A cultura do debate: uma arma da luta da classe

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A "cultura do debate" não é uma novidade, nem para o movimento operário, nem para a CCI. Entretanto, a evolução histórica obriga a nossa organização – desde a mudança de século - a voltar a essa questão e examiná-la com maior atenção. Duas evoluções principais nos obrigaram a fazê-lo: a primeira é a aparição de uma nova geração de revolucionários e, a segunda, a crise interna que atravessamos em princípios deste novo século.

A nova geração e o diálogo político

Foi, acima de tudo, o contato com uma nova geração de revolucionários o que obrigou a CCI a desenvolver e cultivar mais conscientemente sua abertura para o exterior e sua capacidade de diálogo político.

Cada geração é um elo na história da humanidade. Cada uma delas se defronta com três tarefas fundamentais: recolher a herança coletiva da precedente, enriquecer essa herança sobre a base de sua própria experiência, transmiti-la à geração seguinte para que esta vá mais longe que a anterior.

Não é nada fácil levar a cabo essas tarefas, é um difícil desafio. E isto é igualmente válido para o movimento operário. A velha geração deve entregar sua experiência. Mas também leva em si as feridas e os traumatismos de suas lutas; conheceu derrotas, decepções, teve que encarar e tomar consciência de que uma vida não é frequentemente suficiente para construir aquisições duradouras da luta coletiva [1]. Isto requer o ímpeto e a energia da geração seguinte, mas também as novas questões que são colocadas a ela e sua capacidade para ver o mundo com novos olhos.

Mas inclusive se as gerações necessitam-se mutuamente, sua capacidade para forjar a unidade necessária entre si não é algo dado automaticamente. Quanto mais a sociedade se afasta de uma economia tradicional natural, quanto mais constante e rapidamente o capitalismo "revoluciona" as forças produtivas e a toda sociedade, mais difere a experiência de uma geração e a da seguinte. O capitalismo, sistema da concorrência por excelência, também instiga as gerações a combater uma contra a outra na luta de todos contra todos.

Nesse marco, nossa organização começou a se preparar para a tarefa de forjar esse vínculo entre gerações. Mas o que deu à cultura do debate um significado especial para nós mais que essa preparação foi o encontro com a nova geração na vida real. Encontramo-nos diante de uma geração que dá a esta questão muito mais importância que a que lhe deu a geração de "1968". O primeiro indício de importância dessa mudança, ao nível da classe operária em seu conjunto, deu-nos o movimento massivo de estudantes na França contra a "precarização" do emprego na primavera de 2006.  Foi impressionante a insistência, especialmente nas assembléias gerais, em que o debate fora o mais livre e amplo possível, ao contrário do movimento estudantil do final dos anos 1960, marcado frequentemente pela incapacidade de levar adiante um diálogo político. A diferença procede acima de tudo do fato do meio estudantil estar hoje muito mais proletarizado que o de 40 anos atrás. O debate intenso, em uma escala mais ampla, sempre foi uma marca importante dos movimentos proletários de massas e foi também característico das assembléias operárias da França de 1968 ou da Itália de 1969. Mas o novo de 2006 era a mentalidade aberta da juventude em luta, para as gerações anteriores e sua avidez por aprender da experiência destas. Esta atitude é muito diferente da do movimento estudantil do final dos anos 60, especialmente na Alemanha (possivelmente a expressão mais caricata da mentalidade de então), onde um dos slogans era: "Os maiores de 30 anos aos campos de concentração!" [2] Essa ideia se concretizava na prática com as vaias mútuas, a interrupção violenta das reuniões "rivais", etc. A ruptura da continuidade entre as gerações da classe operária é uma das raízes do problema, pois as relações entre gerações são o terreno privilegiado, sempre, para forjar a atitude para o diálogo. Os militantes de 1968 consideravam a geração de seus pais ou como uma geração que se "vendeu" ao capitalismo, ou (na Alemanha ou Itália, por exemplo) como uma geração de fascistas e criminosos de guerra. Para os operários, que tinham suportado a horrível exploração da fase que seguiu a 1945 com a esperança de que seus filhos vivessem melhor que eles, era uma decepção amarga ouvir como seus filhos acusavam-nos de "parasitas" que viviam da exploração do Terceiro Mundo. Mas também é verdade que a geração dos pais daquela época tinha perdido, ou não tinha conseguido adquirir, a aptidão para o diálogo. Aquela geração foi brutalmente mortificada e traumatizada pela Segunda Guerra Mundial e a Guerra fria, pela contrarrevolução fascista, stalinista e socialdemocrata.

Ao contrário, 2006 na França anunciou algo novo e muito fecundo [3]. Porém, já há alguns anos antes, essa preocupação da nova geração vinha anunciada por minorias revolucionárias da classe operária. Essas minorias, assim que apareceram na arena da vida política, já chegaram armadas com suas próprias críticas ao sectarismo e ao rechaço do debate. Entre as primeiras exigências que essas minorias expressaram estava a necessidade de debater, não como um luxo, mas sim como requisito imperioso, a necessidade dos que participam levem a sério os outros e aprendam a escutar; a necessidade, também, de que na discussão as armas sejam os argumentos e não a força bruta, nem apelar à moral ou à autoridade dos "teóricos". A respeito do meio proletário internacionalista, aqueles camaradas criticaram, em geral e com toda a razão, a ausência de debate fraterno entre os grupos existentes, o que lhes chocou enormemente. De entrada rechaçaram o conceito de que o marxismo seria um dogma que a nova geração deveria adotar sem espírito crítico [4].

A nós, surpreendeu-nos a reação da nova geração para com a CCI. Os novos camaradas que iam às nossas reuniões públicas, os contatos do mundo inteiro que iniciaram uma correspondência conosco, os diferentes grupos e círculos políticos com os quais discutimos, disseram-nos repetidamente que tinham comprovado a natureza proletária da CCI tanto em nosso comportamento, especialmente em nosso modo de levar as discussões, como em nossas posições programáticas.

