A administração Trump já havia resultado em uma série de fiascos humilhantes, mas letais, para a burguesia norte-americana – dentre os quais o não menos importante os que possibilitaram o agravamento da pandemia do Covid 2020 - mas existiam sempre esperança entre as frações mais lúcidas da classe dominante americana de que ter um narcisista incompetente no poder supremo era apenas um pesadelo passageiro, do qual eles logo acordariam. Mas a vitória eleitoral do Partido Democrata não foi o desmoronamento que se esperava - seja para a nova administração de Joe Biden ou para o novo Congresso.
Pior ainda, um motim televisivo ocorreu no Capitólio, o local sagrado da democracia americana, incitado pelo chefe de Estado em final de mandato que rejeitou os resultados oficiais, validados, das eleições presidenciais! Uma multidão tentou impedir violentamente a sucessão democrática, encorajada pelo próprio presidente em exercício - como em uma república das bananas, como reconheceu George W. Bush. Na verdade, é um momento politicamente decisivo na decomposição do capitalismo mundial. A automutilação populista do Reino Unido através do Brexit pode parecer meramente absurdo para outros países, porque a Grã-Bretanha é uma potência secundária, mas a ameaça de instabilidade representada pela insurreição no Capitólio dos EUA causou choque e medo em toda a burguesia internacional.
A tentativa subsequente de promover o impeachment de Trump pela segunda vez pode muito bem falhar novamente e, em qualquer caso, irá polarizar seus milhões apoiadores dentre a população, incluindo uma grande parte do partido republicano.
A posse do novo Presidente em 20 de janeiro, geralmente uma ocasião para um show de unidade nacional e reconciliação, não será: Trump não comparecerá, ao contrário do costume dos ex-presidentes, e Washington DC estará sob bloqueio militar para evitar mais resistência armada dos partidários de Trump. A perspectiva, então, não é o restabelecimento suave e duradouro da ordem e ideologia democrática tradicional para uma administração Biden, mas uma acentuação - de natureza cada vez mais violenta - das divisões entre a democracia burguesa clássica e o populismo, este último permanecerá com o fim do regime Trump.
Desde 1945 a democracia dos EUA tem sido o carro-chefe do capitalismo mundial. Tendo desempenhado um papel decisivo na vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, que contribuiu para reduzir a Europa e o Japão às ruínas, foi então capaz de arrastar o mundo para fora dos escombros e reconstruí-lo à sua própria imagem durante a Guerra Fria. Em 1989, com a derrota e a desintegração do bloco totalitário rival russo, os EUA pareciam estar no ápice de seu domínio e prestígio global. George Bush Pai anunciou a vinda de uma Nova Ordem Mundial após o colapso do bloco russo em 1989. Washington pensou que poderia manter sua supremacia, impedindo que qualquer nova potência surgisse como um concorrente sério para sua liderança mundial. Mas, ao invés disso, a afirmação de sua superioridade militar acelerou uma desordem mundial com uma série de vitórias de pirro (Kuwait, os Bálcãs nos anos 90) e onerosos fracassos de política externa no Iraque, Afeganistão e Síria. Os Estados Unidos têm minado cada vez mais as alianças nas quais se apoiava na sua antiga liderança mundial e isto tem encorajado outras potências a agirem por sua própria conta.
Além disso, o poder e a riqueza dos EUA não conseguiram atenuar as convulsões crescentes da economia mundial: a centelha da crise de 2008 emanou de Wall Street e engoliu os EUA e o mundo na mais grave crise desde o ressurgimento da crise aberta em 1967.
Como consequências sociais e políticas das reviravoltas dos EUA, e da ausência de alternativas, as divisões e desordens no estado burguês, e na população em geral, aumentaram, levando ao descrédito crescente das normas políticas estabelecidas do sistema político democrático dos EUA.
As presidências anteriores de Bush e Obama não conseguiram forjar um consenso duradouro para a ordem democrática tradicional entre a população como um todo. A "solução" de Trump para este problema não foi resolver esta desunião, mas acentuá-la ainda mais com uma política raivosa e incoerente de vandalismo, que destruiu ainda mais o consenso político e rasgou acordos militares e econômicos com seus antigos aliados no cenário mundial. Tudo isso foi feito sob a bandeira de "America First" - mas na realidade serviu para aumentar a perda de status dos EUA.
Em uma palavra, a atual crise política da democracia norte-americana, simbolizada pela tempestade do Capitólio, complementa as consequências caóticas e autodestrutivas da política imperialista norte-americana e torna mais claro que a potência mundial ainda mais forte está no centro e é a principal protagonista da decomposição do capitalismo mundial em todos os níveis.
A China, apesar de seu crescente poder econômico e militar, não será capaz de preencher o vácuo de liderança mundial criado pela desorientação dos EUA. Notadamente porque esta última ainda é capaz e está determinada a impedir o crescimento da influência chinesa. É seu objetivo principal com ou sem Trump. Por exemplo, um dos planos da Administração Biden será intensificar esta política anti-China com a formação de um D10, uma aliança dos poderes democráticos (o G7 mais a Coréia do Sul, Índia e Austrália). O papel que isto desempenhará no agravamento das tensões imperialistas não precisa ser explicitado.
Mas estas tensões não podem ser canalizadas para a formação de novos blocos por razões óbvias. O agravamento da decomposição do capitalismo torna a possibilidade de uma guerra mundial generalizada cada vez mais improvável.
Em 1989, previmos que o novo período de decomposição do capitalismo traria maiores dificuldades para o proletariado.
Os recentes acontecimentos nos Estados Unidos justificam novamente esta previsão.
O mais importante deles em relação à atual situação dos EUA é o perigo de que setores da classe trabalhadora sejam mobilizados atrás das contestações cada vez mais violentas das frações opostas da burguesia, ou seja, não apenas no terreno eleitoral, mas nas ruas. Partes da classe operária podem ser enganadas na escolha de uma opção entre o populismo e a defesa da democracia, as duas falsas alternativas oferecidas pela exploração capitalista.
Conectado a isto está o fato de que na situação atual outras camadas da população não exploradora sejam cada vez mais impulsionadas para a ação política por toda uma série de fatores: os efeitos da crise econômica, o agravamento da catástrofe ecológica, o fortalecimento da repressão estatal e sua natureza racista, o que os leva a agir como um transmissor para campanhas burguesas como o movimento Black Lives Matter, ou como um apoio para lutas interclassistas.
No entanto, a classe trabalhadora internacional no período de decomposição não foi derrotada como na década de 1930. Suas reservas de combatividade permanecem intactas e os novos ataques econômicos ao seu padrão de vida que estão por vir - que incluirão a conta dos danos econômicos causados pela pandemia do Covid - obrigarão o proletariado a responder em seu terreno de classe.
A organização revolucionária tem um papel limitado mas muito importante a desempenhar na situação atual porque, embora tenha pouca influência ainda, e mesmo por um longo período ainda por vir, a situação da classe trabalhadora como um todo está, no entanto, trazendo uma pequena minoria para posições de classe revolucionárias, notadamente nos próprios EUA.
O trabalho bem sucedido de transmissão a esta minoria repousa sobre uma série de necessidades. Significativa no contexto atual é a combinação, por um lado, de um rigor e clareza programática de longo prazo, ligada, por outro lado, à capacidade da organização de ter uma análise coerente e evolutiva de toda a situação mundial: seu cenário histórico e suas perspectivas.
A situação mundial no último ano bateu novos recordes na putrefação do capitalismo mundial - a pandemia Covid, a crise econômica, a crise política nos EUA, a catástrofe ecológica, a situação dos refugiados, a miséria de partes cada vez maiores da população mundial. A dinâmica do caos está se acelerando e se tornando mais imprevisível, oferecendo novos e mais frequentes desafios a nossas análises e exigindo uma capacidade de mudá-las e adaptá-las de acordo com esta aceleração, sem esquecer nossos fundamentos.
CCI, 16/01/2021
Como se afirma no artigo "40 anos após a fundação da Corrente Comunista Internacional, que balanço e que perspectivas para a nossa atividade", o XXI Congresso da CCI adotou um relatório sobre o papel da CCI como "Fração". Este relatório tinha duas partes, uma primeira apresentando o contexto deste Relatório e um lembrete histórico da noção de "Fração" e uma segunda com a análise concreta de como a nossa organização tinha cumprido as suas responsabilidades. Publicamos aqui a primeira parte do Relatório, que por si só é de interesse geral, para além dos problemas mais específicos que a CCI teve de enfrentar.
O 21º congresso internacional centrou as suas preocupações numa avaliação crítica dos 40 anos de existência da CCI. Este balanço considera:
A resposta a esta segunda questão pressupõe obviamente que o papel da CCI no atual período histórico, um período em que ainda não existem condições para a emergência de um partido revolucionário, ou seja, de uma organização com influência direta nos confrontos de classe, está bem definido:
"Não se pode estudar e compreender a história deste organismo, o Partido, excepto colocando-o no contexto geral das diferentes etapas que o movimento operário está atravessando, dos problemas que enfrenta, do esforço da sua conscientização, da sua capacidade de responder, num dado momento, de forma adequada aos seus problemas, de tirar as lições da sua experiência, e com ele formar um novo trampolim para as suas lutas futuras.
Se já são um fator de primeira ordem no desenvolvimento da classe, os partidos políticos são também, ao mesmo tempo, expressão do estado real da classe num dado momento da sua história" (Revista Internacional nº 35, 1983, "The Party and its links with the class", ponto 9.
"Ao longo do seu movimento, a classe foi submetida ao peso da ideologia burguesa que tende a deformar, a corromper os partidos proletários, a desnaturalizar a sua verdadeira função. As frações revolucionárias opuseram-se a estas tendências, entregando-se à tarefa de elaborar, clarificar e especificar as posições comunistas. Este foi o claramente caso da Esquerda Comunista resultante da Terceira Internacional: a compreensão das questões do Partido passa necessariamente pela assimilação da experiência e das contribuições de toda esta Esquerda Comunista Internacional.
No entanto, a Fração italiana da esquerda comunista tem o mérito específico de ter mostrado a diferença qualitativa existente no processo de organização dos revolucionários de acordo com os períodos: o do desenvolvimento da luta de classes e o das derrotas e dos seus recuos. A FIGC soube esclarecer nitidamente para cada um dos períodos, a forma de organização dos revolucionários e as tarefas correspondentes: no primeiro caso, a forma do Partido, que exerce uma influência direta e imediata na luta de classes; no segundo caso, a de uma organização reduzida numericamente, cuja influência é muito mais débil e pouco operativa na vida da classe. A este tipo de organização deu o nome distintivo de "Fração" que, entre dois períodos do desenvolvimento da luta de classes, ou seja, entre dois momentos da existência do Partido, constitui um link e uma charneira, uma ponte orgânica entre o antigo e o futuro Partido" (Idem, ponto X).
Devemos colocar-nos uma série de questões a esse respeito:
Na primeira parte deste Relatório, trataremos principalmente do primeiro destes quatro pontos, a fim de estabelecer um quadro histórico para a nossa reflexão e permitir-nos abordar melhor a segunda parte do Relatório, que visa responder à questão central acima mencionada: que avaliação pode ser feita sobre a forma como a CCI cumpriu o seu papel na participação da preparação do futuro partido?
A fim de examinar esta noção de Fração nos diferentes momentos da história do movimento operário, que permitiu à Fração italiana elaborar a sua análise, distinguiremos 3 períodos:
Mas para começar, é útil recordar brevemente a história dos partidos proletários, porque lidar com a Fração implica, antes de mais, levantar o problema do Partido, pois este é, de certa forma, o ponto de partida e o ponto de chegada da Fração.
A noção de partido foi gradualmente elaborada, tanto em teoria como na prática, ao longo da experiência do movimento da classe trabalhadora (Liga dos Comunistas, AIT, partidos da II Internacional, partidos comunistas).
A Liga, uma organização clandestina, pertencia ao período das seitas:
"No início do capitalismo moderno, na primeira metade do século XIX, a classe trabalhadora, ainda na sua fase de formação, com as suas lutas locais e esporádicas, só podia dar origem a escolas doutrinárias, seitas e ligas. A Liga dos Comunistas foi a expressão mais avançada desse período, e já com o seu Manifesto e o seu apelo: "Proletários de todos os países, uni-vos", anunciou o período seguinte" ("Sobre a natureza e função do partido político do proletariado", ponto 23, Internationalisme n° 38, Outubro de 1948).
O papel da AIT foi precisamente a superação das seitas, permitindo uma ampla união de proletários europeus e uma decantação relativamente às numerosas confusões que pesavam na sua consciência. E ao mesmo tempo, devido à sua composição heteróclita (sindicatos, cooperativas, grupos de propaganda, etc.) ainda não era um partido no sentido em que esta noção adquiriu mais tarde no seio e graças à Segunda Internacional.
"A Primeira Internacional correspondeu à entrada efetiva do proletariado no cenário das lutas sociais e políticas nos principais países da Europa. É por isso que reuniu todas as forças organizadas da classe trabalhadora, as suas mais diversas tendências ideológicas. A Primeira Internacional juntou todas as correntes e todos os aspectos da luta dos trabalhadores da época: econômicos, educativos, políticos e teóricos. Foi o mais alto na organização unitária da classe trabalhadora, em toda a sua diversidade.
A Segunda Internacional marcou a fase de diferenciação entre a luta econômica dos trabalhadores assalariados e a luta política social. Nesse período de pleno florescimento da sociedade capitalista, a Segunda Internacional foi a organização da luta por reformas e conquistas políticas, representou a afirmação política do proletariado, ao mesmo tempo que determinou uma etapa superior na delimitação ideológica dentro do proletariado, especificando e elaborando as bases teóricas da sua missão histórica revolucionária" (Idem).
Foi na Segunda Internacional que a diferença entre a organização geral da classe (os sindicatos) e a sua organização específica encarregada de defender o seu programa histórico, o partido, foi claramente realizada. Uma distinção que era muito clara quando a Terceira Internacional (Comunista Internacional, IC) foi fundada na altura em que a revolução proletária foi colocada, pela primeira vez, na agenda da história. Para a IC, a organização geral da classe já não era, no novo período, os sindicatos (que, além disso, não agrupam o proletariado como um todo) mas sim os conselhos operários (mesmo que ainda houvesse confusões na IC sobre a questão sindical e sobre o papel do partido).
Entre estas quatro organizações existem muitas diferenças, mas há um ponto comum entre todas elas: tiveram um impacto no curso da luta de classes e por isso mesmo pode ser-lhes atribuído o nome de "partido".
Tal impacto ainda foi fraco para a Liga dos Comunistas durante as revoluções de 1848-49, em que a Liga agiu principalmente como a ala esquerda do movimento democrático. Por exemplo, o Neue Rheinische Zeitung, que Marx editou, e que teve influência na Renânia e mesmo no resto da Alemanha, não é diretamente o órgão da Liga, mas apresenta-se como o "Órgão da Democracia". Como nota Engels: "(...) a Liga provou ser uma alavanca demasiado fraca para aproveitar o movimento desencadeado pelas massas populares" ("Contribuição para a História da Liga dos Comunistas", Novembro de 1885). Uma das causas importantes desta fraqueza reside na própria fraqueza do proletariado na Alemanha, onde a grande indústria ainda não tinha decolado. Isto não diminui a afirmação da Engels de que "Esta [a Liga] foi sem dúvida a única organização revolucionária alemã de importância". O impacto da AIT foi muito mais importante, porque acabou por ser uma "potência" na Europa. Mas foi sobretudo a Segunda Internacional (na verdade através dos diferentes partidos que a compuseram) que, pela primeira vez na história, pôde reivindicar uma influência determinante sobre as massas trabalhadoras.
A questão já foi colocada no tempo de Marx, mas teve uma importância muito maior anos mais tarde: o que acontece com o partido quando a vanguarda que defende o programa histórico da classe trabalhadora, a revolução comunista, não é tem a possibilidade de ter um impacto imediato nas lutas de classe do proletariado?
A tal pergunta, a história tem dado respostas diferentes. A primeira foi dissolver o partido quando as condições para a sua existência não estavam presentes. Assim aconteceu com a Liga e a AIT. Em ambos os casos, Marx e Engels desempenharam um papel decisivo em tal dissolução.
Assim, em Novembro de 1852, após o julgamento dos comunistas de Colônia ter selado a vitória da contrarrevolução na Alemanha, apelaram ao Conselho Central da Liga para uma decisão de dissolução da mesma. Note-se que o problema da ação que a minoria revolucionária deveria empreender num período de reação já tinha sido levantado no seio da Liga no Outono de 1850. Em meados da década de 1850, Marx e Engels notaram que a onda revolucionária estava diminuindo devido à recuperação da economia:
"Tendo em conta esta prosperidade geral em que as forças produtivas da sociedade burguesa se estão se desenvolvendo tão abundantemente como as condições burguesas o permitem, não se pode falar de uma verdadeira revolução. Tal revolução só é possível em períodos em que estes dois fatores, forças produtivas modernas e formas burguesas de produção, estejam em conflito" (Neue Rheinische Zeitung, Politisch-ökonomische Revue, fascículos V e VI).
Acabam por ter de lutar contra a minoria Willich-Schapper imediatista que quer continuar chamando os trabalhadores à insurreição apesar do revés:
"Durante o último debate sobre a questão ''da posição do proletariado alemão na próxima revolução'', houve membros da minoria do Conselho Central que expressaram opiniões que estão em contradição direta com a penúltima circular, mesmo com o Manifesto. Substituíram a concepção internacional do Manifesto por uma nacional e alemã, lisonjeando o sentimento nacional do artesão alemão. Em vez do conceito materialista do Manifesto, eles têm é um conceito idealista: em vez da situação real, é a vontade que se torna a força motriz da revolução. Enquanto dizemos aos trabalhadores: terão de passar por quinze, vinte, cinquenta anos de guerras civis para mudarem as condições existentes e se tornarem aptos para o domínio social, eles dizem, pelo contrário, que temos de chegar ao poder agora, ou então podemos ir dormir! Tal como os democratas usam a palavra "povo", ousam usar a palavra "proletariado", como uma mera frase. Para realizar esta palavra, todos os pequenos burgueses deveriam ser proclamados proletários, ou seja, deveriam representar a pequena burguesia e não o proletariado. Em vez do verdadeiro desenvolvimento histórico, bastaria usar a palavra 'revolução'" (discurso de Marx na reunião do Conselho Central da Liga, 15 de Setembro de 1850).
Da mesma forma, no Congresso de Haia de 1872, Marx e Engels apoiam a decisão de transferir o Conselho Geral para Nova Iorque para o retirar da influência das tendências bakuninistas que estão a ganhar influência numa altura em que o proletariado europeu acaba de sofrer uma importante derrota com o esmagamento da Comuna de Paris. Tirar o Conselho Geral da Europa significava colocar a AIT em suspense, o que foi um prelúdio para a sua dissolução, dissolução que se tornou efetiva na conferência de Filadélfia de Julho de 1876.
De certa forma, a dissolução do partido quando as condições já não permitem a sua existência, foi mais fácil nos tempos da Liga e da AIT do que mais tarde. A Liga era uma pequena organização clandestina (exceto durante as revoluções de 1848-49) que não tinha ocupado um lugar, digamos, "oficial" na sociedade. Quanto à AIT, o seu desaparecimento formal não significou que todos os seus componentes tenham desaparecido. Por exemplo, os sindicatos britânicos ou o partido dos trabalhadores alemães sobreviveram à AIT. O que desapareceu foi a ligação formal entre os seus diferentes componentes.
As coisas serão diferentes depois. Os partidos de trabalhadores já não desaparecem, mas vão até ao inimigo. Tornam-se instituições da ordem capitalista, o que confere aos elementos revolucionários uma responsabilidade diferente da que tinham durante as primeiras fases do movimento operário.
Quando a Liga foi dissolvida, não restava a mínima organização formal para preencher a lacuna para o novo partido que viria a surgir. Marx e Engels também consideraram o trabalho de elaboração teórica e aprofundamento como a primeira prioridade durante este período, e como eram praticamente os únicos na altura que conheciam a teoria que tinham elaborado, não precisavam de uma organização formal para realizar este trabalho. Mas houve alguns antigos membros da Liga que se mantiveram em contato, particularmente na emigração para Inglaterra. Houve mesmo uma reconciliação em 1856 entre Marx e Schapper. Em Setembro de 1864, foi um antigo membro do Conselho Central da Liga intimamente ligado ao movimento operário britânico, Eccarius, que pediu que Marx fosse presente na tribuna da famosa reunião de 28 de Setembro no Saint-Martin's Hall (Londres) onde foi tomada a decisão de fundar a Associação Internacional dos Trabalhadores[1]. E haverá também no Conselho Geral da AIT um número significativo de antigos membros da Liga: Eccarius, Lessner, Lochner, Pfaender, Schapper e, claro, Marx e Engels.
Quando a AIT desapareceu, restaram, como já dissemos, organizações que estarão na origem da fundação da Segunda Internacional, o partido alemão, em particular, fruto da unificação de 1875 (SAP) cuja componente Eisenach (Bebel, Liebknecht) tinha sido filiada à AIT.
É necessário fazer aqui uma nota sobre o papel que estas duas primeiras organizações se deram quando foram constituídas. No caso da Liga, aparece claramente no Manifesto que a perspectiva é a revolução proletária em um curto prazo. E será após a derrota das revoluções de 1848-49 quando Marx e Engels compreenderem que as condições históricas ainda não estavam maduras. E também, quando a AIT foi fundada, existia a ideia de uma "emancipação dos trabalhadores" (assim diz os seus estatutos) a curto ou médio prazo (apesar da diversidade de visões que poderiam abranger esta expressão para as diferentes componentes da Internacional: mutualismo, coletivismo, etc.). A derrota da Comuna de Paris mostrou mais uma vez que as condições para derrubar o capitalismo não estavam maduras: o período seguinte testemunhou um florescimento considerável do capitalismo com a emergência do poder industrial da Alemanha, um país que acabou por ultrapassar a Grã-Bretanha no início do século XX.
Durante este período de prosperidade capitalista, enquanto a perspectiva revolucionária parece distante, os partidos socialistas adquirem uma importância da primeira ordem na classe trabalhadora (particularmente na Alemanha, obviamente). Este impacto crescente, enquanto o ânimo dos trabalhadores não era revolucionário, deve-se ao fato de os partidos socialistas não só defenderem no seu programa a perspectiva do socialismo, mas também, diariamente, defenderem o "programa mínimo" de reformas no seio da sociedade capitalista. Esta situação, aliás, acabará por conduzir a uma oposição entre aqueles para quem "o objetivo final, seja ele qual for, não é nada, o movimento é tudo" (Bernstein) e aqueles para quem "uma vez que o objetivo final do socialismo é o único fator decisivo que distingue o movimento socialdemocrata da democracia burguesa e do radicalismo, o único fator que transforma a mobilização do movimento socialista da burguesia, o único fator que distingue o movimento socialdemocrata da democracia burguesa e do radicalismo, o único fator que transforma a mobilização dos trabalhadores de um vã esforço de reforma da ordem capitalista em luta de classes contra essa ordem, de supressão dessa ordem, (...) a luta diária pelas reformas, pela melhoria da situação dos trabalhadores no quadro da ordem social vigente e pelas instituições democráticas oferece à socialdemocracia o único meio de participar na luta das classes trabalhadoras e de se comprometer com o sentido do seu objetivo final: A conquista do poder político e a supressão do trabalho assalariado" (Rosa Luxemburg na "Introdução" à Reforma ou Revolução). Na realidade, apesar da rejeição oficial da tese de Bernstein pelo SPD[3] e pela Internacional Socialista, esta visão acaba por ser na realidade a maioria naquele partido (no seu aparato sobretudo) e na Internacional.
"A experiência da Segunda Internacional confirma que é impossível para o ] manter o seu partido num período prolongado de uma situação não revolucionária. O que a participação final dos partidos da Segunda Internacional na guerra imperialista de 1914 destacou foi o longo período de corrupção da organização. A permeabilidade e a penetração, sempre possível, da organização política do proletariado da ideologia da classe capitalista dominante, tomam, em períodos prolongados de estagnação e refluxo da luta de classes, uma extensão tal que a ideologia da burguesia acaba por substituir a do proletariado, esvaziando inevitavelmente o partido do seu conteúdo de classe original para acabar finalmente sendo o instrumento de classe do inimigo" ("Sobre a natureza e função do partido político do proletariado", ponto 12 -Internationalisme, Outubro de 1948).
Foi neste contexto, e pela primeira vez, que surgiram verdadeiras frações. A primeira fração é a dos bolcheviques, que, após o Congresso do POSDR de 1903, iniciou a luta contra o oportunismo, primeiro sobre problemas organizacionais e depois sobre questões de tática face às tarefas do proletariado num país semifeudal como a Rússia. É de notar que, até 1917, embora a Fração bolchevique e a Fração menchevique seguissem uma política independente uma da outra, pertenciam formalmente ao mesmo partido, o POSDR[4].
Na Holanda, a corrente marxista que se desenvolveu em torno do semanário De Tribune (dirigido por Wijnkoop, Van Raveysten e Ceton e no qual, entre outros, Gorter e Pannekoek colaboraram) iniciou um trabalho semelhante a partir de 1907 no SDAP[5]. Esta corrente lutou contra a deriva oportunista dentro do partido, representada sobretudo pela fração parlamentar e Troelstra, que, já no congresso de 1908, propôs a proibição de De Tribune. Troelstra finalmente ganhou seu caso no congresso extraordinário em Deventer (13-14 de Fevereiro de 1909) no qual foi decidido encerrar De Tribune e excluir os seus três editores do partido. Esta política, destinada a separar os "chefes" dos tribunistas dos simpatizantes dessa corrente, provocou uma forte reação por parte destes últimos. No final, a política de exclusão de Troelstra, bem como a do Gabinete Internacional da Internacional Socialista, ao qual foi solicitada arbitragem, embora controlada pelos reformistas, mas também a vontade dos três editores de se separarem (que Gorter não partilhou[6]) levaram os Tribunistas a fundar um novo partido, o SDP (Partido Social Democrata), em Março. Este partido, até a guerra mundial, permanecerá muito minoritário, com uma influência eleitoral insignificante, mas beneficia do apoio da esquerda dentro da Internacional, e em particular dos bolcheviques, o que lhe permite, no final, ser reintegrado na SI em 1910 (após uma primeira recusa do BIS – bureau da Internacional Socialista - em Novembro de 1909) e enviar delegados (um mandato contra sete do SDAP) aos congressos internacionais de 1910 (Copenhagem) e 1912 (Basileia). Durante a guerra, na qual os Países Baixos não participaram mas que pesou fortemente na vida da classe trabalhadora (desemprego, carências, etc.), o SPD ganhou influência, mesmo a nível eleitoral, graças à sua política internacionalista e ao seu apoio às lutas dos trabalhadores. Finalmente, o SDP assumirá o nome de Partido Comunista dos Países Baixos (CPN) em Novembro de 1918, mesmo antes da fundação do Partido Comunista da Alemanha (KPD).
A terceira corrente que desempenhou um papel fracionário decisivo em um partido da 2ª Internacional é a que deveria formar a KPD. Desde a noite de 4 de Agosto de 1914, logo após os deputados socialistas do Reichstag terem votado todos a favor dos créditos de guerra, um punhado de militantes internacionalistas reuniu-se na casa de Rosa Luxemburg para definir as perspectivas de luta e os meios de agrupar todos aqueles que, no partido, lutavam contra a política chauvinista da liderança e da maioria parlamentar. Estes militantes foram unânimes em acreditar que a luta tinha de ter lugar no seio do partido. Em muitas cidades, as fileiras do partido expressaram o seu repúdio pelo voto da fração parlamentar a favor dos créditos da guerra. Liebknecht foi mesmo criticado pelo seu voto a favor em 4 de Agosto, por disciplina partidária. Na segunda votação de 2 de Dezembro, Liebknecht foi o único a votar contra, a ele juntado Otto Rühle nas duas votações seguintes, e depois um número crescente de deputados. Já no Inverno de 1914-1915, surgiram panfletos clandestinos (em particular o intitulado "O principal inimigo está no nosso próprio país"). Em Abril de 1915, foi publicado o primeiro e único número de Die Internationale, que vendeu 5000 exemplares já na primeira noite, e deu o seu nome ao Gruppe Internationale, que foi animado por Rosa Luxemburg, Jogiches, Liebknecht, Mehring, Clara Zetkin. Clandestino, sujeito à repressão[7], este pequeno grupo que se autodenominou Grupo Spartacus, depois a Liga Espartaquista (Spartakusbund), promoveu a luta contra a guerra e o governo e também contra a direita e o centro da socialdemocracia. Não foram os únicos envolvidos nesta luta, pois havia outros grupos em Hamburgo e Bremen (onde se encontravam Pannekoek, Radek e Frölich), entre outras cidades, que defendiam uma política internacionalista ainda mais claramente do que os Espartaquistas. No início de 1917, quando a liderança do SPD excluiu os oposicionistas a fim de travar o avanço das suas posições dentro do partido, estes grupos continuaram as suas atividades de forma autônoma, enquanto os Espartaquistas continuaram o seu trabalho de facção dentro do USPD centrista. Finalmente, estas diferentes correntes juntaram-se para formar a KPD em 31 de Dezembro de 1918, embora a espinha dorsal do novo partido fosse, naturalmente, os Espartaquistas.
Na Itália formou-se uma Fração de esquerda com certo atraso em comparação com o que aconteceu no movimento dos trabalhadores na Rússia, Holanda e Alemanha. Foi a "Fração Abstencionista" que se agrupou em torno da revista Il Soviet publicada por Bordiga e seus camaradas em Nápoles a partir de Dezembro de 1918 e que se constituiu formalmente como uma fração no congresso do PSI em outubro de 1919. Entretanto já em 1912, no seio da Federação de Jovens Socialistas e da Federação de Nápoles do PSI, Bordiga já animava uma corrente revolucionária intransigente. Este atraso explica-se em parte pelo fato de Bordiga, mobilizado no exército, não podia intervir na vida política antes de 1917, mas sobretudo porque, de fato, na altura da guerra, a liderança do partido estava nas mãos da esquerda após o congresso de 1912, onde a direita reformista foi expulsa, e o de 1914, onde os maçons foram expulsos. Avanti, o jornal PSI, foi dirigido por Mussolini, que, nesse congresso, apresentou as moções de exclusão e, aproveitando a sua posição, publicou a 18 de Outubro de 1914 um editorial intitulado "Da neutralidade absoluta à neutralidade ativa e atuante" no qual se pronunciou a favor da entrada da Itália na guerra do lado do Entente[8]. Mussolini foi evidentemente afastado do seu posto, mas, apenas um mês depois, publicou Il Popolo d'Italia graças aos subsídios fornecidos pelo deputado socialista francês Marcel Cachin (futuro líder do PCF) em nome do governo francês e da Entente. Foi excluído do PSI em 29 de Novembro. Depois disso, embora a situação dominada pela guerra mundial tenha conduzido a uma decantação entre a esquerda, a direita e um centro, a liderança do partido oscilou entre a direita e a esquerda, entre posições "maximalistas" e posições reformistas. "Foi apenas em 1917 que as tendências da direita e da esquerda se cristalizaram claramente no congresso de Roma. O primeiro obteve 17.000 votos contra 14.000 a favor do segundo. A vitória de Turati, Treves, Modigliani, no momento em que a revolução russa se estava se desenvolvendo, acelerou a formação de uma Fração revolucionária intransigente em Florença, Milão, Turim e Nápoles" (The Communist Left in Italy, livro publicado pela CCI, em francês e italiano). A Fração Abstencionista ganha influência no partido a partir de 1920, graças ao impulso da revolução na Rússia e à constituição da Internacional Comunista (CI, III Internacional) que lhe dá apoio, e também às greves dos trabalhadores na Itália, em especial em Turim. Também entrou em contato com o grupo em torno da revista Ordine Nuovo, liderado por Gramsci, embora houvesse grandes divergências entre as duas correntes (Gramsci era a favor da participação nas eleições, defendia uma espécie de sindicalismo revolucionário e hesitava em romper com a direita e o centro a fim de criar uma fração autônoma). "Em Outubro de 1920, em Milão, formou-se a Fração Comunista Unificada, que redigiu um manifesto apelando à construção do Partido Comunista com a expulsão da ala direita de Turati; e renunciou ao boicote às eleições, aplicando as decisões do Segundo Congresso do Komintern" (Idem). E foi na Conferência Imola, em Dezembro de 1920, onde foi decidido o início de uma cisão: "o nosso trabalho como Fração é e deve ser terminado agora (...) a saída imediata do partido e do congresso (do PSI) logo que a votação nos tenha dado a maioria ou a minoria". Depois disso virá... a divisão com o centro" (Idem). No congresso de Livorno, aberto a 21 de Janeiro, "a moção de Imola obteve um terço dos votos dos aderentes socialistas: 58.783 dos 172.487. A minoria deixou o congresso decidindo fazê-lo como Partido Comunista de Itália, secção da Internacional Comunista. (...) Apaixonado, Bordiga concluiu, pouco antes de deixar o congresso: "Levamos conosco a honra do vosso passado"" (Idem).
Este rápido exame do trabalho das principais frações que se formaram no seio dos partidos da Segunda Internacional permite definir um primeiro papel que incumbe a uma Fração: defender princípios revolucionários no seio do partido degenerado:
É de notar que quase todas as correntes de esquerda estavam preocupadas em permanecer no partido o máximo de tempo possível. As exceções foram os Tribunistas (embora Gorter e Pannekoek não concordassem com esta pressa) e a "esquerda radical" liderada por Radek, Pannekoek e Frölich, que, após a expulsão em 1917 dos adversários no SPD, se recusaram a aderir ao USPD (ao contrário dos Espartaquistas). A separação da esquerda do antigo partido que traiu foi o resultado ou da sua exclusão ou da necessidade de fundar um partido capaz de se colocar na vanguarda da onda revolucionária.
Deve dizer-se que a ação da esquerda não está condenada a ser uma minoria dentro do partido degenerado: no Congresso de Tours do Partido Socialista Francês, a moção da esquerda pedindo a adesão à IC estava majoritária. É por isso que o Partido Comunista fundado nessa ocasião manteve o jornal L'Humanité, que tinha sido fundado por Jean Jaurès. Mas infelizmente também manteve o secretário-geral do PS, Frossard, que seria durante algum tempo o novo líder principal do PC.
Um último ponto: esta capacidade da fração deesquerda de construir o novo partido desde o início só foi possível porque houve pouco tempo (3 anos) entre a traição flagrante do velho partido e a ascensão da onda revolucionária. A situação será muito diferente depois.
A Internacional Comunista foi fundada em Março de 1919. Naquela época, havia poucos partidos comunistas constituídos (os da Holanda, Alemanha, Polônia e alguns menores). E, no entanto, já tinha surgido (e proclamou-se como tal) uma primeira Fração de "esquerda" no seio do principal partido comunista, o russo (embora só em Março de 1918 tenha sido chamado comunista, no 7º congresso do POSDR); era a corrente agrupada, no início de 1918, em torno do jornal comunista e animado por Ossinsky, Bukharin, Radek e Smirnov. O principal desacordo desta facção sobre a orientação seguida pelo Partido estava relacionado com as negociações de Brest-Litovsk. Os "comunistas de esquerda" opuseram-se a estas negociações, defendendo a "guerra revolucionária", "exportando" a revolução para outros países na ponta da baioneta. Ao mesmo tempo, porém, esta fração começou a criticar os métodos autoritários do novo poder proletário, insistindo na mais ampla participação possível das massas trabalhadoras no poder, críticas próximas das de Rosa Luxemburg (cf. A Revolução Russa). A assinatura da paz de Brest-Litovsk significará o fim desta fração. Posteriormente, Bukharin acabará por ser um representante da ala direita do partido, mas alguns elementos dessa Fração, como Ossinsky, pertencerão às frações esquerdas que surgirão mais tarde. Assim, enquanto na Europa Ocidental algumas frações dentro dos partidos socialistas que iriam formar os partidos comunistas ainda não estavam constituídas (a Fração Abstencionista liderada por Bordiga foi formada em Dezembro de 1918), os revolucionários na Rússia já tinham iniciado a luta (de uma forma muito confusa, obviamente) contra certas derivas que afetavam o Partido Comunista do país. É interessante notar (embora este não seja o local para analisar) que, numa série de questões, os militantes na Rússia aparecem como precursores durante o início do século XX: a Fração bolchevique foi formada após o 2º congresso do POSDR; depois foi a clareza em frente à guerra imperialista em 1914; mais tarde seria a ponta de lança da esquerda de Zimmerwald, expressaria mais tarde a necessidade de fundar uma nova internacional, depois a fundação do primeiro partido comunista em Março de 1918, e o impulso político e a orientação do Primeiro congresso da IC. E essa "precocidade" encontramo-la novamente na formação de frações no Partido Comunista. De fato, devido ao seu papel especial de ser o primeiro (e único) partido comunista a chegar ao poder, o partido russo foi também o primeiro a sofrer a pressão do principal elemento que selará a sua perda (além, obviamente, da derrota da onda revolucionária mundial): a sua integração no Estado. É por isso que as resistências proletárias, por mais confusas que fossem, começaram muito antes do que em qualquer outro lugar contra o processo de degeneração do partido.
