (A expressão “Hic Rhodus, hic salta!” é de uma fábula de Esopo em que um fanfarrão sustenta ter dado um salto prodigioso em Rhodes, uma das maravilhas arquitetônicas do mundo antigo. A ele se replicou, então: "Aqui está Rhodes, agora salta.") Ed. Expressão Popular, p. 212.
[4] Rosa Luxemburgo, A Ordem Reina em Berlim. Tradução nossa.
[5] Marx e Engels, Manifesto Comunista. Ed. Boitempo, p.41-42.
[6] Passagem citada na "Resolução sobre a posição para as correntes socialistas e a conferência de Berna" no Primeiro Congresso da Internacional Comunista.
[7] NdT: expressão francesa que remete ao entusiasmo, felicidade e ingenuidade dos soldados da época.
[8] Veja nossa série de artigos sobre a revolução alemã na Revista Internacional números 81 a 99.
[9] Veja nosso artigo "Lecciones de 1917-23 - La primera oleada revolucionaria del proletariado mundial [51]", Revista internacional nº 80, primeiro trimestre de 1995.
[10] NdT: termo francês de tom pejorativo dado aos alemães.
A onda de violências e matanças de bandidos, de policiais e de pessoas que não têm nada a ver com os conflitos entre policiais e marginais, continua sacudindo algumas cidades do Brasil. Não é nosso objetivo comentar os eventos, mas tentar colocá-los num quadro mais amplo que não diz respeito só ao Brasil, e também situá-lo em um contexto histórico além do momento atual, o da decomposição do capitalismo, a fase final deste sistema.
A grande São Paulo é a que foi mais foi afetada: "260 pessoas assassinadas nos últimos 40 dias em um pico de violência que se alastrou pela capital e pela região metropolitana de São Paulo" [1]. Mas outras cidades, como Florianópolis onde a criminalidade é geralmente muito mais baixa, também foram atingidas pela onda de violência.
A amplitude da violência é inquestionável, como também suas consequências sobre a população: "A polícia está matando e os criminosos também. É uma guerra a que estamos assistindo todos os dias pela TV", disse Marcos Fuchs, diretor da ONG Conectas Direitos Humanos. "E quem sofre com tudo isso é a população" [2]. Para a população empobrecida por todas as consequências da crise, é uma calamidade a mais.
Entre as explicações mais radicais, encontram-se algumas culpando o sistema penitenciário que cria criminosos em lugar de favorecer a reinserção social. Mas o próprio sistema penitenciário é produto da sociedade e é feito à sua imagem e semelhança. Na realidade, nenhuma reforma, do sistema penitenciário ou de qualquer outra instituição, poderá conter o fenômeno do banditismo e da repressão policial, e, portanto da violência sob qualquer forma. O problema maior é que isso só vai piorar com o agravamento da crise mundial deste sistema. É fácil constatar isso a nível do Brasil. Há trinta anos, a São Paulo que aparece hoje como a capital do crime era vista como uma cidade relativamente tranquila deste ponto de vista.
O fenômeno está longe de ser uma especificidade brasileira. É só dar uma olhada para o México para perceber isso. Lá os grupos mafiosos e o próprio governo, na guerra que travam, arregimentam elementos dos setores mais pauperizados. Os confrontos entre estes grupos, que atiram indistintamente na população, deixam mortas centenas de vítimas que governo e as máfias chamam de "efeitos colaterais". O que está acontecendo hoje no México é um fenômeno que diz respeito a muitos países, especialmente da América latina: as máfias se aproveitam da miséria para fazer frutificar suas atividades ligadas à produção e o comércio da droga; em particular ao inserir camponeses pobres na produção da droga como foi o caso da Colômbia nos anos 1990. O conchavo entre as máfias e as instituições estatais permite às primeiras "proteger seus investimentos" e sua atividade em geral. No México, segundo estimativas, as máfias do narcotráfico empregam um número de pessoas superior em 25% aos empregados do McDonald’s no mundo inteiro.
Hoje em dia, a droga se tornou um novo setor da economia capitalista. Isso significa que a exploração existe nele como em qualquer outra atividade econômica. Mas, além disso, as condições de ilegalidade fazem com que a concorrência e a guerra pela conquista dos mercados tomam formas muito mais violentas. No México, desde 2006, quase 60 000 pessoas foram mortas, tanto por balas das unidades da máfia, quanto do exército oficial. Uma grande parte desses mortos resulta da guerra entre cartéis da droga, mas isso não diminui em nada a responsabilidade do Estado, seja qual argumento usado por este. Com efeito, cada grupo mafioso nasce sob a proteção de uma fração da burguesia.
