A "cultura do debate" não é uma novidade, nem para o movimento operário, nem para a CCI. Entretanto, a evolução histórica obriga a nossa organização – desde a mudança de século - a voltar a essa questão e examiná-la com maior atenção. Duas evoluções principais nos obrigaram a fazê-lo: a primeira é a aparição de uma nova geração de revolucionários e, a segunda, a crise interna que atravessamos em princípios deste novo século.
Foi, acima de tudo, o contato com uma nova geração de revolucionários o que obrigou a CCI a desenvolver e cultivar mais conscientemente sua abertura para o exterior e sua capacidade de diálogo político.
Cada geração é um elo na história da humanidade. Cada uma delas se defronta com três tarefas fundamentais: recolher a herança coletiva da precedente, enriquecer essa herança sobre a base de sua própria experiência, transmiti-la à geração seguinte para que esta vá mais longe que a anterior.
Não é nada fácil levar a cabo essas tarefas, é um difícil desafio. E isto é igualmente válido para o movimento operário. A velha geração deve entregar sua experiência. Mas também leva em si as feridas e os traumatismos de suas lutas; conheceu derrotas, decepções, teve que encarar e tomar consciência de que uma vida não é frequentemente suficiente para construir aquisições duradouras da luta coletiva [1]. Isto requer o ímpeto e a energia da geração seguinte, mas também as novas questões que são colocadas a ela e sua capacidade para ver o mundo com novos olhos.
Mas inclusive se as gerações necessitam-se mutuamente, sua capacidade para forjar a unidade necessária entre si não é algo dado automaticamente. Quanto mais a sociedade se afasta de uma economia tradicional natural, quanto mais constante e rapidamente o capitalismo "revoluciona" as forças produtivas e a toda sociedade, mais difere a experiência de uma geração e a da seguinte. O capitalismo, sistema da concorrência por excelência, também instiga as gerações a combater uma contra a outra na luta de todos contra todos.
Nesse marco, nossa organização começou a se preparar para a tarefa de forjar esse vínculo entre gerações. Mas o que deu à cultura do debate um significado especial para nós mais que essa preparação foi o encontro com a nova geração na vida real. Encontramo-nos diante de uma geração que dá a esta questão muito mais importância que a que lhe deu a geração de "1968". O primeiro indício de importância dessa mudança, ao nível da classe operária em seu conjunto, deu-nos o movimento massivo de estudantes na França contra a "precarização" do emprego na primavera de 2006. Foi impressionante a insistência, especialmente nas assembléias gerais, em que o debate fora o mais livre e amplo possível, ao contrário do movimento estudantil do final dos anos 1960, marcado frequentemente pela incapacidade de levar adiante um diálogo político. A diferença procede acima de tudo do fato do meio estudantil estar hoje muito mais proletarizado que o de 40 anos atrás. O debate intenso, em uma escala mais ampla, sempre foi uma marca importante dos movimentos proletários de massas e foi também característico das assembléias operárias da França de 1968 ou da Itália de 1969. Mas o novo de 2006 era a mentalidade aberta da juventude em luta, para as gerações anteriores e sua avidez por aprender da experiência destas. Esta atitude é muito diferente da do movimento estudantil do final dos anos 60, especialmente na Alemanha (possivelmente a expressão mais caricata da mentalidade de então), onde um dos slogans era: "Os maiores de 30 anos aos campos de concentração!" [2] Essa ideia se concretizava na prática com as vaias mútuas, a interrupção violenta das reuniões "rivais", etc. A ruptura da continuidade entre as gerações da classe operária é uma das raízes do problema, pois as relações entre gerações são o terreno privilegiado, sempre, para forjar a atitude para o diálogo. Os militantes de 1968 consideravam a geração de seus pais ou como uma geração que se "vendeu" ao capitalismo, ou (na Alemanha ou Itália, por exemplo) como uma geração de fascistas e criminosos de guerra. Para os operários, que tinham suportado a horrível exploração da fase que seguiu a 1945 com a esperança de que seus filhos vivessem melhor que eles, era uma decepção amarga ouvir como seus filhos acusavam-nos de "parasitas" que viviam da exploração do Terceiro Mundo. Mas também é verdade que a geração dos pais daquela época tinha perdido, ou não tinha conseguido adquirir, a aptidão para o diálogo. Aquela geração foi brutalmente mortificada e traumatizada pela Segunda Guerra Mundial e a Guerra fria, pela contrarrevolução fascista, stalinista e socialdemocrata.
Ao contrário, 2006 na França anunciou algo novo e muito fecundo [3]. Porém, já há alguns anos antes, essa preocupação da nova geração vinha anunciada por minorias revolucionárias da classe operária. Essas minorias, assim que apareceram na arena da vida política, já chegaram armadas com suas próprias críticas ao sectarismo e ao rechaço do debate. Entre as primeiras exigências que essas minorias expressaram estava a necessidade de debater, não como um luxo, mas sim como requisito imperioso, a necessidade dos que participam levem a sério os outros e aprendam a escutar; a necessidade, também, de que na discussão as armas sejam os argumentos e não a força bruta, nem apelar à moral ou à autoridade dos "teóricos". A respeito do meio proletário internacionalista, aqueles camaradas criticaram, em geral e com toda a razão, a ausência de debate fraterno entre os grupos existentes, o que lhes chocou enormemente. De entrada rechaçaram o conceito de que o marxismo seria um dogma que a nova geração deveria adotar sem espírito crítico [4].
A nós, surpreendeu-nos a reação da nova geração para com a CCI. Os novos camaradas que iam às nossas reuniões públicas, os contatos do mundo inteiro que iniciaram uma correspondência conosco, os diferentes grupos e círculos políticos com os quais discutimos, disseram-nos repetidamente que tinham comprovado a natureza proletária da CCI tanto em nosso comportamento, especialmente em nosso modo de levar as discussões, como em nossas posições programáticas.
Qual é a origem dessa preocupação na nova geração? A nosso parecer, é o resultado da crise histórica do capitalismo, hoje muito mais grave e mais profunda que em 1968. Esta situação exige a crítica mais radical possível do capitalismo, a necessidade de ir à raiz mais profunda dos problemas. Um dos efeitos mais corrosivos do individualismo burguês é a maneira com que destrói a capacidade de discutir e, especialmente, de se escutar e aprender uns dos outros. O diálogo é substituído pelo "falatório", onde quem ganha é o que mais grita (como nas campanhas eleitorais burguesas). A cultura do debate é o meio principal de desenvolver, graças à linguagem humana, a consciência, arma principal do combate da única classe portadora de um futuro para a humanidade. Para o proletariado é o único meio de superar seu isolamento e sua impaciência e de encaminhar-se para a unificação de suas lutas.
Outra preocupação atual se baseia na vontade de superar o pesadelo do stalinismo. Com efeito, muitos militantes que hoje estão em busca de posições internacionalistas procedem de um meio influenciado pelo esquerdismo ou diretamente procedente de suas filas; apresentar caricaturas da ideologia e do comportamento burguês decadentes como se fossem "socialismo" é o objetivo do esquerdismo. Esses militantes tiveram uma educação política que lhes têm feito acreditar que a troca de argumentos é "liberalismo burguês" e que "um bom comunista" é alguém que "fecha o bico" e faz calar sua consciência e suas emoções. Os camaradas que estão hoje decididos a rechaçar os efeitos desse produto moribundo da contrarrevolução compreendem cada dia melhor que, para isso, não só será necessário rechaçar as posições desse produto, mas também sua mentalidade. E assim, contribuirão para restabelecer uma tradição do movimento operário que podia ter acabado por desaparecer por causa da ruptura orgânica provocada pela contrarrevolução [5].
A segunda razão essencial que levou a CCI a reavaliar a questão da cultura do debate foi nossa própria crise interna, no início deste século, caracterizada pelo comportamento mais repulsivo nunca antes visto em nossas filas. Pela primeira vez desde sua fundação, a CCI teve que excluir não a um, mas vários de seus membros [6]. No princípio dessa crise interna, apareceram dificuldades em nossa seção na França, expressando-se divergências de opinião sobre nossos princípios organizativos de centralização. Não há razão para que divergências como essas, por si mesmas, causem uma crise organizativa. E não era essa a razão. O que provocou a crise foi a negativa em debater e, sobretudo, as manobras para isolar e caluniar - ou seja, atacar pessoalmente - os militantes com quem não se estava de acordo.
Depois dessa crise, nossa organização se comprometeu a ir ao fundo das coisas, às raízes mais profundas da história de suas crises e cisões. Já publicamos contribuições sobre alguns aspectos [7]. Uma das conclusões a que chegamos é que certa tendência ao monolitismo tinha desempenhado um papel de primeira importância em todas as cisões que vivemos. Assim que apareciam divergências havia alguns militantes que afirmavam que era impossível trabalhar com outros, que a CCI se tornou uma organização stalinista, ou que já estava degenerando. Essas crises surgiam, assim, diante de algumas divergências que, na maioria das vezes, podiam perfeitamente existir no seio de uma organização não monolítica e, de qualquer maneira, deviam ser discutidas e esclarecidas antes que fosse necessária uma cisão.
A repetição de procedimentos monolíticos é surpreendente em uma organização que se apoia especificamente nas tradições da Fração italiana, a qual sempre defendeu que, fossem quais fossem as divergências sobre os princípios fundamentais, o esclarecimento mais profundo e coletivo devia preceder qualquer separação organizativa.
A CCI é a única corrente da Esquerda comunista de hoje que se situa especificamente na tradição organizativa da Fração italiana (Bilan) e da Esquerda comunista da França (GCF). Contrariamente aos grupos procedentes do Partido Comunista Internacionalista (PCInt) fundado na Itália no fim da Segunda Guerra Mundial, a Fração italiana reconheceu o caráter profundamente proletário das demais correntes internacionais da Esquerda comunista que surgiram em oposição à contrarrevolução stalinista, especialmente as Esquerdas alemã e holandesa. Nunca rechaçou essas correntes como "anarco-espontaneístas" ou "sindicalistas revolucionários", mas aprendeu delas tudo o que pôde. De fato, a crítica principal que a Fração italiana fez contra o que acabaria sendo a corrente "conselhista", era o sectarismo expresso no rechaço desta às contribuições da Segunda Internacional e do bolchevismo em particular [8]. E foi desta forma que a Fração italiana manteve, em plena contrarrevolução, a compreensão marxista segundo a qual a consciência de classe se desenvolve coletivamente e nenhum partido, como também nenhuma tradição, podem proclamar a posse de seu monopólio. Disso se deduz que a consciência não pode se desenvolver sem um debate fraterno, público e internacional [9].
Essa compreensão essencial, e que continua sendo uma parte da herança principal da CCI, não é, entretanto, fácil de ser posta em prática. A cultura do debate só pode se desenvolver na contracorrente da sociedade burguesa. Como a tendência espontânea no capitalismo não é, de forma alguma, o esclarecimiento das ideias, mas a violência, a manipulação e a luta para obter uma maioria (cujo melhor exemplo é o circo eleitoral da democracia burguesa), a infiltração dessa ideologia nas organizações proletárias sempre traz consigo germes de crise e de degeneração. A história do Partido Bolchevique o ilustra perfeitamente. Enquanto o partido foi a ponta de lança da revolução, os debates mais vivos e dinâmicos eram uma de suas forças principais. Em contrapartida, a proibição de verdadeiras frações (depois do massacre de Kronstadt em 1921) foi o indício e fator ativo de sua degeneração. Do mesmo modo, a prática de uma "coexistência pacífica" (ou seja, de total ausência de debate) entre as posições conflitivas, que já tinha sido uma característica no processo de fundação do Partido Comunista Internacionalista, ou a teoria de Bordiga e seus adeptos sobre as virtudes do monolitismo só podem ser entendidas no contexto de derrota histórica do proletariado em meados do século XX.
Se as organizações revolucionárias querem cumprir seu papel fundamental de desenvolvimento e da extensão da consciência de classe, a cultura da discussão coletiva, internacional, fraterna e pública é absolutamente essencial. É certo que isso requer um elevado nível de maturidade política (e, mais em geral, de maturidade humana). A história da CCI exemplifica o fato de que essa maturidade não se adquire em um dia, mas que é o produto do desenvolvimento histórico. A nova geração de hoje tem um papel essencial a desempenhar nesse processo que está amadurecendo.
A capacidade de debater é uma característica essencial do movimento operário. Mas ele não a inventou. Nesse âmbito, como em tantos outros tão fundamentais, a luta pelo socialismo foi capaz de assimilar o melhor das aquisições pela humanidade e adaptá-las a suas próprias necessidades. E, assim, essa luta transformou essas qualidades elevando-as a um nível superior.
Fundamentalmente, a cultura do debate é uma expressão do caráter social da humanidade. É a emanação do uso especificamente humano da linguagem. O uso da linguagem como meio de trocar informações é algo que a humanidade compartilha com muitos animais. O que a distingue do resto da natureza, nesse plano, é sua capacidade de desenvolver e trocar argumentos (vinculada ao desenvolvimento da lógica e da ciência) e alcançar o conhecimento dos outros (desenvolvvimento da empatia, vinculada, entre outras coisas, ao desenvolvimento da arte).
Consequentemente, essa qualidade não é nova, pelo contrário. É anterior à sociedade de classes e, sem dúvida, desempenhou um papel decisivo no desenvolvimento da espécie humana. Engels, por exemplo, menciona o papel das assembléias gerais entre os gregos na época de Homero, nas tribos germânicas ou entre os iroqueses da América do Norte, fazendo um elogio especial à cultura do debate destes [10]. Infelizmente, apesar dos trabalhos de Morgan nessa época e de seus colegas do século XIX e de seus sucessores, não possuímos dados suficientes sobre os primeiros passos, possivelmente os mais decisivos, nesse âmbito.
O que sabemos, em compensação, é que a filosofia e os primórdios do pensamento científico começaram a prosperar ali onde a mitologia e o realismo ingênuo - par antigo ao mesmo tempo contraditório e inseparável - foram questionados. Esses dois modos de compreensão são prisioneiros da incapacidade de compreender mais profundamente a experiência imediata. Os pensamentos que os primeiros homens formaram apoiando-se em sua experiência prática eram necessariamente religiosos, pelo fato da sua própria natureza. "A grande questão fundamental de toda filosofia, em particular da filosofia moderna, é a da relação entre o pensamento e o ser. Desde os remotíssimos tempos em que o homem, mergulhado na mais completa ignorância sobre seu próprio organismo, e excitado pelas aparições que sobrevinham em seus sonhos, chegou à ideia de que seus pensamentos e suas sensações não eram funções de seu corpo - e sim de uma alma especial que morava nesse corpo e o abandonava na hora da morte; desde essa época, o homem teve forçosamente que refletir sobre as relações dessa alma com o mundo exterior. Se, no momento da morte, ela se separava do corpo e continuava a existir, não havia razão alguma para atribuir-lhe também uma morte separada. Surgiu assim a ideia da imortalidade da alma: uma ideia que, nessa época de desenvolvimento, não aparecia absolutamente como um consolo, mas como uma fatalidade contra a qual nada se podia fazer, e não raro, como entre os gregos, como uma verdadeira desgraça." [11].
Foi no marco de um realismo ingênuo em que se deram os primeiros passos de um desenvolvimento muito lento da cultura e das forças produtivas. Por sua vez, a tarefa do pensamento mágico, até contendo certo grau de sabedoria psicológica, era dar um sentido ao inexplicável e, portanto, conter os medos. Ambos foram contribuições importantes no avanço do gênero humano. A ideia segundo a qual o realismo ingênuo teria uma afinidade particular com a filosofia materialista, ou que esta teria se desenvolvido diretamente a partir daquele, é uma ideia sem base alguma.
A religião, como diz Engels, nasceu não só de uma visão mágica do mundo, mas também a partir do realismo ingênuo. Suas primeiras generalizações sobre o mundo, frequentemente audazes, têm necessariamente um caráter que lhe dá autoridade.
As primeiras comunidades agrárias, por exemplo, compreenderam rapidamente que dependiam da chuva, mas não podiam compreender minimamente as condições que a originavam. A invenção de um deus da chuva foi um ato criador para tranquilizar-se, dando a impressão de que é possível, mediante oferenda ou rezas, influir no curso da natureza. O Homo sapiens é a espécie que assegurou sua sobrevivência mediante o desenvolvimento da consciência. E ela se vê diante de um problema sem precedentes: a paralisia que frequentemente provoca o medo do desconhecido. As explicações do desconhecido não devem permitir a menor dúvida. Dessa necessidade, e como expressões mais desenvolvidas, apareceram as religiões reveladas. A base emocional dessa visão do mundo é a crença e não o conhecimento.
O realismo ingênuo não é mais que a outra face da mesma moeda, uma espécie de "divisão elementar do trabalho" mental. Tudo o que não se pode explicar em um sentido prático imediato, entra necessariamente no âmbito do misticismo. Além disso, a compreensão prática está também apoiada em uma visão religiosa, a visão animista [13] em sua origem. Nesta visão, o mundo inteiro se faz fetiche. Inclusive as técnicas que os seres humanos podem, conscientemente, produzir e reproduzir parecem se realizar graças à ajuda de forças personalizadas que existem independentemente de nossa vontade.
É evidente que em um mundo assim havia uma possibilidade muito limitada para o debate no sentido moderno da palavra. Há 2500 anos, uma nova qualidade começou a afirmar-se com mais força, pondo imediata e diretamente em dúvida o par religião e "senso comum". Desenvolveu-se a partir do antigo modo de pensar tradicional, no sentido de que este se converteu em seu contrário. Assim, o primeiro modo de pensamento dialético que precedeu à sociedade de classes (que na China, por exemplo, manifestou-se na ideia da polaridade entre o yin e o yang, o princípio masculino e o princípio feminino) transformou-se em pensamento crítico, apoiado nos componentes essenciais da ciência, da filosofia e do materialismo. Mas tudo isto era inconcebível sem que aparecesse o que nós chamamos cultura do debate. A palavra grega dialética significa, de fato, diálogo ou debate.
O que foi que permitiu esse novo procedimento? De maneira geral, foi a extensão do âmbito das relações sociais e do conhecimento. Em um nível mais global, foi a natureza cada vez mais complexa do mundo social. Como Engels gostava de repetir, o senso comum é um moço forte e vigoroso enquanto está em sua casa entre quatro paredes, mas conhece uma quantidade de apuros assim que sai pelo vasto mundo. E apareceram também os limites da religião em sua capacidade para apaziguar o medo. Na realidade, não havia eliminado o medo, apenas o havia atirado para o exterior. Mediante o mecanismo religioso, a humanidade tentou encarar o terror que a atormentaria em uma época em que não tinha outros meios de autodefesa. Mas desse modo, a humanidade transformou também seu próprio medo em uma força suplementar que a dominava.
"Explicar" o que ainda é inexplicável significa renunciar a uma investigação verdadeira. É daí que surge o conflito entre religião e ciência ou, como dizia Spinoza, entre a submissão e a investigação. No princípio, os filósofos gregos se opuseram à religião. Tales de Mileto, primeiro filósofo conhecido, já tinha rompido com a visão mística do mundo. Anaximandro, que lhe sucedeu, pedia que se explicasse a natureza a partir dela mesma.
E o pensamento grego foi também uma declaração de guerra contra o realismo ingênuo. Heráclito explicou que a essência das coisas não está escrita em cima delas. "A natureza gosta de se ocultar", dizia ele, ou, como dizia Marx: "toda ciência seria supérflua se a essência das coisas e sua forma fenomênica coincidissem diretamente." [14].
O novo método colocava em dúvida tanto a crença como também os preconceitos e a tradição que são o credo da vida cotidiana (em alemão, por exemplo, as duas palavras estão relacionadas: Glaube = crença e Aberglaube = superstição). Opõe a elas a teoria e a dialética.
O desenvolvimento das relações sociais era, evidentemente, o resultado do desenvolvimento das forças produtivas. Apareceram, pois, ao mesmo tempo que o problema - a inadequação dos modos de pensar existentes - os meios para resolvê-lo. Acima de tudo se desenvolveu a auto-confiança, especialmente, na potência do espírito humano. A ciência só pode se desenvolver quando existe a capacidade e a vontade de aceitar a existência da dúvida e da incerteza. Contrariamente à autoridade da religião e da tradição, a verdade da ciência não é absoluta, mas relativa. E assim surgem não só a possibilidade, mas também a necessidade de trocar opiniões.
Está claro que reivindicar a autoridade do conhecimento podia se apresentar somente se as forças produtivas (no sentido cultural mais amplo) tivessem alcançado certo grau de desenvolvimento. Não podia nem ao menos ser imaginado, sem um desenvolvimento correspondente das artes, da educação, da literatura, da observação da natureza, da linguagem. E isto vai paralelamente com o aparecimento, em certa fase da história, de uma sociedade de classes cuja camada dirigente separou-se da produção material. Mas esses desenvolvimentos não fizeram surgir automaticamente um método novo e independente. Nem os egípcios, nem os babilônios, apesar dos progressos científicos que aportaram à humanidade, nem os fenícios, os primeiros a desenvolver um alfabeto moderno, foram tão longe como os gregos por esse caminho.
Na Grécia, foi o desenvolvimento da escravidão o que permitiu a emergência de uma classe de cidadãos livres ao lado dos sacerdotes. Isso assentou as bases materiais que fundaram a religião (assim, podemos entender melhor a expressão de Engels no Anti-Dühring: sem a escravidão da antiguidade, não haveria socialismo moderno). Na Índia, na mesma época, o desenvolvimento da filosofia, do materialismo (chamado Lokayata) e do estudo da natureza coincidem com a formação e o desenvolvimento de uma aristocracia guerreira que se opõe à teocracia brâmane e que se apoiava, em parte, na escravidão agrícola. Como na Grécia, onde a luta de Heráclito contra a religião, contra a imortalidade e contra a condenação dos prazeres carnais estava dirigida ao mesmo tempo contra os preconceitos dos tiranos e das classes oprimidas, os novos procedimentos na Índia eram praticados por uma aristocracia. O budismo e o jainismo, surgidos na mesma época, estavam muito mais estendidos entre a população trabalhadora, mas se mantinham em um marco religioso, com sua ideia sobre a reencarnação da alma, típica da sociedade de castas que queriam se opor (e que se encontra também no Egito).
Na China, por outro lado, onde havia um desenvolvimento da ciência e uma espécie de materialismo rudimentar (por exemplo, na Lógica do Mo Ti), esse desenvolvimento foi limitado porque não existia uma casta dirigente sacerdotal contra a qual poderia terse organizado a revolta. O país estava dirigido por uma burocracia militar formada graças à luta contra os bárbaros que o rodeavam [16].
Na Grécia, existia um fator suplementar e, em muitos aspectos, decisivo, que também desempenhou um papel importante na Índia: um desenvolvimento mais avançado da produção de mercadorias. A filosofia grega não teve início na própria Grécia, mas nas colônias portuárias da Ásia menor. Produzir mercadorias implica intercâmbio não só de bens, mas também da experiência contida em sua produção. Essa produção acelera a história, favorecendo uma expressão superior do pensamento dialético. Permite um grau de individualização sem o qual o intercâmbio de ideias a um nível tão elevado é impossível. E começa a romper com o isolamento no qual até então se movia a evolução social. A unidade econômica fundamental de todas as sociedades agrícolas apoiadas na economia natural era a aldeia ou, no melhor dos casos, a região autárquica. Mas as primeiras sociedades de exploração apoiadas em uma cooperação mais ampla, frequentemente para desenvolver a irrigação, eram sempre basicamente agrícolas. Em contrapartida, o comércio e a navegação abriram a sociedade grega ao mundo. Reproduziu, mas a um nível superior, a atitude de conquista e descobrimento do mundo das comunidades nômades. A história mostra que, em certa fase de seu desenvolvimento, o aparecimento do debate público foi um fenômeno indispensável para um desenvolvimento internacional (ainda que estivesse concentrado em uma região) e, nesse sentido, tinha um caráter "internacionalista". Diógenes e os Cínicos estavam contra a distinção entre helenos e bárbaros e se declaravam cidadãos do mundo. Demócrito foi a julgamento sendo acusado de ter dilapidado uma herança com a qual se pagou viagens educativas pelo Egito, Babilônia, Pérsia e Índia. Defendeu-se lendo extratos de seus escritos, fruto de suas viagens; foi declarado inocente.
O debate nasceu respondendo a uma necessidade material. Na Grécia foi se desenvolvendo com a comparação entre as diferentes fontes do conhecimento. Comparam-se diferentes modos de pensar, diferentes modos de investigar e seus resultados, os métodos de produção, os costumes e as tradições. Descobre-se que se contradizem, confirmam-se e se completam. Combatem-se ou se completam ou ambas as coisas. Através da comparação, as verdades absolutas tornam-se relativas.
Esses debates são públicos. Ocorrem em portos, praças de mercado (os fóruns), escolas, academias. E, por escrito, enchem as bibliotecas e se estendem por todo mundo conhecido.
Sócrates - o filósofo que passou seu tempo debatendo nas praças dos mercados - encarna a essência dessa evolução. Sua preocupação principal - como alcançar um verdadeiro conhecimento da moral - já é um ataque contra a religião e os preconceitos que supõem que a resposta para tudo já existe. Sócrates declarou que o conhecimento era a condição principal para uma ética correta e a ignorância seu pior inimigo. É, pois, o desenvolvimento da consciência, e não o castigo, o que permite o progresso moral, pois a maioria dos humanos não pode ir, durante muito tempo e de maneira deliberada, contra a voz de sua própria consciência.
Mas Sócrates foi mais adiante, pondo as bases teóricas de toda ciência e toda compreensão coletiva: o reconhecimento de que o ponto de partida do conhecimento é a tomada de consciência, ou seja, a necessidade de tornar-se livre dos preconceitos. Isso abre o caminho do essencial: para a busca, para a investigação. Opõe-se vigorosamente às conclusões precipitadas, às opiniões não críticas e satisfeitas de si mesmas, à arrogância e à presunção. Acreditava "na modéstia do não conhecimento" e na paixão que brota do verdadeiro conhecimento, apoiado em uma visão e uma convicção profundas. É o ponto de partida do "diálogo socrático". A verdade é o resultado de uma busca coletiva que consiste no diálogo entre todos os alunos no qual cada um é ao mesmo tempo professor e aluno. O filósofo não é um profeta que anuncia revelações, mas sim alguém que está, junto com outros, em busca da verdade. Isto constitui um novo conceito dos dirigentes: o dirigente é o mais determinado em fazer avançar a o esclarecimento sem perder nunca de vista o objetivo final. O paralelo com a definição do papel dos comunistas na luta de classes que se faz no Manifesto comunista, é surpreendente.
Sócrates era um perito em estimular e dirigir as discussões. Fez evoluir o debate público até níveis da arte ou da ciência. Seu aluno, Platão, desenvolveu o diálogo até níveis que raramente se alcançaram posteriormente.
Na Introdução à Dialética da natureza, Engels fala de três grandes períodos na história do estudo da natureza até hoje: as "geniais intuições" dos antigos gregos e "os descobrimentos extraordinariamente importantes, mas esporádicos" dos árabes como precursores do terceiro período, "a ciência moderna" cujos primeiros passos se realizaram no Renascimento. Chama a atenção a surpreendente capacidade, "na época cultural árabe-muçulmana", para absorver e fazer uma síntese de diferentes culturas antigas e sua abertura à discussão. August Bebel cita a um testemunho presencial da cultura do debate público em Bagdad:
Bebel acrescenta: "A diferença entre a cultura árabe e a cristã era a seguinte: os árabes recolheram durante suas conquistas todas as obras que podiam servir para seus estudos e instruí-los sobre os povos e países que tinham conquistado. Os cristãos, ao ir estendendo sua doutrina, destruíam todos esses monumentos da cultura como produtos do diabo ou horrores pagãos." [18]
E conclui: "A época árabe-muçulmana foi o elo que une a cultura greco-romana e a cultura antiga em geral à cultura européia que floresceu do Renascimento. Sem aquela, esta não teria alcançado seus progressos atuais. O cristianismo era hostil a todo esse desenvolvimento cultural." [19]
Uma das razões do fanatismo e do sectarismo cego do cristianismo já foi identificado por Heinrich Heine e mais tarde confirmado pelo movimento operário: quanto mais sacrifícios e renúncias exige uma cultura, mais intolerável é a própria ideia de que esses princípios possam um dia ser postos em dúvida.
E sobre o Renascimento e a Reforma, aos quais Engels qualifica de "a mais grandiosa transformação progressista que a humanidade tinha vivido até então", também sublinha não só seu papel no desenvolvimento do pensamento, mas também no das emoções, da personalidade, do potencial humano e da combatividade.
Era uma época que: "... requeria titãs e soube engendrá-los; titãs, por seu vigor mental, suas paixões e seu caráter, pela universalidade de seus interesses e conhecimentos e por sua erudição. (...) E é que os heróis daquele tempo não viviam ainda escravizados pela divisão do trabalho, cujas consequências apreciamos tantas vezes no raquitismo e na unilateralidade de seus sucessores. Mas o que sobretudo os distingue é o fato de que quase todos eles viviam e trabalhavam sem exceção no meio do turbilhão do movimento de seu tempo, entregues à luta prática, tomando partido e brigando com outros, seja com a palavra e a pluma, seja com a espada na mão, seja empunhando a uma e outra" [20].
Se observarmos as três épocas "heróicas" do pensamento humano que desembocaram, segundo Engels, no desenvolvimento da ciência moderna, nota-se até que ponto foram limitadas no tempo e no espaço. Primeiro, começam muito tarde em relação à história da humanidade como um todo. Inclusive contando com os espaços chinês e indiano, essas fases estavam limitadas geograficamente. Tampouco duraram muito (o Renascimento na Itália e a Reforma na Alemanha só algumas poucas décadas). E eram muito escassas as frações das classes exploradoras (já, em si mesmas, muito minoritárias) que participaram de maneira ativa nesse desenvolvimento.
E duas coisas parecem surpreendentes. Primeiro, simplesmente, o próprio fato de que foi possível existir esses momentos de debate público e da ciência, e que seu impacto foi tão importante e duradouro, apesar de todas as rupturas e dos obstáculos. Segundo, até que ponto foi capaz o proletariado (apesar da ruptura na continuidade orgânica de seu movimento em meados do século XX [21], apesar de não ser possível existir organizações de massas no capitalismo decadente [22]) de manter e inclusive às vezes ampliar significativamente o debate organizado. O movimento operário manteve viva essa tradição, apesar das interrupções, durante quase dois séculos. E em certos momentos, como nos movimentos revolucionários na França, na Alemanha ou na Rússia, esse processo abrangeu milhões de pessoas. Aqui, a quantidade torna-se qualidade.
Essa qualidade não é, entretanto, unicamente o resultado de que o proletariado, nos países industrializados ao menos, seja a maioria da população. Já vimos como a ciência moderna e a teoria, depois dos memoráveis debates durante o Renascimento, foram deteriorando-se, entorpecidos em seu desenvolvimento pela divisão burguesa do trabalho. O centro deste problema é a separação entre a ciência e os produtores, uma distância impensável em outras épocas como a árabe ou a do Renascimento. "[Este processo de dissociação] se completa na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a força a servir ao capital" [23].
