Covid 19: Apesar de todos os obstáculos, a luta de classes trata de forjar seu futuro

Printer-friendly version

Antes do tsunami da crise da Covid-19 varrer o planeta, as lutas da classe trabalhadora na França, na Finlândia, nos EUA e noutros lugares davam sinais de um novo estado de espírito no proletariado, de uma recusa em curvar-se perante as exigências impostas por uma crise econômica crescente. Na França, em particular, pudemos discernir sinais de uma recuperação da identidade de classe que foi corroída por décadas de decomposição capitalista, pela ascensão de uma corrente populista que distorce as verdadeiras divisões da sociedade e que, na França, tomou as ruas com um colete amarelo[1].

Neste sentido, a pandemia da Covid-19 não poderia ter vindo em pior hora para a luta do proletariado: no momento em que começava a sair para a rua, para se reunir em manifestações para resistir aos ataques econômicos, cujas origens na crise capitalista são difíceis de esconder, a maioria da classe trabalhadora não teve outra alternativa senão recuar individualmente para dentro de casa, para evitar as grandes concentrações, para "se isolar" sob o olhar de um aparelho de Estado com plenos poderes, que foi capaz de fazer fortes apelos à "unidade nacional" diante de um inimigo invisível que - dizem - não discrimina entre ricos e pobres, patrões e trabalhadores.

As dificuldades enfrentadas pela classe trabalhadora são reais e profundas, e iremos examiná-las de forma mais aprofunda neste artigo. Mas o que é de certa forma notável é o fato de, apesar do medo onipresente de contágio, apesar da aparente onipotência do Estado capitalista, os sinais de combatividade de classe que vimos nos últimos meses de Dezembro / Janeiro não se evaporaram. Numa fase inicial e diante da chocante negligência da burguesia, vimos movimentos defensivos generalizados por parte da classe trabalhadora. Os trabalhadores de todo o mundo recusaram-se a ir como "cordeiros para o matadouro", travaram uma luta determinada em defesa da sua saúde, das suas próprias vidas, exigindo medidas de segurança adequadas ou o fechamento de empresas não envolvidas na produção essencial (como as fábricas de automóveis).

As principais características destas lutas são as seguintes:

Ocorreram à escala mundial, dada a natureza global da pandemia, mas um dos seus elementos mais importantes é o fato de terem sido mais evidentes nos centros capitalistas, particularmente nos países mais afetados pela doença: na Itália, por exemplo, a Tendência Comunista Internacionalista menciona greves espontâneas no Piemonte, Ligúria, Lombardia, Veneto, Emília Romana, Toscana, Úmbria e Apúlia[2]. Foram, sobretudo, os trabalhadores das fábricas italianas que primeiro levantaram o slogan "não somos cordeiros enviados para o matadouro". Na Espanha, as greves na Mercedes, FIAT, Balay electrodomésticos; os trabalhadores da Telepizza, em greve contra a retaliação dos trabalhadores que não quiseram arriscar a vida entregando pizzas, e outros protestos dos entregadores em Madri. Talvez o mais importante de tudo - até porque desafia a imagem de uma classe trabalhadora americana que se associou sem qualquer crítica à demagogia de Donald Trump - tenha sido a luta generalizada nos Estados Unidos: greves na FIAT em Indiana, Warren Trucks, por motoristas de ônibus em Detroit e Birmingham Alabama, nos portos, restaurantes, na distribuição de alimentos, no saneamento, na construção; greves na Amazon (que também foi atingida por greves em outros países), Whole Foods, Instacart, Walmart, FedEx, etc. Assistimos também a um grande número de greves contra os  aluguéis nos Estados Unidos. Esta é uma forma de luta que, embora não envolva automaticamente os proletários, não é de modo algum estranha às tradições da classe (poderíamos citar, por exemplo, as greves contra aluguéis de Glasgow, que foram parte integrante das lutas dos trabalhadores durante a Primeira Guerra Mundial, ou a greve contra aluguéis de Merseyside em 1972, que acompanhou a primeira vaga internacional de lutas depois de 1968). E nos Estados Unidos, em particular, existe uma ameaça real de despejo que paira sobre muitas das camadas "confinadas" da classe trabalhadora.