Qual é a origem dessa preocupação na nova geração? A nosso parecer, é o resultado da crise histórica do capitalismo, hoje muito mais grave e mais profunda que em 1968. Esta situação exige a crítica mais radical possível do capitalismo, a necessidade de ir à raiz mais profunda dos problemas. Um dos efeitos mais corrosivos do individualismo burguês é a maneira com que destrói a capacidade de discutir e, especialmente, de se escutar e aprender uns dos outros. O diálogo é substituído pelo "falatório", onde quem ganha é o que mais grita (como nas campanhas eleitorais burguesas). A cultura do debate é o meio principal de desenvolver, graças à linguagem humana, a consciência, arma principal do combate da única classe portadora de um futuro para a humanidade. Para o proletariado é o único meio de superar seu isolamento e sua impaciência e de encaminhar-se para a unificação de suas lutas.

Outra preocupação atual se baseia na vontade de superar o pesadelo do stalinismo. Com efeito, muitos militantes que hoje estão em busca de posições internacionalistas procedem de um meio influenciado pelo esquerdismo ou diretamente procedente de suas filas; apresentar caricaturas da ideologia e do comportamento burguês decadentes como se fossem "socialismo" é o objetivo do esquerdismo. Esses militantes tiveram uma educação política que lhes têm feito acreditar que a troca de argumentos é "liberalismo burguês" e que "um bom comunista" é alguém que "fecha o bico" e faz calar sua consciência e suas emoções. Os camaradas que estão hoje decididos a rechaçar os efeitos desse produto moribundo da contrarrevolução compreendem cada dia melhor que, para isso, não só será necessário rechaçar as posições desse produto, mas também sua mentalidade. E assim, contribuirão para restabelecer uma tradição do movimento operário que podia ter acabado por desaparecer por causa da ruptura orgânica provocada pela contrarrevolução [5].

Crises organizativas e tendências ao monolitismo

A segunda razão essencial que levou a CCI a reavaliar a questão da cultura do debate foi nossa própria crise interna, no início deste século, caracterizada pelo comportamento mais repulsivo nunca antes visto em nossas filas. Pela primeira vez desde sua fundação, a CCI teve que excluir não a um, mas vários de seus membros [6]. No princípio dessa crise interna, apareceram dificuldades em nossa seção na França, expressando-se divergências de opinião sobre nossos princípios organizativos de centralização. Não há razão para que divergências como essas, por si mesmas, causem uma crise organizativa. E não era essa a razão. O que provocou a crise foi a negativa em debater e, sobretudo, as manobras para isolar e caluniar - ou seja, atacar pessoalmente - os militantes com quem não se estava de acordo.

Depois dessa crise, nossa organização se comprometeu a ir ao fundo das coisas, às raízes mais profundas da história de suas crises e cisões. Já publicamos contribuições sobre alguns aspectos [7]. Uma das conclusões a que chegamos é que certa tendência ao monolitismo tinha desempenhado um papel de primeira importância em todas as cisões que vivemos. Assim que apareciam divergências havia alguns militantes que afirmavam que era impossível trabalhar com outros, que a CCI se tornou uma organização stalinista, ou que já estava degenerando. Essas crises surgiam, assim, diante de algumas divergências que, na maioria das vezes, podiam perfeitamente existir no seio de uma organização não monolítica e, de qualquer maneira, deviam ser discutidas e esclarecidas antes que fosse necessária uma cisão.

A repetição de procedimentos monolíticos é surpreendente em uma organização que se apoia especificamente nas tradições da Fração italiana, a qual sempre defendeu que, fossem quais fossem as divergências sobre os princípios fundamentais, o esclarecimento mais profundo e coletivo devia preceder qualquer separação organizativa.

A CCI é a única corrente da Esquerda comunista de hoje que se situa especificamente na tradição organizativa da Fração italiana (Bilan) e da Esquerda comunista da França (GCF). Contrariamente aos grupos procedentes do Partido Comunista Internacionalista (PCInt) fundado na Itália no fim da Segunda Guerra Mundial, a Fração italiana reconheceu o caráter profundamente proletário das demais correntes internacionais da Esquerda comunista que surgiram em oposição à contrarrevolução stalinista, especialmente as Esquerdas alemã e holandesa. Nunca rechaçou essas correntes como "anarco-espontaneístas" ou "sindicalistas revolucionários", mas aprendeu delas tudo o que pôde. De fato, a crítica principal que a Fração italiana  fez contra o que acabaria sendo a corrente "conselhista", era o sectarismo expresso no rechaço desta às contribuições da Segunda Internacional e do bolchevismo em particular [8]. E foi desta forma que a Fração italiana  manteve, em plena contrarrevolução, a compreensão marxista segundo a qual a consciência de classe se desenvolve coletivamente e nenhum partido, como também  nenhuma tradição, podem proclamar a posse de seu monopólio. Disso se deduz que a consciência não pode se desenvolver sem um debate fraterno, público e internacional [9].

Essa compreensão essencial, e que continua sendo uma parte da herança principal da CCI, não é, entretanto, fácil de ser posta em prática. A cultura do debate só pode se desenvolver na contracorrente da sociedade burguesa. Como a tendência espontânea no capitalismo não é, de forma alguma, o esclarecimiento das ideias, mas a violência, a manipulação e a luta para obter uma maioria (cujo melhor exemplo é o circo eleitoral da democracia burguesa), a infiltração dessa ideologia nas organizações proletárias sempre traz consigo germes de crise e de degeneração. A história do Partido Bolchevique o ilustra perfeitamente. Enquanto o partido foi a ponta de lança da revolução, os debates mais vivos e dinâmicos eram uma de suas forças principais. Em contrapartida, a proibição de verdadeiras frações (depois do massacre de Kronstadt em 1921) foi o indício e fator ativo de sua degeneração. Do mesmo modo, a prática de uma "coexistência pacífica" (ou seja, de total ausência de debate) entre as posições conflitivas, que já tinha sido uma característica no processo de fundação do Partido Comunista Internacionalista, ou a teoria de Bordiga e seus adeptos sobre as virtudes do monolitismo só podem ser entendidas no contexto de derrota histórica do proletariado em meados do século XX.

Se as organizações revolucionárias querem cumprir seu papel fundamental de desenvolvimento e da extensão da consciência de classe, a cultura da discussão coletiva, internacional, fraterna e pública é absolutamente essencial. É certo que isso requer um elevado nível de maturidade política (e, mais em geral, de maturidade humana). A história da CCI exemplifica o fato de que essa maturidade não se adquire em um dia, mas que é o produto do desenvolvimento histórico. A nova geração de hoje tem um papel essencial a desempenhar nesse processo que está amadurecendo.