A conclusão desse processo descrito por Marx no rascunho de sua resposta a Vera Zasulich: "[o sistema capitalista] trava uma luta tanto contra as massas trabalhadoras como contra a ciência e contra as mesmas forças produtivas que engendra". (Tradução nossa).
O capitalismo é o primeiro sistema econômico que não pode existir sem aplicar sistematicamente a ciência à produção. Deve limitar a educação do proletariado para manter sua dominação de classe. E deve desenvolver a educação do proletariado para conservar sua posição econômica. Hoje a burguesia é cada vez mais uma classe sem cultura, atrasada, enquanto a ciência e a cultura estão em mãos ou de proletários ou de representantes remunerados da burguesia, cuja situação econômica e social se parece cada dia mais à da classe operária.
O proletariado é o herdeiro das tradições científicas da humanidade. Ainda mais que no passado, toda futura luta revolucionária proletária contribuirá necessariamente para um florescimento sem precedentes do debate público e para o início de um movimento para a restauração da unidade entre ciência e trabalho, a realização de uma compreensão global que esteja à altura das exigências da época contemporânea
A capacidade do proletariado para alcançar novos progressos já fora demonstrada com o desenvolvimento do marxismo, primeiro método científico sobre a sociedade humana e a história. Só o proletariado foi capaz de assimilar as aquisições mais elevadas do pensamento filosófico burguês: a filosofia de Hegel. As duas formas de dialética conhecidas na Antiguidade eram a dialética da transformação (Heráclito) e a dialética da interação (Platão, Aristóteles). Só Hegel conseguiu combinar essas duas formas e criar as bases para uma dialética verdadeiramente histórica.
Hegel contribuiu para uma nova dimensão ao conceito de debate atacando, como nunca antes se fez, a oposição rígida, metafísica entre o verdadeiro e o falso. No prefácio de A Fenomenología do espírito demonstrou que as fases diferentes e opostas de um desenvolvimento (como a história e a filosofia) formam uma unidade orgânica, do mesmo modo que a flor e o fruto. Hegel explica que a incapacidade para entender essa unidade deve-se à tendência a se concentrar na contradição, perdendo de vista o desenvolvimento. Ao pôr de pé a dialética, o marxismo foi capaz de absorver o mais progressista de Hegel, a compreensão dos procedimentos que levam para o futuro.
O proletariado é a primeira classe ao mesmo tempo explorada e revolucionária. Contrariamente às classes revolucionárias precedentes, classes exploradoras, sua busca da verdade não está limitada por nenhum interesse a preservar como classe. Contrariamente às classes exploradas anteriores, que não podiam sobreviver a não ser consolando-se com ilusões (especialmente religiosas), seu interesse de classe é a perda de ilusões. Como tal, o proletariado é a primeira classe cuja tendência natural, enquanto se põe a refletir e se organiza e luta em seu terreno, é uma tendência para o esclarecimento.
Os bordiguistas se esqueceram dessa característica própria e exclusiva do proletariado quando inventaram o conceito de "invariabilidade". Seu ponto de partida é correto: a necessidade de permanecer leal aos princípios de base do marxismo frente à ideologia burguesa. Mas a conclusão que diz que é necessário limitar e até abolir o debate para, assim, manter as posições de classe é um produto da contrarrevolução. A burguesia, sim, compreendeu muito melhor que o que deve ser feito, acima de tudo, para atrair o proletariado ao terreno do capital, é suprimir ou sufocar seus debates. Primeiro tentou através da repressão violenta, depois desenvolveu também outras armas muito mais eficazes como a "democracia" parlamentar e a sabotagem organizada pela esquerda do capital. O oportunismo também compreendeu isso há muito tempo. Como sua característica essencial é a incoerência, deve se ocultar, fugir do debate aberto. A luta contra o oportunismo e a necessidade de uma cultura do debate, além de não serem contraditórias, são também mutuamente indispensáveis.
Tampouco, essa cultura não exclui a confrontação apaixonada de posturas políticas divergentes. Mas isso não significa que o debate político deva ser concebido como um duelo necessariamente traumático, com vencedores e vencidos, que leve a rupturas e cisões. O exemplo mais edificante da "arte" ou da "ciência" do debate na história é o do Partido Bolchevique entre fevereiro e outubro de 1917. Inclusive em um contexto de intromissão em massa de uma ideologia alheia, as discussões eram apaixonadas, mas totalmente fraternas e fonte de inspiração para todos os participantes. Sobretudo, essas discussões tornou possível o que Trotsky chamou de "rearmamento" político do partido, o reajuste de sua política às novas necessidades do processo revolucionário, que é uma das condições da vitória.
O "diálogo bolchevique" precisa compreender que nem todos os debates têm o mesmo significado. A polêmica de Marx contra Proudhon era uma "demolição" como deve ser, pois sua tarefa era atirar ao lixo da história uma visão que se converteu em um entrave para o desenvolvimento da consciência do movimento operário. Por outro lado, o jovem Marx, ao mesmo tempo que iniciava uma luta formidável contra Hegel e contra o socialismo utópico, nunca perdeu seu imenso respeito por Hegel, Fourier, Saint Simon ou Owen, a quem fez entrar assim para sempre em nossa herança comum. Engels escreveria mais tarde que sem Hegel, não existiria o marxismo e sem os utopistas não haveria socialismo científico tal como hoje o conhecemos.
As crises mais graves do movimento operário, incluídas as da CCI, em sua grande maioria não foram provocadas pelas divergências em si, por muito importantes que fossem, mas sim pela sabotagem aberta do debate e do processo de esclarecimento. O oportunismo usa todos os meios para chegar a essa sabotagem. Não só pode minimizar divergências importantes, mas também exagerar as secundárias ou inventar divergências onde não existem. O oportunismo usa, além disso, os ataques pessoais, quando não a difamação ou a calúnia.
O peso morto que faz penetrar no movimento operário o "senso comum" cotidiano por um lado e, por outro, o respeito sem crítica, quase religioso de certos costumes e tradições, relaciona-se com o que Lênin chamava "espírito de círculo". Tinha perfeitamente razão em seu combate contra a submissão do processo de construção da organização e de sua vida política à "espontaneidade" do senso comum e suas consequências: "Mas, por que - perguntará o leitor - o movimento espontâneo, que se dirige para o sentido do mínimo esforço, conduz exatamente à dominação da ideologia burguesa? Pela simples razão de que, cronologicamente, a ideologia burguesa é muito mais antiga que a ideologia socialista, está completamente elaborada e possui meios de difusão infinitamente maiores" [25].
O característico da mentalidade de círculo é a personalização do debate, a atitude que consiste em não se centrar nos argumentos políticos, no "que se diz", mas sim em "quem o diz". Nem é necessário dizer que essa personalização excessiva é um grande obstáculo para uma discussão coletiva frutífera.
No "diálogo socrático" já se havia compreendido que o desenvolvimento do debate não é só coisa do pensamento; é também uma questão ética. Hoje, a busca de esclarescimento serve aos interesses do proletariado e sua sabotagem os danifica. Nisto, a classe operária deverá inspirar-se na frase de Lessing, alemão do século das luzes, que afirmava que se havia algo que amava mais que a verdade era a busca da verdade.
Os exemplos mais patentes da cultura do debate como elemento essencial dos movimentos proletários de massas foram dados a nós pela Revolução Russa [26]. O partido de classe estava na vanguarda desta dinâmica. As discussões no seio do partido na Rússia em 1917 eram sobre questões como a natureza de classe da revolução, se teria que apoiar ou não a continuação da guerra imperialista e quando e como tomar o poder. E, entretanto, ao longo de todo esse período, manteve-se a unidade do partido, apesar das crises políticas durante as quais estavam em jogo o destino da revolução mundial e, com este, o da humanidade.
Entretanto, a história da luta de classe proletária, especialmente a do movimento operário organizado, nos ensina que nem sempre se alcançaram esses níveis de cultura do debate. Já mencionamos a intrusão reiterada de métodos monolíticos na CCI. Não é surpreendente que isso tenha produzido frequentemente cisões na organização. Com os métodos monolíticos, as divergências não podem ser resolvidas através do debate e desembocam necessariamente em ruptura e separação. E o problema não se resolve, entretanto, com a cisão dos militantes que personificaram esses métodos de modo caricatural. A possibilidade de que esses métodos não proletários voltem a surgir indica a existência de debilidades mais estendidas sobre esta questão na própria organização. São frequentemente pequenas confusões e ideias errôneas apenas perceptíveis na vida e na discussão cotidiana, mas que podem abrir o caminho a dificuldades maiores em certas circunstâncias. Uma delas consiste na tendência a apresentar qualquer debate em termos de confrontação entre marxismo e oportunismo, de luta polêmica contra a ideologia burguesa. Uma das consequências deste modo de fazer é a de inibir o debate, dando a impressão aos camaradas que já não têm direito a se equivocar nem a expressar suas confusões ou desacordos. Outra consequência é a "banalização" do oportunismo. Se o identificarmos por toda parte (e gritamos a cada passo: "o lobo!", assim que aparece a menor divergência), provavelmente não o reconheceremos quando aparecer de verdade. Outro problema é a impaciência no debate cujo resultado é não escutar os argumentos de outros e uma tendência a querer monopolizar a discussão, a esmagar o "adversário", a convencer outros "a todo custo" [27].
O que têm em comum todos esses procedimentos é o peso da impaciência pequeno-burguesa, a falta de confiança na prática viva da compreensão coletiva no proletariado. Expressam uma dificuldade para aceitar que a discussão e a compreensão são um processo. E como todos os processos fundamentais da vida social, esse tem um ritmo interno e sua própria lei de desenvolvimento. Este corresponde ao movimento que vai da confusão para o esclarecimiento, contém erros e orientações falsas e também sua correção. Essas evoluções requerem tempo para ser profundas de verdade. Poderão ser aceleradasr, mas nunca serem evitadasprecipitar. Quanto mais ampla seja a participação nesse processo, quando mais volumosa seja a participação do conjunto da classe, mais frutífero será.
Em sua polêmica contra Bernstein [28], Rosa Luxemburgo sublinhava a contradição essencial da luta de classes: movimento no seio do capitalismo, mas que tende para um objetivo situado fora do capitalismo. Dessa natureza contraditória vêm os dois principais perigos que ameaçam o movimento. O primeiro é o oportunismo, ou seja, a abertura à influência nefasta da classe inimiga. A ordem desse desvio no caminho da luta de classes é: "o movimento é tudo, o objetivo não é nada". O segundo perigo principal é o sectarismo, ou seja, a falta de abertura para a influência da vida de sua própria classe, o proletariado. A ordem desse desvio é: "o objetivo é tudo, o movimento não é nada".
Depois da terrível contrarrevolução resultante da derrota da revolução mundial no período posterior à Primeira Guerra Mundial, foi desenvolvido no seio do movimento revolucionário a ideia falsa e funesta de que era possível combater o oportunismo com o sectarismo. Esta visão, que acabou levando à esterilização e à fossilização, era incapaz de compreender que o oportunismo e o sectarismo são as duas faces da mesma moeda, pois ambos separam o movimento e o objetivo. Sem a participação plena das minorias revolucionárias na vida real e no movimento de sua classe, o objetivo do comunismo não poderá ser alcançado.
[1] Inclusive jovens revolucionários tão amadurecidos e esclarecidos teoricamente como Marx e Engels pensavam - na época das convulsões sociais de 1848 - que o comunismo estava, mais ou menos tarde, à ordem do dia. Uma hipótese que tiveram que revisar e abandonar rapidamente.
[2] Ou como dizia a música brasileira que fez muito sucesso nessa época: "não confio em ninguém com mais de 30".
[3] A propósito disso, ler nosso artigo Teses sobre o movimento dos estudantes da primavera de 2006 na França; [https://pt.internationalism.org/icconline/2006_estudiantes_franca [1]]
[4] No campo proletário, a ideia do dogma foi teorizada pela corrente chamada "bordiguista".
[5] As biografias e memórias dos revolucionários do passado estão repletas de exemplos de sua capacidade para discutir e, especialmente, escutar. Nisto, Lênin era conhecido, mas não era o único. Um só exemplo: as lembranças do Fritz Sternberg em suas Conversations with Trotsky [Conversas com Trotsky] (redigidas em 1963). "Em suas conversações comigo, Trotsky era do mais educado. Não me interrompia virtualmente nunca, só para me pedir alguma explicação ou desenvolver uma palavra ou um conceito a maioria das vezes".
[6] Leiam-se a respeito os artigos dos números 110 e 114 da Revista internacional , "Conferência extraordinária da CCI: o combate pela defesa dos princípios organizativos" e "XV Congresso da CCI : Reforçar a organização diante dos desafios do período".
[7] Leia-se: A confiança e a solidariedade na luta do proletariado e Marxismo e ética na Revista internacional n° 111, 112, 127 e 128.
[8] Leia em nossos livros sobre a Esquerda comunista da Itália e a Esquerda comunista da Holanda.
[9] A Esquerda comunista da França manteria essa posição depois da dissolução da Fração italiana. Ver, por exemplo, a crítica do conceito do "chefe genial" reproduzida na Revista internacional n° 33 [https://es.internationalism.org/node/2182 [2]]e da noção de disciplina que considera os militantes da organização como simples executantes que não têm que discutir sobre as orientações políticas da organização, na Revista Internacional n° 34.
[10] Engels, A Origem da família, da propriedade privada e do Estado.
[11] Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Cap. II. [www.moreira.pro.br/textose27a.htm [3]]
[12] Friedrich Engels, A investigação científica no mundo dos espíritos. In: A Dialética da natureza. Tradução nossa..
[13] Visão que considera a alma como princípio ou causa de todos os fenômenos vitais.
[14] Marx, El Capital, III, 48: "A fórmula trinitaria", III. FCE, 1946, México. Tradução nossa.
[15] Friedrich Engels, A investigação científica no mundo dos espíritos. In: A Dialética da natureza, Tradução nossa.
[16] Sobre estes temas do Ásia dos anos 500 A.C., vejam-se as conferências de August Thalheimer na Universidade Sun Yat Sen em Moscou, 1927 : Einführung in den dialektischen Materiailismus [Introdução ao materialismo dialético].
[17] August Bebel, Die Mohamedanisch-Arabische Kulturepoche (1889), cap. VI, "O desenvolvimento científico, a poesia". Traduzido do alemão por nós.
[18] Ibid.
[19] Ibid.
[20] Engels, Dialética da Natureza, Introdução
[21]Devido à derrota da onda revolucionaria mundial de 1917-23 e a à contrarrevolução de quase 50 anos que a sucedeu.
[22] Ler a nossa brochura Os sindicatos contra a classe operária [/content/23/os-sindicatos-no-capitalismo-decadente [4]].
[23] Marx, O Capital. Livro I, 4ª, Nova Cultural, 2ª ed., 1985. (Cap. 14: "Divisão do trabalho e manufatura", 5 "Caráter capitalista da manufatura")..
[24] Anti-Dühring, 3ª parte: O socialismo, Noções teóricas. (Tradução nossa)
[25] Lênin, O que fazer? - (Cap. II - A espontaneidade das massas e a consciência da social-democracia). [https://www.moreira.pro.br] [5]
[26] Ver, por exemplo, o livro de Trotsky: História da revolução russa ou o de John Reed: Dez dias que abalaram o mundo.
[27] Ver a respeito o relatório sobre os trabalhos do "XVII Congresso da CCI. Um fortalecimento internacional do campo proletário" na Revista internacional n° 130. [https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/XVIII_congresso_da_CCI_ru... [6]ças_internacionalistas]
[28] Rosa Luxemburgo, Reforma ou Revolução?
Nossos leitores muito provavelmente já ouviram ou acompanharam os acontecimentos relacionados com o movimento “Occupy Wall Street” (Ocupa Wall Street – OWS). Desde meados de setembro, milhares de pessoas participaram da ocupação do Zuccotti Park em Manhattan, localizado a apenas alguns quarteirões de Wall Street. O movimento se estendeu a centenas de cidades nos Estados Unidos. Dezena de milhares de pessoas têm participado das ocupações, manifestações e assembleias gerais com um nível de auto-organização desconhecido nos EUA há décadas. A população explorada e descontente levantou a sua voz, mostrando sua indignação contra os males do capitalismo. O impacto a nível internacional do OWS também é algo a ser tomado em conta: os protestos acontecem no centro nevrálgico do capitalismo mundial, colocando sobre a mesa slogans e frustrações similares às que foram vistas na Europa e no norte da África.
Ainda assim, o futuro do movimento parece incerto. Embora muitos participantes expressem sua vontade em continuar as ocupações de forma indefinida, cada vez mais se vê claramente que a energia e espontaneidade inicial do movimento estão em refluxo, à medida que seu marco mais importante, as assembleias gerais (AG’s), vai se transformando cada vez mais em meros órgãos de aprovação da atividade dos “grupos de trabalho” e “comitês”, muitos dos quais estão dominados por ativistas profissionais, esquerdistas, etc. Embora a situação se mantenha oscilante, acreditamos que tenha alcançado um estágio em que nos permite agora realizar uma avaliação preliminar do movimento, de seu significado, e dos seus pontos fortes e fracos.
A CCI foi capaz de participar do movimento em Nova York, onde vários militantes e simpatizantes próximos têm se aproximado em várias ocasiões no Zuccotti Park para falar com os manifestantes e participar das assembleias gerais. Simpatizantes da CCI em outras localidades também nos enviaram informações das suas experiências no movimento. Foi iniciada também uma animada discussão no fórum da nossa página na internet. [1] Este artigo é uma contribuição ao debate, e ficaremos gratos aos leitores que se unirem à discussão.
Como responder aos ataques do capitalismo? A luta para encontrar o terreno de classe
Primeiramente, devemos dizer que o movimento surge da mesma fonte que as revoltas e movimentos sociais que vimos ao longo de 2011, desde o movimento na Tunísia e Egito, ao aparecimento dos “indignados” na Espanha, às ocupações em Israel, ou as mobilizações contra a austeridade e as medidas anti-sindicais em Wisconsin e outros Estados: o sentimento de frustração e desespero da classe operária, especialmente das gerações mais jovens, duramente golpeadas pelo desemprego. [2]
Vemos, portanto, uma continuidade direta entre o OWS e a vontade crescente da classe trabalhadora em responder os ataques capitalistas a nível internacional. O OWS não se trata de modo nenhum de uma campanha da burguesia para sabotar ou canalizar a luta de classe. Pelo contrário, se trata da última de uma série de movimentos, em grande parte organizados através da Internet e das redes sociais, à margem dos sindicatos e partidos majoritários, com os quais a classe operária está buscando responder aos duros ataques que está sofrendo no marco da crise histórica do capitalismo. O movimento deve, portanto, ser saudado como um sinal de que o proletariado nos Estados Unidos não está completamente derrotado e que não está disposto a sofrer ataques de forma indefinida. No entanto, também vemos distintas tendências no seio do movimento que lutam para se impor. As tendências dominantes mostram claramente uma visão reformista, enquanto as tendências mais proletárias estão encontrando muitas dificuldades para afirmar o terreno de classe sobre o qual assentar sua luta.
Em defesa da soberania das Assembleias Gerais
Talvez o aspecto mais positivo do OWS foi o aparecimento das AG’s como órgãos soberanos do movimento, o que representa um avanço com relação às mobilizações em Wisconsin, que apesar da sua espontaneidade inicial rapidamente foram tomadas pelos sindicatos e pela esquerda do Partido Democrata. [3] O surgimento das AG’s representa uma continuidade com os movimentos na Espanha, França e outras localidades, e mostra claramente a capacidade da classe operária de tomar o controle das suas próprias lutas e aprender de outras lutas a nível internacional. Nesse aspecto se trata da internacionalização das AG’s como forma de luta, um dos marcos mais destacados da fase atual da luta de classe. As AG’s são, acima de tudo, uma tentativa da classe trabalhadora em defender sua autonomia através da participação de todo o movimento no processo de tomada de decisão e de assegurar a mais ampla discussão no seio da classe.
No entanto, apesar da sua importância no movimento, está claro que as AG`s no OWS não têm sido capaz de funcionar sem um alto grau de distorção e manipulação por parte dos ativistas profissionais e dos esquerdistas, que têm controlado em grande medida os grupos de trabalho e os comitês que supostamente estão submetidos aos mandatos das AG`s. Este peso revela uma grande dificuldade para que o movimento mantivesse uma discussão aberta, e tem sido relevante para evitar que se coloque a questão de extensão do movimento para além das ocupações, para chegar a toda classe operária. O movimento 15M na Espanha encontrou problemas semelhantes. [4]
No início das ocupações, devido às insistentes manifestações da mídia para que o movimento estabelecesse suas metas e reivindicações, formou-se um comitê de imprensa com o propósito de publicar um informativo do OWS. Um dos nossos camaradas estava presente na AG quando o assunto do primeiro número do informativo – que já tinha sido publicado e feito chegar à mídia pelo comitê de imprensa – foi abordado. O sentimento generalizado na assembleia era de indignação porque o informativo foi publicado e distribuído com um conteúdo que não refletia a visão majoritária do movimento, mas que refletia a opinião política particular do autor. Adotou-se a decisão de revogar o mandato da pessoa responsável. Esta ação representou o poder da AG para se impor sobre comitês e grupos de trabalho. Tratou-se de uma expressão embrionária do “direito imediato da revogabilidade”, o membro infrator do comitê de imprensa foi prontamente removido por exceder o seu mandato.
No entanto, algumas semanas depois – pouco antes do prefeito Bloomberg ameaçar despejar os ocupantes do Zucotti Park – nosso camarada encontrou um ambiente muito distinto na assembleia. Com a ameaça de despejo da ocupação, as AG’s foram praticamente desprovidas de qualquer discussão significativa. A maioria das AG’s foi tomada por relatórios dos grupos de trabalho e dos comitês, sem nenhuma discussão. A única discussão que era permitida pelos organizadores da assembleia foi para tratar da proposta do chefe do Distrito de Manhattan de limitar a tocar baterias a duas horas por dia. Esta assembleia em nenhum momento abordou o assunto do futuro do movimento. Nem mesmo se tratou da questão de como levar a cabo uma estratégia para estender o movimento além das suas atuais limitações e diante da mais que provável expulsão de Zuccotti Park.
Nessa assembleia um dos nossos camaradas tentou propor que os participantes tivessem uma visão de futuro e vissem além dos limites do parque, para a classe operária da cidade, onde provavelmente encontraria uma boa acolhida. Disseram ao nosso companheiro que sua proposta não tinha cabimento dentro do debate da limitação de tocar baterias e que o tempo limite para as intervenções (arbitrariamente estabelecido em um minuto pelos organizadores) tinha se esgotado. Outro participante propôs criar uma delegação para falar do movimento aos estudantes em vários estabelecimentos de ensino e universidades. Sua proposta também foi rechaçada, com muitas vozes assinalando que não tinham intenção de estender o movimento e que se os estudantes quisessem apoiar a ocupação que viessem para Zuccotti Park.
Como explicar, então, a tendência que levaram os grupos de trabalho, comitês e organizadores paulatinamente tomarem o controle do movimento à medida que foi passando o tempo?
O OWS se caracterizou desde o início por certo espírito “anti-político” que se tornou útil para amortizar a discussão, evitar a confrontação de idéias e o desenvolvimento de reivindicações de classe. Isso fez possível que esquerdistas, celebridades políticas e políticos de toda ralé interviessem e falassem em nome do movimento, permitindo que a mídia possa apresentar o OWS como um incipiente “Tea Party [5] de esquerdistas”. [6]
O rechaço por quase todos os manifestantes do OWS em abordar a questão das reivindicações e dos fins, que pensamos representar um rechaço geral em abordar a questão do poder, apresenta-se como uma espécie de mistério para os revolucionários. Como entender este fenômeno, que também está presente em outros movimentos? No que diz respeito ao OWS, acreditamos que têm muito a ver com os fatores que abaixo comentaremos.
Embora seja certo que a principal força social por trás do movimento esteja nas gerações operárias mais jovens, muitos dos quais nasceram depois do colapso do stalinismo em 1989, ainda se mantêm um medo na classe trabalhadora em abordar a questão do comunismo. Embora as idéias de Marx pareçam caminhar para a recuperação em relação a sua crítica do capitalismo, ainda existe um grande medo de se ver associado a um sistema que muitos ainda acreditam que “já se tentou e fracassou”, e que está contra a finalidade de estabelecer uma “verdadeira democracia”. Embora possa ser visto muitos cartazes e slogans nas ocupações citando Marx no sentido de que o capitalismo se tornou inviável, ainda existe uma grande confusão no que diz respeito ao que pode substituí-lo. Por outro lado, a perspectiva a longo prazo é que o peso dos “pesadelos do passado” se enfraqueça e seja um obstáculo menor para aqueles que buscam o verdadeiro significado do comunismo, e das possibilidades de uma nova sociedade.
O predomínio da jovem geração
Em geral, o movimento é impulsionado pelas novas gerações operárias. Embora gerações de trabalhadores com idades mais avançadas, afetados pela destruição massiva de empregos que tem ocorrido nos EUA desde 2008, também estejam presentes no movimento, sociologicamente a força motriz desses protestos são proletários com idade entre 20 e 30 anos. A maioria estuda, porém muitos nunca tiveram um trabalho estável na sua vida. Esses jovens se encontram entre os mais duramente afetados pelo grande desemprego de longo prazo que afeta a economia norte-americana. Poucos têm experiência de trabalho, a não ser de forma precária. Sua identidade não está vinculada ao local de trabalho ou a uma profissão específica. Embora esses elementos sociológicos provavelmente os fazem mais propensos a desenvolver um sentimento de solidariedade mais amplo e abstrato, também significa que a maioria carece de experiência em lutas defendendo suas condições de vida e trabalho, estabelecendo reivindicações e fins concretos. Estando apartados do processo produtivo, tem poucas coisas concretas a defender a não ser sua dignidade como seres humanos! A necessidade de estabelecerem reivindicações e fins concretos não é, assim, algo tão evidente. Em um mundo onde não se vê um futuro claro, não é surpreendente que as gerações mais jovens encontrem dificuldades em concretizar as características da luta por um futuro. Assim, o movimento se vê preso em uma espécie de celebração do processo em si, das ocupações, tanto que o lugar de ocupação se converte em comunidade, e inclusive em alguns casos em lar. [7] Outro aspecto que não se deve esquecer é o peso do discurso político pós-moderno, especialmente daqueles que passaram pela universidade, que fomenta a desconfiança para com a “tradicional” política de classe e seu rechaço.
Dito isso, não devemos esperar que “um menino se comporte como um homem”. A mera existência de assembleias gerais é uma vitória em si mesma, e proporciona uma escola excelente onde os jovens possam adquirir experiência e aprender a combater as forças da esquerda burguesa. Tudo isso é essencial para as lutas futuras.
O OWS continua teimosamente preso no contexto e características da política e da história dos EUA. Existe pouca menção no movimento das raízes internacionais da crise e os movimentos sociais de outros países são raramente evocados. A crença dominante no movimento é que os enormes problemas aos quais se confronta a humanidade têm, de uma forma ou de outra, sua raiz no comportamento imoral dos banqueiros de Wall Street, ajudados e incitados pelos partidos políticos. A falta de regulamentação nas finanças e investimentos, a acumulação sem escrúpulos da dívida com a bolha imobiliária, a crescente influência do dinheiro privado nas campanhas eleitorais, a diferença imensa entre o 1% mais ricos da população e o resto, o fato de que Wall Street se negue a reinvestir na economia americana os bilhões de dólares obtidos em mais-valia, são as grandes queixas apresentadas pelo movimento. Além disso, a identificação da “desregulamentação do capital financeiro” como o principal problema, serviu para manter ilusões acerca do suposto papel altruísta do Estado burguês.
De forma nítida, as posições “anti-políticas” têm sido um obstáculo para que o movimento possa ir mais além e, no fim, serve para reproduzir a dominação política que tanto teme. Isso deve servir como lição para futuros movimentos. Embora o movimento tenha razão em manter distância para com aqueles que querem falar em seu nome, a classe trabalhadora não pode evitar da discussão aberta e da confrontação de idéias. Este processo de polarização, de estabelecer reivindicações e fins concretos – apesar de toda dificuldade que isso implica – não pode ser evitado, se o movimento quer avançar. No final, um movimento dominado por um extremo ecletismo ideológico, no qual todas as “proclamações seriam igualmente válidas”, a única coisa que vai assegurar é que somente aquelas posições que são aceitáveis pela burguesia progredirão. As posições de regular o capitalismo, de cobrar mais impostos dos ricos e de acabar com o domínio total do dinheiro das empresas nas eleições – são petições que compartem muitas frações da burguesia dos EUA! Não é por acaso que Obama queira financiar seu “plano de emprego” tributando mais os milionários. Há um grande risco de que as principais frações da burguesia possam dirigir o movimento em uma direção que sirva aos seus próprios interesses nas suas lutas interburguesas no contexto de uma ascensão da direita. No entanto, em última instância, a completa incapacidade da burguesia em solucionar sua crise mortal fará com que as ilusões do “sonho americano” se desmoronem, e se substituirá pelo pesadelo da vida sob o capitalismo.
Apesar de todas suas fraquezas, o movimento OWS é rico em lições para o futuro desenvolvimento da luta de classe. O surgimento de assembleias gerais – provavelmente pela primeira vez em décadas nos Estados Unidos – representa um importante passo adiante para a classe operária na sua busca para levar sua luta mais adiante dos limites demarcados pelos sindicatos e pela esquerda burguesa. Devemos, no entanto destacar que um movimento centrado em si mesmo em lugar de buscar sua extensão a toda classe trabalhadora está condenado ao fracasso, seja pela repressão, pela desmoralização ou pela posterior canalização atrás das campanhas da esquerda burguesa. Na conjuntura atual da luta de classes não nos encontramos com uma situação onde os setores da classe trabalhadora com menos experiência no trabalho coletivo são os mais combativos. Por outro lado, aqueles com mais experiência em lutas concretas na defesa das suas condições de vida e trabalho ainda se encontram desorientados pelos ataques capitalistas e indecisos acerca de como responder a esses. Muitos simplesmente se conformam em manter um emprego e recuaram diante do peso da ofensiva capitalista contra as condições de vida e trabalho;
Além disso, nos Estados Unidos as contínuas campanhas da direita para abater os sindicatos têm gerado o efeito de revitalizar em algum grau os sindicatos aos olhos dos operários, desorientando-os. [8] Até o ponto de que trabalhadores filiados a sindicatos participaram no movimento OWS majoritariamente sob a bandeira do sindicato, sendo que esses atuaram sistematicamente para separar seus membros dos ocupantes de Zuccotti Park. Vê-se claramente que sob a influência dos sindicatos, os trabalhadores desempenharam um papel de meros “seguidores” do movimento, mas sem se unirem a ele! É na luta operária para defender suas condições de vida e trabalho, no local onde a sociedade se reproduz, que os órgãos que realmente podem levar adiante a transição para uma sociedade de produtores associados – os conselhos operários – podem emergir. É no marco dessa luta onde o fato de que o capitalismo já não pode oferecer reformas duradouras pode ser descoberto, na medida em que a luta operária por suas condições de vida e trabalho se vê constantemente frustrada pela persistente crise econômica. É no local de produção onde se tornará evidente para a classe trabalhadora o fato de que a atual sociedade humana só pode se reproduzir se for unificada.
