Movimento Cidadão Democracia Real Já!: Ditadura do Estado contra as assembleias massivas

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Há apenas uma semana, nas praças das principais cidades da Espanha, reuniam-se milhares de pessoas em assembleias onde tomava a palavra quem quisesse fazer uso dela e falava com total confiança da falta de futuro que nos depara e que podíamos fazer frente a ele. E se escutava com respeito. Discutia-se em todas as partes, em pequenos grupos, nos bares, nos acampamentos..., diferentes gerações (jovens e aposentados). Crescia um sentimento de emoção coletiva, de unidade, de criatividade, de reflexão e debate, em um esforço para assumir a responsabilidade juntos da gigantesca tarefa de colocar uma perspectiva diante da ausência de futuro que nos oferece o capitalismo.

Hoje, vai cada dia menos pessoas às reuniões, que já não se pode chamar assembleias, onde não se permite uma discussão. Várias comissões "filtram" o uso da palavra e praticamente não se permite falar de uma perspectiva de luta social. Utiliza-se para votar ou "buscar consenso" em palavras de ordem democráticas como se fossem a expressão do movimento, quando a maioria não as conhece nem discutiram e muita gente está abertamente contra. Com a desculpa do "apoliticismo" terminam por fazer "a mesma merda" política do "PSOE e PP[1].

O que tem acontecido? Tem razão os que dizem que desde o princípio isto era um movimento cidadão de reforma democrática, uma encenação? Ou está acontecendo um ataque contra as assembleias, uma sabotagem para acabar com o encontro massivo, a discussão e a reflexão, porque assustam e põem em tensão o Estado?

Assembleias massivas não pela democracia, mas apesar da democracia

Quando dois dias depois da brutal repressão das manifestações de 15 de maio (15M), montam-se acampamentos na Praça Puerta del Sol, que servem de exemplo para outras cidades e vão se reunindo pessoas e mais pessoas nas praças, organizando discussões e assembleias, a mobilização é completamente espontânea. Mentem cinicamente os que agora, como Democracia Real Já! [DRY: ¡Democracia Real Ya!], querem atribuir a si a iniciativa do movimento. Esses mesmos "senhores cidadãos" se preocuparam muito na oportunidade de deixar claro que o movimento dos acampados não eram eles. Ou como foi dito em um texto assinado por Alguns anarquistas madrilenos: "se encarregaram de expressá-lo de maneira mais asquerosa possível: se eximindo dos incidentes após a manifestação e apontando quem cometesse falta" [2].

A acentuação dos ataques às nossas condições de vida, o desemprego, os despejos, os cortes nas prestações sociais, o exemplo da Praça Tahrir e do norte da África, das lutas contra os cortes nas aposentadorias na França, dos estudantes na Inglaterra, da Grécia, as discussões nos locais de trabalho ou em minorias, os comentários no facebook e Twitter, e, claro, a encenação da comédia parlamentar e a corrupção... Tudo isso e mais, fez que, de maneira imprevisível, explodisse o descontentamento, a indignação, desencadeando uma torrente de vitalidade, de combatividade, rompendo a normalidade democrática da passividade e do voto.

Milhares, e às vezes dezenas de milhares, de pessoas se juntaram nas praças centrais das cidades mais importantes da Espanha convertidas em Ágoras. Vinham depois do trabalho, ficavam acampados, iam com a família, se buscavam... e falavam e falavam. A palavra foi "liberada! [3] nas assembleias. Até os mais anti-Estado se davam conta de que isto não era um movimento nos moldes estatais democráticos, como disse o mesmo texto anarquista citado anteriormente: "É como se, de repente, a passividade e o caminhar de cada um por si tivesse se quebrado próximo do Km 0 [Praça da Puerta del Sol]... Nos primeiros dias, bastava um pequeno grupo de pessoas falando de algum assunto, e as pessoas aproximavam o ouvido para escutar, para intervir. Tem sido normal ver pessoas em pequenos grupos discutindo. Os grupos de trabalho e as assembleias gerais são acontecimentos massivos entre 500, 600 e 2000 pessoas (sentadas, de pé, se comprimindo para ouvir algo), etc. E fora isso essa sensação permanente de um bom ambiente, de "isto é algo especial". Tudo isso alcançou seu ponto culminante na noite de sexta para sábado, quando começou o dia de reflexão. Escutar mais de 20.000 pessoas gritar "Somos ilegais"[4] e, como crianças, sentir o prazer de infringir a lei, a verdade, impressiona[5].

É certo que o movimento não colocou uma confrontação aberta sobre reivindicações contra o Estado democrático. De fato, cada tentativa de chegar a reivindicações concretas, se desviava para a "reforma democrática", introduzindo as palavras de ordem de Democracia Real Já! E é normal, porque falta a confiança para se lançar na luta e a compreensão sobre a perspectiva, e, sobretudo, falta a classe operária recuperar sua identidade como sujeito revolucionário e possa se colocar a frente de um assalto revolucionário. Todavia, a discussão, a reflexão e a tentativa de tomar o destino da luta em suas mãos é justamente o caminho para a confiança, o esclarecimento e a recuperação da identidade da classe operária, como tem mostrado, particularmente em Barcelona, as tentativas de setores em greve de se unir às assembleias e a convocação de manifestações unitárias por reivindicações trabalhistas em Tarrasa [6]. A verdadeira confrontação com o Estado democrático tem ocorrido nas assembleias auto-organizadas e massivas, que tem se estendido por todo o país e além.

