Por que os conselhos operários nascem em 1905?

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As condições históricas nas quais nascem os Conselhos operários

Por que os Conselhos Operários surgem em 1905 e não em 1871 com a Comuna revolucionária de Paris? [1]

O surgimento dos Conselhos Operários na Revolução Russa de 1905 só pode ser compreendido se se analisar conjuntamente 3 fatores: as condições históricas do período, as experiências de luta que o proletariado estava desenvolvendo e a intervenção das organizações revolucionárias.

Quanto ao primeiro fator, o capitalismo estava no auge de sua evolução, mas, ao mesmo tempo, mostrava sinais cada vez mais evidentes do início do seu declínio, especialmente no campo imperialista. Trotsky, em seu livro 1905 Balance e Perspectivas [2], em cujo estudo vamos nos apoiar, assinala que: "O capitalismo, ao impor a todos os países seu modo de economia e de comércio, havia convertido o mundo inteiro em um único organismo econômico e político[3], porém isso precisamente: "desde o início dos acontecimentos, dá um caráter internacional e abre uma grande perspectiva: a tarefa de emancipação política que dirige a classe operária russa elevará a si mesma a um patamar até hoje desconhecido na história, colocará em suas mãos forças e meios colossais e lhe possibilitará, pela primeira vez, a começar com a destruição internacional do capitalismo, para o qual a história criou todas as condições objetivas prévias[4]. Produtos desse novo período, já se tinha produzido movimentos massivos e greves gerais nos diferentes lugares do mundo antes de 1905: greve geral na Espanha em 1902, na Bélgica em1903 e na própria Rússia em diferentes momentos.

O segundo fator: Os conselhos operários não surgem do nada, não são o produto de uma tempestade repentina em um céu imaculadamente azul. Nos anos anteriores, acontecem numerosas greves na Rússia a partir de 1896: greve geral dos operários têxteis de São Petersburgo em 1896 e 1897; as grandes greves que, em 1903 e 1904, sacudiram todo o sul da Rússia etc. Todas elas são outras tantas experiências nas quais apontavam novas tendências de mobilizações espontâneas, de criação de organizações de luta completamente novas que já não correspondiam às formas tradicionais de luta sindical, preparando assim o terreno para as lutas de 1905:

"Mas se conhecermos um pouco da evolução política interna do proletariado russo, até ao estágio atual da sua consciência de classe e da sua energia revolucionária, não deixaremos de relacionar a história do presente período de luta de massas com as greves gerais [de 1896 e 1897] de São Petersburgo. Estas são importantes no problema da greve de massas, visto que já contêm em germe todos os princípios elementares das greves posteriores". [5]

Quanto ao terceiro fator, os partidos proletários (os bolcheviques e outras tendências) não haviam feito, evidentemente, nenhuma propaganda prévia sobre o tema dos sovietes, pois, de fato, seu aparecimento os surpreendeu; muito menos haviam criado estruturas organizadas "intermediárias" que os fossem preparando. Entretanto, seu trabalho incansável de propaganda contribuiu em grande medida para o surgimento dos sovietes. É o que Rosa Luxemburgo põe em relevo quando escreve sobre movimentos espontâneos como o da greve dos têxteis de São Petersburgo em 1896 e 1897: "Vemos já se delinearem todas as características de uma futura greve de massas: em primeiro lugar, o fato que desencadeou o movimento foi fortuito, e mesmo acessório, a explosão foi espontânea. Mas no modo como o movimento foi desencadeado manifestaram-se os frutos da propaganda conduzida em vários anos pela social-democracia.[6] E, com relação a isso, Rosa esclarece de maneira rigorosa qual é o papel dos revolucionários: "A social-democracia não tem poder para determinar a priori a ocasião e momento em que poderão desencadear-se as greves de massas na Alemanha porque está fora do seu poder fazer gerar situações históricas por meio de simples resolução de Congresso. Mas está no seu poder, e é seu dever precisar a orientação política dessas lutas, quando se produzem, e traduzi-las numa tática resoluta e conseqüente.[7]

Esta análise global permite compreender a natureza do grande movimento que sacudiu a Rússia durante 1905 e que entra em sua etapa decisiva nos últimos 3 meses do referido ano, de outubro a dezembro, durante os quais se generaliza o desenvolvimento dos conselhos operários.