Na França e na Grã-Bretanha, estes movimentos foram menos generalizados, mas temos visto trabalhadores dos correios e da construção civil, trabalhadores dos armazéns e dos contêineres na Grã-Bretanha e, na França, greves em fábricas e nos estaleiros navais de Saint Nazaire. Amazon em Lille e Montelimar, em logística... Na América Latina, são exemplos o Chile (Coca Cola), os trabalhadores portuários na Argentina e no Brasil, os empacotadores na Venezuela. No México, "As greves espalharam-se por toda a cidade mexicana de Ciudad Juarez, que faz fronteira com El Paso, Texas, envolvendo centenas de trabalhadores de empresas maquiladoras[3] exigindo o fechamento de fábricas não essenciais, que permaneceram abertas apesar do número crescente de mortes causadas pela pandemia da COVID-19, incluindo 13 funcionários da fábrica de assentos de automóveis Lear, propriedade dos EUA. As greves... seguem ações semelhantes de trabalhadores nas cidades fronteiriças de Matamoros, Mexicali, Reynosa e Tijuana"[4]. Na Turquia, greves na fábrica têxtil de Sarar (contra a indicação dos sindicatos), no estaleiro Galataport e pelos trabalhadores dos correios. Na Austrália, greves dos trabalhadores portuários e da distribuição. A lista poderia facilmente ser ampliada.

Várias das greves foram espontâneas, como na Itália, nas fábricas de automóveis nos Estados Unidos e nos centros da Amazon, os sindicatos foram amplamente criticados e, por vezes, opuseram-se frontalmente por sua colaboração aberta com a direção. Segundo um artigo da Libcom, que dá uma visão geral das recentes lutas nos EUA: "Os trabalhadores das fábricas de montagem da Fiat Chrysler's Sterling Heights (SHAP) e da Jefferson North (JNAP), em Metro Detroit, tomaram as coisas nas suas próprias mãos ontem à noite e esta manhã e forçaram a paralisação da produção para impedir a propagação da Covid-19. As paralisações de trabalho começaram em Sterling Heights ontem à noite, poucas horas depois de os trabalhadores da United Auto Workers e as montadoras de Detroit terem chegado a um péssimo acordo para manter as fábricas em funcionamento durante a pandemia global. No mesmo dia, dezenas de trabalhadores da fábrica de Lear Seating, em Hammond, Indiana, recusaram-se a trabalhar, obrigando ao fechamento da fábrica de peças e da fábrica de montagem vizinha de Chicago"[5]. O artigo também contém uma entrevista com um trabalhador da indústria automotriz que afirma: "O sindicato e a empresa estão mais preocupados em fazer caminhões do que com a saúde de todos. Sinto que não vão fazer nada se não tomarmos medidas. Temos de nos unir. Eles não podem despedir a todos nós".

Estes movimentos ocorrem num terreno básico de classe: em torno de condições de trabalho (procura de equipamento de segurança adequado), mas também em torno de indenizações por doença, salários não pagos, sanções para os trabalhadores que se recusaram a trabalhar em condições inseguras, etc. Mostram uma rejeição do sacrifício que está em continuidade com a capacidade da classe de resistir ao alistamento para a guerra, um fator subjacente à situação mundial desde o renascimento das lutas de classe em 1968.

Os profissionais da saúde, embora demonstrando um extraordinário sentido de responsabilidade, manifestaram também descontentamento com as suas condições, raiva perante apelos hipócritas e elogios dos governos, embora estes tenham assumido principalmente a forma de protestos e declarações individuais, mas houve ações coletivas[6], incluindo greves, no Malawi, Zimbábue, Nova Guiné e manifestações de enfermeiros em Nova Iorque.