A cultura do debate na história

A capacidade de debater é uma característica essencial do movimento operário. Mas ele não a inventou. Nesse âmbito, como em tantos outros tão fundamentais, a luta pelo socialismo foi capaz de assimilar o melhor das aquisições pela humanidade e adaptá-las a suas próprias necessidades. E, assim, essa luta transformou essas qualidades elevando-as a um nível superior.

Fundamentalmente, a cultura do debate é uma expressão do caráter social da humanidade. É a emanação do uso especificamente humano da linguagem. O uso da linguagem como meio de trocar informações é algo que a humanidade compartilha com muitos animais. O que a distingue do resto da natureza, nesse plano, é sua capacidade de desenvolver e trocar argumentos (vinculada ao desenvolvimento da lógica e da ciência) e alcançar o conhecimento dos outros (desenvolvvimento da empatia, vinculada, entre outras coisas, ao desenvolvimento da arte).

Consequentemente, essa qualidade não é nova, pelo contrário. É anterior à sociedade de classes e, sem dúvida, desempenhou um papel decisivo no desenvolvimento da espécie humana. Engels, por exemplo, menciona o papel das assembléias gerais entre os gregos na época de Homero, nas tribos germânicas ou entre os iroqueses da América do Norte, fazendo um elogio especial à cultura do debate destes [10]. Infelizmente, apesar dos trabalhos de Morgan nessa época e de seus colegas do século XIX e de seus sucessores, não possuímos dados suficientes sobre os primeiros passos, possivelmente os mais decisivos, nesse âmbito.

O que sabemos, em compensação, é que a filosofia e os primórdios do pensamento científico começaram a prosperar ali onde a mitologia e o realismo ingênuo - par antigo ao mesmo tempo contraditório e inseparável - foram questionados. Esses dois modos de compreensão são prisioneiros da incapacidade de compreender mais profundamente a experiência imediata. Os pensamentos que os primeiros homens formaram apoiando-se em sua experiência prática eram necessariamente religiosos, pelo fato da sua própria natureza. "A grande questão fundamental de toda filosofia, em particular da filosofia moderna, é a da relação entre o pensamento e o ser. Desde os remotíssimos tempos em que o homem, mergulhado na mais completa ignorância sobre seu próprio organismo, e excitado pelas aparições que sobrevinham em seus sonhos, chegou à ideia de que seus pensamentos e suas sensações não eram funções de seu corpo - e sim de uma alma especial que morava nesse corpo e o abandonava na hora da morte; desde essa época, o homem teve forçosamente que refletir sobre as relações dessa alma com o mundo exterior. Se, no momento da morte, ela se separava do corpo e continuava a existir, não havia razão alguma para atribuir-lhe também uma morte separada. Surgiu assim a ideia da imortalidade da alma: uma ideia que, nessa época de desenvolvimento, não aparecia absolutamente como um consolo, mas como uma fatalidade contra a qual nada se podia fazer, e não raro, como entre os gregos, como uma verdadeira desgraça." [11].

Foi no marco de um realismo ingênuo em que se deram os primeiros passos de um desenvolvimento muito lento da cultura e das forças produtivas. Por sua vez, a tarefa do pensamento mágico, até contendo certo grau de sabedoria psicológica, era dar um sentido ao inexplicável e, portanto, conter os medos. Ambos foram contribuições importantes no avanço do gênero humano. A ideia segundo a qual o realismo ingênuo teria uma afinidade particular com a filosofia materialista, ou que esta teria se desenvolvido diretamente a partir daquele, é uma ideia sem base alguma.

  • "Os extremos se tocam, reza um ditado popular, impregnado de dialética. Dificilmente nos equivocaríamos se buscássemos o mais alto grau da fantasia, da credulidade e da superstição, não na tendência da ciências naturais que, tal como a filosofia alemã da natureza, trata de enquadrar à força o mundo objetivo dentro dos marcos de seu pensamento subjetivo, mas, pelo contrário, na tendência oposta, que, fundamentando-se na simples experiência, trata o pensamento com soberano desprezo e que, realmente, foi mais longe na pobreza de pensamento. Essa é a escola que predomina na Inglaterra[12]

A religião, como diz Engels, nasceu não só de uma visão mágica do mundo, mas também a partir do realismo ingênuo. Suas primeiras generalizações sobre o mundo, frequentemente audazes, têm necessariamente um caráter que lhe dá autoridade.

As primeiras comunidades agrárias, por exemplo, compreenderam rapidamente que dependiam da chuva, mas não podiam compreender minimamente as condições que a originavam. A invenção de um deus da chuva foi um ato criador para tranquilizar-se, dando a impressão de que é possível, mediante oferenda ou rezas, influir no curso da natureza. O Homo sapiens é a espécie que assegurou sua sobrevivência mediante o desenvolvimento da consciência. E ela se vê diante de um problema sem precedentes: a paralisia que frequentemente provoca o medo do desconhecido. As explicações do desconhecido não devem permitir a menor dúvida. Dessa necessidade, e como expressões mais desenvolvidas, apareceram as religiões reveladas. A base emocional dessa visão do mundo é a crença e não o conhecimento.

O realismo ingênuo não é mais que a outra face da mesma moeda, uma espécie de "divisão elementar do trabalho" mental. Tudo o que não se pode explicar em um sentido prático imediato, entra necessariamente no âmbito do misticismo. Além disso, a compreensão prática está também apoiada em uma visão religiosa, a visão animista [13] em sua origem. Nesta visão, o mundo inteiro se faz fetiche. Inclusive as técnicas que os seres humanos podem, conscientemente, produzir e reproduzir parecem se realizar graças à ajuda de forças personalizadas que existem independentemente de nossa vontade.

É evidente que em um mundo assim havia uma possibilidade muito limitada para o debate no sentido moderno da palavra. Há 2500 anos, uma nova qualidade começou a afirmar-se com mais força, pondo imediata e diretamente em dúvida o par religião e "senso comum". Desenvolveu-se a partir do antigo modo de pensar tradicional, no sentido de que este se converteu em seu contrário. Assim, o primeiro modo de pensamento dialético que precedeu à sociedade de classes (que na China, por exemplo, manifestou-se na ideia da polaridade entre o yin e o yang, o princípio masculino e o princípio feminino) transformou-se em pensamento crítico, apoiado nos componentes essenciais da ciência, da filosofia e do materialismo. Mas tudo isto era inconcebível sem que aparecesse o que nós chamamos cultura do debate. A palavra grega dialética significa, de fato, diálogo ou debate.