Mais tarde, o partido russo viu surgir um número significativo de outras correntes de "esquerda":
Durante a guerra civil, as críticas às políticas seguidas pelo partido são muito mais raras, devido à ameaça dos exércitos brancos que pairava sobre o novo regime, mas assim que esta ameaça desapareceu com a vitória do Exército Vermelho sobre os Brancos, reapareceu com força:
De todas as correntes que lutaram contra a degeneração do Partido Bolchevique, o Grupo dos Trabalhadores foi sem dúvida o mais claro do ponto de vista político. Estava muito próximo do KAPD (que publica os seus documentos e com o qual estava em contato). Acima de tudo, as suas críticas à política seguida pelo partido baseiam-se numa visão internacional da revolução, contrariamente às de outros grupos que se concentram apenas em questões de democracia (no partido e na classe trabalhadora) e de gestão da economia. É por isso que rejeitou as políticas de frente única do 2º e 4º congressos da IC, enquanto a corrente trotskista continuou a reivindicar os primeiros quatro congressos. É de notar que houve discussões (especialmente na deportação) entre a ala esquerda da corrente trotskista e os militantes do Grupo Operário.
De todas as correntes de esquerda que surgiram no Partido Bolchevique, o Grupo Operário é, sem dúvida, o único a parecer ser uma fração consistente. Mas a terrível repressão que Stálin desencadeou sobre os revolucionários (em comparação com a qual, a repressão czarista pareceria brincadeira de criança) privou-a da menor possibilidade de se desenvolver. Finalmente, Miasnikov decidiu regressar à Rússia após a Segunda Guerra Mundial. Previsivelmente, ele desapareceu imediatamente, o que privou as forças muito fracas da esquerda comunista de um dos seus mais corajosos e valiosos combatentes.
A luta das facções de esquerda em outros países fora da Rússia assumiu inevitavelmente formas diferentes, mas se olharmos para os outros três partidos comunistas cuja fundação mencionamos anteriormente, vemos que foi também logo cedo que as correntes de esquerda entraram na luta, embora sob formas diferentes.
Quando o Partido Comunista da Alemanha foi fundado, as posições da esquerda eram majoritárias. Sobre a questão sindical, Rosa Luxemburg, que elaborou o programa da KPD e o apresentou ao Congresso, foi muito clara e categórica: "(... os sindicatos) já não são organizações de trabalhadores, mas os protetores mais sólidos do Estado e da sociedade burguesa. Por conseguinte, a luta pela socialização não pode avançar se não for acompanhada pela luta pela supressão dos sindicatos. Estamos de acordo sobre este ponto." Sobre a questão parlamentar, contra a posição dos Espartaquistas (Rosa Luxemburg, Liebknecht, Jogiches, etc.), o congresso foi contra a participação nas eleições que tiveram lugar pouco depois. Após o desaparecimento destes militantes, todos eles assassinados, a nova liderança (Levi, Brandler) parecia, no início, fazer concessões à esquerda (que permaneceu majoritária) sobre a questão sindical, mas já em Agosto de 1919 (conferência de Frankfurt do KPD), Levi, que queria aproximar-se da USPD, defendeu o trabalho tanto no parlamento como nos sindicatos, e no congresso de Heidelberg em Outubro conseguiu, através de manobras, que a esquerda antissindical e antiparlamentar, apesar de ser majoritária, fosse excluída. A maioria dos militantes excluídos recusou-se a formar um partido imediatamente, porque eram contra a divisão e esperavam reintegrar ao KPD. Foram fortemente apoiados pelos militantes de esquerda holandeses (Gorter e Pannekoek, entre outros) que, naquela época, tinham grande autoridade na Internacional Comunista e impulsionaram a orientação do Secretariado de Amesterdã (nomeado pela Internacional para ser responsável pelo trabalho para a Europa Ocidental e América do Norte). Foi seis meses mais tarde (4-5 de Abril de 1920), face à recusa do congresso do KPD de Fevereiro de 1920 de restabelecer os militantes excluídos e também face à atitude conciliadora desse partido face ao SPD, face ao golpe de Kapp (Kapp-Putsch, 13-17 de Março de 1920), que estes militantes fundaram o KAPD (Partido Comunista Operário da Alemanha). A sua ação foi reforçada pelo apoio do Secretariado de Amesterdã, que organizou em Fevereiro uma conferência internacional na qual as teses da esquerda triunfaram (a questão sindical, a questão parlamentar e a rejeição da viragem oportunista da IC, consubstanciada entre outras coisas pela exigência de que os comunistas ingleses aderissem ao Partido Trabalhista[10]. O novo partido ganhou o apoio da minoria de esquerda (encorajada por Gorter e Pannekoek) do Partido Comunista da Holanda (CPN) que publicou no seu jornal o programa do KAPD adotado no congresso de fundação. Isto não impediu Pannekoek de fazer uma série de críticas ao KAPD (carta de 5 de Julho de 1920), em particular no que diz respeito à sua posição sobre as "Unionen" (tipo de uniões), (alertando-a contra qualquer concessão ao sindicalismo revolucionário), e, sobretudo, contra a presença nas suas fileiras da corrente "Nacional Bolchevique" que considerava ser uma "aberração monstruosa". Naquela época, sobre todos os problemas essenciais que o proletariado mundial enfrentava (a questão sindical, a questão parlamentar, a questão partidária[11], a questão da atitude em relação aos partidos socialistas, a questão da natureza da revolução na Rússia, etc.), a esquerda holandesa (e Pannekoek em particular), que inspirou a maioria da KAPD, estava na vanguarda do movimento operário.
O congresso da KAPD realizado de 1 a 4 de Agosto pronunciou-se a favor destas orientações: os "nacionais bolcheviques" deixaram então o partido e, alguns meses mais tarde, é a vez dos elementos federalistas que são hostis à filiação à CI,. Por seu lado, Pannekoek, Gorter e o KAPD estavam determinados a permanecer na IC a fim de lutar contra a deriva oportunista que a estava tornando-se cada vez mais gangrenada. É por esta razão que o KAPD enviou dois delegados à Rússia, Jan Appel e Franz Jung, para o Segundo Congresso da IC que se realizou em Moscou a partir de 17 de Julho de 1920[12]; quando não teve notícias deles, enviou dois outros delegados, um deles Otto Rühle, que, vendo a situação catastrófica sofrida pela classe operária e o processo de burocratização do aparelho governamental, decidiu não participar do Congresso, apesar de este último os ter proposto para defenderem as suas posições com voto deliberativo. Para esse Congresso Lênin escreveu "A Doença Infantil do Comunismo". Note-se que nesse panfleto, Lênin escreve que: "o erro representado pelo doutrinarismo de esquerda no movimento comunista é, hoje em dia, mil vezes menos perigoso e menos grave do que o erro representado pelo doutrinarismo de direita".
Tanto por parte da IC e dos bolcheviques como por parte da KAPD, houve uma vontade de integração na Internacional, e portanto no KPD. Mas o agrupamento do KPD com a esquerda da USPD em Dezembro de 1920 para formar o VKPD, um agrupamento com o qual todas as correntes esquerdas da IC estavam contra, impediu tal possibilidade. O KAPD obteve, no entanto, o estatuto de "partido simpatizante da IC", com um representante permanente no seu Comité Executivo, enviando delegados para o Terceiro Congresso em Junho de 1921. Mas, entretanto, esta comunidade de trabalho foi seriamente alterada especialmente após a "ação de Março" (uma "ofensiva" aventureira promovida pela VKPD) e a repressão da insurreição de Kronstadt (repressão que a esquerda apoiou no início, acreditando que esta insurreição era de fato o trabalho dos Brancos, como alegava a propaganda do governo soviético). Ao mesmo tempo, a liderança de direita do PCN (Wijnkoop é chamado de "Levi holandês"), que tem a confiança de Moscou, empreende uma política de exclusões anti-estatutárias dos militantes de esquerda. Em Setembro, estes militantes finalmente fundaram um novo partido, o KAPN, no modelo da KAPD.
A política de "frente única" adotada no Terceiro Congresso da IC apenas agravou as questões, tal como o ultimato à KAPD para se fundir com a VKPD. Em Julho de 1921, a liderança da KAPD, com o apoio de Gorter, adotou uma resolução quebrando laços com a IC, apelando à formação de uma "internacional comunista de trabalhadores", dois meses antes do congresso do KAPD agendado para Setembro. Foi obviamente uma decisão totalmente apressada. Nesse congresso, foi levantada a questão da fundação de uma nova internacional (a que se opuseram os militantes de Berlim, entre eles Jan Appel) e o congresso decidiu finalmente criar um Gabinete de Informação sobre esta possível fundação. Este Gabinete de Informação começou a agir como se a nova internacional já tivesse sido constituída, embora a sua conferência de fundação só se realizasse em Abril de 1922. O KAPD experimentou então uma cisão entre, por um lado, a "tendência de Berlim" majoritária, hostil à formação de uma nova internacional, e a "tendência Essen" (que rejeitava as lutas salariais). Apenas esta tendência participou desta conferência, que, no entanto, contou com a presença de Gorter, redator do programa da KAI (Internacional Comunista operária, o nome da nova internacional). Os grupos participantes foram em número reduzido e representavam forças muito limitadas: além da tendência Essen, existem os KAPN, os comunistas de esquerda búlgaros, o Communist Workers Party (CWP, Partido dos operários Comunistas) de Sylvia Pankhurst, o KAP austríaco, chamado "aldeia Potemkin" pelo KAPD de Berlim. Afinal, este fantasma "internacional" desapareceu após o desaparecimento ou retirada gradual dos seus elementos constituintes. E foi assim que a tendência Essen sofreu múltiplas cisões, o KAPN acabou por se desfazer, primeiro devido ao aparecimento no seu interior de uma corrente que se juntou à tendência de Berlim, hostil à formação da KAI, depois devido a lutas internas de natureza clánica e não de princípio.
Na realidade, o fator essencial que explica o fracasso dramático e lamentável da KAI foi o refluxo da onda revolucionária que tinha impulsionado a fundação da IC:
"O erro de Gorter e dos seus apoiadores em proclamar artificialmente a KAI, enquanto as frações de esquerda permaneceram na IC que poderiam ter sido agrupadas na mesma corrente comunista internacional de esquerda, foi um erro grave para o movimento revolucionário. (...) O declínio da revolução mundial, já evidente na Europa desde 1921, tornou praticamente impossível pensar em construir uma nova internacional. Acreditando que o curso estava ainda em direção à revolução, com a teoria da "crise mortal do capitalismo", as correntes Gorter e Essen tinham uma certa lógica na proclamação da KAI. Mas as premissas estavam erradas" (The Dutch Left, cap. V.4.d, publicado pela CCI em francês e inglês).
A desintegração final do KAPD e do KAPN ilustra de forma gritante a necessidade de os revolucionários terem a visão mais clara possível de como evolui a relação de forças entre o proletariado e a burguesia.
Se foi com grande atraso que a esquerda germano-holandesa se deu conta do refluxo da onda revolucionária[13] tal não foi o caso dos bolcheviques e dos líderes da Internacional Comunista, nem, por outro lado, da esquerda comunista italiana. Mas as suas respostas a esta situação foram radicalmente diferentes:
Na realidade, a trajetória oportunista que afetou a IC, já desde o Segundo Congresso mas sobretudo desde o Terceiro, e que questionou a clareza e intransigência afirmada no seu Primeiro Congresso, expressou, não só as dificuldades que o proletariado mundial enfrentava para continuar e reforçar o seu combate revolucionário, mas também a contradição insolúvel em que mergulhou o partido bolchevique que, de fato liderou a IC. Por um lado, este partido deveria ser a ponta de lança da revolução mundial, depois de ter sido a ponta de lança da revolução na Rússia. Além disso, tinha sempre afirmado que esta era apenas uma fase muito curta da primeira, estando muito consciente de que uma derrota do proletariado mundial seria a morte da revolução na Rússia. Por outro lado, enquanto responsável pelo poder num país, estava sujeito às exigências inerentes à função de um Estado nacional, nomeadamente a de garantir a "segurança" externa e interna, ou seja, a execução de uma política externa de acordo com os interesses da Rússia e de uma política interna que garantisse a estabilidade do poder. Neste sentido, a repressão das greves de Petrogrado e o sangrento esmagamento da revolta de Kronstadt em março de 1921 foram a contrapartida de uma política de "estender a mão", sob o disfarce da "Frente Unida", aos partidos socialistas, na medida em que estes últimos podiam exercer pressão sobre os governos para orientarem a sua política externa numa direção favorável à Rússia.
A intransigência da esquerda comunista italiana, que de fato liderou o PCI (as "Teses de Roma" adotadas pelo seu Segundo Congresso em 1922 tinham sido redigidas por Bordiga e Terracini) foi expressa em particular, e de forma exemplar, face à ascensão do fascismo na Itália, após a derrota das batalhas de 1920. Na prática, esta intransigência tomou a forma de uma recusa intransigente de estabelecer alianças com os partidos da burguesia (liberal ou "socialista") face à ameaça fascista: o proletariado só podia combater o fascismo no seu próprio terreno, através da greve econômica e da organização de milícias de autodefesa dos trabalhadores. No plano teórico, devemos a Bordiga a primeira análise séria (que ainda é válida) sobre o fenômeno fascista, uma análise que apresentou aos delegados do Quarto Congresso da IC, contestando a análise feita pela IC:
Tal intransigência foi também expressa em relação à política da Frente ùnica, da "mão estendida" para os partidos socialistas e o seu corolário, o slogan do "governo operário" que "significa negar na prática o programa político do comunismo, ou seja, a necessidade de preparar as massas para a luta para ditadura do proletariado" (citação de Bordiga em A Esquerda Comunista de Itália).
Esta intransigência foi também expressa na política da IC de fusão dos PC e das correntes de esquerda dos partidos socialistas ou "centristas" que, na Alemanha, levou à formação do VKPD e que, na Itália, tomou forma, em Agosto de 1924, na entrada de 2000 "terzini" (apoiadores da Terceira Internacional) num partido que a altura tinha apenas 20.000 membros devido à repressão e desmoralização.
E, finalmente, também se manifestou sobre a política de "bolchevização" dos PC desde o V Congresso da IC em Julho de 1924, uma política também combatida por Trotsky, que, a grosso modo, consistia em reforçar a disciplina nos partidos comunistas, uma disciplina burocrática destinada a silenciar as resistências contra a sua degeneração. Esta bolchevização também consistiu em promover um modo de organização dos PC com base nas "células de fábrica", que polarizou os trabalhadores sobre os problemas da "sua" empresa em detrimento, obviamente, de uma visão e perspectiva geral da luta proletária.
Embora a esquerda ainda tivesse uma grande maioria no partido, a IC impôs-lhe uma liderança de direita (Gramsci, Togliatti) que apoiava as suas políticas, uma operação facilitada pela prisão de Bordiga entre Fevereiro e Outubro de 1923.
Entretanto, na conferência clandestina do PCI em Maio de 1924, as teses propostas por Bordiga, Grieco, Fortichiari e Repossi, muito críticos da política da IC, foram aprovadas por 35 secretários da federação de 45 e por 4 secretários inter-regionais de 5. Foi em 1925 que a campanha contra as oposições foi desencadeada no seio da IC, a começar pela Oposição de Esquerda liderada por Trotsky. "Em Março-Abril de 1925, o Comitê Executivo Ampliado da IC colocou na agenda a eliminação da tendência "Bordigista" por ocasião do Terceiro Congresso do PC da Itália. Proibiu a publicação do artigo de Bordiga a favor de Trotsky. A bolchevização da secção italiana começou com a demissão de Fortichiari do seu cargo de Secretário Federal em Milão. Imediatamente, em Abril, a esquerda do partido, com Damen, Repossi, Perrone e Fortichiari fundou uma "Comissão de Entendimento" (...) para coordenar uma contraofensiva. Gramsci na liderança atacou violentamente o "Comité de Compreensão", denunciando-o como uma "Fração organizada". Na realidade, a esquerda ainda não queria se constituir como uma facção: não queria dar pretextos para a sua expulsão quando ainda estava em maioria no partido. No início, Bordiga recusou-se a aderir ao Comité, não querendo quebrar o quadro da disciplina imposta. Foi em Junho que se juntou aos cargos de Damen, Fortichiari e Repossi. Foi encarregado de redigir uma "Plataforma da Esquerda" que foi o primeiro ato de demolição sistemática da Bolchevização" (Idem).
"Sob a ameaça de exclusão, o "Comité de Entendimento" teve de ser dissolvido... Era o início do fim da esquerda italiana como maioria" (Idem).
No congresso de Janeiro de 1926, realizado no exterior devido à repressão fascista, a esquerda apresentou as "Teses de Lyon" que obtiveram apenas 9,2% dos votos: a política levada a cabo, aplicando os slogans da IC, de recrutamento intensivo de jovens e de pessoas não politizadas tinha dado frutos... As Teses de Lyon orientariam a política da esquerda italiana em matéria de emigração.
Bordiga participou num último combate no Sexto Executivo Ampliado da IC, em Fevereiro-Março de 1926. Denunciou a deriva oportunista da IC, evocou a questão das frações, sem entrar em considerações sobre a atualidade imediata, afirmando que "a história das frações é a história de Lênin"; elas não são uma doença, mas o sintoma da doença. São uma reação de "defesa contra influências oportunistas".
Numa carta a Karl Korsch em Setembro de 1926, Bordiga escreveu: "Não devemos querer a cisão nos partidos e na Internacional. Devemos deixar que a experiência da disciplina artificial e mecânica seja levada a cabo até aos seus absurdos processuais enquanto for possível, sem nunca renunciar às posições de crítica ideológica e política, sem nunca ser solidário com a orientação dominante. (...)De modo geral, penso que o que deve ser colocado em primeiro plano hoje é, mais do que organização e manobra, o trabalho preliminar de elaboração de uma ideologia política de esquerda internacional, baseada nas experiências eloquentes do Comintern. Como isto está longe de ser alcançado, qualquer iniciativa internacional parece difícil " (Citado em The Communist Left of Italy).
Estas são também as bases sobre as quais será constituída a Fração de Esquerda do Partido Comunista da Itália e que realizou a sua primeira conferência em Abril de 1928 em Pantin, na periferia de Paris. Nessa altura, tinha quatro "federações": Bruxelas, New York, Paris e Lyon com alguns militantes em Luxemburg, Berlim e Moscou.
Esta conferência adotou por unanimidade uma resolução que define as suas perspectivas. Aqui estão alguns extratos:
"1° Se constituir como uma Fração de esquerda da Internacional Comunista. (…)
3° Publicar um bimensal que se chamara Prometeo.
4° Formar grupos de esquerda cuja tarefa será a luta impiedosa contra o oportunismo e os oportunistas. (…)
5° Dar a si próprio como objetivo imediato:
a. Reintegração de todos os expulsos da Internacional que reivindicam o Manifesto Comunista e aceitam as teses do Segundo Congresso Mundial.
b. Convocação do Sexto Congresso Mundial presidido por Leon Trotsky.
c. Colocar na ordem do dia do VI Congresso Mundial a expulsão da Internacional de todos aqueles que se declaram solidários com as resoluções do XV Congresso Russo. "
Como se pode observar::
A Fração realizaria então um trabalho muito importante até 1945, um trabalho que a esquerda comunista da França (GCF) continuaria então até 1952. Já evocamos frequentemente todo este trabalho em artigos, textos e discussões e não é necessário voltar a ele aqui.
Uma das contribuições essenciais da Fração Italiana, que está no centro deste relatório, será precisamente a elaboração da noção de Fração com base em toda a experiência do movimento operário. Já definimos esta noção no início do presente Relatório. Além disso, num anexo, daremos aos camaradas uma série de citações de textos da Facção Italiana e da GCF que nos permitem ter uma ideia mais precisa do que é uma Fração. Vamos limitar-nos aqui a reproduzir um extrato da nossa imprensa de um artigo que define esta noção de Fração ("The Italian Fraction and the Communist Left in France", International Review No 90):
"A minoria comunista existe permanentemente como uma expressão do devir revolucionária do proletariado. No entanto, o impacto que pode ter nas lutas imediatas da classe é estreitamente condicionado pelo nível dessas lutas e pela consciência das massas trabalhadoras. Só em períodos de lutas abertas e cada vez mais conscientes do proletariado é que a minoria pode esperar influenciá-las. Só nessas circunstâncias será possível falar dessa minoria como um partido. Por outro lado, em períodos de regressão histórica do proletariado, de triunfo da contrarrevolução, é vã a esperança de que as posições revolucionárias tenham um impacto significativo e determinante sobre a classe como um todo. Nesses períodos, o único trabalho possível e indispensável é o da Fração: preparar as condições políticas para a formação do futuro partido, quando a relação de forças entre as classes permitir-lhes-á novamente ter influência sobre o proletariado como um todo" (Extrato da nota 4).
"A Fração de Esquerda é formada no momento em que o partido do proletariado tende a degenerar, vítima do oportunismo, ou seja, da penetração da ideologia burguesa no seu seio. É da responsabilidade da minoria que mantém o programa revolucionário lutar de forma organizada para que tal programa triunfe no partido. Seja a Fração consegue ganhar as suas posições, salvando o Partido, seja o Partido segue o seu curso degenerativo e acaba passando com bagagem e armas para o campo da burguesia. Não é fácil determinar em que momento o partido proletário passa para o campo inimigo. Um dos indicadores mais significativos é, no entanto, a impossibilidade de uma vida política proletária aparecer no seio do partido. A Fração esquerda tem a responsabilidade de levar a cabo uma luta dentro do partido, desde que haja a mínima esperança de que possa ser regenerado. É por isso que, na década de 1920, não são as correntes de esquerda que deixam os partidos da IC, mas são excluídas e muito frequentemente por manobras sórdidas. Mas assim que um partido do proletariado passa para o campo da burguesia, não há retorno possível. O proletariado terá necessariamente de criar um novo partido para retomar o seu caminho rumo à revolução e o papel da Fração será então servir de "ponte" entre o antigo partido passado para o lado do inimigo e o futuro partido do qual terá de elaborar as bases programáticas e servir de enquadramento. O fato de, após a passagem do partido para o campo burguês, não pode existir vida proletária dentro dele, significa também que é inútil e perigoso para os revolucionários praticar o "entrismo", uma das tácticas do trotskismo que a Fração sempre rejeitou. O único resultado de querer manter uma vida proletária num partido burguês, estéril para posições de classe, é acelerar a degeneração oportunista das organizações que o tentarem, e muito menos voltar a pôr tal partido nos eixos. Quanto ao "recrutamento" que estes métodos permitiam, este foi especialmente confuso, gangrenado pelo oportunismo, incapaz de formar uma vanguarda para a classe trabalhadora.
De facto, uma das diferenças fundamentais entre o trotskismo e a Fração italiana é que esta última, na política de agrupamento das forças revolucionárias, colocou sempre à frente a necessidade da maior clareza, do maior rigor programático, ainda que aberta à discussão com todas as outras correntes que tinham iniciado a luta contra a degeneração da IC. Por outro lado, a corrente trotskista, tentou formar organizações de forma precipitada, sem discussões sérias, sem decantação prévia de posições políticas, baseando tudo em acordos entre "personalidades" e na autoridade ganha por Trotsky, um dos principais líderes da Revolução de Outubro e da IC nas suas origens."
Este fragmento evoca os métodos da corrente trotskista que, por falta de espaço, não mencionamos antes. Digamos, contudo, que é significativo que duas das características dessa corrente, antes de passar para o terreno da burguesia, sejam estas:
A vontade de clareza, que a esquerda italiana sempre promoveu como condição fundamental para o cumprimento da sua tarefa, é obviamente inseparável da preocupação pela teoria e da necessidade permanente de poder questionar análises e posições que pareciam definitivas.
Para concluir esta parte do Relatório, precisamos voltar muito brevemente à trajetória das correntes que emergiram da IC e cuja origem mencionamos acima..
A corrente que emergiu da esquerda germano holandesa permaneceu após o desaparecimento do KAPD e do KAPN. O seu principal representante foi o GIK (Grupo de Comunistas Internacionalistas) na Holanda, embora tenha tido influência fora deste país (por exemplo, o Marxismo Vivo liderado por Paul Mattick nos EUA). Durante um dos episódios mais trágicos e críticos da década de 1930, a guerra espanhola, o GIK defendeu uma posição totalmente internacionalista, sem a mínima concessão ao antifascismo. Encorajou a reflexão dos comunistas de esquerda, entre eles Bilan (que assumiu a posição de Rosa Luxemburg e da esquerda alemã sobre a questão nacional) e também a GCF que rejeitou a posição clássica da esquerda italiana sobre os sindicatos, assumindo a da esquerda germano holandesa. No entanto, o GIK adotou duas posições que lhe provaram ser fatais (e que não eram as da KAPD):
Isto levou a GIK a situar no campo burguês toda uma série de organizações proletárias do passado, acabando por rejeitar, no final, a própria história do movimento operário e as lições que ele nos pode dar para o futuro.
E isto levou o GIK a proibir a si próprio qualquer papel como fração, uma vez que a tarefa da fração é preparar um órgão, o partido, que o conselhismo atual rejeita.
Devido a estas duas fraquezas, o GIK recusou-se, portanto, a desempenhar um papel significativo no processo conducente ao futuro partido, e portanto à revolução comunista, mesmo que as ideias comunistas continuem a ter uma certa influência no proletariado.
Um último ponto introdutório da Parte II deste Relatório: pode a CCI ser considerada como uma Fração? A resposta é óbvia: não, obviamente que não, pela simples razão de que a nossa organização nunca foi formada no seio de um partido proletário. Esta resposta já foi dada, no início dos anos 50, pelo camarada MC numa carta aos outros camaradas do grupo Internationalisme:
"A Fração foi uma continuidade orgânica, direca, porque só existiu durante um período de tempo relativamente curto. Aconteceu frequentemente viver no seio da antiga organização até ao momento da ruptura. A sua ruptura costumava ser equivalente à transformação num novo partido (exemplo da Fração bolchevique e Spartakusbund, a partir de quase todas as frações esquerdas do antigo partido). Esta continuidade orgânica não existe hoje em dia. (...) A Fração, não tendo que responder a problemas fundamentalmente novos como os colocados pelo nosso período de crise permanente e evolução para o capitalismo de Estado, não sendo deslocada em muitas pequenas tendências, estava mais ligada aos seus princípios revolucionários adquiridos do que à formulação de novos princípios, tinha mais coisas para manter do que coisas para construir. Por essa razão e pela sua continuidade orgânica direta num período de tempo relativamente curto, a Fração foi o novo partido em gestação. (…)
[O grupo], embora tenha em parte algumas das tarefas da Fração, ou seja: reexaminar a experiência, formar militantes, tem também a tarefa d Durante a guerra civil Durante a guerra civil e analisar as novas evoluções e as novas perspectivas, e, pelo menos, a tarefa de reconstruir o programa do futuro Partido. O grupo é apenas uma contribuição para esta reconstrução, tal como é apenas mais um elemento do futuro Partido. A sua função na sua contribuição programática é parcial devido à sua natureza organizacional".
Hoje, no 40º aniversário da CCI, devemos utilizar o mesmo método, recordando o que escrevemos por ocasião do seu 30º aniversário:
"A capacidade da CCI de enfrentar as suas responsabilidades durante estes trinta anos de vida, devemos em grande parte às contribuições da Fração Italiana da Esquerda Comunista. O segredo do equilíbrio positivo que retiramos da nossa atividade durante todo esse período está na nossa fidelidade aos ensinamentos da Fração e, de uma forma mais geral, ao método e ao espírito do marxismo de que a Fração se apropriou plenamente" ("Thirty years of the CCI: appropriating the past to build the future", International Review no 123).
[1] Note-se que, de acordo com uma carta que Marx enviou a Engels após essa reunião, Engels tinha aceito o convite de Eccarius porque desta vez parecia sério, ao contrário de tentativas anteriores de formar organizações para as quais Marx tinha sido convidado e que ele considerava artificiais.
[2] Nesta e na parte seguinte, estudaremos as frações que surgiram em quatro partidos diferentes, os da Rússia, Holanda, Alemanha e Itália, deixando de lado os partidos de dois grandes países, Grã-Bretanha e França. De fato, nestes dois partidos não existiam frações dignas do nome, principalmente devido à extrema fraqueza do pensamento marxista neles. Na França, por exemplo, a primeira ação organizada contra a Primeira Guerra Mundial não veio de uma minoria do Partido Socialista, mas sim de uma minoria da central sindical CGT, um núcleo em torno de Rosmer e Monatte que publicou "La Vie ouvrière".
[3] Sozialdemokratische Partei Deutschlands, Partido Social-Democrata da Alemanha.
[4] Partido Social-Democrata dos operários da Rússia.
[5] Social Democratische Arbeiders Partij, Partido Social-Democrata dos operários, Países Baixos)
[6] "Sempre disse, contra a liderança de De Tribune: devemos fazer tudo para atrair os outros até nós, mas se o esforço falhar depois de termos lutado até ao fim e todos os nossos esforços tiverem falhado, então sim, devemos ceder [isto é, aceitar a supressão de De Tribune]" (carta de Gorter a Kautsky, 16 de Fevereiro de 1909). "A nossa força no partido pode crescer; a nossa força fora do partido nunca pode crescer" (Do artigo "The Dutch Left (1900-1914): The 'Tribunist' Movement Part III," International Review No. 47).
[7] Entre os muitos militantes que foram reprimidos, mencionemos Rosa Luxemburgo, que passou grande parte da guerra na prisão, Liebknecht, primeiro no exército e depois encarcerado depois de ter falado contra a guerra e o governo na manifestação do Dia de Maio em 1916; até Mehring, que já tinha mais de 70 anos de idade, foi encarcerado.
[8] "Entente Cordiale" (Entendimento Cordial) é o nome da aliança franco-britânica que, juntamente com a Rússia e outros países, a Itália, e os Estados Unidos no final da guerra, formaram uma das frentes contra a outra frente: a dos Impérios Centrais (Alemanha e Áustria-Hungria) juntamente com o Império Otomano e outros países.
[9] As outras duas posições são a de Trotsky, que pretende que os sindicatos sejam integrados no Estado a fim de os tornar órgãos de organização dos operários (seguindo o modelo do Exército Vermelho) para uma maior disciplina no trabalho, e a de Lenine, que considera, pelo contrário, que os sindicatos devem desempenhar um papel na defesa dos trabalhadores contra o Estado, que estava sofrendo "fortes deformações burocráticas".
[10] Devido ao "perigo" de o Gabinete de Amesterdã acabar como um polo de agrupamento de esquerda dentro da IC, o Comité Executivo da IC anunciou pela rádio a dissolução do Gabinete de Amesterdã a 4 de Maio de 1920.
[11] Nessa altura, a esquerda holandesa e Pannekoek foram muito claros na sua luta contra a visão defendida por Otto Rühle que negou a necessidade do partido que mais tarde se tornaria a posição dos conselhistas e de... Pannekoek.
[12] É bem conhecido como estes delegados chegaram à Rússia (no meio de uma guerra civil e de um "cordão de isolamento" que tornou praticamente impossível chegar por terra): desviaram um navio mercante para Murmansk, no extremo norte da Rússia.
[13] Em seus últimos escritos, na véspera de sua morte, Gorter demonstrou que havia compreendido seus próprios erros e incitou seus companheiros a fazer o mesmo e aprender com eles (ver A Esquerda Holandesa, final do capítulo V.4.d)
Após a revolução russa em 1917, a Revolução na Alemanha em 1918, a criação da Internacional Comunista em 1919, marcamos o centésimo aniversário do trágico esmagamento da revolta dos trabalhadores, soldados e marinheiros de Kronstadt em março de 1921 com a nova publicação de um artigo "As lições de Kronstadt"[1], no intuito de tirar as principais lições deste evento para as lutas do futuro.
Em março de 1921, o Estado soviético, liderado pelo Partido Bolchevique, usou suas forças militares para pôr fim à revolta dos trabalhadores e marinheiros na guarnição Kronstadt na ilha de Kotlin, no golfo da Finlândia, a 30 km de Petrogrado (hoje São Petersburgo). Os 15 000 insurgentes foram atacados por 50 000 soldados do Exército Vermelho na noite de 7 de março. Após dez dias de lutas ferozes, a revolta de Kronstadt foi abatida. Não é possível obter informações confiáveis para o número de vítimas, mas estima-se que houve 3 000 mortos nos combates ou executados ao lado dos insurgentes, e 10 000 mortos no lado do Exército Vermelho. De acordo com um comunicado da Comissão extraordinária datado de 1 de maio de 1921, 6 528 rebeldes foram presos, 2 168 executados, 1 955 condenados ao trabalho forçado (1 486 por cinco anos) e 1 272 libertados. As famílias dos rebeldes foram deportadas para a Sibéria, e 8000 marinheiros, soldados e civis conseguiram fugir para a Finlândia.
Menos de quatro anos após a tomada de poder pela classe trabalhadora em Outubro de 1917, esses eventos foram uma expressão trágica da degeneração de uma revolução isolada chegando ao fim de sua linha. Na verdade, esta revolta dos operários é a dos partidários do regime soviético, daqueles que em 1905 e 1917 estavam na vanguarda do movimento e que durante a Revolução de Outubro foram considerados como "a honra e a glória da revolução". Em 1921, os insurgentes de Kronstadt exigiram a satisfação das demandas que se juntaram às dos trabalhadores de Petrogrado em greve desde fevereiro: libertação de todos os socialistas presos, fim do regime militar, liberdade de expressão, da imprensa e de reunião para todos aqueles que trabalham, alimentação igual para todos os trabalhadores... Mas o que ressaltou a importância desse movimento e expressa seu caráter profundamente proletário não foi apenas a reação contra as medidas restritivas, mas sobretudo a reação diante da perda de poder político pelos conselhos operários em benefício do partido e do Estado, que substituíram os conselhos e alegaram representar os objetivos e interesses do proletariado. Isso foi expresso no primeiro ponto da resolução aprovada pelos insurgentes: "Tendo em vista que os sovietes atuais não expressam a vontade dos trabalhadores e camponeses, imediatamente para realizar novas eleições por votação secreta, com propaganda eleitoral livre".
A burguesia, quando fala sobre o esmagamento da revolta pelo Exército Vermelho, sempre tenta provar aos proletários que há uma cadeia ininterrupta ligando Marx e Lênin a Stalin e o Gulag. O objetivo da burguesia é garantir que os trabalhadores se afastem da história de sua classe e não se aproprim das suas próprias experiências. As teorias dos anarquistas chegam às mesmas conclusões, partindo da natureza supostamente autoritária e contrarrevolucionária do marxismo e dos partidos que atuam em seu nome. Os anarquistas têm uma visão abstratamente "moral" desses eventos. Começando com a ideia do autoritarismo inerente ao Partido Bolchevique, eles são incapazes de explicar a degeneração da revolução em geral, e o episódio Kronstadt em particular. Esta foi uma revolução que estava se definhando após sete anos de guerra mundial e guerra civil, com uma infraestrutura industrial em ruínas, uma classe trabalhadora que havia sido dizimada, faminta, confrontada com revoltas camponesas nas províncias. Uma revolução que havia sido dramaticamente isolada e onde uma extensão internacional tornou-se cada vez menos provável após o fracasso da revolução na Alemanha. Diante de todos os problemas colocados para a classe trabalhadora e o Partido Bolchevique, os anarquistas simplesmente fecham os olhos.