O movimento revolucionário de 1905 tem sua origem imediata no memorável "Domingo Sangrento" de 22 de janeiro de 1905 [8]. O movimento tem um primeiro refluxo em março de 1905 para ressurgir por distintas vias em maio e julho [9]. No entanto, durante este período, toma forma de uma sucessão de explosões espontâneas com um nível muito débil de organização. Porém, a partir de setembro, a questão da organização geral da classe operária passa para o primeiro plano: entramos em um estágio de crescente politização das massas em cujo seio se percebem os limites da luta imediata reivindicativa, mas também a exasperação da situação política causada tanto pela atitude brutal do czarismo como pelas vacilações da burguesia liberal [10].

O debate de massas

Vimos o solo histórico no qual nascem os primeiros sovietes. Porém, qual é sua origem concreta? É o resultado da ação deliberada de uma minoria audaz? Ou, pelo contrário, surgiram mecanicamente das condições objetivas?

Como havíamos dito, a propaganda revolucionária realizada desde alguns anos contribuiu no surgimento dos sovietes e Trotsky desempenhou um papel de primeira importância no soviete de São Petersburgo, porém o nascimento dos sovietes não foi, entretanto, o resultado direto nem da agitação nem das propostas organizativas dos partidos marxistas (divididos, naquela ocasião, em bolcheviques e mencheviques), menos ainda nasceram da iniciativa de grupos anarquistas como é apresentado por Volin [11] no seu livro A Revolução Desconhecida[12]. Volin situa a origem deste primeiro soviete entre meados ou final de fevereiro de 1905. Sem duvidar da verossimilhança dos fatos é importante assinalar que esta reunião -que ele próprio qualifica de "privada" - pode ser um elemento a mais que contribuiu com o processo que levaria ao surgimento dos sovietes porém não constituiu seu ato fundacional.

Costuma-se considerar o soviete de Ivanovo-Vosnesenk o primeiro ou um dos primeiros [13]. No total foram identificados entre 40 e 50 sovietes e também outros tantos de soldados e camponeses. Anweiler insiste nas suas origens heterogêneas: "Seu nascimento se fez através de outros organismos anteriores (comitês de greve ou assembléias de deputados, por exemplo), e sem mediação alguma de organizações locais do Partido Social-Democrata. As fronteiras entre o puro e simples comitê de greve e o conselho de deputados operários, verdadeiramente digno desse nome, eram frequentemente imprecisas; só foi nos centros principais da revolução e da classe trabalhadora (exceto São Petersburgo) como Moscou, Odessa, Novorossisk e na bacia do Donets, onde os conselhos possuíam uma forma de organização claramente definida[14].

Assim, a paternidade dos sovietes não pertence a um personagem ou minoria específicos, porém isso não significa que nasceram do nada, por geração espontânea. Foram, fundamentalmente, a obra coletiva da classe operária: múltiplas iniciativas, inumeráveis discussões, propostas que surgiam aqui e acolá, tudo nas linhas da evolução dos acontecimentos e com a intervenção ativa dos revolucionários, acabou dando lugar aos sovietes. Afinando mais nesse processo podemos identificar dois fatores determinantes: o debate de massas e a radicalização crescente das lutas.

O amadurecimento da consciência das massas que se observa desde setembro de 1905 cristaliza-se no desenvolvimento de uma gigantesca vontade de debater. A propagação de discussões palpitantes nas fábricas, universidades, bairros, acaba por ser um fenômeno "novo" que aparece significamente durante o mês de setembro. Trotsky recolhe alguns testemunhos: "Um dos paradoxos políticos mais espantosos dos meses de outono de 1905 era o fato de que dentro dos muros das universidades ocorriam reuniões populares perfeitamente livres enquanto o ilimitado terror de Trepov [15] reinava nas ruas[16]. Estas reuniões são freqüentadas cada vez mais massivamente por operários, "‘o povo' enchia os corredores, as salas de aula e os salões. Os operários iam diretamente das fábricas para a universidade", assinala Trotsky, que em seguida, acrescenta: "A agência telegráfica oficial, horrorizada com o aspecto do público concentrado no salão de reuniões da Universidade Vladimir, informou que, além dos estudantes, a multidão consistia em ‘uma profusão de pessoas estranhas de ambos os sexos, estudante de escolas secundárias, adolescentes das escolas privadas da cidade, operários e um populacho diverso'" [17].