A Crise da Pandemia um golpe contra a luta de classes

Mas este sentido de responsabilidade proletária, que também leva milhões de pessoas a seguir as regras do autoisolamento, mostra que a maioria da classe trabalhadora aceita a realidade desta doença, mesmo num país como os EUA, onde várias facções da burguesia (incluindo os "Trumpistas") defendem a negação da pandemia. Assim, as lutas a que assistimos foram necessariamente limitadas aos trabalhadores "essenciais" que lutam por condições de trabalho mais seguras - e estas categorias estão destinadas a permanecer uma minoria da classe, por muito vital que seja o seu papel - ou por trabalhadores que muito prontamente questionaram se o seu trabalho era realmente necessário, como os trabalhadores do ramo automobilístico na Itália e nos Estados Unidos; e, por conseguinte, a sua principal exigência era que fossem enviados para casa (com pagamento dos salários pela empresa ou pelo Estado, em vez de serem demitidos, como muitos foram). Mas esta exigência, embora necessária, só poderia implicar uma espécie de retirada tática da luta, em vez da sua intensificação ou extensão. Houve tentativas - por exemplo, entre os trabalhadores da Amazon nos Estados Unidos - de realizar reuniões de luta on-line, de fazer piquetes enquanto se observam distâncias seguras, etc., mas não se pode evitar o fato das condições de confinamento constituírem um enorme obstáculo a qualquer desenvolvimento imediato da luta.

E, em condições de isolamento, é mais difícil resistir à gigantesca onda de propaganda e de ofuscação ideológica desenvolvida pelos Estados.

Os meios de comunicação social cantam diariamente hinos à unidade nacional, com base na ideia de que o vírus é um inimigo que não discrimina: no Reino Unido, o fato de Boris Johnson e do Príncipe Charles terem sido infectados pelo vírus é apresentado como prova disso[7]. A referência à guerra, o espírito da "blitz" durante a Segunda Guerra Mundial (ela própria produto de um grande exercício de propaganda destinado a esconder qualquer descontentamento social) é incessante no Reino Unido, particularmente com os aplausos recebidos por um veterano de 100 anos da Força Aérea que angariou milhões para o NHS ao completar 100 voltas em seu grande jardim. Na França, Macron também se apresentou como um líder de guerra; nos Estados Unidos, Trump tentou definir o Corona como o "vírus chinês", desviando as atenções do tratamento lamentável da crise por parte da sua administração e jogando com o habitual tema "América em Primeiro Lugar". Em toda a parte - mesmo na zona de livre circulação Schengen da União Europeia - o fechamento das fronteiras foi salientado como o melhor meio de conter o contágio. Formaram-se governos de unidade nacional onde costumava haver uma divisão aparentemente insolúvel (como na Bélgica), ou os partidos da oposição tornaram-se mais "leais" do que nunca no "esforço de guerra" nacional[8].

O apelo ao nacionalismo é acompanhado pela apresentação do Estado como a única força capaz de proteger os cidadãos, quer através da aplicação vigorosa do confinamento, quer na sua aparência mais amistosa como prestador de ajuda aos necessitados, quer se trate dos bilhões que supostamente são distribuídos para apoiar os trabalhadores demitidos, bem como os trabalhadores autônomos cujas empresas tiveram de fechar, ou os serviços de saúde geridos pelo Estado. Na Grã-Bretanha, o "National Health Service" é há muito tempo um ícone sagrado de quase toda a burguesia, mas especialmente da esquerda, que o considera a sua realização especial, uma vez que foi introduzido pelo governo trabalhista do pós-guerra, que o apresenta como algo estranho à mercantilização capitalista da existência, apesar das maléficas invasões de empresários privados. Este elogio ao NHS e instituições similares é apoiado pelos rituais semanais de aplausos e pelos incessantes elogios aos trabalhadores da saúde como heróis, especialmente por parte dos mesmos políticos que têm sido fundamentais nos cortes maciços nos serviços de saúde feitos na última década.

