Problemas atuais do movimento operário (Internationalisme 1947)

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Este texto de Internationalisme faz parte de uma série de artigos publicados em 1947, intitulados "Problemas Atuais do Movimento Operário". Nestes artigos, Internationalisme entende "movimento operário" ou "movimento revolucionário" como grupos e organizações políticas. Polemiza contra a atmosfera de ativismo entre os grupos que viram, com o fim da Segunda Guerra Mundial, a possibilidade de repetir o processo revolucionário como havia ocorrido no final da Primeira Guerra Mundial, de 1917 a 1923.

Internationalisme analisa, pelo contrário, o fim da Segunda Guerra Mundial como uma profunda derrota da classe operária internacional; as condições não são as mesmas que as do fim da Primeira Guerra Mundial; a classe operária havia sido física e ideologicamente derrotada; a sobrevivência do capitalismo havia acentuado a tendência ao capitalismo de Estado, que modifica o contexto da luta de classes; as condições não estavam, portanto, reunidas para uma retomada geral da luta revolucionária.

Internationalisme luta contra o voluntarismo dos grupos que já propõem a formação imediata do partido, sem levar em conta esse novo contexto do período, tendo como único marco político a repetição, em sua escala microscópica, das posições e orientações do partido bolchevique do período revolucionário, sem nenhum balanço da derrota da revolução e dos erros desse partido. Esses grupos eram divisões do trotskismo e, acima de tudo, eram as frações da Esquerda Comunista Internacional que tinham apoiado a formação de um partido comunista internacionalista (PCInt) na Itália em 1943.

Continuando a crítica que tinha feito desde a constituição do PCInt[1]Internationalisme recorda quais são as condições para a formação de um Partido. A história do movimento operário mostra que o nascimento, o desenvolvimento e o fim, a degeneração ou a traição das organizações políticas do proletariado (Liga dos Comunistas, AIT, Segunda , Internacional Comunista, Partido Bolchevique) estão em estreita relação com a atividade da própria classe operária. Dentro da classe operária, um partido, isto é, uma organização capaz de ter uma influência decisiva no curso dos acontecimentos da luta de classes, só pode surgir se uma tendência para se organizar e se unir contra o capitalismo se expressar na classe, em uma etapa ascendente de luta.

Esta tendência não existia no final da Segunda Guerra Mundial. Os movimentos de greve de 1943 na Itália ou as manifestações contra a fome de 1945 na Alemanha, onde até mesmo a polícia se revoltou contra o poder, são fatos limitados e isolados. Embora demonstrem uma combatividade de classe que todos os grupos reconhecem, permanecem muito limitados e prisioneiros da ideologia e das forças de enquadramento da burguesia, dos partidos de esquerda e dos sindicatos.

Para Internationalisme, este não é o momento para a formação do Partido. Contra aqueles que declaram esta posição como "derrotista", Internationalisme reafirma que o debate não consiste em "construção do Partido" ou "nada", mas quais são então as tarefas dos grupos revolucionários e com a base de qual programa. Para muitos, o que serve como teoria é um pergaminho incoerente que repete as posições da Internacional Comunista, como se nada tivesse acontecido desde o período revolucionário, e que esconde todos os debates que aconteceram antes da guerra.

Na constituição do PCInt há elementos, como Vercesi, que durante a guerra negaram qualquer possibilidade de atividade revolucionária, que se recusou a tomar uma posição contra a guerra, teorizando sobre o "desaparecimento do proletariado", para acabar participando dos "comitês antifascistas"[2]. Há também muitos indivíduos que não participaram nem tomaram conhecimento do trabalho político da esquerda comunista entre as duas guerras mundiais. Respondendo ao chamado de antecessores da década de 1920, que tinham deixado esse trabalho de lado - como Damen e sobretudo Bordiga eles entram nas fileiras do PCInt, sem nunca terem discutido as posições da esquerda.

Internationalisme, que se situa na continuidade do trabalho da Esquerda Comunista, nunca questionou a necessidade de uma atividade revolucionária. Afirma: "(...) o curso da luta de classes não é modificado pela vontade dos militantes, mas também não é modificado independentemente deles". Que atividade? Essa é a questão que Internationalisme coloca às organizações revolucionárias.