Porém não se trata de um "populacho diverso" como afirma com desprezo a agência de notícias, mas de um coletivo que discute e reflete de maneira metódica, ordenada, observando uma grande disciplina e uma maturidade reconhecidas inclusive pelo cronista do jornal burguês Russ (Rússia), como é citado por Trotsky: "Sabem o que mais me espantou numa das reuniões da universidade? Uma ordem extraordinária exemplar. Imediatamente depois de eu ter chegado, anunciou-se uma pausa no salão de reuniões e fui passear pelos corredores. Um corredor universitário é parecido a uma rua. Todas as salas de aula que davam para o corredor estavam cheias de gente e em seu interior estavam ocorrendo reuniões independentes. O próprio corredor estava lotado: inúmeras pessoas caminhavam de um lado para o outro. (...) Poderia pensar-se que se tratava de uma recepção, só que um pouco mais séria do que costumam ser. No entanto, este era o povo: o povo real, autêntico, com as mãos enrijecidas pelo árduo trabalho manual, com essa cor terrosa que se obtém quando se passam os dias em lugares insalubres e mal arejados. [18].

Esse mesmo espírito é observado desde maio na cidade industrial citada anteriormente de Ivanovo-Vosnesensk: "as assembleias plenárias se celebravam todas as manhãs às nove horas. Uma vez terminada a sessão (do Soviete) começava a assembleia geral dos operários, que examinava todas as questões relacionadas com a greve. Prestava-se conta da marcha dessa última, das negociações com os patrões e as autoridades. Depois da discussão, eram submetidas à assembleia geral as proposições preparadas pelo Soviete. Imediatamente, os militantes dos partidos pronunciavam discursos de agitação sobre a situação da classe operária e o comício continuava até que o público se cansasse. Então, a multidão entoava hinos revolucionários e a assembleia se dissolvia. Assim se repetia todos os dias" [19].

A radicalização das lutas

Uma pequena greve na gráfica Sitin de Moscou que havia se iniciado em 19 de setembro ia acender a mecha da greve geral massiva de outubro em cujo seio se generalizaria os Sovietes. A solidariedade com os impressores de Sitin levou a greve a mais de 50 gráficas moscovitas e a celebração em 26 de setembro de uma reunião geral de tipógrafos que adotou o nome de Conselho. A greve se estende a outros setores: padarias, metalúrgicas e têxteis. A agitação ganhou as estradas de ferro, por um lado, e os impressores de Petersburgo, de outro, que se solidarizaram com os companheiros de Moscou.

Inesperadamente, outra frente de organização aparece: uma Conferência de representantes ferroviários sobre as Caixas de Assistência se inicia em Petersburgo em 20 de setembro. A Conferência lança um chamamento a todos os setores operários e não se limita a essa questão, mas coloca a necessidade de se reunirem operários dos distintos ramos e de propor reivindicações econômicas e políticas. Animada pelos telegramas de apoio recebidos de todo o país, a Conferência convoca uma nova reunião para o dia 9 de outubro.

Pouco depois, em 3 de outubro, "uma reunião dos deputados operários dos setores das gráficas, mecânica, marcenaria, fumo e outros, adotou a decisão de formar um conselho geral (soviete) de todos os trabalhadores de Moscou" [20].