E isso é justamente o que o Estado não podia tolerar.

A resposta do Estado: restabelecer a democracia

Após uma primeira tentativa de frear os acontecimentos no final de semana eleitoral de 22 de maio, proibindo legalmente as concentrações, que foi ignorada pela assistência massiva em todas as praças na hora em que se devia cumprir a lei, na madrugada de Sábado, 21 de maio, a estratégia foi a de combinar a espera do enfraquecimento natural do movimento devido ao cansaço e à dificuldade de colocar uma perspectiva de luta, com a sabotagem a partir de dentro do movimento.

Quando uma semana depois das eleições municipais, o movimento começava a se enfraquecer, o Estado desencadeou em Madrid e Barcelona, uma estratégia com grande repercussão midiática.

Em Madri, deram corda às lamentações dos donos de restaurantes e "pequenos empresários" da Praça Puerta del Sol, para culpar os acampados, como se eles tivessem aumentando a crise, e apoiar uma estratégia consistindo em desmantelar as concentrações massivas para substituí-las por "pontos de informação".

Em Barcelona, a intervenção calculada da Polícia Local [7], se bem que teve o efeito de aumentar momentaneamente a participação nas concentrações [8], conseguiu desviar completamente as discussões para a reivindicação democrática de solicitar a demissão do conselheiro do Interior, Felip Puig, introduzindo o discurso da oposição contra o novo governo de direita nacionalista.

Porém tudo isso não teria o mesmo impacto sem o trabalho de sabotagem a partir do interior do movimento por parte de Democracia Real Já!.

A sabotagem a partir do interior: A ditadura de Democracia Real Já!

Nos primeiros dias, diante da avalanche de assembleias, Democracia Real Já! (DRY) não teve outro remédio a não ser ficar por detrás da cena, mas isso não significa que não tratassem de tomar posições nas comissões chave dos acampados e de difundir suas posições cidadãs de reforma do sistema, como o famoso "decálogo" ou outros do mesmo estilo; isso, sem dar a cara abertamente e defendendo o apoliticismo, que impedia que as demais opções políticas pudessem difundir suas posições políticas, embora DRY as difundisse (sem assinar) com o maior descaramento.

Os companheiros anarquistas de Madrid já detectavam este ambiente no início do movimento: "Em muitas comissões e grupos está se vendo de tudo: perdas casuais de atas, personalismos, pessoas que se aferram ao papel de porta-voz, delegados que deixam de dizer coisas nas assembleias gerais, comissões que ignoram acordos, pequenos grupos que querem manter seus negócios, etc. Muitas, seguramente, fruto da inexperiência e dos egos, outras, parecem diretamente tiradas dos velhos manuais de manipulação de assembleias".

Mas foi preciso esperar os primeiros sintomas de refluxo do movimento, para ver uma autêntica ofensiva do "movimento cidadão", encabeçado por DRY, contra as assembleias.

Na Puerta del Sol, são eles os que têm apoiado as queixas dos comerciantes e têm impulsionado o desmantelamento do acampamento, para tornar um ponto de informação". São eles os que filtram as intervenções nas assembleias, onde, agora, somente se discute as propostas das comissões, que eles controlam. Apresentam abertamente suas posições como expressão do movimento, sem que se tenha discutido nas assembleias. Convocam reuniões de coordenação das assembleias de bairro sem que essas tenham elegido delegados que representam a assembleia; ou inclusive uma assembleia de coordenação nacional para 4 de junho da qual praticamente não se ouviu falar em assembleias gerais... E a mesma dinâmica se vê em todas grandes cidades.

Em Barcelona, a liberdade de palavra foi sequestrada e as assembleias simplesmente têm de se pronunciar no escuro sobre as propostas elaboradas para elas. A discussão foi substituída por Conferências de professores intelectuais. Aqui um dos sintomas mais sensíveis da ofensiva contra as assembleias é como tem ganhado peso o nacionalismo. Na primeira semana, após 15M, milhares de pessoas abarrotavam a Praça de Catalunha e discutiam em diferentes idiomas, traduzindo-se igualmente para vários idiomas os comunicados feitos e recebidos. Nenhuma só bandeira catalã. No entanto, recentemente, foi votado para se falar exclusivamente em catalão.