A questão da "construção do partido", do PCInt, significa lançar-se em um ativismo sem princípios, um partido feito de retalhos, com restos de diferentes tendências, incluindo grupos que participaram junto com a burguesia na "resistência antifascista". Para Internationalisme, pelo contrário, tratava-se de continuar o trabalho da fração comunista, continuar fazendo o balanço da onda revolucionária anterior (dos anos 1920), tirar lições da derrota e do período de guerra, manter, segundo os meios disponíveis, uma constante propaganda contracorrente, manter o máximo possível o confronto e a discussão em um meio revolucionário tão reduzido pelas condições da época.

Em 1947, Internationalisme pôde comprovar o fracasso de grupos que durante anos confundiram sua própria agitação com a atividade de classe, levando à desmoralização e à dispersão de forças militantes imaturas e reagrupadas precipitadamente, que se enganam, sem qualquer discussão, com perspectivas que nada têm a ver com a realidade.

Havia grupos dissidentes trotskistas que abandonaram o marxismo e se deslocaram. O PCInt, que inicialmente tinha cerca de 3000 membros, estava envolvido num processo de dispersão e abandono em massa. E os dirigentes desse partido, em vez de perceberem as verdadeiras causas desses fenômenos, dão explicações tais como "é uma questão de transformar quantidade em qualidade".

Contra essas distorções, Internationalisme explica o que estava acontecendo denunciando, de um lado, a incapacidade de entender esse período de pós-guerra e, de outro, os métodos utilizados e defendidos pelo PCInt, métodos que negam o aprofundamento político e teórico pelo conjunto de militantes.

 Estes métodos são baseados num conceito errôneo de luta de classes e da tomada de consciência; o conceito de que a consciência só pode ser levada para a classe trabalhadora "de fora". Esse conceito, que o PCInt toma de Lênin, o qual, em seu trabalho Que Fazer? o tinha tomado emprestado de Kautsky. Esta visão não concebe a consciência como algo próprio da classe trabalhadora como um todo, em cujo seio o partido é a expressão mais clara e decisiva quanto aos meios e objetivos gerais do movimento. Eles a concebem como algo característico de uma minoria iluminada que possui o conhecimento teórico que ela deve "trazer" para a classe.

Tal conceito aplicado à esfera do partido leva a teorizar que apenas os indivíduos como tal são capazes de aprofundar a teoria revolucionária e depois destilá-la e entregá-la triturada e digerida, por assim dizer, aos membros da organização.

É esta concepção de chefe genial, o único capaz de realizar o trabalho teórico da organização, que critica neste trecho de "Problemas Atuais do Movimento Operário" que publicamos aqui. A atitude que o PCInt defendeu em relação a Bordiga, e que continua a manter hoje em dia em geral em relação às questões teóricas do movimento operário, está ligada a esta concepção. Serve de base para a recusa em discutir abertamente todas as questões e orientações da organização. Para os militantes significa obediência servil e confiança cega nas orientações políticas elaboradas unicamente pelo centro da organização; significa ausência de formação autêntica.

A visão esclerótica do PCInt sobre os métodos de uma organização revolucionária contra a qual Internationalisme lutava já em 1947, continuam a causar estragos hoje, e em particular, nos grupos que se reivindicam do "leninismo". Diante das dificuldades que a atual aceleração da história acarreta, estes critérios só agravam o oportunismo e o sectarismo num meio revolucionário em dificuldades[3].

Contrariamente a esta visão, o partido, como qualquer organização revolucionária, só pode cumprir sua função se for um lugar de elaboração permanente e coletiva por todos seus membros das orientações políticas. Isto implica que deve haver uma discussão a mais aberta e ampla possível, à imagem da classe trabalhadora, cuja emancipação exige uma ação consciente e coletiva da qual participem todas as partes e todos os membros da classe.

