Carta do nosso leitor

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0 primeiro trotsky

Abordando com o devido rigor a história da Revolução Russa de 1917, haveremos de tratar de duas figuras exponenciais naquele processo. A primeira delas é de Leon Bronstein Trotsky e a segunda é a figura “sacramentada” de Vladimir Ilitch Ulianov Lênin. Ambos merecem uma abordagem que bem retrate suas posturas políticas no andamento daquele formidável processo.

No caso de Leon Trotsky, temos insistido em ressaltar que, pelo papel jogado no aludido episódio histórico, existem dois Trotsky: o primeiro deles nasce junto aos embrionários grupos marxistas que terminam por compor o Partido Operário Social-Democrata Russo. O jovem Leon Trotsky que, dentre outras figuras, muito se espelhou no militante socialista, Pavel Axerold, a quem chamava de mestre, teve uma trajetória militante marcada pelo seu grande e inquestionável brilhantismo.

Já em 1903, quando foi defendida a proposta de organização partidária inspirada na obra de Vladimir Lênin “O que fazer?”, Trotsky, junto a outros grandes expoentes do socialismo, dentre eles Rosa Luxemburgo, dispensou severas e bem fundamentadas críticas à proposta leninista.

Assim como Rosa Luxemburgo, Trotsky, de então, lançando mão dos princípios do socialismo científico, proclamou que o modelo leninista de partido, de feição acentuadamente blanquista, levaria inevitavelmente, ao substituísmo e isso confrontaria com os princípios marxistas de que a obra de libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores e, portanto, não há lugar na História para partidos libertadores, como pretendia a proposta partidária formulada por Lênin. Dizendo melhor, não haveria e nem haverá lugar na História para que um grupo de pessoas profissionalizadas e bem treinadas na arte de conspirar e enganar o aparelho repressivo, tornar-se apto a assaltar o poder e, a partir daí, promover a libertação dos explorados e oprimidos. Tal concepção partidária, como bem enxergava Leon Trotsky, Rosa Luxemburgo e outros tantos próceres da causa socialista, redundaria, como já foi frisado, no substituísmo. Isso quer dizer que, um partido bem treinado, ultra-centralizado e disciplinado, substituiria as massas populares. Por seu turno, o ultra-centralismo e a disciplina férrea levariam a que o Comitê Central substituísse o partido. Por fim, uma figura “iluminada”, haveria de substituir o próprio Comitê Central. Essa tão inconteste profecia política, calcada nos fundamentos do socialismo científico, como não poderia deixar de ser, confirmou-se, e a atitude do Trotsky em denunciar esse determinismo histórico já demonstrava o seu grande valor enquanto militante e teórico socialista. Porém, a grandeza de Leon Trotsky não se resumiu apenas às tão bem fundadas e severas críticas que ele dirigiu a Vladimir Lênin no que concerne à sua proposta de modelo de partido, expressa no seu livro publicado em 1904, sob o título de “As nossas tarefas políticas”, obra tão zelosamente escondida pelo próprio Trotsky e, mais ainda, pelos seus seguidores. Em 1905, quando surge na Rússia tzarista um vigoroso movimento de rebelião das massas trabalhadoras e, dessa rebelião surgiram os conselhos populares, então chamados de sovietes, lá estava Leon Trotsky, participando desses eventos, e essa participação redundou na sua escolha como presidente da Comissão Executiva do Soviete de Petrogrado. Dois anos depois, Leon Trotsky em parceria com Parvus, desenvolveu a tese já colocada por Marx da Revolução Permanente, em que consistiria dizer que os países retardatários, ou seja, aqueles em que ainda não houvera se processado a revolução burguesa, a revolução de caráter democrático, numa constante progressão deveria desembocar no processo da revolução socialista que em tese se daria a partir dos países mais desenvolvidos e, caso essas revoluções não avançassem progressiva e ininterruptamente, haveriam de retroagir para seus patamares anteriores. Essa tese, que bem se aplicava aos países como a Rússia tzarista, a China dos senhores de guerra, a Índia e a Indonésia, não mereceu maiores atenções nos meios socialistas, particularmente não mereceu atenção nenhuma do Sr. Vladimir Ilitch Ulianov Lênin. Outros episódios políticos e teóricos se prestaram a revelar a grandeza de Leon Trotsky até o momento em que se desencadeou o processo da Revolução Russa em fevereiro de 1917. Naquele processo, através das teses de Abril, Vladimir Lênin aderiu à tese marxista-trotskista da Revolução Permanente e, para pesar da humanidade, Leon Trotsky, passou-se de malas e bagagens para o bolchevismo que ele tanto denunciara e essa adesão levou a que o nosso personagem encerrasse o momento mais fértil e mais consequente de sua militância política. Pôs-se um ponto final no primeiro e grandioso Trotsky, para dar lugar a um segundo Trotsky, que se revelou um grande agitador e articulador político e, como tal, conquistou a posição de Presidente do soviete de Petrogrado e comandante do Comitê Revolucionário Militar, prestou-se a conduzir, competentemente, a política externa da URSS, organizou e comandou o Exército Vermelho de gloriosos embates, enfim, foi um grande ativista, revelando o seu excepcional talento administrativo.