A greve dos ferroviários que se iniciou espontaneamente em algumas linhas se generaliza a partir do dia 7 de outubro. Nesse marco, a reunião convocada para o dia 9 se transforma em "congresso de delegados de São Petersburgo do pessoal ferroviário, formularam-se as palavras de ordem da greve ferroviária e imediatamente foram despachados por telégrafo a todas as linhas. Essas palavras de ordem eram: jornada de oito horas, liberdades civis, anistia, assembléia constituinte"[21]

 As reuniões massivas na universidade tinham produzido um intenso debate sobre a situação, as experiências vividas, as alternativas para o futuro, mas em outubro a situação se modifica: esses debates, sem desaparecer, amadurecem na luta aberta e esta, por sua vez, começa a dotar-se de uma organização geral que não somente dirige a luta como também integra e multiplica o debate massivo. A necessidade de se agrupar e se reunir, de unificar os diferentes focos grevistas tinha sido colocado de maneira especialmente aguda pelos operários de Moscou. Adotar um programa de reivindicações econômicas e políticas, de acordo com a situação histórica e com as possibilidades reais da classe operária, tinha sido o aporte do congresso ferroviário. Debate, organização unificada, programa de luta, esses foram os três pilares sobre os quais vão se levantar os sovietes. É, portanto, a convergência das iniciativas e propostas dos diferentes setores da classe operária o que lhe dá origem e de maneira alguma o "plano" de uma minoria. Nos sovietes se personifica o que 60 anos antes, no Manifesto Comunista, parecia uma elaboração utópica: "Todos os movimentos tem sido até agora realizado por minorias ou em proveito de minorias. O movimento proletário é um movimento independente da imensa maioria em proveito da imensa maioria".

Os sovietes, órgãos de luta revolucionária

  • "A primeira reunião do que seria o soviete celebrou-se ao cair da noite do dia 13 no Na Instituto Tecnológico.. Não a assistiram mais de trinta a quarenta delegados. Decidiu-se convocar imediatamente o proletariado da capital com a finalidade de proclamar uma greve geral política e de eleger deputados [22].[23]

Este Soviete fazia o seguinte chamamento: "A classe trabalhadora teve de recorrer à última e poderosa arma do movimento operário mundial: a greve geral. [...] Dentro dos próximos dias ocorrerão na Rússia acontecimentos decisivos. Esses acontecimentos determinarão por muitos anos o destino da classe operária; diante desses acontecimentos devemos encontrar-nos em plena disponibilidade, unidos por nosso soviete comum [...]" [24].

Essa passagem manifesta a visão global, a ampla perspectiva, que tem o órgão recém nascido da luta. De forma simples expressa uma visão claramente política e, em coerência com o ser profundo da classe operária, se vincula com o movimento operário mundial. Esta consciência é por sua vez expressão e fator ativo da extensão da greve para todos setores e para todo o país, praticamente generalizada desde 12 de outubro. A greve paralisa a economia e a vida social, porém o Soviete cuida para que isso não conduza a uma paralisia da própria luta operária como assinala Trotsky: "quando eram necessários boletins da revolução abria-se uma gráfica; utilizava-se o telégrafo para enviar instruções sobre a greve. Era permitida a passagem de trens que transportavam delegados grevistas." [25]. A greve "demonstrou, onde foi possível fazê-lo, que não se tratava simplesmente de interrupção temporária de trabalho, de um protesto passivo de braços cruzados. A greve se defendeu e, na sua defesa, passou à ofensiva. Em algumas cidades do Sul ergueram-se barricadas, tomaram-se lojas de armas e se ofereceu uma resistência, senão vitoriosa, ao menos heróica." [26]

O Soviete é o teatro ativo de um debate em torno de 3 eixos:

  • Qual é a relação com os camponeses? Como e em que condições podem ser incorporados à luta como aliados imprescindíveis?
  • Qual é o papel do exército? Irão desertar os soldados do seu papel como engrenagens da repressão do regime?
  • Como se armar para assumir o enfrentamento decisivo com o Estado czarista que se faz cada vez mais inevitável?

Nas condições de 1905 estão questões que podiam ser somente colocadas mas não podiam ser resolvidas. Será a revolução de 1917 a que vai dar a resposta. Porém a capacidade desenvolvida em 1917 é impensável sem os grandes combates de 1905.

Geralmente, imagina-se que perguntas como aquelas colocadas acima só podem ser o monopólio de pequenas mesas de "estrategistas da revolução". No entanto, no marco dos Sovietes são objeto de um debate massivo com a participação e contribuições de milhares de operários. Estes pedantes que consideram os operários incapazes de se ocupar de tais assuntos encontrariam provas de como eles falam desses temas com a maior naturalidade, transformam-se em especialistas apaixonados e comprometidos que derramam, no cadinho de organização coletiva, suas intuições, sentimentos, conhecimentos, construídos durante longos anos. Como o evocava Rosa Luxemburgo em sentido figurado: "Nas condições da greve de massas, o honrado pai de família se transforma em revolucionário romântico".