Na realidade, o fenômeno da violência como o exemplificamos no Brasil ou México é um fenômeno mundial que não poupa nem a América do Norte nem a Europa.
Quando insistimos muito sobre o banditismo, obviamente não é para fazer dele um problema em si diante do qual existiria um remédio específico. Vamos ver que seu desenvolvimento vai de ombreado com o desenvolvimento de outros males sociais cuja amplitude e gravidade chegam até a constituir uma ameaça em grande escala para a vida das populações.
Nenhuma região do mundo é poupada por estas e as primeiras vítimas são geralmente trabalhadores. A causa destas não é o desenvolvimento industrial em si, mas o desenvolvimento industrial nas mãos do capitalismo em crise, onde tudo deve ser sacrificado aos objetivos da rentabilidade para enfrentar a guerra comercial mundial. Alguns exemplos:
Mas esses tipos de desastres foram quase ocultados pela sombra mórbida do desastre nuclear de Fukushima cuja gravidade superou Chernobyl (um milhão de mortes "reconhecido" entre 1986 e 2004). Na verdade, a burguesia é diretamente responsável pela magnitude mortal de Fukushima. Para os fins da produção, o capitalismo concentrou populações e indústrias de forma delirante. O Japão é uma caricatura desse fenômeno histórico: dezenas de milhões de pessoas estão reunidas numa pequena faixa de terra especialmente propensa a terremotos e, portanto, a tsunamis. Obviamente, as construções antitorremoto foram construídas para os edifícios mais ricos e de escritório; concreto simples teria sido suficiente para proteger de tsunami mas a classe trabalhadora, no entanto, teve que se contentar com casas precárias de madeira em lugares que todo mundo sabia que são altamente perigosos. O Japão é um país exportador e para maximizar o lucro, é melhor construir fábricas perto dos portos. Algumas fábricas também foram arrastadas pelas águas, fazendo que o desastre nuclear se incrementasse com um desastre industrial dificilmente imaginável. Neste contexto, uma crise humanitária afetou um dos centros do capitalismo mundial. Enquanto muitos equipamentos e infraestruturas estavam fora de uso, dezenas de milhares de pessoas foram abandonadas a seu destino, sem comida e sem água.
Certamente, não se pode culpar o capitalismo de estar na origem de um terremoto, um furacão ou da seca. No entanto, pode-se culpá-lo pelo fato de que todos estes cataclismos ligados a fenômenos naturais se tornam desastres sociais imensos, tragédias humanas enormes. Assim, o capitalismo tem forças tecnológicas que lhe permitem enviar homens à Lua, produzir armas monstruosas, capazes de destruir dezenas de vezes o planeta, mas ao mesmo tempo não cria os meios de proteger as populações do mundo expostas a desastres naturais. Isso poderia ser feito ao se construir represas, desviando rios, construindo casas que possam suportar terremotos ou furacões. Eis algumas ilustrações do fenômeno:
Se não fossem bem conhecidas, deveria-se falar também aqui das consequências da permanência do capitalismo em crise sobre o meio ambiente, consequências que poderiam se tornar letais para a humanidade.
Estas tragédias evidenciam a falência total do modo de produção capitalista que entrou, com a Primeira Guerra Mundial, na sua fase de decadência. Esta entrada em decadência significa que, após um período de prosperidade, durante o qual foi capaz de realizar um salto gigantesco nas forças produtivas e nas riquezas da sociedade através da criação e unificação do mercado mundial, este sistema alcançou, desde o início do século XX, seus próprios limites históricos. Resultado: duas guerras mundiais, a crise de 29 e novamente a crise aberta no final dos anos 1960, que desde então não deixa de mergulhar o mundo na pobreza.
O capitalismo decadente é a crise permanente, insolúvel, deste sistema que, por si só, constitui um enorme desastre para a humanidade, como o expressa em particular o fenômeno de pauperização crescente de milhões de seres humanos reduzidos à indigência, à extrema pobreza. A incapacidade do capitalismo decadente em integrar enormes massas sem trabalho no processo de produção não afeta apenas os países atrasados. No coração dos Estados desenvolvidos, a grande miséria na qual estão mergulhados dezenas de milhões de trabalhadores, cada dia revela mais a podridão deste sistema.
