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A crítica formulada pelo companheiro E. está apoiada essencialmente sobre duas idéias .: a primeira consiste no rechaço da afirmação de que "o Estado é uma instituição conservadora por excelência"; a segunda, na reafirmação da identidade Estado e ditadura do proletariado durante o período de transição, posto que o Estado é sempre Estado da classe dominante. Vejamos, assim, de mais perto o conteúdo desses argumentos.
E. escreve: "...se afirma (na resolução de RI) que o Estado é uma instituição conservadora por excelência. Isto beira o anti-historicismo do anarquismo e sua oposição de princípio ao Estado. Os anarquistas tiram sua conclusão da necessidade de libertar-se de sua Senhoria "a Autoridade". Revolution Internationale claro que não chega a esse ponto, porém, exatamente como os anarquistas, julga o Estado conservador e reacionário em qualquer época social, em qualquer área geográfica, qualquer que seja a direção para a qual se orienta, e, portanto, qualquer que seja a dominação de classe, de que é expressão, independentemente do período histórico durante o qual essa dominação se exerce".
Antes de ver porque o Estado é efetivamente "uma instituição conservadora por excelência" responderemos ao argumento polêmico que consiste em identificar nossa posição com a dos anarquistas.
Nossa concepção sofreria de um "anti-historicismo anarquista" porque destaca uma característica da instituição estatal (seu caráter conservador) independentemente da "área geográfica", "da dominação de classe da qual é a expressão", e "do período histórico durante o qual esta dominação é exercida". Porém, em que destacar as características gerais de uma instituição ou de um fenômeno através da história, independente das formas específicas que esta possa conhecer segundo o período, seria típica de um "anti-historicismo"? Então, o que é saber utilizar a história para compreender a realidade se não é antes de mais nada saber destacar as leis gerais que se verificam através de diferentes períodos e condições específicas? O marxismo é, por acaso, "anti-histórico" quando diz que desde qua a sociedade está dividida em classes "a luta de classes é o motor da história", qualquer que seja o período histórico e quaisquer que sejam as classes?
Pode-se ressaltar a necessidade de distinguir em cada Estado da história (Estado Feudal, Estado burguês, Estado do período de transição, etc.) o que é particular, específico. No entanto, como é possível compreender essas particularidades se não se sabe em relação a quais generalidades elas se definem? O fato de destacar as características gerais de um fenômeno no curso da história, através de todas as formas particulares - por diferentes que sejam - que tenha tomado segundo os períodos, é não só o próprio fundamento de uma análise histórica como também a condição principal para poder compreender em que consiste as especificidades de cada expressão particular do fenômeno.
A partir de um ponto de vista marxista, pode-se ter a tentação de colocar em causa a veracidade da lei geral que destacamos sobre a natureza conservadora do Estado, porém de nenhum modo atacar o fato em si de querer reconhecer a característica histórica geral de uma instituição. Do contrário se nega a possibilidade de toda análise histórica.
Depois nos diz que nossa posição se assemelha à do anarquismo pelo fato de constituir uma "oposição de princípio ao Estado". Recordemos em que consiste esta oposição de princípio dos anarquistas ao Estado: rechaçando a análise da história em termos de classe e do determinismo econômico, os anarquistas não compreenderam nunca o Estado como produto das necessidades de uma sociedade dividida em classes, mas como um mal em si que, igual à religião e ao autoritarismo, está na base de todos os males da sociedade ("Estou contra o Estado porque o estado é maldito", dizia Louise Michel). Pelas mesmas razões, consideram que, entre o capitalismo e o comunismo, não há nenhuma necessidade do período de transição e, menos ainda, de Estado: o Estado poderá e deverá ser "abolido", "proibido" por decreto no dia seguinte à insurreição geral.
O que há de comum entre esta visão e a que afirma que o Estado, produto da divisão da sociedade em classes, tem uma essência conservadora visto que tem como função de frear e manter o conflito entre as classes dentro da ordem e da estabilidade social? Se sublinhamos o caráter conservador dessa instituição não é para preconizar uma indiferença "apolítica" do proletariado com relação a ele ou para propagar ilusões sobre a possibilidade de fazer desaparecer a instituição estatal com um decreto de proibição embora a divisão de classes subsista, mas para ressaltar porque o proletariado, longe de se submeter incondicionalmente à autoridade desse Estado durante o período de transição - como o preconiza a idéia que no Estado se veja a encarnação da ditadura do proletariado -, deve, ao contrário, submeter esse aparato, em uma relação de força permanente, à sua própria ditadura de classe. O que há de comum entre essa visão e a dos anarquistas que rechaçam em bloco o Estado, período de transição e, sobretudo, a necessidade da ditadura do proletariado?
Assimilar essa análise à visão anarquista é falar por falar com argumentos de polêmica irrelevantes.
Entretanto, chegamos ao problema de fundo: Por que o Estado é uma instituição conservadora por excelência?
A palavra conservador significa por definição o que - ou aquele que - se opõe a toda inovação, o que - ou aquele que - é resistente a toda mudança ou transtorno do estado de coisas existente. Pois bem, o Estado, qualquer que seja, é uma instituição cuja função essencial não é mais do que a manutenção da ordem, a manutenção da ordem existente. Ele é o resultado da necessidade em toda sociedade dividida em classes de se dotar de um órgão capaz de manter pela força uma ordem que não é capaz de existir de maneira espontânea, harmoniosa, pelo fato da sua própria divisão em grupos sociais, com interesses econômicos antagônicos. Por isso, constitui a força à qual tem de opor-se toda ação que tende a transtornar a ordem social e, portanto, toda ação revolucionária.
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"Portanto, o Estado não é de nenhum modo um poder imposto a partir de fora à sociedade"; tampouco é "a realidade da idéia moral", nem "a imagem e a realidade da razão", como afirma Hegel. É bem mais um produto da sociedade quando chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se envolveu em uma irremediável contradição consigo mesma e está dividida por antagonismos irreconciliáveis, que é impotente para conjurar. Mas para que esses antagonistas, as classes com interesses econômicos em disputa, não devorem a si mesmas e não consuma a sociedade em uma luta estéril, faz-se necessário um poder situado aparentemente por cima da sociedade e chamado a amortecer o choque, a mantê-la nos limites da "ordem". E esse poder, nascido da sociedade, mas que se põe por cima dela e se divorcia dela cada vez mais, é "O Estado" ". (Engels, O origem da família - Cap. XII : Barbárie e civilização. Tradução nossa; O sublinhado é nosso)
Na famosa formulação de Engels em A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, explicando a necessidade à qual corresponde o Estado e a função decorrente, encontra-se claramente afirmado este aspecto essencial do papel dessa instituição: amortecer o choque entre classes, mantendo nos limites da ordem. E, algumas páginas mais adiante: "o Estado nasceu da necessidade de frear os antagonismos de classe".