Como foi dito, não queremos minimizar as imensas dificuldades que toda classe operária se defronta na sua busca do terreno de classe e da energia necessária para responder aos ataques capitalistas. Nos primeiros embates, acreditamos que o OWS se viu envolvido no terreno retórico burguês; no entanto, no futuro será de grande valia já que mostra pinceladas de como a classe trabalhadora pode tomar o controle das suas próprias lutas.
Internationalism, 19-10-2011
[1] Veja o Fórum em inglês organizado pela CCI: https://en.internationalism.org/forum/4515/occupy-wall-street-protests [7]
[2] Confira nossos artigos sobre o movimento dos indignados, o mais recente: /content/313/mobilizacoes-dos-indignados-na-espanha-e-suas-repercussoes-no-mundo-um-movimento [8]
[3] Embora haja uma diferença de Wisconsin, onde por um momento o fantasma da greve geral esteve presente nesse Estado, pois no OWS a mobilização foi muito menos "massiva", com um grupo fixo de ocupantes e aqueles que participaram de modo irregular.
[4] Veja nosso artigo: Movimento Cidadão Democracia Real Já!: Ditadura do Estado contra as assembleias massivas [9]
[5] Movimento de direita surgido em 2009, quando realizou uma série de protestos a nível nacional contra uma série de medidas implementados pelo governo Obama.
[6] Como exemplo de como a esquerda burguesa pensa que poderia utilizar o OWS como um movimento de base de apoio para a presidência de Obama, veja o texto de Peter Beinhart "Occupy Protests' Sismic Effects": < https://news.yahoo.com/occupy-protests-seismic-effect-062600703.html [10]>
[7] Nas últimas semanas, os meios de comunicação informaram de vários casos de jovens que deixaram trabalhos mal remunerados ou faltaram a aula para participar no movimento.
[8] Veja nosso artigo sobre a recente greve em Verizon [11].
Assim, o governo de Paris mostrou-se muito firme em relação aos tunisianos que desembarcaram sobre a ilha italiana de Lampedusa, e cuja maioria quer ir à França: o ministro do Interior preveniu que serão tratados como imigrantes clandestinos convocados a serem reconduzidos ao seu país. Interrogado na Assembleia Nacional, Brice Hortefeux recordou a regra em política migratória: "Um estrangeiro em situação irregular está destinado a ser reconduzido ao seu país de origem, exceto situação humanitária específica." Pensando bem, com Hortefeux, este amigo dos "Auvergnats" [2], as situações humanitárias específicas…não existem, só há unicamente trapaceiros e aproveitadores. E para se fazer compreender mais claramente: "Não é o interesse nem da Tunísia, que o compreende perfeitamente, nem da Europa, nem da França o de encorajar e aceitar estas migrações clandestinas." Isso não vale somente para os tunisianos, porque o presidente do serviço francês de imigração e integração, Dominique Paillé, afirmou nesta quinta-feira, 24 de Fevereiro, que "os clandestinos" provenientes da Líbia também "serão reconduzidos". Não se poderá mais dizer que a burguesia francesa usa dois pesos e duas medidas! Todos mergulhados na mesma miséria e no horror capitalista, mas sem injustiça!
Mulan (26 de Fevereiro)
Revolution Internationale n°420, órgão da CCI na França.
[2] Referência à declaração racista de Hortefeux em setembro de 2009, durante a reunião do seu partido a União por um Movimento Popular (UMP, de direita) no país basco francês. Um jovem franco-argelino, Amine Benalia-Brouch, se aproximou do ministro pedindo para ser fotografado com ele, que comentou com o presidente do partido, Jean-François Cope: "Ele não corresponde em nada ao estereótipo...Quando há um deles, tudo bem. É quando há muitos deles que os problemas chegam". A declaração, gravada em um vídeo amador, teve mais de 800 mil acessos no site do Le Monde em um dia. A situação piorou quando Hortefeux tentou contradizer a declaração, dizendo primeiro que se referia ao número de fotos e depois que se referia não aos árabes e sim aos Auvergnats (ou occitanos, da Occitânia, localizada na região sul da França). Parte da imprensa explorou o caso e grupos nacionalistas occitanos utilizaram-no como comprovação do racismo anti-occitano existente na França.
Se a escolha do momento certo é a essência da comédia, então a viagem de David Cameron - há muito tempo planejada – vendendo armamentos no Golfo e no Oriente Médio não pôde funcionar melhor. Mas fornecer a carniceiros meios para atacar suas populações está longe de ser cômico.A natureza repugnante desta farsa sinistra foi reforçada ainda mais pelo seu comparecimento a uma cerimônia no Kuwait, junto ao ex-primeiro-ministro John Major, para comemorar o vigésimo aniversário da primeira Guerra do Golfo, na qual centenas de milhares de inocentes foram mortos pelo armamento mais letal das democracias avançadas.Ao mesmo tempo em que centenas, talvez milhares, eram mortos na Líbia pelas armas vendidas a Kadafi pelos governos trabalhista e conservador, Cameron, que parou brevemente para uma apressada ocasião de ser fotografado na praça Tahrir (com oito executivos da defesa e das indústrias aeroespaciais), barganhou seus bens mortais à sua clientela gângster. Em resposta às críticas Cameron, alongando palavras quase além da compreensão, disse que não fornecer armas a estes regimes árabes era "negar aos povos seus direitos básicos", "racismo" e algo não-democrático. Ao regime de Kadafi foram vendidos até muito recentemente, entre outras coisas: rifles de longa distância, granadas de gás lacrimogêneo, armas para controle de multidões, munição para armas ligeiras, granadas de efeito moral, canhões antiaéreos, morteiros, veículos blindados de transporte de tropas, aviões militares, silenciadores de armas, miras, coletes à prova de balas e tecnologia de aviação militar.Foram todos, nas palavras do Gabinete de Relações Exteriores, "cobertos por garantias de que não seriam usados na repressão aos direitos humanos". A Grã-Bretanha teve, de longe, o maior espaço na última feira líbia de armamentos e na última semana, na feira de armas em Abu Dhabi: 10% de toda a exposição mundial era britânica. O ministro Gerald Howarth, liderando a delegação, declarou: "Nós temos planos ambiciosos". Ao mesmo tempo, o porta-voz de defesa do partido trabalhista, Jim Murphy, cujo governo empreendeu guerras no Iraque, Afeganistão e vários outros "teatros", tentando fazer um ponto político, mas mostrando a unidade da burguesia britânica, disse: "O Reino Unido tem uma responsabilidade além de suas fronteiras e precisa manter a força."Foi o governo trabalhista que abraçou e fortaleceu o regime de Kadafi e conduziu vendas de armas ao Líbano, ao Iêmen, à Jordânia, à Síria, ao Kuwait, ao Iraque, ao Marrocos, a Israel, ao Qatar, à Argélia, à Tunísia, aos Emirados Árabes, a Omã, ao Barein e ao Egito. E foi o governo trabalhista que esteve envolvido em toda a investigação do tráfico de armas dentro da BAE saudita de Al-Yamanah citando "interesse nacional" [1]. Agora que os LibDems (liberais-democratas) sentiram o gosto do poder, fugiram camuflados do terreno da alta moral. A secretária de negócios Vince Cable é cúmplice dos acertos e Nick Clegg vice primeiro-ministro, aparentemente responsável pelo país quando Cameron estava fora do comércio de morte e destruição, esquiando enquanto pessoas que protestavam pelo básico, transeuntes e crianças estavam sendo assassinados pelas armas fornecidas pela Inglaterra.Os crimes e a hipocrisia destes cúmplices de massacres são ilimitados e Cameron ainda propôs vender armas aos "rebeldes líbios", para quem são o governo líbio na espera, que deve derrubar Kadafi. E ao condenar o uso de "violência excessiva" pelo regime, (que está usando as armas que forneceu para essa finalidade), a Inglaterra seguiu os chamados da suposta "comunidade internacional" por sanções e ajuda humanitária – que mostraram ser no passado armas no interesse dos imperialismos concorrentes que executam-nas.A secretária de defesa Liam Fox tem buscado "ampliadas exportações de defesa" com "o Ministério da Defesa… à frente da estratégia de crescimento das exportações conduzidas pelo governo" e o ministro do comércio, Lord Green (ao lado de Vince Cable), disse que os ministros poderiam ser "responsabilizados" se as companhias falharem em obter negócios. A única negociação de armas que foi bloqueada nos últimos dois anos foi a venda de $65 milhões em helicópteros, rifles de assalto, carros blindados e metralhadoras ao pequeno estado africano da Suazilândia. Então, o governo britânico alegou que isto era porque estas armas poderiam ser usadas para uma "possível repressão interna". Mas os documentos da embaixada dos EUA publicados por Wikileaks mostram que os americanos interromperam a venda por causa de "preocupações com o usuário final", isto é, que as armas provavelmente iriam parar no Irã. Isto não impediu a Campanha Contra o Comércio de Armas (Campaign Against Arms Trade), de saudar a manobra como uma recusa a "vender armas a um conhecido abusador dos direitos humanos". Isto quando o total de armas britânicas para a África despedaçada por guerras chegou a mais de um bilhão de libras no ano passado.A Inglaterra naturalmente, não está sozinha neste comércio mortal, todos os grandes países estão envolvidos e a venda global de armas aumentou 60% desde 2002 para totalizar $400 bilhões (com base em números oficiais) em 2009. A BAE Systems britânica foi a segunda maior companhia envolvida nesse período com seus $33.25 bilhões atrás apenas da Lockheed Martin dos EUA. Mas é o papel da Grã-Bretanha na defesa e armamento do regime de Kadafi que é particularmente nauseante nas circunstâncias atuais; festejado pelo governo trabalhista, por financiadores, por acadêmicos e pela família real, o atual governo inglês de coalizão estava prestes a continuar o trabalho de preparar Saif al-Islam Kadafi (o filho do ditador) como seu apadrinhado no regime assassino.A Rússia, entre outros, igualmente abasteceu os regimes locais com armas; e a França, competindo com os EUA e a Grã-Bretanha no mediterrâneo, Magreb e Oriente Médio, forneceu a Kadafi mísseis antitanque, telecomunicações militares e manutenção para seus caças-bombardeiros Mirage. A classe dominante francesa não tem nada a aprender da Pérfida Albion [2]. Já enviou dois carregamentos aéreos de uma suposta ajuda "humanitária" da qual o primeiro-ministro francês diz: "será o começo de uma operação em massa de apoio humanitário para as populações dos territórios libertados".Não é só fornecendo o armamento a estes regimes assassinos que a Grã-Bretanha lucra estratégica e economicamente. As várias forças especiais fornecem treinamento aos assassinos como um acessório ao comércio de armas e, de modo não surpreendente, sem ter absolutamente nenhum escrúpulo. Uma das realizações das mais notáveis do SAS (força de elite inglesa) consistia em treinar os quadros do Khmer Vermelho genocida de Pol Pot nos anos 60. Mais recentemente, foi visto o papel dos oficiais de polícia de West Mercia e de Humberside treinando os esquadrões da morte do governo de Bangladesh.E, finalmente, vale a pena recordar que as armas de destruição em massa - químicas e biológicas -, que Kadafi supostamente abandonou para retornar aos braços da "comunidade internacional" estão ainda intactas nos bunkers estatais e são uma possível ameaça a um grande número de pessoas na região.
Baboon 01/03/11
World Revolution, órgão da CCI na Grã-Bretanha
"Democracy arms Gaddafi’s brutal repression [13]".
Por WorldRevolution
[1] Os atuais vazamentos de informações diplomáticas realizados por Wikileaks revelam que a British Aerospace Systems (BAE) há pelo menos 10 anos subornou príncipes árabes (mais de 73 milhões de libras), pagando também dinheiro não declarado para seus agentes de marketing empregados pelo governo árabe. O suborno serviu como "influência" para aceitação do contrato irregular com a empresa em Al-Yamanah. O governo trabalhista pressionou o fim da investigação em 2006, com apoio saudita, o que não impediu pedidos de reabertura no início de março.
[2] Apelido depreciativo da Inglaterra atribuído pela monarquia francesa na Guerra dos Cem Anos.
Os eventos na Líbia começaram a partir de um protesto em massa contra Kadafi, inspirado pelos movimentos no Egito e na Tunísia. O impulso para a explosão de raiva em muitas cidades parece ter sido a repressão brutal das primeiras manifestações. De acordo com The Economist (26/02/11), a faísca inicial foi a manifestação em Benghazi em 15 de Fevereiro,composta por aproximadamente 60 jovens. Manifestações similares ocorreram em outras cidades e foram todas recebidas à bala. Face aos incontáveis assassinatos de jovens, milhares tomaram as ruas em batalhas desesperadas contra as forças do Estado. Estas lutas testemunharam ações de grande coragem. A população de Benghazi, ouvindo falar que os mercenários estavam circulando no aeroporto, desceu em massa até ele e sobre seus guardas e tomaram-no, apesar das grandes perdas. Em outra ação, civis apropriaram-se de escavadeiras e outros veículos e atacaram quartéis fortemente armados. A população em outras cidades expulsou as forças repressivas do Estado. A única resposta do regime era sempre mais repressão, mas esta conduziu à dissolução de boa parte das forças armadas, como os soldados e os oficiais que recusaram cumprir ordens de matar manifestantes. Um soldado matou com um tiro um oficial-comandante que deu ordem de atirar para matar. Inicialmente esta parece ter sido uma explosão genuína de raiva popular confrontada com repressão brutal e crescente miséria econômica, especialmente por parte da juventude urbana.
A profunda crise econômica e uma recusa crescente em aceitar a repressão têm sido o grande plano de fundo dos movimentos na Tunísia, Egito e em outras partes no Oriente Médio e África do Norte. A classe trabalhadora e a população em geral sofreram anos de pobreza e de exploração brutais enquanto a classe dominante acumulou vasta riqueza.
Mas por que a situação na Líbia foi tão diferente daquela na Tunísia e no Egito? Naqueles países, quando havia repressão, o principal meio para trazer o descontentamento social sob controle foi o uso da democracia. Na Tunísia, as crescentes manifestações da classe trabalhadora e da maior parte da população contra o desemprego foram desviadas quase do dia para a noite para o beco sem saída da sucessão de Ben Ali. Sob a orientação dos militares dos EUA, os militares tunisianos disseram ao presidente para lançar esta isca. No Egito, a saída de Mubarak levou mais tempo para ser alcançada, mas mesmo sua resistência assegurou que o descontentamento focalizasse somente descartá-lo. Algo importante: uma das coisas que finalmente o afastaram foi a deflagração de lutas exigindo melhores salários e condições de vida. Isto mostrou que quando os trabalhadores participavam das manifestações em massa contra o governo não tinham esquecido seus próprios interesses e não estavam dispostos a pô-los de lado em nome de "dar uma chance à democracia".
No Egito e na Tunísia as forças armadas são a espinha dorsal do Estado e podiam pôr os interesses do capital nacional acima dos interesses de pequenas associações particulares. Na Líbia as forças armadas não têm o mesmo papel. O regime de Kadafi manteve deliberadamente as forças armadas fracas por décadas, juntamente com qualquer outra parte do Estado que pudesse ser uma área de influência para seus rivais. "Kadafi tentou manter os militares fracos, porque assim eles não poderiam derrubá-lo, como ele derrubou o rei Idris" diz Paul Sullivan, um perito em África do Norte na Universidade de Defesa Nacional (National Defense University), sediada em Washington. O resultado é "militares mal treinados, dirigidos por uma liderança mal treinada que está à beira do colapso, não muito estáveis pessoalmente, e com muitas armas extras circulando ao redor." (Bloomberg 02/03/11). Isto significa que a única resposta que o regime tem para qualquer descontentamento social é a repressão despida.
A própria brutalidade da resposta estatal varreu a classe trabalhadora em uma desesperada manifestação de raiva ao ver seus filhos sendo massacrados. Mas aqueles trabalhadores que se juntaram às manifestações fizeram-no em sua maior parte como indivíduos: apesar da grande coragem que tiveram até para fazer frente às armas de Kadafi, não puderam levar adiante seus próprios interesses de classe.
Na Tunísia, como dissemos, o movimento começou entre a classe trabalhadora e os pobres contra o desemprego e a repressão. O proletariado no Egito participou do movimento depois de tomar parte em diversas ondas de lutas nos anos recentes, e esta experiência deu-lhe confiança na sua habilidade de defender seus próprios interesses. A importância desta foi demonstrada no fim das manifestações contra Mubarak, quando estourou uma onda de greves.
O proletariado líbio participou no atual conflito em uma posição fraca. Houve relatos de uma greve em um campo petrolífero. Mas é impossível dizer se houve alguma outra expressão da atividade da classe trabalhadora. Pode ter havido, mas devemos dizer que a classe trabalhadora como uma classe está mais ou menos ausente. Isto significa que a classe no início esteve vulnerável a todo o veneno ideológico gerado por uma situação de caos e confusão. A aparição da velha bandeira monarquista e sua aceitação como símbolo da revolta em uma questão de alguns dias marcam como esta fraqueza é profunda. Esta bandeira chegou com o slogan nacionalista "de uma Líbia livre". Igualmente, tem havido algumas expressões do tribalismo, com o apoio ou oposição ao regime de Kadafi sendo determinados em alguns casos por interesses regionais ou tribais; e líderes tribais usando sua autoridade para se colocar à cabeça da rebelião. Parece estar havendo igualmente uma forte presença do islamismo com o canto de "Allah Akbar" ("Deus é grande"), que está sendo ouvido em muitas manifestações.
Este pântano de ideologia exacerbou uma situação onde dezenas - se não centenas - de milhares de trabalhadores estrangeiros sentiram a necessidade de fugir do país. Por que os trabalhadores estrangeiros se alinhariam atrás de uma bandeira nacional, não importa sua cor? Um verdadeiro movimento proletário incorporaria os trabalhadores estrangeiros desde o início porque as demandas seriam comuns: melhores salários, condições de trabalho e o fim da repressão para todos os trabalhadores. Estariam unidos porque sua força seria sua unidade, sem levar em conta nação, tribo ou religião.
Kadafi fez amplo uso de todo este veneno para tentar e conseguir o apoio dos trabalhadores e da população contra a alegada ameaça erguida à sua "revolução": estrangeiros, tribalismo, islamismo, o ocidente.
A maioria da classe trabalhadora odeia o regime. Mas o perigo real e mais grave para a classe trabalhadora é seguir a "oposição". Esta "oposição", com o "Novo Conselho Nacional" que assume cada vez mais uma posição de liderança, é um conglomerado de várias frações da burguesia: antigos membros do regime, monarquistas, etc., junto com líderes tribais e religiosos. Todos levaram ampla vantagem do fato de este movimento não ter nenhuma direção proletária independente - para impor seu desejo de substituir a gerência de Kadafi do Estado líbio pelas suas próprias.
O Conselho Nacional de Ehe é claro sobre o seu papel: "O objetivo principal do Conselho Nacional é ter uma cara política... para a revolução, " "nós ajudaremos a libertar outras cidades líbias, em particular Trípoli, através de nosso exército nacional, das nossas forças armadas, parte das quais anunciou seu apoio ao povo," (Reuters África, 27/02/11) "não existe tal coisa de uma Líbia dividida" (Reuters, 27/02/11). Em outras palavras, seu objetivo é manter a ditadura capitalista atual, mas com uma cara diferente.
No entanto, a oposição não está unida. O ex- ministro da justiça de Kadafi, Mustafa Mohamed Abud Ajleil anunciou a formação de um governo provisório no fim de fevereiro com o apoio de alguns ex-diplomatas. Era sediado em Al-Baida. Esta manobra foi rejeitada pelo Conselho Nacional sediado em Benghazi.
Isto mostra que dentro da oposição há profundas divisões que eventualmente explodirão se ela conseguir se livrar de Kadafi. Ou quando estes "líderes" se digladiarem para conservar suas peles se Kadafi conseguir permanecer no poder.
O Conselho Nacional tem um rosto público melhor. É encabeçado por Ghoga, conhecido advogado pró-direitos humanos e, assim, pouco manchado por ligações com o regime, ao contrário de Ajleil. Todos tentam vender o melhor possível este grupo à população.
A mídia fez muito estardalhaço sobre os comitês que brotaram nas cidades, povoados e regiões onde Kadafi perdeu o controle. Muitos destes comitês parecem ter sido autonomeados por dignitários locais. Mesmo se alguns deles foram expressões diretas da revolta popular, podem ter sido arrastados para o enquadramento estatista, burguês, do Conselho Nacional. Os esforços do Conselho Nacional para estabelecer um exército nacional significam somente morte e destruição da classe trabalhadora - e da população no seu conjunto -, enquanto este exército luta com as forças de Kadafi. A fraternização social, que ajudou originalmente a minar os esforços repressivos do regime, será substituída por intensas batalhas em uma frente puramente militar, enquanto a população será chamada a fazer sacrifícios para assegurar a luta do exército nacional.
A transformação da oposição burguesa em um novo regime está sendo acelerada pela defesa cada vez mais aberta pelas principais potências: EUA, Grã-Bretanha, França, Itália, etc. Os gângsteres imperialistas agora se afastam de seu ex-colega Kadafi a fim de assegurar de que se uma nova equipe chega ao poder, eles possam manter alguma influência sobre ela. O apoio será para aqueles que se ajustarem com os interesses imperialistas das grandes potências.
O que aparentemente começou como uma desesperada resposta à repressão por setores da população foi usada muito rapidamente pela classe dominante na Líbia e no exterior para seus próprios fins. Um movimento que começou como uma furiosa luta para deter o massacre de jovens terminou em outro massacre de jovens, mas agora em nome de uma Líbia livre.
O proletariado dentro e fora da Líbia só pode responder aumentando sua determinação para não se deixar afundar em lutas sangrentas entre facções da classe dominante - em nome da democracia ou de uma nação livre. Nos dias e nas semanas a seguir, se Kadafi segurar firmemente o poder, o coro internacional de apoio à oposição nesta guerra civil estará cada vez mais alto. E se for derrubado, haverá uma campanha igualmente ensurdecedora sobre o triunfo da democracia, do poder do povo e da liberdade. Em ambas as formas, os trabalhadores serão convidados a se identificar com a face democrática da ditadura do capitalismo.
Phil 05/03/11
World Revolution, órgão da CCI na Grã-Bretanha.
No The Guardian de 28/02/11, com o artigo intitulado "Como os líderes ‘revolucionários' da América Latina podem apoiar Kadafi?" Mike Gonzales critica os presidentes Ortega da Nicarágua e Chávez da Venezuela, juntamente com Fidel Castro, por expressarem simpatia por Kadafi e pelo governo líbio. Diz que "não podem apoiar um regime opressivo que enfrenta agora um movimento democrático de massas vindo de baixo" quando, aparentemente, o fazem.
A natureza exata do movimento está em aberto para a discussão, mas não pode haver nenhum pseudo-debate com o fato de que o estado capitalista líbio é repressivo.
Em contraste com o regime de Kadafi, Gonzales diz que Ortega e Chávez "chegaram ao poder como resultado de uma insurreição de massas" e que ao derrubar Batista, Castro "era imensamente popular". Independente das suas rotas ao poder Ortega, Chavez e Castro são partes integrantes da classe dominante capitalista em seus países. Acontece que Ortega e Chavez passaram a ser presidentes após eleições. Entretanto, quer estejam no poder através da urna eleitoral, quer estejam através de um golpe militar como Kadafi, fazem o melhor que podem para servir seus capitais nacionais.
O que Gonzales quer ouvir é uma denúncia apaixonada da repressão líbia e expressões de solidariedade com o povo. Sua explicação para a falha de seus heróis caídos é a de que "A Líbia investiu em todos os três países e se apresentou como um poder antiimperialista." Esta é uma explicação um pouco crua, parcialmente materialista. Na realidade, todos estes líderes de esquerda proclamam suas credenciais do antiimperialistas, e reconhecem Kadafi como um dos seus, um dos patrões que podem falar como 'radicais'. Enquanto isso, a classe trabalhadora explorada e outros estratos sociais oprimidos resistem à realidade capitalista que eles dirigem.
Há uma exceção a este padrão. O presidente iraniano Ahmadinejad criticou "o mau comportamento do governo líbio para com o povo" e disse que o estado deve escutar os desejos do povo. Isto é o que líderes ‘radicais' supostamente fazem, e, se criticam outros governos sua mensagem será transmitida por seus admiradores esquerdistas.
O golpe de Kadafi de1969 parece um pouco de diferentes através dos olhos do WRP, que publica "Newsline". Referem-se a ele como "a revolução líbia, através da qual o povo líbio tomou o controle do seu país do imperialismo da Inglaterra e dos EUA em 1969." (28/02/11).
Outros esquerdistas riem do WRP por causa dos acordos e comunicados que assinou com o governo líbio, em sua lealdade servil ao estado ‘socialista' líbio e ao Iraque de Saddam Hussein (ambos deram dinheiro ao WRP), a sua defesa da execução de stalinistas no Iraque, e toda uma série de atividades sórdidas de colaboração com regimes no Oriente Médio durante o final dos anos 70 e no início dos 80. Mesmo agora, depois que todas as contribuições líbias possivelmente secaram há muito tempo, "concitamos as massas e a juventude líbias a se posicionar ao lado do coronel Kadafi para defender as conquistas da revolução líbia, e para desenvolvê-las. Isto só pode ser feito pela derrota da rebelião atual" (Newsline 23/02/11), e publica um dos maiores trechos disponíveis do discurso de Kadafi "feito ao povo líbio... para reuni-lo contra as forças internas da contra-revolução e seus apoiadores da Inglaterra e dos EUA." (idem, 24/02/11).
Mas os esquerdistas que apontam o dedo acusador ao WRP por aceitar o dinheiro do regime sangrento de Kadafi são suspeitos para dizer alguma coisa. O que o WRP era pago para fazer a maioria de grupos esquerdistas faz de graça.
Tomemos o exemplo da guerra do Vietnã. Nos anos 60 e 70 o grupo International Socialists (que se tornaram o SWP mais tarde [2], descreveu o Vietnã do Norte como um ‘estado capitalista', quando trotskistas mais ortodoxos chamaram-no de ‘estado operário deformado', e os stalinistas chamaram-no de ‘socialista'. Estas diferenças pouco afetaram a insistência unitária da esquerda na necessidade dos trabalhadores e camponeses no Vietnã sacrificarem suas vidas pelo norte capitalista contra o sul capitalista.
Na guerra de oito anos entre Irã e Iraque nos anos 80, durante a qual aproximadamente um milhão de pessoas morreu, a esquerda pôs toda a ênfase em sua propaganda no apoio dos EUA e outros ao regime iraquiano de Saddam Hussein. Pode ter havido algumas reservas sobre o regime iraniano e sua ideologia religiosa arcaica, mas o consenso à esquerda era o de que era melhor morrer pelo Irã que pelo Iraque. Naturalmente, quando o Iraque estava sob ataque dos EUA e suas ‘coalizões' os esquerdistas descobriram um Saddam defensável, mesmo que a situação da classe trabalhadora não tenha sido alterada de modo nenhum.
Durante os conflitos que desintegraram a Iugoslávia no começo dos anos 90, os esquerdistas escolheram seu campo uma vez mais. A lógica da defesa da Bósnia ou de Kosovo levou ao apoio do bombardeio de Belgrado. O apoio à Sérvia e a uma Iugoslávia unida significou apoio aos massacres empreendidos por forças ‘oficiais' e paramilitares
A bestialidade do WRP é fácil de ver, mas o ‘apoio crítico' oferecido por outros esquerdistas para várias facções da burguesia é abertamente venenoso. Com os chamados à intervenção militar na Líbia crescendo em voz alta será interessante ver a quem os esquerdistas vão se unir. A experiência passada mostra que não será com a classe trabalhadora em defesa de seus interesses.
Car 04/03/11
World Revolution, órgão da CCI na Grã-Bretanha
https://en.internationalism.org/wr/342/leftists-gaddafi [15]
[1] Workers Revolutionary Party: Partido Revolucionário dos Trabalhadores, grupo trotskista inglês ligado ao PSOL brasileiro de Heloísa Helena e Plínio de Arruda Sampaio. É importante sublinhar que atualmente no Brasil (e também no exterior), todas as organizações burguesas "radicais" grandes e pequenas declaram solidariedade ao governo líbio diante da ameaça imperialista pró-EUA: o jornal getulista-stalinista-lulista (sim, eles podem!) "Hora do Povo", a LBI, o PSTU, etc.
[2] SWP: Socialist Workers Party, Partido Socialista dos Trabalhadores, outra agremiação trotskista inglesa. Mike Gonzales é integrante deste partido
Este artigo (escrito em 1975) é uma tentativa de análise dos acontecimentos de Kronstadt e das lições que deles se pode tomar, para o desenvolvimento do movimento operário de hoje e de amanhã. Nele são desenvolvidos os pontos essenciais para que os revolucionários compreendam o que herdamos daqueles episódios. Estes pontos podem ser resumidos da seguinte forma:
1 – A revolução proletária é, por sua própria natureza histórica, uma revolução internacional. Enquanto permanecer localizada no limite de um ou vários países isolados, tropeçará com dificuldades absolutamente insuperáveis e encontrar-se-á fatalmente condenada à morte a curto ou longo prazo.
2 – Ao contrário de outras revoluções na história, a revolução proletária exige a participação direta, constante e ativa do conjunto da classe. O que significa que nunca poderá aceitar a "delegação" do poder a um partido, nem a uma fração da classe ou um corpo especializado, por mais revolucionário que seja, sob pena de iniciar um processo de degeneração que suplante toda ela.
3 – A classe operária é a única revolucionária, não só na sociedade capitalista, mas também no período de transição, enquanto sigam subsistindo as classes a nível mundial. De modo que a autonomia total do proletariado com relação a outras classes e camadas sociais seguirá sendo a condição fundamental que vai lhe permitir exercer a hegemonia e sua ditadura de classe para a instauração da sociedade comunista.
4 – A autonomia do proletariado significa que sob nenhum pretexto as organizações unitárias e políticas da classe terão que se subordinar às instituições do Estado, pois isso equivaleria à dissolução destes órgãos de classe e levaria o proletariado a abdicar de seu programa comunista, do qual é o único sujeito.
5 – A marcha ascendente da revolução proletária não é conseqüência de tal ou qual medida econômica, por mais importante que essa seja. A única garantia do avanço da revolução é o programa, a visão e a ação política e total do proletariado. Em todo esse conjunto estão compreendidas as medidas econômicas imediatamente possíveis que se ajustam ao sentido do programa.
6 – A violência revolucionária é uma arma do proletariado frente às outras classes. Sob nenhum pretexto esta servirá de critério nem instrumento dentro da própria classe, porque não é um meio de tomada de consciência. Os únicos meios através dos quais o proletariado pode tomar consciência são sua própria experiência e o exame crítico constante dela. Com isto queremos dizer que o exercício da violência no interior da classe, seja qual for sua motivação e possível intensificação imediata, só pode impedir a atividade própria das massas e ser o maior obstáculo para sua tomada de consciência, que é condição indispensável para o triunfo do comunismo.
A revolta de Kronstadt em 1921 é a pedra de toque que separa os que podem compreender o processo e a evolução da revolução proletária graças a suas posições de classe, daqueles outros que consideram a revolução como letra morta. Esses acontecimentos ressaltam de forma trágica algumas das mais importantes lições de toda a revolução russa, lições que o proletariado não pode ignorar e ainda mais no momento em que está preparando seu próximo grande levante revolucionário contra o capital.