Considerada do ponto de vista da perspectiva da revolução proletária mundial, a lição histórica fundamental da repressão da revolta de Kronstadt diz respeito à questão da violência de classe. Embora a violência revolucionária seja uma arma do proletariado para derrubar o capitalismo e seus inimigos de classe, sob nenhum pretexto pode ser usado dentro da classe trabalhadora, contra outros proletários. O comunismo não pode ser imposto ao proletariado pela força e violência porque esses meios são categoricamente opostos à natureza consciente de sua revolução, que só pode avançar através de sua própria experiência e da constante avaliação crítica dessa experiência. A decisão do Partido Bolchevique de esmagar a revolta de Kronstadt só pode ser entendida no contexto do isolamento internacional da revolução e da terrível guerra civil que varreu o país. No entanto, tal decisão permanece um erro trágico, uma vez que foi exercida contra trabalhadores que haviam se levantado para defender a principal arma na transformação política consciente da sociedade, o órgão vital da ditadura proletária: o poder dos sovietes.
CCI, março de 2021
O poder de ataque militar de Israel em resposta ao Hamas e seu bombardeio, supostamente voltado para alvos específicos, na prisão ao ar livre que é a Faixa de Gaza fizeram com que centenas de milhares de pessoas em todo o mundo reagissem em grandes manifestações denunciando mais uma vez o dilúvio de fogo pelo Estado "colonialista opressivo" hebraico sobre as "massas palestinas oprimidas". Essas manifestações ocorreram na maioria dos países europeus, nos Estados Unidos, bem como no Canadá, mas também na Turquia, Tunísia, Líbia e até no Iraque, em Bangladesh, Quênia, Jordânia e Japão.
Esta mobilização expressa claramente a indignação com a barbárie. Mas é manipulada da maneira mais vergonhosa pela burguesia em manifestações que pedem falsa solidariedade em um terreno que não é o terreno proletário internacionalista, mas do nacionalismo burguês que alimenta todos os confrontos imperialistas.
Para todos os governos ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, mesmo que seja proclamada à exaustão a denúncia da guerra ou dos bombardeios, pedindo a Israel para “cessar-fogo”, a defesa do Estado de Israel continua a ser uma constante diante do Hamas e de seus foguetes indiscriminadamente atingindo o território israelense. Como sempre, são as mesmas lágrimas de crocodilo diante das atrocidades de um conflito que durou desde a criação do Estado de Israel em 1948 e seus múltiplos confrontos que custaram a vida de dezenas de milhares de pessoas, particularmente nos territórios palestinos.
Para todas as forças de esquerda que convocaram manifestações em todo o mundo, o "Não ao massacre!" é, acima de tudo, uma outra oportunidade para um apelo para apoiar a "justa causa palestina contra as atrocidades israelenses"! Claramente, por trás dessa "determinação" para denunciar a guerra, em todo o mundo, toda a esquerda e a extrema esquerda apelam aos explorados para se juntarem a um campo, o do nacionalismo palestino, contra a opressão das massas palestinas pelo imperialismo hebreu. Este terreno é o do capital, o do confronto entre as potências imperialistas de Israel, palestina, europeias, iranianas, americanas... Todos esses confrontos, decorrentes dos bastidores da diplomacia ou ofensivas militares, só levaram os proletários palestinos e israelenses a pagar o preço do sangue ao imperialista Moloch.
É óbvio que Israel é um dos principais Estados burgueses beligerantes, sem escrúpulos na sua dominação de territórios que foram ocupados por décadas e que cotidianamente despreza e provoca a população palestina. Ao impor a colonização sistemática e expulsar descaradamente as famílias palestinas, como mais recentemente em Jerusalém Oriental, que incendiou o barril de pólvora, ou na Cisjordânia, Israel está mais uma vez demonstrando sua barbárie criminosa e sua política inescrupulosa para com os palestinos, bem como para seus próprios cidadãos árabes israelenses.
Mas o que dizer das facções burguesas palestinas da OLP, Fatah, Hezbollah ou Hamas? E a rivalidade entre essas diferentes facções para recuperar a legitimidade política e apresentar-se como o interlocutor principal com quem Israel deve lidar? Os próprios especialistas burgueses mais diplomáticos notam que a estratégia do Hamas de disparar foguetes em Israel, alimentando assim a resposta das FDI (Forças de Defesa de Israel), é claramente uma tática para discussões e negociações com Israel por interesses vulgarmente imperialistas.
...assim como organizações de esquerda!…
Mas para a extrema esquerda do capital, os trotskistas de Lutte Ouvrière (LO), por exemplo, a análise é muito mais especulativa. Assim, mesmo que LO, usando como sempre uma linguagem falsamente radical, afirma que "os líderes israelenses e palestinos estão levando seus povos a um impasse sangrento, com a cumplicidade das potências imperialistas", se apressa, para induzir justificativa enganadora para apoiar um campo (o 'mais fraco' contra os 'mais fortes'), em acrescentar essa falsidade: "Colocar ambos os lados no mesmo plano enquanto um Estado supostamente democrático e super-armado está determinado a destruir um território já devastado, é aceitar a lei dos mais fortes. E é acima de tudo virar as costas para a revolta absolutamente legítima dos palestinos! (…) se os palestinos têm o Estado israelense como seu inimigo, eles têm o Hamas como seu adversário".
Organizações libertárias não ficam atrás e adicionam uma camada. Para a Organização Comunista Libertária (OCL): "Diante do desencadeamento da violência orquestrada por um regime israelense em meio a uma crise política, levada por um Netanyahu que está sem fôlego e pronto para sacrificar os palestinos para garantir sua sobrevivência no poder, condenações tímidas (ou pior, declarações que não fazem diferença em israelenses e palestinos) não são suficientes. O direito internacional deve ser aplicado". Não poderia ser mais claro!
Este tipo de subterfúgio que clama pelo "direito internacional", o terreno do balaio de caranguejos burgueses por excelência, considerando um dos campos bárbaros como "inimigo" e o outro como "adversário" ou mesmo "amigo", são a própria expressão de sua contribuição aberta para a defesa de um campo imperialista contra o outro, um apelo ao confronto no terreno burguês mais podre que existe. Essa lógica nacionalista de todos os partidos de esquerda não se expressa apenas em seus apelos por falsa solidariedade durante as manifestações, como continua convocando a classe trabalhadora a lutar, atacar, "exigir juntos o fim do imperialismo e o direito à autodeterminação dos palestina", ou seja, desviar a arma da luta contra a própria classe trabalhadora. Por exemplo, os portuários italianos no porto de Livorno foram vistos se recusando a embarcar em um navio carregado com armas e explosivos com destino a Israel. Embora esta ação possa parecer fazer parte do que a classe trabalhadora deve enfrentar na guerra, na realidade os sindicatos e a esquerda burguesa têm inteiramente orientado esta ação com o objetivo declarado de apoiar a "causa palestina".[1]
A ideologia nacionalista é a própria antítese do terreno proletário, da defesa intransigente do internacionalismo, enfatizando a solidariedade de todos os explorados em todo o mundo. Era exatamente a mesma lógica quando a socialdemocracia traiu a classe trabalhadora em 1914: a rejeição do internacionalismo proletário e o apelo chauvinista para a participação do proletariado na Primeira Guerra Mundial contra o "militarismo alemão" para alguns, ou a "autocracia russa" para outros. O século XX foi, portanto, um século das guerras mais atrozes da história humana. Nenhuma delas jamais serviu aos interesses dos trabalhadores. Sempre, estes últimos foram chamados a serem mortos aos milhões pelos interesses de seus exploradores, em nome da defesa da "pátria", da "civilização", da "democracia", até mesmo da "pátria socialista" (como alguns apresentaram a URSS de Stalin e do Gulag).
Desde então, todos os trotskistas e anarquistas oficiais persistiram e assinaram: durante a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra da Argélia, o Vietnã e muitos outros... Neste caso, durante os múltiplos conflitos que assolam o Oriente Médio há mais de 50 anos, eles sistematicamente concebem que cabe aos proletários lutar pela "satisfação de todos os direitos nacionais e democráticos dos palestinos" e permitir uma "solução justa" para o conflito! Como se a quebra do mundo capitalista, seu caos crescente a cada dia, sua barbárie bélica em todos os níveis, o crescente militarismo das grandes potências e os subordinados regionais, todos imperialistas, pudessem levar a uma "solução justa"! Nesta região do mundo devastada pela guerra há décadas, como em todos os episódios de guerra em todo o mundo, não pode haver solução no quadro do capitalismo!
Onde, então, estão os interesses da classe trabalhadora, seja em Israel, judia ou árabe, seja na Palestina, ou nos outros países do mundo? Os trabalhadores judeus explorados em Israel por patrões judeus, trabalhadores palestinos explorados por patrões judeus ou árabes vivem as mesmas condições de trabalho e cada um tem o mesmo inimigo: o capitalismo. Assim como trabalhadores em todo o mundo!
Diante da loucura de guerra sofrida durante décadas pelos trabalhadores israelenses e palestinos, o proletariado das "grandes democracias" não deve tomar o partido de nenhum campo contra outro. A melhor solidariedade que pode lhes trazer certamente não é encorajar suas ilusões nacionalistas, mas desenvolver a luta contra o sistema capitalista responsável por todas as guerras. Diante do atual caos crescente em todo o Oriente Médio, a classe trabalhadora só será capaz de conquistar a paz derrubando o capitalismo através da luta internacional do proletariado.
Contra o nacionalismo, contra as guerras em que seus exploradores querem arrastá-lo: Proletários de todos os países, uni-vos!
Alfred, 7 de junho de 2021.
[1] Grupo “Solidariedade Obreira internacionalista” (14 de maio de 2021).
Em fevereiro passado, a CCI organizou uma série de reuniões públicas on-line em diferentes idiomas sobre o tema: "Pandemia e Decomposição". A conclusão geral destes debates, que realizamos com camaradas de muitos países, é que a pandemia pela Covid 19 é uma expressão e um fator de aceleração da decomposição social que ameaça aniquilar a humanidade e todo o planeta. Esta perspectiva de miséria, guerras, desastres ecológicos, novas pandemias, etc., é o único futuro que este sistema pode nos oferecer.
Não há, portanto, outra alternativa para escapar do caos e da barbárie a não ser destruir o capitalismo de cima para baixo. Mas quem pode fazer isso? Quem pode libertar a humanidade do jugo da exploração capitalista e da acumulação e estabelecer uma nova sociedade baseada na satisfação das necessidades humanas? Esta esperança ainda se encontra no horizonte da humanidade ou já está irremediavelmente sem perspectiva?
Nossas reuniões públicas são locais de debate abertos a todos que desejam se encontrar e discutir com a CCI. Convidamos calorosamente todos os nossos leitores, contatos e apoiadores a participar e contribuir ao debate, a fim de romper o isolamento imposto pela pandemia, continuar a refletir sobre a situação histórica atual e comparar pontos de vista. Os leitores que desejarem participar desta reunião pública on-line podem enviar mensagem para nosso endereço de e-mail: [email protected] [3] ou na seção "contato" https://pt.internationalism.org/contact [4].
O artigo que estamos publicando foi recentemente publicado pela seção francesa da CCI. Se os atos de violência entre os jovens a que se refere ocorreram neste país, não são, no entanto, uma especificidade francesa, mas uma característica deste mundo em apodrecimento. Da mesma forma, é também em escala global que se pode encontrar a solução para a tragédia que o capitalismo inflige diariamente à humanidade e à sua juventude: o derrube deste sistema, incapaz de oferecer outras perspectivas aos jovens dos subúrbios além do desemprego, a morte brutal na esquina da rua, sob os golpes de gangues ou policiais, ou como consequência do comportamento a social e mortal de outros jovens, que é um puro reflexo do mundo em que vivemos
Desde fevereiro, o número de incidentes de violência entre os jovens aumentou. Rixeas, agressões, assassinatos... o horror atinge duramente a jovem geração.
Em 15 de fevereiro, em Paris, Yuriy, de 15 anos, foi espancado e seu crânio esmagado com um martelo por 11 jovens de 15 a 18 anos. Mesmo inerte, no chão, eles continuaram batendo na vítima. Em 22 de fevereiro, em Essonne, uma garota de 14 anos morreu após receber uma facada no estômago durante uma briga entre duas gangues. Seis adolescentes entre 13 e 16 anos foram presos. No dia seguinte, 23 de fevereiro, ainda em Essonne, duas bandas se confrontaram: os "mais velho" (16-17 anos) " supervisionam" a luta entre o "mais novo" (12-15 anos) ... até que um deles, cercado, sacou uma faca... Um estudante de 14 anos morreu, outro de 13 anos está internado em estado grave com uma lesão na garganta. Em 26 de fevereiro, na cidad de Bondy, Aymen, um boxeador de 15 anos, morreu assassinado por arma de fogo. Os culpados: dois irmãos, de 17 e 27 anos. Em 8 de março, na cidad de Argenteuil, Alisha, de 14 anos, cai em uma emboscada fomentada por um casal de 15 anos: ela é espancada e quase inconsciente jogada no rio Sena. O contraste entre a juventude dos protagonistas e a barbárie dos atos cometidos é impressionante.
A imprensa e os políticos se alimentam dessas tragédias. As "famílias resignadas", os "imigrantes primitivos", os "muçulmanos", a "lentidão da justiça" e a "a polícia carece de recursos"
... e todos propõem como solução punir os pais, expulsar os estrangeiros, aumentar o número de policiais e endurecer a lei contra os jovens. É de fato esta carta repressiva que o governo jogará com uma reforma da justiça juvenil que levará a julgamentos rápidos e sentenças mais pesadas. Em outras palavras, eles preparam uma sociedade ainda mais violenta e desumana.
Na realidade, os jovens pagam o preço do apodrecimento desde as suas raízes de todo o corpo social: o não futuro é uma gangrena que gradualmente toma todo o seu corpo. Enquanto a burguesia já não é capaz de mobilizar a sociedade sob qualquer perspectiva, e enquanto o proletariado não consegue defender sua própria perspectiva revolucionária, a sociedade está se decompondo[1] e as relações sociais são estraçalhadas: individualismo exacerbado, niilismo, destruição dos laços familiares, cada um por si próprio, o medo do outro se expandem; violência indiscriminada, ódio, espírito de vingança e autodestruição estão se tornando a norma (na televisão, nos filmes, através da música, dos jogos). Esse derramamento de barbárie entre crianças por razões totalmente fúteis e irracionais é a expressão de uma sociedade sem futuro, que nos quebra, nos oprime e nos asfixia. Em escalas cada vez maiores do mundo, a violência juvenil se tornou uma ocorrência diária, seja na forma de rivalidades entre gangues ou tiroteios em escolas.
Hoje, a burguesia não tem futuro para oferecer a humanidade. Só a luta de classes pode acabar com essa dinâmica. Somente a solidariedade de classe, todas as gerações combinadas, pode lançar luz sobre o caminho para a perspectiva revolucionária e pôr fim a este capitalismo desumano e mortal.
Ginette, 24 de março de 2021
[1] Para aprofundar o que a CCI chama de "fase de decomposição" da sociedade capitalista, convidamos nossos leitores a ler as teses: "Decomposição, a fase final da decadência capitalista", [5] bem como os muitos artigos e controvérsias que publicamos sobre o assunto
Hoje, uma série de greves nos Estados Unidos, lideradas por trabalhadores exasperados, está sacudindo grande parte do país. Esse movimento chamado "striketober" (contração de "strike" e "october") mobiliza milhares de assalariados que denunciam condições de trabalho insuportáveis, tanto físicas quanto psicológicas, o aumento ultrajante dos lucros obtidos por empregadores de grupos industriais como kellog's, John Deere, PepsiCo ou no setor de saúde e clínicas privadas, como em Nova York, por exemplo. É difícil contabilizar com precisão o número de greves porque o Estado Federal só conta aqueles que envolvem mais de mil funcionários. O fato de que a classe trabalhadora pôde reagir e mostrar combatividade em um país agora no centro do processo mundial de decomposição é um sinal de que o proletariado não está derrotado.
Por quase dois anos, em todo o mundo, o peso de uma verdadeira barra de chumbo caiu sobre os ombros da classe trabalhadora com o surgimento da pandemia Covid-19, os episódios repetidos de confinamento, as internações de emergência e milhões de mortes. Em todo o mundo, a classe trabalhadora contabilizou as vítimas da negligência generalizada da burguesia, dos serviços de saúde dilapidados e sobrecarregados e, sempre sujeitos aos requisitos de lucratividade. O dia a dia e o medo do amanhã reforçaram sentimento de expectativa muito forte nas fileiras dos operários, acentuando ainda mais o recolhimento em si próprio. Após a renovada combatividade que havia sido expressa em vários países durante 2019 e no início de 2020, o confronto social atingiu uma paralisação abrupta. Ainda que o movimento contra a reforma da previdência na França tenha demonstrado um novo dinamismo no confronto social, a pandemia Covid-19 provou ser um poderoso freio.
Mas, em meio à pandemia, as lutas no terreno da classe trabalhadora surgiram aqui e ali, na Espanha, Itália, França, através de movimentos esporádicos que já expressam uma relativa capacidade de reagir às condições de trabalho insuportáveis, particularmente diante do aumento da exploração e cinismo da burguesia em setores como a saúde, transporte ou comércio. O isolamento imposto pelo vírus mortal e o clima de terror transmitido pela burguesia, no entanto, tornaram essas lutas impotentes para afirmar uma alternativa real à palpável degradação sanitária, econômica e social.
Pior, essas expressões de descontentamento diante das condições infernais e perigosas de trabalho para a saúde, as recusas (minoritárias) de ir trabalhar sem máscaras e sem proteção, foram apresentadas pela burguesia como egoístas, irresponsáveis e, sobretudo, culpadas de minar a unidade social e econômica de cada nação em sua luta contra a crise sanitária.
Enquanto durante anos, a população americana tem sido forçada a depender do todo-poderoso Estado, impondo sua saúde, lógica econômica e social, regada, como em todo o outro lugar, pelas mentiras populistas de um Donald Trump, que queria ser o campeão do pleno emprego, e o discurso do "novo Roosevelt", Joe Biden, milhares de trabalhadores estão gradualmente criando as condições para recuperar uma força coletiva que eles haviam esquecido. Eles estão lentamente redescobrindo uma confiança em suas próprias forças e sua capacidade de recusar o desprezível "sistema salarial de dois níveis"[1], demonstrando solidariedade entre gerações onde trabalhadores mais experientes e "protegidos" lutam ao lado dos jovens colegas em situação mais precária.
Essa solidariedade entre gerações já havia se manifestado na França em 2014, durante as lutas na SNCF e na Air France, diante de reformas idênticas. Também foi manifestada na Espanha, durante o movimento Indignados, em 2011, ou na França, em 2006, durante a luta contra o CPE. Essa solidariedade entre gerações representa um grande potencial para o desenvolvimento de lutas futuras, é a marca de uma busca por unidade nas fileiras da classe operária, enquanto a burguesia continua a dividir os "velhos aproveitadores" e os "jovens preguiçosos", como pode ser visto no movimento "Juventude pelo clima", por exemplo, reativado por ocasião da COP 26.
Mesmo que essas greves sejam muito bem enquadradas pelos sindicatos (o que, aliás, permitiu que a burguesia apresentasse essas mobilizações como o "grande retorno" dos sindicatos nos Estados Unidos), pudemos ver alguns sinais de questionamento aos acordos assinados por diferentes sindicatos. Este protesto é embrionário e a classe operária ainda está longe de se confrontar direta e conscientemente com esses cães de guarda do estado burguês. Mas isso é um sinal muito real de combatividade.
Alguns podem imaginar que essas lutas nos Estados Unidos são a exceção que confirma a regra: não é! Outras lutas surgiram nas últimas semanas e meses:
Se ouvirmos os economistas burgueses, a inflação corrente, que eleva todos os preços da energia e dos bens básicos, drenando o poder aquisitivo, nos Estados Unidos, França, Reino Unido ou Alemanha, é apenas uma consequência conjuntural da "recuperação econômica". Ligado a "aspectos específicos", como gargalos no transporte marítimo ou rodoviário, ao "superaquecimento" na produção industrial, particularmente no aumento dramático dos preços de combustíveis e gás, seria apenas um mau momento para passar antes da regulamentação, um equilíbrio na produção de mercadorias. Tudo é bom para tranquilizar e justificar um processo inflacionário "necessário"…. que, apesar de tudo, é provável que dure.
O dinheiro do "helicóptero", as centenas de bilhões de dólares, euros, ienes ou yuan que os governos imprimiram e derramaram durante meses para lidar com as consequências econômicas e sociais da pandemia e evitar o caos generalizado, só enfraqueceu o valor das moedas e pressionou o processo inflacionário crônico. Terá de ser pago e a classe trabalhadora está na primeira fila para sofrer os ataques.
Mesmo que ainda não tenha acontecido uma reação direta e massiva contra esse ataque, a inflação pode servir como um fator poderoso no desenvolvimento e unificação das lutas: o aumento dos preços das necessidades básicas, gás, pão, eletricidade, etc., só pode degradar diretamente as condições de vida de todos os trabalhadores, sejam eles trabalhadores no setor público ou privado, se estão empregados, desempregados ou aposentados.
Os governos sabem muito bem disso. Se eles ainda não impuseram programas de austeridade formalizados e, pelo contrário, injetaram maciçamente milhões e milhões de dólares, yuan e euros, eles sabem que é absolutamente necessário impulsionar a atividade e que existe uma bomba social. Enquanto os governos pensavam que acabariam rapidamente com todas as medidas de apoio relacionadas ao Covid e "normalizariam" as contas o mais rápido possível, Biden (para evitar uma catástrofe social) colocou em prática um "plano histórico" de intervenção que "criará milhões de empregos, fará crescera economia, investirá em nossa nação e em nosso povo"[2]. Achamos que estamos sonhando! É o mesmo na Espanha, onde o socialista Pedro Sanchez está implementando um plano maciço de 248 bilhões de euros de gastos sociais para o grande descontentamento de uma parte da burguesia que não sabe como a conta será paga. Na França, também, por trás de toda a confusão e discursos eleitorais para as eleições presidenciais de 2022, o governo está tentando antecipar o descontentamento social com "vales de energia" e um "subsídio de inflação" para milhões de contribuintes sem que isso resolve o problema.
Mas reconhecer e destacar a capacidade do proletariado de reagir não deve levar à euforia e à ilusão de que um caminho real está se abrindo para a luta do proletariado. Devido à dificuldade da classe operária em se reconhecer como uma classe explorada e em se conscientizar de seu papel revolucionário, o caminho de lutas significativas para abrir o caminho para um período revolucionário ainda está longe.
Nessas condições, o confronto permanece frágil, pouco organizado, em grande parte controlado pelos sindicatos, esses órgãos estatais especializados na sabotagem das lutas e que jogam tanto e mais corporativismo e divisão. Na Itália, por exemplo, as demandas iniciais e a combatividade das últimas lutas foram desviadas pelos sindicatos italianos e esquerdistas para um perigoso impasse: o slogan putrefato da "primeira greve industrial maciça da Europa contra o passe sanitário" que o governo italiano impôs a todos os trabalhadores.
Da mesma forma, enquanto alguns setores são fortemente afetados pela crise, fechamentos, reestruturação e aumento de velocidades, outros setores estão enfrentando uma escassez de mão de obra e/ou um boom a pontual de produção (como no transporte de cargas onde faltam centenas de milhares de motoristas na Europa). Esta situação contém o perigo de divisão dentro da classe através de exigências categóricas que os sindicatos não hesitarão em explorar ou estimular.
Some-se a isso os apelos da esquerda "radical" do capital para mobilizar também no terreno burguês: contra a extrema direita e os "fascistas" ou a favor das "marchas dos cidadãos" pelo clima... Esta é mais uma expressão da vulnerabilidade dos proletários no que diz respeito aos discursos da esquerda "radical", capaz de usar todos os meios possíveis para desviar a luta para um terreno não proletário, em particular o do interclassismo.
Da mesma forma, se a inflação pode atuar como fator de unificação das lutas, também afeta a pequena burguesia, com o aumento do preço da gasolina e dos impostos, elementos que, aliás, deram origem ao surgimento do movimento interclassista dos "coletes amarelos" na França. O contexto atual permanece, de fato, propício à ocorrência de revoltas "populares", nas quais as demandas proletárias permanecem submersas nas preocupações estéreis e reacionárias próprias dos pequenos patrões atingidos pela crise. Este é, por exemplo, o caso na China onde o colapso do gigante imobiliário Evergrande simboliza de uma forma muito espetacular a realidade de uma China superendividada, enfraquecida, mas que leva ao protesto de pequenos proprietários espoliados e que reagem como tal.
Lutas interclassistas são uma verdadeira armadilha e absolutamente não permitem que a classe trabalhadora afirme suas próprias demandas, sua própria combatividade, sua própria autonomia para uma perspectiva revolucionária. A decadência da sociedade capitalista, ampliada pela pandemia, pesa e continuará pesando sobre a classe trabalhadora ainda sujeita a grandes dificuldades.
A ausência no trabalho, as demissões em cadeia nas empresas, a recusa em voltar ao trabalho muitas vezes árduo por salários completamente rebaixados, não deixaram de aumentar nos últimos meses. Mas essas são reações individuais que testemunham mais uma tentativa (ilusória) de escapar da exploração capitalista do que confrontá-la através de uma luta coletiva com seus colegas de classe. A burguesia não hesita em explorar essa fraqueza para denegrir e culpar essas "demissões", a esses funcionários "exigentes", tornando-os diretamente "responsáveis" pela falta de pessoal em hospitais ou restaurantes, por exemplo. Em outras palavras, para semear mais divisão nas fileiras dos trabalhadores!
Apesar de todas as dificuldades e alçapões, este último período abriu uma brecha e confirma claramente que a classe trabalhadora é de fato capaz de se afirmar em seu próprio terreno de luta. O desenvolvimento de sua consciência passa por essa renovação da combatividade e ainda seja um longo caminho e repleto de armadilhas. Ao seu nível, os revolucionários devem saudar e acompanhar essas lutas, mas sua responsabilidade primeira é lutar da melhor forma possível por sua extensão, por sua politização necessária para manter viva a perspectiva revolucionária; ao mesmo tempo em que são capazes de reconhecer seus limites e fraquezas, eles devem denunciar firmemente as armadilhas estabelecidas pela burguesia e combater as ilusões que os ameaçam de onde quer que venham.
Stopio, 3 de novembro de 2021
No espaço de poucas semanas, em todo o planeta, catástrofes climáticas prosseguiram a uma taxa alarmante. Nos EUA, no Paquistão, na Espanha ou no Canadá, as temperaturas se aproximaram de 50º centígrados. No norte da Índia, o calor insuportável causou milhares de mortes. 800 000 hectares de floresta na Sibéria, uma das regiões mais frias do mundo, já virou fumaça. Na América do Norte, a temporada tradicional de grandes incêndios florestais já começou: mais de 150 000 hectares foram consumidos pelo incêndio, apenas na Colúmbia Britânica. No sul de Madagascar, uma seca sem precedentes atirou 1,5 milhão de pessoas na fome. Centenas de milhares de crianças estão morrendo porque não há o que comer, nada para beber, enquanto o mundo olha em uma indiferença quase unânime. O Quênia e vários outros países africanos estão passando pela mesma situação dramática.
Mas enquanto parte do mundo está sufocando, chuvas torrenciais causam dilúvios atingindo o Japão, China e Europa, provocando inundações sem precedentes e enxurradas de lama mortais. No centro da Europa, particularmente na Alemanha e na Bélgica, essas inundações, no momento que escrevemos, elevaram a mais de 200 mortes e milhares de feridos. Milhares de casas, ruas, vilas inteiras e conglomerados foram carregados pelas inundações. No oeste da Alemanha, estradas, redes de eletricidade e gás, ferrovias e comunicações foram destruídas. Várias pontes rodoviárias e ferroviárias desmoronaram. Nunca antes esta região foi atingida por inundações em tal escala.
Na China, na cidade de Zhenzhou, capital da província central de Henan e habitada por 10 milhões de pessoas, em três dias houve o equivalente a um ano inteiro de chuvas. Ruas transformadas em torrentes em fúria, com cenas assustadoras de destruição e caos: estradas desmoronadas, asfalto quebrado, veículos abandonados ... Milhares de passageiros do metrô ficaram presos em estações ou túneis, muitas vezes com água até a altura do pescoço. Pelo menos 33 mortes e muitos feridos; 200 000 pessoas evacuadas. Suprimentos de água, eletricidade e comida foram brutalmente interrompidos. Danos nas plantações custaram milhões. No sul de Henan, a barragem que continha o reservatório Guojiaju cedeu e outras duas estão sob ameaça de colapso a qualquer momento.
As conclusões do relatório do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas que foi "vazado" para a imprensa são arrepiantes: "A vida na Terra pode se recuperar de grandes mudanças climáticas, evoluindo em direção a novas espécies e criando novos ecossistemas. A humanidade não pode". Durante décadas, cientistas vinham alertando para os perigos das mudanças climáticas. Agora chegamos lá! Não é apenas uma questão de algumas espécies desaparecerem ou de desastres localizados. O cataclismo tornou-se permanente, e o pior ainda está por vir!.
Há alguns anos, ondas de calor, incêndios, furacões e outras formas de destruição se multiplicam. Mas, embora a ineficiência e incompetência dos Estados mais pobres na gestão de tais desastres infelizmente não surpreendam mais ninguém, a crescente incapacidade das grandes potências de lidar com a situação é particularmente reveladora do nível de crise na qual o capitalismo está se afundando.. Não só os fenômenos climáticos estão se tornando cada vez mais devastadores, numerosos e incontroláveis, mas os Estados e os serviços de emergência, após décadas de cortes orçamentários, mostram-se cada vez mais desorganizados e falhando em seu papel.
A situação na Alemanha é uma expressão muito clara dessa tendência. Embora o sistema europeu de alerta de inundações (EFAS) tenha antecipado as inundações de 14 e 15 de julho, "os avisos não foram levados a sério e os preparativos foram insuficientes", como disse a hidróloga Hannah Cloke: "os avisos não foram levados a sério e os preparativos foram inadequados "[1]. O estado central basicamente se desincumbiu dos sistemas de alerta transferindo-os para os estados federados, ou mesmo para os conselhos locais, sem quaisquer procedimentos padronizados ou os meios para trabalhar efetivamente. Resultado: enquanto as redes elétricas e telefônicas desabavam, impossibilitando o alerta da população e prosseguindo com as evacuações, a proteção civil só foi capaz de tocar as sirenes – só onde ainda estavam funcionando! Antes da reunificação, a Alemanha Ocidental e Oriental tinha cerca de 80 000 sirenes; agora há apenas 15 000 em funcionamento[2]. Sem meios de comunicação e coordenação, as operações dos serviços de emergência ocorreram no maior transtorno. Em outras palavras, a austeridade e a incompetência burocrática deram uma grande contribuição para o fiasco!
Mas a responsabilidade da burguesia não se limita a falhas nos serviços de emergência. Nessas regiões urbanas densamente povoadas, a permeabilidade do solo foi consideravelmente reduzida, aumentando os riscos de inundações. Durante décadas, a fim de melhor concentrar a força de trabalho em prol da rentabilidade, as autoridades não hesitaram em construir inúmeras casas em áreas de risco de inundação!
Uma grande parte da burguesia não pode evitar de admitir a ligação entre o aquecimento global e a multiplicação de catástrofes. No meio das ruínas, o chanceler alemão declarou solenemente "devemos nos apressar. Vamos andar muito mais rápido na luta contra as mudanças climáticas"[3]. É pura tartufaria!! Desde a década de 1970, cúpulas e conferências internacionais têm sido realizadas quase todos os anos, com suas listas de promessas, objetivos, compromissos. Cada vez que esses "acordos históricos" provaram ser desejos piedosos, enquanto as emissões de gases de efeito estufa continuaram a aumentar ano após ano.
No passado, a burguesia foi capaz de se mobilizar em torno de problemas imediatos que impactaram sua economia. Por exemplo, foi capaz de reduzir drasticamente os gases CFC responsáveis pelo buraco na camada de ozônio. Esses gases foram utilizados em sistemas de ar condicionado, geladeiras e aerossóis. Este foi, de fato, um esforço importante diante da ameaça representada pela degradação da camada de ozônio, mas nunca exigiu uma transformação drástica do aparato da produção capitalista. As emissões de CO2 são uma questão muito maior a esse respeito!
Os gases de efeito estufa resultam do transporte de trabalhadores e mercadorias, da energia para abastecer as fábricas. Resultam do metano produzido pela agricultura intensiva, que também envolve a destruição em larga escala das florestas. Em suma, as emissões de dióxido de carbono estão no centro da produção capitalista: a concentração da força de trabalho em imensas cidades, a anarquia da produção, a troca de mercadorias em escala planetária, a indústria pesada... estas são as razões pelas quais a burguesia é incapaz de encontrar soluções reais para a crise climática. A busca pelo lucro, a superprodução maciça de mercadorias, o saque dos recursos naturais – estes não são uma "opção" para o capitalismo: é a condição sine qua non de sua existência. A burguesia só pode promover o crescimento da produção com o objetivo de aumentar a acumulação de capital, caso contrário colocaria em risco seus próprios interesses e seus lucros diante da exacerbação da concorrência globalizada. A base dessa lógica é "depois de mim, o dilúvio!". Fenômenos climáticos extremos não estão mais apenas afetando as populações dos países mais pobres. Eles estão agora perturbando diretamente o aparato da produção industrial e agrícola nos países centrais. A burguesia fica assim presa no vício das contradições insolúveis!.
Nenhum Estado é capaz de transformar radicalmente seu aparato de produção sem ser repelido pela concorrência de outros países. A chanceler Merkel pode alegar que é hora de "apressar-se", mas na verdade o governo alemão nunca quis impor as rígidas regras ambientais que atrapalham a proteção de setores estratégicos como aço, produtos químicos ou automóveis. Merkel também conseguiu atrasar o abandono da produção de carvão: a exploração aberta do carvão na Renânia e no leste da Alemanha continua sendo uma das maiores fontes de poluição na Europa. Em outras palavras, o preço para a grande vantagem competitiva da economia alemã é a destruição ilimitada do meio ambiente! A mesma lógica implacável se aplica em todo o planeta: desistir das emissões de dióxido de carbono ou destruir suas florestas seria, para a China ou para qualquer um dos países industrializados, constitui um tiro no pé.
Diante dessa expressão gritante do impasse do capitalismo, a burguesia está instrumentalizando catástrofes, para melhor defender seu sistema. Na Alemanha, onde a campanha eleitoral para as eleições estaduais de setembro está no auge, os candidatos disputam entre si propostas de luta contra os distúrbios climáticos. Mas tudo isso é uma tentativa de jogar uma nuvem de fumaça nos nossos olhos! A "economia verde", que deveria criar milhões de empregos e permitir um "crescimento verde", não representa uma saída para o capital, nem econômica nem ecologicamente, seja no nível econômico ou ecológico. Para a burguesia, a "economia verde" acima de tudo tem um valor ideológico, espalhando a ideia de que o capitalismo pode ser reformado. Se novos setores "ecológicos" estão surgindo, como painéis solares, biocombustíveis ou veículos elétricos, não podem servir como locomotiva para toda a economia, dado os limites dos mercados capazes de absorver, mas seu impacto desastroso no meio ambiente já foi mostrado: destruição maciça de florestas para extrair minerais raros, estado deplorável de reciclagem de baterias , agricultura intensiva na produção de oleaginosas, etc.