Quando se sabe que a força que cria os transtornos revolucionários não é outra senão a luta de classes, quer dizer, esse "conflito", essa "oposição" que o Estado tem como função "amortecer", é fácil compreender porque o Estado é uma instituição essencialmente conservadora.
Nas sociedades de exploração onde o Estado é abertamente o guardião dos interesses da classe economicamente dominante, o papel conservador do Estado frente a todo movimento que tende ameaçar a ordem econômica existente, da qual o Estado é sempre, junto com a classe dominante, beneficiário, fica muito evidente. No entanto, esta característica conservadora não está menos presente no Estado do período de transição ao comunismo.
A cada passo dado pela revolução comunista (destruição do poder político da burguesia em um ou vários países, logo no mundo inteiro, coletivização de novos setores da produção, desenvolvimento da coletivização da distribuição nos centros industriais e logo em regiões agrícolas avançadas, em seguida nas atrasadas etc.), a cada uma dessas etapas e enquanto o desenvolvimento das forças produtivas não haja alcançado um grau de desenvolvimento suficiente capaz de permitir que cada ser humano possa participar realmente em uma produção coletivizada em escala mundial e receber da sociedade "segundo suas necessidades", até que a humanidade não tenha alcançado esse estágio de riqueza que poderá permitir desfazer-se por fim de todos os sistemas de racionamento da distribuição dos produtos e unificar-se em uma comunidade humana sem divisões, a cada passo a sociedade deverá dotar-se de regras de vida, de leis sociais estáveis e uniformes que lhe permitam viver de acordo com as condições de produção existentes, sem ver-se por isso desgarrada por conflitos internos entre as classes que subsistem, enquanto se espera o passo seguinte para frente.
Pelo fato de que se trata de leis que expressam ainda um estado de penúria, isto é, um estado no qual o bem estar de uns tende a fazer-se em detrimento dos demais, trata-se de leis que - mesmo instaurando "a igualdade na penúria" - exigem, para ser aplicadas, um aparato de coerção e de administração que as impunha e que faça ser respeitadas pelo conjunto da sociedade. Este aparato é o Estado.
Se durante o período de transição, fosse decidido, por exemplo, distribuir gratuitamente os bens de consumo no que seriam os centros de distribuição, enquanto a penúria continua ainda atormentando a sociedade, haveria quem sabe alguns milhares de pessoas que poderiam, no primeiro dia, servir-se segundo as suas necessidades - os primeiros que chegarem aos centros - mas, pelo menos, outras tantas pessoas estariam sujeitas a passar fome. No período de escassez, distribuir, embora seja de maneira igualitária, impõe a instauração de regras de racionamento e, com elas, o "funcionário": O estado de "vigilantes e de contadores" de que falava Lênin.
A função deste Estado não é uma função revolucionária embora a ordem política existente seja a da ditadura do proletariado. Sua função intrínseca é, no melhor dos casos, a de estabilizar, regularizar, institucionalizar as relações sociais existentes. A mentalidade do burocrata do período de transição (pois não há Estado sem burocratas) não se caracteriza pela sua audácia revolucionária, longe disso. Sua mentalidade tende inevitavelmente a ser a de todos os funcionários: a manutenção da ordem, a estabilidade das leis que se encarrega de fazer aplicar... e, na medida do possível, a defesa dos seus interesses de privilegiado. Quanto mais dura a penúria que faz indispensável a existência desse Estado, , mais aumenta a força conservadora desse aparato e, com isso, a tendência para um ressurgimento de todas as características da velha sociedade.
Em A Ideologia Alemã, Marx escrevia: "esse desenvolvimento das forças produtivas (...) é um pressuposto prático absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos gêneros necessários recomeçariam e toda velha imundície acabaria por restabelecer" (A Ideologia Alemã - Primeira Parte - Artigos, rascunhos, textos prontos para impressão e anotações referentes aos capítulos "I. Feuerbach" e "II. São Bruno" Ed. Boitempo.1ª Edição. Pag.38 nota C)
A revolução russa onde o poder do proletariado ficou isolado, condenado à pior penúria, foi a trágica demonstração através da prática, desta visão. Porém ao mesmo tempo mostrou que a " velha imundície" ressuscitava primeiro e antes de tudo no mesmo lugar onde se acreditava que se encontrava a encarnação da ditadura do proletariado: no Estado e sua burocracia.
Citemos um testemunho dos mais significativos, visto que foi um dos principais defensores da identidade entre ditadura revolucionária do proletariado e Estado do período de transição, Leon Trotsky:
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"A autoridade burocrática tem como base a escassez de artigos de consumo e a luta contra tudo que resulta dela. Quando há mercadorias suficientes em um armazem (centro de distribuição), os clientes podem vir a qualquer momento. Quando há pouca mercadoria, os compradores se vêem obrigados a fazer fila na porta. Quando a fila se torna muito extensa, a presença de um agente de polícia se impõe para manter a ordem. Esse é o ponto de partida da burocracia soviética. Ela "sabe" a quem dar e quem deve esperar..."
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"(A burocracia) surge no início como o órgão burguês da classe operária. Estabelecendo e mantendo os privilégios da minoria, naturalmente atribui a si a melhor parte: aquele que distribui os bens não prejudica nunca a si mesmo. Assim nasce da sociedade um órgão que, extrapolando muito sua função social necessária, converte-se em um fator autônomo e ao mesmo tempo na fonte de grandes perigos para todo o organismo social."
(A Revolução Traída; Tradução nossa)
Claro, o próximo movimento revolucionário não conhecerá seguramente condições materiais tão desastrosas como foram as da Rússia. Entretanto, a necessidade de um período de transição, um período de luta contra a indigência e a penúria em escala mundial não será menos inevitável que a subsistência de uma estrutura estatal. O fato de dispor de um maior potencial de forças produtivas para empreender a criação das condições materiais da sociedade comunista constitui um elemento fundamental para o definhamento do Estado e, portanto, da sua força conservadora sob a ditadura do proletariado. Mas nem por isso esta característica é eliminada. Assim, continua sendo de primordial importância que o proletariado consiga assimilar as lições da experiência russa e saiba ver no Estado deste período não a encarnação suprema da sua ditadura mas um órgão que deverá ser submetido pela sua ditadura e a respeito do qual deverá manter a sua autonomia organizativa.
