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Este artigo continua a investigação do método científico e histórico que Marx, Engels e seus sucessores desenvolveram na sua obra [1].
Ascensão e declínio nos modos de produção anteriores
- "Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno, podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade." (Marx, Prefácio à Introdução à Economia Política, Ed. Ed. Martins Fontes, 1977) [2].
Esta breve passagem, que abrange virtualmente toda a história escrita, poderia dar lugar a vários livros que tratassem de interpretá-lo. Mas nossa intenção é nos fixar em dois aspectos: a questão geral do progresso histórico e as características da ascendência e da decadência nas formações sociais anteriores ao capitalismo.
Pode-se falar em progresso?
Assinalamos [3] que um dos efeitos das catástrofes do século XX foi um ceticismo geral sobre a idéia do progresso, uma noção que parecia muito mais evidente no século XIX. Isto levou a alguns pensadores "radicais" a concluir que a visão marxista do progresso histórico é justamente uma dessas ideologias do século XIX que serve de apologia da exploração capitalista. Embora habitualmente se apresentem como novas, essas críticas só fazem freqüentemente colocar de acordo com a moda os tão gastos argumentos de Bakunin e os anarquistas, que proclamavam que a revolução era possível em qualquer momento histórico e acusavam os marxistas de ser vulgares reformistas por argumentar que a época da revolução ainda não tinha amanhecido, o qual requeria que a classe operária se organizasse a longo prazo para a defesa de suas condições de vida dentro da ordem social existente. Os antiprogressistas costumam começar como críticos "marxistas" da noção de que o capitalismo é hoje decadente, insistindo em que muito pouco mudou na vida do capital desde os dias em que Marx escrevia sobre ele, exceto possivelmente no terreno puramente quantitativo - economia mais desenvolvida, crises mais profundas, guerras mais amplas. Mas os mais conseqüentes se desfazem rapidamente de uma vez de toda a carga do materialismo histórico, insistindo em que o comunismo poderia ter se produzido em qualquer época anterior da história. Realmente os mais conseqüentes de todos são os primitivistas, que argumentam que não houve absolutamente nenhum progresso na história com a emergência da civilização, ou mais precisamente do descobrimento da agricultura que a fez possível: essa evolução é vista como uma terrível mudança de orientação equivocada, dado que a época mais feliz da vida humana seria, segundo eles, o estágio de caçadores-coletores nômades. Essas correntes só podem logicamente desejar o colapso final da civilização e o sacrifício da humanidade, para que os poucos sobreviventes possam voltar à prática da caça e da coleta.
Marx foi muito firme sobre a idéia de que só o capitalismo tinha preparado o caminho para a superação dos antagonismos sociais e a criação de uma sociedade que permitisse à humanidade desenvolver-se plenamente. Como expõe no Prefácio: "As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esta contradição." (Marx, Prefácio à Introdução à Economia Política, Ed. Ed. Martins Fontes, 1977).
O capitalismo criou pela primeira vez as condições para uma sociedade comunista mundial: unificando todo o globo em torno de seu sistema de produção; revolucionando os instrumentos de produção até o ponto que finalmente é possível uma sociedade de abundância; e fazendo surgir uma classe cuja emancipação só pode ser feita mediante a emancipação do conjunto da humanidade - o proletariado, a primeira classe explorada da história que leva em si as sementes de uma nova sociedade. Para Marx era inconcebível que a humanidade pudesse ter saltado essa etapa na história e ter instaurado uma sociedade comunista duradoura e global na época do despotismo, do escravismo ou da servidão.
Mas o capitalismo não surgiu de um nada: a sucessão de modos de produção anteriores ao capitalismo tinha preparado por sua vez o caminho deste, e nesse sentido, o desenvolvimento global desses sistemas sociais contraditórios, ou seja, divididos em classes, representou um movimento progressivo na história humana, que desembocou, ao final, na possibilidade material de uma comunidade mundial sem classes. Não teria sentido, pois, reivindicar-se da herança de Marx e simultaneamente rechaçar a noção de progresso histórico.
Entretanto existe varias concepções do progresso: certamente uma concepção burguesa, e oposta a ela, uma concepção marxista.
Para começar, enquanto que a burguesia tendeu a ver que toda a história levava inexoravelmente ao triunfo do capitalismo democrático em uma marcha linear ascendente, em que todas as sociedades anteriores foram em todos os aspectos inferiores à ordem atual das coisas, o marxismo afirmou o caráter dialético do movimento histórico. De fato a própria noção de ascensão e declínio dos modos de produção, significa que pode ter tanto retrocessos como avanços no processo histórico. No Anti-Dühring, quando fala de Fourier e sua antecipação do materialismo histórico, Engels chama a atenção sobre o vínculo entre a visão dialética da história e a noção de ascensão e declínio: "Onde mais se eleva Fourier, entretanto, é no modo por que concebe a história da sociedade. [...] Como se vê Fourier maneja a dialética com a mesma maestria de seu contemporâneo Hegel. Diante dos que se empavonam falando da ilimitada capacidade humana de perfeição, salienta com a mesma dialética, que toda fase histórica tem, ao mesmo tempo, um lado ascendente e outro descendente e projeta esta concepção sobre o futuro de toda a humanidade." (Engels, Anti-Dühring, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979, pág. 226).
O que Engels diz aqui é que não há nada automático no processo da evolução histórica. Como no processo da evolução natural, o "aperfeiçoamento humano" não está programado de antemão. Como veremos, pode haver de fato vias sociais mortas, análogas à extinção dos dinossauros - sociedades que não só declinam, mas também desaparecem completamente, sem que sua evolução origine nada novo.