A "economia verde" também é uma arma favorita contra a classe trabalhadora, justificando demissões e o fechamento de fábricas, como podemos ver a partir da declaração do candidato verde Baerbock nas eleições alemãs: "Só podemos eliminar progressivamente os combustíveis fósseis (e os trabalhadores que os acompanham) se tivermos à nossa disposição cem por cento de energia renovável"[4]. Deve-se dizer que quando se trata de demissões e da exploração do poder de trabalho, os Verdes já têm muita experiência, uma vez que durante sete anos eles desempenharam um papel ativo nas reformas ignóbeis do governo Schröder
A impotência da burguesia diante do impacto cada vez mais devastador do aquecimento global a nível humano, social e econômico não deve, no entanto, nos levar ao fatalismo. Certamente, presa às contradições de seu próprio sistema, a burguesia só pode levar a humanidade ao desastre. Mas a classe trabalhadora, através de sua luta contra a exploração e pela derrubada do capitalismo, detém a solução para essa óbvia contradição entre, por um lado, a obsolescência dos métodos de produção capitalistas, a anarquia completa do sistema que resulta na superprodução generalizada e no saque insano dos recursos naturais; e, por outro lado, a necessidade de um método racional de produção baseado nas necessidades da humanidade e não nas necessidades do mercado. Ao livrar a humanidade do lucro e da exploração, o proletariado terá a possibilidade material de realizar um programa radical de proteção do meio ambiente. O caminho é muito longo, mas o comunismo é mais do que nunca uma necessidade!
EG, 23.7.21
[1] "Allemagne: après les inondations, premièr [6]e [6]s tentatives d'explications [6]", Libération.fr (17 juillet 2021).
[2] "Warum warnte [7]n [7] n [7]i [7]cht ü [7]b [7]erall Sirenen vor [7] der Flut ? [7]", N-TV.de (19 de julho de 2021).
[3] "Choquée par les dégâts "surréalistes", Angela [8]M [8]erkel promet de reconstruire [8]", Le Monde.fr (18 de julho de 2021).
[4] "Klimaschutz fällt nicht vom Himmel, er muss auch gemacht werden [9]", Welt.de (22 de julho de 2021).
"É assim que os resultados são contestados nas repúblicas das bananas". A declaração seguiu-se à invasão do Capitólio por centenas de apoiadores do Trump que interromperam a proclamação da vitória de Joe Biden em 5 de janeiro. Poder-se-ia pensar que um julgamento tão duro sobre a situação política nos Estados Unidos viria de um indivíduo visceralmente hostil a este país, ou de um "esquerdista" americano. Nada disto: o antigo Presidente George W. Bush, que também é membro do mesmo partido que Trump, foi o autor. Isto mostra a seriedade do que aconteceu naquele dia em Washington.
Algumas horas antes, aos pés da Casa Branca, o Presidente derrotado, como um demagogo do Terceiro Mundo, tinha aquecido ao extremo a multidão dos seus apoiadores: "Nunca desistiremos! Nunca iremos admitir a derrota! Nunca recuperaremos o nosso país por sermos fracos! Sei que todos aqui marcharão em breve para o Capitólio, de forma pacífica, patriótica, para fazer ouvir as vossas vozes". Na sequência deste chamamento velado para o motim, a multidão vingativa, liderada pelas hordas trumpistas, a tendência fascista (como os Proud Boys), só teve de subir o National Mall em direção ao Capitólio e invadir o edifício, sob o olhar atento das forças da lei totalmente subjugadas. Como é que cordões de isolamento dos polícias encarregados de proteger o acesso ao Capitólio foram capazes de deixar passar os manifestantes, enquanto os impressionantes dispositivos de segurança durante os protestos da Black Lives Matter em frente ao mesmo edifício impediram qualquer transbordamento? Estas imagens aterradoras só poderiam dar origem à teoria de que o ataque a este emblema da democracia americana era um "11 de Setembro político".
Face ao caos, porém, as autoridades não demoraram a reagir: as tropas antimotim e a Guarda Nacional foram destacadas, dispararam tiros que causaram quatro mortes, foi instituído um toque de recolher enquanto o exército patrulhava as ruas de Washington... Estas imagens, totalmente alucinantes lembram as noites pós-eleitorais das "repúblicas das bananas" dos países do Terceiro Mundo dilaceradas pelas rivalidades sangrentas das gangues mafiosas. Mas estes eventos, que têm feito manchetes internacionais, não são obra de um general megalómano exótico. Realizaram-se no coração da principal potência mundial, no seio da "maior democracia do mundo".
A "profanação do templo da democracia americana" por uma multidão composta de supremacistas brancos armados com bastão de selfie, de milícias armadas fanáticas e enlouquecidas, por um teórico da conspiração usando um capacete de pele com chifres: é uma expressão flagrante da crescente violência e irracionalidade que gangrenam a sociedade nos Estados Unidos. As fraturas no seu aparelho político, a explosão do populismo desde a eleição de Trump, são demonstrações eloquentes do apodrecimento da sociedade desde as raízes. De fato, como temos sempre assinalado desde finais dos anos 80, o sistema capitalista, que entrou em decadência com a Primeira Guerra Mundial, afundou-se durante várias décadas na fase final desta decadência, a da decomposição[1]. A manifestação mais espetacular desta situação foi o colapso, há três décadas atrás, do bloco do Leste. Este acontecimento considerável não foi um simples indicador da fragilidade dos regimes que governavam os países deste bloco. Exprimiu um fenómeno histórico que afetou toda a sociedade capitalista em escala global e que desde então se agrava. Até agora, os sinais mais óbvios de decomposição foram observados nos países "periféricos" já enfraquecidos: multidões furiosas servindo de bucha de canhão para os interesses deste ou daquele grupo burguês, a violência epidêmica , a miséria mais horripilante aparecendo em cada esquina, a desestabilização dos estados, mesmo de regiões inteiras... Tudo isto parecia ser prerrogativa das "repúblicas das bananas".
Nos últimos anos, esta tendência geral afeta cada vez mais explicitamente os países "centrais". Claro que nem todos os Estados são afetados da mesma forma, mas é evidente que a decomposição está agora atingindo duramente os países mais poderosos: multiplicação dos ataques terroristas na Europa, vitórias surpreendentes de indivíduos tão irresponsáveis como Trump ou Boris Johnson, explosão de ideologias irracionais e, sobretudo, a gestão desastrosa da pandemia do Coronavírus, que por si só exprime a aceleração sem precedentes da decomposição ... Todo o capitalismo mundial, incluindo as suas partes mais "civilizadas", caminha inexoravelmente para a barbárie com convulsões cada vez mais agudas.
Embora os Estados Unidos, entre os países desenvolvidos, sejam agora os mais afetados por este apodrecimento da sociedade desde as suas raízes, representam também uma das principais fontes de instabilidade. A incapacidade da burguesia para impedir que um fantoche bilionário e populista - produto da "reality TV" - se tornasse Presidente, já estava exprimindo um caos crescente no aparelho político americano. Durante o seu mandato, Trump continuou a aprofundar as "fraturas" na sociedade norte-americana, notadamente raciais, e a alimentar o caos em todo o mundo com as suas declarações arrebatadoras e iniciativas dúbias, que ele orgulhosamente apresentava como manobras sutis de "homem de negócios". Recordaremos os seus reveses com o Estado-Maior americano que o tinha impedido, no último minuto, de bombardear o Irã , ou o seu "encontro histórico" com Kim Jong-un a quem tinha apelidado por fim de "homem foguetão" algumas semanas antes.
Quando surgiu a pandemia do COVID-19, após décadas de escassez contínua e agravada dos sistemas de saúde, todos os estados mostraram uma negligência criminosa. Mas mais uma vez, o Estado americano liderado por Donald Trump esteve na vanguarda da catástrofe, tanto a nível interno com um número recorde de mortes[2], (2) como a nível internacional, desestabilizando uma instituição global de "cooperação" como a OMS.
O assalto ao Capitólio por bandas de trumpistas fanáticos está inteiramente de acordo com esta dinâmica de explosão do caos em todos os níveis da sociedade. Este evento é uma manifestação dos confrontos crescentes, totalmente irracionais e cada vez mais violentos entre diferentes partes da população (os "brancos" contra os "negros", as "elites" contra o "povo", os homens contra as mulheres, os heterossexuais contra os homossexuais, etc.), dos quais o surgimento de milícias racistas fortemente armadas e de conspiradores totalmente ilusórios é a expressão caricatural.
Mas essas "fraturas" são sobretudo um reflexo do confronto aberto entre as frações da burguesia americana, com os populistas em torno de Trump de um lado e, as frações mais preocupadas com os interesses de longo prazo do capital nacional do outro: Dentro do Partido Democrata e entre o Partido Republicano, na máquina do aparelho estatal e no exército, na antena dos principais canais de notícias ou no pódio das cerimônias de Hollywood, as campanhas, a resistência e os golpes baixos contra o gestual do Presidente populista, têm sido constantes e às vezes muito virulentas.
Estes confrontos entre diferentes setores da burguesia não são novidade. Mas em uma "democracia" como os Estados Unidos, e ao contrário do que acontece nos países do Terceiro Mundo, eles se expressaram no âmbito das instituições, no "respeito à ordem". O fato de que estes confrontos hoje assumem esta forma caótica e violenta nesta "democracia modelo" testemunha um agravamento dramático do caos dentro do aparelho político da classe dominante, um passo significativo no afundamento do capitalismo em decomposição.
Ao agitar seus apoiadores, Trump deu um novo passo em sua política de "terra arrasada" após sua derrota nas últimas eleições presidenciais, que ele ainda recusa a reconhecer. O golpe de força contra o Capitólio, instância do poder legislativo e símbolo da democracia americana, provocou uma cisão dentro do partido republicano, sua fração mais "moderada" de fato só poderia denunciar este "golpe" contra a democracia e se dissociar do Trump para tentar salvar o partido de Abraham Lincoln. Quanto ao outro lado, os democratas tiveram que subir à tribuna e denunciar a irresponsabilidade e o comportamento criminoso de Trump.
Numa tentativa de restaurar a imagem da América diante do espanto da burguesia mundial, e para conter a explosão do caos na "terra da Liberdade e da Democracia", Joe Biden e sua turma, engajaram-se imediatamente em uma luta até a morte contra Trump. Apressaram-se a denunciar as ações irresponsáveis deste Chefe de Estado perturbado, que já não lhe permite permanecer no poder durante treze dias que antecede posse final do Presidente eleito após a apuração das urnas.
A cadeia de demissões de ministros do gabinete republicano, o chamamento à demissão ou destituição de Trump, e recomendações ao Pentágono para monitorar de perto suas ações para garantir que ele não pressione o botão de disparo da arma nuclear, são provas do desejo de eliminar do jogo político aquele que ainda é Presidente. Na sequência do ataque ao Capitólio, esta crise política resultou no abandono de Trump pela metade de seu eleitorado, com outra metade continuando a prestar apoio e justificar o ataque. A carreira política de Trump aparentemente está em sério risco. Em particular, tudo está sendo colocado em prática para que ele se torne inelegível e não possa concorrer novamente em 2024. Hoje, o Presidente derrotado tem apenas um objetivo: salvar sua própria pele diante da ameaça de acusação por seus apelos à insurreição. Depois de chamar suas tropas, mas não condenando suas ações, para "voltar pacificamente para casa" na noite do ataque ao Capitólio, Trump roeu a outra metade da corda chamando de "abominável" o ataque e dizendo que estava "indignado com a violência". E continuando a manter um perfil discreto, ele finalmente reconheceu sua derrota eleitoral com uma expressão labial e disse que deixaria o "trono" para Biden, mas ao mesmo tempo se recusou a estar presente na cerimônia de posse de 20 de janeiro.
É possível que Trump possa ser eliminado definitivamente do jogo político, mas este não é o caso do populismo! Esta ideologia reacionária e obscurantista é uma onda de fundo que só pode crescer com o fenômeno global do agravamento da decadência social, do qual os Estados Unidos são hoje o epicentro. A sociedade americana está mais do que nunca dividida, fraturada. O aumento da violência continuará com o perigo permanente de confrontos (incluindo confrontos armados) entre a população. A retórica de Biden de "reconciliar o povo americano" mostra uma compreensão da gravidade da situação, mas além de tal ou qual sucesso parcial ou temporário, ela não será capaz de deter a tendência subjacente de confronto e deslocamento social na principal potência mundial.
O maior perigo para o proletariado nos EUA seria deixar-se arrastar para o confronto entre as diferentes frações da burguesia. Uma boa parte do eleitorado de Trump é formada por trabalhadores que rejeitam as elites e procuram por um "homem providencial". A política de revitalização da indústria de Trump tinha reunido atrás dele muitos proletários do "cinturão da ferrugem" que haviam perdido seus empregos. Havia um risco de conflitos entre trabalhadores pró-Trump e pró-Biden. Além disso, a desagregação da sociedade corre o risco de agravar ainda mais a divisão racial, endêmica nos Estados Unidos, entre brancos e negros, ao impulsionar ideologias identitárias.
A tendência da burguesia de perder o controle de seu jogo político, como vimos com a chegada de Trump como Presidente, não significa que a classe trabalhadora possa se beneficiar da decomposição do capitalismo. Pelo contrário, a classe dominante está constantemente direcionando os efeitos da decomposição contra a classe trabalhadora. Já em 1989, quando o colapso do bloco do Leste foi uma manifestação estrondosa da decomposição do capitalismo, a burguesia dos grandes países utilizou este evento para desencadear uma gigantesca campanha democrática global através de uma intensa lavagem cerebral, destinada a traçar um laço entre a barbárie dos regimes estalinistas e a verdadeira sociedade comunista. Os discursos enganosos sobre "a morte da perspectiva revolucionária" e "o desaparecimento da classe trabalhadora" tinham desorientado o proletariado, causando um profundo retrocesso em sua consciência e combatividade. Hoje, a burguesia está instrumentalizando os eventos no Capitólio com uma nova campanha internacional para a glória da democracia burguesa.
Enquanto os "rebeldes" ainda ocupavam o Capitólio, Biden imediatamente declarou: "Estou chocado e triste que nossa nação, durante muito tempo um farol de esperança para a democracia, esteja enfrentando um momento tão sombrio. ... O trabalho de hoje e dos próximos quatro anos será o de restaurar a democracia", seguido de uma série de declarações semelhantes, inclusive do Partido Republicano. O mesmo ruído foi ouvido no exterior, particularmente dos líderes dos principais países da Europa Ocidental: "Estas imagens me deixaram furioso e triste. Mas estou certo de que a democracia americana será muito mais forte do que os agressores e desordeiros", disse Merkel. "Não vamos ceder à violência de alguns que querem desafiar [a democracia]", disse Emmanuel Macron. E Boris Johnson acrescentou: "Toda a minha vida, a América representou algumas coisas muito importantes: uma ideia de liberdade e uma ideia de democracia". Após a mobilização em torno da eleição presidencial, que viu um comparecimento recorde, e o movimento "Black Lives Matter" exigindo uma força policial "mais limpa" e "mais justa", grandes setores da burguesia global estão procurando atrair o proletariado em nome da defesa do Estado democrático contra o "populismo". O proletariado está sendo chamado ao lado da claque "democrática" contra o "ditador" Trump. Esta falsa "escolha" é pura mistificação e uma verdadeira armadilha para a classe trabalhadora!
A contrário do caos internacional que Trump tem constantemente alimentado, será que o "democrata" Biden vai impor uma "ordem mundial mais justa"? Não, ele não vai! O Prêmio Nobel da Paz, Barack Obama, e seu ex-vice-presidente, Joe Biden, viveram oito anos de guerras ininterruptas! As tensões com a China, Rússia, Irã e todos os outros tubarões imperialistas não desaparecerão milagrosamente.
Será que Biden dará aos migrantes um destino mais humano? Para ter uma ideia, basta ver como cruelmente todos os seus antecessores e todas as "grandes democracias" tratam esses "indesejáveis"! Deve-se lembrar que durante os oito anos da presidência de Obama (do qual Biden foi vice-presidente) houve mais deportações de imigrantes do que durante os oito anos da presidência do republicano George W. Bush. As medidas anti-imigração da administração Obama só abriram o caminho para a escalada anti-imigração de Trump.
Os ataques econômicos à classe trabalhadora vão parar com o chamado "retorno da democracia"? Certamente que não! O mergulho da economia mundial em uma crise sem esperança, agravada ainda mais pela pandemia do Covid-19, resultará em uma explosão do desemprego, mais miséria, mais ataques às condições de vida e de trabalho dos explorados, em todos os países centrais dirigidos por governos "democráticos". E se Joe Biden conseguir "limpar" a polícia, as forças de repressão do Estado "democrático", nos EUA como em todos os países, continuarão a ser desencadeadas contra qualquer movimento da classe trabalhadora e reprimindo todas as suas tentativas de lutar em defesa de suas condições de vida e de suas necessidades mais básicas.
Portanto, não há nada a se esperar de um "retorno da democracia americana". A classe trabalhadora não deve se deixar embalar pelo canto das sereias das frações "democráticas" do Estado burguês. Não deve esquecer que foi em nome da defesa da "democracia" contra o fascismo que a classe dominante conseguiu recrutar dezenas de milhões de proletários para a Segunda Guerra Mundial, sob a égide de suas frações esquerdistas e frentes populares. A democracia burguesa é apenas a face mais enganosa e hipócrita da ditadura do capital!
O ataque ao Capitólio é mais um sintoma de um sistema moribundo que está arrastando a humanidade para o precipício. Diante da sociedade burguesa em decomposição, somente a classe trabalhadora mundial, ao desenvolver suas lutas em seu próprio terreno de classe contra os efeitos da crise econômica, pode derrubar o capitalismo e pôr fim à ameaça de destruir o planeta e a espécie humana em um caos cada vez mais violento.
CCI, 10 de janeiro de 2021
[2] No momento em que este texto foi escrito, houve 363 581 mortes oficiais nos Estados Unidos e quase 22 milhões de pessoas infectadas (Fonte: "Coronavirus : el mapa que muestra el número de infectados y muertos en el mundo por covid-19 [11]", BBC News Mundo)
Relatamos algumas das questões debatidas em uma reunião pública da CCI no Brasil sobre o tema: "O agravamento da decomposição do capitalismo: seus perigos para a humanidade e a responsabilidade do proletariado", que visava ilustrar através de alguns eventos recentes e atuais a realidade prevalente da fase terminal da vida da sociedade capitalista, a de sua decomposição.
Neste artigo, não daremos conta de todas as intervenções feitas, nem para apoiar a posição da CCI, nem para expressar dúvidas e perguntas sobre ela, nem para expressar desacordos claros. Nos concentraremos em alguns dos desacordos que consideramos mais importantes, desenvolvendo nossa argumentação em relação a eles, além do que fomos capazes de fazer na própria reunião pública. Por meio desta publicação pretendemos iniciar um debate, assumindo uma abordagem clássica do movimento operário, para a qual um motor essencial de esclarecimento político é o confronto firme e fraterno dos pontos de vista presentes. Incentivamos nossos leitores, e particularmente os participantes desta reunião, a reagir a este artigo enviando comentários ou contribuições à CCI, ou ainda participando de uma próxima reunião organizada pela CCI e dedicada à continuação da discussão destas discordâncias[1].
Publicamos em nossa imprensa teses que teoricamente fundamentam nossa análise da decomposição[2] e um conjunto de artigos que ilustram sua realidade.
A imagem que o mundo nos dá hoje é de caos global, ou seja, um problema global que exige uma solução global. De fato, a observação do mundo não revela problemas particulares, mas uma multitude de fenômenos de decomposição que afetam todas as esferas da sociedade. Nós já os destacamos em muitas ocasiões e eles revelam que o mundo está profundamente doente. De que outra forma podemos analisar os seguintes sintomas, dentre muitos outros? A incrível corrupção que cresce e próspera no aparelho político, o aumento permanente da criminalidade, da insegurança, da violência urbana (...) a onda gigantesca das drogas, que agora está se tornando um fenômeno de massa, a profusão de seitas, o renascimento do espírito religioso, inclusive em alguns países avançados, a rejeição do pensamento racional, coerente, construído (...) o "cada um por si", a marginalização, a atomização dos indivíduos, a destruição das relações familiares, a exclusão dos idosos, a aniquilação da afetividade suicídios...
Nossa apresentação introdutória à discussão da reunião pública ilustrou a atualidade de nossa análise da decomposição, por meio de três eventos atuais: a retirada dos EUA do Afeganistão, a pandemia de Covid-19 e as consequências da mudança climática.
De fato, cada um desses três eventos ilustra, em seu próprio âmbito, o crescente impasse do capitalismo expresso pela crescente irracionalidade deste último, não apenas em relação aos interesses da humanidade, mas também em relação a seus próprios interesses como um sistema de exploração, em que há a concorrência e a rivalidade "até a morte" entre os diferentes atores: nações, empresas, setores, ... em suma, o crescimento do cada um por si em detrimento de uma cooperação mínima necessária entre eles permitindo a continuação da exploração e da acumulação.
Logo após a primeira guerra mundial em 1919, a Internacional Comunista, em seu primeiro congresso, declarou que o capitalismo mundial havia iniciado um processo de "desintegração interior" e que "O resultado final do modo de produção capitalista é o caos"[3]. A possibilidade da classe operária obter reformas duradouras no capitalismo tinha desaparecido na matança multifacetada das trincheiras, nas ruínas em chamas que a Europa tinha se tornado durante a Primeira Guerra Mundial, e na pauperização da classe trabalhadora. As organizações operárias do passado, os partidos socialdemocratas e os sindicatos tinham traído e passado para o serviço da burguesia contrarrevolucionária.
A partir de então o programa máximo da classe trabalhadora, exposto no Manifesto Comunista publicado em 1848, entrou na agenda da história. O proletariado deveria derrubar a burguesia e estabelecer seu poder político em escala mundial.
Hoje, após mais de um século de decadência capitalista, podemos ver quão visionárias foram as palavras da Internacional Comunista sobre a "desintegração interna" do capitalismo mundial.
De fato, estamos vivendo o colapso no caos capitalista, e tudo o que isso implica para o destino da própria existência humana, anunciado há cem anos. Na verdade, estamos vendo o auge da decadência capitalista em sua agonia final de morte, o período de decomposição social. Mas salientamos: não estamos anunciando o fim do mundo amanhã, estamos falando de tendências a longo prazo e irreversíveis sem a intervenção revolucionária da classe trabalhadora!
Estas sociedades têm experimentado expressões de deslocação do corpo social, putrefação das suas estruturas econômicas, políticas e ideológicas, etc. O mesmo tem ocorrido no capitalismo desde que iniciou a sua decadência. No entanto, (...) , o fenômeno da decomposição social atinge hoje uma tal profundidade e amplitude que assume uma nova qualidade, uma qualidade singular, que expressa a entrada do capitalismo decadente numa fase específica - e última - da sua história, aquela em que a decomposição social se torna um fator, até mesmo o fator decisivo na evolução da sociedade.
O que explica esta evolução?
Em tal situação, em que as duas classes fundamentais e antagônicas da sociedade se confrontam sem conseguir impor sua própria resposta decisiva, a história continua, no entanto, seu curso, enquanto as contradições do capitalismo em crise continuam a agravar-se. A incapacidade da burguesia em oferecer a toda a sociedade a menor perspectiva e a incapacidade do proletariado de afirmar abertamente a sua, só podem desembocar num fenômeno de decomposição generalizada, de apodrecimento da sociedade desde as suas raízes.
O fato de que nenhuma das sociedades de classe que precederam o capitalismo passou por uma fase final de decomposição torna mais fácil entender por que isso é o caso no capitalismo. Na verdade, nestas sociedades de classe pré-capitalistas, as novas relações de produção, que sucederiam às já ultrapassadas relações de produção, poderiam desenvolver-se internamente, dentro da mesma sociedade. Isso podia de certa forma limitar os efeitos e a extensão da decadência daquelas sociedades. Por enquanto a sociedade comunista, a única capaz de suceder o capitalismo, não será capaz de se desenvolver em seu seio; não há, portanto, a menor possibilidade de regeneração da sociedade sem a derrubada violenta do poder da classe burguesa e a destruição das relações capitalistas de produção.
1. A pandemia é realmente um fenômeno social? E o que é mais, é indicativo da decomposição do capitalismo?
Nossa apresentação sobre este assunto afirmou: A Pandemia Covid-19 está em foco há quase dois anos. Longe de ser um fenômeno natural limitado à própria doença, ele se tornou um grande fenômeno social que afeta todo o planeta. Previsível e previsto há anos, poderia ter sido evitado e suas consequências foram agravadas pela impotência da burguesia em lidar com a situação.
Um camarada admitiu que ainda não conseguia entender como a pandemia é um fenômeno social e, portanto, como ela pode ser uma ilustração da decomposição. Nós mesmos não entendemos a razão da dificuldade do camarada, pois a história mostra que sempre houve uma ligação entre o desenvolvimento de infecções de um lado e a organização e o estado de uma sociedade, do outro. Por exemplo, no período de decadência do Império Romano Ocidental, as condições de existência e a política expansionista do Império permitiram que o bacilo da Peste se espalhasse de forma espetacular e causasse uma verdadeira hecatombe entre a população[4].
No que diz respeito ao capitalismo, ao tornar inaptas as forças de trabalho indispensáveis à criação de valor, a doença sempre foi um obstáculo ao bom funcionamento do aparelho produtivo. Também tem dificultado os empreendimentos imperialistas, enfraquecendo os homens mobilizados nos campos de batalha. Não é surpreendente, portanto, que toda a história do capitalismo mostre que o tratamento de doenças é uma constante na vida deste sistema e que seu progresso ou regressão é o produto de sua própria dinâmica[5]. Algumas das medidas tomadas pelo capitalismo são marcos que testemunham isso:
O capital teria agora uma força de trabalho protegida contra doenças, sempre disponível e explorável. Isto sem levar em conta que o desenvolvimento desenfreado do capitalismo em seu período de decadência gera maior destruição do meio ambiente (desmatamento), intensificação do movimento de pessoas, urbanização descontrolada, instabilidade política e mudança climática, todos fatores que favorecem o surgimento e a propagação de doenças infecciosas. Como resultado, desde os anos 2000, a humanidade tem sido confrontada com pelo menos uma nova doença infecciosa por ano: (SARS, Ebola, Febre de Lassa ou Covid-19) e 70% das doenças emergentes são zoonoses, doenças transmitidas dos animais para os seres humanos.
A burguesia não foi capaz de reagir aos fortes sinais enviados pelos cientistas em 2003 com a chegada da primeira SARS para implementar as pesquisas necessárias durante dez anos e por 150 milhões de euros que teriam permitido a produção de um antiviral de amplo espectro contra o Corona vírus[6]. Também não reagiu às advertências da CIA em 2019[7]. E durante a própria pandemia, ela geralmente ignorou as recomendações da OMS.
Assim, o mais grave da pandemia é a forma como todos os Estados reagiram: de forma totalmente irresponsável, tomando medidas contraditórias e caóticas, sem nenhum plano, sem nenhuma coordenação, jogando mais cinicamente do que nunca com a vida de milhões de pessoas. Isto não aconteceu nos Estados geralmente descritos como "malfeitores", mas nos Estados Unidos, Alemanha, os países chamados mais "avançados", onde há a chamada "civilização e progresso", e na China com seu grande PIB. A pandemia tem destacado a decadência e a decomposição do capitalismo, a podridão de suas estruturas sociais e ideológicas, a desordem e o caos que emanam de suas relações de produção, a falta de um futuro para um modo de produção atormentado por contradições cada vez mais violentas que ele não pode superar. Os números falam por si: a classe dominante não conseguiu evitar a morte de 7 a 12 milhões de pessoas em todo o mundo e evitar a paralisia do aparelho produtivo, o que agravou uma recessão econômica global que já era iminente. Algumas boas vacinas foram produzidas em tempo recorde, mas esse tempo teria sido ainda mais curto se todos os países tivessem cooperado em vez de guardarem ciosamente os resultados de suas pesquisas, .... E essas vacinas podem acabar sendo insuficientes enquanto a metade mais pobre da população mundial permanecer não vacinada, pois constitui um terreno fértil para novas variantes do vírus, mais contagiosas e mais perigosas ... para o mundo inteiro. Este é o auge da irracionalidade capitalista.
2. Existe uma solução para o aquecimento global sob o capitalismo?
Nossa apresentação argumentou que a mudança climática tem sua origem no açambarcamento e desperdício dos recursos naturais pelo capitalismo, enquanto existir, sem considerar as consequências de tais ações. Dito isto, a escala e a intensidade da destruição ambiental decolaram nos anos 60 e se aceleraram nos anos 80, estimulados pelos efeitos da crise econômica. De tal forma que suas consequências preocupam setores cada vez maiores da burguesia, que estão conscientes do impacto da mudança climática na economia e até mesmo na vida na Terra, mas são incapazes de fazer nada a respeito.
Dois camaradas pensam, pelo contrário, que a burguesia é capaz de encontrar uma solução para o aquecimento global. O problema é que eles não nos dizem por que todas as tentativas feitas pela burguesia durante décadas - com suas conferências climáticas desde a conferência do Rio em 1992 até a recente COP26 em Glasgow - não levaram a nada substancial para evitar a catástrofe global. A situação tem se tornado cada vez mais dramática e os "parceiros" cada vez mais impotentes para chegar a um acordo sobre medidas concretas e significativas, para limitar as emissões de gases de efeito estufa, por exemplo. Esta situação é o resultado da contradição entre a natureza global do capitalismo, por um lado, e o fato de que o mais alto nível de centralização que ele pode alcançar é o da nação, por outro. Esta situação favorece a expressão de sua natureza anárquica, uma vez que a competição entre diferentes países se intensifica. Hoje, se um país se aventurasse a tomar a iniciativa em medidas de proteção ambiental, sua competitividade reduziria e o colocaria em uma desvantagem considerável na concorrência global.
3. Qual é a diferença entre as contradições econômicas fundamentais do capitalismo e os crescentes obstáculos à acumulação colocados por este sistema em decomposição?
Esta diferença foi levantada por um camarada que parecia subestimar a importância de problemas como o aquecimento global, comparando-os a contradições econômicas, que não são superáveis. Como se os problemas climáticos não fossem capazes de se apresentar como um obstáculo definitivo à acumulação! Não é assim que a realidade funciona. De fato, o aquecimento global, a devastação da natureza, etc., já são em parte consequência de contradições econômicas. Como a resolução sobre a situação internacional adotada no 24º Congresso da CCI deixa claro: "O caos que está dominando a economia capitalista confirma a opinião de Rosa Luxemburg de que o capitalismo não sofrerá um colapso puramente econômico: "Quanto mais a violência aumenta, com a qual o capital destrói os estratos não capitalistas interna e externamente e degrada as condições de existência de todas as classes trabalhadoras, mais a história diária de acúmulo no mundo se transforma em uma série de catástrofes e convulsões, o que, juntamente com as crises econômicas periódicas, acabará impossibilitando a continuação do acúmulo e colocará a classe trabalhadora internacional contra a dominação do capital mesmo antes mesmo de ter atingido economicamente os últimos limites objetivos de seu desenvolvimento". ("A acumulação do Capital", capítulo 32)".
4. Qual a utilidade, para nosso quadro de análise da situação, de introduzir a noção de uma "fase de decomposição" dentro da decadência do capitalismo?
Dois camaradas pensavam que não havia nenhuma. Um deles concorda completamente com a CCI quando esta destaca as expressões de decomposição da sociedade, mas também refuta a abordagem que consiste em deduzir a existência de uma nova fase dentro da decadência do capitalismo. Ele não vê nenhum sentido em introduzir esta última[8].
Para a CCI, esta é uma questão teórica com implicações práticas que consideram a burguesia, o proletariado e a intervenção dos revolucionários. De fato, uma intervenção digna da vanguarda do proletariado deve ser capaz de compreender e fazer compreender o senso da história dentro do período em que eles intervêm, do que está em jogo considerando a luta de classes em particular. Assim, durante todo um período da vida do capitalismo decadente, desde a Primeira Guerra Mundial até o desaparecimento do bloco oriental em 1989 e logo do bloco ocidental, durante o qual o mundo foi dividido entre dois blocos imperialistas rivais, a alternativa histórica foi "guerra imperialista ou revolução mundial". Desde então, esta alternativa tornou-se "destruição da humanidade no caos da sociedade em decomposição ou revolução mundial".
Há uma série de questões vitais, que a vanguarda política do proletariado deve abordar se quiser se orientar e intervir positivamente na situação histórica:
Todas estas questões devem ser abordadas em uma próxima reunião organizada pela CCI.
[1] Se recebermos tais contribuições, é claro que as incluiremos na discussão desta próxima reunião.
[3] Ler nosso artigo "Centenário da fundação da Internacional Comunista - A internacional da ação revolucionária da classe operária [13]"
[4] Leia (em Inglês, Francês, ..) "Como o Império Romano em colapso", Kyle Harper, 2019.
[5] Leia nosso artigo em francês Toutes les pandémies du passé étaient le produit de sociétés décadentes, celle de Covid-19 ne fait pas exception [14]
[6] O jornal Francês Le Monde do 29 de Fevereiro 2020.
[7] O Mundo em 2035 como visto pela CIA (2017): "O planeta e seus ecossistemas provavelmente serão fortemente afetados nos próximos anos por uma variedade de mudanças humanas e naturais. [...] A mudança das condições ambientais e o crescimento das ligações globais e do comércio afetarão a frequência das chuvas, a biodiversidade e a reprodução microbiana. Tudo isso afetará naturalmente as culturas e os sistemas agrícolas e aumentará o surgimento, a transmissão e a propagação de doenças infecciosas humanas e animais. [...] As lacunas e falhas nos sistemas de saúde nacionais e internacionais tornarão mais difícil detectar e administrar surtos, o que pode fazer com que eles se espalhem por áreas muito grandes."
[8] Esta não é a primeira vez que fases particulares dentro do capitalismo são identificadas por meio de uma característica própria delas: " De fato, da mesma forma que o capitalismo conhece diferentes períodos em seu percurso histórico - nascimento, ascensão, decadência - cada um desses períodos também contém suas diferentes fases. Por exemplo, o período de ascensão teve as sucessivas fases do mercado livre, da sociedade por ações, do monopólio, do capital financeiro, das conquistas coloniais, do estabelecimento do mercado mundial. Da mesma forma, o período de declínio também teve sua história: imperialismo, guerras mundiais, capitalismo de estado, crise permanente e, hoje, decomposição. Estas são diferentes expressões sucessivas da vida do capitalismo cada uma delas permitindo caracterizar uma fase particular desta; mesmo que estas expressões talvez já existissem na fase anterior, talvez permanecessem na seguinte". Decomposição, a fase final do declínio do capitalismo [10] (Tese 3)
A retirada precipitada das forças norte-americanas e ocidentais do Afeganistão é uma demonstração viva da incapacidade do capitalismo de oferecer qualquer outra coisa além de aumentar a barbárie. O verão europeu de 2021 já tinha dado conta de uma aceleração dos eventos inter-relacionados que mostram que o planeta já está em chamas: o início de ondas de calor incontroláveis e incêndios desde a costa oeste dos EUA até a Sibéria, as enchentes, a contínua devastação da pandemia de Covid-19 e o debacle econômico que ela causou durante estes 30 últimos anos[1]. Como marxistas, nosso papel não é simplesmente comentar este caos crescente, mas analisar suas raízes, que estão na crise histórica do capitalismo, e mostrar as perspectivas para o proletariado e para toda a humanidade.
Os Talibãs são apresentados como inimigos da civilização, um perigo para os direitos humanos e para os direitos das mulheres em particular. Eles são certamente brutais e movidos por uma visão que remete aos piores aspectos da Idade Média. No entanto, não são uma exceção nos tempos em que vivemos. Eles são o produto de um sistema social reacionário: o capitalismo decadente. Em particular, sua ascensão é uma manifestação de decomposição, a etapa final da decadência do capitalismo.