O que foi que permitiu esse novo procedimento? De maneira geral, foi a extensão do âmbito das relações sociais e do conhecimento. Em um nível mais global, foi a natureza cada vez mais complexa do mundo social. Como Engels gostava de repetir, o senso comum é um moço forte e vigoroso enquanto está em sua casa entre quatro paredes, mas conhece uma quantidade de apuros assim que sai pelo vasto mundo. E apareceram também os limites da religião em sua capacidade para apaziguar o medo. Na realidade, não havia eliminado o medo, apenas o havia atirado para o exterior. Mediante o mecanismo religioso, a humanidade tentou encarar o terror que a atormentaria em uma época em que não tinha outros meios de autodefesa. Mas desse modo, a humanidade transformou também seu próprio medo em uma força suplementar que a dominava.

"Explicar" o que ainda é inexplicável significa renunciar a uma investigação verdadeira. É daí que surge o conflito entre religião e ciência ou, como dizia Spinoza, entre a submissão e a investigação. No princípio, os filósofos gregos se opuseram à religião. Tales de Mileto, primeiro filósofo conhecido, já tinha rompido com a visão mística do mundo. Anaximandro, que lhe sucedeu, pedia que se explicasse a natureza a partir dela mesma.

E o pensamento grego foi também uma declaração de guerra contra o realismo ingênuo. Heráclito explicou que a essência das coisas não está escrita em cima delas. "A natureza gosta de se ocultar", dizia ele, ou, como dizia Marx: "toda ciência seria supérflua se a essência das coisas e sua forma fenomênica coincidissem diretamente.[14].

O novo método colocava em dúvida tanto a crença como também os preconceitos e a tradição que são o credo da vida cotidiana (em alemão, por exemplo, as duas palavras estão relacionadas: Glaube = crença e Aberglaube = superstição). Opõe a elas a teoria e a dialética.

  • "Por maior que seja o desdém que tenhamos por todo pensamento teórico, não é possível estabelecer a relação entre dois fatos naturais, ou verificar a conexão existente entre eles sem pensamento teórico[15].

O desenvolvimento das relações sociais era, evidentemente, o resultado do desenvolvimento das forças produtivas. Apareceram, pois, ao mesmo tempo que o problema - a inadequação dos modos de pensar existentes - os meios para resolvê-lo. Acima de tudo se desenvolveu a auto-confiança, especialmente, na potência do espírito humano. A ciência só pode se desenvolver quando existe a capacidade e a vontade de aceitar a existência da dúvida e da incerteza. Contrariamente à autoridade da religião e da tradição, a verdade da ciência não é absoluta, mas relativa. E assim surgem não só a possibilidade, mas também a necessidade de trocar opiniões.

Está claro que reivindicar a autoridade do conhecimento podia se apresentar somente se as forças produtivas (no sentido cultural mais amplo) tivessem alcançado certo grau de desenvolvimento. Não podia nem ao menos ser imaginado, sem um desenvolvimento correspondente das artes, da educação, da literatura, da observação da natureza, da linguagem. E isto vai paralelamente com o aparecimento, em certa fase da história, de uma sociedade de classes cuja camada dirigente separou-se da produção material. Mas esses desenvolvimentos não fizeram surgir automaticamente um método novo e independente. Nem os egípcios, nem os babilônios, apesar dos progressos científicos que aportaram à humanidade, nem os fenícios, os primeiros a desenvolver um alfabeto moderno, foram tão longe como os gregos por esse caminho.

Na Grécia, foi o desenvolvimento da escravidão o que permitiu a emergência de uma classe de cidadãos livres ao lado dos sacerdotes. Isso assentou as bases materiais que fundaram a religião (assim, podemos entender melhor a expressão de Engels no Anti-Dühring: sem a escravidão da antiguidade, não haveria socialismo moderno). Na Índia, na mesma época, o desenvolvimento da filosofia, do materialismo (chamado Lokayata) e do estudo da natureza coincidem com a formação e o desenvolvimento de uma aristocracia guerreira que se opõe à teocracia brâmane e que se apoiava, em parte, na escravidão agrícola. Como na Grécia, onde a luta de Heráclito contra a religião, contra a imortalidade e contra a condenação dos prazeres carnais estava dirigida ao mesmo tempo contra os preconceitos dos tiranos e das classes oprimidas, os novos procedimentos na Índia eram praticados por uma aristocracia. O budismo e o jainismo, surgidos na mesma época, estavam muito mais estendidos entre a população trabalhadora, mas se mantinham em um marco religioso, com sua ideia sobre a reencarnação da alma, típica da sociedade de castas que queriam se opor (e que se encontra também no Egito).

Na China, por outro lado, onde havia um desenvolvimento da ciência e uma espécie de materialismo rudimentar (por exemplo, na Lógica do Mo Ti), esse desenvolvimento foi limitado porque não existia uma casta dirigente sacerdotal contra a qual poderia terse organizado a revolta. O país estava dirigido por uma burocracia militar formada graças à luta contra os bárbaros que o rodeavam [16].

Na Grécia, existia um fator suplementar e, em muitos aspectos, decisivo, que também desempenhou um papel importante na Índia: um desenvolvimento mais avançado da produção de mercadorias. A filosofia grega não teve início na própria Grécia, mas nas colônias portuárias da Ásia menor. Produzir mercadorias implica intercâmbio não só de bens, mas também da experiência contida em sua produção. Essa produção acelera a história, favorecendo uma expressão superior do pensamento dialético. Permite um grau de individualização sem o qual o intercâmbio de ideias a um nível tão elevado é impossível. E começa a romper com o isolamento no qual até então se movia a evolução social. A unidade econômica fundamental de todas as sociedades agrícolas apoiadas na economia natural era a aldeia ou, no melhor dos casos, a região autárquica. Mas as primeiras sociedades de exploração apoiadas em uma cooperação mais ampla, frequentemente para desenvolver a irrigação, eram sempre basicamente agrícolas. Em contrapartida, o comércio e a navegação abriram a sociedade grega ao mundo. Reproduziu, mas a um nível superior, a atitude de conquista e descobrimento do mundo das comunidades nômades. A história mostra que, em certa fase de seu desenvolvimento, o aparecimento do debate público foi um fenômeno indispensável para um desenvolvimento internacional (ainda que estivesse concentrado em uma região) e, nesse sentido, tinha um caráter "internacionalista". Diógenes e os Cínicos estavam contra a distinção entre helenos e bárbaros e se declaravam cidadãos do mundo. Demócrito foi a julgamento sendo acusado de ter dilapidado uma herança com a qual se pagou viagens educativas pelo Egito, Babilônia, Pérsia e Índia. Defendeu-se lendo extratos de seus escritos, fruto de suas viagens; foi declarado inocente.