Qualquer estudo marxista do problema de Kronstadt só pode partir da afirmação de que a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia foi proletária, um momento no desenvolvimento da revolução proletária mundial que era a resposta da classe operária internacional à guerra imperialista de 1914-18. Esta guerra foi o marco que destacou a entrada definitiva do capitalismo em seu ocaso histórico irreversível, tornando, assim, a revolução proletária uma necessidade material em todos os países. Devemos afirmar também que o partido bolchevique, que era a vanguarda da revolução de outubro, era um partido comunista proletário, uma força vital na esquerda internacional após a traição da II Internacional em 1914 e que seguiu defendendo as posições de classe do proletariado durante a Primeira Guerra Mundial e no período subsequente.
Ao contrário dos que falam da insurreição de outubro como um simples "golpe de Estado", um putsch, realizado por uma camarilha de conspiradores, nós repetimos que a insurreição foi o ponto culminante de um longo processo de luta de classes e a prova da maturação da consciência da classe operária organizada em sovietes, comitês de fábrica e guardas vermelhos. A insurreição era parte de um processo de destruição do Estado burguês e de instauração da ditadura do proletariado; os bolcheviques defenderam-na com unhas e dentes como algo que devia marcar a primeira baliza decisiva da revolução proletária mundial, da guerra civil contra burguesia. Como estava longe do espírito dos bolcheviques, naquele momento, a ideia de que a insurreição teria mais tarde como fim a "construção do socialismo unicamente na Rússia", apesar do número de erros e confusões que continha o programa econômico imediato da revolução, erros que, por outro lado, eram compartilhados na época pelo movimento operário em seu conjunto.
Só deste modo se pode esperar compreender a degeneração posterior da revolução russa. Como este problema é abordado em outro texto da revista da CCI (A degeneração da Revolução Russa [1]), limitar-nos-emos aqui a algumas observações gerais. A revolução iniciada em 1917 não conseguiu se estender internacionalmente apesar das numerosas tentativas que houve em toda Europa. A própria Rússia encontrava-se dilacerada por uma longa e sangrenta guerra civil que devastou a economia e fragmentou a classe operária industrial, coluna vertebral do poder dos sovietes. Neste contexto de isolamento e de caos interno, os erros ideológicos dos bolcheviques começaram a exercer um peso material contra a hegemonia política da classe operária, quase imediatamente depois de ter tomado o poder. No entanto, era um processo irregular. Os bolcheviques recorriam a medidas cada vez mais burocráticas na própria Rússia pelos anos 1918-20, ao mesmo tempo em que contribuíam para fundar a Internacional Comunista (IC) em 1919, com um único e claro objetivo que era acelerar a revolução proletária mundial.
A delegação do poder a um partido, a eliminação dos comitês de fábrica, a subordinação progressiva dos sovietes ao aparato de Estado, a dissolução das milícias operárias, o modo "militarizado" cada vez mais acentuado de se enfrentar as dificuldades, resultado dos períodos de tensão durante a guerra civil, a criação de comissões burocráticas, eram manifestações evidentes do processo de degeneração da revolução russa.
Estes fatos não são os únicos sinais de enfraquecimento do poder político da classe operária, mas são com toda segurança os mais importantes. Foi, sobretudo, durante a guerra civil quando se pôde observar uma acentuação do processo, embora alguns sintomas já fossem visíveis antes do período do comunismo de guerra. Uma vez que a rebelião de Kronstadt foi, em muitos aspectos, uma reação contra os rigores do comunismo de guerra, será preciso mostrar aqui com especial clareza o significado real que teve este período para o proletariado russo.
Como destaca o artigo sobre a "degeneração da revolução russa", [2] agora nós não podemos seguir mantendo as ilusões dos comunistas de esquerda daquela época, que, em sua maioria, viam no comunismo de guerra uma "verdadeira" política socialista, contra a restauração do capitalismo estabelecida pela NEP (Nova Política Econômica). O desaparecimento quase total do dinheiro e dos salários, a requisição dos cereais aos camponeses não significavam a abolição das relações sociais capitalistas, senão que eram simples medidas de urgência impostas pelo bloqueio econômico capitalista contra a República dos Sovietes e pelas necessidades da guerra civil. Quanto ao poder político real da classe operária, já vimos que aquele período esteve marcado por uma debilitação progressiva dos órgãos da ditadura do proletariado e pelo desenvolvimento de tendências burocráticas e institucionais. A direção do Partido-Estado empenhava-se em demonstrar que a organização da classe era excelente em princípio, porém, naquelas circunstâncias, era melhor subordinar tudo à luta militar. A doutrina da "eficácia" começava a minar os princípios fundamentais da democracia proletária. Baseando-se nesta doutrina, o Estado começou a instaurar uma militarização do trabalho, que submetia os trabalhadores a métodos de vigilância e exploração extremamente severos. "Em janeiro de 1920, o Conselho de Comissários do Povo, instigado principalmente por Trotsky, decretou a obrigação geral de trabalhar aplicável a todos os adultos válidos, ao mesmo tempo que autorizava o destino do pessoal militar ocioso a serviços civis." (Avrich, Kronstadt 1921. Princetown, p. 26-27. Tradução nossa)
Ao mesmo tempo, as tropas do exército vermelho reforçavam a disciplina de trabalho nas fábricas. Debilitados os comitês de fábrica, o Estado tinha via livre para introduzir a direção personalista e o Sistema Taylor de exploração, anteriormente criticado por Lênin como "escravização do homem pela máquina". Para Trotsky, "a militarização do trabalho é o método de base indispensável para a organização de nossa mão de obra". (Relatório do III Congresso dos Sindicatos de toda a Rússia. Moscou 1920. Tradução nossa). O fato de que o Estado fosse naquele momento um "Estado Operário" significava, para ele, que os trabalhadores não poderiam colocar objeções à sua total submissão ao Estado.
Mas as duras condições de trabalho das fábricas não eram recompensadas com salários elevados ou um fácil acesso aos "valores de uso". Pelo contrário, os estragos que o bloqueio e a guerra tinham feito na economia fizeram que logo aparecesse o espectro da fome. Os trabalhadores tinham que se conformar com rações cada vez mais escassas e distribuídas com frequência de modo irregular. Amplos setores da indústria deixaram de funcionar e milhares de trabalhadores foram abandonados aos seus próprios meios, ou aos de sua imaginação para sobreviver. A reação de muitos deles foi renunciar à cidade e buscar a subsistência no campo. Muitos tentaram sobreviver negociando diretamente com os camponeses, trocando frequentemente ferramentas roubadas na fábrica por alimentos. Quando o regime do comunismo de guerra proibiu a troca entre indivíduos, encarregando o Estado da requisição e distribuição de bens essenciais, muita gente só pôde sobreviver graças ao mercado negro que se difundiu em todo o país. Para lutar contra esse mercado negro o governo criou obstáculos para fiscalizar todos os viajantes que entravam ou saiam das cidades, enquanto as atividades da Cheka (polícia política) para reforçar os decretos do governo tornavam-se cada vez mais enérgicas. Esta "Comissão Extraordinária" estabelecida em 1918 para combater a contrarrevolução funcionava de um modo mais ou menos sem controle. Seus métodos impiedosos valeram-lhe o ódio geral da população.
Nem o tratamento sumário dispensado aos camponeses ganhou a aprovação universal dos trabalhadores. As estreitas relações familiares e pessoais que existiam entre muitos setores da classe operária russa e o campesinato tornavam os trabalhadores especialmente sensíveis às queixas dos camponeses sobre os métodos que costumavam utilizar os destacamentos armados enviados para a requisição de cereais, sobretudo quando estes requeriam-lhes mais do que lhes sobrava para viver, deixando-os sem os meios necessários para satisfazer suas necessidades. O resultado que deram estes métodos foi que, com freqüência, os camponeses escondiam ou destruíam suas colheitas, agravando a situação de pobreza e penúria em todo o país. A impopularidade geral destas medidas econômicas coercitivas seria exposta mais tarde no programa dos insurgentes de Kronstadt como veremos depois.
Se alguns revolucionários, como Trotsky, tinham tendência a converter a necessidade em virtude e a glorificar a militarização da vida econômica e social, outros, como Lênin, faziam prova de maior prudência. Lênin não dissimulava o fato de que os sovietes já não funcionavam como órgãos diretos do poder proletário e durante o debate sobre o problema dos sindicados em 1921 com Trotsky, defendeu a ideia de que os trabalhadores deviam defender-se por si próprios contra seu Estado, particularmente desde que, segundo Lênin, a república dos sovietes já não era somente um "Estado proletário", senão um "Estado de operários e camponeses" com profundas "deformações burocráticas". A Oposição Operária e, com certeza, outros grupos de esquerda, chegaram mais longe na denúncia destas deformações burocráticas que o Estado sofrera no período 1918-21. Mas, a maioria dos bolcheviques acreditavam sincera e firmemente que enquanto eles (o partido do proletariado) controlassem o aparato de Estado, a ditadura do proletariado seguiria existindo, apesar das massas trabalhadoras terem desaparecido temporariamente da vida política. Esta posição, fundamentalmente falsa, provocaria inevitavelmente consequências desastrosas.
Enquanto durou a guerra civil, o Estado dos sovietes seguia conservando o apoio da maioria da população, pois havia se identificado com o combate contra as antigas classes possuidoras e capitalistas. As duras privações da guerra civil foram suportadas com relativa boa vontade pelos trabalhadores e pequenos camponeses. Mas, depois da derrota dos exércitos imperialistas, muitos acreditaram que podiam esperar que as condições de vida fossem, a partir de então, menos severas e que o regime flexibilizasse um pouco o controle da vida econômica e social.
A direção bolchevique, no entanto, confrontada com os estragos que a guerra fizera na produção, mostrou-se bastante reticente em permitir ao menos o relaxamento do controle estatal centralizado. Alguns bolcheviques de esquerda, como Ossinsky, defendiam a manutenção e inclusive o reforço do comunismo de guerra, sobretudo no campo. Dessa forma, propôs um plano para a "organização obrigatória das massas para a produção" [3], sob a direção do governo para a formação de "comitês de semeadura" locais. Estes comitês teriam como objetivo o aumento da produção coletivizada e a criação de armazéns de sementes comuns, nos quais os camponeses deveriam reunir todos os grãos; o governo encarregar-se-ia da distribuição destes grãos. Todas estas medidas (pensava Ossinsky) conduziriam naturalmente à economia "socialista" na Rússia.
Os outros bolcheviques, como Lênin, começaram a pressentir a necessidade de suavizar um pouco a pressão, especialmente quanto aos camponeses, mas, no conjunto, o partido defendia com unhas e dentes os métodos do comunismo de guerra. O resultado foi que a paciência dos camponeses começou a se esgotar e no inverno de 1920-21 registraram-se vários levantes destes em todo o país. Na província de Tambov, na região média do Volga, na Ucrânia, na Sibéria ocidental e em muitas outras regiões, os camponeses organizaram-se em bandos armados muito rapidamente, para lutar contra os destacamentos de abastecimento e a Cheka. Muito frequentemente, alistaram-se em suas fileiras soldados recém licenciados do exército vermelho que lhes aportavam certas noções de estratégia militar. Em algumas regiões, formaram-se enormes exércitos rebeldes, a meio caminho entre a guerrilha e a horda de bandidos. Em Tambov, por exemplo, o exército que estava sob o comando de A. S. Antonov, chegou a contar com até 50.000 homens. Era pouca a motivação ideológica destas forças, caso com exceção do tradicional ressentimento dos camponeses contra a cidade, contra o governo centralizado e os clássicos sonhos de independência e autossubsistência que sempre teve a pequena burguesia rural. Depois do enfrentamento com as tropas camponesas de Makhno na Ucrânia, a possibilidade de um levantamento generalizado contra o poder dos sovietes era algo que atormentava os bolcheviques. Nada tem de estranho, pois, que compreendessem o levante de Kronstadt como esta ameaça que lhes fazia mais propriamente o campesinato. Esta foi, sem dúvida, uma das razões pelas quais reprimiram com tanta selvageria o levante de Kronstadt.
Quase imediatamente depois, surgiu em Petrogrado uma série de greves selvagens muito mais importantes. Tudo começou na fábrica metalúrgica de Trubochny e estendeu-se rapidamente a muitas outras grandes indústrias da cidade. Nas assembleias de fábrica e nas manifestações, adotavam-se resoluções que reclamavam um aumento das rações de alimentos e roupa, pois muitos deles passavam fome e frio. Ao mesmo tempo, iam aparecendo outro tipo de reivindicações, estas mais políticas: os operários queriam que terminassem as restrições sobre os deslocamentos para fora das cidades, a libertação dos prisioneiros da classe operária, a liberdade de expressão, etc. As autoridades soviéticas da cidade, encabeçadas por Zinoviev, responderam denunciando que as greves serviam aos propósitos da contrarrevolução e puseram a cidade sob controle militar direto, proibindo as assembleias nas ruas e ordenando o toque recolher às 11 h da noite. Sem dúvida alguma, certos elementos contrarrevolucionários como os mencheviques ou os S.R. jogaram um papel nos acontecimentos com suas teorias falaciosas sobre a "salvação", mas o movimento de greve de Petrogrado era essencialmente uma resposta proletária espontânea às condições de vida insuportáveis. Mas as autoridades bolcheviques não podiam admitir que os operários se pusessem em greve contra o "Estado Operário" e taxaram os grevistas de provocadores, preguiçosos e individualistas. Trataram também de romper a greve fechando fábricas, privando-as de suas rações e ordenando a detenção dos líderes mais destacados pela Cheka local. Estas medidas repressivas foram combinadas com concessões: assim, Zinoviev anunciava ao mesmo tempo o fim do bloqueio das estradas dos arredores da cidade, a compra de carvão no exterior para fazer frente à penúria de combustível e o projeto para acabar com as requisições de cereais. Esta mistura de repressão e conciliação conduziu os trabalhadores, já debilitados e esgotados, ao abandono da sua luta na esperança de um futuro mais promissor.
Mas o eco mais importante que o movimento de greve de Petrogrado teve foi na fortaleza próxima de Kronstadt. A guarnição de Kronstadt, um dos principais baluartes da Revolução de Outubro, havia travado uma luta contra a burocratização antes das greves de Petrogrado. Durante os anos 1920-21 os marinheiros da frota vermelha no Báltico haviam combatido as tendências disciplinares dos oficiais e as habilidades burocráticas do POUBALT (secção política da frota do Báltico, o órgão do Partido que dominava a estrutura soviética da marinha). Em fevereiro de 1921, as assembleias de marinheiros votaram moções declarando que "o POUBALT não apenas se separou das massas, mas inclusive dos funcionários ativos. Converteu-se num órgão burocrático sem nenhuma autoridade entre os marinheiros". (Ida Mett, A Comuna de Kronstadt, Solidarity pamphlet. p. 3).
Assim estavam as coisas quando chegaram notícias das greves de Petrogrado e de que as autoridades haviam declarado a lei marcial. Já havia certo estado de fermentação entre os marinheiros? O certo é que em 28 de fevereiro, enviaram uma delegação às fábricas de Petrogrado para ver o que estava acontecendo. No mesmo dia, a tripulação do cruzeiro Petropavlosk reuniu-se para discutir a situação e adotar a seguinte resolução:
"Depois de ter ouvido os representantes delegados pela Assembleia geral das tripulações dos navios com o objetivo de conhecer a situação de Petrogrado, os marinheiros decidem:1 – Organizar novas eleições para os sovietes com voto secreto e preparação prévia da livre propaganda eleitoral, já que os atuais sovietes não expressam a vontade dos operários e camponeses.2 – Exigir a liberdade de palavra e de imprensa para os operários, os camponeses, os anarquistas e os socialistas de esquerda.3 – Exigir a liberdade de reunião, de organizações sindicais e de organizações camponesas.4 – Organizar uma conferência de operários sem partido, soldados e marinheiros de Petrogrado, de Kronstadt e da província de Petrogrado para antes de 10 de março de 1921.5 – Exigir a libertação de todos os prisioneiros políticos dos partidos socialistas, operários e camponeses, soldados vermelhos e marinheiros encarcerados por terem participado dos diferentes movimentos operários e camponeses.6 – Eleger uma comissão para a revisão dos expedientes processuais dos detidos nos cárceres e campos de concentração.7 – Suprimir todos os Politotdiel (secções políticas), pois nenhum partido deve ter privilégios para a propaganda de suas ideias nem receber ajuda do Estado com este fim. Em seu lugar, serão criados círculos culturais eleitos que serão financiados pelo próprio Estado.8 – Suprimir imediatamente todos os destacamentos de controle nas estradas e vias.9 – Igualar as rações de todos os trabalhadores com a única exceção dos ofícios insalubres e perigosos.10 – Suprimir os destacamentos comunistas de combate nas unidades militares e fazer desaparecer o serviço de guarda comunista das fábricas. Em caso de necessidade destes serviços de guarda, serão designados em cada unidade, depois de consultar a opinião dos operários.11 – Dar aos camponeses completa liberdade de ação sobre suas terras e conceder-lhes o direito de possuir gado que eles mesmos criarão sem utilizar, em nenhum caso, o trabalho de pessoal assalariado.12 – Pedir a todas as unidades militares, e igualmente aos camaradas Kursantys [Nota da redação: aspirantes] que se associem à nossa resolução.13 – Exigir que a imprensa faça amplo eco de todas estas resoluções.14 – Designar um comitê volante de controle.15 – Autorizar a livre produção artesanal, sempre que não se utilize para ela pessoal assalariado."
Esta resolução converteu-se rapidamente no programa da revolta de Kronstadt. Em primeiro de março houve uma assembleia de massa na guarnição que reuniu 16.000 pessoas. Oficialmente havia sido convocada como uma assembleia da primeira e da segunda secções de cruzeiros. A ela assistia Kalinin, presidente do executivo dos sovietes de toda a Rússia, e Kouzmin, comissário político da frota do Báltico. Ainda que Kalinin tenha sido acolhido com música e bandeiras, logo ficou completamente isolado na assembleia, assim como Kouzmin. A assembleia inteira adotou a resolução do Petropavlosk, menos Kalinin e Kouzmin, que tomaram a palavra com um tom provocador para denunciar as iniciativas que haviam sido tomadas em Kronstadt. No fim, foram vaiados.
No dia seguinte, dois de março, era o dia em que o Soviete de Kronstadt devia ser reeleito. A Assembleia de 1º de março convocou, então, os delegados dos barcos, das unidades do exército vermelho, das fábricas, a uma reunião para tratar da reconstituição do Soviete. Uns 300 delegados encontraram-se na casa de cultura. A resolução do Petropavlosk foi novamente adotada, assim como os projetos para a eleição do novo Soviete apresentados em uma moção orientada a "uma reconstrução pacífica do regime dos sovietes." (Ida Mett, op. cit.) Ao mesmo tempo, os delegados formaram um comitê revolucionário provisório (CRP), encarregado da administração da cidade e da organização da defesa contra toda intervenção do governo. Considerou-se que esta última tarefa era a mais urgente, pois corriam rumores sobre um ataque imediato dos destacamentos bolcheviques, em função das violentas ameaças de Kalinin e Kouzmin. Estes últimos adotaram uma atitude tão inflexível que foram detidos com outras personalidades oficiais. Com este último ato, a situação converteu-se já num motim declarado e foi interpretado pelo governo como tal.
O CRP pôs imediatamente mãos à obra. Começou a publicar seus próprios Izvestia, cujo primeiro número declarava: "O partido comunista, senhor do Estado, separou-se das massas. Demonstrou sua incapacidade para tirar o país do caos. Inumeráveis acidentes ocorreram recentemente em Moscou e em Petrogrado, os quais demonstram claramente que o Partido perdeu a confiança dos trabalhadores. O partido não faz caso das necessidades da classe operária, porque pensa que estas reivindicações são fruto de atividades contrarrevolucionárias. Ao atuar assim, o Partido incorre em um grande erro." (Izvestia do CRP. 3 de março de 1921)
A resposta imediata do Governo Bolchevique à rebelião foi denunciá-la como mais uma faceta da conspiração contrarrevolucionária contra o poder dos sovietes. A Rádio Moscou a chamava de "complô da Guarda Branca" e afirmava possuir provas de que tudo fora organizado pelo círculo de emigrantes de Paris e pelos espiões da Entente. Ainda que estas falsificações continuem sendo utilizadas hoje em dia, já não se lhes dá muito crédito, nem sequer historiadores semitrotskistas, como Deutscher, que considera estas acusações desprovidas de fundamento real. Com certeza, todos os carniceiros da contrarrevolução, desde a Guarda Branca até os S.R. trataram de recuperar a rebelião e lhe ofereceram seu apoio. Mas, apesar da ajuda "humanitária" que chegou através da Cruz Vermelha russa, controlada pelos emigrantes, o CRP rechaçou todas as proposições feitas pela reação. Em vez disso, proclamou bem alto que não lutavam por um retorno à autocracia nem à Assembleia Constituinte, mas lutavam por uma regeneração do poder dos sovietes, liberado do domínio burocrático: "a defesa dos trabalhadores são os sovietes e não a Assembleia Constituinte" [4], declaravam o Izvestia de Kronstadt.
Quando ficou demonstrado que a ideia de um simples complô era pura ficção, os que se identificavam de uma forma não crítica com a decadência do Bolchevismo, apresentaram desculpas mais elaboradas para justificar a repressão de Kronstadt.
Em "Hue and Cry over Kronstadt" (New International. Abril 1938), Trotsky apresentou a seguinte argumentação: é certo, Kronstadt foi um dos baluartes da revolução proletária em 1917. Mas durante a guerra civil, os elementos revolucionários proletários da guarnição foram dispersados e substituídos por elementos camponeses impregnados da ideologia pequeno-burguesa reacionária. Esses elementos não podiam resistir aos rigores da ditadura do proletariado e da guerra civil, rebelaram-se com o objetivo de debilitar a ditadura e outorgar-se rações privilegiadas. O levantamento de Kronstadt não era senão uma reação armada da pequena burguesia contra os sacrifícios da revolução social e a austeridade da ditadura do proletariado". Trotsky continua dizendo que os trabalhadores de Petrogrado, ao contrário dos dândis de Kronstadt, suportaram estes sacrifícios sem se queixar e terminaram "aborrecidos com a rebelião", porque se deram conta de que "os amotinados de Kronstadt estavam do outro lado da barricada" e, portanto, haviam decidido "emprestar seu apoio aos sovietes."
Não interessa agora passar muito tempo examinando estes argumentos; os fatos que citamos os desmentem. A afirmação de que os insurgentes de Kronstadt reclamavam rações privilegiadas para eles mesmos fica desmentida se nos remetemos ao ponto 9 da resolução do Petropavlosk, que reclamava rações iguais para todos. Do mesmo modo, o retrato dos operários de Petrogrado emprestando docilmente seu apoio à repressão se desmente pela realidade das greves que precederam à revolta. Embora este movimento tivesse decaído muito no momento em que a revolta de Kronstadt estourou, importantes frações do proletariado de Petrogrado seguiram apoiando de forma efetiva aos insurgentes. Em 7 de março, dia em que começou o bombardeio de Kronstadt, os trabalhadores do arsenal reuniram-se em comício e elegeram uma comissão encarregada de lançar uma greve geral para sustentar a rebelião. Em Pouhlov, Battisky, Oboukov e nas principais empresas continuavam as greves.
Por outro lado, não vamos negar que havia elementos pequeno-burgueses no programa e na ideologia dos insurgentes e no pessoal da frota e do exército. Mas, todos os levantes proletários vêm acompanhados de uma quantidade de elementos pequeno-burgueses e reacionários, o que não mudam o caráter fundamentalmente operário do movimento. Isto foi sem dúvida o que ocorreu inclusive na insurreição de outubro, que contava com o apoio e a participação ativa de elementos camponeses nas forças armadas e no campo. A composição da assembleia de delegados de 2 de março demonstra que os insurgentes tinham uma ampla base operária. Ela era formada em grande parte por proletários das fábricas, das unidades da marinha da guarnição e do conjunto do CRP eleito pela assembleia. O CRP era formado por veteranos trabalhadores e marinheiros que haviam participado do movimento revolucionário, pelo menos desde 1917. (Veja-se a obra mencionada de Ida Mett para a análise da lista de membros deste comitê). Mas estes fatos são menos importantes que o contexto geral da revolta: esta, aconteceu no contexto da luta da classe operária contra a burocratização do regime, identificava-se com esta luta e era compreendida como um momento de sua generalização.
Os anarquistas, ideólogos da pequena burguesia, falavam de Kronstadt como sendo sua revolta. Apesar de ter havido, sem qualquer sobra de dúvida, influências anarquistas no programa dos insurgentes e em sua ideologia, as reivindicações não eram simplesmente anarquistas. Não reclamavam uma abolição abstrata do Estado, mas a regeneração do poder dos sovietes. Tampouco queriam abolir os "partidos" como tais. Embora muitos insurgentes tenham abandonado o partido bolchevique naquela época e apesar de terem sido publicadas muitas resoluções confusas sobre a "Tirania Comunista", nunca propuseram "os Sovietes sem os comunistas", como se afirmou muito frequentemente. Suas bandeiras eram de liberdade de agitação aos diferentes grupos da classe operária e "o poder aos sovietes, não aos partidos". Apesar de todas as ambiguidades que estas bandeiras comportavam, expressavam uma rejeição instintiva da ideia de partido que suplanta a classe, o qual foi um dos principais fatores que contribuíram para a degeneração do bolchevismo.
Um dos traços característicos da rebelião é que não apresentava uma análise política clara e coerente da degeneração da revolução. Tais análises deveriam encontrar expressão no seio das minorias comunistas, embora, em certas conjunturas específicas, estas minorias sejam pouco a pouco rejeitadas no que diz respeito à consciência espontânea do conjunto da classe. No caso da revolução russa, foi preciso que se passassem várias décadas de árdua reflexão na Esquerda Comunista Internacional para chegar a uma compreensão coerente do que era a degeneração. O levante de Kronstadt representava uma reação elementar do proletariado contra esta degeneração, uma das últimas manifestações de massa da classe operária russa naquela época. Em Moscou, Petrogrado e Kronstadt, os trabalhadores lançaram um pedido de socorro desesperado para salvar a revolução russa que começava a declinar.
Muitas foram as polêmicas a propósito da relação entre as reivindicações rebeldes e a NEP (Nova Política Econômica). Para stalinistas inveterados como os da Organização Comunista Inglesa e Irlandesa – B&ICO (Problema do Comunismo nº 3), foi preciso massacrar a rebelião porque seu programa econômico de troca e de livre comércio era uma reação pequeno-burguesa contra o processo de "construção do socialismo" na Rússia – socialismo significava, com certeza, a maior concentração possível de Capitalismo de Estado. Mas, ao mesmo tempo, a B&ICO defende a NEP como uma etapa rumo ao socialismo! O reverso da medalha está representado pelo anarquista Murray Bookchin que, em sua introdução à edição canadense de "A Comuna de Kronstadt" (Black Rose Book, Montreal, 1971) nos descreve o paraíso libertário que teria sido possível realizar-se simplesmente aplicando o programa econômico dos rebeldes:
Bookchin acrescenta em continuação, misteriosamente, que tal sociedade só poderia sobreviver se houvesse um forte movimento revolucionário no ocidente para apoiá-la. É de se perguntar a quem ocorre pensar que tais sonhos de vendedor de autogestão iriam representar uma ameaça para o capital mundial.
De todos os modos, esta controvérsia tem bem pouco interesse para os comunistas. Dado que a onda revolucionária havia fracassado, forçoso é reconhecer que nenhum tipo de política econômica, chame-se comunismo de guerra, autarquia, NEP ou programa de Kronstadt, poderia salvar a revolução. Por outro lado, muitas das reivindicações puramente econômicas apresentadas pelos rebeldes estavam mais ou menos incluídas na NEP. Ambos são inadequados enquanto programas econômicos e seria absurdo que os revolucionários de hoje reivindicassem troca ou livre comércio como medidas adequadas para um baluarte proletário, ainda que, em circunstâncias críticas, seja impossível eliminá-las. A diferença essencial entre o programa de Kronstadt e a NEP é a seguinte: enquanto esta última deveria ser implantada a partir de cima, pela nascente burocracia de estado, em cooperação com as direções privadas e capitalistas restantes, os insurgentes de Kronstadt propunham a restauração do poder autêntico dos sovietes e o fim da ditadura estatal do Partido Bolchevique como premissa de qualquer avanço revolucionário.
É o verdadeiro centro do problema. De nada serve discutir agora sobre a política econômica mais socialista naquele momento. Os insurgentes de Kronstadt compreendiam isso talvez menos que os bolcheviques mais ilustrados. Os insurgentes, por exemplo, falavam do estabelecimento de um "socialismo livre" (independente) na Rússia, sem insistir na necessidade de extensão da revolução em escala mundial antes de tentar realizar o socialismo.
A avaliação prudente que fez Lênin das possibilidades socialistas de progresso naquela época, embora logo tenha desembocado em conclusões reacionárias, era de fato uma aproximação que corresponderia mais à realidade que às esperanças que tinham os de Kronstadt da possibilidade de autogerir sua comuna no seio da Rússia.
Mas Lênin e a direção bolchevique, de pés e mãos atadas como estavam pelo aparato de Estado, não alcançaram compreender o que queriam dizer os insurgentes de Kronstadt de forma confusa, é certo, e com ideias mal formuladas: a revolução não pode dar um passo que seja sem que os trabalhadores a dirijam. A condição prévia e fundamental para a defesa da extensão da Revolução na Rússia era: todo poder aos Sovietes, quer dizer, a reconquista da hegemonia política pelas próprias massas operárias. Como foi sublinhado no artigo A Degeneração da Revolução Russa, esta questão do poder político é muito mais importante. O proletariado no poder pode fazer progressos econômicos importantes, ou estar obrigado a suportar regressões econômicas sem que por isso permita que a Revolução se perca. Mas, uma vez que haja desmoronado o poder político da classe, não há medida econômica que possa salvar a revolução. Justo porque os rebeldes de Kronstadt lutavam pela reconquista deste indispensável poder político proletário, os revolucionários de hoje devem reconhecer na luta de Kronstadt uma defesa das posições de classe fundamentais.
A direção bolchevique opôs uma dura resistência à rebelião de Kronstadt. Já chamamos a atenção para o comportamento provocador de Kouzmin e Kalinin na guarnição, os boatos difundidos pela Rádio Moscou dizendo que se tratava de uma tentativa contrarrevolucionária da Guarda Branca. A atitude intransigente do governo bolchevique eliminou rapidamente toda possibilidade de acordo ou de discussão. A advertência urgente que Trotsky dirigiu à guarnição pedia a rendição incondicional e sem nenhuma oferta de concessão às exigências dos insurgentes. O chamado para Kronstadt emitido por Zinoviev e pelo Comitê de Defesa de Petrogrado (o orgão que havia submetido a cidade à lei marcial depois da onda de greves) é sobejamente conhecido por sua crueldade, como demonstra a ordem dada aos soldados: "disparem como se fossem perdizes", se os rebeldes resistirem. Zinoviev organizou também a captura de reféns entre os familiares dos insurgentes, sob o pretexto que o CRP havia detido alguns oficiais bolcheviques (sem que sofressem nenhum dano). Os insurgentes consideraram estas ações como infames e negaram a se dobrar diante das ameaças. Durante o assalto, as unidades enviadas para esmagar a rebelião estiveram constantemente à beira da desmoralização. Houve inclusive casos de confraternização com os amotinados. Para "assegurar-se" da lealdade do exército, foram destacados alguns eminentes dirigentes do Partido Bolchevique, que se encontrava então em sessão, para que se dirigissem ao lugar; entre eles havia membros da Oposição Operária que queriam deixar bem claro que eles não tinham nada a ver com o levante. Ao mesmo tempo, os fuzis da Cheka estavam por trás, apontando para os soldados, como segurança complementar de que a desmoralização não se propagaria.