Uma força de estabilização, não de mudança
Mas, diz a nós, a história mostra que o Estado tem uma função revolucionária quando a classe que o estabelece é também revolucionária:
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"... no passado e nas fases revolucionárias, era só uma classe conquistar o poder, esta estabiliza o tipo de organização estatal que melhor corresponde à defesa dos seus interesses de classe. O Estado assumia então a função revolucionária que tinha a classe - então revolucionária - que o havia instituído. Quer dizer: facilitar, com suas intervenções despóticas -depois de haver destruído pelo terror a resistência das velhas classes- o desenvolvimento das forças produtivas, varrendo os obstáculos que entorpecem seu caminho, estabilizando e impondo com o monopólio das forças armadas um marco de leis e de relações de produção que favoreçam esse desenvolvimento e respondendo aos interesses da nova classe no poder. Por exemplo, para citar só um, o Estado francês de 1793 assumiu uma função eminentemente revolucionária".
Não se trata aqui de brincar com as palavras. "Assumir uma função revolucionária" por um lado e "estabilizar um marco de leis e de relações que respondam aos interesses da nova classe no poder" pelo outro, não descreve a mesma coisa. A partir do momento em que a luta de uma classe revolucionária consegue estabelecer uma relação de força na sociedade a seu favor, é evidente que o marco jurídico, a instituição que tem como função a de estabilizar as relações de forças existentes na sociedade, traduz obrigatoriamente este novo estado de fato em leis e em intervenções do executivo para fazê-las aplicar. Toda ação política de envergadura em uma sociedade dividida em classes tem, pois, como corolário uma estrutura estatal e só pode atingir sua meta se, cedo ou tarde, consegue concretizar-se ao nível de leis e da ação do Estado. Por exemplo, foi assim que o Estado de 1793 na França legalizou medidas revolucionárias impostas de fato pelas forças revolucionárias: execução do rei, lei sobre os suspeitos e instauração do Terror contra os elementos reacionários, requisições e racionamentos, confisco e venda dos bens dos imigrantes, imposto sobre os ricos, "descristianização" e fechamento das igrejas, etc.... Da mesma forma, o Estado dos sovietes na Rússia tomou medidas revolucionárias tais como a instauração do poder dos sovietes e da destruição do poder político da velha classe, organização da guerra civil contra os exércitos brancos, etc.
Mas, pode-se dizer por isto que o Estado assumiu a função revolucionária das classes que o instauraram?
O problema que se coloca é o de saber se esses fatos demonstram que o Estado é conservador apenas na medida em que quando a classe dominante também é conservadora, e ao contrário, revolucionário quando esta última é revolucionária. Em outras palavras, o Estado não teria nenhuma tendência conservadora ou revolucionária intrínseca. Seria simplesmente a encarnação institucional da vontade da classe dominante politicamente ou, para repetir uma fórmula de Bukárin sobre o Estado e o proletariado, durante o período de transição:
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"A razão coletiva da classe operária (...) encontra sua encarnação material na organização suprema e universal, a do aparato de Estado". (Questions économiques de la Période de transition -Edts EDI, p. 110. Tradução nossa))
Vejamos, pois, esses acontecimentos mais de perto. Iniciamos por: "O Estado francês de 1793, é o mais radical por suas medidas, de todos os Estados burgueses da história" (carta de E.) (Trataremos da Revolução Russa no ponto seguinte).
O Estado de 93 é o da Convenção Nacional, instaurada nos finais de 92 depois da destruição da Monarquia pela Comuna Insurrecional de Paris e o terror imposto por esta: a Convenção sucedia o Estado da Assembléia Legislativa que havia "organizado" as guerras revolucionárias, mas cuja existência se viu ameaçada pela queda do trono e pelo poder real da Comuna Insurrecional que o Estado tentou em vão dissolver (em 1º de setembro, a Assembléia Legislativa proclamou a dissolução da Comuna, mas teve que rever sua decisão nessa mesma noite).
A Assembléia Legislativa, por sua vez, sucedia a Constituinte que, depois de ter declarado abolidos os direitos senhoriais e adotado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, havia se negado a proclamar a deposição do rei.
Antes de ver como foram tomadas as famosas medidas radicais de 93, observamos já que os acontecimentos que vão desde a conquista do poder pela burguesia em 89 ao advento da Convenção três anos depois (setembro de 92) não tem nada a ver com a descrição simplista que nos oferece o camarada E.
"No passado e nas fases revolucionárias, era só uma classe conquistar o poder, esta estabiliza (sic) o tipo de organização estatal que melhor corresponde à defesa dos seus interesses de classe". (Alterei a Carta de E. em consequëncia) OK
Na realidade, foi só a burguesia conquistar o poder político em 1789, começa um processo longo e complexo no qual a classe revolucionária longe de "estabilizar" o Estado que acabava de instaurar, vê-se obrigada a colocá-lo sistematicamente em questão para poder levar a cabo sua missão revolucionária.
Foi só o Estado ter consagrado uma nova relação de força instaurada pelas forças vivas da sociedade (por exemplo, a abolição dos direitos feudais pela Constituinte depois dos acontecimentos de julho de 89 em Paris) que logo o marco institucional, que se encontra estabilizado por esse ato, revela-se insuficiente e se transforma em freio para os novos desenvolvimentos da mudança revolucionária (negação da Constituinte em pronunciar a deposição do rei e repressão por esta dos movimentos populares nesse sentido).
Se de 89 a 93, a Revolução necessitou de três formas estatais (tendo conhecido, cada uma, diferentes governos), é precisamente porque nenhum desses Estados conseguiu "assumir a função revolucionária da classe que os instituiu". Cada novo passo adiante da Revolução toma, assim, a forma de uma luta, não só contra as classes do velho regime, como também contra o Estado "Revolucionário" e sua inércia legalista e conservadora.
Nem mesmo o ano de 1793 marcou uma "estabilização do tipo de organização estatal que melhor respondesse a defesa dos interesses da burguesia". Corresponde, ao contrário, ao apogeu da desestabilização da instituição estatal. Teve que esperar Napoleão, os seus códigos jurídicos, a sua reorganização da administração e seus "Cidadãos! A revolução é ligada aos princípios que a iniciaram, e acabou", para que verdadeiramente possa começar a se falar de estabilização [1].