O debate nasceu respondendo a uma necessidade material. Na Grécia foi se desenvolvendo com a comparação entre as diferentes fontes do conhecimento. Comparam-se diferentes modos de pensar, diferentes modos de investigar e seus resultados, os métodos de produção, os costumes e as tradições. Descobre-se que se contradizem, confirmam-se e se completam. Combatem-se ou se completam ou ambas as coisas. Através da comparação, as verdades absolutas tornam-se relativas.

Esses debates são públicos. Ocorrem em portos, praças de mercado (os fóruns), escolas, academias. E, por escrito, enchem as bibliotecas e se estendem por todo mundo conhecido.

Sócrates - o filósofo que passou seu tempo debatendo nas praças dos mercados - encarna a essência dessa evolução. Sua preocupação principal - como alcançar um verdadeiro conhecimento da moral - já é um ataque contra a religião e os preconceitos que supõem que a resposta para tudo já existe. Sócrates declarou que o conhecimento era a condição principal para uma ética correta e a ignorância seu pior inimigo. É, pois, o desenvolvimento da consciência, e não o castigo, o que permite o progresso moral, pois a maioria dos humanos não pode ir, durante muito tempo e de maneira deliberada, contra a voz de sua própria consciência.

Mas Sócrates foi mais adiante, pondo as bases teóricas de toda ciência e toda compreensão coletiva: o reconhecimento de que o ponto de partida do conhecimento é a tomada de consciência, ou seja, a necessidade de tornar-se livre dos preconceitos. Isso abre o caminho do essencial: para a busca, para a investigação. Opõe-se vigorosamente às conclusões precipitadas, às opiniões não críticas e satisfeitas de si mesmas, à arrogância e à presunção. Acreditava "na modéstia do não conhecimento" e na paixão que brota do verdadeiro conhecimento, apoiado em uma visão e uma convicção profundas. É o ponto de partida do "diálogo socrático". A verdade é o resultado de uma busca coletiva que consiste no diálogo entre todos os alunos no qual cada um é ao mesmo tempo professor e aluno. O filósofo não é um profeta que anuncia revelações, mas sim alguém que está, junto com outros, em busca da verdade. Isto constitui um novo conceito dos dirigentes: o dirigente é o mais determinado em fazer avançar a o esclarecimento sem perder nunca de vista o objetivo final. O paralelo com a definição do papel dos comunistas na luta de classes que se faz no Manifesto comunista, é surpreendente.

Sócrates era um perito em estimular e dirigir as discussões. Fez evoluir o debate público até níveis da arte ou da ciência. Seu aluno, Platão, desenvolveu o diálogo até níveis que raramente se alcançaram posteriormente.

Na Introdução à Dialética da natureza, Engels fala de três grandes períodos na história do estudo da natureza até hoje: as "geniais intuições" dos antigos gregos e "os descobrimentos extraordinariamente importantes, mas esporádicos" dos árabes como precursores do terceiro período, "a ciência moderna" cujos primeiros passos se realizaram no Renascimento. Chama a atenção a surpreendente capacidade, "na época cultural árabe-muçulmana", para absorver e fazer uma síntese de diferentes culturas antigas e sua abertura à discussão. August Bebel cita a um testemunho presencial da cultura do debate público em Bagdad:

  • "Imagine simplesmente que na primeira reunião não só havia representantes de todas as seitas muçulmanas existentes, ortodoxas e heterodoxas, mas também adoradores do fogo (Parsi); materialistas, ateus; judeus e cristãos, em uma palavra toda classe de infiéis. Cada seita tinha seu porta-voz que devia representá-la. Quando um dos dirigentes de partido entrava na sala, todo mundo se levantava respeitosamente de seu assento e ninguém se sentaria antes dele ocupar seu lugar. Quando a sala estava quase cheia, um dos infiéis disse: ‘Todo mundo conhece as regras. Os muçulmanos não têm direito a nos combater com provas tiradas de seus livros sagrados ou com discursos apoiados nos de seu profeta, posto que nós não acreditamos em seus livros nem em seu profeta. Aqui só se pode usar argumentos apoiados na razão humana'. Estas palavras foram acolhidas com aclamação geral[17].

Bebel acrescenta: "A diferença entre a cultura árabe e a cristã era a seguinte: os árabes recolheram durante suas conquistas todas as obras que podiam servir para seus estudos e instruí-los sobre os povos e países que tinham conquistado. Os cristãos, ao ir estendendo sua doutrina, destruíam todos esses monumentos da cultura como produtos do diabo ou horrores pagãos.[18]

E conclui: "A época árabe-muçulmana foi o elo que une a cultura greco-romana e a cultura antiga em geral à cultura européia que floresceu do Renascimento. Sem aquela, esta não teria alcançado seus progressos atuais. O cristianismo era hostil a todo esse desenvolvimento cultural.[19]

Uma das razões do fanatismo e do sectarismo cego do cristianismo já foi identificado por Heinrich Heine e mais tarde confirmado pelo movimento operário: quanto mais sacrifícios e renúncias exige uma cultura, mais intolerável é a própria ideia de que esses princípios possam um dia ser postos em dúvida.

E sobre o Renascimento e a Reforma, aos quais Engels qualifica de "a mais grandiosa transformação progressista que a humanidade tinha vivido até então", também sublinha não só seu papel no desenvolvimento do pensamento, mas também no das emoções, da personalidade, do potencial humano e da combatividade.