Quando, por fim, caiu a fortaleza, centenas de insurgentes foram exterminados, executados sumariamente ou condenados rapidamente à morte pela Cheka. Aos demais, mandaram-nos a campos de concentração. A repressão foi levada a cabo sem piedade. Para apagar todas as pegadas do levante, puseram a cidade sob controle militar. Dissolveram o Soviete e fizeram um expurgo de todos os elementos dissidentes. Até os soldados que haviam participado da repressão da revolta foram dispersos imediatamente em unidades distintas, para impedir que se propagassem os "micróbios" de Kronstadt. Medidas análogas foram tomadas com as unidades da marinha consideradas "pouco confiáveis."
O desenvolvimento dos acontecimentos na Rússia durante os anos que se seguiram à revolta tornam absurdas as declarações que pretendem que a repressão da rebelião era uma "necessidade trágica" para defender a revolução. Os bolcheviques acreditavam que defendiam a revolução contra a ameaça da reação representada pela Guarda Branca, neste porto fronteiriço estratégico. Mas, qualquer que possam ser as ideias dos bolcheviques sobre o que faziam, o certo é que, ao atacar os rebeldes, estavam atacando a única defesa real que a revolução poderia ter: a autonomia da classe operária e o poder proletário direto. Ao agir assim, comportaram-se como agentes da contrarrevolução e seus atos serviram para preparar o caminho que permitiu o triunfo final da contrarrevolução sob a forma do stalinismo.
A extrema violência com que o governo reprimiu o levante levou alguns revolucionários à conclusão de que o partido bolchevique era clara e abertamente capitalista em 1921, exatamente como os stalinistas e os trotskistas são hoje. Não queremos polemizar agora sobre o momento em que o partido se pôs irremediavelmente ao lado da burguesia e, em todo caso, rechaçamos o método que tenta encerrar a compreensão do processo histórico em um rígido esquema de datas.
Mas dizer que o Partido Bolchevique não era "outra coisa senão capitalista" em 1921 significa, de fato, que não temos nada a aprender dos acontecimentos de Kronstadt, salvo a data da morte da revolução. Afinal, os capitalistas nunca deixaram de reprimir os levantes operários e isto é algo que não temos que estar aprendendo sem cessar. Kronstadt só pode nos ensinar algo novo se o reconhecemos como um capítulo da história do proletariado, como uma tragédia no campo proletário. O problema real com o qual hão de se enfrentar hoje os revolucionários é o de saber como um partido proletário pôde chegar a agir como os Bolcheviques em Kronstadt em 1921, e como podemos estar seguros que tais coisas não se repetirão jamais. Em uma palavra, que conclusões há que tirar de Kronstadt?
A revolta de Kronstadt esclarece de um modo particularmente dramático as lições fundamentais de toda Revolução Russa, o único verdadeiramente proveitoso da revolução de outubro que fica para a classe operária.
1. A revolução proletária é internacional ou não é revoluçãoA revolução proletária só pode triunfar em escala mundial. É impossível abolir o capitalismo ou "construir o socialismo" em um só país. A revolução não será salva por programas de reorganização econômica em um país, mas somente pela extensão do poder político proletário para toda a terra. Sem isto, a degeneração da revolução é inevitável, por mais mudanças que se possa produzir na economia. Se a revolução permanece isolada, o poder político do proletariado será destruído ou por uma invasão externa, ou pela violência interna como em Kronstadt.
2. A ditadura do proletariado não é a de um partidoA tragédia da Revolução Russa, em particular a matança de Kronstadt, foi que o partido do proletariado, o Partido Bolchevique, considerou que sua função era tomar o poder de Estado e defender esse mesmo poder contra a classe operária em seu conjunto. Por isso, quando o Estado se autonomiza em relação à classe e se levanta contra ela, como em Kronstadt, os bolcheviques acreditaram que seu lugar estava no Estado que lutava contra a classe e abandonaram a classe que lutava contra a burocratização do Estado.
Hoje, os revolucionários devem afirmar como princípio fundamental que a função do partido não consiste em tomar o poder em nome da classe. Só a classe operária em seu conjunto, organizada em comitês de fábrica, milícias e conselhos operários, pode tomar o poder político e empreender a transformação comunista da sociedade. O partido deve ser um fator ativo no desenvolvimento da consciência proletária, mas não pode criar o comunismo "em nome" de uma classe. Tal pretensão só pode levar, como ocorreu na Rússia, à ditadura do partido sobre a classe, a supressão da atividade do proletariado por si mesmo, sob pretexto que "o partido é melhor".
Ao mesmo tempo, a identificação do partido com o Estado, coisa natural para um partido burguês, não pode senão arrastar os partidos proletários para a corrupção e a traição. Um partido do proletariado deve constituir a fração mais radical e avançada da classe que, por sua vez, é a mais dinâmica da história. Sobrecarregar o Partido com a administração dos assuntos de Estado, que por definição não pode mais que ter uma função conservadora, é negar todo o papel do partido e asfixiar sua criatividade revolucionária. A burocratização progressiva do partido bolchevique, sua incapacidade crescente em separar os interesses da classe revolucionária dos do Estado dos sovietes, sua degeneração em uma máquina administrativa, tudo isto é o preço pago pelo próprio partido por suas concepções errôneas de partido que exerce um poder de Estado.
3. As relações de força dentro da classe não devem existirO princípio de que nenhuma minoria, por mais culta que seja, pode exercer o poder sobre a classe operária, é paralelo a este outro: não pode haver relações de força dentro da classe operária. A democracia proletária não é um luxo que pode ser suprimido em nome da "eficácia", mas é a única garantia da boa marcha da revolução e da possibilidade que a classe tem de tirar conclusões de sua própria experiência. Ainda que algumas frações da classe estejam erradas, nenhuma outra fração (seja majoritária ou não) pode lhes impor a "linha justa". Só uma liberdade total de diálogo dentro dos órgãos autônomos da classe (assembleias, conselhos, partido, etc.) poderá resolver os conflitos e os problemas da classe. Isto quer dizer também que toda a classe deve ter acesso aos meios de comunicação (imprensa, rádio, TV, etc.) e conservar o direito de greve e julgar criticamente as diretivas que emanem dos órgãos de Estado.
Ainda que se admita que os marinheiros de Krontadt se equivocaram, a dureza das medidas que o governo bolchevique tomou era totalmente injustificada. Tais ações podem destruir a solidariedade e a coesão dentro da classe, ao mesmo tempo em que geram a desmoralização e o desespero. A violência é uma arma que o proletariado terá que utilizar necessariamente contra a classe capitalista. Seu uso contra classes não exploradoras deverá se reduzir ao mínimo, mas no interior do próprio proletariado, não pode haver lugar para ela.
4. A ditadura do proletariado não é o estadoPor ocasião da Revolução Russa existia uma confusão fundamental no movimento operário, pela qual se identificava a ditadura do proletariado com o Estado que apareceu depois da derrubada do regime czarista, quer dizer, o Congresso dos delegados de toda a Rússia dos Sovietes dos trabalhadores, soldados e camponeses.
Mas a ditadura do proletariado, funcionando através dos órgãos específicos da classe operária, como as assembleias de fábrica e os conselhos operários, não é uma instituição senão um estado de fato, um movimento da classe operária em seu conjunto. A meta da ditadura do proletariado não é um Estado no sentido proposto pelos marxistas. O Estado é esse órgão da superestrutura que surge da sociedade de classes, cuja função consiste em preservar as relações sociais dominantes, o status quo entre as classes. Ao mesmo tempo, os marxistas afirmaram sempre a necessidade do Estado em um período de transição ao comunismo, depois da abolição do poder político burguês. Por isso dizemos que o Estado russo soviético, assim como a Comuna de Paris, foi um produto inevitável da sociedade de classes que existia na Rússia depois de 1917.
Certos revolucionários defendem a ideia de que o único estado que pode existir depois da destruição do poder burguês são os conselhos operários. É certo que os Conselhos Operários têm que assegurar a função que sempre foi uma das principais características do Estado: o exercício do monopólio da violência. Mas, assimilá-los, por isso, ao Estado é reduzir o papel do Estado a um simples órgão de violência e nada mais. Quer dizer, com tais concepções, o Estado burguês de hoje estaria composto unicamente pela polícia e pelo exército, e não pelo parlamento, municípios, sindicatos e outras inumeráveis instituições que mantêm a ordem capitalista sem fazer uso imediato da repressão. Estas instituições são órgãos do Estado, pois servem para manter a ordem social existente, os antagonismos de classe dentro de um marco aceitável. Os conselhos operários, pelo contrário, representam a negação ativa desta função do Estado posto que são, antes de tudo, órgãos de transformação social radical e não órgãos do status quo.
Mas, além disso, é utópico esperar que as únicas instituições que existam no período de transição sejam precisamente os conselhos operários. O grande transtorno social que é a revolução engendra instituições de todo o tipo, não apenas da classe operária nos lugares de produção, senão da população inteira que estava oprimida pela classe capitalista. Na Rússia, os Sovietes e outros órgãos populares apareceram, não só nas fábricas, mas também em todas as partes: no exército, na marinha, nas aldeias, nos bairros das cidades. Isto não decorria unicamente de que "os bolcheviques começavam a construir um Estado que tinha uma existência separada da organização de massas da classe". (Worker’s Voice N° 14) É certo que os bolcheviques contribuíram ativamente para a burocratização do Estado, abandonando o princípio das eleições e instruindo inumeráveis comissões à margem dos sovietes; mas não se pode dizer que os bolcheviques mesmos criaram "o Estado Soviético". Foi algo que surgiu porque a sociedade devia engendrar uma instituição capaz de conter seus profundos antagonismos de classe. Dizer que só podem existir os conselhos operários é pregar a guerra civil permanente, não só entre a classe operária e a burguesia (que, com certeza, é necessária), mas também entre a classe operária e todas as demais classes e categorias. Na Rússia isto teria significado uma guerra entre os sovietes de operários e os de soldados e camponeses, o que teria sido uma terrível perda de energia e um desvio da tarefa primordial da revolução mundial contra a classe capitalista. [5]
Mas se o Estado dos Sovietes era, a partir de certo ponto de vista, o produto inevitável da sociedade pós-insurreição, podemos esclarecer numerosos e graves defeitos de estrutura e funcionamento, depois da revolução de outubro, além do fato de estar controlado pelo Partido.
a. No funcionamento real do Estado havia um abandono contínuo dos princípios fundamentais estabelecidos a partir das experiências da Comuna de 1871, e reafirmados por Lênin no "Estado e a Revolução" em 1917: que todos os funcionários fossem eleitos e com mandatos revogáveis a qualquer tempo, que a remuneração dos funcionários do Estado fosse igual à dos operários, que o proletariado estivesse permanentemente armado. Foram se multiplicando as comissões e departamentos sobre os quais a classe operária não tinha nenhum controle (conselhos econômicos, Cheka, etc.). As eleições eram adiadas, suspensas ou fraudadas. Os privilégios outorgados às personalidades oficiais gradualmente tornou-se comum. As milícias operárias foram dissolvidas no interior do exército vermelho, que não estava controlado pelos conselhos operários nem pelos soldados alistados.
b. Os conselhos operários, os comitês de fábrica e os outros órgãos do proletariado representavam uma parte, entre outras, do aparato de Estado (ainda que os trabalhadores tivessem direito de voto preferencial). Em vez de ter autonomia e hegemonia sobre todas as outras instituições sociais, estes órgãos não apenas iam sendo integrados cada vez mais no aparato geral do Estado, mas também a ele se subordinavam. O poder proletário, em lugar de se manifestar pelo canal dos órgãos específicos da classe, foi identificado com o aparato de Estado. Ainda mais, o postulado enganoso de um Estado "proletário" e "socialista" levou os bolcheviques a sustentar que os trabalhadores não podiam ter nenhum direito ou interesse diferente dos do Estado. Do que se deduzia que toda a resistência ao Estado por parte dos trabalhadores só podia ser contrarrevolucionária. Esta concepção profundamente errônea explica a reação dos bolcheviques com relação às greves de Petrogrado e ao levante de Kronstadt.
No futuro, os princípios da Comuna sobre a autonomia da classe operária não devem se tornar letra morta; o proletariado terá que defendê-los como condição fundamental de seu poder sobre o Estado. Em nenhum momento poder-se-á distrair a vigilância do aparato de Estado, porque a experiência russa, e em particular os acontecimentos de Kronstadt, demonstraram que a contrarrevolução pode aparecer de onde menos se espera, como o Estado pós-insurreição, e não só por uma agressão burguesa "externa".
Quer dizer que, para garantir que o Estado-comuna siga sendo um instrumento da autoridade proletária, a classe operária não pode identificar sua ditadura com este aparato ambíguo e pouco seguro, senão unicamente com seus órgãos de classe autônomos. Estes órgãos terão que controlar sem fraqueza o trabalho do Estado em todos os níveis, exigindo o máximo de representação de delegados dos conselhos operários nos congressos gerais dos sovietes, a unificação autônoma permanente da classe operária no interior destes conselhos, e o poder de decisão dos conselhos operários sobre todo o planejamento do Estado. Acima de tudo, os trabalhadores deverão impedir que o Estado interfira em seus órgãos próprios de classe, mas, de outro lado, a classe operária deve manter sua capacidade de exercer a ditadura sobre e contra o Estado, pela violência se for necessário. Isto significa que a classe operária deve garantir sua autonomia de classe graças ao armamento geral do proletariado. Se durante a guerra civil torna-se necessária a criação de um “exército vermelho”, regular, esta força deverá estar politicamente subordinada aos Conselhos Operários e ser dissolvida tão logo tenha se vendido à burguesia. Mas, em nenhum momento, poderão ser dissolvidas as milícias proletárias nas fábricas.
A identificação do partido com o Estado, e a do Estado com a classe, teve sua conclusão lógica quando o partido se pôs ao lado do Estado e contra a classe. O isolamento da Revolução Russa em 1921 converteu o Estado em guardião do status quo, da estabilização do capital e do submetimento dos trabalhadores. Apesar de todas as boas intenções, a direção bolchevique, que continuou esperando a aurora salvadora da Revolução mundial ainda por alguns anos, viu-se obrigada a agir, por sua implicação com a máquina estatal, como um obstáculo à revolução mundial e foi arrastada ao triunfo final da contrarrevolução stalinista. Alguns bolcheviques começaram a ver que já não era o partido o que controlava o Estado, mas era o Estado quem controlava o partido. Lênin mesmo dizia:Os últimos anos de Lênin foram uma luta sem esperança contra a burocracia nascente, com projetos triviais como o da "Inspeção Operária e Camponesa" no qual a burocracia deveria se submeter à vigilância de uma nova comissão burocrática. O que ele não podia admitir era que o chamado estado proletário havia se convertido pura e simplesmente em uma máquina burguesa, em um aparato de regulamentação das relações sociais capitalistas e, portanto, inacessível às necessidades da classe operária. O triunfo do stalinismo não foi mais que o reconhecimento cínico desta situação, a adaptação final e definitiva do Partido à sua função de capataz do Estado capitalista. Este foi o significado real da declaração do "socialismo em um só país" em 1924.
A rebelião de Kronstadt pôs o Partido diante de uma alternativa histórica de extrema gravidade: seguir dirigindo esta máquina burguesa para acabar sendo um partido do capital, ou separar-se do Estado e colocar-se ao lado da classe operária inteira em seu combate contra esta máquina, esta personificação do capital. Ao escolher a primeira alternativa, os bolcheviques, de fato, firmaram sua própria sentença enquanto partido do proletariado e impulsionaram o processo contrarrevolucionário que se manifestou em plena luz do dia em 1924. Depois de 1921, só as frações bolcheviques que tinham compreendido a necessidade de identificar-se diretamente com a luta dos operários contra o Estado podiam seguir sendo revolucionárias e capazes de participar do combate internacional dos comunistas de esquerda contra a degeneração da III Internacional. Assim, por exemplo, o Grupo Operário de Miasnikov teve um papel ativo na greve selvagem que se estendeu pela Rússia em agosto e setembro de 1923. Pelo contrário, a oposição de esquerda dirigida por Trotsky, cuja luta contra a fração stalinista situava-se sempre no interior da burocracia, não fez nada para vincular-se à luta operária contra o que os trotskistas definiam como um Estado "operário" e uma "economia operária". Sua incapacidade inicial de se separar da máquina Estado-Partido, deixava prever a evolução posterior do trotskismo como uma espécie de apêndice "crítico" da contrarrevolução stalinista.
Mas as alternativas históricas não costumam apresentar-se de modo claro no momento em que é preciso tomar a decisão. Os homens fazem sua história em condições objetivas definidas e as tradições das gerações passadas oprimem "os cérebros dos vivos como um pesadelo" (Marx). Este peso angustiante do passado esmagava os bolcheviques e somente o triunfo revolucionário do proletariado ocidental poderia aliviar este peso, permitindo aos bolcheviques, ou ao menos a uma fração apreciável do partido, dar-se conta de seus erros e serem regenerados pela inesgotável criatividade do Movimento Proletário Internacional.
As tradições da social-democracia, o atraso da Rússia, além de toda a carga do peso do Estado no contexto de uma onda revolucionária em retrocesso; todos estes fatores contribuíram para que os bolcheviques tomassem a posição que tomaram em Kronstadt. Mas não foi a direção bolchevique a única incapaz de compreender o que ali se passava. Como já vimos, a Oposição Operária no partido apressou-se a declarar-se não solidária com os levantes e a participar no assalto da guarnição. Inclusive quando a ultraesquerda russa ultrapassou o limite dos tímidos protestos da Oposição Operária e entrou na clandestinidade. Não conseguiu entender as consequências do levante e fez poucas referências ao mesmo em suas críticas ao regime.
O KAPD criticou a repressão do levante de modo incompleto e não fez nada para apoiar a rebelião. Em uma palavra, poucos comunistas compreenderam na época o significado profundo do levante e tiraram conclusões essenciais. Tudo isto é uma prova a mais de que o proletariado não aprende de um único golpe as lições fundamentais da luta de classes, mas só através da acumulação de experiências dolorosas, de lutas sangrentas e de intensa reflexão teórica. O trabalho dos revolucionários de hoje não consiste em emitir juízos morais abstratos sobre o movimento operário do passado, mas ver a si mesmos como um produto daquele movimento – um produto, com certeza, capaz de fazer uma crítica inflexível de todos os erros do movimento, mas um produto apesar de tudo. Se não for assim, a crítica do passado pelos revolucionários atuais não teria nenhuma influência na luta real da classe operária. Somente se compreendemos os acontecimentos de Kronstadt como um momento do movimento histórico da classe poderemos esperar entender as lições desta experiência para aplicá-las à prática atual e futura da classe. Então, e somente então, poderemos estar seguros de que nunca mais existirá outro Kronstadt.
C.D. WARD (Agosto 1975)
[1] Veja: < https://pt.internationalism.org/ICCOline/2008/degeneracao_da_Revolucao_Russa.html [16] >
[2] Veja: < https://pt.internationalism.org/ICCOline/2008/degeneracao_da_Revolucao_Russa.html [16] >
[3] N. Ossinsky, Gosudarstvenca regulizovanie Krest ianskogo Khoziastva, Moscou, 1920, p. 8 e 9. Tradução nossa.
[4] Pravda o Kronstadt. Praga 1921. p. 32
[5] Isto não significa que compartilhemos a visão dos bolcheviques nem a dos insurgentes de Kronstadt sobre "o poder dos operários e camponeses". Quando chegar a próxima onda revolucionária, a classe operária deverá afirmar que é a única classe revolucionária. Isso quer dizer que deve se assegurar de que é a única classe que há de se organizar durante o período de transição, dissolvendo toda instituição que pretenda defender os interesses específicos de qualquer outra classe. O resto da população terá direito de se organizar dentro dos limites da ditadura do proletariado, e será representado no Estado somente enquanto "cidadãos", pelo canal dos sovietes eleitos territorialmente. O fato de se outorgar direitos civis e voto a estes estratos sociais não significa que é atribuído poder político enquanto classe, do mesmo modo que a burguesia não dá poder político à classe operária ao lhe permitir o voto nas eleições municipais e parlamentares.
Dar uma ideia do que realmente se passou é a condição para compreender a dinâmica que está tomando a luta de classes internacional em direção a movimentos massivos da classe operária, os quais vão ajudá-la a recuperar a confiança em si mesma e a dar-lhe os meios para apresentar uma alternativa a esta sociedade moribunda. [1]
A palavra crise tem uma tradução dramática para milhões de pessoas, afetadas por uma avalanche de miséria que vai desde a crescente deterioração das condições de vida, passando pelo desemprego que se prolonga durante anos, a precariedade que torna impossível a mínima estabilidade vital, até situações mais extremas que falam diretamente de pobreza e fome. [2]
No entanto, o que mais angústia provoca é a ausência de futuro. Como denuncia a Assembleia de Encarcerados de Madri [3] em um comunicado que, como veremos, foi a centelha do movimento: "(...) nos encontramos frente a um panorama sem nenhuma esperança e sem um futuro que nos incite a viver tranquilos e podendo nos dedicar ao que cada um gosta". [4] Quando segundo a OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos), a Espanha necessitará de 15 anos para recuperar o nível de emprego de 2007 – quase uma geração inteira impedida de trabalhar – e quando dados semelhantes podem ser extrapolados para os Estados Unidos ou Grã-Bretanha, torna-se palpável até que ponto esta sociedade se precipita num turbilhão sem retorno de miséria, desemprego e barbárie.
Aparentemente, o movimento se polarizou contra "o sistema bipartidário" dominante na Espanha (2 partidos, Partido Popular – de direita – e Partido Socialista Obrero Español – de esquerda – ocupam 86% dos cargos eletivos) [5]. Este fator desempenhou um papel, precisamente em relação a essa ausência de futuro, posto que em um país onde a Direita possui uma acreditada fama de autoritária, arrogante e antioperária, amplos setores da população têm visto com inquietação como após os ataques governamentais infligidos pelos falsos amigos – o PSOE –, os inimigos declarados – o PP –ameaçam instalar-se no poder durante muitos anos sem alternativa dentro da briga eleitoral, refletindo o bloqueio geral da sociedade.
Esse mesmo sentimento foi alimentado pela atitude dos sindicatos que primeiro convocaram uma "greve geral" em 29 de setembro, que se concretizou em uma encenação desmobilizadora, e depois concertaram com o governo um Pacto Social em janeiro de 2011 que aceitava uma infame reforma das aposentadorias e fechava portas a toda possibilidade de mobilizações massivas sob sua batuta.
A esses fatores se agregou um profundo sentimento de indignação. Uma das consequências da crise é que, como foi dito na Assembleia de Valência, "(...) os poucos que têm muito são muito menos e possuem muito mais, embora os muitos que têm pouco são muito mais e têm muito menos". Os capitalistas e seu pessoal político tornam-se cada vez mais arrogantes, vorazes e corruptos, não hesitam em se apropriar de riquezas imensas, ainda que ao seu redor se espalhe a miséria e a desolação. Tudo isto faz com que se compreenda que as classes existem e que não somos "cidadãos iguais".
Diante disso, desde finais de 2010 têm surgido coletivos que propagam ideias de "ajuntar-se na rua", "atuar à margem de partidos e sindicatos", "organizar-se em assembleias"… A "Velha Toupeira" de que falava Marx preparava nas profundidades da sociedade uma maturação subterrânea que entrou em erupção em plena luz em maio! A mobilização da Juventude Sem Futuro em abril congregou 5.000 jovens em Madri. Por outro lado, o êxito de algumas manifestações de jovens em Portugal – Geração à Rasca, Geração Enrascada – que aglutinou mais de 200.000 pessoas, e o exemplo muito popular da Praça Tahrir do Egito, situaram-se entre os estímulos do movimento.
Em 15 de maio foram convocadas manifestações nas capitais das províncias por um conglomerado de mais de 100 organizações – chamado Democracia Real Já (DRY, na sigla em espanhol) [6] – dirigidas "contra os políticos" e reclamando uma "democracia de verdade".
Pequenos grupos de jovens (desempregados, precários e estudantes), inconformados com o caráter de válvula de escape do descontentamento social que pretendiam dar os organizadores, trataram de estabelecer um acampamento na praça principal em Madri, Granada e outras cidades para dar continuidade ao protesto. O DRY os desaprovou e deixou que as tropas policiais exercessem uma brutal repressão, especialmente nas delegacias de polícia. Entretanto, os atingidos se constituíram na Assembleia de Encarcerados de Madri e emitiram rapidamente um comunicado onde os tratamentos degradantes foram claramente denunciados (ver nota 4). Isto causou uma grande impressão o que estimulou numerosos jovens a engrossar os acampamentos.
Na terça-feira 17, embora o DRY quisesse encerrar os Acampamentos através de atos simbólicos de protesto, a enorme massa que afluía a eles impôs a realização de Assembleias. Na quarta e quinta-feira as Assembleias massivas se estenderam a mais de 73 cidades. Nelas foram expostas reflexões interessantes, propostas sensatas, passando em revista aspectos da vida social, política, econômica, cultural. Nada que é humano era estranho a essa imensa ágora [7] improvisada!
Uma manifestante madrilena exclamava "(...) o melhor são as Assembleias, a palavra é franqueada, as pessoas se entendem, pensa-se em voz alta, milhares de desconhecidos podem chegar a acordos comuns. Não é maravilhoso?". Contrastando com o ambiente sombrio que reina nas mesas de votação ou entusiasmo de marketing dos atos eleitorais, as Assembleias eram outro mundo: "Abraços fraternais, gritos de entusiasmo e contentamento, cânticos de liberdade, risos felizes, alegria e delírio. Um perfeito concerto despontava desta de milhares de pessoas indo e vindo através da cidade, de manhã à noite. Reinava uma atmosfera de euforia; quase se crer que uma nova e melhor vida principiara na Terra. Espetáculo profundamente comovedor, idílico e enternecedor ao mesmo tempo" [8].
Milhares de pessoas discutiam apaixonadamente em um ambiente de respeito profundo, de ordem admirável, de escuta atenta. Não apenas a indignação e a inquietação frente ao futuro as unia, mas sobretudo a vontade de compreender suas causas, daí esse esforço de debate, de análise sobre múltiplas questões, de centenas de reuniões, de criação de bibliotecas de rua... Um esforço aparentemente sem resultado concreto, mas que tem sacudido as mentes e semeado ganhos de consciência nos campos do futuro.
No terreno subjetivo, a luta da classe operária tem dois pilares: por um lado, a consciência, por outro lado, a confiança e a solidariedade. E neste caso, as Assembleias lançaram importantes sementes para o futuro, os laços humanos que foram sendo tecidos, a corrente de empatia que percorria as praças, a solidariedade e a unidade que floresciam, tinham tanta importância como tomar uma decisão ou aprovar uma reivindicação. Isso enfurecia os políticos e a imprensa que, com o típico imediatismo e utilitarismo que caracteriza a ideologia burguesa, reclamavam que o movimento resumisse suas demandas em uma "lista reivindicativa", que o DRY tratava de converter em um "Decálogo" que recolhia ridículas e desgastadas medidas democráticas, tais como as listas de candidatos abertas, as iniciativas legislativas populares e a reforma da lei eleitoral.
A resistência feroz com que se depararam essas medidas precipitadas mostrou que o movimento expressa o futuro da luta de classes. Em Madri gritava-se "(...) não vamos lentos, mas vamos muito longe". Em uma Carta Aberta às Assembleias, um grupo de Madri dizia: "(...) sintetizar o que esse protesto que estamos realizando quer, é o mais difícil. Estamos convencidos de que não será às pressas, como interesseiramente querem que façamos os políticos e todos aqueles que querem que nada mude, ou melhor dizendo, os que querem mudar pequenos detalhes para que tudo continue igual, que não será propondo de repente uma tábua de reivindicações que conseguiremos sintetizar o que queremos todos os que lutamos, não será criando uma confusão de reivindicações que nossa revolta se expressará e se fortalecerá" [9]
O esforço para conhecer as causas de uma situação dramática e de um futuro incerto, assim como, consequentemente, saber a forma de lutar, tem sido o eixo das Assembleias, daí seu caráter deliberativo que desorientou aqueles que esperavam uma luta centrada em reivindicações precisas. Igualmente a reflexão sobre temas éticos, culturais, inclusive artísticos e literários – havia intervenções em forma de canções ou poesias – criou a sensação enganosa de um movimento pequeno burguês de "indignados". Aqui devemos separar o joio do trigo. Há erva daninha na casca democrática e cidadã em que essas preocupações foram em muitas ocasiões envolvidas. As preocupações, contudo, são trigo limpo, pois apoiam a transformação revolucionária do mundo, ao mesmo tempo em que estimulam uma gigantesca mudança cultural e ética, "Mudar o mundo e mudar a vida, mudando a nós mesmos", tal é a divisa revolucionária que há mais de um século e meio Marx e Engels formularam em A ideologia alemã: "tanto para a criação em massa dessa consciência comunista quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode realizar por um movimento prático, por uma revolução; que a revolução, portanto, é necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundície e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade" [10].
As Assembleias constituíram uma primeira tentativa de resposta a um problema geral da sociedade o qual temos colocado em relevo há mais de 20 anos: a decomposição social do capitalismo. Nas Teses sobre a Decomposição, que à época escrevemos [11], assinalávamos a tendência à decomposição da ideologia e das superestruturas da sociedade capitalista e a crescente desintegração das relações sociais que as mesmas supõem. Esse conjunto que com certeza afeta a burguesia e a pequena burguesia, também atinge a classe operária, entre outras razões porque convive com esta última. Alertávamos no referido documento sobre os efeitos desse processo: "(1) a ação coletiva, a solidariedade, encontram diante de si a atomização, o "salve-se quem puder" o "cuidar de si mesmo"; (2) a necessidade de organização é confrontada à decomposição social, a desintegração das relações em que se baseia qualquer vida em sociedade; (3) a confiança no futuro e nas suas próprias forças se vê minada constantemente pela desesperança geral que invade a sociedade, o niilismo, a "ausência de futuro"; (4) a consciência, a compreensão, a coerência e unidade de pensamento, o gosto pela teoria, devem abrir um difícil caminho em meio à fuga nas quimeras, drogas, seitas, no misticismo, rechaço à reflexão e na destruição do pensamento que estão definindo a nossa época".
Contudo, o que mostram as Assembleias massivas na Espanha – como igualmente apontaram as que ocorreram durante o movimento de estudantes na França em 2006 [12] –é que os setores mais vulneráveis a esses efeitos – os jovens, os desempregados, devido a pouca experiência que até então conseguiram desenvolver de trabalho coletivo – são os que estiveram na vanguarda das Assembleias e do esforço de consciência, por um lado, e da solidariedade e empatia, por outro lado.