Ao se prolongar, a agonia do capitalismo dá uma nova qualidade às manifestações extremas da decadência: dá origem ao fenómeno de decomposição do sistema, um fenómeno visível nas últimas três décadas.
Esta decomposição não se limita apenas ao fato de que o capitalismo - apesar de sua tecnologia desenvolvida - encontra-se cada vez mais submetido às leis da natureza, na incapacidade de controlar os meios que utilizou para seu próprio desenvolvimento.
Esta decomposição atinge não só as bases econômicas do sistema, mas também se expressa em todos os aspectos da vida social, através de uma decomposição dos valores ideológicos da classe dominante. Estes valores, ao continuar seu declínio, carregam com eles um colapso de qualquer valor que permita a vida social.
Isso se pode constatar através de uma série de fenômenos:
A decomposição do capitalismo reflete a imagem de um mundo sem futuro, um mundo à beira do abismo, que tende a se impor à toda sociedade. É o reino da violência, do "cada um por si", que gangrena toda a sociedade, e particularmente suas camadas menos favorecidas, com o seu cotidiano de desespero e destruição: desempregados que cometem suicídio para escapar da pobreza, crianças sendo estupradas e assassinadas, idosos torturados e vítimas de latrocínio.
Enquanto, no passado, as relações sociais como também as relações de produção de uma nova sociedade em gestação podiam eclodir no seio da sociedade anterior em colapso (como era o caso para o capitalismo que pôde se desenvolver dentro da sociedade feudal em declínio), isto já não é mais possível hoje. A única alternativa possível só pode ser a construção, nas ruínas do sistema capitalista, de outra sociedade - a sociedade comunista - que poderá trazer uma plena satisfação das necessidades humanas graças a um florescer e uma dominação real das forças produtivas, que as leis do capitalismo faz impossíveis.
Até agora, os combates de classe que, durante quarenta anos, se desenvolveram em todos os continentes, foram capazes de impedir o capitalismo decadente de impor sua própria resposta ao impasse de sua economia: a explosão da última expressão de sua barbárie, uma nova guerra mundial. Porém, o proletariado ainda não é capaz de afirmar, através de lutas revolucionárias, a sua própria perspectiva.
Vivemos uma situação de impasse momentânea em que nem a alternativa burguesa, nem a alternativa proletária conseguem se afirmar abertamente. É justamente esta situação de impasse que constituiu a origem do fenômeno de decomposição da sociedade capitalista, que explica o extremo grau alcançado pela barbárie própria da decadência do capitalismo. E esta decomposição está para se ampliar mais ainda com o agravamento inexorável da crise econômica.
Frente à gravidade desta situação de apodrecimento do capitalismo, os revolucionários têm que alertar o proletariado contra o risco de destruição que o ameaça hoje. Na sua intervenção, eles têm que chamar a classe trabalhadora a achar em toda essa podridão que ela sofre diariamente, além dos ataques econômicos contra todas suas condições de vida, uma razão adicional, uma maior determinação para desenvolver e forjar sua unidade de classe.
As lutas atuais do proletariado mundial para a sua unidade e solidariedade de classe constituem a única perspectiva de esperança em meio deste mundo em apodrecimento total. Só elas são capazes de prefigurar algum embrião de comunidade humana. Da generalização internacional destes combates, poderão finalmente brotar as sementes de um novo mundo e poderão surgir novos valores sociais.
(29/11/2012)
[2] BBC Brasil. Na realidade, se pode dizer com mais detalhes: "policiais militares tenham se organizado em grupos de extermínio para agir sem fardas para não prejudicar a imagem da PM. (...) Esses grupos estariam realizando ações para matar indiscriminadamente criminosos, usuários de drogas e pessoas que frequentam os mesmos ambientes que os criminosos - em um ciclo de retaliação às mortes de colegas."