Segundo o político trabalhista de esquerda Michael Foot, a Grã-Bretanha nunca esteve tão próxima do socialismo como durante a Segunda Guerra Mundial (!!!), e hoje, quando o Estado tem de pôr de lado as preocupações com a rentabilidade imediata para manter a sociedade unida, a velha ilusão de que "somos todos socialistas" (que foi uma ideia comumente expressa pela classe dominante durante a vaga revolucionária depois de 1917) ganhou novo ímpeto graças às enormes rubricas de despesas impostas aos governos pela crise da Covid-19. O influente filósofo de esquerda Slavoj Zizek, numa entrevista no Youtube intitulada "Comunismo ou Barbárie"[9], parece sugerir que a própria burguesia é forçada a tratar o dinheiro como um mero mecanismo de contabilidade, uma forma de voucher de tempo de trabalho, totalmente alheio ao valor real. Em suma, os bárbaros estariam se transformando em comunistas (!!!). Na realidade, a crescente separação do dinheiro do valor é o sinal do completo esgotamento da relação social capitalista e, portanto, da necessidade do comunismo, mas o desrespeito das leis do mercado pelo Estado burguês não é um passo para um modo de produção mais elevado, mas um novo muro defensivo desta ordem decadente. E a função da esquerda do capitalismo é, sobretudo, esconder isso da classe trabalhadora, desviá-la do seu próprio caminho, o que exige quebrar o controle do Estado e preparar a sua destruição revolucionária.

Mas na era do populismo, a esquerda não tem o monopólio das falsas críticas ao sistema. A realidade inquestionável de que o Estado vai utilizar esta crise em todo o lado para intensificar a sua vigilância e controle da população - e, portanto, a realidade de uma classe dominante que está constantemente "conspirando" para manter a sua regra de classe - está dando origem a uma nova cultura de "teorias conspiratórias", segundo as quais o perigo real representado pela Covid-19 é ou descartado ou negado categoricamente: isto seria um "esquema" apoiado por uma sinistra cabala de globalistas para impor o seu programa de "um governo único". E estas teorias, que são particularmente influentes nos EUA, não se limitam ao ciberespaço. A facção Trump nos EUA tem agitado o caldeirão, alegando que há provas de que o Corona escapou de um laboratório em Wuhan - mesmo que os serviços secretos americanos já o tenham descartado. A China tem respondido com acusações semelhantes contra os EUA. Também houve grandes protestos nos EUA exigindo o regresso ao trabalho e o fim do confinamento, motivados por Trump e muitas vezes inspirados por teorias conspiratórias (assim como fantasias religiosas: a doença é real, mas podemos derrotá-la com o poder da oração[10]). Houve também alguns ataques racistas a pessoas orientais, identificadas como responsáveis pelo vírus. Não há dúvida de que tais ideologias afetam partes da classe trabalhadora, em especial as que não recebem qualquer apoio financeiro dos empregadores ou do Estado, mas as manifestações de regresso ao trabalho nos EUA parecem ter sido lideradas principalmente por elementos pequenos burgueses ansiosos por retomar o funcionamento das suas empresas.  Como já vimos anteriormente, muitos trabalhadores lutaram para ir na direção oposta a estas mistificações.

Esta vasta ofensiva ideológica reforça a atomização objetiva imposta pelo confinamento, o medo de que qualquer pessoa fora de casa possa ser uma fonte de doença e de morte. E o fato de o confinamento durar provavelmente algum tempo, de não haver retorno à normalidade e de poder haver mais períodos de confinamento se a doença passar por uma segunda onda, tenderá a exacerbar as dificuldades da classe trabalhadora. E não podemos nos permitir esquecer que estas dificuldades não começaram com o confinamento, mas têm uma longa história, especialmente desde o início do período de decomposição após 1989, que assistiu a uma profunda regressão tanto na combatividade como na consciência, a uma crescente perda de identidade de classe, a uma exacerbação da tendência para "cada um por si" a todos os níveis. Assim, a pandemia, como produto claro do processo de decomposição, marca uma nova etapa no processo, uma intensificação de todos os seus elementos mais característicos[11].

A necessidade de reflexão e de debate político

No entanto, a crise da Covid-19 também chamou a atenção para a dimensão política num grau sem precedentes: a conversa diária, bem como a incessante tagarelice midiática, está quase inteiramente centrada na pandemia e no confinamento, na resposta dos governos, na difícil situação da saúde e de outros trabalhadores "essenciais" e nos problemas de sobrevivência diária de uma grande parte da população no seu conjunto. Não há dúvida de que o mercado das ideias tem sido em grande parte encurralado pelas várias formas da ideologia dominante, mas há áreas em que uma minoria significativa pode levantar questões fundamentais sobre a natureza desta sociedade. A questão do que é "essencial" na vida social, de quem faz o trabalho mais vital e, no entanto, é tão miseravelmente pago por ele, a negligência dos governos, o absurdo das divisões nacionais face a uma pandemia global, que tipo de mundo vamos viver depois da Covid: estas são questões que não podem ser completamente escondidas ou desviadas. E as pessoas não estão completamente atomizadas: os confinados utilizam as redes sociais, os fóruns da Internet, as videoconferências ou as áudio-conferências não só para continuar o trabalho remunerado ou manter o contato com a família e os amigos, mas também para discutir a situação e fazer perguntas sobre o seu verdadeiro significado. Fisicamente (se estiver à distância social necessária...) o encontro com os moradores do bloco de apartamentos ou bairro também pode se tornar um fórum de discussão, embora não se deva confundir o ritual semanal de aplausos com a verdadeira solidariedade ou grupos locais de ajuda mútua com a luta contra o sistema.[12]

Na França, um slogan que se tornou popular foi "o capitalismo é o vírus, a revolução é a vacina". Por outras palavras, as minorias da classe estão levando a discussão e a reflexão à sua conclusão lógica. A "vanguarda" deste processo é formada por aqueles indivíduos, alguns deles muito jovens, que compreenderam claramente que o capitalismo está totalmente falido e que a única alternativa para a humanidade é a revolução proletária mundial, isto é, por aqueles que estão avançando para posições comunistas e, portanto, para a tradição da esquerda comunista. A emergência desta geração de pessoas "em busca" do comunismo coloca uma imensa responsabilidade sobre grupos existentes da Esquerda Comunista no processo de construção de uma organização comunista que poderá desempenhar um papel nas futuras lutas do proletariado.

As lutas defensivas a que assistimos na primeira fase da pandemia, o processo de reflexão que teve lugar durante os confinamentos, são indícios do potencial intacto da luta de classes, que também pode ser "bloqueada" durante um período considerável, mas que, a longo prazo, poderá amadurecer ao ponto de poder se expressar abertamente. A impossibilidade de reintegrar um grande número dos demitidos no auge da crise, a necessidade de a burguesia recuperar os "presentes" que foi repartindo no interesse da estabilidade social, a nova ronda de austeridade que a classe dominante será obrigada a impor: esta será sem dúvida a realidade da próxima etapa da Covid-19, que é simultaneamente uma história da crise econômica histórica do capitalismo e da sua progressiva decomposição. É também uma história de tensões imperialistas exacerbadas, uma vez que várias potências procuram utilizar a crise da Covid-19 para perturbar ainda mais a ordem mundial imperialista: em particular, pode haver uma nova ofensiva do capitalismo chinês destinada a desafiar os Estados Unidos como a principal potência mundial. Em todo o caso, as tentativas de Trump de culpar a China pela pandemia já anunciam uma atitude cada vez mais agressiva por parte dos EUA.  Os trabalhadores serão chamados a fazer sacrifícios para "reconstruir" o mundo pós-Covid e para defender a economia nacional contra a ameaça do estrangeiro.

Mais uma vez, temos de nos precaver contra o perigo do imediatismo. Um perigo provável - dada a atual fraqueza da identidade de classe e a crescente miséria que afeta todos os estratos da população mundial - será que a resposta a novos ataques ao nível de vida possa assumir a forma de revoltas interclassistas "populares", em que os trabalhadores não apareçam como uma classe distinta com os seus próprios métodos e exigências, mas sejam diluídos entre uma massa popular amorfa dominada por ideologias alheias, como a pequena burguesia ou, pior ainda, o lúmpen.  Vimos uma onda de revoltas deste tipo antes do confinamento e, mesmo durante o confinamento, elas já reapareceram no Líbano e noutros lugares, salientando o fato de este tipo de reação ser um problema mais agudo nas regiões mais "periféricas" do sistema capitalista[13]. Um recente relatório da ONU advertiu que algumas partes do mundo, especialmente na África e em países devastados pela guerra, como o Iêmen e o Afeganistão, vão passar uma fome de "proporções bíblicas" como resultado da crise pandêmica, o que também tenderá a aumentar o perigo de reações desesperadas que não oferecem perspectivas[14].

Sabemos também que o desemprego em massa pode, num período inicial, tender a paralisar a classe operária[15]: a burguesia pode utilizá-lo para disciplinar os trabalhadores e criar divisões entre empregados e desempregados e, em qualquer caso, é intrinsecamente mais difícil lutar contra o fechamento de empresas do que resistir a ataques a salários e condições. E sabemos que, em períodos de crise econômica aberta, a burguesia procurará sempre álibis para esconder a decadência e a barbárie do sistema capitalista: no início dos anos 70, foi a "crise do petróleo"; em 2008, "os banqueiros gananciosos". Hoje o bode expiatório será o vírus. Mas estas desculpas são necessárias precisamente porque a crise econômica, e em particular o desemprego em massa, é uma acusação ao modo de produção capitalista, cujas leis acabam por impedi-lo de alimentar os seus escravos.

Mais do que nunca, os revolucionários devem ser pacientes.  Como diz o Manifesto Comunista, os comunistas distinguem-se pela sua capacidade de compreender as "condições, o curso e dos fins gerais do movimento proletário" [ed. Boitempop. 51]. As lutas massivas da nossa classe, a sua generalização e politização, é um processo que se desenvolve durante um longo período e passa por muitos avanços e recuos. Mas não estamos apenas nos prestando à satisfação de um desejo quando insistimos, como fazemos no final do nosso folheto internacional sobre a pandemia, que "o futuro pertence à luta de classes"[16].

Amos


[6] Ver as lutas no Peru (Covid 19 en Perú: muerte, miseria y crisis) e também na Bélgica e França.

[7] Este refrão tem sido de certa forma minado por provas crescentes de que os indivíduos mais pobres da sociedade, incluindo as minorias étnicas, estão sendo muito mais afetados pelo vírus.

[8] Na Espanha, é de se salientar que, nas primeiras semanas do confinamento, o PP e Ciudadanos, juntamente com o PNV e no início ERC, apoiaram o governo de esquerda sem quaisquer fissuras. Apenas Vox e os independentistas de Puigdemont e Torra desempenharam o papel de "vilões".

[10] Essas teorias de conspiração, inclusive a religiosa, também têm exercido bastante influência em Bolsonaro e seus seguidores.

[12] No nosso último congresso internacional examinamos as dificuldades da classe operária em desenvolver a sua luta. Ver documentos do 23º Congresso Internacional da CCI  

[14] Ver vários artigos ou textos de debate proletário no nosso dossiê especial COVID19: o verdadeiro assassino é o capitalismo

[15] Nas Teses sobre a Decomposição advertimos que "Um dos fatores que agrava esta situação é evidentemente o fato de uma grande parte da jovem geração de trabalhadores estar recebendo o chicote do desemprego na cara, mesmo antes de muitos terem tido a oportunidade, nos locais de produção, juntamente com os seus camaradas de trabalho e luta, de experimentar uma vida coletiva de classe". Com efeito, o desemprego, resultado direto da crise econômica, embora não seja em si mesmo expressão de decomposição, acaba por ter, nesta fase particular de decadência, consequências que o transformam num aspecto singular da decomposição. Embora em geral sirva para expor a incapacidade do capitalismo em assegurar um futuro para os proletários, é também, hoje, um poderoso fator de "lumpenização" de certos setores da classe operária, especialmente entre os mais jovens, o que enfraquece as suas capacidades políticas atuais e futuras dela”

[16] COVID 19: Bárbarie capitalista generalizada ou revolução proletária mundial

Rubric: 

Pandemia de Coronavírus