Por todas as razões anteriores, as Assembleias massivas têm sido um primeiro reconhecimento de tudo o que está na nossa frente. Isso pode parecer muito pouco para quem espera que o proletariado, como uma tempestade repentina em um céu azul, manifeste-se claramente e sem rodeios como a classe revolucionária da sociedade. Porém, desde o ponto de vista histórico e compreendendo as enormes dificuldades que o proletariado encontrará para alcançar esse objetivo, foi um bom começo, pois começou preparando com rigor o terreno subjetivo.
Mas isso tem sido, paradoxalmente, o Calcanhar de Aquiles do movimento "15 M", tal qual se expressou em uma primeira etapa. Por não ter nascido sobre um objetivo concreto, o cansaço, a dificuldade de ir mais além das primeiras aproximações aos graves problemas colocados, a ausência de condições para que o proletariado entrasse em luta a partir das regiões de trabalho, lançou o movimento em uma espécie de vácuo e indefinição que não podia durar muito tempo e que o DRY tentou preencher com objetivos de "reforma democráticas" supostamente "fáceis" e "realizáveis", porém na realidade utopicamente reacionários.
Durante quase duas décadas, o proletariado mundial tem realizado uma travessia do deserto caracterizada pela ausência de lutas massivas e, sobretudo, por uma falta de confiança em si mesmo e uma perda de confiança da sua própria identidade como classe [13]. Ainda que esta atmosfera viesse se rompendo desde 2003 com lutas significativas em um bom número de países e com o aparecimento de uma nova geração de minorias revolucionárias, dominava a imagem estereotipada de uma classe operária que "não se move", que está "completamente ausente".
A erupção repentina de grandes massas na cena social tinha que arcar esse peso do passado, acrescido pela presença no movimento de camadas sociais em vias de proletarização, mais vulneráveis às armadilhas cidadãs e democráticas. Isso, em conjunto com o fato do movimento não ter surgido a partir do combate contra uma medida concreta, produziu o paradoxo (que não é novo na história [14]): de que as duas grandes classes da sociedade, o proletariado e a burguesia, pareceram fugir do corpo a corpo declarado, dando a impressão de um movimento pacífico, que goza do "beneplácito de todos". [15]
Mas na verdade, a confrontação entre as classes esteve presente desde o primeiro dia. Não foi a brutal repressão sobre um punhado de jovens a primeira resposta do governo do PSOE? Não foi a rápida e apaixonada resposta da Assembleia dos Encarcerados de Madri a que desencadeou o movimento? Não foi aquela denúncia que abriu os olhos de muitos jovens que exclamaram desde então "chamam a isso democracia e não é", bandeira ambígua que uma minoria converteu em "chama a isso de ditadura e é isso mesmo"?
Para todos aqueles que acreditam que a luta de classes é uma sucessão de "emoções fortes", o aspecto "tranquilo" que manifestaram as Assembleias, levou-os a acreditar que estas não eram mais do que o exercício de um "inofensivo direito constitucional". Pode-se inclusive supor que muitos participantes acreditassem que estavam limitados a isso.
No entanto, as Assembleias massivas em praça pública, o slogan de "Tomar a praça", significam um desafio em regra da ordem democrática. O que as relações sociais capitalistas determinam e as leis santificam é que a maioria explorada "fique na sua", e se quiserem "participar" dos assuntos públicos, que utilizem o voto e o protesto sindical que a atomizam e individualizam ainda mais. Unir-se, viver a solidariedade, discutir coletivamente, começar a atuar como um corpo social independente constitui a violência mais irresistível à ordem burguesa.
A burguesia tem feito o impossível para acabar com as Assembleias. Na aparência, com a asquerosa hipocrisia que a distingue, a burguesia não parava em aplausos e acenos de cumplicidade para com os "indignados", porém os fatos – que são o que realmente conta – desmentiam essa aparente complacência.
Ante a proximidade da marcha eleitoral – o domingo 22 de maio – a Junta Eleitoral Central decide proibir as Assembleias em todo o país no sábado 21 considerado como "jornada de reflexão". À zero hora do sábado um imenso dispositivo policial cerca o Acampamento da Porta do Sol, mas rapidamente uma massa gigantesca rodeia por sua vez o cordão policial o que motivou o próprio ministro do Interior a dar a ordem de retirada. Mais de vinte mil pessoas ocupam a Praça em meio a uma grande explosão de alegria. Vemos aqui outro episódio de confrontação de classes, embora a violência explícita tenha se reduzido a alguns empurrões.
O DRY propõe a manutenção nos acampamentos, mas guardando silêncio para respeitar a jornada de reflexão e, portanto, não realizar Assembleias. Mas ninguém lhes deu importância. As Assembleias do sábado 21, formalmente ilegais, registraram os maiores níveis de assistência. Na Assembleia de Barcelona cartazes, bandeiras e gritos proclamavam que "estamos refletindo", em irônica resposta à Junta Eleitoral.
No domingo 22, dia da eleição, ocorre uma nova tentativa de acabar com as Assembleias. O DRY informa que "o objetivo foi alcançado" e que se deve pôr fim ao movimento. A resposta é unânime: "não estamos aqui pelas eleições". Na segunda 23 e na terça 24, as Assembleias chegam a seu ápice, tanto em assistência como na riqueza dos debates. Proliferam intervenções, consignas, cartazes que mostram uma apurada reflexão: "Onde está a esquerda? No fundo a direita", "Nossos sonhos não cabem nas urnas", "600 euros ao mês, isso sim é violência!", "Se não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir", "Sem trabalho, sem casa, sem medo", "Enganaram os avós, enganaram os filhos, que não enganem os netos!". Mas mostram igualmente uma consciência sobre a perspectiva: "Nós somos o futuro, o capitalismo é passado", "Todo poder às Assembleias", "Não há evolução sem revolução", "O futuro começa agora", "Continuas pensando que é uma utopia?"…
A partir desse momento de ápice, as Assembleias começam a diminuir. Em parte devido ao cansaço, mas o contínuo bombardeio do DRY para que se adotasse seu "decálogo democrático" também jogou um papel importante. Os pontos do decálogo não são neutros, pelo contrário, vão diretamente contra as Assembleias. Por agarrar-se à reivindicação mais "radical", uma Iniciativa Legislativa Popular [16], que além de supor uma interminável tramitação parlamentar, desmobiliza os mais ativos, e o mais importante, substitui o debate massivo, onde todos podem sentir-se como parte de um corpo coletivo, por ações individuais, unicamente cidadãs, de protestos fechados entre as quatro paredes do Eu [17].
A sabotagem por dentro foi reforçada pelo ataque repressivo vindo de fora, demonstrando que a burguesia não acredita de maneira nenhuma que as Assembleias sejam "um direito constitucional de reunião". Na sexta-feira 27, o Governo catalão – coordenado com o governo central – desfere um golpe de força: os "mossos de esquadra" (polícia autônoma) invadem a Praça de Catalunha de Barcelona e reprimem de modo selvagem a Assembleia, produzindo inúmeros feridos e fazendo um significativo número de prisioneiros. A Assembleia de Barcelona – até então mais orientada para reivindicações de classe – fica enredada nas típicas reivindicações democráticas: petição de demissão do conselheiro do Interior, repúdio à "repressão desproporcional" [18], reivindicação de um "controle democrático da polícia". Sua reviravolta é tão evidente que dá lugar ao veneno nacionalista e inclui nas suas demandas o "direito de autodeterminação".
Os episódios repressivos durante a semana de 5 a 12 de junho multiplicaram-se: Valência, Santiago, Salamanca... Contudo, o golpe mais brutal acontece nos dias 14 e 15 de junho em Barcelona. O Parlamento catalão discutia uma lei chamada Lei Ônibus que estipulava violentos cortes sociais principalmente na saúde e educação (entre outras medidas, 15 mil demissões na Saúde). Fora de toda dinâmica de discussão em Assembleias de trabalhadores, o DRY convoca um "protesto pacífico", que consistia em cercar o Parlamento para "impedir os deputados de votarem uma lei injusta". Trata-se da típica ação puramente simbólica dirigida à "consciência" dos deputados e não ao combate contra uma lei e as instituições que a impõe, quer dizer, o terreno democrático por excelência, que amarra os manifestantes a um falso dilema: ou a violência "radical" de uma minoria, ou o chamamento impotente e passivo da maioria.
Os insultos e o empurrão de alguns deputados dão motivo a uma histérica campanha que criminaliza os "violentos" (metendo nesse saco os que defendem posturas de classe) e chama a "defender as instituições democráticas ameaçadas". Fechando o círculo, o DRY corrobora o pacifismo para justificar que os próprios manifestantes exerçam a violência sobre os "violentos" [19], porém vai mais longe ainda: pede abertamente a entrega dos "violentos" à polícia e que os manifestantes aplaudam a polícia pelos seus "bons serviços"!
Desde o início, o movimento teve dois "espíritos": um espírito democrático, alimentado pelas confusões e dúvidas muito amplas, por seu caráter socialmente heterogêneo e pela tendência a evitar a confrontação aberta. Mas também esteve presente um espírito proletário, materializado nas Assembleias [20] e num impulso sempre presente de ir "até a classe operária".
Na Assembleia de Barcelona, trabalhadores da Telefônica, saúde, bombeiros, estudantes universitários, mobilizados contra os cortes sociais, participaram ativamente dela. Foi constituída uma "Comissão de Extensão e Greve Geral", onde havia debates muito acalorados e se organizou uma rede de Trabalhadores Indignados de Barcelona, que convocou uma Assembleia de empresas em luta no sábado 11 de junho e um novo Encontro no sábado 2 de julho. Na sexta-feira 3 de junho, desempregados e empregados realizaram em torno da Praça Catalunha uma manifestação onde se exibia uma faixa que dizia "Abaixo a burocracia sindical! Greve geral!". Em Valência, a Assembleia apoiou um protesto de condutores de ônibus e também uma manifestação de vizinhos contra os cortes no ensino. Em Zaragoza, os condutores de ônibus se uniram aos demais manifestantes com grande entusiasmo [21]. Nas Assembleias se decide pela realização de Assembleias de Bairro [22].
Não obstante, a manifestação de 19 de junho expressa outro impulso do "espírito proletário". Esta manifestação tinha sido convocada pelas Assembleias de Barcelona, Valência e Málaga com o objetivo de lutar contra os cortes sociais. O DRY tinha tentado desvirtuá-la, dando-lhe exclusivamente lemas democráticos. Isso provocou uma resistência que se concretizou em Madri com uma iniciativa espontânea de ir ao Congresso para manifestar-se contra os cortes sociais com mais de 5 mil participantes. Por outro lado, uma coordenação de Assembleias de Bairro do Sul de Madri, surgida em resposta ao fiasco da greve de 29 de setembro e com uma orientação muito similar às das Assembleias Gerais Interprofissionais criadas na França no calor do movimento do outono passado, convocou "desde os povoados e bairros de trabalhadores de Madri, vamos ao congresso, onde se decidem esses cortes sem nos consultar, para dizer "basta!" (...). Esta iniciativa nasce de uma concepção assembleísta de base da luta operária, frente àqueles que adotam decisões às costas dos trabalhadores sem submetê-las ao referendo dos mesmos. Como a luta é longa, incentivamo-lhes a organizar-se em assembleias de bairro ou locais, e em espaços de trabalho e estudo".
As manifestações de 19 de junho constituíram um novo êxito, a assistência foi massiva em mais de 60 cidades, porém ainda mais importante foi seu conteúdo. Responderam à brutal campanha "contra os violentos", expressando um amadurecimento para o qual tinham contribuído numerosos debates nos meios mais ativos [23]. A palavra de ordem mais ecoada na manifestação de Bilbao é "Violência é não chegar ao final do mês", enquanto que em Valladolid se grita "violência é também o desemprego e os despejos".
No entanto, é sobretudo a manifestação de Madri a que marca a viragem que representa o 19 de junho frente à perspectiva futura. Foi convocada por um organismo diretamente vinculado à classe operária e nascido das suas minorias mais ativas [24]. Seu lema é "Caminhemos juntos contra a crise e o Capital". Suas reivindicações: "Não aos cortes trabalhistas, de pensões ou sociais; para lutar contra o desemprego, luta operária contra a subida dos preços, para o aumento dos salários, para o aumento dos impostos aos que mais ganham, em defesa dos serviços públicos,contra a privatização da saúde, educação, ... Viva a unidade da classe operária" [25]
Um coletivo em Alicante adota o mesmo manifesto. Em Valência, um Bloco Autônomo e Anticapitalista formado por vários grupos muito ativos nas Assembleias difunde um manifesto onde se diz "Queremos uma resposta ao desemprego. Que os desempregados, os precarizados, os afetados pelo trabalho informal, se reúnam em Assembleias, acordem coletivamente suas reivindicações e que estas sejam aplicadas. Queremos a retirada da lei da reforma trabalhista e da que autoriza ERE's [26] sem controle e com indenização de 20 dias. Queremos que se retire a lei das aposentadorias, pois após toda uma vida de privações e misérias não queremos cair em mais misérias e incertezas. Queremos o fim dos despejos. A necessidade humana de uma moradia está acima das leis cegas do negócio e do máximo lucro. Dizemos NÃO aos cortes na educação e na saúde, às novas demissões que, após as recentes eleições, estão sendo preparadas nas Autarquias e Departamentos" [27].
A marcha de Madri foi organizada em várias colunas que partiram de 7 povoados ou bairros da periferia, às quais se somaram uma quantidade de pessoas cada vez maior. Essas "serpentes" recuperam a tradição operária das greves de 1972-1976 na Espanha (e igualmente na França em Maio de 68) onde, a partir de uma concentração operária – à época uma fábrica "farol" como a Standard madrilena –, os manifestantes iam agrupando massas crescentes de operários, vizinhos, desempregados, jovens, até convergir ao centro. Esta tradição reapareceu nas lutas de Vigo de 2006 e 2009 [28].
Em Madri, o manifesto lido na concentração chamava "Assembleias para preparar uma greve geral" e foi acolhido por gritos massivos de "Viva a classe operária".
As manifestações de 19 de junho produziram um sentimento de entusiasmo. Uma manifestante madrilense disse: "O ambiente era de uma autêntica festa. Caminhávamos juntos, pessoas as mais variadas e de todas as idades: dos vinte anos, aposentados, famílias com filhos, os que não estavam em nenhum dos grupos anteriores... e isso enquanto alguns vizinhos apareciam nas varandas para aplaudir. Cheguei esgotada em casa, mas com um sorriso de orelha a orelha. Não só tinha a sensação de ter participado de uma causa justa, mas que, além disso, de tê-lo feito muito bem". Outro disse: "acho muito interessante ver as pessoas em uma praça, falando de política ou lutando pelos seus direitos. Você não tem a sensação de que estamos retomando a rua?"
Após a primeira irrupção marcada por algumas Assembleias "em busca", agora se começa a buscar a luta aberta, a se vislumbrar que a solidariedade, a união, a construção de uma força coletiva, pode ser levada a cabo [29]. Começa a se desenvolver a ideia de que "Podemos ter força diante do Capital e seu Estado" e que a chave disso é a entrada da classe operária em luta. Nas Assembleias de Bairro de Madri surgiu um debate sobre a convocação de uma greve geral em outubro para "reverter os cortes sociais". Os sindicatos CCOO (Confederación Sindical de Comisiones Obreras) e UGT (Union General de Trabajadores) gritaram aos céus dizendo que essa convocação seria "ilegal" e que só eles estão autorizados a fazê-la, ao que muitos setores responderam claramente: só as Assembleias massivas podem convocá-la.
No entanto, não devemos cair na euforia. A entrada em combate da classe operária não vai ser um processo fácil. Pesam ilusões e confusões sobre a democracia, as reivindicações cidadãs, as "reformas", reforçadas pela pressão do DRY, dos políticos, dos meios de comunicação, que exploram as dúvidas existentes, o imediatismo que impele a obter "resultados rápidos e palpáveis", o medo diante da amplidão amplitude de tudo o que é colocado. Porém, o mais importante é compreender que a mobilização direta nos locais de trabalho é hoje verdadeiramente difícil, por causa da chantagem do desemprego, do risco real de que qualquer perda de remuneração, por mínima que seja, possa fazer cruzar a fronteira não tanto entre uma vida aceitável e a miséria, mas entre esta e a fome.
Os critérios democráticos e sindicais enfocam a luta de classe como uma soma de decisões individuais. Não está descontente? Não se sente pisoteado? Então porque não se rebela? A coisa seria tão simples como se cada operário apenas diante da sua consciência, da mesma maneira que quando está na cabine de votação, "decide livremente" eleger entre um ser "valente" ou um ser "covarde". Mas a luta de classes não segue esse esquema idealista e falsificador, os atos de luta são resultado de uma força e uma consciência coletivas. Estas se forjam não somente pelo mal estar que produz uma situação insustentável, senão porque se vislumbra que é possível atuar em comum e que existe um mínimo de solidariedade e determinação que o permitem.
Esse estado coletivo não aparece da noite para o dia nem é produto mecânico da navalha da miséria; é resultado de um processo subterrâneo que tem três pilares. Organização em Assembleias abertas que permitem visualizar a força de que se dispõe e o caminho para acrescentá-la. Consciência para determinar o que queremos e como podemos conseguir. Combatividade diante do trabalho de sabotagem dos sindicatos e de todos os organismos de mistificação.
Esse processo está se desenvolvendo, mas é difícil determinar quando e como vai se manifestar. Uma comparação pode talvez nos ajudar. Na grande luta massiva de Maio de 68 [30], em 13 de maio de 1968 houve uma gigantesca manifestação em Paris em apoio aos estudantes brutalmente reprimidos. O sentimento de força que aquilo gerou se traduziu de forma fulminante no dia seguinte na deflagração de numerosas greves espontâneas começando pela Renault de Cléon e em continuidade a de Paris. Mas isso não se produziu após as grandes manifestações de 19 de junho. Por quê?
Em maio de 68, a burguesia estava pouco preparada politicamente para enfrentar a classe operária, a repressão inflamou os ânimos e acabou jogando lenha na fogueira. Hoje a burguesia conta, em grande número de países, com um aparato ultrassofisticado de sindicatos, partidos, campanhas ideológicas, alicerçado precisamente na democracia, que permite um uso politicamente muito eficaz de uma repressão seletiva. A deflagração da luta requer um esforço de consciência e solidariedade muito maior que no passado.
Em maio de 68, a crise apenas dava seus primeiros passos, hoje constitui pelo capitalismo um beco sem saída. Isso intimida, torna difícil entrar em greve, inclusive por um motivo tão "simples" como o aumento dos salários. A gravidade da situação faz que as lutas sejam deflagradas porque "o copo da paciência transborda". Mas então é preciso a conclusão que "Os proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias e têm um mundo a ganhar." (Manifesto Comunista)
Apesar do caminho ser mais longo e doloroso que em maio 68, as bases que estão sendo construídas são muito mais firmes. A mais determinante é tentar se conceber como parte de um movimento internacional. Após uma etapa de "experimentos" com alguns movimentos massivos (o movimento dos estudantes na França em 2006 e as revoltas da juventude na Grécia em 2008 [31]), nos últimos 9 meses se sucedem movimentos que têm uma maior amplitude e que permitem vislumbrar a possibilidade de paralisar a mão bárbara do capitalismo: França em novembro de 2010, Grã-Bretanha em novembro-dezembro de 2010, Egito e Tunísia em 2011, Espanha em maio 2011, Grécia em 2011...
A compreensão de que o movimento "15 M" faz parte dessa cadeia internacional, tem começado a se desenvolver embrionariamente. Em uma manifestação em Valência se gritava: "Este movimento não tem fronteiras". Foram organizadas por vários acampamentos manifestações "para uma Revolução européia", em 15 de junho houve manifestações em apoio à luta na Grécia, o que voltou a se repetir em 29 de junho. Em 19 de junho, os slogans internacionalistas apareceram minoritariamente: um cartaz dizia "Feliz união mundial", outra exibia em inglês "World Revolution".
Durante anos, o que chamavam de "globalização da economia" servia à burguesia de esquerda para provocar reflexos nacionalistas, seu discurso consistia em reivindicar frente aos "mercados apátridas" a "soberania nacional", quer dizer, propunham aos operários ser mais nacionalistas que a própria burguesia! Com o desenvolvimento da crise, mas igualmente com a popularização do uso da internet, as redes sociais etc., a juventude operária começa a dar o troco contra seus promotores. Desenvolve-se a ideia de que "frente à globalização da economia há que se responder com a globalização internacional das lutas", que diante da miséria mundial a única resposta possível é uma luta mundial.
O "15 M" tem tido uma ampla repercussão internacional. As mobilizações que vêm ocorrendo na Grécia há 2 semanas seguem o mesmo "modelo" de assembleias massivas nas praças principais, cuja inspiração consciente são os acontecimentos da Espanha [32]. Segundo Kaosenlared, em 19 de junho "Milhares de pessoas de todas as idades se manifestaram neste domingo na Praça Syntagma, diante do Parlamento grego, pelo quarto domingo consecutivo em resposta a um chamado do movimento pan-europeu de "indignados" para protestar contra as medidas de austeridade".
Na França, Bélgica, México, Portugal, ocorreram assembleias regulares, contudo menores, onde a solidariedade com os indignados e a tentativa de impulsionar um debate e uma resposta, abriu passagem. Em Portugal "umas 300 pessoas, na sua maioria jovens, marcharam no domingo à tarde pelo centro de Lisboa convocados pelo movimento "Democracia Real Já", inspirado pelos "indignados" espanhóis. Os manifestantes portugueses marcharam tranquilos detrás de uma faixa na qual se podia ler "Europa desperta", "Espanha, Grécia, Irlanda, Portugal: nossa luta é internacional"." [33]
A crise mundial da dívida ilustra a realidade da crise sem saída do capitalismo. Tanto na Espanha como nos demais países há um dilúvio de ataques frontais e não se vislumbra nenhum alívio, senão novos e piores golpes nas nossas condições de vida. A classe operária necessita dar uma resposta e para isso deve se apoiar no impulso dado pelas Assembleias de maio e as manifestações de 19 de junho.
Para preparar essa resposta, a classe operária segrega no seu seio minorias ativas, companheiros que buscam compreender o que está passando, que se politizam, animam debates, ações, reuniões, assembleias, tentam convencer os que duvidam, acrescentam argumentos aos que buscam... Como vimos no início, essas minorias contribuíram para o surgimento do 15 M.
A CCI, com suas modestas forças, tem participado do movimento, tentando dar orientações. "Durante um conflito entre classes, assiste-se a flutuações importantes muito rápidas diante das quais há que saber se orientar, guiando-se pelos princípios e pelas análises. É preciso estar ao corrente do movimento, saber concretizar os "fins gerais" para responder às preocupações reais de uma luta, para poder apoiar e estimular as tendências positivas que aparecem" [34]. Temos elaborado numerosos artigos tratando de compreender as distintas fases pelas quais o movimento tem passado e fazendo propostas de marcha concreta e realizáveis: a emergência das assembleias e sua vitalidade, a ofensiva do DRY contra elas, a armadilha da repressão, o giro que representam as manifestações do 19 de junho [35].
Outra necessidade do movimento sendo o debate, estabelecemos uma rubrica na nossa Web em espanhol – Debates del "15 M [17]" – onde companheiros com diversas análises e a partir de diversas posturas está podendo se expressar.
Trabalhar junto com outros coletivos e minorias ativas tem sido outra das nossas prioridades. Temos nos coordenado com o Círculo Operário de Debate de Barcelona, com a Rede de Solidariedade de Alicante e com vários coletivos de participantes das assembléias de Valência, com os quais temos assumido iniciativas comuns.
Nas Assembleias, nossos militantes falaram sobre pontos concretos: defesa das Assembleias, orientar a luta para a classe operária, impulsionar Assembleias massivas nos centros de trabalho e estudo, rechaçar as reivindicações democráticas colocando no seu lugar a luta contra os cortes sociais. O capitalismo não pode ser reformado nem democratizado, a única possibilidade realista é destruí-lo…[36] Do mesmo modo, na medida das nossas possibilidades, participamos ativamente de Assembleias de Bairro.
Após o "15 M", a minoria que tem uma orientação de classe tem se ampliado e tornado mais dinâmica e influente. Agora, deve manter-se unida, articular um debate, coordenar-se a nível nacional e internacional. Diante do conjunto da classe deve tornar-se visível uma postura que colete suas necessidades e aspirações mais profundas: diante do engano democrático, a perspectiva que se encerra sob a palavra de ordem "Todo poder às Assembleias"; contra às reivindicações a favor de reformas democráticas, evidenciar a luta consequente contra os cortes sociais; diante das ilusórias "reformas" do capitalismo, colocar para frente a luta tenaz e perseverante na perspectiva de destruição do capitalismo.
O importante é que neste meio se desenvolva um debate e um combate. Um debate acerca das numerosas questões que têm sido colocadas no último mês: reforma ou revolução? Democracia ou Assembleias? Movimento cidadão ou movimento de classe? Reivindicações democráticas ou reivindicações contra os cortes sociais? Pacifismo cidadão ou violência de classe? Apoliticismo ou política de classe? Greve geral ou greves massivas? Sindicatos ou Assembleias? Etc. Um combate para impulsionar a auto-organização e a luta independente, mas, sobretudo, para saber captar e superar as numerosas armadilhas nas quais vão tentar nos enredar.
C.Mir (1-7-2011)
[1] Ver na Revista Internacional nº 144: Francia, Gran Bretaña, Túnez - El porvenir es que la clase obrera desarrolle internacionalmente sus luchas y sea dueña de ellas.
[2] Um responsável da Cártias espanhola, ONG eclesiástica que se ocupa da pobreza, assinalava: "Falamos já de mais de 8 milhões de pessoas em processo de exclusão e outros 10 milhões abaixo da linha da pobreza". Fonte: https://www.burbuja.info/inmobiliaria/temas/tenemos-18-millones-de-excluidos-o-pobres-francisco-lorenzo-responsable-de-caritas.230828/ [18] (tradução nossa). 18 milhões equivalem a um terço da população espanhola! Evidentemente, isto não é uma peculiaridade espanhola. Em um ano o nível de vida dos gregos retrocedeu em 8%.
[3] Falaremos dela no próximo parágrafo: As Assembleias um primeiro olhar voltado ao futuro.
[4] Ver "Comunicado de lxs detenidxs en la manifestación del 15 de Mayo de 2011 [19]" y en francés [20].
[5] Dois slogans muito repetidos eram: "PSOE-PP, são a mesma merda" e "Com rosas e gaivotas nos tomam por idiotas", a rosa é o símbolo é o símbolo do PSOE e gaivota o do PP.
[6] Para se ter uma ideia deste movimento e dos seus métodos, pode-se consultar nosso artigo Movimento Cidadão Democracia Real Já!: Ditadura do Estado contra as assembleias massivas [https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/Movimento_Cidadao_Democra... [21].
[7] Ágora é um lugar público para encontros; uma praça pública, na Grécia Antiga, que servia de comércio e para certos atos políticos e civis (pt.wiktionary.org/wiki/ágora [22])
[8] Esta citação de Rosa Luxemburgo em Greve de massas, partido e sindicatos (Kairós, 1979, p. 47), refere-se à grande greve do sul da Rússia em 1903, e vem a calhar perfeitamente com o ambiente existente nas assembleias um século depois.
[9] Ver Carta Aberta às Assembleias, "Carta abierta a las asambleas [23]".
[10] Marx e Engels, A Ideologia alemã. Ed. Boitempo, pag.42.
[11] Ver "TESIS SOBRE LA DESCOMPOSICION: La descomposición, fase última de la decadencia del capitalismo [24]".
[13] Ao nosso ver, a causa fundamental dessas dificuldades reside nos acontecimentos de 1989, que varreram os regimes do Leste, falsamente identificados como "socialistas" e que permitiram à burguesia uma campanha esmagadora sobre a "queda do comunismo", o "fim da luta de classes", o "fracasso do marxismo", etc., que afetaram duramente várias gerações operárias. Ver Dificultades creciente para el proletariado, Revista Internacional nº 60.
[14] Recordemos como, na França, entre fevereiro e junho de 1848, também acontece essa "grande festa de todas as classes sociais", o que se romperá com os enfrentamentos de junho, quando o proletariado se baterá com armas na mão contra o Governo Provisório. Igualmente, na revolução russa de 1917, de fevereiro a abril reina o mesmo ambiente de todos unidos sob a bandeira "democracia revolucionária".
[15] Salvo a extrema direita que, levada por seu irrefreável ódio antiproletário, expressava em voz alta o que as demais frações burguesas guardavam para a intimidade de seus escritórios.
[16] Possibilidade dos cidadãos, recolhendo certo número de assinaturas, possam reivindicar leis e reformas ao parlamento.
[17] A democracia se baseia na passividade e atomização da imensa maioria, reduzida a uma soma de indivíduos que quanto mais soberanos se crêem sobre seu próprio Eu, mais indefesos e vulneráveis são. Ao contrário, as Assembleias partem do postulado oposto: os indivíduos são fortes porque se apoiam sobre a "riqueza de seus laços sociais" (Marx) ao se integrar e ser parte ativa de um vasto corpo coletivo.
[18] O que permite introduzir a ideia de que existiria uma repressão "proporcional"!
[19] Pede que se for detectado um "violento" ou um "suspeito de ser violento" (sic), que seja abordado e condenado publicamente seu "comportamento".
[20] Sua origem mais remota são as reuniões de distrito na Comuna de Paris, mas é com o movimento revolucionário na Rússia de 1905 que se afirmam e, desde então, aparecem em todo grande movimento de classe sob diferentes formas e nomes: Rússia em 1917, Alemanha em 1918, Hungria em 1919 e 1956, Polônia em 1980... Na Espanha houve em Vigo em 1972 uma Assembleia Geral da cidade que se repetiu em Pamplona em 1973 e Vitória em 1976, para reaparecer de novo em Vigo em 2006. Escrevemos diferentes artigos sobre a origem das Assembleias operárias. Ver em particular a série: "O que são os Conselhos Operários? [25]".
[21] Além disso, em Cádiz a Assembleia Geral organiza um debate sobre a precariedade com grande assistência. Em Cáceres se denuncia a desinformação sobre o movimento na Grécia. Em Almeria se organiza para 15 de julho uma reunião sobre "a situação do movimento operário".
[22] Estas são uma faca de dois gumes: contém como pontos favoráveis a extensão do debate massivo em camadas mais profundas da população trabalhadora e a possibilidade – como já começou a acontecer – de impulsionar Assembleias contra Desemprego e a Precariedade, rompendo a atomização e o sentimento de vergonha que domina muitos trabalhadores precários das pequenas empresas. Mas, simultaneamente, servem para dispersar o movimento, fazê-lo perder o foco nas preocupações globais e encerrá-lo em dinâmicas civis, dão que o bairro – lugar onde convivem operários com pequena burguesia, empresários, etc. – dá mais oportunidade a esse tipo de reivindicação.