Era uma época que: "... requeria titãs e soube engendrá-los; titãs, por seu vigor mental, suas paixões e seu caráter, pela universalidade de seus interesses e conhecimentos e por sua erudição. (...) E é que os heróis daquele tempo não viviam ainda escravizados pela divisão do trabalho, cujas consequências apreciamos tantas vezes no raquitismo e na unilateralidade de seus sucessores. Mas o que sobretudo os distingue é o fato de que quase todos eles viviam e trabalhavam sem exceção no meio do turbilhão do movimento de seu tempo, entregues à luta prática, tomando partido e brigando com outros, seja com a palavra e a pluma, seja com a espada na mão, seja empunhando a uma e outra[20].

O debate e o movimento operário

Se observarmos as três épocas "heróicas" do pensamento humano que desembocaram, segundo Engels, no desenvolvimento da ciência moderna, nota-se até que ponto foram limitadas no tempo e no espaço. Primeiro, começam muito tarde em relação à história da humanidade como um todo. Inclusive contando com os espaços chinês e indiano, essas fases estavam limitadas geograficamente. Tampouco duraram muito (o Renascimento na Itália e a Reforma na Alemanha só algumas poucas décadas). E eram muito escassas as frações das classes exploradoras (já, em si mesmas, muito minoritárias) que participaram de maneira ativa nesse desenvolvimento.

E duas coisas parecem surpreendentes. Primeiro, simplesmente, o próprio fato de que foi possível existir esses momentos de debate público e da ciência, e que seu impacto foi tão importante e duradouro, apesar de todas as rupturas e dos obstáculos. Segundo, até que ponto foi capaz o proletariado (apesar da ruptura na continuidade orgânica de seu movimento em meados do século XX [21], apesar de não ser possível existir organizações de massas no capitalismo decadente [22]) de manter e inclusive às vezes ampliar significativamente o debate organizado. O movimento operário manteve viva essa tradição, apesar das interrupções, durante quase dois séculos. E em certos momentos, como nos movimentos revolucionários na França, na Alemanha ou na Rússia, esse processo abrangeu milhões de pessoas. Aqui, a quantidade torna-se qualidade.

Essa qualidade não é, entretanto, unicamente o resultado de que o proletariado, nos países industrializados ao menos, seja a maioria da população. Já vimos como a ciência moderna e a teoria, depois dos memoráveis debates durante o Renascimento, foram deteriorando-se, entorpecidos em seu desenvolvimento pela divisão burguesa do trabalho. O centro deste problema é a separação entre a ciência e os produtores, uma distância impensável em outras épocas como a árabe ou a do Renascimento. "[Este processo de dissociação] se completa na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a força a servir ao capital" [23].

A conclusão desse processo descrito por Marx no rascunho de sua resposta a Vera Zasulich: "[o sistema capitalista] trava uma luta tanto contra as massas trabalhadoras como contra a ciência e contra as mesmas forças produtivas que engendra". (Tradução nossa).

O capitalismo é o primeiro sistema econômico que não pode existir sem aplicar sistematicamente a ciência à produção. Deve limitar a educação do proletariado para manter sua dominação de classe. E deve desenvolver a educação do proletariado para conservar sua posição econômica. Hoje a burguesia é cada vez mais uma classe sem cultura, atrasada, enquanto a ciência e a cultura estão em mãos ou de proletários ou de representantes remunerados da burguesia, cuja situação econômica e social se parece cada dia mais à da classe operária.

  • "A abolição das classes sociais (...) supõe, pois, um grau elevado de desenvolvimento da produção em que a apropriação dos meios de produção e dos produtos, e, portanto, da dominação política, do monopólio da cultura e da direção intelectual por uma classe determinada da sociedade , tenha chegado a ser não só algo supérfluo, mas também,  do ponto de vista econômico, político e intelectual, um entrave para o desenvolvimento. Esse ponto já fora alcançado[24].

O proletariado é o herdeiro das tradições científicas da humanidade. Ainda mais que no passado, toda futura luta revolucionária proletária contribuirá necessariamente para um florescimento sem precedentes do debate público e para o início  de um movimento para a restauração da unidade entre ciência e trabalho, a realização de uma compreensão global que esteja à altura das exigências da época contemporânea

A capacidade do proletariado para alcançar novos progressos já fora demonstrada com o desenvolvimento do marxismo, primeiro método científico sobre a sociedade humana e a história. Só o proletariado foi capaz de assimilar as aquisições mais elevadas do pensamento filosófico burguês: a filosofia de Hegel. As duas formas de dialética conhecidas na Antiguidade eram a dialética da transformação (Heráclito) e a dialética da interação (Platão, Aristóteles). Só Hegel conseguiu combinar essas duas formas e criar as bases para uma dialética verdadeiramente histórica.

Hegel contribuiu para uma nova dimensão ao conceito de debate atacando, como nunca antes se fez, a oposição rígida, metafísica entre o verdadeiro e o falso. No prefácio de A Fenomenología do espírito demonstrou que as fases diferentes e opostas de um desenvolvimento (como a história e a filosofia) formam uma unidade orgânica, do mesmo modo que a flor e o fruto. Hegel explica que a incapacidade para entender essa unidade deve-se à tendência a se concentrar na contradição, perdendo de vista o desenvolvimento. Ao pôr de pé a dialética, o marxismo foi capaz de absorver o mais progressista de Hegel, a compreensão dos procedimentos que levam para o futuro.

O proletariado é a primeira classe ao mesmo tempo explorada e revolucionária. Contrariamente às classes revolucionárias precedentes, classes exploradoras, sua busca da verdade não está limitada por nenhum interesse a preservar como classe. Contrariamente às classes exploradas anteriores, que não podiam sobreviver a não ser consolando-se com ilusões (especialmente religiosas), seu interesse de classe é a perda de ilusões. Como tal, o proletariado é a primeira classe cuja tendência natural, enquanto se põe a refletir e se organiza e luta em seu terreno, é uma tendência para o esclarecimento.