E como poderia ser de outro modo? Como uma classe verdadeiramente revolucionária poderia tratar, no próprio momento do combate, o representante da "manutenção da ordem" (embora seja a sua) senão a chutes para tirá-lo das suas preocupações administrativas e suas formalidades jurídicas com que tenta, segundo a expressão de Engels, "amortizar o choque (entre classes), mantê-lo dentro dos limites da ordem"?
Acreditar que a instituição estatal pode ser "a encarnação material" da vontade revolucionária de uma classe é tão absurdo como imaginar que uma revolução posa desenvolver-se de maneira ordenada. É pedir a um órgão cuja função essencial é a de assumir a estabilidade da vida social, que encarne o espírito de subversão ao qual tem precisamente como tarefa afogar as forças vivas da sociedade; é pedir a um corpo de burocratas que tenham o espírito de uma classe revolucionária. Uma revolução é a explosão formidável das forças vivas da sociedade que tomam diretamente em suas mãos o destino do corpo social, transtornando sem respeito nem titubeios toda instituição (mesmo criada por ela) que entrave seu movimento. A potência de uma revolução se mede assim, em primeiro lugar, pela capacidade da classe revolucionária não se deixar aprisionar no pelourinho legal das suas primeiras conquistas, em saber ser tão impiedosa com as insuficiências dos seus primeiros passos como com as forças do velho regime. A superioridade política da revolução burguesa na França em relação à da burguesia inglesa residiu precisamente na sua capacidade de não se deixar paralisar pelo fetichismo do Estado e ter conseguido transtornar incessantemente e sem piedade sua própria instituição estatal até suas últimas conseqüências.
Porém, chegamos ao famoso Estado francês de 1793 e às suas medidas, considerando que constitui precisamente, por um lado, o exemplo proposto pelo camarada E. para demonstrar as supostas capacidades revolucionárias da instituição estatal e, por outro, uma das mais evidentes ilustrações da impotência desta instituição nesse terreno.
Na realidade, as grandes medidas revolucionárias do período de 1793 não foram tomadas por iniciativa do Estado, mas contra ele. Sua realização se deve à ação direta das frações mais radicais da burguesia parisiense, apoiadas e muitas vezes arrastadas pela enorme pressão do proletariado dos subúrbios da capital.
A Comuna Insurrecional de Paris, o organismo constituído durante os acontecimentos de 9-10 de agosto de 1792 pelos elementos mais radicais da burguesia que dispunham da força de burgueses armados dos subúrbios, da Guarda Nacional e dos Sectionnaires armados do subúrbio e que se apoiavam, sobretudo, no impulso das massas populares, é, portanto, expressão direta do movimento revolucionário que impôs primeiro à Assembléia Legislativa e depois à Convenção (que provocou a instauração das eleições pelo sufrágio universal indireto e 90% de abstenções por parte de eleitores aterrorizados) as medidas mais radicais da revolução. Foi ela que provocou a queda do Rei em 10 de Agosto de 1792, quem prendeu a família real no templo no dia 13, foi ela que impediu sua própria dissolução pelo Estado da Assembléia Legislativa, ela quem instaurou diretamente os tribunais revolucionários e o terror dos dias de Setembro de 1792; foi ela que, em 1793, impõe à Convenção a execução do rei, a lei sobre os suspeitos, a proscrição dos Girondinos, o fechamento das igrejas, a instauração oficial do Terror, etc. E, para colocar em evidência seu caráter de força viva distinta do Estado, impôs ainda à Convenção a prevalência de Paris como "guia da Nação e tutor da Assembléia", o direito de intervenção direta do "povo", se fosse necessário, contra "seus representantes" e, por fim, "o direito a insurreição"!
O exemplo de Cromwell na Inglaterra que dissolve pela força a Assembléia e manda colocar um cartaz na porta da entrada: "Aluga-se", traduz a mesma necessidade.
Se os acontecimentos de 92-93 demonstram algo, não é, portanto, que a instituição estatal é tão revolucionária como o é a classe que o domina, mas ao contrário que:
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1º) Quanto mais revolucionária é esta classe, mais se vê obrigada a se bater com o caráter conservador do Estado.
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2º) Quanto mais medidas radicais necessita tomar, mais se vê obrigada a recusar submeter-se à autoridade estatal para submeter, ao contrário, esta instituição à sua ditadura.
Como foi dito no início desse ponto: "assumir uma função revolucionária" e "estabilizar um marco de leis e de relações que respondem aos interesses da nova classe no poder" não quer dizer a mesma coisa. A diferença entre as duas, nas fases revolucionárias, a história resolve com uma relação de forças entre a verdadeira força revolucionária, a verdadeira classe em si e sua expressão jurídica, o Estado.
Identificar-se a um órgão estabilizador
Até agora temos tratado a natureza conservadora do Estado permanecendo sobre o terreno histórico geral. Voltando para o domínio do período de transição ao comunismo, veremos até que ponto este antagonismo entre revolução e instituição estatal, oculto ou episódico nas revoluções do passado, toma na revolução comunista um caráter muito mais profundo e irreconciliável.
O companheiro E. nos diz:
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"As dificuldades começam quando se afirma que "o Estado tem uma natureza histórica anticomunista e antiproletária" e "essencialmente conservadora" e que, portanto, sua "ditadura (a do proletariado) não pode encontrar em uma instituição conservadora por excelência sua própria expressão autêntica e total". Aqui o anarquismo (e perdoem-me a brutalidade das palavras), depois de ter sido expulso pela porta, entra pela janela".
Deixemos de lado o argumento polêmico que consiste em tratar nossa posição como anarquista: já falamos disso. E vejamos porque o proletariado não pode encontrar em uma instituição conservadora sua "expressão autêntica e total".
Vimos como durante o curso da revolução burguesa há momentos em que, pela tendência conservadora que se expressava nas primeiras formas do seu próprio Estado, a burguesia viu-se obrigada, através das suas frações mais radicais, a tomar uma distância real com respeito a esta instituição e impor sua ditadura "despótica" não só sobre as outras classes da sociedade, como também sobre o Estado que acabava de instaurar.
