França: Diante da barbárie do estado burguês, a violência cega é um beco sem saída

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Este artigo foi recentemente publicado online pela seção francesa da CCI. Os atos de violência entre jovens descritos no artigo ocorreram na França, mas não são específicos do país, mas são uma característica deste mundo em decomposição. Da mesma forma, a solução para a tragédia que o capitalismo inflige diariamente à humanidade e a seus jovens está em escala global: a derrubada de um sistema que é incapaz de oferecer aos jovens dos subúrbios qualquer perspectiva que não seja o desemprego, a morte brutal na esquina da rua nas mãos de gangues ou da polícia, ou como consequência do comportamento antissocial e mortal de outros jovens que são um puro reflexo do mundo em que vivemos. 

A trágica morte do jovem Nahel, em Nanterre, nos subúrbios de Paris, assassinado por um policial, acendeu o barril de pólvora. Imediatamente, tumultos eclodiram em vilas e cidades em toda a França contra essa injustiça desprezível.

O terror do estado burguês e sua polícia

Como comprovado através do vídeo que circulou imediatamente nas redes sociais, Nahel foi morto friamente, à queima-roupa, simplesmente por recusar em obedecer. Este assassinato faz parte de uma longa lista de pessoas mortas e feridas pela polícia, na maioria das vezes com total impunidade.

A proliferação de abordagens a partir de características faciais, discriminações cínicas e o assédio sistemático de jovens cuja cor da pele é um pouco “escura” são legiões. Toda uma parcela da população, a maioria das vezes pobre, às vezes marginalizada, não suporta mais o racismo permanente de que é vítima, não suporta mais o comportamento arrogante e humilhante de muitos policiais, como o discurso de ódio de que é alvo da manhã a noite na televisão e na internet. O desprezível comunicado de imprensa do sindicato Alliance que se declara “em guerra” contra os “nocivos” e as “hordas selvagens” demonstra esta realidade insuportável.

Mas os repugnantes tons xenófobos de muitos policiais também permitem que todos os defensores da "democracia" e do "estado de direito" mascarem de forma barata o terror e a violência cada vez mais evidentes que o estado burguês e sua polícia exercem sobre a sociedade. Pois o assassinato de Nahel testemunha um aumento do poder da violência do Estado, uma vontade mal velada de aterrorizar e reprimir diante da crise inexorável do capitalismo, diante das inevitáveis reações da classe trabalhadora, como os riscos de explosão social (distúrbios, saques, etc.) que continuarão aumentando no futuro.

Se esta violência se encarna de forma corriqueira pelo controle dos explorados em seu local de trabalho, pelas constantes humilhações e violências sociais infligidas aos desempregados e a todas as vítimas do capitalismo, ela também se expressa no comportamento de cada vez mais violentos por parte significativa da polícia, da justiça e de todo o arsenal repressivo do Estado, seja no dia a dia nos "bairros" ou contra os movimentos sociais.

Desde a lei de 2017, que facilitou as condições em que a polícia pode atirar, o número de assassinatos simplesmente quintuplicou. Desde que essa lei foi aprovada por um governo de esquerda, o de Holande, a polícia está pronta para disparar! Ao mesmo tempo, a repressão aos movimentos sociais continuou a se fortalecer nos últimos anos, como evidenciado pelo movimento dos coletes amarelos que produziu uma multidão de cegos, incapacitados físicos ou feridos. Mais recentemente, a luta contra a reforma da Previdência testemunhou) um terrível desencadeamento da polícia simbolizado pelos inúmeros ataques do BRAV-M[1]. Opositores das megabacias de Sainte-Soline ou imigrantes ilegais expulsos de Mayotte também foram submetidos a uma repressão de extrema violência. A ONU até emitiu condenação pela "falta de contenção no uso da força", mas também a “retórica criminalizadora” do Estado francês. E por um bom motivo! O arsenal de aplicação da lei na França é um dos mais extensos e perigosos da Europa. O uso crescente de granadas de desencaixe, gás lacrimogêneo ou LBDs[2], o uso de carro tanque etc., tendem a transformar os movimentos sociais em verdadeiros cenários de guerra, confrontado com pessoas que as autoridades não hesitam mais em chamar descaradamente de "criminosos" ou   "terroristas".

Os recentes distúrbios foram mais uma oportunidade para a burguesia exercer uma repressão feroz, com o envio de 45.000 policiais, unidades de elite do BRI [3]e do RAID[4], veículos blindados da gendarmaria, drones de vigilância, tanques anti-motim, canhões de água, helicópteros… Em 2005, os tumultos nos subúrbios duraram três semanas porque a burguesia tentou acalmar as coisas evitando mais uma morte. Hoje, a burguesia busca se impor imediatamente pela força e impedir que a situação saia do controle. Diante de tumultos muito mais violentos e generalizados do que em 2005, ela golpeia com força decuplicada.