Desde a sua criação, a CCI sempre destacou a importância decisiva de uma organização internacional de revolucionários no ressurgimento de um novo curso da luta de classes em escala mundial. Com sua intervenção na luta, embora ainda seja em escala modesta, com seus perseverantes trabalhos para a criação de um lugar verdadeiro de discussões entre grupos revolucionários, a CCI tem demonstrado na prática que a sua existência não era supérflua nem imaginária. Convencida de que sua função respondia a uma necessidade profunda da classe, tem combatido tanto o diletantismo como a megalomania dentro do meio revolucionário, ainda marcado pelos estigmas da irresponsabilidade e da falta de maturidade. Esta convicção não se apóia em uma crença religiosa, mas em um método de análises, a teoria marxista. As razões do ressurgimento da organização revolucionária não poderiam ser compreendidas fora dessa teoria, sem a qual não poderia haver movimento revolucionário autêntico.
A greve da Polícia Militar (PM) que aconteceu em vários estados do Brasil nesse início de ano, embora não simultâneas, teve repercussões importantes: aconteceram nos estados do Maranhão, Ceará, Bahia e se estendeu ao Rio de Janeiro. O movimento teve sua maior amplitude e contundência no estado da Bahia, onde foram mobilizados mais de 3 mil efetivos da Força Nacional de Segurança, Polícia Federal e, principalmente, do Exército; que na sua maioria atuaram na capital, Salvador, onde os policiais em greve juntamente com vários dos seus familiares tomaram a Assembléia Legislativa.
O governo de Dilma Roussef, dando continuidade à linha do seu mentor Lula, condenou o movimento grevista como um atentado contra a democracia e ordenou a mobilização do exército e da Polícia Federal para atuarem em Salvador, Rio e outras cidades com a finalidade expressa de reprimir os manifestantes. Jacques Wagner, governador do PT na Bahia, foi o encarregado de liderar as ações contra o movimento grevista nesse estado.
Por sua vez, altos representantes do PT, PCdoB, do esquerdista PSTU, do PSOL, bem como outras organizações de esquerda e direita se viram obrigados a se pronunciarem a favor ou contra o movimento. Os dois primeiros partidos, governistas, colocaram-se contra o movimento alegando grave atentado ao estado de direito e à democracia. Enquanto os esquerdistas PSTU e PSOL deram seu apoio irrestrito aos policiais, considerando-os "trabalhadores da segurança pública". A população, devido à ampla cobertura que as "mídias" deram ao conflito e diante dos temores de que aumentasse a violência e os homicídios, também se viu confrontada a dizer se apoiava ou não o movimento da PM.
A greve dos PM, que não é a primeira nem seguramente será a última do setor, expressa as dificuldades do Estado brasileiro para preservar a ordem e a coesão no interior dos seus corpos repressivos, afetados pela crise econômica tanto nas condições de vida dos seus membros como no seu funcionamento.
O proletariado e suas organizações de classe devemos ter a maior clareza sobre esta greve dos PM´s e o que representa para as próximas lutas que empreenderá o proletariado brasileiro, como resposta aos ataques que a burguesia descarrega sobre seus ombros que se acentuarão na medida em que se agudize a crise mundial do capitalismo.
A burguesia brasileira se vangloria de fazer parte da elite dos chamados países emergentes, posicionamento alcançado principalmente durante os períodos de governo de Lula, que de fato integra os países do denominado BRIC´s[1]. Também como seus sócios, este lugar que o Brasil ocupa foi alcançado graças a exploração e precarização das condições de vida do proletariado brasileiro, sustentado no seu ambiente de "paz trabalhista" logrado principalmente devido ao controle que a esquerda do capital exerce sobre as massas proletárias, encabeçada pelo PT.
Os policiais, bem como o resto da população assalariada, não escapa dessa pressão constante que o capital exerce contra suas condições de vida: baixos salários, precarização expressa em uma maior deterioração dos benefícios trabalhistas e das condições de trabalho, etc. No entanto, os militares, não importa a sua graduação na hierarquia, na condição de membros do aparato da repressão do Estado e por ele remunerado, ao entrarem em greve, trazem à luz do dia os conflitos e as contradições no seio da classe dominante que, por um lado, necessita contar com um corpo repressivo sempre apto a exercer a coerção e a violência contra o proletariado no momento em que lutam por reivindicações, mesmo as mais elementares como a de ter um salário que satisfaça as suas necessidades básicas. Por outro lado, na maioria dos casos, por se tratar de pessoas recrutadas no meio das famílias do proletariado – ao mesmo tempo que são os elementos da linha de frente na defesa da classe dominante – são os que percebem as menores remunerações dentre os que exercem suas funções diretamente ligadas ao aparato repressor estatal (polícia, juízes, tribunais), fato esse que causa um enorme descontentamento, levando-os à greve.