No entanto, esta oposição entre burguesia e Estado não podia ser mais do que momentânea. A meta das revoluções burguesas, por muito radicais e populares que fossem, não pode jamais ser outra coisa que o reforço e a estabilização de uma ordem social da qual ela é a beneficiária. Por maior que possa ser sua oposição à velha classe dominante, não desestabiliza a sociedade e a instituição estatal senão para estabelecê-la melhor mais tarde, uma vez afirmado o seu poder político em uma nova ordem estável na qual possa sem freios desenvolver sua força de classe exploradora.
Deste modo o furacão revolucionário de 1793 foi sucedido pela submissão da Comuna Insurrecional de Paris ao governo do Comitê de Saúde Pública de Robespierre, mais tarde pela execução do mesmo Robespierre pela "reação de Thermidor" para acabar com o Estado forte de Napoleão, no qual Estado e burguesia voltaram a se encontrar fraternalmente entrelaçados em um desejo absoluto de ordem e estabilidade.
Na verdade, quanto mais se consolida e se desenvolve o sistema da burguesia, mais esta última se reconhece inteiramente no seu Estado, garantia absoluta e conservador de seus privilégios. Quanto mais conservadora se torna a burguesia, mais se identifica com sua polícia e administrador.
Muito diferente acontece com o proletariado. A meta da classe operária no poder não é nem manter a sua existência como classe nem conservar o Estado, produto da divisão da sociedade em classes. Seu objetivo declarado é o desaparecimento das classes e, por conseguinte, do Estado. O período de transição ao comunismo não é um movimento para a estabilização do poder proletário, mas, pelo contrário, para o seu desaparecimento. Disso resulta não que o proletariado não deva firmar sua ditadura sobre o conjunto da sociedade, mas que utiliza esta ditadura para transtornar permanentemente o estado de coisas existente. Esse movimento de transtorno é permanente até o comunismo: toda estabilização da revolução proletária constitui para ela um retrocesso e uma ameaça de morte. A famosa sentença de Saint-just: "os que fazem uma revolução pela metade, cavam sua própria sepultura" se aplica ao proletariado pelo fato da sua natureza de classe explorada, mais que toda classe revolucionária da história.
Contrariamente à idéia de Trotsky que, incapaz de reconhecer no desenvolvimento da burocracia depois de 1917 a força da contrarrevolução, falava de um "Thermidor proletário", não há "Thermidor" para a revolução proletária. Thermidor foi para a burguesia uma necessidade que correspondia à busca de uma estabilização do seu poder. Para o proletariado, toda estabilização constitui não uma meta, um êxito, mas uma debilidade, e a médio prazo, um retrocesso da sua obra revolucionária.
O único momento no qual a estabilização das relações sociais poderia corresponder com os interesses do proletariado, seria na sociedade sem classes, o comunismo. Porém, nesse momento já não haverá nem proletários, nem ditadura do proletariado, nem Estado. É por isso que o proletariado não poderá encontrar jamais nesta instituição, cuja função é a de "amortecer o conflito entre as classes" e estabilizar o estado de coisas existentes, "sua expressão autêntica e total".
Ao contrário do que acontecia para a burguesia, o desenvolvimento da revolução proletária se mede não com o reforço da instituição estatal, mas com a dissolução desta na sociedade civil, a sociedade dos produtores.
No entanto, a atitude do proletariado no curso da sua ditadura em relação ao Estado - não identificação, organização autônoma em relação a ele e o exercício da sua ditadura sobre ele - se distingue da burguesia instalada não só porque para o proletariado a dissolução do aparato estatal é uma necessidade como também - e de outro modo esta necessidade não seria mais que um desejo irrealizável - porque é uma possibilidade.
Dividida pela propriedade privada e pela concorrência, sobre as quais se funda sua dominação econômica, a burguesia não pode engendrar por muito tempo corpos organizados que encarnem seus interesses de classe fora do Estado. O Estado é, para a burguesia, não só o defensor da sua dominação com relação às demais classes, como também o único laço de unificação dos seus interesses. Na divisão de milhares de interesses privados e antagônicos da burguesia, só o Estado constitui uma força capaz de expressar os interesses do conjunto da classe. É por isso que, como não podia evitar em certos momentos, a ação autônoma das suas frações mais radicais contra o Estado - tanto na França como na Inglaterra -, não podia também prolongar muito tempo este estado de coisas, sem correr o risco de perder toda a unidade política e, por conseguinte, toda a força (ver o destino reservado à Comuna Insurrecional de Paris e os seus dirigentes logo após terminarem sua brilhante ação revolucionária).
O proletariado não conhece esta impotência. Como não tem interesses antagônicos no seu seio e como encontra na sua unidade autônoma a principal força da sua ação, o proletariado pode existir unificado e potente sem ter de recorrer a um árbitro armado por cima dele. Sua representação como classe se encontra em si mesmo, nos seus próprios órgãos unitários: os Conselhos Operários.
São esses conselhos os que devem e podem constituir o único e verdadeiro órgão da ditadura do proletariado. É neles e só neles que a classe operária encontra "sua expressão autentica e total"
O proletariado como classe dominante
O companheiro E. faz suas as posições de Lênin em O Estado e a Revolução, baseado, por sua vez, nos escritos e na experiência prática passada do movimento proletário. Mas o faz simplificando ao extremo esta posição, esquecendo o contexto político no qual foi definida e, evidentemente, deixando de lado a experiência mais importante da ditadura do proletariado: a Revolução Russa.
Segundo E., o maior e mais rico momento da história do combate proletário não teria alterado absolutamente em nada as formulações dos revolucionários antes de Outubro. O resultado é uma simplificação grosseira das inevitáveis insuficiências da teoria revolucionária antes de 1917, em um terreno onde a única experiência existente até então tinha sido a da Comuna de Paris.
E. escribe:
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"A essência dessa concepção (a concepção do Estado e do seu papel segundo Lênin) é muito simples: o proletariado, ao alçar-se em classe dominante, cria seu próprio órgão de Estado, diferente dos precedentes pela forma, porém que conserva essencialmente a mesma função: opressão das demais classes, violência concentrada contra elas para que triunfem seus interesses históricos enquanto classe dominante, embora estes coincidam a longo prazo com os da humanidade".
É certo que a essência da função do Estado sempre foi a manutenção da opressão das classes exploradas pela classe exploradora. No entanto, quando se trata de transpor esta idéia para a análise do período de transição ao comunismo, esta simplicidade é mais que insuficiente. E isto por duas razões principais:
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Primeiro porque a classe que exerce a ditadura não é uma classe exploradora, mas explorada.