Quanto mais a situação se deteriora, mais o Estado, na França como em todo o mundo, é de fato forçado a reagir pela força e pela abundância de meios repressivos. Mas o uso de violência física e legal[5] acentua paradoxalmente a desordem e a barbárie que a burguesia procura conter. Ao lançar seus cães contra as populações em precariedade por anos, ao multiplicar discursos odiosos e racistas no mais alto nível do estado e na mídia, a burguesia criou as próprias condições para uma imensa explosão de raiva e violência cega. No futuro, é certo que a repressão brutal dos motins que abalaram a França nos últimos dias também levará a mais violência e mais caos. O governo de Macron apenas colocou uma tampa em um incêndio que continuará a arder.

Uma revolta sem perspectiva

O assassinato de Nahel foi a gota d’água. Uma raiva imensa explodiu simultaneamente em toda a França, estendendo até a Bélgica e a Suíça. Confrontos muito violentos com a polícia ocorreram em todos os lugares, especialmente nos grandes centros urbanos de Paris, Lyon e Marselha. Por toda parte, prédios públicos, lojas, mobiliário urbano, ônibus, bondes, muitos veículos foram destruídos por manifestantes incontroláveis, às vezes muito jovens, com apenas 13 ou 14 anos. Os incêndios devastaram centros comerciais, câmaras municipais, postos policiais, mas também escolas, ginásios, bibliotecas, etc. Os saques aumentaram rapidamente em lojas e supermercados, às vezes por algumas roupas, outras vezes por comida.

Esses motins expressaram ódio real diante do comportamento dos policiais, diante de sua violência permanente, das humilhações, do sentimento de injustiça, da impunidade? Mas como podemos explicar a escala da violência e a extensão do caos, quando o governo inicialmente expressou a indignação após o assassinato de Nahel e prometeu sanções exemplares?

A morte trágica de um adolescente foi o estopim desses motins, uma faísca, mas é o contexto de aprofundamento da crise do capitalismo e todas as suas consequências sobre as populações mais precarizadas, mais marginalizadas que são a verdadeira causa e o combustível da revolta, que está na origem de um profundo mal-estar que acabou por explodir. Contrariando as conversas de botequim de Macron e sua camarilha rejeitando a responsabilidade sobre os "videogames que intoxicaram" os jovens, ou sobre os pais que deveriam dar "duas bofetadas nos seus filhos", os jovens da periferia, já vítimas de discriminação crônica, são duramente atingidos pela crise, pela marginalização crescente, pelo empobrecimento extremo, pelos fenômenos de recursos individuais que por vezes os levam a recorrer a todos os tipos de tráfico. Em suma, pelo abandono e pela ausência de perspectiva.

Mas longe de exercer uma violência organizada consciente de seus objetivos, os motins explodiram a raiva cega de jovens sem bússola, que agiram de forma desesperada e sem perspectiva. As primeiras revoltas nos subúrbios surgiram na França mais ou menos no início da fase de decomposição do capitalismo: desde as de 1979 em Vaux-en-velin, perto de Lyon, até as de hoje. Como já sublinhamos no passado, os motins têm em comum ser uma “expressão do desespero e da falta de futuro que ele engendra e que se manifesta pelo seu caráter totalmente absurdo. É o caso dos motins que incendiaram os subúrbios da França em novembro de 2005[...]. O fato de terem sido os próprios familiares, vizinhos ou parentes as principais vítimas das depredações revelam o caráter totalmente cego, desesperado e suicida desse tipo de motim. São, de fato, os veículos dos trabalhadores que vivem nestes bairros que foram incendiados, as escolas ou ginásios frequentados pelos seus irmãos, irmãs ou filhos dos seus vizinhos que foram destruídos. E é justamente pelo absurdo desses motins que a burguesia pôde aproveitá-los e voltá-los contra a classe trabalhadora”.[6]

Ao contrário de 2005, quando os distúrbios permaneceram relativamente confinados aos subúrbios, como o de Clichy-sous-bois, os distúrbios deste início do verão de 2023 na Europa, atingem agora os centros urbanos, o coração das cidades até então protegidas e até pequenos aglomerados de províncias outrora poupados, como Amboise, Pithivier ou Bourges, também foram vandalizadas. A exacerbação das tensões e o profundo desespero que anima seus atores só fizera aumentar e amplificar esse fenômeno.