Se no dia 13 havia apenas 40 delegados na reunião do Soviete, nos dias seguintes o número de assistentes se multiplicou. O primeiro ato de toda fábrica que se declara em greve é eleger um delegado ao qual se dota de uma credencial conscientemente adotada pela assembléia. Há setores que vacilam, os trabalhadores têxteis de São Petersburgo, ao contrário dos seus colegas moscovitas, somente se unem a luta no dia 16. no dia 15, o Soviete... "O soviete tinha elaborado todos os tipos de métodos, desde as reivindicações verbais até a coerção violenta, para introduzir na greve os não-grevistas. Mas não foi necessário recorrer a métodos extremos. Quando uma solicitação verbal não tinha efeito, era suficiente que aparecesse em cena um grupo de grevistas - às vezes só uns poucos homens - e o trabalho era interrompido imediatamente" [27].

As reuniões do soviete eram uma antítese do que é um parlamento burguês ou uma reunião acadêmica universitária. "Não houve gestos de grandiloquência, essa úlcera das instituições representativas. As questões a debater - a expansão da greve e as exigências que se apresentariam à Duma - eram de natureza puramente prática e se discutiram brevemente, com energia e como se fossem questões comerciais. A gente sentia que cada átomo de tempo tinha razão de ser. A mínima tendência para a retórica era firmemente refreada pelo presidente, com a severa aprovação dos assistentes." [28].

Este debate vivo e prático, profundo e concreto, de uma só vez, expresava uma transformação da consciência e psicologia social dos operários porém, ao mesmo tempo, constituía um poderoso fator no desenvolvimento daquelas. Consciência como compreensão coletiva da situação social e de suas perspectivas, da força concreta das massas em ação e dos objetivos que deviam adotar, como percepção de quem são os amigos e quem são os inimigos, como esboço de uma visão do mundo e de seu futuro. Mas, ao mesmo tempo, psicologia social como fator distinto, embora concomitante com o anterior, que se expressa na atitude moral e vital dos operários que manifestam uma solidariedade contagiosa, uma empatia para com os demais, uma capacidade de abertura e aprendizagem, uma entrega desinteressada à causa comum.

Esta transformação espiritual parece utópica e impossível aos que unicamente vêem os operários sob a ótica da normalidade cotidiana onde aparecem como robôs atomizados, sem iniciativa nem sentimento coletivo, deslocados pelo peso da concorrência e da rivalidade, porém a experiência da luta massiva e no seio da formação dos conselhos operários mostra como isso constitui o motor de tal transformação, como disse Trotsky: "o socialismo não se propõe a tarefa de desenvolver uma psicologia socialista como condição prévia do socialismo, mas criar condições de vida socialistas como condição prévia de uma psicologia socialista" [29].

As Assembleias Gerais e os Conselhos eleitos por elas e responsáveis diante delas se transformaram no cérebro e no coração da luta por sua vez. Cérebro porque milhares e milhares de seres humanos pensam em voz alta e decidem após um silêncio de reflexão. Coração porque esses seres deixam de se ver como gotas perdidas em um oceano de pessoas desconhecidas e potencialmente hostis para se converter em parte ativa de uma vasta comunidade que integra a todos e a todos faz sentir fortes e respaldados.

Partindo desse sólido cimento, o Soviete situa o proletariado como um poder alternativo frente ao Estado burguês. Converte-se em uma autoridade socialmente cada vez mais reconhecida. "Na mesma medida em que se estendia a greve de outubro, o soviete se colocava cada vez mais na frente política. Sua importância crescia, literalmente, de hora em hora. O proletariado industrial foi o primeiro a unir-se à sua volta. [...] A União dos Sindicatos, que aderiu à greve desde 14 de outubro, viu-se obrigada a colocar-se sob a autoridade do soviete quase desde o início. Numerosos comitês de greves [...] adaptaram suas ações às decisões do soviete". [30]