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Segundo, porque, por isso, assim como pelas razões que já vimos, a relação entre o proletariado e Estado não pode ser a mesma que caracterizava a dominação das classes exploradoras.
Em O Estado e a Revolução, Lênin colocou em primeiro plano esta concepção simples do Estado por causa da polêmica que tinha com a social-democracia. Esta última, para justificar sua participação no governo do Estado burguês, pretendia ver no Estado (no Estado burguês em particular) somente um órgão de conciliação entre as classes: disso deduzia que ao participar e ao desenvolver a influência eleitoral dos partidos operários, poderia converter-se em ferramenta do proletariado para o advento do socialismo. Lênin recordou com força que o Estado em uma sociedade dividida em classes tinha sido sempre o Estado da classe dominante, o aparato de manutenção do poder desta última, sua força armada contra as demais classes.
O pensamento de uma classe revolucionária e, com mais razão, a de uma classe revolucionária explorada, não pode desenvolver-se jamais em um ambiente de investigação científica pacífica. Como é a arma de um combate global, só pode expressar-se em oposição violenta à ideologia dominante que trata de demonstrar permanentemente a sua falsidade. É a razão pela qual não se encontrará nunca um texto revolucionário que não tenha, de uma ou outra maneira, a forma de uma crítica ou de uma polêmica. Até mesmo as passagens mais "científicas" do Capital estão redigidas com ânimo de combate crítico contra as teorias econômicas da classe dominante. Por isso, tem que saber, quando se remete aos escritos revolucionários, situá-los permanentemente dentro do combate em que se integram. Se for viva, a polêmica conduz inevitavelmente a polarizar o pensamento sobre aspectos mais importantes da realidade, pois são os mais importantes em tal combate em particular. Porém o que é essencial em uma discussão não o é automaticamente em outra. Repetir de maneira idêntica as fórmulas e as preocupações expressas em textos que tratam de um problema particular para aplicá-las assim como estão, sem voltar a colocá-las dentro do seu contexto, a outros problemas fundamentalmente diferentes, conduz, na maioria das vezes, a cometer aberrações em que o que podia ser uma simplificação necessária em uma polêmica, se transforma, transportada para outro contexto, em um absurdo teórico. Por isso, a exegese é sempre um freio para a teoria revolucionária.
Transportar assim como estão as lições tiradas do combate contra a participação da social-democracia no Estado burguês e seu rechaço da ditadura do proletariado, aos problemas colocados pela relação entre a classe operária e o Estado do período de transição para o comunismo, é um exemplo desse tipo de erro. Erro constantemente cometido tanto por Marx e Engels como por Lênin e todos os revolucionários que forjaram sua união no fogo do combate contra a traição da socialdemocracia durante a Primeira Guerra Mundial. Se este erro era compreensível antes de outubro de 1917, hoje já não é mais.
A experiência da revolução russa pôs em evidência até que ponto a relação entre o proletariado no poder e o Estado é diferente da relação que existia entre o Estado e as classes exploradoras.
Ao exercer sua ditadura, o proletariado se afirma como classe dominante na sociedade. Porém, aqui "dominante" não tem nada a ver com o conteúdo que tinha esse termo nas sociedades do passado. O proletariado é classe dominante politicamente, porém não economicamente. Não só a classe operária não pode explorar nenhuma outra classe da sociedade, mas continua sendo até certo ponto, classe explorada.
Explorar economicamente uma classe é levar uma vantagem do seu trabalho, em detrimento da sua própria satisfação. É amputar de uma classe uma parte do fruto do seu trabalho, privando-a assim da possibilidade de gozar deste. Pois bem, depois da tomada do poder pelo proletariado, a situação econômica da sociedade conhece as duas características seguintes:
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1) Com relação às necessidades humanas (ainda consideradas na sua definição mínima: não sofrer fome nem frio, nem de doenças possíveis de cura), a penúria reina como dona absoluta de quase dois terços da humanidade.
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2) O essencial da produção mundial é realizado nas regiões industrializadas por uma fração minoritária da população: o proletariado.
Nessas condições, a marcha para o comunismo implica um esforço de produção enorme, de maneira que se permita, por um lado, a maior satisfação possível das necessidades humanas, e por outro lado (e em relação com a primeira necessidade) a integração no processo produtivo (ao seu nível de tecnicidade mais elevados) da imensa massa da população que é improdutiva, seja (nos países desenvolvidos) porque ocupava funções improdutivas sob o capitalismo, seja (e é o caso da grande maioria no terceiro mundo) porque o capitalismo não havia conseguido integrá-las na produção social. Ora, quer seja agir para aumentar a produção de bens de consumo ou para produzir meios de produção que permitam integrar as massas improdutivas (o campesinato indigente do Terceiro Mundo não será integrado à produção socializada com arados de madeira ou de aço mas com os meios industriais mais avançados... que terá de criar), este esforço, portanto, recai essencialmente sobre o proletariado.
Enquanto subsistir a penúria no mundo e enquanto o proletariado continuar sendo uma fração da sociedade (isto é, enquanto sua condição não tenha se estendido a toda população do planeta), o proletariado produzirá um excedente de bens (de consumo e de produção) do qual só será beneficiado a longo prazo. A partir desse ponto de vista, portanto, o proletariado não só não é classe exploradora, como continua sendo classe explorada.
Nas sociedades passadas, o Estado tendia a identificar-se com a classe dominante e a defesa dos seus privilégios na medida em que esta classe era economicamente dominante, ou seja, se beneficiava da manutenção das relações de produção existentes. A tarefa do Estado de manutenção da ordem é, em uma sociedade de exploração, inevitavelmente a manutenção da exploração e, portanto, dos privilégios do explorador.