[23] Ver entre outros, Un protocolo anti-violencia en https://esparevol.foroactivo.com/t317-a-proposito-de-un-protocolo-anti-violencia [26]
[24] Na Coordenação de Assembleias de Bairros e Povoados do Sul de Madri há fundamentalmente Assembleias de trabalhadores de diversos setores, ainda que igualmente participem pequenos sindicatos radicalizados. Ver https://asambleaautonomazonasur.blogspot.com/ [27]
[25] A privatização de serviços públicos e caixas de pensões é uma resposta do capitalismo ao agravamento da crise e, mais concretamente, a que os Estados, cada vez mais endividados, vejam-se obrigados a reduzir os gastos, recorrendo para isso à degradação de serviços essenciais de maneira insuportável. No entanto, é importante compreender que a alternativa às privatizações não é a manutenção desses serviços sob a titularidade estatal. Em primeiro lugar, porque os serviços "privatizados" seguem sendo controlados por instituições estatais que subcontratam os serviços a empresas privadas. E, em segundo lugar, porque o Estado e a propriedade estatal não tem nada de "social" ou de "bem estar social". O Estado é um órgão exclusivo e excludente da classe dominante e a propriedade estatal se baseia na exploração assalariada. Este problema começou a se colocar em certos meios operários. Por exemplo, em uma reunião em Valência contra o desemprego e a precariedade. Ver kaosenlared.net/noticia/cronica-libre-reunion-contra-paro-precariedad.
[26] ERE: Expediente de Regulación de Empleo, procedimiento legal para despedir trabajadores temporal o definitivamente.
[28] Ver "Huelga del metal de Vigo: Los métodos proletarios de lucha [29]" y Vigo, los métodos sindicales conducen a la derrota, https://es.internationalism.org/node/2585 [30]
[29] O que não significa subestimar os graves obstáculos que a natureza intrínseca do capitalismo, baseada na competição até a morte e a desconfiança de todos sobre todos, opõe a este processo de unificação. Isto somente poderá realizar-se ao preço de enormes e complicados esforços baseando-se na luta unitária e massiva da classe operária, uma classe que por ser produtora coletiva e associada das principais riquezas sociais, leva em seu seio a reconstrução do ser social da humanidade.
[30] Ver la serie Mayo 68 y la perspectiva revolucionaria, primera parte "El movimiento estudiantil en el mundo en los años sesenta [31]".
[31] Ver Las revueltas de la juventud en Grecia confirman el desarrollo de la lucha de clases, "Las revueltas de la juventud en Grecia confirman el desarrollo de la lucha de clases [32]".
[32] A censura sobre o que ocorre na Grécia a nível dos movimentos de massa é total, o que dificulta a realização de uma análise. Depois da realização deste artigo, publicamos em nosso site um artigo dos companheiros do TPTG, grupo revolucionário que atua na Grecia: "Notas preliminares para un análisis del “Movimiento de asambleas populares” (TPTG, Grecia) [33]".
[33] Dados recolhidos de Kaosenlared: https://kaosenlared.net/ [34]
[34] Revista Internacional nº 20, Acerca de la intervención de los revolucionarios, respuesta nuestros censores, https://es.internationalism.org/node/2142 [35]
[35] Ver em nossa imprensa os diferentes artigos que pontuam cada um desses movimentos.
[36] Isto não era uma insistência específica da CCI, uma palavra de ordem bastante popular dizia "Ser realista é ser anti-capitalista", una bandeira sustentava "O sistema é desumano, sejamos anti-sistema".
"Vai acontecer um crack e a queda será muito violenta". "Ninguém acredita nos planos de resgate, as pessoas sabem que os mercados e as bolsas estão acabados". "Absolutamente, não cabe aos especuladores" como vamos direcionar a economia, nosso trabalho é fazer dinheiro com esse tipo de situações". "Deito-me todas as noites sonhando com uma nova recessão". "Em 1920, poucas pessoas estavam preparadas para tirar partido do crack e hoje todo mundo, e não só as elites, poderiam fazer isso ". "Esta crise econômica é como um câncer". "Tem que se preparar! Não há de se esperar que os governos solucionem nossos problemas já que não são eles os que governam o mundo e sim Goldman Sachs. Esse banco não se importa com os planos de resgate". "Eu predigo que em menos de 12 meses as poupanças de milhões de pessoas vão desaparecer e isto não será mais que o início". Esses comentários foram feitos, em 26 de Setembro, pelo especulador Alessio Rastani na rede de televisão BBC. [1] Desde então, o vídeo tem se reproduzido na Internet criando um verdadeiro escândalo. Certamente, nós compartilhamos o pessimismo do economista. Sem necessidade de prever de uma forma tão precisa o futuro, podemos afirmar sem medo, que o capitalismo vai continuar afundando, que a crise se ampliará e será cada vez mais devastadora, e que o sofrimento que traz a miséria vai alcançar uma grande parcela da humanidade.
As declarações de Alessio Rastani alimentam uma das grandes mentiras dos últimos anos, o mundo estaria arruinado devido exclusivamente ao sistema financeiro. É Goldman Sachs quem dirige o mundo. Todas as vozes antiglobalização, de esquerda e extrema esquerda gritam em uníssono: "Que horror! Esta é a causa de todos nossos males. Devemos retomar o controle da economia. Devemos por limites aos bancos e fazer parar a especulação. Devemos lutar por um Estado mais forte e mais humano!" Esse discurso é repetido sem cessar depois do fracasso do gigante bancário americano Lehman Brothers em 2008. Atualmente, até uma parte da direita clássica tem se unido a essa crítica radical do sistema financeiro e pede por mais moralização e por um maior papel do Estado. Esta propaganda nada mais é que uma farsa ideológica utilizada como ferramenta para ocultar a causa real do cataclismo atual: o fracasso histórico do capitalismo. Não é simplesmente um matiz ou uma simples questão de terminologia. Denunciar o neoliberalismo e denunciar o capitalismo é fundamentalmente diferente. Por um lado se fala da reforma desse sistema de exploração enquanto que por outro se afirma que o capitalismo não tem futuro, que deve ser destruído e substituído por uma nova sociedade. Entendemos porque a classe dominante, seus meios de comunicação e seus especialistas, investem tanta energia em assinalar a irresponsabilidade do sistema financeiro, acusando-o da situação econômica atual já que buscam desviar as reflexões em curso sobre a necessidade de uma mudança radical e, portanto, de uma revolução.
Depois de quatro anos, a cada crack da bolsa, reaparece o assunto de um "especulador irresponsável". Em janeiro de 2008, o escândalo de Jerome Kirviel foi a manchete de todos os jornais. Kirviel é julgado como responsável pela queda da Société Générale (banco francês) por ter perdido 4,82 bilhões de euros, devido a uma série de erros decorrente de má gestão. A verdadeira razão dessa crise, a explosão da bolha imobiliária dos Estados Unidos, é relegada ao segundo plano.
Em dezembro de 2008, o investidor Bernard Madoff é investigado por um desfalque de 65 bilhões de dólares. Converte-se no maior desfalque de todos os tempos e permite, pontualmente, esquecer o fracasso bancário do gigante americano Lehman Brothers.
Em setembro de 2011, o especulador Kweku Adoboli é acusado de uma fraude de 2,3 bilhões de dólares no banco suíço UBS. Esse assunto veio à luz do dia de uma forma totalmente inesperada e em meio a uma nova convulsão econômica mundial.
Evidentemente, todo mundo sabe que esses indivíduos são os bodes expiatórios. A corda puxada pelos bancos para justificar seus excessos é mais do que evidente para se deixar passar sem perceber. No entanto, esta intensa propaganda midiática permite focar toda atenção ao mundo financeiro. A imagem desses tubarões especuladores, sem escrúpulos, está fixando-se em nossas mentes até se converter em uma obsessão.
Assim, temos que refletir: como esses "diversos eventos" em si mesmos podem explicar porque a economia mundial está à beira de um colapso? Por mais indignantes que sejam essas fraudes de milhões de dólares, quando milhões de pessoas morrem de fome no mundo, por mais cínicos e vergonhosos que possam parecer os propósitos de Aléssio Rastani na BBC quando diz esperar um crack da bolsa para especular e se enriquecer, não tem nada que possa explicar a amplitude mundial da crise econômica que abarca atualmente todos os setores em todos os países. Os capitalistas, sejam banqueiros ou diretores, sempre buscaram o máximo lucro sem se preocuparem com os problemas da humanidade. Não é nenhuma novidade. O capitalismo é um sistema de exploração desumano desde o seu nascimento. A pilhagem bárbara e sanguinária das populações africanas e asiáticas nos séculos XVIII e XIX é uma prova trágica disso. A delinqüência dos especuladores e dos bancos não explica nada da crise atual. Se as fraudes financeiras provocam atualmente perdas colossais e colocam às vezes os bancos em perigo, na realidade é devido à sua fragilidade induzida pela crise e não o contrário. Se, por exemplo, o Lehman Brothers faliu em 2008, não foi por causa da sua política de investimento, mas por causa da quebra do mercado imobiliário americano durante o verão de 2007 e porque esse banco detinha um monte das obrigações sem valor. Com a crise das subprimes, as famílias americanas super-endividadas revelaram-se insolventes e todo mundo entendeu que os empréstimos contratados jamais seriam pagos.
As agências de qualificação [2] também são o fogo cruzado das críticas. No final de 2007, foram taxadas de incompetentes por terem negligenciado o peso das dívidas dos Estados. Hoje em dia, são acusadas do oposto, por dar muita importância à dívida soberana da zona do euro (Moody) e dos Estados Unidos (Standard and Poors). É verdade que essas agências têm interesses particulares, que seu juízo não é objetivo. As agências chinesas foram as primeiras em degradar a nota do estado americano, e as americanas são mais severas com a Europa do que com seu próprio país. É verdade, igualmente, que cada queda das notas de um país ou de uma empresa, é aproveitada pelos financistas para especular, o que acelera ainda mais a degradação das condições econômicas. Os especialistas falam das chamadas "profecias autorrealizáveis".
Mas a realidade é que todas as agências subestimam voluntariamente a gravidade da situação; as notas que atribuem são demasiadamente elevadas em relação à capacidade dos bancos, das empresas e de alguns Estados. O interesse dessas agências é criticar suavemente os fundamentos econômicos para não criar o pânico, pois a economia mundial é o galho onde todas se assentam. Quando baixam uma nota é porque têm essa obrigação, caso contrário ninguém acreditaria nelas. Do ponto de vista da classe dominante, é mais inteligente reconhecer algumas debilidades de seu próprio sistema para dissimular assim os problemas de fundo. Todos os que acusam as agências de qualificações o sabem perfeitamente. Se denunciam a qualidade dos termômetros, é para evitar as reflexões acerca da estranha doença que afeta o capitalismo mundial, por medo que percebamos que se trata de uma enfermidade degenerativa incurável.
Essas críticas dos especuladores e das agências de qualificação pertencem a uma campanha de propaganda muito mais ampla sobre a loucura e a hipertrofia do sistema financeiro. Como sempre, esta ideologia enganosa se apóia sobre uma parcela de verdade, já que não se pode negar que o mundo financeiro se converteu, nas últimas décadas, em um monstro gigantesco dotado de incurável obesidade e afundado no mais irracional dos comportamentos.
Existem muitíssimas provas. Em 2008, o total das transações financeiras mundiais se elevou a 2.200 trilhões de dólares, contra um PIB mundial de 55 trilhões. [3] E esses trilhões foram investidos ao longo dos anos de maneira enlouquecida e autodestrutiva. Um exemplo elucidativo é a venda a descoberto: "No mecanismo de venda a descoberto, começamos por vender um valor que não possuímos para depois voltarmos a comprá-lo. O objetivo do jogo é vender um valor a um preço e voltar a comprar a um preço inferior para tirar a diferença. O mecanismo é totalmente oposto ao de uma compra seguida de uma venda". [4] Concretamente, a venda a descoberto envolve imensos fluxos especulativos financeiros em torno de certos ativos apostando na queda dos seus preços, o que em ocasiões pode levar a um colapso do ativo visado. Isto agora se tornou um escândalo e muitos economistas e políticos nos dizem que este é o principal problema da falência da Grécia e da queda do euro. Assim, a solução é simples: proibir as vendas a descoberto e tudo voltará ótimo no melhor dos mundos. É verdade que este tipo de venda é uma loucura e que acelera a destruição de partes importantíssimas da economia. Mas é justamente isso: só faz acelerar, não é a causa! O contexto que permite essas operações em grande escala é a crise econômica. O fato de que os capitalistas apostem de maneira consciente na baixa e não na alta dos mercados revela na realidade a total falta de confiança que eles mesmos têm no futuro da economia mundial. Também é a razão pela qual há cada vez menos estabilidade e cada vez menos investimentos a longo prazo: se os investidores jogam a curto prazo fazendo operações espetaculares e retirando-se rapidamente sem se preocupar com a continuidade das empresas e das fábricas é porque não há quase nenhum setor industrial seguro e rentável a longo prazo. E é aqui onde começamos verdadeiramente chegar ao centro do problema: a economia chamada real ou tradicional está submersa em águas pantanosas há décadas. Os capitais fogem dessa esfera que é cada vez menos rentável. O comércio mundial está saturado de produtos que não podem ser vendidas, as fábricas não estão produzindo e não acumulam o suficiente. O resultado é que os capitalistas investem em especulação. Daí procede a hipertrofia do sistema financeiro, que não é mais que um sintoma da doença incurável do capitalismo: a superprodução.
Aqueles que apontam o neoliberalismo como problema concordam que a economia real está em apuros, porém não atribuem isto à impossibilidade do capitalismo continuar se desenvolvendo. Eles negam que o sistema se tornou decadente e que está em sua agonia de morte. Os ideólogos antiglobalização atribuem à destruição da indústria depois das más escolhas nas políticas dos anos 60 e, consequentemente, à ideologia neoliberal. Para eles, como para nosso especulador Alessio Rastani, é Goldman Sachs quem dirige o mundo. Lutam por um Estado melhor, por mais regulação, por uma maior política social. Partindo da crítica do neoliberalismo, mostram-nos outra ilusão: o estatismo. "Com um maior controle do Estado sobre sistema financeiro, poderíamos construir uma nova economia: mais social e mais próspera".
No entanto, um Estado com maior protagonismo não permitirá solucionar os problemas econômicos que afetam o capitalismo. Repetimos que o que mina o sistema é a tendência natural de produzir mais mercadorias do que os mercados podem absorver. Durante décadas, conseguiu evitar a paralisia da sua economia ao vender sua produção em um mercado criado artificialmente pelo endividamento. Em outros termos, o capitalismo sobrevive à base de créditos desde os anos 1960. É por isso que hoje, os particulares, empresários, bancos e Estados se afundam sob uma gigantesca montanha de dívidas e por isso que a recessão atual é conhecida como a "crise da dívida". Desde o fracasso do Lehman Brothers em 2008, o que os Estados fizeram através dos seus bancos centrais (FED [EUA] e BCE [Europa] à frente)? Injetam bilhões de dólares para evitar o afundamento. Mas de onde vem esse dinheiro? De novas dívidas! Não se faz mais do que deslocar a dívida privada para a esfera pública e assim preparar futuras falências dos Estados, como estamos observando atualmente com a Grécia. As tempestades econômicas que estão por vir podem ser de uma violência sem precedentes. [5]
"Mas se o estado não soluciona a crise, poderia ao menos nos proteger e ter uma atitude mais social", é o que a esquerda nos fala. Mas isso é esquecer um pouco rápido demais que o Estado sempre foi o pior dos patrões. As nacionalizações nunca foram uma boa notícia para os trabalhadores. Após a Segunda Guerra Mundial, a maior onda de nascionalizações que se produziu tinha por objetivo elevar o aparato produtivo destruído e aumentar o ritmo do trabalho. Na época , Thorez, secretário geral do Partido Comunista francês e vice-presidente do governo dirigido por De Gaulle (famoso general de direita), lançou o apelo à classe operária francesa, e, em particular, dos operários das empresas nacionalizadas: "Se os mineiros morrerem no trabalho, suas esposas irão substituí-los" ou "arregace as mangas para a reconstrução nacional", e "a greve é a arma dos trustes". Bemvindo no mundo maravilhoso das empresas nacionalizadas. Aqui não têm nada de inesperado nem de surpreendente. Os comunistas revolucionários têm colocado sempre em evidência desde a experiência da Comuna de Paris de 1871, o papel visceralmente anti-proletário e desumano do Estado. "O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, o capitalista coletivo Ideal. E quanto mais forças produtivas passe à sua propriedade tanto mais se converterá em capitalista coletivo e tanto maior quantidade de cidadãos explorará. Os operários continuam sendo operários assalariados, proletários. A relação capitalista, longe de ser abolida com essas medidas, se aguça". Friedrich Engels escreveu essas linhas em 1878, o que mostra que, já na época, o Estado começava a estender seus tentáculos sobre a totalidade da sociedade, a agarrar com mão de ferro toda a economia nacional, as empresas públicas e as grandes sociedades privadas. Desde então, o capitalismo de estado não tem feito mais que se reforçar: cada burguesia nacional se fortalece atrás de seu Estado para levar a guerra comercial internacional sem piedade que travam todos esses países.
Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, conheceram nesses últimos anos um êxito econômico de grande ressonância. A China, em particular, é considerada atualmente como a segunda potência econômica mundial, e muitos são os que pensam que logo destronará os Estados Unidos. Este êxito impressionante, faz os economistas esperar que este grupo de países poderia se converter na nova locomotiva da economia mundial, como o foram os Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial. Ultimamente, devido aos riscos de explosão da zona do euro, a China, se propôs a reavivar as finanças italianas. A turma dos anti-globalização vêem nisso um motivo de alegria: uma vez que a supremacia americana do neoliberalismo é vista por eles como a pior das pragas nestas últimas décadas, o crescimento do poder desses países emergentes permitiria um mundo mais equilibrado, mais justo. Esta esperança de ver o desenvolvimento dos países emergentes, compartilhada por todos os burgueses assim como os "anti- globalização", não é somente cômica, mas revela que todos estão vinculados ao mundo capitalista.
Esta esperança desaparecerá, pois há um ar de déjà-vu sobre todo esse assunto de "milagre econômico". A Argentina e os tigres asiáticos nos anos 80 e 90 e mais recentemente Irlanda, Espanha ou Islândia, foram exibidos como "milagres econômicos". E como todo milagre, a realidade acabou por se impor. Todos esses países deveram seu rápido crescimento a um endividamento desenfreado e conheceram a mesma sorte: recessão e fracasso. E ocorrerá o mesmo com os BRIC. A preocupação cresce em torno do endividamento real das províncias chinesas, sobre a desaceleração do crescimento e sobre o aumento da inflação. O presidente do fundo soberano chinês China Investment Corp, Gao Xiping, declarou "Não somos salvadores devemos salvar a nós mesmos". Mais claro que isso, impossível!
O Capitalismo não pode ser reformado. Ser realista, é admitir que só a revolução pode solucionar a catástrofe. O capitalismo, como a escravidão e a servidão, é um sistema de exploração condenado a desaparecer. Depois de ter expandido durante os séculos XVIII e XIX, e depois de conquistar o planeta, o capitalismo entrou em decadência desencadeando a Primeira Guerra Mundial. A Grande Depressão dos anos 30 e a carnificina da Segunda Guerra Mundial confirmaram a obsolescência desse sistema e a necessidade de destruir esse sistema social moribundo para que a humanidade sobreviva. Porém desde os anos 1950, não houve uma crise de magnitude da de 1929. É verdade que a burguesia aprendeu a limitar os danos e reativar a economia: o que faz alguns pensar que a crise que hoje atravessamos não é mais que um novo episódio desses tremores, e que o crescimento não tardará em voltar, como acontece desde os 60 anos. Na realidade, as recessões sucessivas em 1967, 1970-71, 1974-75, 1991-93, 1997-1998 (na Ásia) e 2001-2002 não fizeram mais que preparar o drama atual. Com efeito, em cada ocasião, a burguesia só conseguia relançar a economia mundial ao preço da abertura das comportas dos créditos. Não chegaram nunca a solucionar o problema de fundo, a superprodução crônica. Não fez mais que adiar os prazos recorrendo às dividas e atualmente o sistema está afogado por elas. Todos os setores, todos os Estados estão superendividados. Esta corrida para frente atinge os seus limites. Isto que dizer que a economia vai se bloquear e que tudo vai parar? Evidentemente que não. A burguesia continuará a se debater. Concretamente, a classe dominante tem que escolher entre duas políticas, que são como escolher entre a peste e a cólera: austeridade draconiana ou a retomada através da máquina de produzir dinheiro. A primeira leva à recessão violenta e a segunda à explosão de uma inflação incontrolável.
Doravante, a alternância de fases curtas de recessão e de longos períodos de retomada financiadas através de créditos, é uma época definitivamente passada: o desemprego vai explodir e a miséria bem como a barbárie vão se expandir de forma dramática. Pode ser que haja fases de recuperação (como em 2010), porém essas não serão mais que pequenos balões de oxigênio de muito curta duração, às quais sucederão novos desastres econômicos. Todos aqueles que pretendem o contrário são como o suicida que, depois de ter saltado do alto do Empire State Bulding, dizia em cada andar que até ali tudo ia bem. Não esqueçamos que no começo da grande depressão de 1929, o presidente americano Hoover afirmava que a prosperidade estava logo na esquina. A única incerteza é como a humanidade vai se sair disso. Vai se afundar junto com o capitalismo? Ou vai ser capaz de construir um novo mundo de solidariedade, sem classes nem Estado, sem exploração ou lucro? Como escreveu Friedrich Engels há um século: "a sociedade burguesa está diante de um dilema: ou se dirige ao socialismo ou cai na barbárie". As chaves desse futuro estão nas mãos da classe operária, de suas lutas unificadoras para os trabalhadores, desempregados, aposentados e jovens precarizados.
Pawel (29 de setembro de 2011)
[1] Fonte: "Alessio Rastani (en français) - "C'est Goldman Sachs qui dirige le monde et pas les politiques" - BBC - 26/09/2011 [36]".
[2] Chamadas também de rating, as mais famosas são Standard & Poors, Moody's, Fitch etc.
[3] Fonte: www.jacquesbgelinas.com/index_files/Page3236.htm [37].
[4] Fonte: http ://www.abcbourse.com/apprendre/1_vad.html [38]
[5] Apostar em "mais Europa" ou em "mais governo mundial" também é outro beco sem saída. O fato de vários Estados se juntarem não vai solucionar a crise. O máximo que podem chegar é abrandar o avanço da crise, enquanto suas divisões a aceleram.
Os acontecimentos estão sendo explicado a partir de fatores supostamente nacionais o que se resumiria na famosa "Spanish Revolution".
Nada mais falso e enganoso! O desencanto com a chamada "classe política" é um fenômeno mundial, é muito difícil encontrar um país onde seus habitantes confiem em seus "representantes", sejam esses ratificados no circo eleitoral ou ditatorialmente impostos. A corrupção que tem se adicionado como outra possível explicação é igualmente um fenômeno mundial do qual não há país que escape [1]. Certamente, tanto na "qualidade" dos políticos como na corrupção há distintos graus segundo os países, porém essas diferenças são as árvores que nos impedem ver o fenômeno histórico e mundial da degeneração e do apodrecimento do capitalismo.
Outras razões colocadas sobre a mesa são o desemprego massivo, especialmente entre os jovens. Tem-se falado também da precariedade, dos cortes nos gastos sociais generalizados que se têm perpetrado e se preparam para depois das eleições. Tudo isso não tem nada de espanhol. Vimos isso não só na Grécia, Irlanda ou Portugal, mas também nos Estados Unidos e Inglaterra. Mas se é verdade que esses ataques na classe trabalhadora e na grande maioria da população variam em graus diferentes segundo os países – o capitalismo é uma fonte permanente de desigualdade e agravos comparativos – é um erro colocar "se X é menos pobre que Y" quando todos tendemos a ser mais e mais pobres!
O rosto amargo do desemprego o vemos tanto em Madrid como no Cairo, tanto em Londres como em Paris, tanto em Atenas como em Buenos Aires. Torna-se absurdo e estéril buscar impetuosamente tudo o que distingue e diferencia quando o que devemos ver é tudo o que une e generaliza. Na situação atual se vê de forma cada vez mais patente o que impera é a degradação geral das condições de vida dos explorados do mundo. Todos nos vemos unificados em uma mesma queda em direção ao abismo, que não só se manifesta no desemprego, na inflação, na precariedade, na eliminação de prestações sociais, mas igualmente na multiplicação de desastres nucleares, de guerras e em um poderoso deslocamento das relações sociais acompanhada de uma crescente barbárie moral.
É evidente que a pressão da ideologia dominante, estreitamente nacionalista, tenta encarcerar o movimento que estamos vivendo nas quatro paredes da "Spanish Revolution". É certo que as dificuldades da tomada de consciência fazem com que muitos protagonistas os vejam segundo esse prisma deformado, assim, nas Assembléias é muito escassa a reflexão sobre a situação mundial, ou sobre a própria situação da imensa maioria dos trabalhadores [2]...
Porém, como é possível que falemos de um elo do movimento internacional da classe operária quando a grande maioria dos assistentes embora seja operários (desempregados, jovens trabalhadores precários, funcionários, aposentados, estudantes, emigrantes...), não se reconheçam como pertencentes à classe operária e cujo termo apenas é pronunciado nas assembleias [3]?
Diferentes fatores explicam esta dificuldade: a classe operária padece de um forte problema de identidade e de confiança em si mesma. Por outro lado, a insatisfação generalizada não afeta unicamente a classe operária, mas também amplas camadas da população oprimida e não exploradora, o que se nota através de uma proletarização de extratos sociais pequeno-burgueses ou de profissões liberais [4]. Tudo isso faz com que o movimento possa parecer, segundo uma visão superficial, como interclassista, caoticamente desviado para uma infinidade de preocupações, muito sensíveis às reinvidicações democráticas... no entanto, se o olharmos mais profundamente, o movimento pertence por inteiro ao combate internacional da classe operária. Estamos imersos em um processo de lutas massivas, as quais servirão para que o proletariado comece a tomar confiança nas suas próprias forças e comece a se ver como uma classe social autônoma capaz de propor uma alternativa a esta sociedade condenada à ruína. A falha tectônica que vai da França 2006 [5] à Grécia 2008 [6] para voltar de novo à França 2010 [7], prosseguindo com Inglaterra 2010 e continuar com o Egito-Tunísia 2011 [8], se manifesta no imenso terremoto espanhol. Estão sendo preparadas as bases para grandes terremotos sociais que acabarão abrindo a via dolorosa para a emancipação da humanidade.
Uma análise internacional e histórica é mais clara se consegue integrar os fatores particulares, nacionais ou conjunturais. Em contrapartida, jamais se pode compreender os fatos caso se parte desses fatores específicos. O movimento que estamos vivendo partiu de um protesto "contra os políticos" organizado pela Democracia Real Já (Democracia Real Ya). As manifestações de 15 de maio foram um êxito espetacular: o descontentamento generalizado, o mal estar ante a falta de futuro, encontraram nelas um canal inesperado.
Aparentemente tudo terminava aí, porém em Madrid e em Granada, ao final da manifestação, houve violentos ataques da polícia com mais de 20 detidos que foram duramente tratados nos comissariados. Os detidos se agruparam em uma Assembléia que adotou um comunicado [9], cuja difusão produziu uma forte impressão e uma fulminante reação de indignação e solidariedade. Um grupo de jovens decidiu estabelecer um acampamento na Puerta del Sol de Madrid – praça central da cidade. No mesmo domingo, o exemplo se estende a Barcelona, Granada e Valência. Um novo ato da repressão acentua os ânimos e desde então as concentrações acabaram generalizando-se a mais de 70 cidades e a afluência às mesmas foi crescendo vertiginosamente.
A terça-feira à tarde constitui um momento decisivo. Os organizadores haviam programado atos silenciosos de protesto ou inofensivas encenações lúdicas (as chamadas "performances"), mas a participação aumentava rapidamente e pedia aos gritos a realização de Assembléias. Na terça-feira às 20 horas acontecem assembléias em Madrid, Barcelona, Valência e outras cidades, mas a partir da quarta-feira a avalanche foi formidável, as concentrações se transformam em Assembléias Abertas.
Apesar de ser um símbolo, o movimento se chama de 15-M, esta convocatória não foi criada por causa dele, mas simplesmente ofereceu um primeiro invólucro. E esse invólucro é na realidade uma couraça que o aprisiona, pois lhe dá como objetivo algo tão utópico como mistificador: a "regeneração democrática" do Estado espanhol [10]. O enorme descontentamento social tenta se canalizar para o que se conhece como "Segunda Transição". Após 34 anos de democracia, a grande maioria da população está muito decepcionada, mas isto se "explica" porque "estamos padecendo de uma democracia imperfeita e limitada" por culpa do pacto que houve de fazer com os "setores inteligentes" do franquismo, é preciso, portanto, uma "segunda transição" que nos levará a uma "democracia plena".
O proletariado na Espanha é vulnerável a esta mistificação dado que a Direita espanhola é altamente autoritária, arrogante e irresponsável, fazendo desta forma pouco acreditável a "democracia realmente existente". Porém ao impulsionar o "povo" a se "rebelar contra os políticos" e a exigir uma "Democracia Real Já", a burguesia trata de ocultar que essa é a única democracia possível e não há outra.
O governo Zapatero não tem sido muito delicado diante de uma situação explosiva com mais de 40% de jovens no desemprego. Zapatero chamou de "velhacos" aos que se atreveram a duvidar das – grandes conquistas sociais!- do seu governo o que tem inflamado os ânimos de muitos jovens. Entretanto, existe algo mais profundo: o jogo democrático propunha como alternativa ao PSOE, um PP que todo mundo teme porque conhece de sobra a sua arrogância, brutalidade e reflexos autoritários. Espanha não é Inglaterra onde Cameron – apoiado pelos "modernos" liberais – gozava previamente de uma melhor imagem, aqui – embora na prática sempre seja o PSOE o que comete os piores ataques – a Direita tem uma merecida fama de inimiga das classes trabalhadoras além de representar um bando de personagens fanáticos e corruptos [11].
Uma grande maioria da população contempla assustada o panorama de passar da bestialidade dos "amigos" socialistas a maior bestialidade, se é possível, às mãos dos inimigos declarados do PP. É a confiança no jogo democrático e seus resultados eleitorais! Diante de uma situação insuportável e um futuro dos mais aterrorizantes, as pessoas tomaram as ruas. Suas próprias confusões e ilusões, assim como a propaganda democrática, fizeram com que houvesse uma forte presença nas assembléias a proposta de terminar com o bi-partidarismo. Mas se trata de algo irrealista e puramente mistificador, o mapa político espanhol é rigidamente bi-partidarista – a partir do longo período de bipartidarismo da época de Cánovas [12] – e, como tem demonstrado os resultados das eleições municipais e autônomas, tende a reforçar-se [13].
No entanto, diante dessa democracia que reduz a "participação" a eleger a cada 4 anos o político de plantão que nunca cumprirá as promessas e sempre executará o "programa oculto" do qual jamais havia falado, o movimento na Espanha tem encontrado uma arma gigantesca onde de verdade a grande maioria pode se reunir, pensar e decidir: as Assembléias multitudinárias de cidade.
Na democracia burguesa o poder de decisão é entregue a um corpo burocrático de políticos profissionais que por sua vez obedecem sem questionar as ordens do Partido, o qual não é senão um defensor e intérprete do interesse do Capital.