O conceito de chefe genial (Internationalisme n° 25 – Agosto 1947) [Extratos]

Não é algo novo na política que um grupo mude radicalmente sua maneira de ver e agir quando se torna uma grande organização, um partido de massas. Poderíamos citar muitos exemplos destas metamorfoses. Isso também poderia ser dito, e com razão, do partido bolchevique depois da revolução. O que é surpreendente, no que diz respeito ao Partido Comunista Internacionalista de Itália, é a rapidez com que as mentes dos seus principais dirigentes fizeram esta mudança. E isso é ainda mais surpreendente porque, afinal, o PCInt da Itália ainda é, tanto em quantidade quanto a sua função, no máximo, uma fração ampla.

Como é que esta mudança pode ser explicada?

O Partido Comunista Italiano, por exemplo, quando da sua fundação, animado por uma liderança da Esquerda e de Bordiga nela, foi sempre notado, na Internacional Comunista, como o "filho rebelde". O PCI não aceitava a submissão "a priori" à autoridade absoluta dos chefes, mesmo pelos quais tinha a maior estima. O critério do PC d'Italia era que a discussão tinha de ser livre e que era necessário lutar contra qualquer posição política que não partilhasse. Desde a fundação da IC, a fração de Bordiga em várias oportunidades estava em oposição e expressava abertamente suas discordâncias com Lênin e outros líderes do Partido Bolchevique, da revolução russa e da IC. Os debates entre Lênin e Bordiga no Segundo Congresso são bem conhecidos. Ninguém pensou em questionar esse direito de livre discussão. Não teria ocorrido a ninguém ver isto como uma "ofensa" à autoridade dos "chefes". Talvez personagens tão velado e servis como Cachin[4] pudessem ficar escandalizados em seu íntimo, mas depois nem sequer ousaram dizê-lo. Mais que isso, a discussão não era considerada como um direito, mas como um DEVER, como o único meio para elaborar, graças ao confronto de ideias e ao trabalho teórico, posições programáticas e políticas necessárias para a ação revolucionária.

Lênin escreveu: "É dever dos militantes comunistas verificar por si mesmos as resoluções das instâncias superiores do partido. Aquele que, na política, acredita em tudo que se diz, é um idiota irrecuperável". E sabemos o que significava o desprezo de Lênin por estes termos "idiota irrecuperável". Lênin insistiu incessantemente na necessária educação política dos militantes. E aprender, compreender é algo que só pode ser alcançado através da livre discussão, através do confronto geral de ideias pelo conjunto dos militantes sem exceção. E não é apenas um problema de pedagogia, mas uma premissa da elaboração política, do avanço do movimento de emancipação do proletariado.

Depois da vitória do stalinismo e da exclusão da Esquerda da IC, a Fração italiana nunca deixou de lutar contra o mito do líder infalível e, ao contrário de Trotsky, exigiu na oposição de esquerda o maior esforço para o reexame crítico das posições passadas e para o trabalho teórico, através da mais ampla discussão dos novos problemas. A fração italiana fez esse esforço antes da guerra. No entanto, não afirmou ter resolvido todos os problemas; ela própria, como é sabido, estava muito dividida em questões de primeira importância.

Devemos notar, no entanto, que todas essas boas disposições e tradições desapareceram com a formação do Partido. O PCInt é atualmente o agrupamento revolucionário onde a discussão teórica e política é menor, se é que existe alguma. A guerra e o pós-guerra levantaram uma série de novos problemas. Nenhum deles foi abordado nas fileiras do partido italiano. Basta ler os escritos e jornais do partido para perceber sua grande miséria teórica. Quando se lê a ata da Conferência Constituinte do Partido, pergunta-se se ocorreu em 1946 ou em 1926. Um dos líderes do partido, o camarada Damen, aparentemente, tinha razão ao dizer que o partido se recolheu e ressurgiu com as posições de... 1925. O que para ele é uma força, as posições de 1925, expressam claramente o terrível atraso teórico e político, ressaltando a enorme fraqueza do partido.