Em Valência, mais do mesmo, corrigido e aumentado. Deixemos a palavra a um texto intitulado Control asambleas en Valencia [9], que circula anonimamente: "Desde o dia 27 a dinâmica interna dos acampados e as assembleias diárias tem mudado radicalmente... e nelas quase já não se pode falar de política nem de problemas sociais... Em resumo, é o seguinte: uma comissão chamada de "Participação Cidadã" e outra chamada "Jurídica", no total umas 15-20 pessoas, têm feito com controle absoluto a moderação das assembleias, são "moderadores profissionais" que se impõem também nos grupos e nas comissões... Da praça tem se retirado todos os cartazes que tinham algum conteúdo político, econômico ou simplesmente social. Agora é uma espécie de feira alternativa (...) Não há liberdade de expressão nem na praça nem na assembleia. Instauraram, nas comissões que puderam, a ditadura do sistema de "consenso de mínimos" [10] com o qual nunca se pode chegar a acordos com conteúdo (...) Foi apresentado um documento, que pretendem que se aprove hoje, chamado "Cidadão Participativo" onde, recheado de muitas coisas bonitas, se estabelece que só as comissões tenha direito de apresentar propostas às assembleias (...) Nesse papel, se estabelece que as comissões desde já, obrigatoriamente, funcionaria por consenso de mínimos (...) estabelecimento total do controle para primeiro esvaziar de  conteúdo o movimento." E como se fosse pouco, hoje mesmo uma manifestação de aposentados contra as "pensões" foi convertida em um protesto contra o artigo 87-3 da Constituição; embora os aposentados gritassem "por uma pensão mínima de 800 €" e "pela aposentadoria aos 60 anos", o movimento cidadão gritava  "presos desde 1978 [11]" para reivindicar uma constituição mais representativa.

Apesar disso, é Sevilha que tem sido um dos lugares onde o DRY tem se mostrado mais escancarado e tem solicitado sem restrições um cheque em branco à assembleia, para fazer e desfazer seu capricho. Inclusive se atreveram a chamar os participantes das assembleias a se integrar massivamente sob suas siglas.

O que está em jogo

É mais do que evidente que a estratégia do DRY, a serviço do Estado democrático, consiste em colocar para frente um movimento cidadão de reforma democrática, para tratar de evitar que surja um movimento social de luta contra o Estado democrático, contra o capitalismo. Entretanto, os fatos mostram que, quando o mal estar social acumulado encontra um mínimo terreno para se expressar, os chorões da democracia mais-que-perfeita são descartados sem a menor consideração. Nem DRY nem o Estado democrático podem deter o desenvolvimento do descontentamento social e da combatividade; todavia, podem tentar colocar todos os tipos de travas.

O peso contra as assembleias é uma delas. Para uma "grande minoria" (se é permitido usar o termo paradoxo), estas assembleias são uma referência de como buscar a solidariedade e a confiança, de como discutir, para tomar para si as lutas contra os terríveis ataques às nossas condições de vida.

Continuar discutindo como nas assembleias, mesmo que sejam em reuniões menores, é o caminho para preparar as lutas. Organizar assembleias massivas e abertas cada vez que haja uma luta, é o exemplo que tem de ser seguido. A sabotagem do DRY e a imposição do movimento cidadão podem fazer que uma parte dessa "minoria crescente" se desengane e pense que "foi tudo um sonho". Não pode apagar a história como o Big Brother [12], porém podem confundir a memória.

Por isso a alternativa é defender as assembleias onde ainda haja uma vitalidade; combater e denunciar a sabotagem do DRY; e chamar para continuar em cada ocasião, em agrupamentos de minorias ou em assembleias nas lutas, a dinâmica de se encarregar do debate e da luta.

Lutar contra o capitalismo é possível! O futuro pertence à classe operária!

03.06.2011

Corrente Comunista Internacional

[1] "PSOE e PP é a mesma merda" é um slogan contra o "bipartidarismo" e se converteu em emblema deste movimento. [Nota do Tradutor]

[3] "Liberar a palavra" tem sido uma das palavras de ordem das recentes assembleias no movimento contra o corte nas aposentadorias na França.

[4] No domingo, 22 de maio, houveu eleiçoes locais na Espanha. La lei estipula que o sábado anterior (21) é o dia da "reflexão", que está proibida qualquer reunião ... [NdT]

[6] Cidade industrial nos arredores de Barcelona. [NdT]

[7] A burguesia na Espanha não é tão torpe em relação à confrontação com a classe operária, e menos ainda na Catalunha, e custa acreditar que, poucos dias depois a repressão das manifestações do 15M, quando surgiram as mobilizações, voltassem a cometer de novo o mesmo erro. Além disso, as patéticas declarações na TVE do porta-voz da oposição do PSC, que tachou os acampados de "elementos" e disse que estava de acordo com a desocupação, embora de outra maneira, mostra que o plano tinha sido discutido entre governo e oposição.

[8] A repressão tem sido brutal (ainda há alguns gravemente feridos ) o que impulsionou a solidariedade em diferentes assembleias.

[10] Sob a desculpa de canalizar para um mínimo de reivindicações que fossem consenso entre todos formou-se o tal "consenso de mínimos", que, na verdade, coincidiam com as palavras de ordem Democracia Real Já! e não foram discutidas em assembleias.

[11] Ano da entrada em vigor última Constituição da Espanha, logo depois da morte do ditador Franco.

[12] Do livro 1984, de George Orwell.

Herança da Esquerda comunista: