Protestos contra os lockdowns: a armadilha das lutas “parciais”

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  Nos últimos meses, em reuniões públicas e fóruns on-line, houveram críticas e interpretações equivocadas das nossas posições a respeito das medidas estatais em resposta à pandemia de Covid-19: lockdowns, toques de recolher, proibição de aglomerações em locais públicos e vacinação obrigatória para trabalhadores de serviços essenciais. Alguns críticos até concluíram que a CCI, na verdade, apoia essas medidas do Estado. O objetivo deste artigo é responder a essas críticas, tanto reafirmando nossa posição sobre os atuais protestos contra os lockdowns quanto explicando a diferença entre as chamadas “medidas de proteção” do Estado burguês e as precauções que recomendamos aos militantes comunistas e à classe trabalhadora.

No ano passado, a política do Estado burguês, em sua tentativa de conter a extensão da pandemia, provocou diferentes campanhas e protestos. Algumas dessas campanhas defendiam a suspensão de todas essas medidas, outras defendiam medidas mais humanas e outras até defendiam medidas mais restritivas.[1]

A primeira campanha é bem conhecida. Sob slogans como “contra a violação dos nossos direitos”, “queremos nossa liberdade de volta”, “tirania versus liberdade” e “abaixo as máscaras”, várias manifestações aconteceram no mês passado, em vários países, para protestar contra os lockdowns. No âmbito do chamado “Comício Mundial pela Liberdade”, o fim de semana de 20 e 21 de março de 2021 presenciou protestos em uns 40 países dentro e fora da Europa.[2] Esses comícios foram frequentemente caracterizados por uma fúria antielite e, em certos casos, até levaram ao vandalismo, revoltas niilistas, massivamente violando as restrições impostas. Na Holanda, até houveram ataques a postos de testagem e hospitais.

Uma segunda campanha aconteceu no Canadá francês, onde manifestações estão organizadas sob o slogan “Juntos por medidas sanitárias e solidárias - Não ao toque de recolher”. Em um comunicado, os organizadores denunciam o toque de recolher do governo como “um ataque à nossa liberdade e a nossas relações e aspirações de solidariedade”. Eles pensam que o toque de recolher marginaliza ainda mais as comunidades vulneráveis, como sem-tetos, profissionais do sexo, usuários de drogas e trabalhadores imigrantes sem visto. Os manifestantes, que rejeitam uma solução policial para a crise sanitária, “rejeitam a dicotomia entre a obediência cega ao governo e as manipulações tolas de teorias conspiratórias”.[3]

Em seu combate político contra a política do Estado em resposta à pandemia, a CCI, em vários artigos, denunciou a hipocrisia da burguesia e sua completa negligência com a saúde da população. Apesar dos lockdowns, a burguesia “continua sua negligência, que se mascara tentando nos fazer sentir culpados, nos fazendo carregar a responsabilidade pelas infecções, pela exaustão dos trabalhadores da saúde que são vítimas do ‘comportamento irresponsável’ dos indivíduos (…)”. O Estado impõe toques de recolher logo a partir das 18h ou lockdowns nos fins de semana, enquanto é abertamente permitido ao proletariado se infectar nos locais de trabalho ou no transporte público.”[4]

Uma organização do meio político proletário vai ainda mais adiante e nos diz que a motivação essencial para os lockdowns é preparar futuros ataque econômicos. “O proletariado está confinado, não para proteger sua saúde, mas para impor uma disciplina que será necessária em face das próximas medidas econômicas e sociais que estão sendo preparadas”.[5] Mas mesmo que não hesite em tirar proveito da situação e não perca a oportunidade para se preparar para confrontos futuros contra a classe trabalhadora, o principal objetivo dos lockdowns não é disciplinar o proletariado, mas impedir a disseminação do vírus, que no momento constitui uma grande ameaça à economia e à coesão social.