Nenhum outro período na história do movimento operário atrapalhou tanto as aquisições e colocou tantos problemas novos como este período relativamente curto entre 1927 e 1947, nem mesmo o período transcorrido de 1905 a 1925 tão carregado e atribulado. A maioria das teses fundamentais, as bases da IC, envelheceram e caducaram. As posições sobre a questão nacional e colonial, sobre tácticas, sobre bandeiras democráticas, o parlamentarismo, os sindicatos, o partido e as suas relações com a classe devem ser radicalmente revisadas. Além disso, é necessário responder a problemas como o Estado depois da revolução, a ditadura do proletariado, as características do capitalismo decadente, o fascismo, o capitalismo de Estado, a guerra imperialista permanente, novas formas de luta e a organização unitária da classe trabalhadora. Problemas que a IC mal podia vislumbrar e resolver e que surgiram claramente após a degeneração da Internacional.

Quando, diante da imensidão destes problemas, leem-se as intervenções na Conferência de Turim, repetidas ad nauseum como ladainhas as velhas posições de Lênin em A Doença Infantil do Comunismo,  caducas já antes mesmo de serem escritas, quando se vê o partido retomar como se nada tivesse acontecido, as velhas posições de 1924 de participação nas eleições  burguesas e na luta dentro dos sindicatos,  então nos damos conta da medida do atraso político desse partido e tudo o que lhe resta para recuperar.

E é, no entanto, esse partido que é o mais atrasado, repitamos, no que respeita ao trabalho da Fração de pré-guerra, o que mais se opõe a qualquer discussão política interna ou pública, e é nesse partido onde a vida ideológica é mais desbotada.

Como se explica isso? A explicação foi-nos dada por um dos líderes desse partido, numa conversa que teve conosco[5]. Ele nos disse: "O partido italiano é formado, em sua grande maioria, por pessoas novas sem formação teórica e virgens na política. Os antigos militantes estiveram isolados por 20 anos, apartados de qualquer movimento de pensamento. No estado atual, os militantes são incapazes de abordar os problemas da teoria e da ideologia. A discussão serviria apenas para perturbar o seu ponto de vista, e lhes faria mais mal do que bem. Por ora, o que eles precisam é caminhar em terreno firme, mesmo que seja com posições antigas, desatualizadas, mas já formuladas e compreensíveis para eles. Por ora, basta agrupar as vontades para a ação. A solução dos grandes problemas levantados pela experiência entre as duas guerras requer calma e reflexão. Somente um "grande cérebro" pode abordá-los com benefício e dar a resposta que eles precisam. A discussão geral só espalharia confusão. O trabalho ideológico não é responsabilidade da massa de militantes, mas dos indivíduos. Enquanto estes indivíduos brilhantes não tiverem emergido, não podemos esperar avanços ideológicos. Marx, Lênin, eram indivíduos assim, gênios desse tipo no passado. Temos de esperar agora, a chegada de um novo Marx. Nós, na Itália, estamos convencidos de que Bordiga será esse novo gênio. Agora ele está trabalhando em um trabalho conjunto que conterá as respostas para os problemas que dizem respeito aos militantes da classe operária. Quando este trabalho aparecer, os militantes terão que assimilá-lo e o partido terá que alinhar sua política e sua ação em função desses novos militantes."

Esse discurso, que reproduzimos quase palavra por palavra, contém três elementos. Em primeiro lugar, há a constatação do baixo nível ideológico dos membros do partido. Em segundo lugar, o perigo da abertura de amplos debates no partido, porque eles perturbarão os seus membros, roubando-lhes a coesão. Em terceiro lugar, que a solução de novos problemas políticos Só pode vir de um "cérebro genial".

Sobre o primeiro ponto, o camarada dirigente tem toda a razão. É um fato inquestionável, mas é de se supor que isso deveria incitá-lo a considerar o que vale esse partido, o que esse partido pode representar para a classe operária, o que esse partido poderia trazer para ela.

Já vimos a definição de Marx do que distingue os comunistas do proletariado como um todo. Sua consciência dos objetivos gerais do movimento e dos meios para alcançá-los. Ora, acontece que os membros do partido italiano não se enquadram nessa definição, uma vez que o seu nível ideológico não excede de forma alguma o do proletariado no seu conjunto; será que se pode falar então de um partido comunista? Bordiga formulou muito precisamente a essência do partido como um "corpo de doutrina e uma vontade de agir". Se falta esse corpo de doutrina, nem mil reagrupamentos formam o partido. Para sê-lo de verdade, a primeira tarefa do PCInt é a formação ideológica dos quadros, ou seja, o trabalho ideológico anterior para poder se tornar um verdadeiro partido.