Na segunda metade dos anos 70, houve uma escalada da Guerra Fria entre os blocos imperialistas dos EUA e da Rússia, com os EUA instalando mísseis de cruzeiro na Europa Ocidental e forçando a URSS a uma corrida armamentista que cada vez mais dificilmente poderia ser paga. Entretanto, em 1979, um dos pilares do bloco ocidental no Oriente Médio, o Irã, entrou em colapso. Todas as tentativas das frações mais responsáveis da burguesia iraniana de impor a ordem falharam e os elementos mais atrasados do clero se aproveitaram deste caos para tomar o poder. O novo regime rompeu com o bloco ocidental, ao tempo em que também se recusou a aderir ao bloco russo. O Irã tem uma longa fronteira com a Rússia e, portanto, tinha desempenhado um papel fundamental na estratégia ocidental de cercar a URSS. Após este colapso, ele se tornou um elétron livre na região. Esta nova desordem encorajou a URSS a invadir o Afeganistão quando o Ocidente tentou derrubar o regime pró-russo que havia conseguido instalar em Cabul, em 1978. Ao invadir o Afeganistão, a Rússia esperava ter acesso ao Oceano Índico em uma etapa posterior.
No Afeganistão, testemunhamos uma terrível explosão de barbaridade militar. A URSS liberou toda a força de seu arsenal sobre os mujahidin ("combatentes da liberdade") e sobre a população em geral. Por outro lado, o bloco americano armou, financiou e treinou os mujahedin e os senhores da guerra afegãos que se opunham aos russos. Entre eles estavam muitos fundamentalistas islâmicos, assim como um crescente fluxo de jihadistas de todo o mundo. Os EUA e seus aliados ensinaram a esses "combatentes da liberdade" todas as artes do terror e da guerra. Esta guerra pela "liberdade" já matou entre 500.000 e 2 milhões de pessoas e deixou o país devastado. Foi também o berço de uma forma mais global de terrorismo islâmico, caracterizado pela ascensão de Bin Laden e da Al-Qaeda.
Ao mesmo tempo, os EUA empurraram o Iraque para uma guerra de oito anos com o Irã, na qual cerca de 1,4 milhões de pessoas foram massacradas. Quando a Rússia se exauriu no Afeganistão, o que contribuiu muito para o colapso do bloco russo em 1989, e quando o Irã e o Iraque foram arrastados para a espiral de guerra, a dinâmica na região mostrou que o ponto de partida, a transformação do Irã em um estado "vilão", foi um dos primeiros indícios de que as crescentes contradições do capitalismo estavam começando a minar a capacidade das grandes potências de impor sua autoridade em diferentes partes do mundo. Por trás desta tendência estava algo mais profundo: a incapacidade da classe dominante de impor sua solução para a crise do sistema - outra guerra mundial - a uma classe trabalhadora global que havia demonstrado sua recusa em sacrificar-se em nome do capitalismo em uma série de lutas entre 1968 e o final dos anos 80, mas que não era capaz de propor uma alternativa revolucionária para o sistema. Em suma, o impasse entre as duas grandes classes determinou a entrada do capitalismo em sua fase final, a da decomposição, caracterizada, no nível imperialista, pelo fim do sistema de dois blocos e pelo aprofundamento do "cada um por si".
Nos anos 90, depois que os russos deixaram o Afeganistão, os senhores da guerra vitoriosos se voltaram uns contra os outros, usando todas as armas e conhecimentos de guerra que o Ocidente lhes havia dado para controlar as ruínas. Matança em massa, destruição e estupro destruíram a pouca coesão social que a guerra tinha legado.
O impacto social desta guerra não se limitou ao Afeganistão. O flagelo do vício da heroína que explodiu a partir dos anos 80, trazendo miséria e morte em todo o mundo, é uma das consequências diretas da guerra. Para financiar a guerra da oposição aos Talibãs, o Ocidente a encorajou a cultivar ópio.
O fanatismo religioso implacável dos Talibãs é, portanto, o resultado de décadas de barbárie. Eles também foram manipulados pelo Paquistão, que está tentando impor alguma ordem à no seu quintal.
A invasão americana de 2001, lançada sob o pretexto de se livrar da Al-Quaeda e dos Talibãs, e a invasão do Iraque em 2003, foram tentativas do imperialismo americano de impor sua autoridade diante das consequências de seu declínio. Ela tentou conseguir que outros poderes, especialmente os europeus, agissem em resposta ao ataque a um de seus membros. Com exceção do Reino Unido, todos os outros poderes foram reservados sobre este plano. De fato, a Alemanha já havia iniciado um novo curso "independente" no início dos anos 90, apoiando a secessão da Croácia, que por sua vez levou ao horrível massacre nos Bálcãs. Durante as duas décadas seguintes, os rivais dos Estados Unidos foram encorajados à medida que os EUA se envolviam em guerras insuperáveis no Afeganistão, Iraque e Síria.
A política de retirada do Afeganistão é um exemplo claro de realpolitik. Os EUA precisam sair destas guerras dispendiosas e debilitantes a fim de concentrar seus recursos no fortalecimento dos esforços para conter e minar a China e a Rússia. A administração Biden não tem sido menos cínica do que Trump em alimentar as ambições dos EUA.
Ao mesmo tempo, os termos da retirada dos EUA significaram que a mensagem "A América está de volta" da administração Biden de que a América permanece um aliado confiável recebeu um sério golpe na sua credibilidade. A longo prazo, a administração provavelmente está contando com o medo da China para forçar países como Japão, Coréia do Sul e Austrália a cooperar com o "retorno ao leste" dos EUA, que visa conter a China no Mar da China do Sul e em outros lugares da região.
Seria um erro concluir que os EUA simplesmente se retiraram do Oriente Médio e da Ásia Central. Biden deixou claro que os EUA continuarão com uma política contra às ameaças terroristas em qualquer parte do mundo. Isto significa que utilizará suas bases militares ao redor do mundo, sua marinha e força aérea para infligir destruição aos estados destas regiões se eles colocarem em perigo os Estados Unidos. Esta ameaça também está ligada à situação cada vez mais caótica na África, onde Estados fracassados como a Somália poderiam ser alcançados pela Etiópia devastada pela guerra civil, com seus vizinhos apoiando um ou outro lado. Esta lista crescerá na medida em que grupos terroristas islâmicos na Nigéria, no Chade e em outros lugares são encorajados pela vitória do Talibã a intensificar suas campanhas.
Se a retirada do Afeganistão é motivada pela necessidade de se concentrar no perigo representado pela ascensão da China e o renascimento da Rússia como potências globais, os limites do empreendimento são óbvios, pois ele oferece à China e à Rússia um caminho para o próprio Afeganistão. A China já investiu fortemente em seu projeto da Nova Rota da Seda no Afeganistão e ambos os Estados entraram em relações diplomáticas com os Talibãs. Mas nenhum desses Estados pode se elevar acima de uma desordem global cada vez mais contraditória. A onda de instabilidade que se espalha pela África, Oriente Médio (sendo o colapso da economia libanesa o mais recente), Ásia Central e Extremo Oriente (Myanmar em particular) é um perigo tanto para a China e Rússia quanto para os EUA. Eles estão bem cientes de que o Afeganistão não tem um estado operacional e que os Talibãs não serão capazes de construir um. A ameaça que os senhores da guerra representam para o novo governo é bem conhecida. Partes da Aliança do Norte já declararam que não aceitarão o governo, e Daesh, que também esteve envolvida no Afeganistão, considera os Talibãs como apóstatas porque estão preparados para fazer acordos com o Ocidente infiel. Partes da antiga classe dominante afegã podem procurar trabalhar com o Talibã, e muitos governos estrangeiros estão abrindo canais para fazê-lo, mas isso se deve ao medo de que o país caia novamente nas mãos dos senhores da guerra e afunda-se no caos, com repercussões para toda a região.
A vitória dos Talibãs só pode encorajar os terroristas islâmicos Uighur que estão ativos na China, mesmo que os Talibãs ainda não os tenham apoiado. O imperialismo russo conhece o custo amargo da situação intratável no Afeganistão e vê que a vitória dos Talibãs dará um novo impulso aos grupos fundamentalistas no Uzbequistão, Turcomenistão e Tajiquistão, estados que formam um amortecedor entre os dois países. A Rússia vai tentar usar esta ameaça para fortalecer sua influência militar sobre estes estados, mas ao mesmo tempo está bem ciente de que sem o apoio suficiente de outros estados, mesmo o poder da máquina de guerra dos EUA não poderá esmagar uma tal insurgência.
Os EUA não conseguiram derrotar os Talibãs e estabelecer um estado estável. Eles se retiraram sabendo que, embora tenha sofrido uma humilhação real, deixaram uma bomba-relógio de instabilidade em seu rastro. A Rússia e a China devem agora procurar conter este caos. Qualquer ideia de que o capitalismo pode trazer estabilidade e algum tipo de futuro a esta região é uma pura ilusão.
Os EUA, a Grã-Bretanha e todas as outras potências têm usado o bicho-papão dos Talibãs para esconder o terror e a destruição que infligiram ao povo afegão durante os últimos 40 anos. Os mujahidins apoiados pelos EUA massacraram, estupraram, torturaram e saquearam tanto quanto os russos. Como os Talibãs, eles fizeram campanhas de terror em centros urbanos controlados pela Rússia. Entretanto, o Ocidente escondeu cuidadosamente esta situação. O mesmo tem acontecido nos últimos 20 anos. A terrível brutalidade dos Talibãs tem sido destacada na mídia ocidental, enquanto as notícias das mortes, assassinatos, estupros e torturas infligidas pelo governo "democrático" e seus apoiadores têm sido cinicamente empurradas para debaixo do tapete. De alguma forma, o fato de jovens e velhos, mulheres e homens terem sido dilacerados pelos projéteis, bombas e balas do governo "democrático" e amigo dos "direitos humanos" dos EUA e do Reino Unido não merece menção. Na verdade, mesmo a extensão do terror infligido pelos Talibãs não foi relatada. Não é considerado digno de notícia, a menos que possa ajudar a justificar a guerra.
Os parlamentos europeus fizeram eco aos políticos norte-americanos e britânicos ao lamentar o terrível destino das mulheres e de outros no Afeganistão sob o regime talibã. Esses mesmos políticos impuseram leis de imigração que levaram milhares de refugiados desesperados, muitos deles afegãos, a arriscar suas vidas na tentativa de atravessar o Mediterrâneo ou o Canal da Mancha. Onde estão seus lamentos pelos milhares que se afogaram no Mediterrâneo nos últimos anos? Que preocupação eles têm com os refugiados forçados a viver em campos de concentração na Turquia ou na Jordânia (financiados pela UE e pela Grã-Bretanha) ou vendidos nos mercados de escravos da Líbia? Os porta-vozes burgueses que condenam os Talibãs por sua desumanidade estão encorajando a construção de um muro de aço e concreto ao redor da Europa Oriental para deter o movimento de refugiados. O fedor de sua hipocrisia é verdadeiramente repugnante.
A perspectiva de guerra, pandemia, crise econômica e mudança climática é realmente assustadora. É por isso que a classe dominante ocupa sua mídia com isso. Eles querem que o proletariado seja submisso, que se acovarde com medo da realidade sombria deste sistema social podre. Ele quer que sejamos como crianças agarradas às saias da classe dominante e ao seu estado. As grandes dificuldades encontradas pelo proletariado na luta para defender seus interesses durante os últimos 30 anos permitem que este medo se torne mais arraigado. A ideia de que o proletariado é a única força capaz de oferecer um futuro, uma sociedade inteiramente nova, pode parecer um absurdo. Mas o proletariado é a classe revolucionária e três décadas de retiro não a erradicaram, mesmo que a duração e a profundidade deste retiro dificultem a recuperação da confiança da classe trabalhadora internacional em sua capacidade de resistir aos crescentes ataques às suas condições de vida. Mas é somente através dessas lutas que a classe trabalhadora pode desenvolver novamente sua força. Como disse Rosa Luxemburg, o proletariado é a única classe que desenvolve sua consciência através da experiência da derrota. Não há garantia de que o proletariado seja capaz de assumir sua responsabilidade histórica de oferecer um futuro para o conjunto da humanidade. Isto certamente não acontecerá se o proletariado e suas minorias revolucionárias sucumbirem à atmosfera esmagadora de desespero e impotência propagada por nosso inimigo de classe. O proletariado só pode cumprir seu papel revolucionário enfrentando a dura realidade do capitalismo decadente e recusando-se a aceitar os ataques às suas condições econômicas e sociais, substituindo o isolamento e a impotência pela solidariedade, organização e crescente consciência de classe.
CCI 22-08-2021
Nos últimos meses, em reuniões públicas e fóruns on-line, houveram críticas e interpretações equivocadas das nossas posições a respeito das medidas estatais em resposta à pandemia de Covid-19: lockdowns, toques de recolher, proibição de aglomerações em locais públicos e vacinação obrigatória para trabalhadores de serviços essenciais. Alguns críticos até concluíram que a CCI, na verdade, apoia essas medidas do Estado. O objetivo deste artigo é responder a essas críticas, tanto reafirmando nossa posição sobre os atuais protestos contra os lockdowns quanto explicando a diferença entre as chamadas “medidas de proteção” do Estado burguês e as precauções que recomendamos aos militantes comunistas e à classe trabalhadora.
No ano passado, a política do Estado burguês, em sua tentativa de conter a extensão da pandemia, provocou diferentes campanhas e protestos. Algumas dessas campanhas defendiam a suspensão de todas essas medidas, outras defendiam medidas mais humanas e outras até defendiam medidas mais restritivas.[1]
A primeira campanha é bem conhecida. Sob slogans como “contra a violação dos nossos direitos”, “queremos nossa liberdade de volta”, “tirania versus liberdade” e “abaixo as máscaras”, várias manifestações aconteceram no mês passado, em vários países, para protestar contra os lockdowns. No âmbito do chamado “Comício Mundial pela Liberdade”, o fim de semana de 20 e 21 de março de 2021 presenciou protestos em uns 40 países dentro e fora da Europa.[2] Esses comícios foram frequentemente caracterizados por uma fúria antielite e, em certos casos, até levaram ao vandalismo, revoltas niilistas, massivamente violando as restrições impostas. Na Holanda, até houveram ataques a postos de testagem e hospitais.
Uma segunda campanha aconteceu no Canadá francês, onde manifestações estão organizadas sob o slogan “Juntos por medidas sanitárias e solidárias - Não ao toque de recolher”. Em um comunicado, os organizadores denunciam o toque de recolher do governo como “um ataque à nossa liberdade e a nossas relações e aspirações de solidariedade”. Eles pensam que o toque de recolher marginaliza ainda mais as comunidades vulneráveis, como sem-tetos, profissionais do sexo, usuários de drogas e trabalhadores imigrantes sem visto. Os manifestantes, que rejeitam uma solução policial para a crise sanitária, “rejeitam a dicotomia entre a obediência cega ao governo e as manipulações tolas de teorias conspiratórias”.[3]
Em seu combate político contra a política do Estado em resposta à pandemia, a CCI, em vários artigos, denunciou a hipocrisia da burguesia e sua completa negligência com a saúde da população. Apesar dos lockdowns, a burguesia “continua sua negligência, que se mascara tentando nos fazer sentir culpados, nos fazendo carregar a responsabilidade pelas infecções, pela exaustão dos trabalhadores da saúde que são vítimas do ‘comportamento irresponsável’ dos indivíduos (…)”. O Estado impõe toques de recolher logo a partir das 18h ou lockdowns nos fins de semana, enquanto é abertamente permitido ao proletariado se infectar nos locais de trabalho ou no transporte público.”[4]
Uma organização do meio político proletário vai ainda mais adiante e nos diz que a motivação essencial para os lockdowns é preparar futuros ataque econômicos. “O proletariado está confinado, não para proteger sua saúde, mas para impor uma disciplina que será necessária em face das próximas medidas econômicas e sociais que estão sendo preparadas”.[5] Mas mesmo que não hesite em tirar proveito da situação e não perca a oportunidade para se preparar para confrontos futuros contra a classe trabalhadora, o principal objetivo dos lockdowns não é disciplinar o proletariado, mas impedir a disseminação do vírus, que no momento constitui uma grande ameaça à economia e à coesão social.
No ano passado, a CCI não apoiou nenhum dos protestos contra a obrigatoriedade dos lockdowns estabelecidos pelo Estado em uma tentativa de barrar a disseminação desenfreada da Covid-19. A razão para isso é que esses protestos permanecem completamente na superfície e não tocam nas raízes do modo de produção capitalista, que trouxe a existência do Estado burguês com a função de defender o sistema capitalista. A CCI se opõe aos objetivos, métodos e slogans dos protestos atuais que, por mais que às vezes pareçam radicais, nos fazem um chamado pela defesa de alguns “direitos” como cidadãos da sociedade capitalista. Tal posição é tema de um ponto especial em nossa plataforma.
“É um erro pensar que é possível contribuir para a revolução organizando lutas específicas em torno de problemas parciais, tais como racismo, a posição das mulheres, poluição, sexualidade e outros aspectos da vida cotidiana. A luta contra os fundamentos econômicos do sistema contém dentro de si a luta contra todos os aspectos da superestrutura da sociedade capitalista, mas o contrário não é verdade.”[6] Essas lutas “parciais” são incapazes de atacar a raiz do problema, ou seja, a exploração de uma classe sobre outra na forma da escravidão assalariada capitalista.[7]
A classe trabalhadora não tem nada a ganhar reivindicando “nossa liberdade enquanto cidadãos”, que supostamente nos foi tirada pelas restrições “autoritárias” do Estado burguês. Também não tem nada a ganhar exigindo “justiça social” e “nossos direitos”. Tais protestos não oferecem uma possibilidade de solução, que somente ganha impulso através da luta na perspectiva do proletariado. Ao contrário, “Por seu próprio conteúdo de lutas ‘parciais’, longe de reforçar a autonomia vital do proletariado, tende à direção oposta ao diluí-lo em uma massa de categorias confusas (raças, sexos, juventude, etc.) que pode apenas ser totalmente impotente perante a história”.[8]
As lutas “parciais” aumentam a divisão e a confusão dentro da classe, logo representa uma armadilha perigosa para sua luta. Elas vão levar inevitavelmente ao beco sem saída do apelo por mais “democracia” e uma sociedade mais “humana”, que é, e continuará sendo, uma sociedade de classes, baseada na repressão e na exploração. Com base na experiência, sabemos que “os governos e partidos políticos burgueses aprenderam a se apropriar delas e usá-las de forma eficiente em prol da preservação da ordem social”.[9]
Nos últimos anos, os exemplo mais importantes de “apropriação” de tais protestos pela burguesia foram o “Youth4Climate” (Juventude pelo Clima) e o Black Lives Matter (BLM), que atraíram muitos jovens, frequentemente jovens proletários.
A CCI não apoiou a reivindicação, levantada durante os protestos do BLM, de que a polícia deveria ser “desfinanciada”. Como já explicamos em um artigo anterior, exigir o corte do financiamento da polícia, ou até sua completa abolição, é, por um lado, “completamente irrealista dentro desta sociedade: isso corresponde ao Estado capitalista abolir a si próprio. Por outro lado, isso dissemina a ilusão da possibilidade de reformar o Estado existente segundo os interesses dos explorados e oprimidos - quando sua função própria é mantê-los sob controle segundo os interesses da classe dominante”.[10]
O mesmo se aplica às reivindicações pela suspensão dos lockdowns. Concordamos que essas medidas são contraditórias e duplamente coercitivas, já que confinam os trabalhadores no seu tempo livre, mas obriga muitos deles a ir trabalhar, considerando que obviamente a maioria das infecções ocorre no local de trabalho. Mesmo se não disséssemos que elas têm essencialmente o objetivo de controlar a classe trabalhadora, como afirma Le Prolétaire, concordamos que, apesar das medidas, a classe explorada é a principal vítima da pandemia. Entretanto, não apoiamos a reivindicação pelo fim dessas medidas. Reivindicar a suspensão dos lockdowns não vai contribuir para o desenvolvimento da consciência de classe, da combatividade e da solidariedade do proletariado. Ao contrário, isso apenas levanta barreiras para tal desenvolvimento e não possui outra perspectiva senão o reforço das ilusões nas leis burguesas, sejam elas democráticas ou abertamente despóticas.
Além disso, a maioria dos protestos contra o lockdown, com sua reivindicação abertamente contra todas as medidas do Estado para combater a pandemia, não oferecem nenhuma outra perspectiva viável além de uma maior disseminação do vírus, e assim revelam as considerações completamente irracionais por trás desses protestos. Eles frequentemente reivindicam que o vírus é apenas uma farsa, algo com a intenção de iludir ou enganar, mas isso é cada vez mais refutado todos os dias pelas milhões de pessoas mundo afora que já morreram e que ainda vão morrer de Covid-19. Em um artigo publicado recentemente[11], denunciamos as teorias irracionais e ideologias apocalípticas por trás desses protestos e o perigo que elas representam não apenas à saúde das pessoas, mas também para a consciência de classe do proletariado.
Desde que Marx escreveu Guerra Civil na França, a posição dos revolucionários sobre o Estado tem sido bem clara: o Estado burguês, enquanto expressão da ditadura da classe dominante, tem que ser destruído no curso da revolução proletária. “Na realidade, de qualquer forma, o Estado não é nada além de uma máquina para a opressão de uma classe sobre outra, tanto numa república democrática quanto numa monarquia”.[12] É por isso que a CCI apoia qualquer luta proletária contra os ataques do Estado, como fez, por exemplo, durante as lutas na França em 2006 contra o CPE (Contrato do Primeiro Emprego - uma nova lei feita para aumentar a precarização da força de trabalho, sobretudo dos novos empregados). Nesse caso particular, o movimento estudantil, ameaçando se estender para os setores dos trabalhadores empregados, obrigou o governo a retirar o CPE. Essa foi uma expressão da resistência do proletariado a um ataque direto do Estado burguês, não se preocupando em seguir a via legal ou eleitoral para persuadir o governo a mudar de ideia.
Mas os atuais protestos contra o lockdown ocorrem em um terreno completamente burguês e de forma alguma abrem caminho para um movimento que possa realmente desafiar a legitimidade do Estado burguês. Ao contrário, sua alternativa ao lockdown e às medidas similares é simplesmente um chamado por uma política mais liberal, mais “laisser faire”, frequentemente conectada ao jogo eleitoral entre as diferentes frações da burguesia.
Através de sua existência, a CCI tem alertado a classe contra os riscos de ser tragada para dentro do terreno burguês. A fase histórica de decomposição só multiplica esses riscos, sobretudo porque isso indica uma séria perda da identidade de classe, da percepção do proletariado de si mesmo enquanto uma força social distinta, deixando a classe trabalhadora mais vulnerável a ser tragada para dentro de todos os tipos de protestos que a afaste da defesa dos seus próprios interesses e a dilua numa massa vaga de cidadãos ou de incontáveis “identidades” concorrentes. Confrontando os perigos crescentes à luta proletária, e mostrando à classe o caminho para lutar por sua segurança, a tarefa dos revolucionários no momento é reafirmar a solidariedade proletária e a autonomia de classe.
As lutas do ano passado, particularmente no começo da pandemia, mostraram que a classe trabalhadora não restringe sua luta às demandas econômicas. Na primavera de 2020, trabalhadores de vários países entraram em greve, não reivindicando melhores pagamentos, mas melhores medidas de segurança contra o vírus. A história também nos dá vários exemplos de trabalhadores entrando em greve contra a repressão do Estado.[13] E em contraste com os protestos do ano passado, esses trabalhadores não tinham ilusões no Estado burguês e não reivindicaram mudanças legais para tornar o Estado menos “autoritário” e “mais amistoso” para os cidadãos. Durante sua luta contra a repressão estatal, os trabalhadores confiaram completamente na força da sua ação autônoma enquanto classe.
Como escrevemos no verão do ano passado, “esse senso de responsabilidade do proletariado, que também instiga milhões a seguir as regras do autoisolamento, mostra que a maioria da classe trabalhadora aceita a realidade dessa doença, mesmo em um país como os EUA, que é o ‘centro’ de várias formas de negacionismo da pandemia”. Desde a publicação desse artigo, a classe continuou em luta, muito embora num menor nível. Mas em quase todas as suas lutas foram respeitadas as regras de distanciamento social, além o uso de equipamentos de proteção individual (EPI) nas grandes mobilizações .
Se a CCI não apoia as medidas do Estado burguês, isso não significa negligenciar completamente as precauções necessárias para proteger os militantes contra o perigo do vírus. Isso segue o exemplo da classe trabalhadora. A política da CCI é escutar a ciência, e ela nos diz que, enquanto não houver outra solução, o distanciamento social (incluindo o EPI) é a melhor proteção contra a infecção por Covid-19.
Se a CCI respeita essa orientação científica, tal não é engolida cegamente. Ao contrário, precisa ser sempre avaliada criticamente. Enquanto revolucionários, desconfiamos de qualquer forma de ciência aplicada sob as condições capitalistas, já que sabemos como ela é utilizada. O exemplo mais notável é, sem dúvida, a indústria de guerra. Mas até a ciência usada para fins comerciais é algo que deve ser abordado com a cautela necessária. O primeiro e principal objetivo da indústria farmacêutica é gerar lucro, mesmo que a custo da saúde da população. Mas isso não é motivo para desconfiar da ciência enquanto tal.
A pandemia de Covid-19 confronta os revolucionários com uma situação extraordinária. O Estado burguês é um inimigo do movimento comunista, e o vírus é um inimigo da vida humana. Mas se a CCI segue as orientações de distanciamento social e o uso de EPI, isso não significa que apoiamos o Estado e a proibição dos protestos, que será inevitavelmente utilizada contra qualquer tentativa dos trabalhadores de se unificar em uma base classista, seja para exigir medidas de segurança adequadas no trabalho, seja para lutar contra as reduções de salário e demissões que vão acompanhar o lockdown e seus efeitos. A CCI está plenamente consciente que a única alternativa às medidas do Estado burguês é a luta por uma sociedade fundamentalmente nova, a luta pela ditadura do proletariado e pela eliminação da exploração capitalista.
Dennis, 13 de maio de 2021
[1] Além das duas campanhas mencionadas no artigo, há também uma terceira campanha chamada “ZeroCovid”, apoiada por diferentes grupos esquerdistas extremistas, que clamam pelo fechamento de “todos os locais de trabalho não essenciais até que a transmissão comunitária esteja próxima de zero” (O governo britânico busca novas baixas na Covid – Zero Covid; 13 de janeiro de 2021). Um fechamento assim não deveria ser feito “de cima” pelo Estado burguês, mas “de baixo” e não apenas contra a pandemia, mas também contra as medidas do capital e seus governos. Essa não é uma estratégia autoritária, mas emancipatória, assim foi dito
[2] No título “A ditadura vai cair! [17]”, a Federação Anarquista também fez propaganda dessas manifestações. Esse grupo anarquista as chamou de “jornadas da liberdade”, que, como escreveram, fariam os governantes “estremecerem em suas botas”.
[3] Montreal: Report-back from the Protest Against the Curfew [18]; 21 April 2021.
[4] La bourgeoisie profite de la pandémie de Covid-19 pour attaquer la classe ouvrière! [19]; March 2021
[5] Espagne; Alors que la pandémie continue inexorablement, la bourgeoisie nationale et régionale déclare la guerre au prolétariat [20]; Le Prolétaire No 538; August-September-October 2020)
[7] No Le Prolétaire no. 538, (agosto-setembro-outubro 2020) o PCI publicou um artigo Non au couvre-feu ! Non au retour de "l’Etat d’urgence sanitaire" ! [22], que chama os trabalhadores a combater “o estado de saúde de emergência”. Mas desde que essas medidas do governo francês são também um fenômeno da superestrutura do sistema capitalista, essa organização política do proletariado tende a cair na armadilha das lutas “parciais” e abrir espaço para a infiltração da ideologia burguesa na forma dos protestos que, por definição, não são capazes de colocar em questão as raízes da repressão estatal.
[9] Ibid
[10] A resposta ao racismo não é o antirracismo burguês, mas sim a luta de classes internacional [23]
[11] The fuel for conspiracy theories is the decomposition of capitalism [24]; ICConline, July 2020
[12] Friedrich Engels, On the 20th Anniversary of the Paris Commune – Introduction [25]; 1891
[13] Alguns dos exemplos mais notórios de resistência dos trabalhadores contra a repressão estatal:
De certa forma, "a esquerda comunista encontra-se hoje numa situação semelhante à de Bilan nos anos 30, no sentido em que é obrigada a compreender uma nova situação histórica sem precedentes" (Résolution sur la situation internationale [27], 13º Congrès du CCI Revue internationale No. 97, 1999). Esta observação, mais adequada do que nunca, exigiria debates intensos entre organizações do meio proletário para analisar o significado da crise do Covid-19 na história do capitalismo e as consequências que dela decorrem. Entretanto, diante da extensão impressionante dos acontecimentos, os grupos do meio político proletário parecem totalmente desamparados e desarmados: em vez de se apropriarem do método marxista como uma teoria viva, reduzem-no a um dogma invariável no qual a luta de classes é vista como uma repetição imutável de padrões eternamente válidos sem poder mostrar não só o que persiste, mas também o que mudou. Assim, os grupos bordiguistas ou conselhistas ignoram obstinadamente a entrada do sistema na sua fase de decadência. Por outro lado, a Tendência Comunista Internacional (TCI) rejeita a decomposição como uma visão cataclísmica e limita suas explicações ao truísmo de que o lucro é responsável pela pandemia e à ilusória ideia de que esta última é apenas um evento anedótico, um parêntese, nos ataques da burguesia para maximizar seus lucros. Estes grupos do meio político proletário contentam-se em recitar os padrões do passado sem analisar as circunstâncias específicas, o momento e o impacto da crise de saúde. Como resultado, sua contribuição para a avaliação do equilíbrio de força entre as duas classes antagônicas da sociedade, dos perigos ou oportunidades que a classe e suas minorias enfrentam, é agora irrisória.
Uma abordagem marxista firme é tanto mais necessária quanto a desconfiança em relação ao discurso oficial está atualmente dando origem ao surgimento de muitas "explicações alternativas" espúrias e fantasiosas dos acontecimentos. Mais fantasiosas "teorias da conspiração" do que as outras estão surgindo e são compartilhadas por milhões de seguidores: A pandemia e agora a vacinação em massa é dita como um complô chinês para garantir sua supremacia, um complô da burguesia mundial para preparar a guerra ou reestruturar a economia mundial, uma tomada de poder por uma internacional secreta de virologistas ou uma nebulosa conspiração global das elites (liderada por Soros ou Gates), ... Esta atmosfera geral até causa desorientação no meio político, uma verdadeira "Corona blues".
Para o CCI, o marxismo é "um pensamento vivo para o qual cada evento histórico importante é uma oportunidade de enriquecimento. (…). É responsabilidade específica e fundamental das organizações e militantes revolucionários realizar este esforço de reflexão, tendo o cuidado, como os nossos anciãos como Lenine, Rosa Luxemburgo, a Fração Italiana da Esquerda Comunista Internacional (Bilan), a Esquerda Comunista da França, etc., de avançar cautelosamente e com espírito de solidariedade, avançar com prudência e ousadia: confiando firmemente nas realizações básicas do marxismo; examinando a realidade sem piscar os olhos e desenvolvendo o pensamento sem "qualquer proibição ou ostracismo" (Bilan). Em particular, diante de tais acontecimentos históricos, é importante que os revolucionários possam distinguir entre as análises que se tornaram obsoletas e as que permanecem válidas, a fim de evitar uma dupla armadilha: ou se fecharem na esclerose, ou "jogar o bebê fora com a água do banho"". (Texte d'orientation Militarisme et décomposition [28], 1991). A partir daí, a crise da Covid-19 obriga a CCI a confrontar os elementos salientes deste grande evento com o quadro de decomposição que a organização vem apresentando há mais de 30 anos para compreender a evolução do capitalismo. Este quadro é claramente recordado na Resolução sobre a Situação Internacional [29] do 23º Congresso Internacional da CCI (2019): "Há trinta anos, a CCI apontou que o sistema capitalista havia entrado na fase final de seu período de decadência, a Decomposição. Esta análise baseou-se numa série de fatos empíricos, mas ao mesmo tempo forneceu um quadro para compreendê-los:: "Em tal situação, em que as duas classes fundamentais e antagônicas da sociedade se confrontam sem conseguir impor sua própria resposta decisiva, a história continua, no entanto, seu curso. No capitalismo, ainda menos do que nos outros modos de produção que o precederam, a vida social não pode "estagnar" ou ser "congelada". Enquanto as contradições do capitalismo em crise continuam a agravar-se, a incapacidade da burguesia de oferecer a toda a sociedade a menor perspectiva e a incapacidade do proletariado de afirmar abertamente a sua, só podem desembocar num fenômeno de decomposição generalizada, de apodrecimento da sociedade desde as suas raízes. (Decomposição, a fase final do declínio do capitalismo [10] , Ponto 4, Revista Internacional n° 107). Nossa análise teve o cuidado de especificar os dois significados do termo "decomposição"; por um lado, aplica-se a um fenômeno que afeta a sociedade, particularmente no período de decadência do capitalismo, e por outro lado, designa uma fase histórica particular desta última, sua fase final: "... é indispensável destacar as diferenças fundamentais entre os elementos de decomposição que afetaram o capitalismo desde o início deste século e a decomposição generalizada em que o sistema está atualmente afundando e que só pode piorar. E nisso, para além do meramente quantitativo, o fenômeno da decomposição social atinge hoje uma tal profundidade e amplitude que assume uma nova qualidade, uma qualidade singular, uma expressão da entrada do capitalismo decadente numa fase específica - e última - da sua história, aquela em que a decomposição social se torna um fator, até mesmo o fator decisivo na evolução da sociedade ". (Ibid., ponto 2).
Acima de tudo, este último ponto, o fato de que a decomposição tende a se tornar o fator decisivo [29] na evolução da sociedade e, portanto, de todos os componentes da situação mundial - uma ideia que não é de modo algum compartilhada pelos outros grupos de esquerda comunista - constitui o eixo principal desta resolução. " (Resolução sobre a Situação Internacional [29], 23º Congresso da CCI).
Neste contexto, o objetivo deste relatório é avaliar o impacto da crise da Covid-19 no aprofundamento das contradições dentro do sistema capitalista e as implicações disso no aprofundamento da fase de decomposição.
A pandemia grassa no coração do capitalismo: uma primeira, depois uma segunda, até mesmo uma terceira onda de infecções está varrendo o mundo e, em particular, os países industrializados; seus sistemas de saúde estão à beira da implosão e são obrigados a impor confinamentos mais ou menos radicais. Após um ano da pandemia, os números oficiais, largamente subestimados em muitos países, mostram mais de 500.000 mortes nos Estados Unidos e mais de 650.000 na União Europeia e América Latina. Durante os últimos doze meses, neste modo de produção com capacidades científicas e tecnológicas ilimitadas, as burguesias, não só nos países periféricos mas sobretudo nos principais países industrializados, mostraram-se incapazes de:
Em vez disso, competiram na tomada de medidas inconsistentes e caóticas e recorreram, em desespero, a medidas do fundo da história, como contenção, quarentena e toque de recolher. Eles condenaram centenas de milhares de pessoas à morte ao selecionar pacientes Covid para admissão em hospitais superlotados ou ao adiar o tratamento para outras condições graves.
O curso catastrófico da crise pandêmica está fundamentalmente ligado à pressão implacável da crise histórica do modo de produção capitalista. O impacto das medidas de austeridade, que se acentuaram ainda mais desde a recessão de 2007-2011, a implacável concorrência econômica entre Estados e a prioridade dada, sobretudo nos países industrializados, à manutenção das capacidades de produção em detrimento da saúde das populações, em nome do primado da economia, favoreceram a amplitude da crise sanitária e constituem um obstáculo permanente à sua contenção. A imensa catástrofe que é a pandemia não é produto do destino ou da inadequação dos conhecimentos científicos ou dos instrumentos de saúde (como pode ter sido o caso em modos de produção anteriores); nem chega como uma trovoada num céu sereno, nem constitui um parêntese passageiro. Ela expressa a impotência fundamental do modo de produção capitalista em declínio, que vai além do descuido deste ou daquele governo, mas que é, ao contrário, indicativo do bloqueio e apodrecimento da sociedade burguesa. E, sobretudo, revela a extensão desta fase de decomposição que se tem se aprofundado há 30 anos.
