Problemas do período de transição

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O tema do período detransição exige a maior prudência. A quantidade de questões que se coloca éenorme, porém sobretudo a novidade dos problemas que se colocam ao proletariadoimpede que se elabore antecipadamente os planos da sociedade futura. Marx já senegava "dar receitas para as encruzilhadas do futuro" e RosaLuxemburgo insistia que "só temos pontos indicativos, e são essencialmentenegativos"

É claro que aexperiência histórica da classe (a Comuna de Paris em 1871, 1905, 1917-1923) eda contrarrevolução nos oferece luzes acerca desses problemas no sentido deprecisá-los, porém essas precisões consideram o quadro geral e não é a maneiradetalhada de resolver os problemas. O que podemos fazer é ver o marco geral naqual se colocam.

Caráterdos períodos de transição

A) A história do homem viu uma sucessão de sociedadesestáveis ligadas a modos de produção e, portanto, a relações sociais estáveis.Essas sociedades se baseiam em leis econômicas dominantes inerentes a elas, estavamcompostas por classes sociais fixas, e se fundavam nas superestruturasapropriadas. Conhecemos a sociedade escravista, a "asiática", afeudal e o capitalismo.

B) O que distingue os períodos de transição dessassociedades estáveis, é a decomposição das estruturas antigas e a formação denovas, ambas ligadas ao desenvolvimento das forças produtivas e que favoreceramo surgimento de novas classes, novas idéias e instituições que lhescorrespondem.

C) O período de transição não tem modo de produção próprio,é uma mescla, na qual se combinam elementos do antigo modo e do novo. É operíodo durante o qual se desenvolve lentamente os germes do novo modo deprodução em detrimento do antigo até produzir o seu desaparecimento e criar onovo modo dominante de produção.

D) Entre duas sociedades estáveis, e isso também valeráentre o capitalismo e o comunismo, é imprescindível um período de transição. Oesgotamento das condições do velho mundo não significa automaticamente que hajaamadurecido e se tenha alcançado as condições da nova sociedade. Ou seja, adeterioração da antiga sociedade não implica automaticamente a maturação danova, mas só é a condição dessa maturação.

E) Decadência e período de transição são então duasnoções distintas. Todo período de transição pressupõe a decomposição do velhomundo cujos modo e relações de produção chegaram ao limite extremo dedesenvolvimento. Porém, toda decadência não significa necessariamente que tenhaque existir um período de transição que constitui uma superação, para um modode produção mais avançado.

Por exemplo, oesgotamento do modo asiático não abriu o caminho para sua superação por outromodo de produção social. Igualmente, a Grécia antiga não tinha as condições históricaspara a superação do escravismo. Também foi o mesmo para o Egito antigo.

Diferençasentre a sociedade comunista e as demais

Para que possamosressaltar o caráter do período de transição do capitalismo para o comunismo e oque distingue este período de todos os que antecederam, temos de apoiarmos emuma idéia fundamental: um período de transição resulta do próprio caráter danova sociedade que vai surgir. Então é necessário por em evidência asdiferenças fundamentais que distinguem a sociedade comunista das demais.

A) Todas as sociedades anteriores (exceto o comunismoprimitivo) estavam divididas em classes.

  • O Comunismo é uma sociedade sem classes.

 B) Todas se baseavam na propriedade e na exploração dohomem pelo homem.

  • O comunismo não conhece a propriedade, nem individual, nem coletiva, é a comunidade humana unificada e harmoniosa.

 C) Todas as sociedades de classe se fundamentavam nainsuficiência do desenvolvimento das forças produtivas em relação às necessidadesdos homens. Por isso estão dominadas por forças naturais e sócio-econômicascegas. A humanidade está alienada à natureza e, consequentemente, às forçassociais às quais ela deu a luz.

  • O comunismo é o pleno desenvolvimento das forças produtivas em relação às necessidades do homem. É a emancipação da humanidade do império da natureza e da economia. É o domínio consciente da humanidade sobre suas condições de vida. É o mundo da liberdade, e não o da necessidade.