O perigo das lutas “parciais”

No ano passado, a CCI não apoiou nenhum dos protestos contra a obrigatoriedade dos lockdowns estabelecidos pelo Estado em uma tentativa de barrar a disseminação desenfreada da Covid-19. A razão para isso é que esses protestos permanecem completamente na superfície e não tocam nas raízes do modo de produção capitalista, que trouxe a existência do Estado burguês com a função de defender o sistema capitalista. A CCI se opõe aos objetivos, métodos e slogans dos protestos atuais que, por mais que às vezes pareçam radicais, nos fazem um chamado pela defesa de alguns “direitos” como cidadãos da sociedade capitalista. Tal posição é tema de um ponto especial em nossa plataforma.

“É um erro pensar que é possível contribuir para a revolução organizando lutas específicas em torno de problemas parciais, tais como racismo, a posição das mulheres, poluição, sexualidade e outros aspectos da vida cotidiana. A luta contra os fundamentos econômicos do sistema contém dentro de si a luta contra todos os aspectos da superestrutura da sociedade capitalista, mas o contrário não é verdade.”[6] Essas lutas “parciais” são incapazes de atacar a raiz do problema, ou seja, a exploração de uma classe sobre outra na forma da escravidão assalariada capitalista.[7]

A classe trabalhadora não tem nada a ganhar reivindicando “nossa liberdade enquanto cidadãos”, que supostamente nos foi tirada pelas restrições “autoritárias” do Estado burguês. Também não tem nada a ganhar exigindo “justiça social” e “nossos direitos”. Tais protestos não oferecem uma possibilidade de solução, que somente ganha impulso através da luta na perspectiva do proletariado. Ao contrário, “Por seu próprio conteúdo de lutas ‘parciais’, longe de reforçar a autonomia vital do proletariado, tende à direção oposta ao diluí-lo em uma massa de categorias confusas (raças, sexos, juventude, etc.) que pode apenas ser totalmente impotente perante a história”.[8]

As lutas “parciais” aumentam a divisão e a confusão dentro da classe, logo representa uma armadilha perigosa para sua luta. Elas vão levar inevitavelmente ao beco sem saída do apelo por mais “democracia” e uma sociedade mais “humana”, que é, e continuará sendo, uma sociedade de classes, baseada na repressão e na exploração. Com base na experiência, sabemos que “os governos e partidos políticos burgueses aprenderam a se apropriar delas e usá-las de forma eficiente em prol da preservação da ordem social”.[9]

Nos últimos anos, os exemplo mais importantes de “apropriação” de tais protestos pela burguesia foram o “Youth4Climate” (Juventude pelo Clima) e o Black Lives Matter (BLM), que atraíram muitos jovens, frequentemente jovens proletários.

A CCI não apoiou a reivindicação, levantada durante os protestos do BLM, de que a polícia deveria ser “desfinanciada”. Como já explicamos em um artigo anterior, exigir o corte do financiamento da polícia, ou até sua completa abolição, é, por um lado, “completamente irrealista dentro desta sociedade: isso corresponde ao Estado capitalista abolir a si próprio. Por outro lado, isso dissemina a ilusão da possibilidade de reformar o Estado existente segundo os interesses dos explorados e oprimidos - quando sua função própria é mantê-los sob controle segundo os interesses da classe dominante”.[10]

O mesmo se aplica às reivindicações pela suspensão dos lockdowns. Concordamos que essas medidas são contraditórias e duplamente coercitivas, já que confinam os trabalhadores no seu tempo livre, mas obriga muitos deles a ir trabalhar, considerando que obviamente a maioria das infecções ocorre no local de trabalho. Mesmo se não disséssemos que elas têm essencialmente o objetivo de controlar a classe trabalhadora, como afirma Le Prolétaire, concordamos que, apesar das medidas, a classe explorada é a principal vítima da pandemia. Entretanto, não apoiamos a reivindicação pelo fim dessas medidas. Reivindicar a suspensão dos lockdowns não vai contribuir para o desenvolvimento da consciência de classe, da combatividade e da solidariedade do proletariado. Ao contrário, isso apenas levanta barreiras para tal desenvolvimento e não possui outra perspectiva senão o reforço das ilusões nas leis burguesas, sejam elas democráticas ou abertamente despóticas.