A crise da Covid-19 não emerge do nada; é tanto a expressão como o resultado de 30 anos da fase de decomposição que tem marcado uma tendência para que as várias manifestações de decadência se multipliquem, se aprofundem e que convirjam cada vez mais claramente as diferentes expressões do apodrecimento da sociedade desde as suas raízes.
(a) A importância e o significado da dinâmica da decomposição já eram compreendidos pela CCI no final dos anos 80: "Enquanto a burguesia não tem mão livre para impor sua "solução": a guerra imperialista generalizada, e enquanto a luta de classes ainda não está suficientemente desenvolvida para permitir que sua perspectiva revolucionária seja evidenciada, o capitalismo está sendo arrastado por uma dinâmica de decomposição, de apodrecimento em suas bases, que se manifesta em todos os níveis de sua existência:
(b) A implosão do bloco soviético marca uma aceleração dramática do processo, apesar das campanhas para o ocultar. O colapso de dentro de um dos dois blocos imperialistas opostos, sem que isso seja produto de uma guerra mundial entre os blocos ou da ofensiva proletária, só pode ser entendido como uma expressão importante da entrada na fase de decomposição. No entanto, as tendências para a perda de controle e a exacerbação de cada um por si mesmo de que esta implosão se manifeste foram em grande parte ocultadas e contrariadas em primeira instância, em primeiro momento pelo renascimento do prestígio da "democracia" devido à sua "vitória sobre o comunismo" (campanhas sobre a morte do comunismo e a superioridade do modo democrático de governo), depois pela 1ª Guerra do Golfo (1991), realizada em nome das Nações Unidas contra Saddam Husein, que permitiu a Bush Pai impor uma "coligação internacional de Estados" sob a liderança dos EUA e, assim, inicialmente, refrear a tendência ao "cada um por si"; Finalmente, pelo fato que o colapso econômico resultante da implosão do bloco de Leste afetou apenas os países do antigo bloco russo, uma parte particularmente atrasada do capitalismo, e poupou em grande parte os países industrializados.
(c) No início do século XXI, a propagação da decomposição manifesta-se sobretudo na explosão do dada por si e do caos no plano imperialista. O ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono pela Al-Qaeda em 11 de Setembro de 2001 e a resposta militar unilateral da administração Bush abriram de par em par a "caixa de Pandora" da decomposição: com o ataque e a invasão do Iraque em 2003, desafiando as convenções ou organizações internacionais e sem tomar em conta a opinião dos seus principais "aliados", a principal potência mundial deixou de ser a polícia da ordem mundial para passar a ser o agente principal do "cada um por si" e do caos. A ocupação do Iraque, seguida da guerra civil na Síria (2011), vieram alimentar poderosamente cada um por si imperialista, não só no Meio Oriente, mas em todo o mundo. Também acentuam a tendência de declínio da liderança dos EUA, enquanto a Rússia volta à vanguarda, particularmente através de um papel imperialista "disruptivo" na Síria, e a China sobe rapidamente ao poder como um desafiante para a superpotência americana.
(d) Nas duas primeiras décadas do século XXI, o crescimento quantitativo e qualitativo do terrorismo, favorecido pela propagação do caos e da guerra bárbara em todo o mundo, está tomando o centro do palco como um instrumento de guerra entre Estados. Isso levou à formação de um novo Estado, o "Estado Islâmico" (Daesh), com seu próprio exército, polícia, administração e escolas, cujo terrorismo se torna a arma de predileção e que desencadeou uma onda de ataques suicidas no Oriente Médio, bem como nas metrópoles dos países industrializados. "A formação de Daesh em 2013-14 e os ataques na França em 2015-16, Bélgica e Alemanha em 2016 representam outro passo proeminente neste processo" (Rapport sur la décomposition aujourd'hui [30], 22º Congresso da ICC, 2017, Revue Internationale n° 164). Esta expansão do terrorismo 'kamikaze' anda de mãos dadas com o aumento do radicalismo religioso irracional e fanático em todo o mundo, do Oriente Médio ao Brasil, dos EUA à Índia.
(e) Em 2016-17, o referendo Brexit na Grã-Bretanha e a ascensão de Trump nos EUA revelam o tsunami populista como uma nova manifestação particularmente saliente de decadência profunda. "A ascensão do populismo é uma expressão, nas atuais circunstâncias, da crescente perda de controle da burguesia sobre o funcionamento da sociedade como resultado, fundamentalmente, do que está no centro da sua decomposição: a incapacidade das duas classes fundamentais da sociedade de responder à crise insolúvel em que a economia capitalista está se afundando. Em outras palavras, a decomposição é fundamentalmente o resultado de uma impotência da classe dominante, impotência que reside na sua incapacidade de superar esta crise de seu modo de produção e que tende cada vez mais a afetar seu aparato político. Entre as causas atuais da onda populista estão as principais manifestações de colapso social: crescente desespero, niilismo, violência, xenofobia, associada a uma crescente rejeição das "elites" (os "ricos", políticos, tecnocratas) e numa situação em que a classe trabalhadora é incapaz de apresentar, mesmo de forma embreioária, uma alternativa" (Resolução sobre a situação internacional [29], 23º Congresso da CCI, ponto 3). Se esta onda populista afeta em particular as burguesias dos países industrializados, ela tambémém pode ser encontrada em outras regiões do mundo sob a forma da chegada ao poder de líderes fortes e "carismáticos" (Orban, Bolsonaro, Erdogan, Modi, Duterte, ...) muitas vezes com o apoio de seitas ou movimentos extremistas de inspiração religiosa (igrejas evangélicas na América Latina ou na África, Irmandades Muçulmanas na Turquia, movimentos de identidade racista hinduísta no caso do Modi).
A fase de decomposição já tem uma história de 30 anos e o breve panorama da mesma mostra como a decadência do capitalismo se propagou e se aprofundou através de fenômenos que progressivamente afetaram cada vez mais aspectos da sociedade e que constituem os ingredientes que provocaram o caráter explosivo da crise planetária do Covid-19. É verdade que durante esses 30 anos a progressão do fenômeno tem sido descontínua, mas tem ocorrido em diferentes níveis (crise ecológica, "cada um por si" imperialista, fragmentação dos Estados, terrorismo, motins sociais, perda de controle do aparato político, apodrecimento ideológico da sociedade), minando cada vez mais as tentativas do capitalismo de Estado de contrariar seu avanço e manter um certo quadro compartilhado. No entanto, enquanto os vários fenômenos estavam alcançando um nível apreciável de intensidade, eles apareceram até então como "uma proliferação de sintomas sem aparente interconexão, em contraste com períodos anteriores de decadência capitalista que foram definidos e dominados por marcos tão óbvios como a guerra mundial ou a revolução proletária" (Relatório sobre a Pandemia Covid-19 e o Período de Decadência Capitalista (julho de 2020)). É precisamente o significado da crise Covid-19 que, tal como a implosão do bloco de Leste, é altamente emblemática da fase de decomposição por acumulação de todos os fatores de putrefação do sistema.
Como as diversas manifestações de decadência (guerras mundiais, crises econômicas gerais, militarismo, fascismo e estalinismo, etc.), há também um acúmulo de manifestações da fase de decomposição. A magnitude do impacto da crise da Covid-19 pode ser explicada não só por esta acumulação mas também pela interação das expressões ecológicas, sanitárias, sociais, políticas, econômicas e ideológicas de decomposição numa espécie de espiral nunca antes vista, o que levou a uma tendência para perder o controle de cada vez mais aspectos da sociedade e a um surto de ideologias irracionais, que são extremamente perigosas para o futuro da humanidade.
(a) Covid-19 e a destruição da natureza
A pandemia é claramente uma expressão da ruptura da relação entre a humanidade e a natureza, que atingiu uma intensidade e dimensão global sem precedentes com a decadência do sistema e, em particular, com a última fase dessa decadência, a da decomposição, através, mais especificamente aqui, do crescimento e concentração urbanos descontrolados (proliferação de favelas superlotadas) nas regiões periféricas do capitalismo, do desmatamento e das mudanças climáticas. No caso do Covid-19, por exemplo, um estudo recente de pesquisadores das Universidades de Cambridge e Hawaii e do Potsdam Institute for Climate Impact Research (na revista Science of the Total Environment) sugere que as mudanças climáticas no sul da China ao longo do século passado favoreceram a concentração na região de espécies de morcegos, que transportam milhares de coronavírus, e permitiram a transmissão do SARSCOV-2, provavelmente através do pangolim, para os seres humanos[1]. Durante décadas, a destruição irreparável do mundo natural gerou um perigo crescente de desastres ambientais e de saúde, como ilustrado pela SRA, H1N1 e epidemias de Ebola, que felizmente não se tornaram pandemias. No entanto, embora o capitalismo tenha a força tecnológica para enviar pessoas à lua e produzir armas monstruosas capazes de destruir o planeta dezenas de vezes, não tem sido capaz de se dotar dos meios para remediar os problemas ecológicos e de saúde que levaram ao surto da pandemia de Covid-19. O homem está cada vez mais separado do seu "corpo orgânico" (Marx) e a decomposição social acentua esta tendência.
(b) Covid-19 e a recessão econômica
Ao mesmo tempo, as medidas de austeridade e reestruturação dos sistemas de pesquisa e saúde, intensificadas desde a recessão 2007-2011, reduziram a disponibilidade hospitalar e retardaram, se não interromperam, as pesquisas sobre os vírus Covid, apesar de várias epidemias anteriores terem alertado para a sua periculosidade. Por outro lado, durante a pandemia, o principal objetivo dos países industrializados foi sempre o de manter intactas as capacidades de produção, na medida do possível (e, como extensão desta, creches, educação primária e secundária para permitir aos pais ir trabalhar), sabendo que as empresas e as escolas constituem uma fonte não negligenciável de contágio, apesar das medidas tomadas (usar máscaras, manter a distância, etc.) Em particular, durante o deconfinamento em meados de 2020, a burguesia cinicamente jogou com a saúde da população em nome do primado da economia, que sempre prevaleceu, mesmo que isso tenha contribuído para o surgimento de uma nova onda da pandemia e a repetição de confinamentos, o aumento do número de internações e mortes.
(c) Covid-19 e o do "cada um por si" imperialista
Desde o início, a acentuação do "cada um por si" entre Estados tem sido um poderoso estímulo para a expansão da pandemia e tem até encorajado a sua exploração para fins hegemônicos. Primeiro, as tentativas iniciais da China para encobrir o surto e a sua recusa em transmitir informações à OMS facilitaram muito a propagação inicial da pandemia. Em segundo lugar, a persistência da pandemia e das suas várias variantes, bem como o número de vítimas, foram facilitados pela recusa de muitos países em "partilhar" os seus estoques de materiais de saúde com os seus vizinhos, pelo caos crescente na cooperação entre diferentes países, incluindo e especialmente dentro da UE, A "guerra das vacinas" é também causada pela recusa de muitos países em "partilhar" as suas reservas de materiais de saúde com os seus vizinhos, pelo caos crescente da cooperação entre países, incluindo e especialmente dentro da UE, para harmonizar as políticas de controle de infecções ou as políticas de concepção e aquisição de vacinas, e pela "corrida das vacinas" entre gigantes farmacêuticos concorrentes (com grande lucros para os vencedores ao final) em vez de reunir toda a gama de conhecimentos médicos e farmacológicos. Finalmente, a "guerra das vacinas" está em plena evolução entre os estados: Por exemplo, a Comissão Europeia recusou-se inicialmente a reservar 5 milhões de doses adicionais de vacinas propostas pela Pfizer BioNTech, sob pressão da França, que exigiu uma encomenda adicional equivalente para a empresa francesa Sanofi; a vacina AstraZeneca/Oxford University está reservada prioritariamente para a Inglaterra em detrimento das encomendas da UE; além disso, as vacinas chinesa (Sinovac), russa (Sputnik V), indiana (BBV152) ou americana (Moderna) são amplamente exploradas por estes Estados como instrumentos da política imperialista. A competição entre estados e a explosão do "cada um por si" acentuou o caos assustador na gestão da crise pandêmica.
(d) Covid-19 e a perda de controle da burguesia sobre o seu aparelho político
A perda de controle sobre o aparelho político já era uma das características que marcaram a implosão do bloco de Leste, mas tinha aparecido então como uma especificidade ligada ao carácter particular dos regimes estalinistas. A crise dos refugiados (2015-16), o surgimento de motins sociais contra a corrupção das elites e sobretudo a onda populista (2016), todas manifestações que já estavam presentes, mas menos proeminentes nas décadas anteriores, vão destacar a importância deste fenômeno como expressão da progressão da decomposição a partir da segunda metade da década de 2010-2020. Esta dimensão desempenhará um papel determinante na extensão da crise da Covid-19. O populismo, e em particular líderes populistas como Bolsonaro, Johnson ou Trump, favoreceram a expansão e o impacto letal da pandemia através das suas políticas de "vandalismo": banalizaram a Covid-19 como uma simples gripe, favoreceram uma implementação incoerente de uma política para limitar a contaminação, expressando abertamente o seu ceticismo em relação a ela, e sabotaram qualquer colaboração internacional. Por exemplo, Trump transgrediu abertamente as medidas de saúde, culpou abertamente a China (o "vírus China") e recusou-se a cooperar com a OMS. Este "vandalismo" exprime de forma emblemática a perda de controle pela burguesia do seu aparelho político: depois de terem se mostrado inicialmente incapazes de limitar a expansão da pandemia, as diferentes burguesias nacionais não conseguiram coordenar as suas ações e criar um grande sistema de "testes" e de "rastreamento e localização" para controlar e limitar novas ondas de contágio do Covid-19. Finalmente, a lenta e caótica implementação da campanha de vacinação destaca mais uma vez as dificuldades do Estado em gerir adequadamente a pandemia. A sucessão de medidas contraditórias e ineficazes alimentou o crescente ceticismo e desconfiança da população em relação às diretivas governamentais: "Podemos ver que, em comparação com a primeira vaga, os cidadãos têm mais dificuldade em aderir às recomendações" (D. Le Guludec, Presidente da Alta Autoridade Francesa para a Saúde, LMD 800, Nov. 2020). Esta preocupação está muito presente nos governos dos países industrializados (de Macron a Biden), exortando a população a seguir as recomendações e diretivas das autoridades.
(e) Covid-19 e a rejeição das elites, ideologias irracionais ou a ascensão do desespero
Os movimentos populistas não só se opõem às elites como também favorecem a ascensão das ideologias niilistas e dos sectarismos religiosos mais retrógrados, já reforçados pela fase de aprofundamento da decomposição. A crise do Covid-19 provocou uma explosão sem precedentes de conspirações e visões anticientíficas, que estão alimentando a contestação das políticas de saúde do Estado. As teorias da conspiração abundam, espalhando noções fantasiosas sobre o vírus e a pandemia. Além disso, líderes populistas como Bolsonaro e Trump expressaram abertamente o seu desprezo pela ciência. A propagação exponencial do pensamento irracional e o questionamento da racionalidade científica durante a pandemia é um exemplo marcante da decadência acelerada. A rejeição populista das elites e ideologias irracionais, tem exacerbado um desafio cada vez mais violento às medidas governamentais, como o toque de recolher e o lockdowns em bases puramente burguesas. Esta raiva antielite e antiestatal estimulou a emergência de comícios 'delinquentes', niilistas, antiestatais (Dinamarca, Itália, Alemanha) ou motins contra restrições (gritos de 'Liberdade!', 'Pelos nossos direitos e vida'), contra a 'ditadura do confinamento' ou o 'engano de um vírus que não existe', como os que eclodiram em janeiro em Israel, Líbano, Espanha e especialmente em muitas cidades holandesas.
Os efeitos da fase de decomposição atingiram duramente as áreas periféricas do sistema em primeiro lugar: países orientais com a implosão do bloco soviético e da ex-Iugoslávia, guerras no Oriente Médio, novas tensões de guerra na Ásia (Afeganistão, Coreia, conflito fronteiriço sino indígena), fome, guerras civis, caos na África. Isto muda com a crise dos refugiados, que levou a um fluxo maciço de pedidos de asilo para a Europa, ou ao êxodo de pessoas desesperadas do México e da América Central para os Estados Unidos, depois com os ataques jihadistas nos Estados Unidos e no coração da Europa e finalmente com o tsunami populista de 2016. Na segunda década do século XXI, o centro dos países industrializados é cada vez mais afetado, e esta tendência é dramaticamente confirmada com a crise do Covid-19. A pandemia está atingindo o coração do capitalismo, e em particular os Estados Unidos, com toda a força. Em comparação com a crise de 1989, a implosão do bloco oriental, que abriu a fase de decomposição, uma diferença crucial é precisamente que a crise da Covid-19 não afeta uma parte particularmente atrasada do modo de produção capitalista e, portanto, não pode ser apresentada como uma vitória do "capitalismo democrático", já que impacta, ao contrário, o centro do sistema capitalista através das democracias da Europa e dos EUA. Como um bumerangue, os piores efeitos da decomposição, que o capitalismo havia empurrado durante anos para a periferia do sistema, estão voltando para atingir duramente os países industrializados, que estão agora no centro da turbulência e longe de estarem livres de todos os seus efeitos. Este impacto sobre os países industrializados centrais já tinha sido apontado pela CCI em termos de controle do jogo político, particularmente a partir de 2017, mas hoje as burguesias americana, britânica e alemã (e posteriormente as dos outros países industrializados) estão no centro do furacão pandêmico e das suas consequências a nível sanitário, econômico, político, social e ideológico. Entre os países centrais, o mais poderoso, a superpotência EUA, é o mais fortemente afetado pela crise da Covid.19 A tabela seguinte mostra o número absoluto de infecções e o número de pessoas afetadas pela pandemia: o maior número absoluto de infecções e mortes do mundo, uma deplorável situação sanitária, uma administração presidencial "vândala" que geriu catastroficamente a pandemia e isolou internacionalmente o país dos seus anteriores aliados, uma economia em grandes dificuldades, um presidente que desacreditou as eleições, apelou a uma marcha no parlamento, aprofundou as divisões no país e alimentou a desconfiança em relação à ciência e aos dados racionais, rotulados como fake news. Hoje, os EUA são o epicentro da desagregação. Porque é que a pandemia parece estar afetando menos a "periferia" do sistema (tanto em termos de infecções como de mortes), e em particular a Ásia e a África? Há, naturalmente, uma série de razões circunstanciais: clima, densidade populacional ou isolamento geográfico (como mostram os casos da Nova Zelândia, Austrália ou Finlândia na Europa), mas também a relativa confiabilidade dos dados: por exemplo, o número de mortes de Covid-19 em 2020 na Rússia se revela três vezes superior ao número oficial (185.000 em vez de 55.000), segundo a vice-primeira-ministra Tatjana Golikova com base no excesso de mortalidade (De Morgen, 29.12.2020). Mais fundamentalmente, o fato de a Ásia e a África terem experiência anterior em lidar com pandemias (H1N1, Ebola) tem certamente jogado a seu favor. Depois há várias explicações de natureza econômica (a maior ou menor densidade do comércio e dos contatos internacionais, a escolha do confinamento limitado que permite a continuação da atividade econômica), social (uma população idosa "recolhidas" às centenas em "albergues"), médica (maior ou menor duração média de vida: cf. França: 82,4/Vietname: 76/China: 76,1/Egito: 70,9/Filipinas: 68,5/Congo: 64,7 e maior ou menor resistência à doença). Além disso, os países da África, Ásia e América Latina são e serão fortemente afetados indiretamente pela pandemia através de atrasos na vacinação na periferia, os efeitos econômicos da crise da Covid-19 e a desaceleração do comércio mundial, como indicado pelo atual perigo de fome na América Central, devido à paralisação da economia. Finalmente, o fato de os países europeus e os Estados Unidos evitarem ao máximo impor confinamentos e controles drásticos e brutais, como os decretados na China, está, sem dúvida, também ligado à prudência dos burgueses para com uma classe trabalhadora, certamente confusa mas não derrotada, que não está pronta para se deixar "aprisionar" pelo Estado. A perda de controle de seu aparelho político e a raiva dentro de uma população confrontada com o colapso dos serviços de saúde e o fracasso das políticas de saúde tornam ainda mais necessário agir com circunspecção.
Diante de um meio político proletário que, depois de negar expressões passadas de decomposição, vê a crise pandêmica como um episódio transitório, a CCI deve enfatizar, ao contrário, que a magnitude da crise do Covid-19 e suas consequências implicam que não haverá "retorno à normalidade". Mesmo que o aprofundamento da decomposição, como foi o caso da decadência, não seja linear, mesmo que a saída do populista Trump e a chegada ao poder de Biden na primeira potência mundial possa, a princípio, apresentar a imagem de uma ilusória estabilização, é necessário ter consciência de que as diferentes tendências que se manifestaram durante a crise da Covid-19 marcam uma aceleração do processo de apodrecimento nas raízes e destruição do sistema.
Em 2007, nossa análise ainda concluiu que "Paradoxalmente, a situação econômica do capitalismo é o aspecto desta sociedade que é menos afetado pela decadência. Isto acontece principalmente porque é precisamente esta situação econômica que acaba por determinar os outros aspectos da vida deste sistema, incluindo aqueles que estão sujeitos à decomposição. (…). Hoje, apesar de toda a proclamação sobre o "triunfo do liberalismo" e o "livre exercício das leis de mercado", os Estados não desistiram de intervir na economia dos seus respectivos países, nem abandonaram, até certo ponto, o uso de estruturas responsáveis pela regulação das relações entre eles, criando mesmo novas estruturas, como a Organização Mundial do Comércio" (Résolution sur la situation internationale [31], Revue internationale n° 130, 2007). Até então, a crise econômica e a decomposição tinham sido separadas pela ação estatal, a primeira aparentemente não afetada pela segunda. De fato, os mecanismos internacionais do capitalismo de Estado, implantados no quadro dos blocos imperialistas (1945-89), tinham sido mantidos a partir dos anos 90, por iniciativa dos países industrializados, como paliativo da crise e como escudo protetor contra os efeitos da decomposição. A CCI entendeu os mecanismos multilaterais de cooperação econômica e uma certa coordenação das políticas econômicas não como uma unificação do capital a nível mundial, nem como uma tendência para o super-imperialismo, mas como uma colaboração entre burgueses a nível internacional com vista a regular e organizar o mercado e a produção mundial, para abrandar e reduzir o peso do mergulho na crise, para evitar o impacto dos efeitos da decomposição no terreno nevrálgico da economia e, finalmente, para proteger o coração do capitalismo (Estados Unidos, Alemanha, ...). No entanto, este mecanismo de resistência contra a crise e a decomposição tendeu a corroer cada vez mais. Desde 2015, vários fenômenos começaram a expressar essa erosão: uma tendência para um enfraquecimento considerável da coordenação entre países, particularmente no que diz respeito à recuperação da economia (e que contrasta claramente com a resposta coordenada posta em prática face à crise 2008-2011), uma fragmentação das relações entre os Estados e dentro dos Estados. Desde 2016, a votação Brexit e a presidência Trump aumentaram o risco de paralisia e fragmentação da União Europeia e intensificaram a guerra comercial entre os EUA e a China, mas também as tensões econômicas entre os EUA e a Alemanha. Uma consequência importante da crise da Covid-19 é que os efeitos da decomposição, a acentuação de "cada um por si" e a perda de controle, que até agora afetava principalmente a superestrutura do sistema capitalista, tendem agora a impactar diretamente na base econômica do sistema, sua capacidade de gerir os choques econômicos no naufrágio de sua crise histórica. "Quando desenvolvemos nossa análise da decomposição, consideramos que este fenômeno afetou a forma dos conflitos imperialistas (ver "Militarismo e Decomposição", Revue Internationale No. 64) e também a consciência do proletariado. Por outro lado, consideramos que não teve um impacto real na evolução da crise do capitalismo. Se a atual ascensão do populismo resultasse na chegada ao poder desta corrente em alguns dos principais países da Europa, poderíamos ver esse impacto da decomposição se desenvolver" (Rapport sur la décomposition aujourd'ui [30], 22º Congresso da CCI, 2017). De fato, a perspectiva apresentada em 2017 tornou-se rapidamente uma realidade e agora temos de considerar que a crise econômica e a decomposição interferem e influenciam cada vez mais uma à outra. Por exemplo, as restrições orçamentárias nas políticas de saúde e nos cuidados hospitalares favoreceram a expansão da pandemia, o que, por sua vez, levou a um colapso do comércio e das economias mundiais, particularmente nos países industrializados (o PIB dos principais países industrializados serão negativos em 2020 a taxas não vistas desde a Segunda Guerra Mundial). A recessão econômica, por sua vez, proporcionará um estímulo para a continuidade da decadência da superestrutura. Por outro lado, a acentuação da atitude "cada um por si" e a perda de controle que marcam globalmente a crise do Covid-19 estão agora também infectando a economia. A falta de consultas internacionais entre os países centrais na frente econômica é flagrante (nenhuma reunião do G7, G8 ou G20 em 2020) e a falta de coordenação das políticas econômicas e de saúde entre os países da UE é também evidente. Diante da pressão das contradições econômicas dentro dos países centrais do capitalismo, e diante das hesitações da China sobre sua política (continuar a se abrir para o mundo ou iniciar uma retirada nacionalista estratégica para a Ásia), os choques na base econômica tenderão a se tornar cada vez mais fortes e caóticos.
Nos anos anteriores, temos visto uma exacerbação das tensões dentro e entre burgueses. Em particular, com a chegada ao poder do Trump e a implementação do Brexit, isto manifestou-se intensamente ao nível das burguesias americana e inglesa, anteriormente consideradas as mais estáveis e experientes do mundo: as consequências da crise do Covid-19 só podem aguçar ainda mais estas tensões: A burguesia inglesa está entrando no nevoeiro pós-Brexit tendo perdido o apoio do irmão mais velho americano por causa da derrota de Trump, enquanto sofre toda a força das consequências da pandemia. Quanto ao Brexit, a insatisfação com o acordo frustrado com a UE aparece tanto entre aqueles que não queriam este acordo (os escoceses, os irlandeses do Norte) como entre aqueles que queriam um Brexit duro (os pescadores), enquanto não há acordo (ainda?) com a UE para os serviços (80% do comércio) e as tensões entre a UE e o Reino Unido estão aumentando (sobre as vacinas, por exemplo). Quanto à crise do Covid-19, a Inglaterra teve de se reconfigurar às pressas, ultrapassou a marca dos 120.000 mortos e está sob uma terrível pressão sobre os seus serviços de saúde. Entretanto, a situação dentro dos seus principais partidos políticos, os Conservadores e os Trabalhistas, ambos em crise interna grave, é venenosa. A exacerbação das tensões entre os EUA e outros Estados foi evidente sob a administração Trump: "O comportamento de vândalo de um Trump que pode denunciar os compromissos internacionais dos EUA da noite para o dia, desafiando as regras estabelecidas, representa um novo e poderoso fator de incerteza e impulso para o "cada um por si". É mais uma indicação da nova etapa que o sistema capitalista está assumindo no afundamento na barbárie e no abismo do militarismo extremo" " (Resolução sobre a situação internacional [29], ponto 13; 23º Congresso da CCI). Mas dentro da própria burguesia americana, as tensões também são altas. Isto já era evidente na estratégia de manter a sua supremacia durante a catastrófica aventura iraquiana de Bush Filho: "A adesão em 2001 dos 'neocons' ao chefe do Estado norte-americano representou uma verdadeira catástrofe para a burguesia americana. (…). Na verdade, a chegada da equipe Cheney, Rumsfeld e companhia na direção do Estado não foi simplesmente o resultado de um monumental "erro de cálculo" por parte desta classe. Se agravou consideravelmente a situação dos Estados Unidos a nível imperialista, já foi notado a manifestação do impasse em que este país se viu confrontado com uma crescente perda da sua liderança e, mais geralmente, com o desenvolvimento do "cada um por si" nas relações internacionais que caracteriza a fase de decomposição" (Résolution sur la situation internationale [31] , 17º Congresso da CCI, Revista Internacional n° 130, 2007). Mas com as políticas "de vândalo" de Trump e a crise da Covid-19, as oposições dentro da burguesia norte-americana parecem ser muito mais amplas (imigração, economia) e, sobretudo, a capacidade do aparelho político para manter a coesão de uma sociedade fragmentada parece estar minada. De fato, a "unidade" e a "identidade" nacionais têm fraquezas congênitas que as tornam vulneráveis à decomposição. Assim, a existência de grandes comunidades étnicas e migrantes, que têm sofrido discriminação racial desde as origens dos Estados Unidos e algumas delas são excluídas da vida "oficial", o peso das igrejas e seitas propagando pensamento irracional e anticientífico, a grande autonomia de gestão dos Estados da "Federação Americana" em relação ao poder central (há, por exemplo, um movimento de independência no Texas), a oposição cada vez mais clara entre os Estados das costas leste e oeste (Califórnia, Oregon, Washington, Nova Iorque, Massachusetts, etc.), tirando pleno proveito da "Federação Americana".), aproveitando plenamente a "globalização", e os estados do Sul (Tennessee, Louisiana, etc.), o Cinturão da Ferrugem (Indiana, Ohio, etc.) e o centro profundo (Oklahoma, Kansas, etc.), que são muito mais favoráveis a uma abordagem mais protecionista, tendem a favorecer uma fragmentação da sociedade americana, mesmo que o estado federal ainda esteja distante de ter perdido o controle da situação. Contudo, a comédia da contestação do processo e dos resultados das últimas eleições presidenciais, bem como a "tempestade" dos invasores do Capitólio por Trump à vista do mundo, como em qualquer república das bananas, confirma a acentuação desta tendência de fragmentação. Em relação à futura exacerbação das tensões dentro e entre burgueses, dois pontos são dignos de menção.
(a) A eleição de Biden não muda a base dos problemas dos EUA
O advento da administração Biden não significa a redução das tensões intra e interburguesas e, em particular, o fim da marca do populismo trumpiano na política interna e externa: por um lado, quatro anos de imprevisibilidade e vandalismo de Trump, mais recentemente no que diz respeito à gestão catastrófica da pandemia, marcaram profundamente a situação interna dos Estados Unidos, a fragmentação da sociedade norte-americana, bem como o seu posicionamento internacional. Além disso, Trump fez de tudo durante o último período da sua presidência para tornar a situação ainda mais caótica para o seu sucessor (cf. a carta dos últimos 10 Ministros da Defesa ordenando a Trump que não envolvesse o exército na contestação dos resultados das eleições de Dezembro de 2020, a ocupação do Congresso pelos seus apoiadores). Em segundo lugar, os resultados eleitorais de Trump mostram que cerca da metade da população partilha as suas ideias e, em particular, a sua antipatia pelas elites políticas. Por fim, o domínio de Trump e as suas opiniões sobre uma grande parte do partido republicano anunciam uma gestão difícil para a pouca popular (exceto entre as elites políticas) administração Biden. A sua vitória deveu-se mais à polarização anti-Trump do que ao entusiasmo pela agenda do novo presidente.
Além disso, se ao nível da forma e em certas áreas, como a política climática ou de imigração, a administração Biden tenderá a romper com a política de Trump, sua política interna de "vingança" das elites em ambas as costas contra a "Região sudeste dos Estados Unidos" (as questões dos combustíveis fósseis e do "muro" estão precisamente ligadas a esta) e a política externa, marcada pela continuidade da política de Trump no Oriente Médio e pelo reforço do confronto com a China (cf. A atitude dura de Biden em relação a Xi durante sua primeira conversa telefônica e a exigência dos EUA de que a UE reveja seu tratado comercial com a China) só podem levar, a longo prazo, ao aumento da instabilidade dentro da burguesia norte-americana e entre as burguesias.
(b) A China não é o grande vencedor da situação
Oficialmente, a China apresenta-se como o "país que superou a pandemia". Qual é a sua situação na realidade? Para responder a esta pergunta, precisamos de avaliar o impacto a curto prazo (controle efetivo da pandemia) e a médio prazo da crise da Covid-19. A China tem uma responsabilidade esmagadora pelo surgimento e expansão da pandemia. Após o surto da SRA em 2003, foram estabelecidos protocolos para as autoridades locais alertarem as autoridades centrais; já com o surto de peste suína em 2019, tornou-se claro que isto não funcionou porque, no capitalismo estatal estalinista, as autoridades locais temem pelas suas carreiras/promoções se anunciarem más notícias. O mesmo aconteceu no início do Covid-19 em Wuhan. Foram as "oposições dos cidadãos democráticos" que acabaram por transmitir a notícia e, como resultado, com atraso, levaram a notícia para o nível central. O "nível central" foi inicialmente e deliberadamente omisso pela sua ausência: não notificou a OMS e Xi esteve ausente; três semanas perdidas . Além disso, desde então, a China sempre se recusou a fornecer à OMS dados verificáveis sobre o desenvolvimento da pandemia no seu território.
O impacto a curto prazo é principalmente indireto. A nível direto, os números oficiais de infecções e mortes não são confiáveis (estes variam de 30.000 a vários milhões) ede acordo com o New York Times, o próprio governo chinês pode desconhecer a extensão da epidemia, pois as autoridades locais mentem sobre o número de infecções, testes e mortes por medo de retaliação por parte do governo central. No entanto, a imposição de bloqueios desumanos e bárbaros em vastas regiões , fechando literalmente milhões de pessoas em suas casas por semanas a cada vez (impostos novamente e regularmente nos últimos meses), paralisou totalmente a economia chinesa por várias semanas, levando a um desemprego maciço (205 milhões em maio de 2020) e consequências desastrosas para as culturas (em combinação com secas, enchentes e pragas de gafanhotos). Para 2020, o crescimento de seu PIB caiu mais de 4% em relação a 2019 (+6,1% a +1,9%); o consumo interno foi mantido por uma liberação total de crédito do Estado.
A longo prazo, a economia chinesa enfrenta a deslocalização de indústrias estratégicas pelos Estados Unidos e países europeus e as dificuldades da "Nova Rota da Seda" devido a problemas financeiros ligados à crise econômica e acentuados pela crise da Covid-19 (financiamento chinês mas sobretudo o nível de endividamento de países "parceiros" como o Sri Lanka, Bangladesh, Paquistão, Nepal, etc.), mas também devido à crescente desconfiança por parte de muitos países e à pressão anti-China por parte dos EUA. Portanto, não é surpreendente que em 2020 tenha havido um colapso no valor financeiro dos investimentos injetados no projeto "Nova Rota da Seda" (-64%). A crise da Covid-19 e os obstáculos encontrados pela "Nova Rota da Seda" também acentuaram as tensões cada vez mais evidentes à frente do Estado chinês, entre a fração "economista", que se apoia sobretudo na globalização econômica e no "multilateralismo" para prosseguir a expansão capitalista da China, e a fração "nacionalista", que apela por uma política mais robusta e enfatiza a força ("a China que derrotou Covid") face às ameaças internas (os Uighurs, Hong Kong, Taiwan) e externas (tensões com os EUA, a Índia e o Japão). Tendo em vista o próximo Congresso do Povo em 2022, que deverá nomear o novo (o antigo) presidente, a situação na China é, portanto, também particularmente instável.
"Como a GCF apontou em seu órgão de imprensa internacional em 1952, o capitalismo de Estado não é uma solução para as contradições do capitalismo, mesmo que possa retardar seus efeitos, mas é sua expressão. A capacidade do Estado de manter unida uma sociedade em declínio, por mais que seja invasiva, está, portanto, destinada a enfraquecer com o tempo e, eventualmente, tornar-se um fator agravante das próprias contradições que tenta conter. A decomposição do capitalismo é o período em que uma crescente perda de controle pela classe dominante e seu estado se torna a tendência dominante na evolução social, que a Covid tão dramaticamente revela" (Relatório sobre a pandemia de Covid-19 e o período de decomposição capitalista (julho de 2020)). Com a crise pandêmica, a contradição entre a necessidade de um intervencionismo capitalista estatal maciço para tentar limitar os efeitos da crise e uma tendência oposta de perda de controle, de fragmentação, ela própria exacerbada por estas tentativas do Estado para manter o controle.