Ademais, até quando há progresso, este tem geralmente um caráter muito contraditório. A destruição da produção artesã, em que o produtor obtém satisfação, tanto do processo de produção como de seu produto final, e sua substituição pelo sistema fabril, com suas rotinas implacavelmente tediosas, é um exemplo disto. Entretanto, Engels explica mais contundentemente quando descreve a transição do comunismo primitivo à sociedade de classes. Em "A Origem da Família, Da Propriedade Privada e do Estado", depois de mostrar tanto as imensas potencialidades como as limitações inerentes à vida tribal, Engels chega às seguintes conclusões a respeito de como deveríamos contemplar o advento da civilização:
- "O poderio dessas comunidades primitivas não poderia deixar de ser destruído e foi destruído. Desfez-se, contudo, por influências que desde o início nos aparecem como uma degradação, uma queda da singela grandeza moral da velha sociedade gentílica. Os interesses mais vis -a baixa cobiça, a brutal avidez de prazeres, a sórdida avareza, o roubo egoísta da propriedade comum- inauguram a nova sociedade civilizada, a sociedade de classe; os meios mais ultrajantes minam e perdem a velha sociedade sem classes das gens: o furto, a violência, a perfídia, a traição. E a nova sociedade, através dos dois mil e quinhentos anos de sua existência, não tem sido senão o desenvolvimento de uma pequena minoria às expensas de uma grande maioria explorada e oprimida; e continua a sê-lo, hoje mais que nunca" (Engels, A Origem da Família, Da Propriedade Privada e do Estado, em K. Marx e F. Engels, Obras Escolhidas, Editora Alfa-Omega, págs. 80)
Esta visão dialética também se refere à futura sociedade comunista, que na grande passagem de Marx, dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 se descreve como um "retorno do homem a si mesmo como ser social, ou melhor, verdadeiramente humano, retorno esse integral, consciente, que assimila toda a riqueza do desenvolvimento anterior." (Editora Martin Claret, 2002, pág. 138). Da mesma forma, o comunismo do futuro se vê como um renascimento, a um nível mais alto, do comunismo do passado. Assim, Engels conclui seu livro sobre as origens do Estado com uma eloqüente frase tirada do antropólogo Lewis Morgan, antecipando um comunismo que "Será uma revivesvência da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gens, mas sob uma forma superior" (Op. cit. Pag. 143).
Mas com todas essas precisões, é evidente desde o Prefácio, que a noção de progresso, de "épocas progressivas", é fundamental para o pensamento marxista. Segundo a grandiosa visão do marxismo, começando (pelo menos!) pelo surgimento do gênero humano, e seguindo pela aparição da sociedade de classes até o desenvolvimento do capitalismo, e o grande salto ao reino da liberdade que nos espera no futuro, "não se pode conceber o mundo como um conjunto de coisas acabadas, mas como um conjunto de processos, em que as coisas que parecem estáveis, da mesma forma que seus reflexos no cérebro do homem, isto é, os conceitos, passam por uma série ininterrupta de transformações, por um processo de surgimento e caducidade, nas quais em última instância se impõe sempre uma trajetória progressiva, apesar de todo o seu caráter fortuito aparente e de todos os recuos momentâneos." (Engels, "Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã", em K. Marx e F. Engels, Obras Escolhidas, Editora Alfa-Omega, págs. 195). Visto desta distância, tal e como foram as coisas, é evidente que há um processo real de desenvolvimento: no terreno da capacidade do ser humano para transformar a natureza por meio do desenvolvimento de ferramentas mais sofisticadas; na compreensão subjetiva de si mesmo e do mundo a seu redor; e, portanto, em sua capacidade para liberar suas potencialidades latentes e viver uma vida conforme a suas mais profundas necessidades.
A sucessão dos modos de produção
Do comunismo primitivo à sociedade de classes
Quando Marx dá um esboço dos principais modos de produção que se sucederam na história, não pretende absolutamente ser exaustivo. Para começar, só menciona as formas sociais antagonistas quer dizer, as principais formas de sociedades de classes, e não menciona as diferentes formas de sociedades não exploradoras que as precederam. Além disso, nos tempos de Marx, os estudos das formas sociais pré-capitalistas ainda estavam em seus primórdios, de modo que, simplesmente, não era possível ter uma lista completa de todas as sociedades existentes até então. Na realidade, inclusive para o estado atual dos conhecimentos históricos essa tarefa é muito difícil de completar. No extenso período entre a dissolução das relações sociais comunistas primitivas, que tiveram sua expressão mais clara entre os caçadores nômades do paleolítico, e as sociedades de classe plenamente formadas, que constituíram as civilizações históricas, houve numerosas formas intermediárias e de transição, e também formas que simplesmente terminaram em uma via histórica morta; e nosso conhecimento delas é muito limitado [4].
O fato de no Prefácio não se incluir as sociedades comunistas primitivas e as sociedades pré-classistas não significa absolutamente que Marx não considerasse importante estudá-las; pelo contrário. Os fundadores do método materialista histórico reconheceram desde o início que a história humana não começa com a propriedade privada, mas com a propriedade comunal: "A primeira forma da propriedade é a propriedade tribal. Ela corresponde à fase não desenvolvida da produção, em que um povo se alimenta da caça e da pesca, da criação de gado ou, no máximo, da agricultura. Neste último caso, a propriedade tribal pressupõe uma grande quantidade de terras incultas. Nessa fase, a divisão do trabalho é, ainda, bem pouco desenvolvida e se limita a uma maior extensão da divisão natural do trabalho que já existia na família" (Marx e Engels, A Ideologia alemã, Boitempo Editorial 2007, pág. 90)
Quando a investigação posterior confirmou essas apreciações -particularmente o trabalho de Lewis Henry Morgan sobre as tribos da América do Norte- Marx mostrou-se extremamente entusiasmado e dedicou muito tempo em seus últimos anos a aprofundar o problema das relações sociais primitivas, especificamente sobre a questão que lhe apresentava o movimento revolucionário na Rússia (ver o capítulo Comunismo do passado, comunismo do futuro [5] em nosso livro (em inglês) O comunismo não é um belo ideal, mas uma necessidade material). Para Marx, Engels, e também para Rosa Luxemburgo, que escreveu bastante sobre isto em sua Introdução à Economia Política (1907), o descobrimento de que as formas originárias das relações humanas estavam apoiadas, não no egoísmo e na concorrência, mas na solidariedade e na cooperação, e de que séculos, e até milênios depois do advento da sociedade de classes seguisse existindo um apego profundo e persistente para as formas sociais comunais, particularmente entre as classes oprimidas e exploradas, era para eles uma contundente confirmação da visão comunista e uma arma poderosa contra as mistificações da burguesia, para quem a ânsia de poder e da propriedade são inerentes à natureza humana.
N'A Origem da Família, Da Propriedade Privada e do Estado, de Engels, nas Notas Etnográficas de Marx, e na Introdução à Economia Política de Luxemburgo, há um profundo respeito pelo valor, pela moralidade e pela criatividade artística dos povos "selvagens" e "bárbaros". Mas não há nenhuma idealização dessas sociedades. O comunismo que se praticava nas primeiras formas de sociedade humana não foi engendrado pela idéia da igualdade, mas sim pela necessidade. Era a única forma possível de organização social em condições em que as forças produtivas do homem ainda não podiam gerar um excedente suficiente para manter uma elite privilegiada, uma classe dominante.
As relações comunistas primitivas surgiram com toda probabilidade com o desenvolvimento do gênero humano, uma espécie cuja capacidade para transformar seu entorno em função da satisfação de suas necessidades materiais a distinguia de outras do reino animal; e permitiram aos seres humanos chegar a ser a espécie dominante do planeta. Mas, se fizermos uma generalização partindo do que sabemos das formas mais arcaicas de comunismo primitivo, encontradas nos aborígenes da Austrália, onde a forma de apropriação do produto social é completamente coletiva [6], também freiam o desenvolvimento da produtividade individual, com o resultado de que as forças produtivas permaneceram virtualmente estáticas durante milênios. Em qualquer caso, as mudanças nas condições materiais e meio ambientais, como o crescimento da população, em algum momento fizeram insustentável o coletivismo extremo das primeiras formas de sociedade humana, que se converteu em um obstáculo ao desenvolvimento de técnicas de produção (como o pastoreio e a agricultura) que pudessem alimentar a uma população mais numerosa, ou à população que agora vivia em condições sociais e meio ambientais modificadas [7].
Como assinala Marx, "A história da decadência das comunidades primitivas (seria errôneo as colocar todas em um mesmo plano; assim como nas formações geológicas, nas históricas existe toda uma série de tipos primários, secundários, terciários, etc.) ainda está por se escrever. Até agora não tivemos mais que uns pobres esboços... (mas) as causas de sua decadência se desprendem de dados econômicos que lhes impediam de superar certo grau de desenvolvimento» (Primeiro rascunho da carta a Vera Zasulich, 1881. Tradução nossa). O declínio do comunismo primitivo e o surgimento das divisões de classes não escapa às normas gerais expostas no Prefácio: as relações que os seres humanos estabeleceram para satisfazer suas necessidades tornam-se cada vez mais incapazes de cumprir sua função original, e portanto entram em uma crise básica cujo resultado é que, ou as comunidades que mantêm essas relações desaparecem completamente, ou, do contrário, substituem as velhas relações por outras novas mais capazes de desenvolver a produtividade do trabalho humano. Já vimos que Engels insistia em que, num determinado momento histórico, "O poderio dessas comunidades primitivas não poderia deixar de ser destruído e foi destruído." Por que? Porque "A tribo era a fronteira do homem, para os estranhos como para si mesmo: a tribo, a gens, e suas instituições eram sagradas e invioláveis, constituíam um poder superior dado pela natureza, ao qual todo indivíduo ficava submetido sem reservas em seus sentimentos, idéias e atos. Por mais imponentes que nos pareçam, os homens de então mal se distinguiam uns dos outros; estavam, como diz Marx, presos ao cordão umbilical da comunidade primitiva" (A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, op. cit, pág. 80)
Considerando os descobrimentos da antropologia, poder-se-ia questionar a afirmação de Engels sobre a falta total de individualidade nas sociedades tribais. Mas a visão que subjaz nesta passagem segue sendo plenamente válida: que em muitos dos momentos chave e das regiões chave, os velhos métodos e relações comunais se converteram em uma trava ao desenvolvimento, e com toda contradição que possa parecer, o surgimento gradual da propriedade privada, da exploração de classe e de uma nova fase na autoalienacão dos seres humanos, converteram-se em "fatores de desenvolvimento".
O modo de produção "asiático"
O termo "modo de produção asiático" é controverso. Infelizmente, Engels omite incluir este conceito em seu trabalho primitivo sobre o surgimento da sociedade de classes, A Origem da Família, Da Propriedade Privada e do Estado, embora a obra de Marx já continha numerosas referências a ele. Depois, o erro de Engels foi agravado pelos stalinistas, que virtualmente excomungaram totalmente o conceito, introduzindo uma visão da história extremamente mecânica e linear, que em todas partes percorria as fases de comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e comunismo. Este esquema tinha diferentes vantagens para a burocracia stalinista: por um lado, muito depois da revolução burguesa deixar de estar na ordem do dia da história, permitia-lhe considerar como progressistas as burguesias que se desenvolviam em países como a Índia ou a China após ter batizado como "feudais" as antigas formações sociais despóticas orientais nestes países; e isso permitia-lhe evitar embaraçosas críticas sobre sua própria forma de despotismo estatal, posto que no conceito de "despotismo asiático", é o Estado e não uma classe de proprietários individuais, quem assegura diretamente a exploração da força de trabalho: os paralelismos com o capitalismo de Estado stalinista são evidentes.
Entretanto, investigadores sérios argumentam, como Perry Anderson em um apêndice a seu livro Lineages of the Absolutist State (1979), que a caracterização feita por Marx da Índia e outras sociedades contemporâneas como formas de um "modo asiático" definido de produção estava apoiada em uma falsa informação e que, de todas formas, o conceito se fez tão amplo, que carece de um significado preciso.
Não há dúvida de que o epíteto "asiático" é bastante confuso. Numa certa medida, todas as sociedades de classes originárias tomaram a forma analisada por Marx com esse nome, seja a sociedade suméria, no Egito, na Índia, na China, ou em regiões mais remotas, como a América Central e América do Sul, África e no Pacífico. Está fundada na comunidade rural herdada da época anterior à emergência do Estado. O poder estatal, freqüentemente personificado por uma casta sacerdotal, apoiava-se no sobreproduto (produto excedente) extraído das comunidades rurais em forma de tributo, ou, no caso da construção de grandes projetos (irrigação, templos, etc.), de jornadas de trabalho obrigatórias. Pode existir o escravismo, mas não é a forma dominante de trabalho. Poder-se-ia argumentar que, se estas sociedades mostravam muitas diferenças significativas, têm em comum o que é mais crucial do ponto de vista da classificação dos diferentes modos de produção com relações antagonistas: as relações sociais através das que se extrai o sobretrabalho (trabalho excedente) da classe explorada.