Essa não é a ideia de nosso líder do PCInt, que acredita, ao contrário, que este trabalho pode perturbar a vontade de ação de seus membros. O que dizer de tal forma de ver, de tais ideias senão que sejam simplesmente ABERRANTES?  Será necessário lembrar, por exemplo, as valiosas passagens do Que Fazer? em que Lênin cita Engels sobre a necessidade de luta em três frentes: a econômica, a política e a ideológica?

Sempre existiram esses socialistas que temiam que a discussão e a expressão das divergências pudessem perturbar a boa ação militante. Este socialismo pode ser chamado de socialismo obtuso ou socialismo da ignorância.

Contra Weitling, um líder reconhecido, o jovem Marx fulmina: "O proletariado não precisa de ignorância". Se a luta de ideias pode perturbar a ação dos militantes, não seria ainda mais verdadeira no proletariado como um todo? Se seguirmos essas ideias, é melhor dizer adeus ao socialismo, ao não ser de professar que o socialismo é equivalente à ignorância. Estes são conceitos de igreja, que temem que as mentes de seus fiéis sejam perturbadas se muitos problemas doutrinários forem levantados.

Ao contrário da afirmação de que os militantes só podem agir com certeza, "mesmo que estas se baseiem em posições falsas", afirmamos que não há certezas, o que existe é a superação constante das verdades. Só uma ação baseada nos dados mais recentes, que se enriquece continuamente, é revolucionária. Ao contrário, a ação baseada em verdades ultrapassadas e obsoletas é estéril, prejudicial, reacionária. Querem alimentar os seus militantes com verdades absolutamente certas e boas, quando só as verdades relativas, que contêm a sua antítese de dúvida, podem dar uma síntese revolucionária.

Se a dúvida e a controvérsia ideológica podem perturbar a ação dos militantes, seria necessário explicar por que isso seria válido apenas para os nossos dias. Em cada etapa da luta surge a necessidade de superar as posições anteriores. A cada momento se questiona a validade das ideias adquiridas e das posições tomadas. Estaríamos em um círculo vicioso: ou é uma questão de refletir, raciocinar e, portanto, não se pode agir, ou é uma questão de agir sem saber se nossa ação é baseada em um raciocínio bem pensado.

A que bela conclusão nosso líder da PCInt chegaria se fosse lógica com suas premissas! Em qualquer caso, o que o PCInt consegue é fabricar o tipo ideal de "idiota irrecuperável" de que Lênin falava. Seria o "perfeito idiota" elevado à categoria de membro ideal do PCInt da Itália.

Todo o raciocínio do líder sobre a impossibilidade "momentânea" de fazer pesquisa e controvérsia teórico-política dentro do PCInt, não se justifica em nenhuma circunstância. A perturbação causada pelas controvérsias é precisamente a condição para a formação do militante, a condição de que a sua ação possa ser baseada numa convicção que deve ser constantemente testada, compreendida e enriquecida. Esta é a condição fundamental da ação revolucionária. Sem ela não há nada além de obediência cega, cretinismo e servilismo.

O pensamento íntimo do nosso líder está, no entanto, no terceiro ponto. Essa é a sua crença profunda. Os problemas teóricos da ação revolucionária não se resolvem com controvérsias e discussões, mas graças ao cérebro brilhante de um indivíduo, do chefe. A solução não está no trabalho coletivo, mas no individual do pensador isolado em sua mesa, que tira os elementos fundamentais da solução de sua mente brilhante. Uma vez terminado esse trabalho, com a solução dada, resta à massa de militantes, ao partido no seu conjunto, apenas assimilar essa solução e alinhar a sua ação política com ela. As discussões acabariam por ser contraproducentes ou, pelo menos, um luxo inútil, uma estéril perda de tempo. E para apoiar tal tese, eles usam nada menos que o exemplo de Marx.