Em particular, a crise da Covid-19 marcou uma aceleração na perda de credibilidade do aparelho de Estado. Enquanto o capitalismo estatal interveio maciçamente para lidar com os efeitos da crise pandêmica (medidas sanitárias, confinamentos, vacinação em massa, compensação financeira generalizada para amortecer o impacto econômico, etc.), as medidas tomadas nos vários níveis revelaram-se frequentemente ineficazes ou provocaram novas contradições (a vacinação exacerbou a oposição antiestatal dos "anti-vacina", a compensação econômica para um setor suscitou o descontentamento de outros). Portanto, se o Estado é supostamente representar toda a sociedade e manter a sua coesão, ele é cada vez menos visto como tal pela sociedade: diante da crescente negligência e irresponsabilidade da burguesia, cada vez mais evidente também nos países centrais, a tendência é ver o Estado como uma estrutura a serviço das elites corruptas, como uma força de repressão também. Como resultado, é cada vez mais difícil impor regras: em muitos países europeus, como Itália, França ou Polônia, e também nos EUA, tem havido manifestações contra medidas governamentais de fechamento de empresas ou de confinamento de pessoas. Por toda a parte, especialmente entre os jovens, estão surgindo campanhas de mídia social para se opor a essas regras, como a hashtag "Eu não quero mais jogar o jogo" na Holanda.
A incapacidade dos Estados de lidar com a situação é simbolizada e afetada pelo impacto do "vandalismo" populista. A ruptura do jogo político da burguesia nos países industrializados é mais evidente no início do século XXI com movimentos e partidos populistas, muitas vezes próximos da extrema direita. Por exemplo, a acessão surpresa de Le Pen no segundo turno das eleições presidenciais de 2002 na França, o espetacular avanço da "lista Pim Fortuyn" na Holanda em 2001-2002, os governos Berlusconi com o apoio da extrema direita na Itália, a ascensão de Jorg Haider e do FPÖ na Áustria, ou a ascensão do Tea Party nos Estados Unidos. Mesmo assim, a CCI tendia a ligar o fenômeno à fraqueza das burguesias: "Elas dependem da força ou da fraqueza da burguesia nacional. Na Itália, as fraquezas e divisões internas da burguesia, mesmo do ponto de vista imperialista, tendem a ressuscitar uma significativa direita populista. Na Grã-Bretanha, por outro lado, a inexistência virtual de um partido específico de extrema-direita está ligada à experiência e ao controle superior do jogo político pela burguesia inglesa" (Montée de l'extrême-droite en Europe : Existe-t-il un danger fasciste aujourd'hui ? [32] Revue Internacionale No 110, 2002). Se a tendência a perder o controle é global e tem marcado a periferia (países como Brasil, Venezuela, Peru na América Latina, Filipinas ou Índia na Ásia), agora estão atingindos duramente os países industrializados, as burguesias historicamente mais fortes (Grã-Bretanha) e hoje especialmente os Estados Unidos. Enquanto a onda populista cavalga a onda de desafio ao establishment, a chegada ao poder dos populistas mina e desestabiliza ainda mais as estruturas estatais através das suas políticas "vandalistas" (por exemplo, Trump, Bolsonaro, mas também o 'governo populista' M5S e Lega na Itália), uma vez que eles não estão dispostos nem são capazes de assumir responsavelmente os assuntos do Estado.
Estas observações vão contra a tese de que a burguesia, através destas medidas, consegue uma mobilização e submissão da população em vista de uma marcha em direção a uma guerra generalizada. Pelo contrário, as políticas caóticas de saúde e a incapacidade dos Estados para lidar com a situação expressam a dificuldade da burguesia dos países centrais em impor o seu controle sobre a sociedade. O desenvolvimento desta tendência pode alterar a credibilidade das instituições democráticas (sem que isso implique, no presente contexto, o menor reforço do terreno de classe) ou, pelo contrário, ver o desenvolvimento de campanhas para a defesa dessas instituições, ou mesmo para a restauração de uma "verdadeira democracia": assim, durante o assalto ao Capitólio, houve quem quisesse recuperar a democracia "tomada como refém pelas elites" ("o Capitólio é a nossa casa") que oponham a quem defendeu a democracia contra um putsch populista.
O fato de a burguesia ser cada vez menos capaz de apresentar uma perspectiva para toda a sociedade também gera uma expansão assustadora de ideologias alternativas irracionais e um crescente desprezo por uma abordagem científica e fundamentada. É claro que a quebra dos valores da classe dominante não é nova. É evidente desde o final dos anos 60, mas o aprofundamento da decomposição, do caos e da barbárie tem encorajado o aumento do ódio e da violência das ideologias niilistas e do sectarismo religioso mais retrógrado. A crise do Covid-19 estimula a sua extensão em larga escala. Movimentos como o QAnon, Wolverine Watchmen, Proud Boys ou o movimento Boogaloo nos Estados Unidos, seitas evangélicas no Brasil, América Latina ou África, seitas muçulmanas sunitas ou xiitas, mas também seitas hindus ou budistas, difundem teorias conspiratórias e concepções totalmente fantasiosas sobre o vírus, a pandemia, a origem (criacionismo) ou o futuro da sociedade. A propagação exponencial do pensamento irracional e a rejeição das contribuições da ciência tenderá a acelerar.
Explosões de revoltas populares contra a miséria e a barbárie bélica estiveram presentes desde o início da fase de decomposição e estão tornando-se mais acentuadas no século XXI: Argentina (2001-2002), os subúrbios franceses em 2005, o Irã em 2009, Londres e outras cidades inglesas em 2011, o surto de motins no Magrebe e no Oriente Médio em 2011-12 (a "Primavera Árabe"). Uma nova onda de motins sociais irrompe no Chile, Equador ou Colômbia (2019), Irã (em 2017-18 e novamente em 2019-20), Iraque, Líbano (2019-2020), mas também na Romênia (2017) na Bulgária (2013 e 2019-2020) ou em França com o movimento "coletes amarelos" (2018- 2019) e, com características específicas, em Ferguson (2014) e Baltimore (2016) nos EUA. Estas revoltas manifestam o crescente desespero das populações que sofrem com a desestruturação das relações sociais, sujeitas às consequências traumáticas e dramáticas do empobrecimento ligado ao colapso econômico ou às guerras sem fim. Eles também têm cada vez mais como alvo a corrupção das coalisões no poder e, de um modo mais geral, das elites políticas. Na sequência da crise da Covid-19, tais explosões de raiva multiplicam-se, assumindo a forma de manifestações e até motins. Eles tendem a cristalizar em torno de três polos:
(a) movimentos interclassistas, expressando revolta contra as consequências econômicas e sociais da crise da Covid-19 (exemplo dos "coletes amarelos");
(b) movimentos baseados na identidade, de origem populista (MAGA) ou paroquial, tendendo a exacerbar as tensões entre componentes da população (como as revoltas raciais (BLM), mas também movimentos de inspiração religiosa (na Índia, por exemplo), etc.);
c) movimentos anti-estabelecimento e anti-estado em nome da "liberdade individual", do tipo niilista, sem "alternativas" reais, como os "anti-vax" ou movimentos conspiratórios ("recuperar as nossas instituições das mãos das elites").
Estes tipos de movimentos levam frequentemente a motins e saques, servindo de válvula de escape para bandos de jovens de bairros atormentados pela decadência. Embora estes movimentos evidenciem a grave perda de credibilidade das estruturas políticas da burguesia, nenhum deles oferece, de forma alguma, uma perspectiva para a classe trabalhadora. Qualquer revolta contra o Estado nem sempre é um terreno favorável para o proletariado: pelo contrário, desviam-no do seu terreno de classe para um terreno que não é o seu.
A pandemia ilustra o agravamento dramático da degradação do meio ambiente, que atinge níveis alarmantes de acordo com as descobertas e previsões agora unanimemente aceitas nos círculos científicos e que a maioria dos setores burgueses em todos os países aderiram (Acordo de Paris, 2015): Poluição urbana do ar e da água dos oceanos, perturbações climáticas com fenômenos meteorológicos cada vez mais violentos, avanço da desertificação, desaparecimento acelerado de espécies vegetais e animais que ameaçam cada vez mais o equilíbrio biológico do nosso planeta. "Todas estas calamidades econômicas e sociais, embora geralmente se devam à própria decadência do sistema, dão conta, pela sua acumulação e extensão, do impasse em que entrou um sistema que não tem o menor futuro a oferecer à grande maioria da população mundial, se não o de uma barbárie crescente e inimaginável. Um sistema cujas políticas econômicas, cujas pesquisas e investimentos são sistematicamente feitos em detrimento do futuro da humanidade e, portanto, em detrimento do próprio sistema." (Ponto 7 das Teses sobre Decomposição).
A classe dominante é incapaz de implementar as medidas necessárias, devido às próprias leis do capitalismo e, mais especificamente, à exacerbação das contradições causadas pelo afundamento na decomposição; portanto, a crise ecológica só pode piorar e gerar novas catástrofes no futuro. Contudo, nas últimas décadas, a burguesia recuperou a dimensão ecológica numa tentativa de apresentar uma perspectiva de "reformas dentro do sistema". Em particular, as burguesias dos países industrializados estão a colocar a "transição ecológica" e a "economia verde" no centro das suas atuais campanhas para fazer passar uma perspectiva de austeridade draconiana como parte das suas políticas econômicas "pós-Covid" destinadas a reestruturar e reforçar a posição competitiva dos países industrializados. Por exemplo, elas estão no centro dos "planos de recuperação" da Comissão Europeia para os países da UE e dos pacotes de estímulo da administração Biden nos EUA. Nos próximos anos, portanto, a ecologia será mais do que nunca uma grande mistificação a ser combatida pelos revolucionários.
Este relatório mostrou que a pandemia não inaugura um novo período, mas é antes de mais nada um indicador do nível de podridão atingido durante a fase de decomposição de 30 anos, um nível que tem sido muitas vezes subestimado até agora. Ao mesmo tempo, a crise pandêmica anuncia também uma aceleração significativa de vários efeitos de decadência no próximo período, como ilustrado em particular pelo impacto da crise da Covid-19 na gestão estatal da economia e os seus efeitos devastadores nos principais países industriais e, em particular, na superpotência norte-americana. Existem possibilidades de contra tendências específicas, que podem forçar uma pausa ou mesmo alguma recuperação de controle pelo capitalismo estatal, mas esses eventos específicos não significarão que a dinâmica histórica de aprofundamento na fase de decomposição, destacada neste relatório, seja posta em questão.
Embora a perspectiva não seja de uma guerra mundial generalizada (entre blocos imperialistas), o atual mergulho em "cada um por si" e a fragmentação traz, no entanto, a promessa sombria de mais conflitos bélicos assassinos, revoltas sangrentas sem perspectivas ou catástrofes para a humanidade. " O curso da história é irreversível: a decomposição conduz, como o seu nome tão bem indica, ao desmembramento e à putrefacção da sociedade, ao nada. Abandonada à sua própria lógica, às suas últimas consequências, arrastaria a humanidade para os mesmos resultados que a guerra mundial. Ser aniquilado bestialmente por uma chuva de bombas termonucleares numa guerra generalizada ou ser aniquilado pela poluição, radioatividade das centrais nucleares, fome, epidemias e massacres em conflitos bélicos, nos quais, além disso, seriam utilizadas armas atômicas, é, no fim de contas, a mesma coisa. A única diferença entre as duas formas de destruição é que a primeira é mais rápida, enquanto a segunda é mais lenta e, portanto, causa ainda mais sofrimento." " (Tese 11 sobre a decomposição). A progressão da fase de decomposição também pode levar a um declínio da capacidade do proletariado para realizar a sua ação revolucionária. Este último está, portanto, envolvido numa corrida contra o mergulho da sociedade na barbárie de um sistema historicamente obsoleto. É claro que as lutas dos trabalhadores não podem impedir o desenvolvimento da decomposição, mas podem pôr fim aos efeitos dessa decomposição, do "cada um por si" . Como lembrete, "a decadência do capitalismo foi necessária para que o proletariado fosse capaz de derrubar o sistema; por outro lado, o aparecimento do fenômeno histórico da decomposição, resultado do prolongamento da decadência na ausência da revolução proletária, não é de modo algum uma etapa necessária no caminho de sua emancipação " (Tese 12 sobre a decomposição).
A crise do Covid-19 gera assim uma situação ainda mais imprevisível e confusa. As tensões nos diferentes níveis (sanitário, sócio-econômico, militar, político, ideológico) gerarão grandes convulsões sociais, revoltas populares maciças, tumultos destrutivos, campanhas ideológicas intensas, como a que envolve a ecologia. Sem um quadro sólido para compreender os acontecimentos, os revolucionários não poderão desempenhar o seu papel de vanguarda política da classe, mas contribuirão para a sua confusão, para o declínio da sua capacidade de levar a cabo a sua ação revolucionária.
[1] Este texto foi escrito em abril de 2021, e não pôde levar em conta uma informação recente considerando como plausível a tese de que a epidemia teve sua origem em um acidente de laboratório em Wuhan, China (Ver sobre este assunto o seguinte artigo: "Origens da Covid-19: a hipótese de um acidente no Instituto de Virologia de Wuhan relançado após a divulgação de trabalho inédito"). Dito isto, esta hipótese, se verificada, não diminuiria em nada nossa análise de que a Pandemia é um produto da decomposição do capitalismo. Pelo contrário, isso ilustraria que não poupa a pesquisa científica em um país cujo crescimento meteórico nas últimas décadas tem o selo da decomposição.
Esta resolução é uma continuidade do relatório sobre a decomposição apresentado ao 22º Congresso da CCI, a resolução sobre a situação internacional apresentada ao 23º Congresso e o relatório sobre a pandemia e a decomposição apresentado ao 24º Congresso. Baseia-se na ideia de que não só a decadência do capitalismo passa por diferentes estágios ou fases, mas que desde o final dos anos 80 atingimos a sua fase final, a fase de decomposição; além disso, a própria decomposição tem uma história, e um objetivo central destes textos é "testar" o quadro teórico da decomposição frente a situação mundial em mudança. Estes textos demonstraram que a maioria dos importantes desenvolvimentos das últimas três décadas confirmaram, de fato, a validade deste quadro, como evidenciado pela exacerbação do "cada um por si" a nível internacional, a "acentuação" dos fenômenos de decomposição para os centros do capitalismo global através do desenvolvimento do terrorismo e da crise dos refugiados, o aumento do populismo e a perda do controle político da classe dominante, a gradual putrefação da ideologia através da propagação do bode expiatório, do fundamentalismo religioso e das teorias da conspiração. E assim como a fase de decomposição é a expressão concentrada de todas as contradições do Capital, especialmente no seu período de declínio, a atual pandemia de Covid-19 é a destilação de todas as manifestações típicas da decomposição, e um fator ativo em sua aceleração.
1. A pandemia de Covid-19, a primeira de tal magnitude desde a epidemia de gripe espanhola de 1918, é o momento mais importante na evolução da decomposição capitalista desde a abertura irremediável deste período em 1989. A incapacidade da classe dominante de impedir os 7-12 milhões - e mais - mortes resultantes confirma que o sistema capitalista mundial, deixado à sua sorte, está arrastando a humanidade para o abismo da barbárie e sua destruição, e que somente a revolução proletária mundial pode deter esta deriva e conduzir a humanidade para um futuro diferente.
2. A CCI está praticamente sozinha na defesa da teoria da decomposição. Outros grupos da esquerda comunista a rejeitam completamente, como no caso dos Bordiguistas, porque não aceitam que o capitalismo possa ser um sistema em declínio (ou, na melhor das hipóteses, são inconsistentes e ambíguos neste ponto); ou, quanto à Tendência Comunista Internacional, porque falar de uma fase "final" do capitalismo soa demasiado apocalítico, ou porque definir a decomposição como uma queda em direção ao caos é um desvio do materialismo que, segundo eles, procura encontrar as raízes de todos os fenômenos na economia e, sobretudo, na tendência para a queda da taxa de lucro. Todas essas correntes parecem ignorar que nossa análise está em continuidade com a plataforma da Internacional Comunista de 1919, que não só insistiu que a guerra imperialista mundial de 1914-18 anunciava a entrada do capitalismo na "época do colapso do Capital, de sua desintegração interna, a época da revolução comunista do proletariado", mas também enfatizou que "a velha 'ordem' capitalista deixou de funcionar; sua existência futura está fora de questão. O resultado final do modo capitalista de produção é o caos. Este caos só pode ser superado pela classe produtora e a mais numerosa - a classe trabalhadora. O proletariado deve estabelecer uma ordem real - a ordem comunista." Assim, o drama que a humanidade enfrenta é efetivamente colocado em termos de ordem versus caos. E a ameaça de colapso caótico estava ligada à "anarquia do modo de produção capitalista", ou seja, a um elemento fundamental do próprio sistema - um sistema que, segundo o marxismo, e a um nível qualitativamente superior ao de qualquer modo de produção anterior, implica que os produtos do trabalho humano se tornem um poder alienígena que se ergue acima e contra os seus criadores. A decadência do sistema, devido às suas contradições insolúveis, marca uma nova espiral nesta perda de controle. E, como explica a Plataforma da IC, a necessidade de tentar superar a anarquia capitalista dentro de cada Estado-nação - através do monopólio e especialmente da intervenção estatal - apenas a empurra para novas alturas à escala global, culminando numa guerra mundial imperialista. Assim, enquanto o capitalismo pode, em certos níveis e durante certas fases, manter sua tendência inata ao caos (por exemplo, através da mobilização para a guerra nos anos 30 ou do boom econômico do pós-guerra), a tendência mais profunda é a da "desintegração interna" que, para a IC, caracteriza a nova época.
3. Enquanto o Manifesto da IC falava do início de uma nova "época", havia tendências dentro da Internacional para ver a situação catastrófica do mundo do pós-guerra como uma crise final num sentido imediato e não como uma era repleta de catástrofes que poderia perdurar através de várias décadas. E este é um erro em que os revolucionários têm caído repetidamente (por causa de uma análise incorreta, mas também porque não se pode prever com certeza o momento preciso em que uma mudança acontecerá no nível histórico): em 1848, quando o Manifesto Comunista já proclamava que o sistema do capital havia se tornado muito estreito para conter as forças produtivas que havia colocado em movimento; em 1919-20 com a teoria do brutal colapso do capitalismo, desenvolvida em particular pela esquerda comunista alemã; em 1938 com a noção de Trotsky de que as forças produtivas haviam parado de crescer. A própria CCI também subestimou a capacidade do capitalismo de se expandir e desenvolver à sua própria maneira, mesmo num contexto geral de declínio progressivo, nomeadamente com a China estalinista após o colapso do bloco russo. No entanto, estes erros são produtos de uma interpretação imediatista da crise capitalista, não um defeito inerente à própria teoria da decadência, que vê o capitalismo neste período como um obstáculo crescente às forças produtivas e não como uma barreira absoluta. O capitalismo está em declínio há mais de um século, e reconhecer que estamos atingindo os limites do sistema é totalmente coerente com o entendimento de que a crise econômica, apesar de seus altos e baixos, tornou-se essencialmente permanente; que os meios de destruição não só atingiram um nível que poderia destruir toda a vida no planeta, mas estão nas mãos de uma "ordem" mundial cada vez mais instável; que o capitalismo causou um desastre ecológico planetário sem precedentes na história da humanidade. Em suma, o reconhecimento de que estamos de fato na fase final da decadência capitalista é baseado numa avaliação lúcida da realidade. Mais uma vez, isto tem de ser visto numa escala de tempo histórica e não numa base diária. Isto significa que esta fase final é irreversível e que não pode haver outra alternativa histórica senão o comunismo ou a destruição da humanidade. Esta é a alternativa para o nosso tempo.
4. A pandemia de Covid-19, ao contrário das opiniões propagadas pela classe dominante, não é um evento puramente "natural", mas resulta de uma combinação de fatores naturais, sociais e políticos, todos ligados ao funcionamento do sistema capitalista decadente. O elemento "econômico" é de fato crucial aqui, e novamente em mais de um nível. É a crise econômica, a caça desesperada ao lucro, que levou o capital a invadir todas as partes da superfície do mundo, a aproveitar o que Adam Smith chamou de "dom gratuito" da natureza, a destruir os últimos rincões da vida selvagem e a elevar muito o risco de doenças zoonóticas. Por sua vez, o crash financeiro de 2008 levou a uma forte redução no investimento em pesquisa de novas doenças, equipamentos médicos e tratamentos, aumentando exponencialmente o impacto mortal do Coronavírus. E a intensificação da competição, do "cada um por si" entre empresas e nações a nível global, atrasou muito o fornecimento de equipamentos de segurança e vacinas. E ao contrário das esperanças utópicas de algumas partes da classe dominante, a pandemia não resultará em uma ordem mundial mais harmoniosa, uma vez derrotada. Não só porque esta pandemia é provavelmente apenas um prenúncio de pandemias mais graves que advirão, uma vez que as condições fundamentais que a geraram não podem ser eliminadas pela burguesia, mas também porque a pandemia agravou muito a recessão econômica global que já era iminente antes da pandemia atingir. O resultado será o oposto de harmonia, uma vez que as economias nacionais procuram abater umas às outras na luta por mercados e recursos em queda. Esta competição ampliada será certamente expressa a nível militar. E o "retorno à competição capitalista normal" colocará novos fardos nas costas dos explorados do mundo, que suportarão o peso dos esforços do capitalismo para resgatar algumas das enormes dívidas contraídas na tentativa de gerir a crise.
5. Nenhum Estado pode afirmar ser um modelo de gestão da pandemia. Se alguns estados asiáticos inicialmente conseguiram lidar mais eficazmente (ainda que países como a China se empenharam em falsificar os números e a realidade da epidemia), foi devido à sua experiência de lidar com pandemias a nível social e cultural, uma vez que este continente tem sido historicamente terreno fértil para novas doenças, e sobretudo porque estes estados mantiveram os recursos, instituições e procedimentos de coordenação postos em prática durante a epidemia da SARS em 2003. A propagação global do vírus, a geração internacional de novas variantes, coloca o problema desde o início no nível em que a impotência da burguesia está mais claramente exposta, nomeadamente a sua incapacidade de adotar uma abordagem unificada e coordenada (como demonstra o recente fracasso da proposta de assinatura de um tratado de combate às pandemias) e de assegurar a proteção de toda a humanidade através de vacinas.
7. Os eventos nos EUA também destacam o avanço da decomposição das estruturas ideológicas do capitalismo, onde novamente este país está "liderando o caminho". A ascensão ao poder da administração populista Trump, a poderosa influência do fundamentalismo religioso, a crescente desconfiança na ciência, têm suas raízes em fatores particulares na história do capitalismo americano, mas o desenvolvimento da decomposição e, em particular, o surto da pandemia permearam a corrente política com todo tipo de ideias irracionais, refletindo precisamente a total falta de perspectivas futuras oferecidas pela sociedade existente. Em particular, os EUA tornaram-se o ponto nodal para a difusão da "teoria da conspiração" pelo mundo capitalista avançado, especialmente através da internet e das mídias sociais, que forneceram os meios tecnológicos para minar ainda mais os fundamentos de qualquer ideia de verdade objetiva, a um ponto com o qual o estalinismo e o nazismo só poderiam sonhar. Embora apareça em diferentes formas, a teoria da conspiração partilha certas características comuns: a visão encarnada das elites secretas que dirigem a sociedade a partir dos bastidores, uma rejeição do método científico e uma profunda desconfiança em relação a qualquer discurso oficial. Em contraste com a ideologia dominante da burguesia, que apresenta a democracia e o poder estatal existente como verdadeiros representantes da sociedade, a teoria da conspiração tem como centro de gravidade um ódio às elites estabelecidas, ódio que ela dirige contra o capital financeiro e a clássica fachada democrática do capitalismo de estado totalitarista. Foi isto que levou os representantes do movimento operário no passado a chamar a esta abordagem "socialismo de tolos" (August Bebel, referindo-se ao anti-semitismo) - um erro que ainda era compreensível antes da Primeira Guerra Mundial, mas que hoje seria perigoso. O populismo da teoria da conspiração não é uma tentativa distorcida de abordar o socialismo ou algo parecido com a consciência de classe proletária. Uma das suas principais fontes é a própria burguesia: aquela parte da burguesia que se ressente de ser excluída precisamente dos círculos elitistas da sua própria classe, apoiada por outras partes da burguesia que perderam ou estão perdendo a sua posição central anterior. As massas que este tipo de populismo atrai, longe de serem impulsionadas por qualquer desejo de desafiar a classe dominante, esperam, identificando-se com a luta de poder daqueles que apoiam, partilhar de alguma forma esse poder, ou pelo menos ser favorecidas por ele em detrimento de outros.
Após a perda da sua segunda maior economia, mesmo que a UE não esteja em perigo imediato de uma grande cisão, tais ameaças continuam a pairar sobre o sonho de uma Europa unida. E enquanto a propaganda estatal chinesa destaca a crescente desunião e incoerência das "democracias", apresentando-se como um baluarte da estabilidade global, o uso crescente da repressão interna por Pequim, como contra o "movimento democrático" em Hong Kong e os muçulmanos Uighur, é na verdade uma prova de que a China é uma bomba relógio. O extraordinário crescimento da China é, em si mesmo, um produto da decomposição. A abertura econômica durante o período Deng na década de 1980 mobilizou enormes investimentos, especialmente dos EUA, Europa e Japão. O massacre de Tiananmen em 1989 deixou claro que esta abertura econômica foi implementada por um aparelho político inflexível que só podia evitar o destino do estalinismo no bloco russo através de uma combinação de terror estatal, exploração implacável da força de trabalho que subjuga centenas de milhões de trabalhadores a um estado permanente de trabalho migrante e crescimento econômico frenético cujos fundamentos parecem agora cada vez mais frágeis. O controle totalitário sobre todo o corpo social, o endurecimento repressivo da fração estalinista de Xi Jinping, não são uma expressão de força, mas uma manifestação da fraqueza do Estado, cuja coesão é ameaçada pela existência de forças centrífugas dentro da sociedade e importantes lutas de grupo dentro da classe dominante.
14. Pela primeira vez na história do capitalismo fora de uma situação de guerra mundial, a economia tem sido direta e profundamente afetada por um fenômeno - a pandemia de Covid 19 - que não está diretamente relacionado com as contradições da economia capitalista. A magnitude e a importância do impacto da pandemia, produto da agonia de um sistema em decadência que se tornou completamente obsoleto, ilustra o fato sem precedentes de que o fenômeno da decomposição capitalista agora também está afetando toda a economia capitalista em uma escala maciça e global.
Esta irrupção dos efeitos da decomposição na esfera econômica afeta diretamente a evolução da nova fase de crise que se abriu, inaugurando uma situação totalmente sem precedentes na história do capitalismo. Os efeitos da decomposição, ao alterar profundamente os mecanismos do capitalismo de Estado criados até agora para "acompanhar" e limitar o impacto da crise, introduzem na situação um fator de instabilidade e fragilidade, de crescente incerteza.
O caos da economia capitalista confirma a opinião de Rosa Luxemburgo de que o capitalismo não sofrerá um colapso puramente econômico. "Quanto mais a violência aumenta, com a qual o capital aniquila interna e externamente os estratos não capitalistas e degrada as condições de existência de todas as classes trabalhadoras, mais a história diária da acumulação no mundo se transforma numa série de catástrofes e convulsões, que, juntamente com as crises econômicas periódicas, acabarão por impossibilitar a continuidade da acumulação e colocar a classe trabalhadora internacional contra a dominação do capital antes mesmo de ter atingido os últimos limites objetivos de seu desenvolvimento." (Acumulação de Capital, Capítulo 32)
A violenta aceleração da crise econômica - e o susto da burguesia - pode ser medido pela altura do edifício da dívida erguido precipitadamente para preservar seu aparelho produtivo da falência e manter um mínimo de coesão social.
Uma das manifestações mais importantes da gravidade da crise atual, em contraste com situações passadas de crise econômica aberta e a crise de 2008, é que os países centrais (Alemanha, China e Estados Unidos) foram atingidos simultaneamente e estão entre os mais afetados pela recessão, com a China experimentando uma queda acentuada na taxa de crescimento em 2020. Os Estados mais fracos estão vendo suas economias serem estranguladas pela inflação, queda dos valores monetários e empobrecimento.
Após quatro décadas de recurso ao crédito e à dívida para contrariar a crescente tendência à superprodução, pontuada por recessões cada vez mais profundas e recuperações cada vez mais limitadas, a crise de 2007-09 já havia marcado uma etapa no mergulho do sistema capitalista em sua crise irreversível. Embora a intervenção maciça do Estado possa ter salvo o sistema bancário de um completo colapso, empurrando a dívida para níveis ainda mais vertiginosos, as causas da crise de 2007-11 não foram superadas. As contradições da crise foram levadas a um nível superior com o peso esmagador da dívida sobre os próprios Estados. As tentativas de reaquecer as economias não levaram a uma recuperação real: sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial, com exceção dos Estados Unidos, China e, em menor escala, Alemanha, os níveis de produção de todos os principais países do mundo estagnaram ou mesmo declinaram entre 2013 e 2018. A extrema fragilidade desta "recuperação", acumulando todas as condições para uma maior deterioração significativa da economia global, já pressagiava a situação atual.
Apesar da escala histórica dos pacotes de estímulo e devido à recuperação caótica da economia, ainda não é possível prever como - e em que medida - a burguesia conseguirá estabilizar a situação, que se caracteriza por todo o tipo de incertezas, entre elas, sobretudo, a evolução da própria pandemia.
Ao contrário do que a burguesia foi capaz de fazer em 2008, reunindo o G7 e o G20, compostos pelos principais Estados, e acordando uma resposta coordenada à crise do crédito, hoje cada capital nacional reage de forma dispersa, sem outra preocupação que não seja o renascimento da sua própria máquina econômica e a sua sobrevivência no mercado mundial, sem qualquer concertação entre os principais componentes do sistema capitalista. A atitude "cada um por si" predomina de maneira decisiva.
A aparente exceção do plano de recuperação europeu, incluindo a mutualidade de dívidas entre países da UE, explica-se pela consciência dos dois principais Estados da UE da necessidade de um mínimo de cooperação entre eles como condição para evitar uma grande desestabilização da UE, com a finalidade de enfrentar os seus principais rivais, a China e os Estados Unidos, sob pena de se arriscarem a uma desvalorização acelerada da sua posição na arena mundial.
A contradição entre a necessidade de conter a pandemia e evitar a paralisia da produção levou à "guerra das máscaras" e à "guerra das vacinas". Esta guerra às vacinas, sua fabricação e distribuição, reflete a crescente desordem em que a economia global está se afundando.
Após o colapso do bloco de Leste, a burguesia fez todos os esforços para manter uma certa colaboração entre Estados, nomeadamente confiando nos organismos reguladores internacionais herdados do período dos blocos imperialistas. Este quadro da "globalização" limitou o impacto da fase de decomposição ao nível da economia, levando ao extremo a possibilidade de "associar" nações a diferentes níveis da economia - financeiro, produtivo, etc.
Com o aprofundamento da crise e as rivalidades imperialistas, as instituições e mecanismos multilaterais já estavam a ser desafiados pelo fato de as grandes potências estarem desenvolvendo cada vez mais as suas próprias políticas, nomeadamente a China, construindo a sua vasta rede paralela de Novas Rotas da Seda, e os Estados Unidos, que tendiam a dar as costas a estas instituições devido à crescente incapacidade destas ferramentas para preservar a sua posição dominante. O populismo já estava emergindo como um fator agravante da deterioração da situação econômica, ao introduzir um elemento de incerteza diante da crise. A sua ascensão ao poder em vários países acelerou a deterioração dos meios impostos pelo capitalismo desde 1945 para evitar qualquer deriva no sentido de uma retirada para o quadro nacional, favorecendo o contágio descontrolado da crise econômica.
O desencadeamento do "cada um por si" surge da contradição no capitalismo entre a escala cada vez mais global da produção e a estrutura nacional do capital, uma contradição exacerbada pela crise. Ao causar um caos crescente na economia mundial (com a tendência para a fragmentação das cadeias produtivas e a fragmentação do mercado mundial em zonas regionais, o reforço do protecionismo e a multiplicação de medidas unilaterais), este movimento totalmente irracional de cada nação para salvar a sua própria economia à custa de todas as outras é contraproducente para cada capital nacional e um desastre a nível global, um fator decisivo para a deterioração de toda a economia mundial.
Esta corrida das frações burguesas mais "responsáveis" para uma gestão cada vez mais irracional e caótica do sistema e, sobretudo, o avanço sem precedentes da tendência de "cada um por si", revelam uma crescente perda de controle de seu próprio sistema pela classe dominante.
A China enfrenta a contração dos mercados em todo o mundo, o desejo de muitos Estados de se libertarem da dependência da produção chinesa e o risco de insolvência de vários países envolvidos no projeto da Rota da Seda entre os mais duramente atingidos pelas consequências econômicas da pandemia. O governo chinês está, portanto, seguindo uma orientação de desenvolvimento econômico interno do plano "Made in China 2025", e o modelo de "dupla circulação", que visa compensar a perda da demanda externa, estimulando a demanda interna. Contudo, esta mudança de política não representa uma "retirada", pois o imperialismo chinês não está disposto nem é capaz de virar as costas ao mundo. Pelo contrário, o objetivo desta mudança é ganhar a autarquia nacional em tecnologias-chave, de modo a se tornar ainda mais capaz de ganhar terreno para além das suas próprias fronteiras. Ela representa uma nova etapa no desenvolvimento da sua economia de guerra. Tudo isso está causando conflitos poderosos dentro da classe dominante, entre aqueles que favorecem a direção da economia pelo Partido Comunista Chinês e aqueles que estão ligados à economia de mercado e ao setor privado, entre os "planejadores" do poder central e as próprias autoridades locais que querem dirigir os investimentos. Tanto nos EUA (em relação aos gigantes da tecnologia "GAFA" do Vale do Silício) como - ainda mais decisivamente - na China (em relação à Ant Internacional, Alibaba, etc.), há uma forte tendência para o aparelho do estado central reduzir as empresas que se tornaram demasiado grandes (e poderosas) para controlar.
Assistimos atualmente um aumento dos fenômenos climáticos extremos, chuvas e inundações extremamente violentas e incêndios em grande escala que provocam enormes perdas financeiras nas cidades e no campo através da destruição de infraestruturas vitais (cidades, estradas, vias fluviais). Estes fenômenos perturbam o funcionamento do aparelho produtivo industrial e também enfraquecem a capacidade produtiva da agricultura. A crise climática global e a consequente desorganização em crescimento do mercado mundial de produtos agrícolas ameaçam a segurança alimentar de muitos Estados.
O capitalismo decadente não tem os meios para realmente combater o aquecimento global e a devastação ecológica. Estes já estão tendo um impacto cada vez mais negativo na reprodução do capital e só podem ser um obstáculo ao retorno do crescimento econômico.
Impulsionada pela necessidade de substituir indústrias pesadas obsoletas e combustíveis fósseis, a "economia verde" não é uma saída para o capital, nem ecológica nem economicamente. As suas cadeias de produção não são mais verdes nem menos poluentes. O sistema capitalista não tem a capacidade de se engajar em uma "revolução verde". As ações da classe dominante nesta área inevitavelmente aguçam a competição econômica destrutiva e as rivalidades imperialistas. O surgimento de setores novos e potencialmente lucrativos, como a produção de veículos elétricos, poderia, na melhor das hipóteses, beneficiar partes das economias mais fortes, mas dados os limites dos mercados solventes e os problemas crescentes enfrentados pelo uso cada vez maior da emissão de dinheiro e da dívida, eles não poderão servir de locomotiva para o conjunto da economia.
A "economia verde" é sobretudo um veículo privilegiado para poderosas mistificações ideológicas sobre a possibilidade de reforma do capitalismo e uma arma por excelência contra a classe trabalhadora, justificando o encerramento de fábricas e demissões.