Quando se examina o fenômeno da decadência nestas formas sociais há, assim como nas sociedades "primitivas", certas características específicas em que estas sociedades parecem mostrar uma extraordinária estabilidade, o que se pode comprovar em que muito raramente (se é que ocorreu alguma vez) "evoluíram" para um novo modo de produção sem ser derrotadas por fora. Seria, entretanto, um erro considerar que a sociedade asiática não tem sua própria história. Há uma enorme diferença entre as primeiras formas despóticas que emergiram no Havaí ou América do Sul, que estão mais perto de suas raízes tribais originárias, e os gigantescos impérios que se desenvolveram na Índia ou China, que deram lugar a formas culturais extremamente sofisticadas.
Entretanto subsistem umas características de base -a centralidade da comunidade rural- que dão a chave da natureza "invariável" destas sociedades.
- "Aquelas pequenas comunidades indianas antiqüíssimas, por exemplo, que em parte ainda continuam a existir baseiam-se na posse comum das terras, na união direta entre agricultura e artesanato e numa divisão fixa do trabalho, que no estabelecimento de novas comunidades serve de plano e de projeto. Constituem organismos de produção que bastam a si mesmos, variando suas áreas de produção de 100 a alguns milhares de acres. A maior parte dos produtos é destinada ao autoconsumo direto da comunidade não como mercadoria, sendo portanto a própria produção independente da divisão do trabalho mediada pelo intercâmbio de mercadorias no conjunto da sociedade indiana. Apenas os produtos excedentes transformam-se em mercadorias, parte deles só depois de chegar às mãos do Estado, para o qual flui desde tempos imemoriais certo quantum como renda natural... O organismo produtivo simples dessas comunidades auto-suficientes, que se reproduzem constantemente da mesma forma e, se forem destruídas acidentalmente, são de novo reconstruídas no mesmo lugar, com o mesmo nome, oferece a chave para o segredo da imutabilidade de sociedades asiáticas que contrastam de maneira tão impressionante com a constante dissolução e reconstrução dos Estados asiáticos e com as incessantes mudanças de dinastias. A estrutura dos elementos econômicos fundamentais da sociedade não é atingida pelas tormentas desencadeadas no céu político." (Karl Marx, O Capital, Livro I, vol. 1, cap. XII, pág. 449-451, Ed. Nova Cultural, São Paulo 1996)
Neste modo de produção, as barreiras ao desenvolvimento da produção de mercadorias eram muito mais fortes que no império romano ou no feudalismo, e essa é certamente a razão pela qual, nas regiões onde se tornou dominante, o capitalismo aparece, não como fruto do velho sistema, mas sim como invasor estrangeiro. Tem que destacar também que a única sociedade "oriental" que até certo ponto desenvolveu seu próprio capitalismo independente foi o Japão, onde já se tinha anteriormente um sistema feudal.
Assim, nesta forma social, o conflito entre as relações de produção e a evolução das forças produtivas mostra-se mais como estancamento que como decadência, visto que, enquanto as dinastias se sucedem, consumindo-se em incessantes conflitos internos e esmagando a sociedade sob o peso de enormes projetos de Estado "faraônicos", a estrutura social fundamental permanece imutável; e se não emergiram novas relações de produção, então, estritamente falando, os períodos de decadência deste modo de produção não constituem realmente épocas de revolução social. Isto é bastante consistente com o método global de Marx, que não propõe uma via de evolução unilateral ou predeterminada para todas as formas de sociedade, mas contempla a possibilidade de que algumas sociedades cheguem a um ponto morto a partir do qual não é possível nenhuma evolução posterior. Também deveríamos recordar que algumas das expressões mais isoladas desse modo de produção se afundaram completamente, muitas vezes porque alcançaram os limites de crescimento em um meio ambiente ecológico particular. Este parece ter sido o caso da cultura Maia, que destruiu sua própria base agrícola por um excessivo desmatamento. Neste caso houve inclusive uma deliberada "regressão" impulsionada por uma grande parte da população, que abandonou as cidades e voltou para a caça e a coleta, embora se preservassem assiduamente os velhos calendários e tradições maias. Outras culturas, como a da ilha de Páscoa, parece que desapareceram completamente, muito provavelmente devido a conflitos de classe irresolúveis, à violência e à fome.
Escravismo e feudalismo
Marx e Engels nunca negaram que seu conhecimento das formações sociais primitiva e asiática era muito limitado, devido ao estado dos conhecimentos contemporâneos. Sentiam-se com mais confiança quando escreviam sobre a sociedade "antiga" (quer dizer, as sociedades escravistas da Grécia e Roma) e o feudalismo europeu. Certamente o estudo dessas sociedades desempenhou um papel significativo na elaboração de sua teoria da história, visto que forneceram exemplos muito claros do processo dinâmico pelo qual um modo de produção sucedia a outro. Isto é evidente nos primeiros escritos de Marx (A ideologia alemã) onde localiza o surgimento do feudalismo nas condições provocadas pela decadência de Roma.
- "A terceira forma é a da propriedade feudal ou estamental. Se a Antigüidade baseou-se na cidade e em seu pequeno território, a Idade Média baseou-se no campo. A escassa população existente espalhada por uma vasta superfície e que não teve um grande crescimento com a chegada dos conquistadores, condicionou essa mudança de ponto de partida. Ao contrário da Grécia e de Roma, o desenvolvimento feudal começa, pois, num terreno muito mais extenso, preparado pelas conquistas romanas e pela expansão da agricultura vinculada a essas conquistas. Os últimos séculos do Império Romano em declínio e sua conquista pelos bárbaros destruíram uma enorme quantidade de forças produtivas; a agricultura havia diminuído, a indústria decaíra pela falta de mercados, o comércio adormecera ou fora violentamente interrompido e as populações da cidade e do campo haviam diminuído. Essas condições preexistentes e o modo de organização da conquista por elas condicionado desenvolveram a propriedade feudal, sob a influência da organização militar germânica. A propriedade feudal, tal como a propriedade comunal e tribal, baseia-se igualmente numa comunidade em que não são mais os escravos, como para os antigos, mas sim os pequenos camponeses servos da gleba que formam a classe imediatamente produtora." (A Ideologia alemã, op. cit, pág. 90-91)
O próprio termo de decadência está acostumado evocar imagens dos últimos tempos do Império Romano - de orgias e imperadores romanos ébrios de poder, de combates de gladiadores presenciados por grandes multidões sedentas de sangue. Essas cenas tendem a focalizar-se nos elementos "superestruturais" da sociedade romana, mas refletem uma realidade que se produzia nos próprios fundamentos do sistema escravista; e por isso revolucionários como Engels e Rosa Luxemburgo tomaram a licença de assinalar a decadência de Roma como uma espécie de presságio do que esperava à humanidade se o proletariado não conseguisse derrubar o capitalismo: «a decadência de toda a civilização, com as conseqüências, como na antiga Roma, do despovoamento, da desolação, da degenerescência, um grande cemitério» (Rosa Luxemburgo, A Crise da Social-Democracia, conhecida também como Folheto do Junius; Editorial Presença, pág. 23. Lisboa, 1974).