O recente conflito da PM mostra uma maior complicação para o Estado brasileiro já que foi o movimento reivindicativo do setor que teve maior amplitude. As medidas repressivas contra vários dirigentes do movimento tomadas pelo governo federal, em vez de aplacar, foi um motivo de maior radicalização. Por outro lado as reivindicações salariais alcançadas estão longe das aspirações iniciais do movimento. Foi pedido: a reintegração dos demitidos políticos que foram expulsos da PM depois da histórica greve de 2001, a incorporação de gratificações, o pagamento de um adicional de periculosidade, reajuste linear de 17,28% retroativo a abril de 2007 e a revisão no valor do auxílio alimentação. O que conseguiram: Aceitaram a proposta do governo de aumento de 6,5% nos salários, e mais uma gratificação por trabalho policial gradativa até 2014. Não houve anistia aos policias detidos.
O movimento grevista da PM faz parte do crescente definhamento da capacidade da burguesia para impor sua ordem, já que algumas forças de repressão irão se tornar menos confiáveis à medida que se acentuem as contradições do seu sistema, onde a agudização da crise capitalista, e com elas a aplicação de austeridade, vai ter um papel de primeira ordem.
É um fato que a grande maioria dos integrantes das corporações policiais, bem como a maior parte doa assalariados, não possuem meios de produção e só dispõem da sua força de trabalho para sobreviver; pertencem às camadas mais pobres da sociedade e se empregam com o Estado para receber um salário que lhes permita o sustento próprio como das suas famílias. Poderia se imaginar que por essa coincidência de camada social e por serem assalariados, os interesses e reivindicações dos policiais também coincidem com os do proletariado, que se vê forçado a lutar e mobilizar contra os embates do capital. Mas não é assim, são movimentos que se situam em campos contrários.
Isso não pode levar a esquecer que estão a serviço da manutenção do ordem dominante com a função de repressão e aterrorizar a população como o ilustra o seguinte: "Nos últimos meses choveu notícias de abuso policial, de agressões gratuitas à população, de estupros, de repressão violenta da PM a manifestações, além dos tradicionais assassinatos e tortura. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo e seus crimes diários nunca foram alvo de investigação e punição... A PM está na USP para reprimir os estudantes, assim como fez contra as manifestações no Piauí, no Recife, no Espírito Santo etc" [2]. Podemos ver também essa mesma atitude nos recentes casos da desocupação do Pinheirinho [3] e a ameaça de desocupação da comunidade quilombola Rio do Macaco na Bahia, onde a polícia militar que recentemente esteve em greve estava cumprindo a sua função repressora, juntamente com a Marinha.
É por isso que, para a classe operária e suas minorias revolucionárias, se faz necessário e fundamental ter a maior clareza a respeito do caráter de classe dos membros dos corpos policiais e dos corpos de repressão em geral. A situação de classe dos policiais não é definida pelo fato de ser um assalariado, mas que seus membros formam a primeira força repressiva da qual o Estado faz uso, e por conseqüência o capital, para enfrentar o proletariado.
Esta distinção obedece ao fato de que o proletariado não é formado pela soma de todos os assalariados, nem sequer, pela soma de todos os explorados. O proletariado é uma classe social cujos interesses são antagônicos à classe dos capitalistas e suas lutas reivindicativas são um elo na cadeia de lutas pela sua emancipação, que os leva a uma confrontação contra a burguesia e seu Estado. Quando luta um setor do proletariado não só está lutando o trabalhador explorado, mas um setor da classe revolucionária, que é capaz de chegar a tomar consciência, através das suas lutas e sua experiência, da força social que representa no capitalismo.
O policial ao decidir vender sua "força de trabalho" ao Estado para fazer parte dos corpos repressivos, coloca suas capacidades a serviço da burguesia com a missão específica de preservar o sistema capitalista através da repressão do proletariado. Nesse sentido, deixa de pertencer à classe dos proletários. Quando um desempregado ou alguém que procura um emprego decide fazer parte dos corpos policiais, aceita o "contrato" de ser fiel ao mandato de fazer cumprir a lei e a ordem estabelecida, o que o coloca, desse modo, contrário a qualquer movimento social ou de classe que enfrente os interesses do capital e seu Estado. Assim, o funcionário policial passa a ser um servidor da classe dominante e como tal se situa fora do campo do proletariado. Não é nenhuma descoberta que os membros dos corpos repressivos não só reprimem os trabalhadores como, inclusive, seus próprios vizinhos dos bairros onde moram.