Além disso, a maioria dos protestos contra o lockdown, com sua reivindicação abertamente contra todas as medidas do Estado para combater a pandemia, não oferecem nenhuma outra perspectiva viável além de uma maior disseminação do vírus, e assim revelam as considerações completamente irracionais por trás desses protestos. Eles frequentemente reivindicam que o vírus é apenas uma farsa, algo com a intenção de iludir ou enganar, mas isso é cada vez mais refutado todos os dias pelas milhões de pessoas mundo afora que já morreram e que ainda vão morrer de Covid-19. Em um artigo publicado recentemente[11], denunciamos as teorias irracionais e ideologias apocalípticas por trás desses protestos e o perigo que elas representam não apenas à saúde das pessoas, mas também para a consciência de classe do proletariado.

O Estado é repressivo por natureza

Desde que Marx escreveu Guerra Civil na França, a posição dos revolucionários sobre o Estado tem sido bem clara: o Estado burguês, enquanto expressão da ditadura da classe dominante, tem que ser destruído no curso da revolução proletária. “Na realidade, de qualquer forma, o Estado não é nada além de uma máquina para a opressão de uma classe sobre outra, tanto numa república democrática quanto numa monarquia.[12] É por isso que a CCI apoia qualquer luta proletária contra os ataques do Estado, como fez, por exemplo, durante as lutas na França em 2006 contra o CPE (Contrato do Primeiro Emprego - uma nova lei feita para aumentar a precarização da força de trabalho, sobretudo dos novos empregados). Nesse caso particular, o movimento estudantil, ameaçando se estender para os setores dos trabalhadores empregados, obrigou o governo a retirar o CPE. Essa foi uma expressão da resistência do proletariado a um ataque direto do Estado burguês, não se preocupando em seguir a via legal ou eleitoral para persuadir o governo a mudar de ideia.

Mas os atuais protestos contra o lockdown ocorrem em um terreno completamente burguês e de forma alguma abrem caminho para um movimento que possa realmente desafiar a legitimidade do Estado burguês. Ao contrário, sua alternativa ao lockdown e às medidas similares é simplesmente um chamado por uma política mais liberal, mais “laisser faire”, frequentemente conectada ao jogo eleitoral entre as diferentes frações da burguesia.

Através de sua existência, a CCI tem alertado a classe contra os riscos de ser tragada para dentro do terreno burguês. A fase histórica de decomposição só multiplica esses riscos, sobretudo porque isso indica uma séria perda da identidade de classe, da percepção do proletariado de si mesmo enquanto uma força social distinta, deixando a classe trabalhadora mais vulnerável a ser tragada para dentro de todos os tipos de protestos que a afaste da defesa dos seus próprios interesses e a dilua numa massa vaga de cidadãos ou de incontáveis “identidades” concorrentes. Confrontando os perigos crescentes à luta proletária, e mostrando à classe o caminho para lutar por sua segurança, a tarefa dos revolucionários no momento é reafirmar a solidariedade proletária e a autonomia de classe.

As lutas do ano passado, particularmente no começo da pandemia, mostraram que a classe trabalhadora não restringe sua luta às demandas econômicas. Na primavera de 2020, trabalhadores de vários países entraram em greve, não reivindicando melhores pagamentos, mas melhores medidas de segurança contra o vírus. A história também nos dá vários exemplos de trabalhadores entrando em greve contra a repressão do Estado.[13] E em contraste com os protestos do ano passado, esses trabalhadores não tinham ilusões no Estado burguês e não reivindicaram mudanças legais para tornar o Estado menos “autoritário” e “mais amistoso” para os cidadãos. Durante sua luta contra a repressão estatal, os trabalhadores confiaram completamente na força da sua ação autônoma enquanto classe.