A antiga sociedade escravista era uma formação social muito mais dinâmica que o modo asiático, embora este fizesse sua própria contribuição ao surgimento da antiga cultura grega, e assim ao modo escravista de produção em geral (o Egito, em particular, era considerado como um venerável depositário da sábia inteligência). Este dinamismo fluía em grande parte do fato, como dizia um contemporâneo da época, de que «tudo está à venda em Roma»: a forma mercantil tinha avançado até o ponto de que as velhas comunidades agrárias eram cada vez mais uma linda lembrança de uma idade de ouro perdida, e mesmo uma massa de seres humanos tinham se convertido em mercadorias que se podiam comprar e vender nos mercados de escravos. Embora restassem grandes áreas da economia onde o trabalho produtivo era levado a cabo por pequenos camponeses ou artesãos, a produção a cargo de grandes exércitos de escravos assumia cada vez mais um papel chave nos pontos centrais da economia antiga -as grandes fazendas, as obras públicas e as minas. Essa grande "invenção" do mundo antigo foi, durante um grande período de tempo, uma formidável "forma de desenvolvimento" que permitiu aos cidadãos livres organizar-se em poderosos exércitos que, conquistando novas terras para o Império, forneceram novas reservas de trabalho escravo. Mas por essas mesmas razões, chegou claramente um ponto em que o escravismo se transformou em um firme obstáculo ao desenvolvimento posterior. Sua natureza inerentemente improdutiva jazia no fato de que não proporcionava absolutamente nenhum incentivo para que o produtor entregasse o melhor de suas capacidades produtivas, nem dava tampouco ao proprietário de escravos nenhum incentivo para que investisse em desenvolver melhores técnicas de produção, visto que a obtenção de novos escravos era sempre a opção mais barata. Daí a defasagem extraordinária entre os avanços filosófico/científicos dos pensadores, cujo tempo livre estava sustentado pelo trabalho dos escravos, e a aplicação prática extremamente limitada dos avanços teóricos ou técnicos. Este foi o caso, por exemplo, com o moinho de água, que desempenhou um papel tão crucial no desenvolvimento da agricultura feudal. Realmente foi inventado na Palestina no começo do primeiro século D.C., mas seu uso não se generalizou nunca no Império romano. Em um determinado ponto, portanto, a incapacidade do modo escravista de produção de aumentar radicalmente a produtividade do trabalho fez cada vez mais impossível manter os enormes exércitos necessário para fazê-lo funcionar. Roma tinha ido além das suas possibilidades, apanhada em uma contradição insolúvel que se expressou em todos os aspectos conhecidos de sua decadência.
No Passagens da Antiguidade ao feudalismo (1974), o historiador Perry Anderson enumera algumas das expressões econômicas, políticas e militares desse estancamento das forças produtivas da sociedade romana, um estancamento causado pela relação escravista, em princípios do século III: "Pela metade do século, houve um colapso total na cunhagem da prata,[...]e, pelo final do século, os preços do milho haviam disparado verticalmente a níveis 200 vezes acima dos índices do início do Principado. A estabilidade política degenerou rapidamente ao mesmo tempo que a estabilidade monetária. Nos caóticos cinqüenta anos entre 235 e 284 houve nada menos que 20 imperadores, 18 dos quais tiveram morte violenta, um esteve cativo no exterior e outro foi vítima da peste - tudo isso, expressivas demonstrações dos tempos. As guerras civis e as usurpações eram virtualmente ininterruptas, de Máximo Trácio a Diocleciano. Estas eram combinadas com uma devastadora seqüência de invasões estrangeiras e ataques ao longo das fronteiras, penetrando o interior. [...] O torvelinho político doméstico e as invasões estrangeiras logo trouxeram sucessivas epidemias em seu rastro, enfraquecendo e reduzindo as populações do Império já diminuídas pelas destruições da guerra. As terras eram abandonadas e a escassez no abastecimento da produção agrícola aumentava. O sistema de taxação se desintegrava com a depreciação da moeda corrente e as obrigações fiscais revertiam-se em entregas em espécie. A construção de cidades foi abruptamente detida, o que está comprovado arqueologicamente por toda a Europa; em algumas regiões os centros urbanos perdiam cor e se retraíam. " (Perry Anderson, Passagens da Antiguidade ao feudalismo. pág 80-81 Ed. Brasiliense, São Paulo, 2000).
Anderson continua mostrando como, em resposta a esta profunda crise, o poder do Estado romano, apoiado fundamentalmente num exército reorganizado e ampliado, cresceu enormemente e conseguiu uma certa estabilidade que durou uns cem anos. Mas uma vez que "A expansão do Estado [...] foi seguida por um retraimento da economia...» (Perry Anderson, op. cit, pág. 88), esta renovação simplesmente preparou o caminho ao que ele chama «a crise final da Antigüidade», impondo a necessidade de abandonar progressivamente a relação escravista. Um fator igualmente chave no desaparecimento do modo de produção escravista foi a generalização das revoltas de escravos e de outras classes exploradas e oprimidas em todo o Império no quinto século DC (como as dos chamados Bagaudas [8]), que se produziram em uma escala muito mais ampla que a rebelião do Spartacus no século I -embora esta última é lembrada muito justamente por sua incrível audácia e profundo desejo por um mundo melhor.