O recente conflito entre os corpos policiais e seus chefes é um conflito no terreno do capital, uma vez que os membros dos corpos policiais pedem melhores condições salariais e de outra natureza para poder realizar seu trabalho e, inclusive, para realizar de maneira mais eficiente, ou seja, para realizar seu trabalho repressivo em um ambiente de "paz trabalhista".
Nesse sentido, é um erro chamar a solidariedade dos diferentes setores dos trabalhadores assalariados com uma greve de policiais deste tipo, pelo fato essencial que a função da polícia é a defesa do Estado capitalista. O fato dos policiais serem recrutados entre a população pobre não muda nisso, embora possa influir em outras circunstâncias.
O Estado de maneira hipócrita, enfrenta os grevistas acusando-os pelo aumento da criminalidade e de deixar a população à mercê da bandidagem. O Estado se organiza para atribuir aos corpos policiais um papel "social", "útil", como, por exemplo, a luta contra a criminalidade, e essa é a justificativa social da necessidade dessas forças a serviço do Estado. Desse modo, vemos como os proletários e o conjunto da população são induzidos a dar seu apoio para fortalecer os corpos repressivos, justificando a contratação de mais policiais ou com melhor equipamento. A criminalidade e a violência social se incrementam em todo o mundo devido às próprias contradições do capitalismo e à própria decomposição social, que não afeta só aos corpos policiais, como os altos mandatários do Estado e suas forças militares.
Há circunstâncias nas quais as forças da ordem, principalmente do exército, podem chegar a não atuar no marco da defesa do Estado capitalista. Isso pode acontecer em situações de lutas massivas do proletariado, quando são mobilizados amplos setores da população, e setores das forças militares rechaçam reprimir as lutas ou movimentos sociais, e inclusive chegam a se unir aos setores em luta e às confrontações militares com tropas que permanecem fiéis a burguesia. Nesses casos, se apresenta a possibilidade de apoiar e proteger aqueles membros dos corpos repressivos que se opõem desta forma às ordens de repressão do Estado.
A aceleração da crise do capitalismo desde 2007, que é a base da emergência dos movimentos sociais do Norte da África e dos países árabes, assim como de movimentos como o dos "indignados" na Europa principalmente ou "Ocupa Wall Street" nos Estados-Unidos, pode gerar situações de tentativas de confraternizações entre soldados e as massas em movimento. No entanto, tais circunstâncias devem ser analisadas com muita precisão política para não cair em comportamentos ingênuos como os que aconteceram durante os movimentos no Egito, quando o exército, fingindo simpatia com movimento, deixava a tarefa suja de repressão brutal à policia. Na realidade, neste país, como sabemos e é muito mais claro agora, o pilar do sistema é constituído pelo exército.
As ilusões democráticas desses movimentos e o fato de que o proletariado não tinha sido a classe que estava à cabeça dos mesmos os fez presa de falsas simpatias por parte das forças e instituições da ordem e os levou a buscar saídas que terminam reforçando o campo da burguesia. Só em situações revolucionárias muito avançadas, quando a correlação de forças entre burguesia e proletariado seja favorável a este último, se poderia esperar uma situação de confraternização com as forças militares, tal como já se apresentaram no movimento operário.