Muitos autores anarquistas e conselhistas tem apresentado os Sovietes como os portadores de uma ideologia federalista consistente na autonomia local e corporativa que se oporia ao centralismo supostamente "autoritário e castrador" próprio do marxismo. Uma reflexão de Trotsky responde a estas objeções: "O papel de São Petersburgo na revolução russa não pode ser comparado de forma nenhuma ao de Paris na Revolução Francesa. A natureza econômica primitiva da França (e, em particular, dos meios de comunicação) e a centralização administrativa permitiram que Revolução Francesa se localizasse - na realidade - dentro dos limites de Paris. A situação era totalmente diferente na Rússia. O desenvolvimento capitalista criou na Rússia tantos centro independentes de revolução quantos centros industriais haviam; estes, sem perder a independência e a espontaneidade de seus movimentos, estavam estreitamente ligados entre si". [31]

Aqui vemos de maneira prática o significado da centralização proletária que está situada na antítese do centralismo burocrático e castrador próprio do Estado e, em geral, das classes exploradoras que existiram na história. A centralização proletária não parte da negação da iniciativa e da espontaneidade criadora de seus diferentes componentes mas, ao contrário, contribui com todas as suas forças para o seu desenvolvimento. Como acrescenta Trotsky: "As estradas de ferro e o telégrafo descentralizavam a revolução apesar do caráter centralizado do Estado, mas, ao mesmo tempo, levaram a unidade a todas as suas manifestações dispersas. Se como resultado de tudo isso reconhecemos que São Petersburgo deu as palavras de ordem na revolução, isto não significa que a revolução estivesse concentrada na Perspectiva Nevsky ou em frente do Palácio de Inverno, mas só que as palavras de ordem e métodos de luta de São Petersburgo encontraram um poderoso eco revolucionário em todo o país." [32].

O Soviete era a coluna vertebral dessa centralização massiva: "devemos reconhecer o Conselho (Soviete) dos Deputados Operários como a pedra angular de todos esse acontecimentos. - prossegue Trotsky - Não só porque foi a maior organização de trabalhadores que se viu na Rússia até esse momento; não só porque o Soviete de São Petersburgo serviu como modelo para Moscou, Odessa e outras cidades; mas, acima de tudo, porque essa organização proletária de base exclusivamente classista foi a organização da revolução como tal. O soviete foi o eixo de todos os acontecimentos, todas as linhas se dirigiam na sua direção, todo apelo para a ação emanava dele." [33]

O papel dos Sovietes ao final do movimento

Até o fim de outubro de 1905, via-se claramente que o movimento tinha chegado a uma encruzilhada: ou a insurreição ou o esmagamento.

Não é o objetivo desse artigo analisar os fatores que conduziram ao segundo dilema [34], é certo que o movimento acabou em uma derrota e que o regime czarista - dono novamente da situação - empreendeu uma repressão sem misericórdia. Porém a maneira como o proletariado travou a batalha de forma feroz e heróica mas plenamente consciente, foi exitosa em preparar o futuro. A dolorosa derrota de dezembro de 1905 preparou o futuro revolucionário de 1917.

Nesse desenlace, teve um papel decisivo o Soviete de São Petersburgo que fez todo o possível para preparar em melhores condições o enfrentamento inevitável. Formou patrulhas operárias de caráter inicialmente defensivo - contra as expedições punitivas das Centúrias Negras organizadas pelo Czar mobilizando o lixo da sociedade -, constituiu depósito de armas e organizou milícias, às quais deu treinamento.

Mas, ao mesmo tempo, e tirando lições das insurreições operárias do século XIX [35], o Soviete de São Petersburgo colocou que a questão chave estava na atitude da tropa, pela qual o grosso dos seus esforços se concentrou em ganhar os soldados para sua causa

Assim, os chamamentos e panfletos dirigidos ao exército, os convites à tropa para que assistissem às sessões do Soviete, não caiam no vazio. Respondiam a certo grau de amadurecimento do descontentamento dos soldados que desembocou no motim do encouraçado Potemkin - imortalizado pelo famoso filme - ou na sublevação da guarnição de Kronstadt em outubro.