A decadência de Roma, portanto, correspondia precisamente à fórmula de Marx, e tomou um caráter claramente catastrófico. Apesar dos esforços recentes dos historiadores burgueses para apresentá-la como um processo gradual e imperceptível, manifestou-se como uma crise devastadora de subprodução em que a sociedade era cada vez menos capaz de produzir as necessidades básicas da vida -uma verdadeira regressão das forças produtivas, em que numerosas áreas do saber e da técnica foram enterradas e perdidas durante séculos. Isto não tomou a forma de uma queda repentina de uma só direção (como já assinalamos, a grande crise do terceiro século seguiu um relativo ressurgimento que não terminou até a onda final de invasões bárbaras) mas era inexorável.
O colapso do sistema do Império Romano foi a pré-condição para o surgimento de novas relações de produção em que uma camada importante de proprietários de terras deu o passo revolucionário de eliminar o trabalho escravista substituindo-o pelo sistema de colonos - precursor da servidão feudal e no que o produtor, embora estivesse obrigado a trabalhar para a classe dos propreitários de terra, recebia também sua própria parcela de terra para cultivar. O segundo ingrediente do feudalismo, mencionado por Marx na passagem que citamos de A Ideologia alemã, foi o elemento bárbaro "germânico", que combinava a hierarquia emergente de uma aristocracia guerreira com os restos da propriedade comunal, que foi obstinadamente mantida pelo grupo de camponeses. Seguiu um longo período de transição, em que as relações escravistas não tinham desaparecido completamente e o sistema feudal se afirmava gradualmente, chegando a sua verdadeira implantação só a partir dos primeiros séculos do novo milênio. E embora, como já assinalamos, em muitos aspectos (urbanização, relativa independência da religião do pensamento artístico e filosófico, medicina, etc.) a ascensão da sociedade feudal significou uma notável regressão em relação às aquisições da Antigüidade, as novas relações sociais, em contrapartida, suscitaram, tanto no senhor como no servo, um interesse direto no aumento do rendimento de sua parte de terra, e permitiram a generalização de uma série importante de avanços técnicos na agricultura: o arado de ferro e o arreio de ferro, que permite conduzir os cavalos, o moinho de água, a rotação de culturas (aragem, sistema de tripartição do terreno), etc. O novo modo de produção permitiu assim o renascimento das cidades e um novo florescimento da cultura cuja máxima expressão gráfica foram as grandes catedrais e as universidades que surgiram nos séculos XII e XIII.
Mas como antes o sistema escravista, o feudalismo também começou a alcançar seus limites "externos".
- "Nos cem anos seguintes (do século XIII), uma crise geral maciça tomou conta de todo o continente [...] O determinante mais profundo desta crise geral provavelmente estará num "emperramento" dos mecanismos de reprodução do sistema até o ponto das suas capacitações básicas. Em particular, parece claro que o motor básico da recuperação dos solos, que impulsionara toda a economia feudal por três séculos, acabou ultrapassando os limites objetivos da estrutura social e das terras disponíveis. A população continuou a crescer e a produção caiu nas terras marginais ainda disponíveis para uma recuperação aos níveis da técnica existente, e o solo deteriorava por causa da pressa ou do mau uso. As últimas reservas de terra regenerada eram normalmente de qualidade pobre, solo muito fino ou úmido, mais difícil de cultivar, e onde eram semeadas plantações inferiores, como a aveia. As terras aradas mais antigas, por outro lado, estavam sujeitas ao desgaste e deterioração pela própria antigüidade de seu cultivo..." (Anderson, Passagens da Antiguidade ao feudalismo, op cit, pág 191-192,)
À medida que a expansão da economia feudal agrária tropeçou contra essas barreiras, produziram-se conseqüências desastrosas na vida da sociedade: más colheitas, fomes, queda dos preços do grão combinado com aumentos galopantes dos preços das mercadorias produzidas nos centros urbanos:
- «Este processo contraditório afetou drasticamente a classe nobre, pois seu modo de vida se havia tornado cada vez mais dependente dos bens de luxo produzidos nas cidades [...] enquanto o cultivo nas propriedades senhoriais e as obrigações servis de suas propriedades produziam rendimentos progressivamente decrecentes. O resultado foi um declínio nos rendimentos senhoriais, que por sua vez liberou uma onda de lutas sem precedentes enquanto os cavaleiros tentavam recuperar suas fortunas em todos os cantos com pilhagens. Na Alemanha e na Itália, esta busca dos saques numa época de escassez produziu o fenômeno do banditismo desorganizado e anárquico entre senhores feudais [...] Acima de tudo, a Guerra dos Cem Anos na França - uma combinação sanguinária de guerra civil entre as casas de Valois e de Borgonha e uma luta internacional entre a Inglaterra e a França, envolvendo também Flandres e as forças ibéricas - afundou o mais rico país da Europa numa desordem e miséria sem paralelos. Na Inglaterra, o epílogo da última derrota continental na França foi o gangsterismo dos barões da Guerra das Rosas [...]Para completar o panorama desolador, esta crise estrutural era determinada por mais uma catástrofe conjuntural: a invasão da Peste Negra, vinda da Ásia em 1348» (Idem, pág 194.)
A peste negra, que aniquilou um terço da população européia, acelerou o desaparecimento final da servidão. Produziu uma escassez crônica de mão de obra no campo, obrigando a nobreza a trocar a tradicional renda de trabalho feudal ao pagamento de salários; mas ao mesmo tempo, os nobres trataram de voltar atrás o relógio, impondo restrições draconianas aos salários e ao movimento dos trabalhadores (uma tendência que se desenvolveu em toda a Europa e cuja codificação clássica é o Estatuto dos Trabalhadores -1351-, decretado na Inglaterra imediatamente depois da peste negra). Um dos resultados posteriores desta reação da nobreza foi provocar uma luta de classes generalizada, em que uma das mais famosas expressões também se produziu na Inglaterra, com as grandes revoltas camponesas de 1381. Mas houve sublevações comparáveis por toda a Europa neste período (As "jaqueries" francesas, as revoltas de "trabalhadores" em Flandres, a revolta de Ciompi em Florença, etc.).