Episódios importantes deste tipo de situações de confraternizações se deram durante a Revolução Russa de outubro de 1917, que Trotsky expressa de maneira brilhante na sua obra História da Revolução Russa. que descreve e aprova a atitude dos operários russos em fevereiro de 1917 com respeito aos cossacos que "estavam fortemente penetrados do espírito conservador" [4] e eram "perpétuos fautores de repressão e de expedientes punitivos." (Ibid., p. 105.) ; e mais adiante nos fala "Os cossacos, entretanto, atacavam o povo mas sem brutalidade (...) os manifestantes dispersavam-se de um lado para o outro e, logo em seguida, refaziam os grupos. A multidão não tinha medo. Uma frase corria de boca em boca: "os cossacos prometeram não atirar." Evidentemente os operários tinham conseguido parlamentar com certo número de cossacos." (Ibid., p. 103-4.) (…) "Os cossacos puseram-se a responder individualmente às perguntas dos operários e chegaram a conversar ligeiramente com eles". (Ibid., p. 105) (…) "Um dos autênticos cabeças desses dias, o operário bolchevique Kayurov, conta que quando os manifestantes debandaram em certo ponto, sob os golpes das nagaicas da polícia montada, em presença de um pelotão de cossacos, ele, Kayurov, e outros operários que não imitaram os fugitivos, tiraram os gorros, aproximaram-se dos cossacos e, boné na mão, assim falaram: "Irmãos cossacos, ajudai os operários na sua luta por pacíficas reivindicações! Vede como nos tratam, a nós, operários famintos, estes faraós. Ajudai-nos." Este tom, conscientemente humilde, os gorros na mão, que justo cálculo psicológico, que gesto inimitável! Toda a história de combates de ruas e de vitórias revolucionárias está cheia de semelhantes improvisações." (Ibid., p. 107-8.)
O proletariado e suas minorias revolucionária devemos ter presente que, mais a longo prazo, não pode haver vitória militar sobre a burguesia sem desagregação das forças de repressão. A desagregação será o produto de vários fatores:
· A crise econômica;
· A pressão da luta de classe, a perspectiva do poder do proletariado que se impõe à sociedade como uma alternativa à burguesia;
· Nesse contexto, o fato das forças de repressão serem constituídas essencialmente por elementos das camadas exploradas ou pobres da sociedade as torna vulneráveis aos chamados de confraternização por parte do proletariado.
Pode ser que muitos proletários, elementos e grupos políticos da classe no Brasil simpatizem ou se solidarizem com a greve dos PM´s, uma vez que, de algum modo, compartilham com a classe trabalhadora parte das penúrias a que nos submete o capital. Inclusive alguns podem chamar os trabalhadores a tomar como exemplo de luta a greve dos policiais. Contudo, tal colocação só contribui para prejudicar a consciência da classe operária e debilitar sua capacidade de enfrentar a classe inimiga, já que não só pretende colocar a greve dos policiais como um acontecimento que pertence às lutas do resto do proletariado, mas, também favorece uma falta de confiança nas capacidades do proletariado brasileiro para desenvolver suas lutas no seu próprio terreno de classe depois de décadas de sonolência devido à ação do PT, dos outros partidos de direita e esquerda do capital, e seus sindicatos.
Quando essa "velha toupeira" da qual Marx nos falava comece a abalar os pilares do capital brasileiro, momento em que, sem dúvidas, será enfrentado fortemente pelos corpos repressivos do Estado, sua luta persistente e tenaz no seu terreno de classe poderá abrir caminho a uma fragilização dos mesmos.
CCI
14/03/2012
[1] Em economia [53], BRIC é uma sigla [54] que se refere a Brasil [55], Rússia [56], Índia [57],China [58], que se destacam no cenário mundial como países em desenvolvimento [59].Fonte: < https://pt.wikipedia.org/wiki/BRIC>, [60] extraído em 14/03/2012.
[2] PCO, Greve da PM: governo quer a polícia reprimindo a população. Fonte: <https://www.pco.org.br/conoticias/ler_materia.php?mat=34993> [61]
[3] OPOP, Nós somos o Pinheirinho: Todo apoio e solidariedade aos moradores do Pinheirinho. Fonte: <https://revistagerminal.com/2012/01/24/nos-somos-o-pinheirinho-todo-apoi... [62]
[4] Trotsky, História da Revolução Russa. Paz e Terra, 32ª Ed, 1978, p. 105.