D) Todas as sociedades passadas arrastaram vestígiosanacrônicos dos sistemas econômicos, das relações sociais, das idéias e preconceitosdas que as antecederam. Isso se deve a que todas elas se baseavam napropriedade privada e na exploração do trabalho. Por isso uma nova sociedade declasse podia nascer e desenvolver-se no marco da antiga.

Por isso a novasociedade pode, enquanto vencedora, conter no seu interior e acomodar-se comvestígios da antiga sociedade derrotada, das antigas classes dominantes, atépode associá-las ao poder político. Assim foi como puderam subsistir nocapitalismo relações escravistas ou feudais, e que a burguesia compartilhoudurante bastante tempo seu poder com a nobreza.

  • A sociedade comunista é completamente diferente. Não aguenta no seu interior a mínima sobrevivência de relações econômico-sociais da sociedade anterior. Que lugar no comunismo pode existir para relações escravistas ou feudais? Isso é o que torna muito longo o período de transição do capitalismo para o comunismo. A humanidade necessitará várias gerações para livrar-se dos vestígios do velho mundo.

 E) Todas as sociedades anteriores não só estavamdivididas em classe, como também se fundavam necessariamente em divisõesgeográficas regionais ou políticas nacionais. Isso se deve, sobretudo, às leisdo desenvolvimento desigual que permitem que a evolução da sociedade, mesmo se orientandoglobalmente numa mesma direção, seja realizada de forma relativamente independente e separada e nos seus diversos setores e com defasagens que podemalcançar séculos. Esse desenvolvimento desigual, por sua vez, é devido aopequeno desenvolvimento das forças produtivas: há uma relação direta entre essenível de desenvolvimento e a dimensão na qual se realiza. Só é mediante asforças produtivas desenvolvidas pelo capitalismo que pela primeira vez nahistória existe uma interdependência real no mundo inteiro.

  • A sociedade comunista tem imediatamente como cenário o mundo inteiro. Para realizar-se, o comunismo exige uma mesma evolução no tempo e em todos os países. Ou é universal ou não pode ser.

 F) Ao estar baseadas na propriedade privada, na divisãoem classes e zonas geográficas, a produção das sociedades anteriores vainecessariamente para a produção de mercadorias com tudo que isso implica nonível de concorrência e da anarquia da produção e do consumo, reguladosunicamente pela lei do valor através do mercado e do dinheiro.

  • O comunismo ignora o intercâmbio e a lei do valor. Sua produção é socializada segundo o sentido real (pleno) do termo. É planificada universalmente segundo as necessidades dos membros da sociedade e para satisfazê-las. Essa produção só conhece valores de uso cuja distribuição direta exclui o intercâmbio, o mercado e o dinheiro.

 G) Por ser sociedades divididas em classe e, por tanto,em interesses antagônicos as sociedades anteriores não podiam sobreviver senãocriando um órgão especial aparentemente por cima das classes, porémdeterminando pela sua própria conservação e a dos interesses da classedominante: o ESTADO.

  • Ao ignorar essas divisões, o comunismo não necessita de Estado. Mais ainda, não pode manter um órgão de governo dos homens. No comunismo, não há lugar para nada além da administração das coisas.

 Característicasdos períodos de transição

O período de transiçãopara o comunismo está impregnado constantemente pela sociedade da qual nasce(pré-história da humanidade), e também pela sociedade da qual o período detransição é portador (a nova história da sociedade humana). Isso é o quedistingue o período de transição para o comunismo de todos os períodos detransição anteriores.

A) Os períodos de transição anteriores

Até agora, os períodosde transição tiveram em comum o de ter se desenvolvido no próprio seio daantiga sociedade. O reconhecimento e a proclamação definitiva da novasociedade, sancionados (reconhecimento e proclamação são sancionados) pelosalto da revolução, vem ao cabo do processo transitório. Isso por duas razões:

  • a) Todas as sociedades passadas tiveram os mesmos cimentos econômico-sociais, a divisão em classes e a exploração, o que implica que a revolução se limita a ser uma simples transferência de privilégios, não a supressão dos privilégios.
  • b) Todas essas sociedades sofrem cegamente os imperativos das leis baseadas na penúria de forças produtivas (o reino da necessidade). O período de transição entre ambas sofre conseqüentemente de um desenvolvimento econômico cego.