Como na decadência da antiga Roma, as crescentes contradições do sistema feudal no plano econômico, tiveram assim suas repercussões no plano político (guerras, revoltas sociais) e na relação entre os seres humanos e a natureza; e por sua vez, todos estes elementos aceleraram e aprofundaram a crise geral. Como em Roma, a decadência geral do feudalismo foi resultado de uma crise de subprodução, da incapacidade das velhas relações sociais para impulsionar a produção das necessidades básicas da vida diária. É importante destacar que, embora a lenta emergência das relações mercantis nas cidades atuou como um fator de dissolução dos laços feudais e foi acelerada pelos efeitos da crise geral (guerras, fomes, a peste), as novas relações sociais não puderam decolar realmente até que o velho sistema entrasse em um estado de contradição interna, que deu lugar a um grave declínio das forças produtivas:
- "Uma das conclusões mais importantes que permite o exame da grande queda do feudalismo europeu é que - ao contrário do que crêem os marxistas -, a figura característica de uma crise num modo de produção não é aquela em que vigorosas forças (econômicas) de produção explodem triunfais através de relações (sociais) retrógradas e prontamente restabelecem uma produtividade mais alta e uma sociedade sobre suas ruínas. Pelo contrário: as forças de produção tendem habitualmente a paralisar e recuar no quadro das relações de produção existentes; estas, assim, devem ser radicalmente mudadas e reordenadas antes que novas forças de produção possam ser criadas e combinadas para um modo de produção globalmente novo. Em outras palavras, as relações de produção, em geral, mudam anteriormente às forças de produção numa época de transição e não vice-versa" (Idem. pág 197). Como na decadência de Roma, um período de regressão do velho sistema foi a precondição para o florescimento de um novo modo de produção.
De novo, como no período da decadência de Roma, a classe dominante tratou de preservar seu cambaleante sistema por meios cada vez mais artificiais. A aprovação de leis brutais para controlar a mobilidade da mão de obra e a tendência dos trabalhadores rurais de fugir para as cidades, a tentativa de governar as tendências centrífugas da aristocracia por meio da centralização do poder monárquico, o uso da inquisição para impor um rígido controle ideológico sobre todas as expressões de pensamento "heréticas" e dissidentes, a corrupção e as armadilhas com as moedas para "solucionar" o problema do endividamento da realeza... ***todas essas tendências foram tentativas de um sistema moribundo de adiar sua extinção final, mas não podiam evitá-la. Para falar a verdade, em grande medida os mesmos meios usados para preservar o velho sistema se transformaram em pontes do novo sistema: assim foi, por exemplo, com a monarquia centralista dos Tudor na Inglaterra, que em grande parte criou as condições necessárias para o surgimento do estado-nação moderno.
Muito mais claramente que na decadência de Roma, a época de declínio feudal foi também uma época de revolução social, no sentido de que de seu ventre surgiu uma classe genuinamente nova e revolucionária, uma classe com uma visão de mundo que desafiava as velhas instituições e ideologias, e um modo de economia que via na relação feudal um obstáculo intolerável a sua expansão. A revolução burguesa fez sua entrada triunfante na história na Inglaterra em 1640, embora tivesse que esperar um século e meio antes de sua vitória ainda mais espetacular na França na década de 1790. Era possível a revolução burguesa se desenvolver durante um peróodo tão amplo pois constituía o ponto culminante político de um longo processo de desenvolvimento econômico e social dentro do velho sistema, e também porque seguiu ritmos diferentes nas diferentes nações.
A transformação das formas ideológicas
- "Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material - que se deve comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas conseqüências." (Marx, Prefácio à Introdução à Economia Política, Ed. Martins Fontes, 1977).
Todas as sociedades de classe se mantêm por uma combinação de repressão sem disfarces e controle ideológico, que a classe dominante exerce por meio de suas numerosas instituições: família, religião, educação, etc. A ideologia não é nunca um puro reflexo passivo da base econômica, mas sim contém sua própria dinâmica, que em certos momentos pode impactar ativamente nas relações sociais subjacentes. Em sua afirmação da concepção materialista da história, Marx se viu obrigado a distinguir entre "a alteração material das condições econômicas" e "as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito", porque até a data, a forma dominante de estudar a história tinha posto a ênfase nas últimas em detrimento do primeiro.
Quando se analisam as transformações ideológicas que se produzem em uma época de revolução social, é importante recordar que se em última instância estão determinadas pelas condições econômicas de produção, não é de uma forma rígida e mecânica, e menos ainda porque tais períodos não são nunca exclusivamente de puro declínio ou degradação, mas sim estão marcados por uma crescente confrontação entre forças sociais antagonistas. O característico dessas épocas é que a velha ideologia dominante, que corresponde cada vez menos à realidade social cambiante, tende a decompor-se e dar lugar a novas visões de mundo que podem servir para inspirar e mobilizar ativamente às classes sociais opostas à velha ordem. No processo de decomposição, as velhas ideologias - religiosa, filosófica, artística - cedem freqüentemente ao pessimismo, o niilismo e a obsessão pela morte; enquanto as ideologias das classes ascendentes ou rebeldes são mais freqüentemente otimistas, vitalistas e antecipam o começo de um mundo radicalmente transformado.
Para pôr um exemplo: no período dinâmico do sistema escravista, a filosofia tendia a expressar, dentro dos limites do período, os esforços do gênero humano por "conhecer-se a si mesmo", segundo a frase que fez imortal Sócrates - para compreender a dinâmica real da natureza e da sociedade por meio do pensamento racional, sem a intermediação do divino. Em seu período de decadência, a filosofia tendia a recuar para a justificação do desespero ou da irracionalidade, como no neoplatonismo e suas vinculações aos numerosos cultos esotéricos que floresceram nas últimas décadas do Império.
Esta tendência não pode se compreender, entretanto, de forma unilateral: nos períodos de decadência, as velhas religiões e filosofias também foram confrontadas à ascensão de novas classes revolucionárias, ou a rebelião dos explorados, e estas, geralmente, também tomaram uma forma religiosa. Assim, na antiga Roma, a religião cristã, embora estivesse certamente influenciada por cultos esotéricos orientais, começou como um movimento de protesto dos despossuídos contra a ordem dominante, e mais tarde, como um poder estabelecido por direito próprio, foi um marco para a preservação de muitas das aquisições culturais do mundo antigo. Esta dialética entre a velha e a nova ordem foi também uma característica das transformações ideológicas durante a decadência do feudalismo. Por um lado: «O período de estancamento conheceu o auge do misticismo em todas suas formas. A forma intelectual, com o "A arte de morrer" -Ars moriendi Séc. XV-, e sobretudo, "A imitação de Cristo" (XIV-XV). A forma emocional, com as grandes expressões de piedade popular, exacerbadas pela influência dos elementos incontrolados do clero mendicante: os "flagelantes" perambulavam pelas zonas rurais, rasgando seus corpos com chicotes nas praças dos povoados para apelar à sensibilidade humana e chamar os cristãos a arrepender-se. Estas manifestações deram lugar a um imaginário de duvidoso gosto, como as fontes de sangue, que simbolizavam ao redentor. Muito rapidamente o movimento oscilou para a histeria, e a hierarquia eclesiástica teve que intervir contra os elementos desordeiros, para impedir que suas pregações fizessem aumentar o número de vagabundos [...] Desenvolveu-se a arte macabra... O texto sagrado preferido pelas mentes mais ilustradas era o Apocalipse.» (J. Favier, De Marco Polo à Christophe Colomb, traduzido do francês por nós).