O segundo trotsky

Por outro lado, brotou um Leon Trotsky que, ao lado de Lênin, se dispôs a atropelar as leis da História e a perseguir uma vitória a qualquer preço, quando, já em 1921, todos os elementos da derrota estavam colocados. Foi nesse momento fatídico momento histórico que Lênin e Trotsky propuseram a supressão do direito de tendência, a imposição do partido único, a supressão do livre debate pela instituição do monolitismo, a organização de uma polícia política, a criação de campos de concentração e trabalhos forçados para os dissidentes, fossem eles de direita ou socialistas e, dessa forma, contribuíram enfaticamente para estabelecer as bases de uma progressiva degradação política, cuja culminância foi a conquista plena do poder através da figura sinistra de Joseph Stalin.

Por que o segundo Trotsky, o Trotsky bolchevique, não fez nenhuma referência à Oposição Operária liderada por Alexandra Kollontai contra os desvios da revolução? Por que ao invés de acatar as críticas da Oposição Operária, o segundo Trotsky ocupou-se em caluniá-la e persegui-la? Por que o segundo Trotsky, que elogiara o soviete de Kronstadt, chamando-o de perola da revolução socialista, baseado em calúnias, resolveu reprimi-lo a ferro e fogo, como bem faria o próprio Stalin? Por que o segundo Trotsky não se propôs a fazer uma autocrítica afirmando textualmente que o primeiro Trotsky, junto a Rosa Luxemburgo, tinham plena razão quando denunciaram o bolchevismo? Por que o segundo Trotsky resolveu renegar o primeiro Trotsky para se empenhar na tarefa de falsificar a História para se colocar como leninista desde os primórdios? Por que o segundo Trotsky pôs de lado todo o seu domínio do socialismo cientifico para enveredar para o caminho do moralismo idealista, propagando ideias tais como “revolução traída”, “revolução desfigurada” e, sobretudo, a personificação do processo histórico quando lamentou o fato de que uma simples caçada de patos, que o tornara enfermo, havia tido um desfecho histórico tão trágico na medida em que o segundo Trotsky não pudera chegar a tempo ao enterro de Lênin. Por que o segundo Trotsky ao invés de se manter nos limites da dignidade que o seu passado assegurava, se envolveu nas disputas palacianas pelo título de herdeiro de Lênin chegando ao cúmulo de fazer acordos espúrios inclusive com Stalin? Por que o segundo Trotsky ao invés de tantos descaminhos de natureza idealista não cumpriu a mais soberba das tarefas históricas, que seria a de promover uma apreciação crítica, em profundidade, da Revolução Russa denunciando a sua inviabilidade, desde 1921, quando a contra-revolução mundial lograva seguidas vitórias e com mão de ferro desferia um golpe mortal ao projeto leninista-trotskista de vitória a qualquer preço? Por que o segundo Trotsky não recorreu às posições lúcidas manifestadas por socialistas da estirpe de Rosa Luxemburgo, Julio Martov, Pavel Axerold, Alexandra Kollontai, que desesperadamente apelou para que Lênin e Trotsky não tomassem o caminho do suicídio revolucionário?

Essas indagações merecem ser tratadas com o necessário rigor, para que assim possamos compreender que a tragédia da humanidade, cuja expressão é a situação política que hoje vivemos, tem como um dos seus fundantes a figura do segundo Trotsky.

Gilvan rocha