Em novembro de 1905, o Soviete convocou uma greve massivamente acompanhada cujos objetivos eram diretamente políticos: a retirada da lei marcial na Polônia e a abolição do Tribunal Militar especial encarregado de julgar os marinheiros e soldados de Kronstadt. Esta greve que incorporou setores operários que até então nunca haviam lutado provocou uma induvidável simpatia entre os soldados. No entanto, simultaneamente, mostrou o esgotamento das forças operárias e a atitude majoritariamente passiva de soldados e camponeses, especialmente nas províncias, o que acarretou no fracasso da greve.

Outra contribuição do Soviete à preparação do enfrentamento foram duas medidas aparentemente paradoxais que tomou em outubro e novembro.

Quando perceberam que a greve de outubro entrara em descenso, o Soviete propôs às assembleias operárias que todos os operários retornassem ao trabalho na mesma hora. Esse fato constituiu uma impressionante demonstração de força que colocava em evidência a determinação e a disciplina consciente dos operários. A operação voltou a se repetir diante do declínio da greve de novembro. Era uma maneira de preservar as energias para o enfrentamento geral demonstrando ao inimigo a firmeza e unidade inquebrantável dos combatentes.

A burguesia liberal russa ao perceber a ameaça proletária cerrou fileiras com o regime czarista com o que este se sentiu fortalecido e empreendeu uma perseguição sistemática aos sovietes. Logo se pode comprovar que o movimento operário nas províncias estava em refluxo. Ainda assim o proletariado de Moscou lançou a insurreição que durou 14 dias de violentos combates.

O esmagamento da insurreição de Moscou constituiu o último ato de 300 dias de liberdade, fraternidade, organização, comunidade, protagonizados pelos "simples operários" como gostavam de lhes chamar os intelectuais liberais. Durante os dois meses esses "simples operários" levantaram um edifício simples, de funcionamento ágil e rápido, que alcançou em pouco tempo um poder imenso, os Sovietes. Mas com o final da revolução, pareciam ter desaparecido sem deixar rastro, pareciam sepultados para sempre... À exceção das minorias revolucionárias e grupos de operários avançados ninguém falava qualquer coisa sobre isto. No entanto, em 1917 reapareceram na cena social de maneira universal e com força irressistível. Veremos tudo isso no próximo artigo.

C. Mir 05/11/09


[1] Apesar de Marx reconhecer na Comuna "a forma enfim encontrada da ditadura do proletariado" e que apresenta notáveis elementos anunciadores do que logo serão os Sovietes, a comuna parisiense se vincula mais com as formas organizativas de democracia radical próprias de massas urbanas durante a revolução francesa: "A iniciativa para a proclamação da Comuna partiu do Comitê Central da Guarda Nacional, que ocupava o primeiro posto no sistema de conselhos de delegados militares e que havia se formado nas distintas unidades. O órgão de base, clube dos batalhões, elegia um conselho da legião, que enviava 3 representantes ao comitê central de 60 membros. Além do mais estava prevista uma assembleia geral dos representantes das companhias, que se reuniam uma vez ao mês" (do livro Los Soviets en Rusia, Oskar Anweiler, p. 19 ed. espanhola Editorial Zero. 1975)

[2] A edição em português da Global Editora difere da edição espanhola, pois esta última inclui dois livros: o livro 1905 e o livro Balance y Perspectivas. Enquanto a edição em português tem apenas o livro 1905, que foi lançado aqui com o título de A Revolução de 1905. Desta edição foram retiradas as citações deste artigo e traduzimos diretamente do espanhol as que se referem ao livro Balance y Perspectivas. Em algumas citações da edição em português, que consideramos alterar o sentido do texto, fizemos adaptações para melhor passar o que o autor queria passar com base nas edições espanhola e francesa.

[3] Trotsky, 1905 Balance e Perspectivas, p. 211, t. II Ed.espanhola Editorial Ruedo Ibérico - tradução nossa

[4] Idem.

[5] Rosa Luxemburgo: Greve de massas, partido e sindicatos. Ed. Kairós; p. 23

[6] Rosa Luxemburgo: Greve de massas, partido e sindicatos. Ed. Kairós; p. 24.

[7] Rosa Luxemburgo: Greve de massas, partido e sindicatos. Ed. Kairós; p. 65.