B)O período de transição para o comunismo

a) Por ser uma ruptura total com a exploração e a divisão dasociedade em classes, a transição para o comunismo exige uma ruptura radicalcom a antiga sociedade e só pode desenvolver-se fora dela .

b) O comunismo nãotem um modo de produção submetido a leis econômicas cegas opostas aoshomens, mas está baseado na organização consciente da produção permitida pelaabundância de forças produtivas que não pode oferecer a antiga sociedadecapitalista.

C) O que distingue o período de transição para o comunismo

Em conseqüência do quedissemos podemos tirar algumas conclusões:

I) O período de transição para o comunismo não pode iniciar-se senãofora do capitalismo. A maturação das condições do socialismo exige previamentea destruição da dominação política, econômica e social da burguesia sobre asociedade.

II) O período de transição só pode ser aberto em escala mundial

III) Contrariamente aos períodos de transição precedentes, asinstituições essenciais do capitalismo, Estado, polícia, exército, diplomacia,não podem ser utilizados tal como são pelo proletariado.

IV) A abertura do período de transição caracteriza-se em conseqüênciaessencialmente pela derrota política do capitalismo e o triunfo da dominaçãopolítica do proletariado. 

  • "Para converter a produção social num grande e harmonioso sistema de trabalho cooperativo, precisa-se de mudanças sociais gerais, mudanças nas condições gerais da sociedade que não podem ser realizadas senão por meio do poder organizado da sociedade - o poder do estado - arrancado das mãos dos capitalistas e proprietários imobiliários e transferido para as mãos dos próprios produtores". (Marx, "Instruções relativas às cooperativas aos delegados do Conselho geral no primeiro congresso da AIT em Genebra").
  • "A conquista do poder político se tornou o primeiro dever da classe trabalhadora" (Marx, "Pronunciamento inaugural da AIT")

Osproblemas do período de transição

A) A generalização mundial da revolução é a condiçãoprévia à abertura do período de transição. Dessa generalização depende toda aquestão das medidas econômicas e sociais; a propósito destas devemosparticularmente nos acautelar de "socializações", isoladas em umpaís, uma região, uma fábrica ou qualquer grupo de homens. Ainda depois doprimeiro triunfo do proletariado, o capitalismo mantém sua resistência através daguerra civil. Durante esse período, tudo depende da destruição da força docapitalismo. Esse primeiro objetivo condiciona a evolução do futuro.

B) Uma única classe éportadora do comunismo: o proletariado. Outras podem ser arrastadas na luta queleva o proletariado contra o capitalismo, porém como classes não podem serprotagonistas ou portadoras do comunismo. É por isso que temos de destacar uma tarefaessencial: a necessidade que tem o proletariado de não confundir-se nemdissolver-se com as demais classes. Durante o período de transição, enquantoclasse revolucionária historicamente responsável pela tarefa de criar umasociedade sem classes, o proletariado só pode assumi-la se afirmando comoclasse autônoma e politicamente dominante da sociedade. Ele só tem um programado comunismo que tenta realizar e para isso haverá de conservar em suas mãostoda a força política e toda força armada: tem o monopólio das armas.

Para levar isso acabo ele tem estruturas organizadas, os Conselhos Operários, baseados nas fábricas,e o Partido revolucionário.

A ditadura do proletariado podedessa maneira ser resumido assim:

  • O programa (o proletariado sabe aonde vai);
  • Sua organização geral como classe;
  • A força armada.

C) Quais são as relações do proletariado com as demaisclasses da sociedade?