Os bordiguistas se esqueceram dessa característica própria e exclusiva do proletariado quando inventaram o conceito de "invariabilidade". Seu ponto de partida é correto: a necessidade de permanecer leal aos princípios de base do marxismo frente à ideologia burguesa. Mas a conclusão que diz que é necessário limitar e até abolir o debate para, assim, manter as posições de classe é um produto da contrarrevolução. A burguesia, sim, compreendeu muito melhor que o que deve ser feito, acima de tudo, para atrair o proletariado ao terreno do capital, é suprimir ou sufocar seus debates. Primeiro tentou através da repressão violenta, depois desenvolveu também outras armas muito mais eficazes como a "democracia" parlamentar e a sabotagem organizada pela esquerda do capital. O oportunismo também compreendeu isso há muito tempo. Como sua característica essencial é a incoerência, deve se ocultar, fugir do debate aberto. A luta contra o oportunismo e a necessidade de uma cultura do debate, além de não serem contraditórias, são também mutuamente indispensáveis.

Tampouco, essa cultura não exclui a confrontação apaixonada de posturas políticas divergentes. Mas isso não significa que o debate político deva ser concebido como um duelo necessariamente traumático, com vencedores e vencidos, que leve a rupturas e cisões. O exemplo mais edificante da "arte" ou da "ciência" do debate na história é o do Partido Bolchevique entre fevereiro e outubro de 1917. Inclusive em um contexto de intromissão em massa de uma ideologia alheia, as discussões eram apaixonadas, mas totalmente fraternas e fonte de inspiração para todos os participantes. Sobretudo, essas discussões tornou possível o que Trotsky chamou de "rearmamento" político do partido, o reajuste de sua política às novas necessidades do processo revolucionário, que é uma das condições da vitória.

O "diálogo bolchevique" precisa compreender que nem todos os debates têm o mesmo significado. A polêmica de Marx contra Proudhon era uma "demolição" como deve ser, pois sua tarefa era atirar ao lixo da história uma visão que se converteu em um entrave para o desenvolvimento da consciência do movimento operário. Por outro lado, o jovem Marx, ao mesmo tempo que iniciava uma luta formidável contra Hegel e contra o socialismo utópico, nunca perdeu seu imenso respeito por Hegel, Fourier, Saint Simon ou Owen, a quem fez entrar assim para sempre em nossa herança comum. Engels escreveria mais tarde que sem Hegel, não existiria o marxismo e sem os utopistas não haveria socialismo científico tal como hoje o conhecemos.

As crises mais graves do movimento operário, incluídas as da CCI, em sua grande maioria não foram provocadas pelas divergências em si, por muito importantes que fossem, mas sim pela sabotagem aberta do debate e do processo de esclarecimento. O oportunismo usa todos os meios para chegar a essa sabotagem. Não só pode minimizar divergências importantes, mas também exagerar as secundárias ou inventar divergências onde não existem. O oportunismo usa, além disso, os ataques pessoais, quando não a difamação ou a calúnia.

O peso morto que faz penetrar no movimento operário o "senso comum" cotidiano por um lado e, por outro, o respeito sem crítica, quase religioso de certos costumes e tradições, relaciona-se com o que Lênin chamava "espírito de círculo". Tinha perfeitamente razão em seu combate contra a submissão do processo de construção da organização e de sua vida política à "espontaneidade" do senso comum e suas consequências: "Mas, por que - perguntará o leitor - o movimento espontâneo, que se dirige para o sentido do mínimo esforço, conduz exatamente à dominação da ideologia burguesa? Pela simples razão de que, cronologicamente, a ideologia burguesa é muito mais antiga que a ideologia socialista, está completamente elaborada e possui meios de difusão infinitamente maiores" [25].

O característico da mentalidade de círculo é a personalização do debate, a atitude que consiste em não se centrar nos argumentos políticos, no "que se diz", mas sim em "quem o diz". Nem é necessário dizer que essa personalização excessiva é um grande obstáculo para uma discussão coletiva frutífera.

No "diálogo socrático" já se havia compreendido que o desenvolvimento do debate não é só coisa do pensamento; é também uma questão ética. Hoje, a busca de esclarescimento serve aos interesses do proletariado e sua sabotagem os danifica. Nisto, a classe operária deverá inspirar-se na frase de Lessing, alemão do século das luzes, que afirmava que se havia algo que amava mais que a verdade era a busca da verdade.

A luta contra o sectarismo e contra a impaciência

Os exemplos mais patentes da cultura do debate como elemento essencial dos movimentos proletários de massas foram dados a nós pela Revolução Russa [26]. O partido de classe estava na vanguarda desta dinâmica. As discussões no seio do partido na Rússia em 1917 eram sobre questões como a natureza de classe da revolução, se teria que apoiar ou não a continuação da guerra imperialista e quando e como tomar o poder. E, entretanto, ao longo de todo esse período, manteve-se a unidade do partido, apesar das crises políticas durante as quais estavam em jogo o destino da revolução mundial e, com este, o da humanidade.

Entretanto, a história da luta de classe proletária, especialmente a do movimento operário organizado, nos ensina que nem sempre se alcançaram esses níveis de cultura do debate. Já mencionamos a intrusão reiterada de métodos monolíticos na CCI. Não é surpreendente que isso tenha produzido frequentemente cisões na organização. Com os métodos monolíticos, as divergências não podem ser resolvidas através do debate e desembocam necessariamente em ruptura e separação. E o problema não se resolve, entretanto, com a cisão dos militantes que personificaram esses métodos de modo caricatural. A possibilidade de que esses métodos não proletários voltem a surgir indica a existência de debilidades mais estendidas sobre esta questão na própria organização. São frequentemente pequenas confusões e ideias errôneas apenas perceptíveis na vida e na discussão cotidiana, mas que podem abrir o caminho a dificuldades maiores em certas circunstâncias. Uma delas consiste na tendência a apresentar qualquer debate em termos de confrontação entre marxismo e oportunismo, de luta polêmica contra a ideologia burguesa. Uma das consequências deste modo de fazer é a de inibir o debate, dando a impressão aos camaradas que já não têm direito a se equivocar nem a expressar suas confusões ou desacordos. Outra consequência é a "banalização" do oportunismo. Se o identificarmos por toda parte (e gritamos a cada passo: "o lobo!", assim que aparece a menor divergência), provavelmente não o reconheceremos quando aparecer de verdade. Outro problema é a impaciência no debate cujo resultado é não escutar os argumentos de outros e uma tendência a querer monopolizar a discussão, a esmagar o "adversário", a convencer outros "a todo custo" [27].