A luta por nossa segurança

Como escrevemos no verão do ano passado, esse senso de responsabilidade do proletariado, que também instiga milhões a seguir as regras do autoisolamento, mostra que a maioria da classe trabalhadora aceita a realidade dessa doença, mesmo em um país como os EUA, que é o ‘centro’ de várias formas de negacionismo da pandemia”. Desde a publicação desse artigo, a classe continuou em luta, muito embora num menor nível. Mas em quase todas as suas lutas foram respeitadas as regras de distanciamento social, além o uso de equipamentos de proteção individual (EPI) nas grandes mobilizações .

Se a CCI não apoia as medidas do Estado burguês, isso não significa negligenciar completamente as precauções necessárias para proteger os militantes contra o perigo do vírus. Isso segue o exemplo da classe trabalhadora. A política da CCI é escutar a ciência, e ela nos diz que, enquanto não houver outra solução, o distanciamento social (incluindo o EPI) é a melhor proteção contra a infecção por Covid-19.

Se a CCI respeita essa orientação científica, tal não é engolida cegamente. Ao contrário, precisa ser sempre avaliada criticamente. Enquanto revolucionários, desconfiamos de qualquer forma de ciência aplicada sob as condições capitalistas, já que sabemos como ela é utilizada. O exemplo mais notável é, sem dúvida, a indústria de guerra. Mas até a ciência usada para fins comerciais é algo que deve ser abordado com a cautela necessária. O primeiro e principal objetivo da indústria farmacêutica é gerar lucro, mesmo que a custo da saúde da população. Mas isso não é motivo para desconfiar da ciência enquanto tal.

A pandemia de Covid-19 confronta os revolucionários com uma situação extraordinária. O Estado burguês é um inimigo do movimento comunista, e o vírus é um inimigo da vida humana. Mas se a CCI segue as orientações de distanciamento social e o uso de EPI, isso não significa que apoiamos o Estado e a proibição dos protestos, que será inevitavelmente utilizada contra qualquer tentativa dos trabalhadores de se unificar em uma base classista, seja para exigir medidas de segurança adequadas no trabalho, seja para lutar contra as reduções de salário e demissões que vão acompanhar o lockdown e seus efeitos. A CCI está plenamente consciente que a única alternativa às medidas do Estado burguês é a luta por uma sociedade fundamentalmente nova, a luta pela ditadura do proletariado e pela eliminação da exploração capitalista.

Dennis, 13 de maio de 2021


[1] Além das duas campanhas mencionadas no artigo, há também uma terceira campanha chamada “ZeroCovid”, apoiada por diferentes grupos esquerdistas extremistas, que clamam pelo fechamento de “todos os locais de trabalho não essenciais até que a transmissão comunitária esteja próxima de zero” (O governo britânico busca novas baixas na Covid – Zero Covid; 13 de janeiro de 2021). Um fechamento assim não deveria ser feito “de cima” pelo Estado burguês, mas “de baixo” e não apenas contra a pandemia, mas também contra as medidas do capital e seus governos. Essa não é uma estratégia autoritária, mas emancipatória, assim foi dito

[2] No título A ditadura vai cair!”, a Federação Anarquista também fez propaganda dessas manifestações. Esse grupo anarquista as chamou de “jornadas da liberdade”, que, como escreveram, fariam os governantes “estremecerem em suas botas”.

[7] No Le Prolétaire no. 538, (agosto-setembro-outubro 2020) o PCI publicou um artigo Non au couvre-feu ! Non au retour de "l’Etat d’urgence sanitaire" !, que chama os trabalhadores a combater “o estado de saúde de emergência”. Mas desde que essas medidas do governo francês são também um fenômeno da superestrutura do sistema capitalista, essa organização política do proletariado tende a cair na armadilha das lutas “parciais” e abrir espaço para a infiltração da ideologia burguesa na forma dos protestos que, por definição, não são capazes de colocar em questão as raízes da repressão estatal.

[9] Ibid

[13] Alguns dos exemplos mais notórios de resistência dos trabalhadores contra a repressão estatal:

 

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