Por outro lado, o afundamento do feudalismo também conheceu a ascensão da burguesia e sua visão de mundo, que se expressou no magnífico florescimento da arte e da ciência no período do Renascimento. E inclusive movimentos místicos e milenares, como os anabatistas estiveram freqüentemente, como assinalou Engels, intimamente ligados às aspirações comunistas das classes exploradas. Esses movimentos ainda não podiam apresentar uma alternativa historicamente viável ao velho sistema de exploração e seus sonhos milenares se orientavam mais para um passado primitivo que para um futuro mais adiante, mas, apesar de tudo, desempenharam um papel chave no caminho que levou a destruição da hierarquia medieval decadente.
Numa época decadente, o declínio cultural geral nunca é absoluto: no plano artístico, por exemplo, o estancamento das velhas escolas, também pode ser rebatido por novas formas que expressam, sobretudo, um protesto humano contra uma ordem cada vez mais desumana. E o mesmo pode dizer do plano da moral. Se a moral for, em última instância, uma expressão da natureza social do ser humano, e se os períodos de decadência são expressão da quebra das relações sociais, então tenderão a caracterizar-se por uma quebra concomitante da moralidade, uma tendência ao colapso dos laços humanos básicos e ao triunfo dos impulsos antissociais. A perversão e a prostituição do desejo sexual, o florescimento do roubo, da fraude e do assassinato gratuitos, e, sobretudo, a supressão da ordem moral na guerra, põem-se à ordem do dia. Mas nem sequer isto deveria ser visto de forma rígida e mecânica, e concluir que os períodos de ascendência estão marcados por um comportamento humano superior, e os períodos de decadência por uma queda repentina de infâmia e depravação. A ruptura e o desmoronamento das velhas certezas morais podem expressar igualmente o auge de um novo sistema de exploração, em comparação com o qual a velha ordem pode parecer comparativamente benigna, como assinala o Manifesto Comunista a respeito da ascensão do capitalismo:
- «Onde passou a dominar, destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas. Dilacerou sem piedade os laços feudais, tão diferenciados, que mantinham as pessoas amarradas a seus 'superiores naturais', sem por no lugar qualquer outra relação entre os indivíduos que não o interesse nu e cru do pagamento impessoal e insensível ‘em dinheiro'. Afogou na água fria do cálculo egoísta todo fervor próprio do fanatismo religioso, do entusiasmo cavalheiresco, e do sentimentalismo pequeno-burguês. Dissolveu a dignidade pessoal no valor de troca e substituiu as muitas liberdades, conquistadas e decretadas, por uma determinada liberdade, a de comércio. (Contraponto Editora, 1997, pág. 10)
E apesar disso, a compreensão de Marx e Engels do que Hegel chamava "a astúcia da razão" era de tal envergadura, que foram capazes de reconhecer que este declínio "moral", esta mercantilização do mundo, era de fato uma força de progresso que colaborava em erradicar a estática ordem feudal atrás dela e diante dela preparava o caminho para a ordem moral genuinamente humana que se perfilava no horizonte.
Gerrard
[1] ver Revista internacional nº 134 ou https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/decadencia_do_capitalismo_Que_m%C3%A9todo_cient%C3%ADfico
[2] Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia política, ver referência em Revista Internacional nº 134.
[3] Ler a primeira parte deste artigo.
[4] Por exemplo, as sociedades sedentárias de caçadores, já bastante hierarquizadas, que foram capazes de armazenar amplas reservas de alimentos, as diferentes formas semicomunistas de produção agrária, os "impérios tributários" formados por pastores semibárbaros como os Hunos e os Mongóis.
[5] Esse capítulo tem tradução em espanhol: https://es.internationalism.org/rint81marx
[6] Entre as tribos australianas, quando o modo de vida tradicional ainda era vigente, o caçador que trazia a peça não guardava nada para si, mas entregava imediatamente o produto à comunidade seguindo a tradição que marcavam certas estruturas complexas de parentesco. Segundo o trabalho do antropólogo Alain Testart, Le Communisme Primitif, 1985, o termo de comunismo primitivo só deveria aplicar-se aos australianos, a quem ele vê como a última reminiscência de uma relação social que provavelmente foi a regra durante o período paleolítico. Isto é matéria de debate. Certamente, inclusive entre os povos nômades de caçadores-colectores há amplas diferenças em relação à forma como se distribui o produto social, mas todos eles dão prioridade à manutenção da comunidade, e como assinala Chris Knight em seu trabalho Blood Relations, Menstruation and the origins of culture, 1991, o que ele chama "own-kill rule" (quer dizer, limites prescritos sobre o que o caçador pode consumir das peças que matou) está amplamente estendido entre os povos caçadores.
[7] Deve se ter em conta que a dissolução das relações sociais primitivas não foi um acontecimento que se produziu de uma vez por todas a partir de um determinado momento, mas sim seguiu diferentes ritmos em diferentes parte do mundo; é um processo que se desenvolve durante milênios e que só agora está chegando a seus trágicos últimos capítulos nas regiões mais remotas do planeta, como no Amazonas ou na selva de Bornéu.
[8] O termo bagauda, (bagaudae em latim; em bretão bagad. Em galês significava «tropa»), utiliza-se para designar aos integrantes de numerosos bandos que participaram de uma longa série de rebeliões, conhecidas como as revoltas bagaudas, que se deram na Gália e Espanha durante o Baixo Império, e que continuaram desenvolvendo-se até o século V. Seus integrantes eram principalmente camponeses ou colonos que escapavam de suas obrigações fiscais, escravos fugidos ou indigentes. (Wikipédia)