O que têm em comum todos esses procedimentos é o peso da impaciência pequeno-burguesa, a falta de confiança na prática viva da compreensão coletiva no proletariado. Expressam uma dificuldade para aceitar que a discussão e a compreensão são um processo. E como todos os processos fundamentais da vida social, esse tem um ritmo interno e sua própria lei de desenvolvimento. Este corresponde ao movimento que vai da confusão para o esclarecimiento, contém erros e orientações falsas e também sua correção. Essas evoluções requerem tempo para ser profundas de verdade. Poderão ser aceleradasr, mas nunca serem evitadasprecipitar. Quanto mais ampla seja a participação nesse processo, quando mais volumosa seja a participação do conjunto da classe, mais frutífero será.

Em sua polêmica contra Bernstein [28], Rosa Luxemburgo sublinhava a contradição essencial da luta de classes: movimento no seio do capitalismo, mas que tende para um objetivo situado fora do capitalismo. Dessa natureza contraditória vêm os dois principais perigos que ameaçam o movimento. O primeiro é o oportunismo, ou seja, a abertura à influência nefasta da classe inimiga. A ordem desse desvio no caminho da luta de classes é: "o movimento é tudo, o objetivo não é nada". O segundo perigo principal é o sectarismo, ou seja, a falta de abertura para a influência da vida de sua própria classe, o proletariado. A ordem desse desvio é: "o objetivo é tudo, o movimento não é nada".

Depois da terrível contrarrevolução resultante da derrota da revolução mundial no período posterior à Primeira Guerra Mundial, foi desenvolvido no seio do movimento revolucionário a ideia falsa e funesta de que era possível combater o oportunismo com o sectarismo. Esta visão, que acabou levando à esterilização e à fossilização, era incapaz de compreender que o oportunismo e o sectarismo são as duas faces da mesma moeda, pois ambos separam o movimento e o objetivo. Sem a participação plena das minorias revolucionárias na vida real e no movimento de sua classe, o objetivo do comunismo não poderá ser alcançado.


[1] Inclusive jovens revolucionários tão amadurecidos e esclarecidos teoricamente como Marx e Engels pensavam - na época das convulsões sociais de 1848 - que o comunismo estava, mais ou menos tarde, à ordem do dia. Uma hipótese que tiveram que revisar e abandonar rapidamente.

[2] Ou como dizia a música brasileira que fez muito sucesso nessa época:  "não confio em ninguém com mais de 30".

[3] A propósito disso, ler nosso artigo Teses sobre o movimento dos estudantes da primavera de 2006 na França; [https://pt.internationalism.org/icconline/2006_estudiantes_franca]

[4] No campo proletário, a ideia do dogma foi teorizada pela corrente chamada "bordiguista".

[5] As biografias e memórias dos revolucionários do passado estão repletas de exemplos de sua capacidade para discutir e, especialmente, escutar. Nisto, Lênin era conhecido, mas não era o único. Um só exemplo: as lembranças do Fritz Sternberg em suas Conversations with Trotsky [Conversas com Trotsky] (redigidas em 1963). "Em suas conversações comigo, Trotsky era do mais educado. Não me interrompia virtualmente nunca, só para me pedir alguma explicação ou desenvolver uma palavra ou um conceito a maioria das vezes".

[6] Leiam-se a respeito os artigos dos números 110 e 114 da Revista internacional , "Conferência extraordinária da CCI: o combate pela defesa dos princípios organizativos" e "XV Congresso da CCI : Reforçar a organização diante dos desafios do período".

[7] Leia-se: A confiança e a solidariedade na luta do proletariado e Marxismo e ética na Revista internacional  n° 111, 112, 127 e 128.

[8] Leia em nossos livros sobre a Esquerda comunista da Itália e a Esquerda comunista da Holanda.

[9] A Esquerda comunista da França manteria essa posição depois da dissolução da Fração italiana. Ver, por exemplo, a crítica do conceito do "chefe genial" reproduzida na Revista internacional n° 33 [https://es.internationalism.org/node/2182]e da noção de disciplina que considera os militantes da organização como simples executantes que não têm que discutir sobre as orientações políticas da organização, na Revista Internacional  n° 34.

[10] Engels, A Origem da família, da propriedade privada e do Estado.

[11] Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Cap. II. [www.moreira.pro.br/textose27a.htm]

[12] Friedrich Engels, A investigação científica no mundo dos espíritos. In: A Dialética da natureza. Tradução nossa..

[13] Visão que considera a alma como princípio ou causa de todos os fenômenos vitais.

[14] Marx, El Capital, III, 48: "A fórmula trinitaria", III. FCE, 1946, México. Tradução nossa.

[15] Friedrich Engels, A investigação científica no mundo dos espíritos. In: A Dialética da natureza, Tradução nossa.

[16] Sobre estes temas do Ásia dos anos 500 A.C., vejam-se as conferências de August Thalheimer na Universidade Sun Yat Sen em Moscou, 1927 : Einführung in den dialektischen Materiailismus [Introdução ao materialismo dialético].

[17] August Bebel, Die Mohamedanisch-Arabische Kulturepoche (1889), cap. VI, "O desenvolvimento científico, a poesia". Traduzido do alemão por nós.

[18] Ibid.

[19] Ibid.

[20] Engels, Dialética da Natureza, Introdução

[21]Devido à derrota da onda revolucionaria mundial de 1917-23 e a à contrarrevolução de quase 50 anos que a sucedeu.

[22] Ler a nossa brochura Os sindicatos contra a classe operária [https://pt.internationalism.org/sindicatos/03].

[23] Marx, O Capital. Livro I, 4ª, Nova Cultural, 2ª ed., 1985. (Cap. 14: "Divisão do trabalho e manufatura", 5 "Caráter capitalista da manufatura")..

[24] Anti-Dühring, 3ª parte: O socialismo, Noções teóricas. (Tradução nossa)

[25] Lênin, O que fazer? - (Cap. II - A espontaneidade das massas e a consciência da social-democracia). [https://www.moreira.pro.br]

[26] Ver, por exemplo, o livro de Trotsky: História da revolução russa ou o de John Reed: Dez dias que abalaram o mundo.

[27] Ver a respeito o relatório sobre os trabalhos do "XVII Congresso da CCI. Um fortalecimento internacional do campo proletário" na Revista internacional n° 130. [https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/XVIII_congresso_da_CCI_ru...ças_internacionalistas]

[28] Rosa Luxemburgo, Reforma ou Revolução?