Entretanto, durante o período de transição ao comunismo, a manutenção das relações econômicas existentes, pode se constituir, em certos aspectos e a curto prazo, um meio para impedir um retrocesso em relação aos passos já dados pelo proletariado (e é nesse aspecto que o Estado é inevitável durante o período de transição), representa ao mesmo tempo a manutenção de uma situação econômica na qual o proletariado suporta o peso da subsistência e do desenvolvimento do conjunto da sociedade. Ao contrário do que acontecia nas sociedades nas quais a classe politicamente dominante era uma classe que se beneficiava diretamente da ordem econômica existente, no curso da ditadura do proletariado, a convergência entre Estado e classe politicamente dominante perde todo fundamento econômico. Além disso, como um órgão que expressa as necessidades de coerência da sociedade e da necessidade de impedir que os antagonismos entre as classes se desenvolvam, o Estado tende inevitavelmente a opor-se, a nível econômico, aos interesses imediatos da classe operária. A experiência russa na qual se viu o Estado exigir do proletariado um esforço de produção sempre maior em nome da necessidade de satisfazer as exigências de troca com os camponeses ou com as potências estrangeiras, pôs em evidência, através da repressão das greves operárias (desde os primeiros meses da revolução), até que ponto esse antagonismo podia ser determinante nas relações entre proletariado e Estado.
É por isso também que o proletariado no poder não pode reconhecer no Estado, como afirmava Bukhárin, "a encarnação material da sua razão coletiva", mas um instrumento da sociedade que não se submeterá ao seu poder "automaticamente" - como era o caso para as classes exploradoras logo após ter assegurado sua dominação política definitivamente - mas que terá ao contrário que submeter sem trégua ao seu controle e a sua ditadura, se não quiser vê-lo voltar-se contra ele, como na Rússia.
Uma ditadura sobre o estado
Mas, no último argumento do camarada E., é-nos dito que um Estado submetido a uma ditadura que é exterior a ele não pode ter os meios de cumprir seu papel. Esqueceríamos que, se Estado e ditadura de uma classe não são idênticos, não há ditadura real.
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" De fato, aceita-se a ditadura do proletariado, porém se esquece que o Estado e ditadura, ou poder exclusivo de uma classe, são sinônimos. (...) Não faz sentido falar de um Estado que esteja submetido a uma ditadura que vem de seu exterior e que não pode intervir de maneira despótica na realidade econômica e social para orientá-la rumo a certa direção de classe"
É verdade que não pode ter a ditadura de uma classe, qualquer que seja esta, sem que exista na sociedade uma instituição de tipo estatal: por um lado, porque a divisão da sociedade em classes implica a existência de um Estado e, por outro lado, qualquer poder de classe precisa da existência de um aparelho, que expressa, através de um conjunto de leis e meios de constrição, seu poder na sociedade: o Estado. É verdade que um Estado que não dispõe de um poder real não seria um Estado. Mas é errado que a ditadura de classe é idêntica ao Estado e que "um Estado que esteja submetido a uma ditadura que lhe é exterior não faz sentido".
A situação de dualidade de poder (o de uma classe, por um lado, e do Estado, por outro - o primeiro exercendo sobre o segundo) já se produziu - como o temos visto - na história, em particular durante as grandes revoluções burguesas. E, por todas as razões que já vimos, ela se imporá como uma necessidade durante o período da ditadura do proletariado.
O certo é que tal dualidade não pode eternizar-se sem arrastar a sociedade dentro de uma contradição inextrincável na qual consumiria a si mesma. Constitui uma contradição viva que deve inevitavelmente ser resolvida. Mas a maneira como se resolve difere fundamentalmente conforme se trata da revolução burguesa ou da revolução proletária.
No primeiro caso, esta dualidade de poder se resolve rapidamente com uma identificação do poder da classe dominante com o poder do Estado que surge do processo revolucionário, reforçao e investido do poder supremo sobre o conjunto da sociedade, inclusive sobre a classe dominante. No caso da revolução proletária, entretanto, resolve-se na dissolução do Estado e na apropriação de todos os destinos da vida social pela própria sociedade.
Esta é uma oposição fundamental que se traduz por características na relação entre classe dominante e Estado na revolução proletária, diferentes das da revolução burguesa, não só pela forma como também pelo conteúdo.
Para entender melhor essas diferenças, é necessário tratar de apresentar as linhas gerais das formas do poder do proletariado durante o período de transição que podem ser esboçadas a partir da experiência histórica do proletariado. Sem querer empenhar-se em definir os detalhes institucionais de tal período, porque uma das maiores características dos períodos revolucionário é que todas as formas institucionais tendem a apresentarem-se como formas vazias que as forças vivas da sociedade preenchem e transbordam segundo a necessidade dos seus enfrentamentos, embora seja possível destacar os seguintes eixos mais gerais:
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O órgão de poder direto do proletariado será constituído pelas organizações unitárias desta classe, os Conselhos Operários, assembléias de delegados eleitos e revogáveis pelo conjunto dos trabalhadores que produzem de maneira coletiva no setor socializado (operários da velha sociedade e trabalhadores integrados à medida que se desenvolve a revolução no setor coletivizado). Armados de maneira autônoma, são estes os instrumentos autênticos da ditadura do proletariado.
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A instituição estatal estará constituída na sua base por conselhos que existam sobre uma base não de classe, ou seja, não depende do lugar ocupado na produção (o proletariado deve impedir toda organização de classe que não seja a sua), mas geográfica: assembléias de conselhos de delegados da população, por bairros, cidades, regiões, etc. Culminando estas com um conselho central (que constitui o órgão central do Estado).
Como emanação dessas instituições, ergue-se todo o aparato de Estado com, por um lado, os que se encarregam de manter a ordem: "vigilantes" e exército durante a guerra civil e, por outro, o corpo de funcionários encarregados da administração e da gestão da produção e da distribuição.
Este aparato de guardas e de funcionários poderá ser mais ou menos importante, mais ou menos fundido com a própria população à medida que avança o processo revolucionário, porém seria ilusório ignorar a inevitabilidade da sua existência em uma sociedade que conhece ainda as classes e a penúria.
A ditadura do proletariado sobre o Estado do período de transição é a capacidade da classe operária em manter o armamento e a autonomia dos seus Conselhos em relação ao Estado e em impor a este (aos seus órgãos centrais e a seus funcionários) sua vontade.
A dualidade de poder que resulta tende a se resolver à medida que o conjunto da população seja integrada ao proletariado e seus conselhos e que a abundância se desenvolva, a função dos guardas e outros funcionários desaparecerá, "a administração dos homens irá cedendo lugar a administração das coisas" pelos próprios produtores. O poder do proletariado vai se desenvolvendo no mesmo movimento que a diminuição do poder dos funcionários do Estado e a absorção pelo proletariado do conjunto da humanidade transforma seu poder de classe em ação consciente da comunidade humana.