Ligações
[1] https://libcom.org/
[2] https://www.revleft.space/vb/
[3] http://www.red-marx.com
[4] https://kaosenlared.net/
[5] https://pt.internationalism.org/content/38/plataforma-da-corrente-comunista-internacional
[6] https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/organizacoes_revolucionarias_Conferencia_Internacional
[7] https://pt.internationalism.org/tag/5/39/quem-somos-n%C3%B3s
[8] https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/cap07.htm
[9] https://pt.internationalism.org/icconline/2008/repressao-a-greve-de-bancarios-no-brasil
[10] https://pt.internationalism.org/icconline/2006/opop-cci>
[11] https://pt.internationalism.org/ICConline/2012/Debate_no_meio_revolucionario__per
[12] https://www.marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/cap03.htm>
[13] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap4.htm
[14] https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm
[15] https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista
[16] https://es.internationalism.org/rint91-comunismo>
[17] https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/05/05.htm
[18] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap5.htm
[19] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap3.htm
[20] https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/1910s/estyrev/hoja3.htm
[21] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/A_revolucao_de_outubro_fevereiro_julho_1917
[22] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/A_Revolucao_de_1917_da_renovacao_dos_conselhos_operarios_a_tomada_do_poder
[23] https://es.internationalism.org/revista-internacional/201104/3086/que-son-los-consejos-obreros-v-los-soviets-ante-la-cuestion-del-es
[24] https://www.marxists.org/portugues/marx/1891/03/18.htm
[25] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200007/3479/viii-la-comprension-de-la-derrota-de-la-revolucion-rusa-2-1921-el-
[26] https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/oe12/lenin-obrasescogidas11-12.pdf
[27] https://pt.internationalism.org/icconline/2006/opop-cci-volkswagen-brasil
[28] https://pt.internationalism.org/icconline/2006/opop-cci
[29] https://fr.internationalism.org/rint11/periode_de_transition.htm
[30] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_per%C3%ADodo_de_transicao
[31] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_per
[32] https://pt.internationalism.org/content/313/mobilizacoes-dos-indignados-na-espanha-e-suas-repercussoes-no-mundo-um-movimento
[33] https://es.internationalism.org/node/3185
[34] https://es.internationalism.org/cci-online/201107/3164/notas-preliminares-para-un-analisis-del-movimiento-de-asambleas-populares-tpt
[35] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200602/752/al-inicio-del-siglo-xxi-por-que-el-proletariado-no-ha-acabado-aun-c
[36] https://es.internationalism.org/revista-internacional/201111/3245/al-inicio-del-siglo-xxi-por-que-el-proletariado-no-ha-acabado-aun-
[37] https://es.internationalism.org/revista-internacional/201108/3170/decadencia-del-capitalismo-x-para-los-revolucionarios-la-gran-depr
[38] https://es.internationalism.org/node/3184
[39] https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Resolucao_sobre_a_situacao_internacional_XVIIIe_congresso_da_CCI
[40] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199307/1964/quien-podra-cambiar-el-mundo-i-el-proletariado-es-la-clase-revoluc
[41] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199309/1949/quien-podra-cambiar-el-mundo-ii-el-proletariado-sigue-siendo-la-cl
[42] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200510/223/la-descomposicion-fase-ultima-de-la-decadencia-del-capitalismo
[43] https://es.internationalism.org/rint/2006/125_tesis
[44] https://es.internationalism.org/content/910/huelga-del-metal-de-vigo-los-metodos-proletarios-de-lucha
[45] https://es.internationalism.org/content/1915/egipto-el-germen-de-la-huelga-de-masas
[46] https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/Da_Praca_Tahrir_a_Puerta_de_+Sol
[47] https://pt.internationalism.org/icconline/2006_estudiantes_franca
[48] https://es.internationalism.org/node/3130
[49] https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/cap01.htm
[50] https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/Os_motins_na_Inglaterra_e_a_perspectiva_sem_futuro_do_capitalismo
[51] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200704/1829/lecciones-de-1917-23-la-primera-oleada-revolucionaria-del-proletar
[52] https://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/11/121115_vitimas_violencia_sp_lk.shtml
[53] https://pt.wikipedia.org/wiki/Economia
[54] https://pt.wikipedia.org/wiki/Sigla
[55] https://pt.wikipedia.org/wiki/Brasil
[56] https://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%BAssia
[57] https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dndia
[58] https://pt.wikipedia.org/wiki/Rep%C3%BAblica_Popular_da_China
[59] https://pt.wikipedia.org/wiki/Pa%C3%ADses_em_desenvolvimento
[60] https://pt.wikipedia.org/wiki/BRIC>,
[61] https://www.pco.org.br/conoticias/ler_materia.php?mat=34993>
[62] https://revistagerminal.com/2012/01/24/nos-somos-o-pinheirinho-todo-apoio-e-solidariedade-aos-moradores-do-pinheirinho/>