O líder tem uma ideia curiosa de Karl Marx. Nunca outro pensador foi menos "homem de escritório" do que o Marx. Menos do que em qualquer outro, pode-se caminhar separando em Marx o homem de ação, o militante, do pensador. O pensamento de Marx amadurece em relação direta não com a ação dos outros, mas com sua ação junto com outros no movimento geral. Não há ideia em seu trabalho que Marx não tenha exposto ou se oposto, em conferências e controvérsias, a outras ideias ao longo de sua atividade. É por isso que o seu trabalho respira essa frescura e vitalidade expressiva. Todo o seu trabalho, incluindo O Capital, não passa de uma controvérsia contínua em que a pesquisa teórica mais árdua e abstrata está intimamente ligada à discussão e às polêmicas. É uma forma curiosa de ver o trabalho de Marx, considerá-lo como um produto da miraculosa composição biológica de seu cérebro!

De modo geral, o tempo dos gênios na história humana acabou. O que foi genial no passado? Isso se deveu à relação entre o nível muito baixo de conhecimento humano médio e o conhecimento de alguns indivíduos de elite, entre os quais a diferença era imensurável. Em estágios mais baixos do desenvolvimento do conhecimento humano, o conhecimento muito relativo poderia ser fruto de uma aquisição individual, assim como a produção, que poderia ter um caráter individual. O que distingue a ferramenta da máquina é a mudança de seu caráter, que de ser um produto rudimentar de um trabalho privado torna-se um produto complicado, fruto de um trabalho social coletivo. O mesmo acontece com o conhecimento em geral. Enquanto era algo elementar, um indivíduo isolado podia abraçá-lo em sua totalidade. Com o desenvolvimento da sociedade e da ciência, o conhecimento já não pode ser abraçado pelo indivíduo, mas pela humanidade como um todo. A distância entre o gênio e a média dos homens diminui na mesma proporção em que a soma do conhecimento humano aumenta. A ciência, tal como a produção econômica, tende a se socializar.  Do gênio, a humanidade passou para o sábio isolado e do sábio isolado para a equipe de sábios. Para produzir, é necessário contar com a colaboração de grandes massas de trabalhadores; esta mesma tendência à divisão se encontra na produção "espiritual", e é isso que assegura seu desenvolvimento. O gabinete do sábio deu lugar para o laboratório no qual as equipes de sábios cooperam, assim como a oficina do artesão deu lugar para as grandes fábricas.

O papel do indivíduo tende a diminuir na sociedade humana, não como um indivíduo sensível, mas como um indivíduo que emerge da massa confusa e está acima dela. O homem indivíduo está dando lugar ao homem social. A oposição da unidade individual à sociedade será resolvida pela síntese de uma sociedade em que todos os indivíduos recuperam a sua verdadeira personalidade. O mito do gênio não pertence ao futuro da humanidade. Vai acabar por ocupar um lugar no museu da pré-história juntamente com o mito do herói e do semideus.

Podemos pensar o que quisermos do papel decrescente do indivíduo na história da humanidade. Pode-se ser a favor ou lamentar. O que não se pode negar é o processo. Para poder continuar produzindo com técnicas evoluídas, o capitalismo foi obrigado a estabelecer uma instrução geral. A burguesia tem sido forçada a abrir mais e mais escolas, na medida em que isso seja compatível com seus interesses. Foi obrigada a permitir que as crianças dos proletários tivessem acesso a uma instrução mais elevada.

Nesse sentido, a burguesia elevou a cultura geral média da sociedade. Mas não pode ir além de um certo grau sem afetar a sua própria dominação, tornando-se assim um obstáculo ao desenvolvimento cultural da sociedade. Esta é uma das expressões da contradição histórica da sociedade burguesa que só o socialismo poderá resolver. O desenvolvimento da cultura e da consciência constantemente superado será o resultado, mas também a condição do socialismo. E agora, acontece que um homem que se diz marxista, que se apresenta como um dos líderes de um partido comunista, nos fala e nos pede para esperar pelo gênio salvador.

Para nos convencer, o líder contou-nos a seguinte anedota: Um dia, foi à casa de Bordiga, que não via há 20 anos, e pediu a sua opinião sobre alguns dos seus escritos teóricos e políticos. Depois de os ler, Bordiga, que os tinha julgado equivocados, ter-lhe-ia perguntado o que tencionava fazer com eles; publicá-los na revista do partido, o nosso líder respondeu. Bordiga teria respondido que, como não tinha tempo para fazer a pesquisa teórica necessária para refutar o conteúdo destes artigos, ele se opunha à sua publicação. E que se o partido fizesse o contrário, retiraria a sua colaboração literária. A ameaça de Bordiga foi suficiente para o líder renunciar à publicação dos seus artigos.