I) Em relação à classe capitalista e aos antigos dirigentes da sociedadecapitalista (deputados, altos funcionários, exército, polícia, igreja...),supressão de qualquer direito cívico e exclusão de qualquer vida política;

II) Em relação aos camponeses e os artesãos, constituídos por produtoresindependentes e não assalariados e que são a maior parte da sociedade, oproletariado não poderá eliminá-los totalmente da vida política, como também davida econômica. Terá necessariamente que buscar um modus vivendi com essas classes, enquanto desenvolvaa seu respeito uma política de dissolução e de integração nas filasproletárias.

Embora a classetrabalhadora tenha a obrigação de tomar em conta essas classes na vidaeconômica e administrativa, não deverá dar-lhes possibilidade de umaorganização autônoma (imprensa, partido, etc.). Essas classes e camadas sociaisnumerosas terão que ser integradas em um sistema de administração soviéticoterritorial. Seus membros se integrarão na sociedade como cidadãos, não comoclasses.

III) Em relação às classes sociais que têm no capitalismo atual um lugarparticular como as profissões liberais, os técnicos, os funcionários públicos,os intelectuais (o que é chamado de "nova classe média") a atitude doproletariado será baseada sobre os critérios seguintes:

  • Essas classes não são homogêneas: na suas camadas superiores são fundamentalmente integradas numa mentalidade e função capitalistas, enquanto na suas camadas inferiores, elas têm a mesma função e os mesmos interesses de que a classe operária;
  • O proletariado deverá atuar com essas camadas no sentido de ampliar esta separação.

D) A sociedade transitória continua sendo uma sociedade dividida emclasses e, como tal, faz surgir necessariamente essa instituição própria atodas as sociedades divididas em classe: o Estado.

Com todas as amputaçõese medidas de precaução que se haverá de impor a essa instituição (funcionárioseleitos e revogáveis, salários iguais ao dos operários, unificação entre legislativoe executivo, etc.) e que reduzem esse Estado a um semi-Estado, nunca há de seperder de vista seu caráter histórico anticomunista e, portanto, antiproletário,essencialmente conservador. O Estado continua sendo o guardião do status quo.

Reconhecermos ainevitabilidade dessa instituição que o proletariado terá que utilizar como ummal necessário, tanto para acabar com a resistência da classe capitalistaderrubada, como para preservar um marco administrativo e político unido a umasociedade que continua dividida por interesses antagônicos.

Também temos querechaçar categoricamente a idéia de transformar esse estado em bandeira e motordo comunismo. Por conta do seu próprio caráter ("burguês por essência"segundo Marx), esse estado continua sendo essencialmente um órgão deconservação do status quo e um freio para o comunismo. Não pode então seridentificado com o comunismo nem a classe que o leva em si, o proletariado. Pordefinição, essa é a classe mais dinâmica da história visto que carrega odesaparecimento de todas as classes, inclusive ela mesma. Por isso, aindautilizando o Estado, o proletariado expressa sua ditadura não através dele, massobre ele. Por isso, igualmente, o proletariado não há de reconhecer o menordireito a essa instituição de intervir através da violência dentro da classetrabalhadora nem em arbitrar as discussões e a atividade dos organismos daclasse: conselhos e partido revolucionário.

Algumas medidas do período de transição

Sem ter a pretensão de fazer umplano detalhado dessas medidas, podemos já prever as linhas gerais:

  • socialização imediata das grandes concentrações capitalistas e dos centros principais para a atividade produtora;
  • planificação da produção e da distribuição, os critérios da produção já sendo a máxima satisfação das necessidades e não da acumulação;
  • a redução substancial do tempo de trabalho;
  • tentativa de ir para a supressão das remunerações salariais e do dinheiro;
  • a socialização do consumo e satisfação das necessidades (transportes, lazeres, descanso, etc.);
  • a orientação das relações entre setores coletivizados e setores de produção ainda individual (particularmente no campo) para um intercâmbio organizado e coletivo através das cooperativas, suprimindo assim o mercado e o intercâmbio individual.
Revistainternacional n° 1, 1975