Esta louca corrida às armas, que cada Estado é irremediavelmente condenado pelas exigências da competição inter-imperialista, é tanto mais irracional quanto o peso crescente da economia de guerra e da produção de armas que absorve uma parte considerável da riqueza nacional: esta gigantesca massa de despesas militares à escala global, mesmo que constitua uma fonte de lucro para os negociantes de armas, representa, em termos de capital global, uma esterilização e destruição do capital. Os investimentos realizados na produção e venda de armas e equipamentos militares não constituem um ponto de partida ou fonte de acumulação de novos lucros: uma vez produzidas ou adquiridas, as armas só podem ser utilizadas para semear a morte e a destruição ou para esperar a sua substituição quando estão obsoletas. Completamente improdutivo, este gasto tem um "impacto econômico desastroso (...) para o capital. Face aos já incontroláveis déficits orçamentários, o aumento maciço das despesas militares, que o crescimento dos antagonismos inter-imperialistas torna necessário, é uma carga econômica que apenas acelera a queda do capitalismo em direção ao abismo. ("Rapport sur la situation internationale [33] ; Revue internationale n° 35).
19. Após décadas de enormes dívidas, as injeções massivas de liquidez dos últimos pacotes de estímulo econômico ultrapassam de longe o volume das intervenções anteriores. Os bilhões de dólares liberados pelos planos dos EUA, UE e China elevaram a dívida global a um recorde de 365% do PIB global.
A dívida, que tem sido utilizada pelo capitalismo durante todo o seu período de decadência como paliativo à crise de superprodução, consiste em adiar os prazos para o futuro, à custa de convulsões cada vez mais graves. Hoje, atingiu níveis sem precedentes. Desde a Grande Depressão, a burguesia tem demonstrado a sua determinação em manter vivo o seu sistema, cada vez mais ameaçado pelo excesso de produção e pela crescente estreiteza dos mercados, através da sofisticação da intervenção do Estado, exercendo um controle geral sobre a economia. Mas não tem meios para enfrentar as verdadeiras causas da crise. Mesmo que não exista um limite fixo e pré-determinado para o incremento da dívida, um ponto em que se torna impossível, esta política não pode continuar indefinidamente sem repercussões sérias na estabilidade do sistema, como demonstra a crescente frequência e escala das crises da última década, mas também porque tal política tem provado ser, pelo menos nas últimas quatro décadas, cada vez menos eficaz na revitalização da economia mundial.
O peso da dívida não só condena o sistema capitalista a convulsões cada vez mais devastadoras (falências empresariais e até estatais, crises financeiras e monetárias, etc.), mas também, ao restringir cada vez mais a capacidade dos Estados de trapacear as leis do capitalismo, só pode dificultar a sua capacidade de reanimar as suas respectivas economias nacionais.
A crise que já se desenrola há décadas tornar-se-á a mais grave de todo o período de decadência, e o seu alcance histórico ultrapassará mesmo a primeira crise desta época, a que começou em 1929. Após mais de 100 anos de decadência capitalista, com uma economia devastada pelo setor militar, enfraquecida pelo impacto da destruição ambiental, profundamente alterada em seus mecanismos reprodutivos pela dívida e manipulação do Estado, atormentada pela pandemia, sofrendo cada vez mais com todos os outros efeitos da decomposição, é uma ilusão pensar que nestas condições haverá qualquer tipo de recuperação sustentável da economia mundial.
20. Ao mesmo tempo, os revolucionários não devem ser tentados a cair numa visão "catastrofista" de uma economia mundial à beira do colapso final. A burguesia continuará a lutar até à morte pela sobrevivência do seu sistema, seja por meios econômicos diretos (como a exploração de recursos inexplorados e potenciais novos mercados, exemplificados pelo projeto da Nova Rota da Seda da China) ou por meios políticos, especialmente através da manipulação do crédito e da fraude da lei do valor. Isto significa que pode sempre haver fases de estabilização entre convulsões econômicas com consequências cada vez mais profundas.
21. O regresso de uma espécie de "neokeynesianismo" iniciado pelos enormes compromissos de despesa da administração Biden e pelas iniciativas de aumento dos impostos sobre as empresas - embora também motivado pela necessidade de manter a coesão da sociedade burguesa, bem como pela necessidade igualmente premente de enfrentar as crescentes tensões imperialistas - mostra a vontade da classe dominante de experimentar diferentes formas de gestão econômica, notadamente porque as deficiências das políticas neoliberais lançadas nos anos Thatcher-Reagan foram severamente expostas pela crise pandêmica. No entanto, tais mudanças de política não podem evitar que a economia mundial oscile entre o duplo perigo da inflação e da deflação, com novas crises de crédito e de moeda que conduzem a fortes recessões.
22. A classe trabalhadora está pagando um preço elevado pela crise. Em primeiro lugar, porque é a mais diretamente exposta à pandemia e é a principal vítima da propagação da infecção e, em segundo lugar, porque a recessão econômica está desencadeando os ataques mais graves desde a Grande Depressão, em todos os aspectos das suas condições de vida e de trabalho, mesmo que nem todos sejam afetados da mesma forma.
A destruição de quatro vezes mais postos de trabalho em 2020 do que em 2009 ainda não revelou a extensão total do enorme aumento do desemprego em massa que é esperado. Embora os subsídios governamentais aos parcialmente desempregados em alguns países se destinem a suavizar o golpe social (nos EUA, por exemplo, no primeiro ano da pandemia, o rendimento médio dos assalariados, segundo as estatísticas oficiais, aumentou - pela primeira vez na história do capitalismo durante uma recessão), milhões de empregos desaparecerão muito em breve...
O aumento exponencial do trabalho precário e o declínio geral dos salários levará a um enorme aumento do empobrecimento, que já está afetando muitos trabalhadores. O número de vítimas da fome no mundo duplicou e a fome está reemergindo nos países ocidentais. Para aqueles que permanecem empregados, a carga de trabalho e a taxa de exploração irão aumentar.
A classe trabalhadora não pode esperar nada dos esforços da burguesia para "normalizar" a situação econômica, exceto demissões e cortes salariais, aumento do estresse e da ansiedade, aumentos drásticos, medidas de austeridade em todos os níveis, tanto na educação quanto nas pensões de saúde e benefícios sociais. Em suma, veremos uma deterioração das condições de vida e de trabalho a um nível que nenhuma das gerações do pós-II Guerra Mundial tinha visto antes.
23. Desde que o modo de produção capitalista entrou em decadência, a pressão para contrariar este declínio com medidas capitalistas estatais está crescendo. No entanto, a tendência para o fortalecimento dos órgãos e formas capitalistas estatais é tudo menos um fortalecimento do capitalismo; pelo contrário, eles expressam as crescentes contradições no terreno econômico e político. Com a aceleração da decomposição na sequência da pandemia, estamos também assistindo um forte aumento das medidas capitalistas estatais; estas não são uma expressão de um maior controle estatal sobre a sociedade, mas sim uma expressão das crescentes dificuldades em organizar a sociedade como um todo e evitar a sua crescente tendência para a fragmentação.
Perspectivas para a luta de classes
24. A CCI reconheceu no início dos anos 90 que o colapso do bloco de Leste e a abertura definitiva da fase de decomposição criariam dificuldades crescentes para o proletariado: a falta de perspectiva política, que já tinha sido um elemento central nas dificuldades do movimento operário nos anos 1980, seria gravemente acentuada pelas campanhas ensurdecedoras sobre a morte do comunismo; Ligado a isto, o sentido de identidade de classe do proletariado seria gravemente debilitado no novo período, tanto pelos efeitos atomizadores como divisionistas da decomposição social, e pelos esforços conscientes da classe dominante para exacerbar esses efeitos através de campanhas ideológicas (o "fim da classe operária") e as mudanças "materiais" provocadas pela política de globalização (a ruptura dos centros tradicionais de luta de classes, a deslocalização de indústrias para regiões do mundo onde a classe trabalhadora não tem o mesmo grau de experiência histórica, etc.).
25. A CCI tendeu a subestimar a profundidade e a duração deste refluxo de luta de classes, vendo frequentemente sinais de que o refluxo estava prestes a ser superado e que veríamos em relativamente pouco tempo novas ondas internacionais de luta, como no período após 1968. Em 2003, com base em novas lutas em França, Áustria e outros países, a CCI previu a reativação das lutas por uma nova geração de proletários que tinham sido menos influenciados pelas campanhas anticomunistas e que enfrentariam um futuro cada vez mais incerto. Em grande medida, estas previsões foram confirmadas pelos acontecimentos de 2006-07, nomeadamente a luta contra o CPE na França, e 2010-11, em particular o movimento dos Indignados na Espanha. Estes movimentos mostraram importantes avanços na solidariedade intergeracional, na auto-organização através de assembleias, na cultura do debate, nas preocupações reais com o futuro da classe trabalhadora e da humanidade como um todo. Neste sentido, eles mostraram o potencial para uma unificação das dimensões econômica e política da luta de classes. No entanto, demoramos muito tempo para compreender as imensas dificuldades enfrentadas por esta nova geração, "criada" nas condições de decomposição, dificuldades que impediriam o proletariado de inverter o recuo pós-1989 durante este período.
26. Um elemento chave destas dificuldades foi a contínua erosão da identidade de classe. Isto já tinha sido visível nas lutas de 2010-11, particularmente no movimento na Espanha: apesar de avanços significativos na consciência e na organização, a maioria dos Indignados viu a si própria como "cidadãos" em vez de membros de uma classe, tornando-os vulneráveis às ilusões democráticas alimentadas por grupos como a Democracia real Já! (o futuro partido Podemos), e mais tarde ao veneno do nacionalismo catalão e espanhol. Nos anos seguintes, o refluxo que se seguiu a estes movimentos foi aprofundado pelo rápido aumento do populismo, que criou novas divisões dentro da classe trabalhadora internacional - divisões que exploram as diferenças nacionais e étnicas, alimentadas pelas atitudes pogromistas da direita populista, mas também divisões políticas entre populismo e anti-populismo. Em todo o mundo, a raiva e o descontentamento cresciam, com base em graves privações materiais e verdadeiras ansiedades sobre o futuro; mas na ausência de uma resposta proletária, muito desse descontentamento foi canalizado para revoltas interclassistas como as dos "Coletes Amarelos" na França, para campanhas fragmentadas em terrenos burgueses como as marchas climáticas, para movimentos pela democracia contra a ditadura (Hong Kong, Bielorrússia, Mianmar, etc.) ou para o emaranhado dos movimentos socialistas e anti-populistas.) ou no emaranhado inextricável de políticas de identidade racial e baseadas sobre o gênero que servem para esconder ainda mais a questão crucial da identidade de classe proletária como única base para uma resposta autêntica à crise do modo de produção capitalista. A proliferação destes movimentos - quer apareçam como revoltas interclassistas ou mobilizações manifestamente burguesas - acrescentou às já consideráveis dificuldades não só para a classe trabalhadora como um todo, mas para a própria esquerda comunista, para as organizações que têm a responsabilidade de definir e defender o terreno de classe. Um exemplo claro disso foi o fracasso dos Bordigistas e da TCI em reconhecer que a raiva provocada pelo assassinato de George Floyd pela polícia em maio de 2020 foi imediatamente desviada para canais burgueses. Mas a CCI também encontrou problemas significativos ao lidar com esta gama de movimentos frequentemente desconcertante, e como parte da sua revisão crítica dos últimos 20 anos terá de considerar seriamente a natureza e extensão dos erros que cometeu no período desde a Primavera Árabe de 2011, através dos chamados protestos à luz de velas na Coreia do Sul, até estas revoltas e mobilizações mais recentes.
27. A pandemia em particular tem criado dificuldades consideráveis para a classe trabalhadora:
28. Apesar dos enormes problemas enfrentados pelo proletariado, rejeitamos a ideia de que a classe já foi derrotada em escala global, ou que está à beira de sofrer uma derrota comparável à do período de contrarrevolução, um tipo de derrota da qual o proletariado pode não ser capaz de se recuperar. O proletariado, como uma classe explorada, não pode evitar passar pela escola das derrotas, mas a questão central é se o proletariado já foi tão dominado pelo implacável avanço da decomposição que o seu potencial revolucionário foi efetivamente minado. Medir tal derrota na fase de decomposição é uma tarefa muito mais complexa do que no período anterior à Segunda Guerra Mundial, quando o proletariado se levantou abertamente contra o capitalismo e foi esmagado por uma série de derrotas frontais, ou no período posterior a 1968, quando o principal obstáculo à marcha da burguesia rumo a uma nova guerra mundial foi a renovação da luta de classes por parte de uma nova geração de proletários não dominada. Como já recordamos, a fase de decomposição contém de fato o perigo de o proletariado simplesmente não responder e ser sufocado durante um longo período - uma "morte por mil golpes" em vez de um confronto de classe frontal. No entanto, argumentamos que ainda há evidências suficientes para mostrar que, apesar do inegável avanço da decomposição, apesar do tempo já não estar do lado da classe trabalhadora, o potencial para um profundo renascimento proletário - levando a uma reunificação entre as dimensões econômica e política da luta de classes - não desapareceu, como evidenciado por:
Assim, a luta defensiva da classe trabalhadora contém as sementes das relações sociais qualitativamente superiores que são o objetivo final da luta de classes - o que Marx chamou de "produtores livremente associados". Através da associação, da reunião de todos os seus componentes, de todas as suas capacidades e experiências, o proletariado pode tornar-se poderoso, pode tornar-se o lutador cada vez mais consciente e unido por uma humanidade libertada e o seu prenúncio.
29. Apesar da tendência do processo de decomposição para atuar sobre a crise econômica, este último continua sendo o "aliada do proletariado" nesta fase. Como dizem as nossas "Teses sobre a Decomposição":
30. Portanto, devemos rejeitar qualquer tendência para minimizar a importância das lutas econômicas "defensivas" da classe, que é uma expressão típica da concepção modernista que vê a classe apenas como uma categoria explorada e não também como uma força histórica e revolucionária. É claro que a luta econômica por si só não pode deter a decomposição: como dizem as teses sobre a decomposição, "Para pôr fim à ameaça de decomposição, as lutas dos trabalhadores de resistência aos efeitos da crise não são suficientes: só a revolução comunista será capaz de eliminar esta ameaça ". Mas é um erro profundo perder de vista a constante e dialética interação entre os aspectos econômicos e políticos da luta, como salientou Rosa Luxemburgo em seu trabalho sobre a greve de massa de 1905; e novamente, no calor da revolução alemã de 1918-19, quando a dimensão "política" estava em aberto, ela insistiu que o proletariado ainda tinha que desenvolver suas lutas econômicas como única base para se organizar e se unificar como uma classe. Será a combinação da renovação das lutas defensivas num terreno de classe, enfrentando os limites objetivos da sociedade burguesa decadente, e fertilizada pela intervenção da minoria revolucionária, que permitirá à classe trabalhadora alcançar uma politização totalmente proletária - recuperar a sua perspectiva revolucionária, avançar para a politização totalmente proletária que lhe permitirá conduzir a humanidade para fora do pesadelo do capitalismo decadente.
31. Num primeiro período, a redescoberta da identidade de classe e da combatividade constituirá uma forma de resistência contra os efeitos corrosivos da decomposição capitalista - um baluarte contra a fragmentação da classe trabalhadora e a divisão entre as suas diferentes partes. Sem o desenvolvimento da luta de classes, fenômenos como a destruição do meio ambiente e a proliferação do caos militar tendem a reforçar um sentimento de impotência e o recurso a falsas soluções como o ecologismo e o pacifismo. Mas numa fase mais desenvolvida da luta, no contexto de uma situação revolucionária, a realidade destas ameaças à sobrevivência da espécie pode tornar-se um fator de compreensão de que o capitalismo chegou de fato à fase terminal do seu declínio e que a revolução é a única saída. Em particular, os impulsos bélicos do capitalismo - especialmente quando envolvem direta ou indiretamente as grandes potências - podem ser um fator importante na politização da luta de classes, pois implicam tanto um aumento muito concreto da exploração quanto do perigo físico, mas também uma confirmação adicional de que a sociedade está diante da escolha do capital entre o socialismo e a barbárie. A partir de fatores de desmobilização e desespero, estas ameaças podem reforçar a determinação do proletariado em pôr fim a este sistema moribundo.
"Da mesma forma, em todo o período que se avizinha, o proletariado não poderá utilizar em proveito próprio o enfraquecimento que a decomposição está causando dentro da própria burguesia. Neste período, seu objetivo será resistir aos efeitos nocivos da decomposição em seu próprio meio, confiando apenas em suas próprias forças, em sua capacidade de lutar coletiva e solidariamente, em defesa de seus interesses como classe explorada (embora a propaganda dos revolucionários deva insistir constantemente nos perigos da decomposição). Somente no período revolucionário, quando o proletariado estiver na ofensiva, quando se engajar direta e abertamente na luta por sua própria perspectiva histórica, poderá usar determinados efeitos da decomposição da ideologia burguesa e das forças do poder capitalista, como ponto de apoio para virá-las contra o capital." (Decomposição, a fase final do declínio do capitalismo [10]).
A retirada caótica dos EUA do Afeganistão, a negligência da burguesia diante da pandemia de Covid 19, a multiplicação dos desastres ecológicos, a crise econômica que varre o mundo, tudo isso expressa o impasse da sociedade capitalista, sua decomposição.
O capitalismo passou por uma fase de expansão e declínio, como todas as sociedades anteriores. Desenvolveu as forças produtivas ao ponto de poder satisfazer as necessidades da humanidade, mas por sua natureza, desenvolveu a luta de todos contra todos pelo controle da economia mundial e ameaça mergulhar a sociedade na barbárie. Os riscos são altos. O século 20 com suas guerras mundiais e crises econômicas confirma o que a Terceira Internacional (Internacional Comunista) disse: "Estamos entrando em uma era de guerra e revolução".
O proletariado continua sendo o coveiro do capitalismo. Apesar de suas dificuldades atuais, mantém todas as suas capacidades para desenvolver suas lutas, em seu terreno de classe, como demonstrou novamente recentemente na França no final de 2019 e atualmente hoje nos EUA.
Somente a CCI defende a análise da decomposição, a fase final da decadência capitalista, que muitos grupos do meio político proletário rejeitam, tomando como exemplo a formidável ascensão econômica da China. Mas o que significa este boom econômico na China? Será que isso põe em questão a decadência do capitalismo?
A decomposição é o produto de um bloqueio político entre as duas classes fundamentais que não conseguem impor sua perspectiva: a primeira, aquela de uma a guerra mundial entre blocos rivais; a outra, aquela da revolução comunista mundial. Todas as contradições deste sistema ainda estão em ação, reforçando-se, ameaçando a humanidade com uma morte lenta se o proletariado não conseguir se elevar a sua responsabilidade histórica, para fazer a revolução mundial. Todas as calamidades que estão ocorrendo na humanidade hoje, a crise sanitária, a crise ecológica, o enfraquecimento imperialista dos EUA levando a uma intensificação dos conflitos no mundo com uma explosão na produção de armamentos, .... constituem uma grande aposta que exige a derrubada deste sistema que chegou ao fim de sua amarra. Somente a crise econômica constitui o único terreno onde o proletariado será capaz de renovar suas lutas e liberar sua perspectiva revolucionária.
Convidamos nossos leitores e simpatizantes a participar da reunião pública no sábado 20/11/2021 às 15 h.
Há 150 anos, a 18 de Março de 1871, se iniciava a sua primeira ofensiva revolucionária do proletariado - a que deu origem à Comuna de Paris. Frente à guerra total que a burguesia declarou contra ela, a Comuna resistiu durante 72 dias, até 28 de Maio de 1871: a repressão impiedosa custou a vida de 20.000 proletários. Desde então, a Comuna de Paris, cuja memória tem sido transmitida de geração em geração da classe trabalhadora, continua a ser um exemplo, uma referência e um legado para a classe explorada do mundo inteiro; Não para o seu carrasco, a burguesia, que atualmente realiza comemorações indecentes para falsificar a sua própria história e enterrar as lições preciosas que o movimento operário foi capaz de retirar dela.
Durante várias semanas, os jornais, canais de televisão e rádio acolheram historiadores, jornalistas, todos a oferecer a sua vil propaganda a serviço da sua classe. Da direita à esquerda, incluindo a extrema-esquerda, toda a classe burguesa produziu mentiras, desde as mais flagrantes até as mais sutis.
Se a direita se indignou com a timidez com que o Estado planeou "comemorar" o bicentenário da morte de Napoleão I, mostrou naturalmente um desdém total pelos comunards[1], estes "assassinos", estes "desordeiros", estes "agentes de desordem" que deveriam ficar onde estão, ou seja, debaixo de dois metros. É preciso voltar a 2016 para ver como Le Figaro, um conhecido jornal francês de direita, afirma sem rodeios o que o "partido da ordem" sempre pensou em substância, e de forma inequívoca: "Os comunards destruíram Paris, massacraram pessoas honestas e até passaram fome em Paris, destruindo os grandes depósitos que armazenavam as reservas de cereais que abasteciam os padeiros de Paris". Esta calúnia sem vergonha não conhece limites. Foi assim que os rebeldes, já então considerados como vermes, se tornaram responsáveis pela sua própria fome e, ao mesmo tempo, pela fome do "povo honesto". Em outras palavras, se a classe operária em Paris se transformou em comedora de ratos, a culpa foi deles próprios! Como de costume, e especialmente desde o rescaldo do acontecimento, a direita, que sempre se sentiu aterrorizada pelas "classes perigosas", repete uma e outra vez uma espécie de discurso de ódio, equiparando os comunards a selvagens sanguinários.
Mas esta campanha de acusações grosseiras, espezinhando a verdade, cruelmente desprovida de qualquer requinte, é muito fácil de ver pelo que é pela classe trabalhadora. Permanece portanto nas mãos das forças da esquerda do capital para levar a cabo o trabalho real e necessário de falsificação do significado da Comuna de Paris.
Durante 72 dias, a partir de 18 de Março, a Câmara Municipal de Paris organizará nada menos que cinquenta eventos para supostamente celebrar o 150º aniversário da Comuna. O tem será dado em 18 de Março na Praça Louise Michel (18º Bairro de Paris), na presença da presidente da Câmara "socialista" da capital, Anne Hidalgo.
Este lugar não foi escolhido ao acaso. Louise Michel foi uma das lutadoras mais famosas e heroicas da Comuna que, quando foi julgada, recusou-se aceitar qualquer pena dos carrascos da Comuna, dizendo-lhes na cara: "Como parece que cada coração que bate pela liberdade só tem direito a um pouco de chumbo, eu reivindico a minha parte! Se não sois covardes, matai-me". Então, quem são estas pessoas que, hoje, querem encenar a memória da Comuna de uma forma totalmente truncada? Quem são então a Madame Hidalgo e toda a sua Câmara Municipal "socialista"? Nada menos que os descendentes dos traidores social-democratas que passaram irremediavelmente para o campo da burguesia por ocasião da Primeira Guerra Mundial.
Desde então, na oposição ou no governo, os "socialistas" têm sempre agido contra os interesses da classe trabalhadora. Por conseguinte, por razões puramente políticas, o vice-prefeito de Anne Hidalgo explora cinicamente a memória de Louise Michel nas comemorações de 2021, citando-a: "Todos procuram um caminho a seguir, nós também, e pensamos que o dia em que a liberdade e a igualdade reinar é quando a raça humana será feliz". Para os comunards, estas palavras significavam o fim da escravatura assalariada, o fim da exploração do homem pelo homem, a destruição do estado burguês. Era isso que as palavras "liberdade" e "igualdade" significavam para eles. É por isso que, em vez da bandeira tricolor da França, que tremula no telhado do Hôtel de Ville (Câmara Municipal) em Paris, os comunards ergueram hoje a bandeira vermelha, símbolo da luta dos trabalhadores de todo o mundo! Mas para esta classe de exploradores e assassinos em massa, o "reino da liberdade" nada mais é do que o reino do comércio e o domínio e exploração dos proletários nos escritórios e nas linhas de produção.
O Partido Socialista ampliou os comícios para a glória da democracia burguesa nos quatro cantos da capital e os intelectuais, escritores e cineastas de esquerda lançaram muitos filmes e livros para diluir o carácter revolucionário da Comuna. Além disso, a imprensa burguesa, tal como a Guardiã[2], a exibe como uma "luta popular" e a compara ao movimento interclassista dos "Coletes Amarelos" a fim de negar o seu caráter inquestionavelmente proletário. Mas a Comuna de Paris não foi nem uma luta pela implementação dos valores burgueses e da democracia, essa forma mais sofisticada de dominação de classe e capital, nem uma luta do "povo de Paris", ou mesmo da "pequena burguesia". Pelo contrário, encarnou uma luta até a morte para derrubar o poder da classe burguesa, da qual o Partido Socialista e todos os porta-vozes da "esquerda" são hoje os dignos representantes.
Os esquerdistas não tem comparações quando se trata de dar a sua própria e pequena contribuição para a falsificação das experiências do movimento dos trabalhadores. A maior parte das vezes, eles fornecem a mais insidiosa das distorções.
Assim, os trotskistas da NPA (Nouveau Parti Anticapitaliste) vendem a causa da "democracia direta" para distorcer o significado da Comuna. Estes esquerdistas reconhecem que os comunards fizeram um ataque ao Estado, mas apenas para poderem deduzir falsas lições e tirar conclusões inofensivas para o capital, o qual eles zelosamente apoiam. O NPA no distrito do Loiret, , por exemplo, num boletim que publicaram a 13 de Março, dá espaço nas suas páginas ao historiador Roger Martelli[3] cuja prosa é um verdadeiro apelo à democracia burguesa: "Sem doutrinas fixas, nem sequer um programa acabado, a Comuna fez em poucas semanas o que a República demoraria muito tempo a realizar. Abriu o caminho para uma concepção de "viver juntos", baseada na igualdade e na solidariedade. Finalmente, estabeleceu a possibilidade de uma forma de controle menos representativa, mais direta e orientada para o cidadão. Em suma, procurou pôr em prática o "governo do povo pelo povo", que o Presidente norte-americano Lincoln tinha anunciado anos antes. ” Isto é uma vergonha total! Martelli cospe sem vergonha na campa dos comunards! O NPA, de uma forma totalmente aberta e "desinibida", reduz a Comuna a uma simples reforma democrática disfarçada de participação popular. No final, o futuro prefigurado pela Comuna é reduzido ao ideal democrático burguês!
Jean Jaurès, apesar dos seus preconceitos reformistas, teve pelo menos a honestidade intelectual, ao contrário dos falsificadores do NPA, para dizer isto: "a Comuna foi, no essencial e em substância, a primeira grande batalha do trabalho contra o capital". E foi precisamente por isso que foi derrotada, porque foi massacrada"[4].
Por seu lado, Lutte Ouvrière (LO), o outro principal partido trotskista francês, contribui com a sua falsa linguagem radical para esta campanha de falsificação, fingindo opor a democracia parlamentar (na qual LO participa há décadas) à ditadura do proletariado, ou seja, aos seus olhos, uma forma mais radical de democracia burguesa. Foi assim que este partido eleitoreiro a explicou em 2001: "Num programa que não tiveram tempo de desenvolver, os comunards propuseram que todas as comunards, desde as grandes cidades até aos menores povoados do campo, se organizassem de acordo com o modelo da Comuna de Paris e que constituíssem a estrutura básica de uma nova forma de Estado verdadeiramente democrático"5. Dito isto, LO é então rápido em apontar: "Isto não significa que os comunistas revolucionários sejam indiferentes às chamadas liberdades democráticas, muito pelo contrário, quanto mais não seja porque permitem que os militantes defendam as suas ideias de forma mais aberta"6.
As organizações da esquerda do capital desempenham sem dúvida, o papel mais traiçoeiro, que consiste em apresentar a Comuna como uma experiência de democracia "radical", que não teria outro objetivo senão o de melhorar o funcionamento do Estado. Nada mais! 150 anos mais tarde, a Comuna de Paris é de novo confrontada com a Santa Aliança de todas as forças burguesas reacionárias, tal como fez nos seus próprios dias com a Santa Aliança do Estado Prussiano e a República Francesa. Os tesouros políticos legados pela Comuna são o que a classe burguesa procura esconder e enterrar.
De fato, como Marx e Engels afirmaram alto e bom som no seu rescaldo, a Comuna de Paris empreendeu o primeiro ataque revolucionário do proletariado, lutando pela destruição do estado burguês. A Comuna pretendia consolidar imediatamente o seu poder, abolindo o exército permanente e as instituições do Estado, e adotando a revogabilidade permanente dos membros da Comuna que eram responsáveis perante todos aqueles que os tinham eleito.
Muito antes das revoluções de 1905 e 1917 na Rússia, quando as condições históricas não estavam maduras, os comunards se lançaram no caminho para a formação de conselhos de trabalhadores, "a forma finalmente descoberta da ditadura do proletariado", como Lenine disse. Assim, não foi a construção de um estado "verdadeiramente democrático" que os comunards fizeram o seu objetivo, mas a rejeição do domínio da classe burguesa. A Comuna de Paris demonstrou que "a classe operária não pode simplesmente tomar o controle da máquina estatal existente e utilizá-la para os seus próprios fins"[5]. Esta é uma das lições essenciais que Marx e o movimento operário retiraram desta trágica experiência.
Se a Comuna de Paris foi uma insurreição prematura que terminou no massacre da mais fina flor do proletariado mundial, foi, no entanto, uma luta heroica do proletariado parisiense, uma contribuição inestimável para a luta histórica da classe explorada. Por esta razão, permanece fundamental que a classe operária do século XXI seja capaz de se apropriar e assimilar a experiência da Comuna e as lições inestimáveis que os revolucionários dela retiraram.
Paul, 18 de Março de 2021.
Para aprofundar as lições da Comuna de Paris, recomendamos a leitura dos seguintes artigos no nosso website:
1871: The first proletarian dictatorship | International Communist Current (internationalism.org) [36]
[1] Na Câmara de Vereadores de Paris, políticos de direita se opuseram à celebração do 150º aniversário da Comuna, liderando uma campanha ensurdecedora sobre a legitimidade e até mesmo o dever nacional de comemorar a morte de Napoleão Bonaparte.
[2] "Vive la Commune? A insurreição da classe trabalhadora que abalou o mundo"”, The Guardian (7 de março de 2021).
[3] Ligado à corrente reanimadora do partido stalinista na França, o PCF, agora próximo ao partido de esquerda La France Insoumise, com um discurso nacionalista muito musculoso.
[4] Jean Jaurès, Histoire Socialiste.
[5] Marx e Engels, prefácio do Manifesto do Partido Comunista (24 de junho de 1872)Marx et Engels, Manifesto do Partido Comunista - Prefácios (marxists.org) [37]
Marc Chirik nos deixou há 30 anos, em dezembro de 1990. Como uma homenagem às valiosas contribuições de nosso camarada, este grande revolucionário da linha de Marx, Engels, Lenin e Rosa Luxemburgo, republicamos abaixo a série de dois artigos que apareceram na Revista Internacional No. 65 e 66[1], logo após sua morte. Estes dois artigos retratam as principais vertentes da sua vida e lembram suas inestimáveis contribuições à causa do movimento operário e à defesa do método marxista.
Nesta breve apresentação destes textos, gostaríamos de destacar apenas três aspectos essenciais que caracterizaram sua vida e sua atividade revolucionária.
No decorrer de uma vida militante ativa que durou mais de 70 anos, ele foi, desde sua juventude até seu último suspiro, um lutador incansável pela causa revolucionária do proletariado e do comunismo. Ele dedicou toda sua energia à defesa intransigente e firme dos princípios proletários internacionalistas e do marxismo. Ele nunca deixou de estar na vanguarda da luta, fazendo uso de toda sua experiência política, teórica e organizacional. A militância revolucionária foi uma bússola constante em sua vida. Mesmo durante o terrível período de contrarrevolução, Marc nunca deixou de trabalhar para elaborar e esclarecer as posições da Esquerda comunista com paciência e determinação. Nesses anos terríveis, ele lutou incansavelmente contra as traições do campo proletário, mas também lutou dentro de todas as organizações em que atuou, contra manobras oportunistas e desvios, contra atitudes centristas, combatendo firmemente as concepções e desvios acadêmicos e ativistas. Ele soube manter o mesmo rumo e prosseguir a mesma luta com a mesma determinação, tomando parte ativa no ressurgimento do proletariado na cena histórica em maio de 1968 com um entusiasmo avassalador, envolvendo-se totalmente no reagrupamento das forças revolucionárias que deram origem ao atual CCI. Ele trouxe toda sua energia militante, sua convicção e sua experiência na orientação e construção desta organização, bem como nas tentativas de reagrupar e esclarecer as posições das organizações do meio político proletário nos anos 1980.
Outro traço fundamental de seu temperamento foi sua capacidade de manter vivas as conquistas teóricas do movimento revolucionário, especialmente as produzidas pela ala esquerda do Partido Comunista da Itália. Ele foi assim capaz de se orientar de forma crítica e lúcida na análise da evolução da situação mundial. Este "talento" político, baseado na análise global da relação de forças entre as classes, permitiu-lhe questionar certos "dogmas" do movimento operário, sem se afastar da abordagem marxista e do método do materialismo histórico, mas, em vez disso, ancorando-o na dinâmica da evolução da realidade histórica concreta. No final de sua vida, ele fez uma contribuição teórica final ao ser um dos primeiros na CCI a detectar que o capitalismo havia entrado na fase terminal de seu período de decadência, a de sua decomposição. Assim, ele afirmou que o proletariado não poderia usar esta podridão do sistema capitalista em seu benefício, mas que esta situação implicava em novos desafios decisivos para o proletariado e para a sobrevivência da humanidade.
O último elemento que queremos enfatizar é sua determinação em transmitir as lições do movimento operário e a experiência organizacional dos revolucionários para as novas gerações, a fim de formar novos militantes e permitir que a CCI garanta a continuidade política nas lutas de classe futuras. Ele estava convencido no mais alto grau da necessidade indispensável de uma organização revolucionária para o proletariado, bem como da necessidade de uma ponte ligando o passado, presente e futuro da luta de classes, bem como da necessidade vital de preservar uma continuidade orgânica viva de organizações revolucionárias. Ele sabia que ele mesmo representava aquele tênue fio que ligava a continuidade orgânica e histórica da experiência de classe e a memória viva do movimento operário. Embora enfatizando constantemente que "o proletariado segrega organizações revolucionárias, não indivíduos revolucionários", ele também colocou grande ênfase nas responsabilidades individuais de cada militante e no senso de solidariedade e respeito entre eles.
Nada poderia expressar melhor a vida de Marc do que o que Rosa Luxemburgo resumiu em uma simples frase: "Eu era, eu sou, eu serei".
Ligações
[1] https://pt.internationalism.org/tag/recente-e-atual/presidencia-de-biden-2021
[2] https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/As_licoes_de_Kronstadt
[3] mailto:[email protected]
[4] https://pt.internationalism.org/contact
[5] https://fr.internationalism.org/french/rint/107_decomposition.htm
[6] https://www.liberation.fr/international/europe/inondations-le-nombre-de-morts-atteint-133-en-allemagne-153-en-europe-20210717_AAKJJWRYWZEGNJIQ3KKNNKBDQY/
[7] https://www.n-tv.de/politik/Warum-warnten-nicht-ueberall-Sirenen-vor-der-Flut-article22692234.html
[8] https://www.lemonde.fr/planete/article/2021/07/18/inondations-la-situation-se-degrade-dans-le-sud-de-l-allemagne_6088635_3244.html
[9] https://www.welt.de/politik/deutschland/article232656933/Annalena-Baerbock-Klimaschutz-faellt-nicht-vom-Himmel.html
[10] https://pt.internationalism.org/content/401/decomposicao-fase-final-do-declinio-do-capitalismo
[11] https://www.bbc.com/mundo/noticias-51705060
[12] https://pt.internationalism.org/tag/recente-e-atual/trumpcapitol
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[36] https://en.internationalism.org/internationalreview/199403/3596/1871-first-proletarian-dictatorship
[37] https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/prefacios.htm#ea1872
[38] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200608/1053/marc-de-la-revolucion-de-octubre-1917-a-la-ii-guerra-mundial
[39] https://es.internationalism.org/content/4663/marc-parte-2-de-la-segunda-guerra-mundial-la-actualidad