Contudo, para que este processo seja levado a cabo, é necessário não só que as condições materiais do seu desenvolvimento se encontrem reunidas (em particular a extensão mundial da revolução, o desenvolvimento das forças produtivas), mas também que o proletariado, força motriz essencial desse processo, saiba conservar e desenvolver a autonomia e a força do seu poder sobre o Estado.
Longe de ser um absurdo, esta ditadura dos conselhos operários, à qual está submetido o Estado e que "é exterior a ele", representa, de fato, o próprio movimento de definhamento do Estado.
A Revolução Russa não conheceu as condições materiais de tal desenvolvimento, porém pelas dificuldades enormes com as quais tropeçou, ela colocou em evidência o conteúdo das tendências intrínsecas do aparato estatal, visto que o papel desse último foi se ampliando até seus limites máximos por causa dessas mesmas dificuldades.
Justamente depois de Outubro de 1917, existiam na Rússia tanto os Conselhos Operários, protagonistas de Outubro, como os conselhos de Estado, os Soviets e seu aparato estatal em desenvolvimento. Entretanto, convencidos de que o Estado não podia ser distinto da ditadura do proletariado, os Conselhos Operários se transformaram em instituições estatais integrando-se no aparato do Estado. Com o desenvolvimento do poder da burocracia, provocado pela ausência de todas as condições materiais para o desenvolvimento da revolução, a oposição entre Estado e proletariado não demorou a aparecer à luz do dia. Acreditou-se poder resolver o antagonismo colocando no aparato do Estado, no lugar de funcionários, o maior número de operários mais determinados e mais experimentados, os membros do partido. O resultado não foi uma proletarização do Estado, mas uma burocratização dos revolucionários. Ao final da guerra civil, o desenvolvimento do antagonismo entre a classe operária e o Estado desembocou na repressão pelo Estado das greves de Petrogrado em 1920, em seguida da repressão à insurreição de Kronstadt que reivindicava, dentre outras coisas, medidas contra a burocracia e a revogação dos delegados aos Soviets.
Não se trata de deduzir aqui que se o proletariado tivesse conservado a autonomia dos seus Conselhos em relação ao Estado e soubesse impor sua ditadura ao Estado em vez de ver neste sua "encarnação material", a revolução teria triunfado definitivamente na Rússia.
Não foi a incapacidade de resolver os problemas das suas relações com o Estado o que provocou o fracasso da revolução na Rússia, mas a derrota da revolução nos outros países que a condenou ao isolamento. No entanto, sua experiência com relação a este problema crucial não foi nem inútil nem "um caso particular" sem significado para o conjunto do movimento histórico. A experiência russa foi fundamental para aclarar este problema complexo que permanecia particularmente confuso na teoria revolucionária. Não só trouxe com os Conselhos Operários e a organização soviética uma resposta prática ao problema das formas do poder proletário, como também permitiu resolver o que tinha revelado contraditório na experiência da Comuna de Paris: desde Marx e Engels até Lênin que, por um lado, afirmava que o Estado era a encarnação da ditadura do proletariado e, por outro lado, tirava, da experiência da Comuna de Paris a lição de que o proletariado tinha que tomar precauções contra os "efeitos nocivos" (Engels) desse Estado, submetendo todos seus funcionários ao controle do proletariado: redução dos seus rendimentos ao nível de um operário e revogabilidade a qualquer momento dos funcionários do Estado pelo proletariado. Se o Estado é idêntico a ditadura do proletariado, por que este teria que desconfiar de seus efeitos nocivos? Como poderia ter a ditadura de uma classe efeitos contrários aos seus próprios interesses?
De fato, a necessidade de distinguir claramente entre ditadura do proletariado e Estado, como também poder ditatorial da primeira sobre o segundo, encontra-se já em germe (se não como intuição pelo menos como necessidade teórica) nos textos dos revolucionários antes de 1917. Como, por exemplo, em O Estado e a Revolução, Lênin chega a falar de uma distinção entre algo que seria "o Estado de funcionários" e outra coisa que seria "o Estado dos operários armados": "Enquanto não se tenha chegado a fase "superior" do Comunismo, os socialistas exigem que a sociedade e o Estado exerçam o mais rigoroso controle sobre a medida do trabalho e a medida do consumo; porém este controle, tem de começar pela apropriação dos capitalistas, e deve ser exercido não pelo Estado de funcionários, mas pelo Estado de operários armados" (Tradução nossa; O sublinhado é nosso)E em outra passagem da mesma obra, na qual Lênin compara a economia do período de transição e a organização dos correios no capitalismo, afirma a necessidade de que o órgão de funcionários seja controlado pelo de operários armados: "Toda a economia nacional organizada como Correios, de maneira que os técnicos, os vigilantes, os contadores recebam, como todos os demais funcionários, um salário que não exceda os "salários dos operários", sob o controle e a direção do proletariado armado: esta é nossa meta imediata." (Tradução nossa; O sublinhado é nosso).
A Revolução Russa mostra tragicamente até que ponto o que parecia uma contradição teórica no pensamento revolucionário expressava na realidade uma contradição real entre a ditadura do proletariado e o Estado do período de transição; fez aparecer à luz do dia até que ponto "o controle e a direção do proletariado armado" sobre o Estado é uma condição sine qua non da ditadura do proletariado.
O companheiro E. acredita, sem dúvida, que se mantém fiel ao esforço teórico do proletariado tal e como se concretiza antes de Outubro de 1917 e, em particular em O Estado e a Revolução de Lênin, a quem defende de maneira intransigente. Mas é trair o espírito desse esforço defender uma posição que quase por princípio se nega a colocar em julgamento as lições teóricas à luz da experiência mais importante da ditadura do proletariado.. Para concluir, não podemos mais do que recordar o que Lênin escrevia precisamente em O Estado e a Revolução acerca do que deve ser a atitude dos revolucionários neste terreno:
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"Marx não se contentou em admirar o heroísmo dos comunards no "assalto ao céu", segundo sua expressão. No movimento revolucionário das massas, embora não tenha alcançado sua meta, Marx via uma experiência histórica de grande envergadura, um passo adiante da revolução proletária universal, um passo real muito mais importante que centenas de programas e de raciocínios. Analisar esta experiência, tirar dela lições de tática, utilizá-la para passar pelo crivo a sua teoria: essa é a tarefa que se propõe Marx." (Tradução nossa; O sublinhado é nosso).
R. V.
[1] E ainda: o Estado francês conhecerá os fortes abalos contra a Restauração que seguiu o Império de Napoleon e aqueles de 1848.