Esta anedota, que o líder nos disse como algo exemplar, deveria servir para nos convencer da grandeza do professor e da contenção do aluno. Na realidade, o que nos deixa é um sentimento doloroso. Se é verdade, dá-nos uma ideia do estado de espírito que reina no PCInt de Itália, um estado de espírito lamentável. Em outras palavras, não é o partido, a massa de militantes, a classe operária em seu conjunto, que deve julgar se tal ou tal posição seria justa ou errada. As massas nem sequer devem ser informadas. O "mestre" é o único juiz do que ela pode entender e do que deve ser informada. A preocupação sublime é não "perturbar" a quietude das massas! E se o "mestre" estiver errado? Isso é impossível, eles nos dirão, porque se o "mestre" está errado, como pode um simples mortal ter sequer a possibilidade de julgá-lo? O fato é que outros "mestres" já se equivocaram, por exemplo, Marx, Lênin. Ah, mas isso não acontecerá com "nosso mestre", com o Verdadeiro. E se isso acontecer, só o futuro "mestre" terá de endireitar as coisas. Esse é um conceito de pensamento tipicamente aristocrático. Não negamos o grande valor que o conhecimento do especialista, do sábio, do pensador pode ter, mas rejeitamos o conceito monárquico de pensamento, o direito divino sobre o pensamento. Quanto ao "mestre" ele mesmo, este deixa de ser um ser humano cujo pensamento se desenvolve em contato com outros humanos e se torna um tipo de Fênix, um fenômeno que se move por si só, a Ideia pura que procura, contradiz e se apreende a si própria como em Hegel.

Esperar o gênio é proclamar a própria impotência; é como a massa que espera aos pés do Sinai a chegada não se sabe de que Moisés que traz consigo não se sabe que mandamentos da inspiração divina. É a expectativa mais antiga e eterna do Messias que deve levar a liberdade ao seu povo. O já velho canto revolucionário do proletariado, a Internacional, diz: "Nem deus, nem César, nem orador, é o salvador supremo". Seria necessário acrescentar-se "nem gênio", referindo-se especialmente aos membros do PCInt da Itália.

Há múltiplas apresentações e várias dessas visões messiânicas modernas: o culto do "chefe infalível" dos estalinistas, o príncipe Führer dos hilerianos, a filiação dos camisas negras ao Duce. São a expressão da angústia da burguesia decadente que se torna vagamente consciente de seu fim próximo e que tenta salvar-se a si mesma ajoelhando-se diante do primeiro aventureiro. O conceito de gênio faz parte da mesma família de divindades.

O proletariado não deve ter medo de olhar a realidade de frente, porque o futuro do mundo lhe pertence.

 


[1] Ver, "A tarefa do momento:  formação do partido ou formação dos quadros" in Revista Internacional n° 32, 1983 (versão em francês ou inglês).

[2] Pode-se ler o livro publicado pela CCI em francês e espanhol Contribuição para a história da Esquerda Comunista na Itália.

[3] Ver: Convulsões atuais do meio revolucionário, na Revista Internacional, nº 28, 1982. Em francês Convulsions actuelles du milieu révolutionnaire.

[4] Marcel Cachin, um conhecido "homem político" do estalinismo francês. Ex-parlamentar do Partido Socialista Francês (SFIO), foi diretor do gabinete do ministro socialista Sembat durante a Primeira Guerra Mundial. Patriota profissional, estava encarregado de entregar fundos do Estado francês a Mussolini para que pudesse levar a cabo uma campanha pela entrada da Itália na guerra ao lado da Entente. Em 1920, ele se tornou partidário da...  Internacional Comunista, prosseguindo a sua carreira parlamentar; acabou por ser, até à sua morte, um dos partidários mais servis de Stálin.

[5] Conversação com Vercesi

Rubric: 

Construção da organização revolucionaria