[8] Não podemos desenvolver uma crônica do que se passou. Ver "I - Hace 100 años, la revolución de 1905 en Rusia".

[9] O livro Greve de massas, partido e sindicatos, de Rosa Luxemburgo, descreve e analisa de forma muito clara a dinâmica do movimento, com seus altos e baixos, momentos de pico e bruscos refluxos.

[10] Dentro da situação mundial de apogeu e começo do declínio capitalista, a situação russa se encontrava aprisionada pela contradição entre o freio que o czarismo feudal representava ao desenvolvimento capitalista e a necessidade da burguesia liberal de se apoiar nele, não só como aparato burocrático de seu desenvolvimento, mas como baluarte repressivo contra a emergência impetuosa do proletariado. Ver o livro de Trotsky anteriormente citado.

[11] Volin, militante anarquista que sempre foi fiel ao proletariado e denunciou a Segunda Guerra Mundial através de uma postura internacionalista.

[12] "uma tarde, em minha casa, onde Nossar falava [Nossar foi o primeiro presidente do Soviete de São Petersburgo em outubro de 1905] e, como sempre, muitos operários, apareceu entre nós a idéia de criar um organismo operário permanente, espécie de comitê, ou melhor, de conselho que acompanhasse o desenvolvimento dos acontecimentos, serviria de vínculo entre todos os operários, lhes informaria a situação e, se fosse o caso, poderia reunir em torno dele as forças operárias revolucionárias" (La Revolución desconocida - Libro primero, p. 63. Ed. Espanhola).

[13] Surgiu em 13 de maio de 1905 nessa cidade industrial de Ivanovo-Vosnesensk, no centro da Rússia. Para maiores detalhes ler o artigo da Revista Internacional nº 122 sobre 1905 (2ª parte).

[14] Oskar Anweiler, Los soviets en Rusia.

[15] General czarista famoso pela sua brutal repressão das lutas operárias.

[16] Trotsky, A Revolução de 1905. Ed. Global; p. 97.

[17] Idem, p. 98.

[18] Idem, p. 98.

[19] Andrés Nin, Los Soviets en Rusia, p. 17. Tradução nossa

[20] Trotsky, op. cit., p. 101.

[21] Idem, p. 102.

[22] O sentido da palavra deputados aqui não é o mesmo dos deputados que o parlamento burguês elege a cada 2, 4, 6 ou 8 anos, período que depende de país para país. O sentido da palavra deputado no presente texto refere-se ao deputado ou delegado operário eleito por uma base de operários. Estes deputados ou delegados operários eram responsáveis perante a base que o elegeu e podiam ser destituídos a qualquer momento por ela.

[23] Idem, p. 118.

[24] Citado por Trotsky, p. 118.

[25] Idem, p. 103.

[26] Idem, p. 108

[27] Idem, p. 120.

[28] Idem, p. 121.

[29] Trotsky, 1905 Balance e Perspectivas,, p. 207, t. II. Edição espanhola - tradução nossa

[30] Idem, p. 123.

[31] Idem, p. 116. Há uma modificação feita por nós para ficar mais fiel aotexto original. A última frase da citação da edição em português era: "estes, embora independentes, estavam intimamente ligados entre si". Comparando com as traduções espanhola e francesa, adaptamos para: "estes, sem perder a independência e a espontaneidade de seus movimentos, estavam estreitamente ligados entre si".

[32] Idem, p. 116. Há uma modificação feita por nós. Na edição em português usa-se "fora do Palácio de Inverno". Comparando com as traduções espanhola e francesa, adaptamos para: "em frente do Palácio de Inverno".

[33] Idem, p. 117.

[34] Consultar especificamente o artigo da Revista Internacional nº123 sobre "1905 e o papel dos Sovietes (3ª parte)".

[35] Sobretudo os combates de barricadas cujo esgotamento soube ver Engels na famosa "Introdução" a A Luta de classes na França de Marx. Esta "Introdução", escrita em 1895, se tornou famosa porque a crítica que Engels fazia aos combates de barricada foi utilizada pelos oportunistas na Social-Democracia para aprovar o rechaço da violência e o emprego exclusivo de métodos parlamentaristas e sindicalistas.