As revoltas, um perigo para o proletariado

Ao contrário de tudo o que podem afirmar os partidos da esquerda do Capital, os trotskistas do NPA e os anarquistas à frente, os motins não são um terreno favorável para a luta de classes, nem uma expressão desta, mas muito pelo contrário, um perigo real. De fato, a burguesia pode explorar tanto mais facilmente a imagem do caos exibida pelos motins quanto eles sempre fazem dos proletários as vítimas colaterais:

– pelos estragos e destruições causados que penalizam os próprios jovens e os seus vizinhos;

– pela estigmatização dos “suburbanos” apresentados como “selvagens” que estão na origem de todas as mazelas da sociedade;

– pela repressão que encontra aí um motivo de ouro para se fortalecer contra todos os movimentos sociais e, portanto, particularmente contra as lutas dos trabalhadores.

Esses motins, portanto, permitem à burguesia desencadear toda uma propaganda para isolar ainda mais a classe trabalhadora dos jovens dos subúrbios em revolta. Como em 2005, “a exagerada cobertura da mídia permitiu que a classe dominante pressionasse o maior número possível de trabalhadores nos bairros populares a considerar os jovens manifestantes não como vítimas do capitalismo em crise, mas como 'bandidos'. Só poderiam vir a minar qualquer reação de solidariedade da classe trabalhadora para com esses jovens”.[7]

A burguesia e os seus meios de comunicação instrumentalizaram assim muito facilmente os acontecimentos ao favorecer as amálgamas entre os motins e a luta dos trabalhadores, entre a violência cega e gratuita, os confrontos estéreis com a polícia e o que pertence à luta de classes consciente e organizada. Ao criminalizar um, pode desencadear cada vez mais violência contra o outro! Não por acaso, durante o movimento contra a reforma da previdência, as imagens que circulavam nas emissoras de televisão de todo o mundo eram cenas de confrontos com a polícia, violência e queima das lixeiras. Tratava-se de traçar uma linha de igualdade entre essas duas expressões de lutas sociais, de natureza radicalmente diferente, na tentativa de dar uma imagem de continuidade e perigosa desordem. O objetivo era ocultar e impedir que os trabalhadores aprendessem as lições de suas próprias lutas, sabotar a reflexão iniciada sobre a questão da identidade de classe. Os motins na França foram a oportunidade perfeita para reforçar esse amálgama.

A classe trabalhadora tem métodos próprios de luta que se opõem radicalmente aos motins e simples revoltas urbanas. A luta de classes não tem absolutamente nada a ver com a destruição cega e a sua correspondente violência, os incêndios, o sentimento de vingança e o saque que não oferecem perspectiva nem amanhã.

Embora possam se coordenar através das redes sociais, sua abordagem tumultuada é imediata e puramente individual, guiada pelo instinto dos movimentos da multidão, sem outro objetivo que a vingança e a destruição. A luta da classe trabalhadora situa-se diametralmente oposta a essas práticas. Uma classe cujas lutas imediatas fazem parte, ao contrário, de uma tradição, de um projeto consciente e organizado, com vistas à derrubada da sociedade capitalista em escala mundial. Nesse sentido, a classe trabalhadora deve cuidar para não se deixar arrastar para o terreno podre dos motins, pela ladeira da violência cega e gratuita e muito menos pelos confrontos estéreis com as forças da ordem, que só justificam a repressão.

Ao contrário dos motins que reforçam o braço armado do Estado, as lutas dos trabalhadores, quando unitárias e ascendentes, possibilitam o retrocesso da repressão. Em maio de 1968, por exemplo, diante da repressão estudantil, os movimentos de massa e a união dos trabalhadores permitiram limitar e reverter a violência dos policiais. Da mesma forma, quando os trabalhadores poloneses se mobilizaram em 1980 em todo o território em menos de 48 horas, eles se protegeram por sua unidade e auto-organização da extrema brutalidade do estado “socialista”. Foi somente quando eles entregaram sua luta ao sindicato Solidarnosc, quando este recuperou o controle da luta, quando os trabalhadores foram assim divididos e despojados da direção da luta, que a repressão foi selvagemente desencadeada.

A classe trabalhadora deve permanecer cautelosa e surda ao perigo representado pela violência cega, para se opor com a sua própria violência de classe, a única que tem futuro.

WH , 3 de julho de 2023


[1] Brigada de Repressão a Ação Violenta Motorizada

[2] Lançador de bolas de defesa

[3] BRI : Brigada de Pesquisa e Intervenção

[4] RAID : Busca, Assistência, intervenção, dissuasão

[5] Após a repressão policial, os milhares de jovens presos receberam sentenças muito pesadas em julgamentos sumários.

[6] Qual é a diferença entre os distúrbios alimentares e os distúrbios suburbanos? Révolution internationale no. 394 (outubro de 2008)

[7] Idem

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França : Motins nos subúrbios