Em contrapatida, nas Assembléias o poder de decisão é exercido diretamente pelos participantes que pensam, discutem e decidem juntos e são eles mesmos os que se organizam para colocar em prática as decisões.
Na democracia burguesa se consagra e reforça a atomização individual, a concorrência e o encerramento de cada qual "na sua", que caracteriza esta sociedade. Por outro lado, nas Assembléias se desenvolve um pensamento coletivo, todos podem aportar o melhor de si mesmo, todos podem sentir a força e a solidariedade comum, cria-se um espaço onde gera o antídoto contra a divisão e a fragmentação da sociedade capitalista e forjar os fundamentos de uma nova sociedade baseada na abolição da exploração e das classes, na formação de uma comunidade humana mundial.
Sé é certo que a democracia burguesa representou um indiscutível progresso frente ao poder absoluto dos monarcas, a evolução do Estado desde princípios do século XX consagrou o poder absoluto de uma combinação entre o que se chama a classe política e os grandes poderes econômicos e financeiros, ou seja, o Capital em seu conjunto. Por muitas listas abertas[14] que tenha, por muitas restrições que se coloque ao bipartidarismo, o poder descansa nessa minoria privilegiada e resulta ainda mais absoluto e ditatorial que o mais absolutista dos monarcas feudais. No entanto, diferentemente deles, essa ditadura do capital se legitima periodicamente com a farsa eleitoral.
As assembléias cruzam com a tradição proletária dos Conselhos Operários de 1905 e 1917 [15] que se estenderam à Alemanha e outros países durante a onda revolucionária de 1917-23.
Que penoso é o ambiente de uma mesa eleitoral onde os "cidadãos" ficam silenciosos, como cumprindo uma obrigação de cuja utilidade duvidam e sentem uma forte culpabilidade pelo voto emitido que sempre resulta "equivocado"!
Por outro lado, que emocionante é o ambiente que estamos vendo esses dias nas assembléias! Percebe-se um grande entusiasmo e uma vontade enorme de participar. Numerosos oradores fazem uso da palavra colocando toda ordem de questões. Terminada a assembléia geral, celebram-se reuniões de comissões que se prolongam durante as 24 horas do dia. Toma-se contato, se conhece pessoas, fazem reflexões em voz alta, se repassa de cima a baixo todos os aspectos da vida política, social, cultural, econômica... Descobre-se que se pode falar, que se pode tratar coletivamente de todos os assuntos... nas praças ocupadas são montadas bibliotecas, se organiza um "banco de tempo" para dar aulas de todos os temas tanto científicos como culturais, artísticos, políticos ou econômicos. Expressam-se sentimentos de solidariedade, se escuta atentamente sem que nada diga nem imponha nada, um canal se abre para a empatia geral. De maneira ainda tímida está criando-se uma cultura do debate massiva [16], reflexões múltiplas, propostas muitas vezes interessantes, variadas idéias, parece que os assistentes querem fazer públicos seus pensamentos, seus sentimentos, depois de tanto tempo meditando na solidão e na atomização. As praças se vêem inundadas por uma gigantesca e coletiva tormenta de idéias, a massa consegue expressar o melhor e mais profundo de si mesma. Essa massa anônima de pessoas, que supostamente são os perdedores da vida, detêm capacidades intelectuais, sentimentos ativos, emoções sociais, inesperadas, imensas, profundas.
A pessoa se sente libertada e goza apaixonadamente do prazer imenso de poder discutir coletivamente. Na aparência, a torrente de pensamentos não acaba em nada. Não há propostas concretas. Porém isto não é necessariamente uma debilidade, após longos anos de opressiva normalidade capitalista onde a imensa maioria sofre a ditadura do desprezo, as rotinas mais alienantes, os sentimentos negativos de culpa, de frustração, de atomização, torna-se inevitável uma primeira etapa de explosão desordenada. Não existe outra maneira, não há planos pedantes para que o pensamento da imensa maioria possa se expressar. Tem de percorrer esse caminho – que na aparência não vai a lugar nenhum – para transformar-se a si mesma e transformar de cima abaixo o panorama social.
É certo que os organizadores apresentam uma e outra vez manifestos democráticos e nacionalistas. Em parte estão refletindo as ilusões e confusões que padece a maioria, porém, ao mesmo tempo, o curso que está seguindo o pensamento de muitos participantes vai por outras direções que se esforçam por sair à superfície. Assim, por exemplo, em Madrid uma palavra de ordem que está se tornando popular sem que tenha sido recolhida pelos alto-falantes é "Todo o poder para as Assembléias", também "sem trabalho, sem casa, sem medo", "o problema não é a democracia, o problema é o capitalismo". "Operários despertai!" Em Valência algumas mulheres diziam “Enganaram os avós, enganaram os filhos, que os netos não se deixem enganar! Ou "600 euros ao mês, isso sim que é violência!".
As assembleias foram o teatro de um debate que surgiu como uma tensão entre diferentes ênfases polarizadas em 3 eixos:
Nas Assembléias convivem duas "almas"; a alma democrática que constitui um freio conservador e a alma proletária que busca definir-se em uma abordagem de classe.
As assembléias celebradas no domingo 22 resolvem no segundo ponto de debate a continuidade do movimento, muitas intervenções dizem "não estamos aqui pelas eleições embora elas tenham sido o detonante". Com relação ao terceiro ponto, multiplicam-se as intervenções de "ir em direção à classe operária" propondo adotar reivindicações contra o desemprego, a precariedade, os cortes sociais. Do mesmo modo, foi decidido estender as Assembléias aos bairros e começam a surgir vozes pedindo sua extensão aos centros de trabalho, universidades, escritórios de desemprego... Em Málaga, Barcelona e Valência se tem colocado a realização de uma manifestação contra os cortes sociais pedindo uma nova greve geral que "seja de verdade", como reclamou um dos oradores.
A fase inicial de agora, constitui por si mesma uma grande conquista do movimento. Deveria continuar, pois significa que massas importantes de explorados começam a resistir a "viver como até então". A indignação leva à necessidade de uma regeneração moral, de uma mudança cultural, as propostas que se fazem –inclusive embora pareçam ingênuas ou peregrinas – manifestam uma ânsia, ainda tímida e confusa, de "querer viver de outra maneira".
Porém, ao mesmo tempo pode findar o movimento nesse nível sem formular alguns objetivos concretos?
É difícil responder: há duas respostas que estão lutando em silêncio, expressão das duas "almas" que dissemos antes, a democrática e a proletária. A democrática finca suas raízes na falta de confiança da classe nas suas próprias forças, o peso de camadas sociais não proletárias, mas não exploradoras, o impacto da decomposição social [18] que faz agarrar-se a batata quente de um Estado"justo" e "equitativo".
A outra via, a de estender as assembléias a centros de trabalho, centros de estudos, agências de empregos, bairros, polarizando na luta contra os efeitos do desemprego e da precariedade, em resposta aos inumeráveis ataques que temos sofrido e estão por vir. Encarna-se em um setor muito combativo. Em Barcelona trabalhadores da Telefônica, trabalhadores de hospitais, bombeiros, estudantes de universidade, mobilizados contra os cortes sociais, têm se unido às assembléias e começam a dar uma tonalidade diferente. A Assembléia central de Barcelona parece a mais distanciada das colocações de regeneração democrática. A Assembléia central de Madrid tem convocado assembléias em bairros e distritos. Em Valência houve conjunção com um protesto de motoristas de ônibus e também com uma manifestação de moradores contra os cortes no ensino. Em Zaragoza, os trabalhadores de ônibus têm se reunido aos congregados com grande entusiasmo.
Essa segunda via apresenta uma dificuldade a mais. Está claro que existe o perigo real de que a "extensão" do movimento acabe levando à sua dispersão e fechar-se em reivindicações setoriais e corporativas. Trata-se de uma contradição real. Por um lado, o movimento somente pode continuar se lograr recolher, ou ao menos começar a despertar, a participação da classe operária como tal. No entanto, tal extensão pode dar fôlego aos sindicatos para pongar no movimento em marcha e aprisionar em reivindicações localistas etc. Sem negar este perigo, cabe perguntar: O fato mesmo de tentar inclusive, embora fracasse, não proporciona as premissas de uma luta coletiva que pode ter grande força no futuro?
Qualquer que seja o rumo que tome o movimento, sua contribuição à luta internacional da classe operária torna indiscutível:
A compreensão do que está ocorrendo deve impulsionar a abandonar velhos esquemas. A Revolução Russa de 1905 mostrou claramente uma nova maneira de ação das massas. Tal evento resultou na perplexidade e posteriormente no rechaço, para acabar na traição, de muitos dirigentes sindicais e sociais-democratas, e teóricos importantes como Kautsky e Plekhanov, que se agarravam desesperadamente aos velhos esquemas da "acumulação metódica de forças" mediante um gradual trabalho sindical e parlamentar [20].
Hoje temos que evitar uma armadilha semelhante. Os fatos não sucedem tal e como poderia esperar segundo um esquema amarrado às lutas dos anos 1970 e 1980. É certo que um proletariado com dificuldades de identidade e de confiança em si mesmo, não se mostra "gritando a pleno pulmão"; é certo, também, que junto a ele se mobilizam as camadas sociais não exploradoras. O movimento de avanço para lutas massivas, para um combate revolucionário, não escorre por canais bem definidos e delimitados que deixam claro e inequívoco seu terreno de classe. Isto apresenta riscos -um proletariado ainda débil pode se sentir desorientado e confuso em meio a um vasto movimento social, poderia inclusive parecer que está completamente perdido como aconteceu na Argentina em 2001.
Isso não diminui nem um pouco o potencial do que está acontecendo:
CCI 25-05-2011
[1] A corrupção está no próprio genoma do capitalismo considerando que sua "moral" consiste em que "vale tudo" para conseguir o maior lucro. Com essa premissa congênita e no marco da agudização da crise, que propaga a máxima irresponsabilidade tanto da classe empresarial como política, a corrupção se faz inevitável em todo Estado qualquer que sejam suas leis
[2] No entanto, nas assembléias começam a surgir colocações internacionalistas. Um orador em Valência, no domingo, se proclamou "cidadão do mundo" e disse que não podíamos nos limitar a mudar a Espanha. Está se fazendo um esforço de tradução dos comunicados das Assembléias em todos os idiomas "estrangeiros" possíveis o que contrasta com a colocação inicial "espanhol". Embora seja verdade que as mobilizações fora da Espanha em numerosos países se coloca como "assunto de espanhóis no mundo", parece que algumas concentrações começam a adotar outro símbolo.
[3] Embora começa a se repetir a partir das assembléias do domingo 22.
[4] Não somente nos países do "Terceiro Mundo" (que terminologia tão anacrônica!), mas igualmente nos países centrais. Técnicos de informática altamente capacitados, advogados, jornalistas etc., se veem relegados à condição de precarizados ou freelancer em situação instáveis. Pequenos empresários se transformam em autopatrões que trabalham mais horas que um relógio...
[5] Ver Teses sobre o movimento dos estudantes da primavera 2006. [https://pt.internationalism.org/icconline/2006_estudiantes_franca [1]]
[7] Ver "Francia, Gran Bretaña, Túnez - El porvenir es que la clase obrera desarrolle internacionalmente sus luchas y sea dueña de ellas [39]"
[8] Ver O que está acontecendo no Oriente Médio [https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/O_que_esta_acontecendo_no_Oriente_Medio [40]]
[9] Ver em madrid.indymedia.org/node/17370 (O comunicado dos detidos que reflete eloquentemente o tratamento recebido).
[10] O Estado é o órgão da classe dominante. Embora se apresente sob a forma democrática sua própria estrutura se fundamenta na delegação do poder, o que não apresenta nenhum problema para a minoria exploradora que ao possuir os meios de produção tem "a carta na manga" e pode submeter os políticos profissionais aos seus interesses. Entretanto, é muito diferente para a classe operária e a imensa maioria: sua "participação" se reduz a outorgar um cheque em branco a esses senhores que – ainda que atuem com a maior honradez e renunciem a todo interesse pessoal – se vêem totalmente enredados na teia de aranha burocrática do Estado. Por outro lado, de maneira mais específica, as reformas propostas, no caso de ser tomada realmente a sério, levariam um longo tempo de trâmites parlamentares – onde podem ser facilmente desnaturalizadas – e a sua aplicação tornaria mais que incerta.
[11] É significativo que a estratégia adotada pelo candidato do PP, Rajoy, consista em não dizer absolutamente nada, mantendo um discurso vazio recheado dos mais patéticos lugares comuns, mantendo um silêncio ensurdecedor, é a única forma que tem de impedir que os votantes de esquerda se mobilizem contra ele.
[12] Após a revolução de 1868 – chamada de A Gloriosa – e os convulsivos anos que se seguiram, em 1876 se instaurou um compromisso entre o partido conservador de Cánovas e o liberal de Sagasta, que perdurou até 1900.
[13] Os pequenos partidos, nos quais muitas intervenções nas assembléias depositam esperanças, embora tenham um programa de defesa do capitalismo tão contudente como o dos grandes e de se dotar de uma estrutura interna tão burocrática e ditatorial como aqueles, não possuem nenhum papel próprio, são como uma espécie de bolsa que se inflam conjunturalmente quando algum dos grandes baixa e se comprime quando os dois grandes necessitam ocupar todo o espaço no Governo e na Oposição.
[14] Na Espanha vigora o sistema eleitoral de lista fechada. Por lista fechada, compreende-se o sistema pelo qual os partidos, antes das eleições, definem a ordem dos candidatos na lista. Assim, o eleitor vota na lista proposta pelo partido. Daí as ilusões nas listas abertas.
[15] Ver a série O que são os Conselhos Operários? [https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_que_sao_os-Conselhos_Operários [41]]
[16] Ver A cultura do debate uma arma da luta da classe. [https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/A_cultura_do_debate_uma_arma_da_luta_da_classe [42]]
[17] Expresso no Decálogo democrático aprovado pela Assembléia de Madrid: listas abertas, reforma eleitoral...
[19] Diferente do que ocorreu na França e Inglaterra onde as mobilizações tinham como eixo visível a resposta aos ataques muito duros dos governos.
[20] Diante deles Rosa Luxemburgo com Greve de massas, partido e sindicatos , ou Trotsky com Balanço e Perspectivas souberam captar as características e a dinâmica da nova época da luta de classes.
A onda de rebelião no Norte da África e no Oriente Médio não parece debilitar-se. Estamos presenciando novos desdobramentos:
Entretanto, o que parece ser o desenvolvimento mais importante da última semana é a manifestação explícita de lutas massivas de trabalhadores no Egito.
Para ilustrar isso, apoiamo-nos sobre passagens de artigos de jornalistas ou universitários que evidenciam expressões da luta de classe neste país, muito mais avançadas que os elementos de informação acessíveis pelo leitor comum dão a perceber, considerando em particular a atividade de auto-organização dos operários. Carregado por seu entusiasmo legítimo, o autor de uma passagem tende a forçar a barra quando fala da "luta revolucionária nos centros de trabalho". Segundo nós, a maduração da situação não chegou a este nível, como ilustram os limites atuais do movimento tais como as expomos no fim deste artigo.
Como Hossam-El-Hamalawy [i] explica em um artigo publicado no The Guardian [ii] no dia 14 de fevereiro, o despertar da luta operária com suas próprias demandas influiu poderosamente na decisão do Exército em livrar de Mubarak:
"Todas as classes sociais do Egito participaram do levante. Na Praça de Tahrir podia se encontrar os filhos e as filhas da elite egípcia junto com os trabalhadores, os cidadãos de classe média e os pobres da cidade. Porém o regime começou a balançar definitivamente quando as greves massivas começaram na quarta-feira, 09, [iii] o que obrigou aos militares forçarem Mubarak a renunciar porque ele pôs o regime à beira do colapso... Desde o primeiro dia do levante em 25 de janeiro, a classe trabalhadora participou os protestos. Entretanto, os trabalhadores tomaram parte como "manifestantes", mas não necessariamente como "trabalhadores" - significa dizer que não haviam atuado de maneira independente. Não tinham sido os manifestantes que haviam paralisado a economia mas o próprio governo com os contínuos toques de recolher e a decretação de fechamento de bancos e centros de negócios. Se tratava de uma espécie de greve capitalista que pretendia aterrorizar o povo egípcio. Porém quando o governo quis fazer o país voltar à normalidade a partir de 8 de fevereiro, os trabalhadores não se mostraram de acordo, discutiram sobre a situação em curso e começaram a organizar-se massivamente como um bloco independente".
Um artigo de David McNally [iv] nos dá uma idéia da amplitude que está tendo o movimento:
Poderíamos acrescentar outros numerosos exemplos: cerca de 20 mil operários de Al-Mahalla Al-Kobra, a uns 100 kms ao norte do Cairo, que após 3 dias de calma, realizaram a greve na maior fábrica têxtil do país. 150 guias turísticos que fizeram um protesto contra seus miseráveis salários, na sombra da Grande Pirâmide. Os trabalhadores bancários que exigiram a saída dos seus chefes corruptos; os motoristas de ambulância que bloquearam as ruas para exigir melhorias salariais. Milhares de trabalhadores concentraram-se ao redor da sede da ETUF (Egyptian Trade Union Federation [Federação Sindical Egípcia], Sindicato oficial) qualificando-os de "corja de ladrões" e pedindo sua dissolução ao que os bandidos do sindicato responderam com pauladas e disparos. Houve até policiais que protestaram pelo que estavam sendo obrigados a fazerem contra os manifestantes, mostrando a queda de moral nos escalões mais baixos dessa força repressiva. Sem dúvida, muitos outros exemplos poderiam ser acrescentados.
Chama atenção a observação de McNally que diz que este movimento mostra muitas das características da greve de massas que Rosa Luxemburgo havia analisado:
Como destacam tanto McNally como Hossam El-Hamalawy, a força do movimento não se adquiriu da noite para a manhã. Nos últimos 7 anos, os trabalhadores colocaram-se na primeira linha, na resistência contra a pobreza e a repressão, imposta a toda a população. Houve uma série de movimentos grevistas em 2004, 2006-7 e 2007-8 com os trabalhadores da indústria têxtil de Mahalla desempenhando um destacado e significativo papel que foram unindo outros setores. Em 2007 publicamos um artigo onde víamos germes da greve de massas nessas lutas pelo alto grau que expressaram de auto-organização e solidariedade [v]. Como sublinha Rosa Luxemburgo, a greve de massas é algo que amadurece em um período de anos, assim as greves de 1905, das quais fala, tinham fermentado em sucessivas ondas durante as duas décadas anteriores e, por sua vez, 1905 constituiu uma ponte para a revolução de 1917.
Mas, apesar de tudo que se fala de "revolução" nesses países [vi], o mais certo é que o movimento que pode conduzir a uma futura greve de massas enfrenta muitos perigos:
O caminho para a revolução ainda é muito grande e o único sentido que esta pode ter é de uma Revolução Proletária Internacional. A consciência revolucionária necessária para guiar esta revolução até a vitória só pode desenvolver-se em escala internacional e precisa da contribuição dos trabalhadores dos países capitalistas mais avançados. Mas os proletários (e outras camadas oprimidas) do Oriente Médio e do Norte da África estão aprendendo lições vitais a partir da sua própria experiência: tomar a cargo sua luta, como tem mostrado as greves que se iniciaram a partir de baixo, também os comitês de vizinhos para auto-proteção contra desmandos da escória da sociedade e da polícia, lançados pelo regime; também a "democracia direta" cotidiana que se viveu na Praça Tahrir. Como disse McNally:
"Estas formas de auto-organização popular constituem novas práticas de democracia radical. Na Praça de Tahrir, o centro nervoso da Revolução, a multidão se compromete em decisões diretas tomadas às vezes por centenas de milhares. Organizados em pequenos grupos, as pessoas discutem e debatem, enviam delegados para realizar consultas sobre as reivindicações do movimento. Como explica um jornalista [ix] "os delegados dessas mini-reuniões vão juntos examinar o ânimo dominante antes que as reivindicações potenciais sejam lidas pelo sistema de megafone. A adoção de cada proposta é feita segundo os aplausos e gritos de ânimo recebidos da multidão"".
Lições sobre como se defender coletivamente das matanças da polícia e dos assassinos do regime; sobre como confraternizar com os soldados; sobre como superar as divisões sectárias - entre xiitas e sunitas, entre muçulmanos e cristãos, entre religiosos e seculares. Lições sobre o internacionalismo, posto que a revolta se estende de um país a outro, tomando em suas reivindicações e métodos dos demais. E como definitivamente, os proletários descobrem que em todas as partes fazem frente à mesma deterioração de suas vidas, que tem à frente o mesmo sistema repressivo e o mesmo sistema de exploração.
Quem sabe o mais importante é mesmo o fato de que a classe operária afirmara-se solidariamente no momento do suposto "triunfo democrático", após a saída de Mubarak, que parecia ser o verdadeiro fim da revolta. Isso mostra a capacidade para resistir aos chamados ao sacrifício e à renúncia pelo bem da "nação" e do "povo", aquilo tudo que é o objetivo central de todas as campanhas burguesas de patriotismo e democracia. Entrevistados pela imprensa, trabalhadores no Egito tem revelado, com freqüência e da forma mais simples, o que motivava suas greves e protestos: não podiam alimentar suas famílias porque seus salários eram extremamente baixos, os preços eram altos demais e não havia trabalho muito menos para todos. Os trabalhadores enfrentam em todos os países a luta contra uma deterioração sem precedentes das suas condições de vida e não uma "reforma democrática". A classe operária só tem a luta como defesa e a perspectiva de uma nova sociedade como solução.
Amos, 16.2.11
World Revolution órgão da CCI na Inglaterra.
[i] Ver blog: arabawy.org [43]
[ii] https://www.theguardian.com/commentisfree/2011/feb/14/egypt-protests-democracy-generals [44]
[iii] Ver https://gulfnews.com/news/region/egypt/labour-unions-boost-egyptian-protests-1.760011 [45]
[iv] https://www.davidmcnally.org/?p=354 [46]
[v] Ver "Egipto, el germen de la huelga de masas [47]", também "Luchas en Egipto: una expresión de la solidaridad y la combatividad obreras [48]" e igualmente: "Amenaza de hambrunas por la inflación: Crisis capitalista y respuesta obrera [49]".
[vi] O qual pode ser defendido honestamente embora de forma equivocada ou também fazer parte do discurso mistificador do esquerdismo que sempre banaliza o conceito de revolução
[vii] Na realidade sempre ocupou. No Egito desde 1952 os presidentes são militares.
[viii] Ver o documento https://www.europe-solidaire.org/spip.php?article20203 [50] que parece um exemplo sério do movimento operário no Egito para desenvolver sua auto-organização a través de Assembléias Gerais e comitês eleitos e revocáveis, embora ao mesmo tempo expressa uma inclinação das ideais democráticas e sindicalistas. Como exemplo transcrevemos as demandas dos trabalhadores siderúrgicos:
Uma grande manifestação se somará a da Praça de Tahrir em 11 de fevereiro para unir-se a revolução e expressar as reivindicações dos trabalhadores do Egito.
Viva a Revolução!
Viva o povo do Egito!
Viva a intifada da juventude egípcia! A revolução do povo tem de pertencer ao povo!
[ix] Jack Shenker, "Cairo's biggest protest yet demands Mubarak's immediate departure", Guardian, 05 de fevereiro de 2011. [https://www.guardian.co.uk/world/2011/feb/05/egypt-protest-demands-mubar... [51]
No dia 28 de março de 2011, alguns estudantes organizados da UESB tomaram a iniciativa de convocar uma Assembléia no campus de Vitória da Conquista para analisarem um decreto estadual que feriu quase que de morte as universidades estaduais baianas, a educação pública e os serviços básicos. Deliberou-se, então, que os estudantes parariam o campus para forçar uma discussão na universidade tanto do decreto quanto da questão mais geral do sucateamento da educação e dos serviços públicos imposta pela crise mundial do capitalismo e seguida fielmente por seus variados defensores, sobretudo na Bahia.
Após nove dias de intensa mobilização, incluindo aí as paralisações, os estudantes resolveram entrar em greve, após terem pressionado os professores a iniciarem a sua no dia anterior. A capacidade de auto-organização do movimento estudantil fora das burocratizadas instituições "representativas" mostra que este tipo de organização é muito mais avançado que as caducas atividades sindicais e mesas setoriais que negociam com o Estado burguês. O movimento estudantil está, assim, de parabéns, à medida que esteve para além dos seus "mestres" na condução deste processo.
O objetivo geral do movimento grevista é a imediata revogação do decreto estadual nº 12583/11, que acelera ainda mais o processo de sucateamento das universidades baianas e dos serviços públicos em geral. No entanto, precisamos compreender as origens deste processo.
A partir do final da década de 1960, o capitalismo entrou em um período de crise que se aprofunda a cada dia. Sua expressão mais recente foi a crise iniciada em finais de 2007, que atingiu em cheio todos os países do mundo. O corte orçamentário recente feito pelo governo federal mostra claramente a farsa por trás do discurso de Lula ao anunciar que a crise chegaria ao Brasil como uma "marolinha". Tal medida, que joga o peso da crise nas costas dos trabalhadores e dos explorados, não é exclusividade do Estado brasileiro. Esta tem sido a única saída encontrada por todos os governos do mundo. Exemplos não faltam... Na França, com a reforma previdenciária que aumenta o tempo de contribuição dos trabalhadores; Na Inglaterra, com o aumento de 300% no valor das matrículas das universidades; e Na Espanha, com o corte de 5% no salário de todos os servidores públicos; etc., etc., etc.
Neste sentido, a luta dos estudantes (a maioria como futuros trabalhadores assalariados) se insere diretamente na luta da classe trabalhadora contra o capital. Os estudantes da UESB devem pensar para além do imediato, pois o decreto estadual faz parte de um problema estrutural do capitalismo que envolve toda a sociedade. A greve e a revogação do decreto não podem ter um fim em si, devem ser encaradas como um marco para o início de um processo de mobilização mais amplo.
A solidariedade dos estudantes com a luta geral dos trabalhadores gera a solidariedade dos trabalhadores com a luta estudantil. Alguns passos já foram dados nesta direção: como a panfletagem fora dos muros da universidade, nas escolas do ensino médio e em praça pública. Mas é preciso compreender que a verdadeira solidariedade é a extensão da luta. Este é o único meio de fazer retroceder a burguesia e ameaçar sua estabilidade política e econômica. Apenas a extensão da luta pode impedir a burguesia de utilizar a repressão contra o movimento. A luta setorial, isolada, é típica das burocráticas instituições "representativas" e seus cães de guarda, que tentam a todo custo despolitizar, enfraquecer e sufocar os movimentos mais combativos. Uma greve isolada, ainda que prolongada, não demonstra a vitalidade do movimento.
A greve estudantil só terá futuro na medida em que se unifique de forma solidária com a luta da classe trabalhadora. Este é um momento importante do desenvolvimento da consciência de classe rumo à revolução internacional dos trabalhadores, a única saída para as mazelas do capitalismo.
ABAIXO A PRECARIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO!
VIVA A AUTONOMIA DA LUTA ESTUDANTIL!
VIVA A LUTA INTERNACIONAL DOS TRABALHADORES!
11/04/2011
Corrente Comunista Internacional-CCI - Labuta - Oposição Operária-OPOP
Há apenas uma semana, nas praças das principais cidades da Espanha, reuniam-se milhares de pessoas em assembleias onde tomava a palavra quem quisesse fazer uso dela e falava com total confiança da falta de futuro que nos depara e que podíamos fazer frente a ele. E se escutava com respeito. Discutia-se em todas as partes, em pequenos grupos, nos bares, nos acampamentos..., diferentes gerações (jovens e aposentados). Crescia um sentimento de emoção coletiva, de unidade, de criatividade, de reflexão e debate, em um esforço para assumir a responsabilidade juntos da gigantesca tarefa de colocar uma perspectiva diante da ausência de futuro que nos oferece o capitalismo.
Hoje, vai cada dia menos pessoas às reuniões, que já não se pode chamar assembleias, onde não se permite uma discussão. Várias comissões "filtram" o uso da palavra e praticamente não se permite falar de uma perspectiva de luta social. Utiliza-se para votar ou "buscar consenso" em palavras de ordem democráticas como se fossem a expressão do movimento, quando a maioria não as conhece nem discutiram e muita gente está abertamente contra. Com a desculpa do "apoliticismo" terminam por fazer "a mesma merda" política do "PSOE e PP" [1].
O que tem acontecido? Tem razão os que dizem que desde o princípio isto era um movimento cidadão de reforma democrática, uma encenação? Ou está acontecendo um ataque contra as assembleias, uma sabotagem para acabar com o encontro massivo, a discussão e a reflexão, porque assustam e põem em tensão o Estado?
Quando dois dias depois da brutal repressão das manifestações de 15 de maio (15M), montam-se acampamentos na Praça Puerta del Sol, que servem de exemplo para outras cidades e vão se reunindo pessoas e mais pessoas nas praças, organizando discussões e assembleias, a mobilização é completamente espontânea. Mentem cinicamente os que agora, como Democracia Real Já! [DRY: ¡Democracia Real Ya!], querem atribuir a si a iniciativa do movimento. Esses mesmos "senhores cidadãos" se preocuparam muito na oportunidade de deixar claro que o movimento dos acampados não eram eles. Ou como foi dito em um texto assinado por Alguns anarquistas madrilenos: "se encarregaram de expressá-lo de maneira mais asquerosa possível: se eximindo dos incidentes após a manifestação e apontando quem cometesse falta" [2].
A acentuação dos ataques às nossas condições de vida, o desemprego, os despejos, os cortes nas prestações sociais, o exemplo da Praça Tahrir e do norte da África, das lutas contra os cortes nas aposentadorias na França, dos estudantes na Inglaterra, da Grécia, as discussões nos locais de trabalho ou em minorias, os comentários no facebook e Twitter, e, claro, a encenação da comédia parlamentar e a corrupção... Tudo isso e mais, fez que, de maneira imprevisível, explodisse o descontentamento, a indignação, desencadeando uma torrente de vitalidade, de combatividade, rompendo a normalidade democrática da passividade e do voto.
Milhares, e às vezes dezenas de milhares, de pessoas se juntaram nas praças centrais das cidades mais importantes da Espanha convertidas em Ágoras. Vinham depois do trabalho, ficavam acampados, iam com a família, se buscavam... e falavam e falavam. A palavra foi "liberada! [3] nas assembleias. Até os mais anti-Estado se davam conta de que isto não era um movimento nos moldes estatais democráticos, como disse o mesmo texto anarquista citado anteriormente: "É como se, de repente, a passividade e o caminhar de cada um por si tivesse se quebrado próximo do Km 0 [Praça da Puerta del Sol]... Nos primeiros dias, bastava um pequeno grupo de pessoas falando de algum assunto, e as pessoas aproximavam o ouvido para escutar, para intervir. Tem sido normal ver pessoas em pequenos grupos discutindo. Os grupos de trabalho e as assembleias gerais são acontecimentos massivos entre 500, 600 e 2000 pessoas (sentadas, de pé, se comprimindo para ouvir algo), etc. E fora isso essa sensação permanente de um bom ambiente, de "isto é algo especial". Tudo isso alcançou seu ponto culminante na noite de sexta para sábado, quando começou o dia de reflexão. Escutar mais de 20.000 pessoas gritar "Somos ilegais"[4] e, como crianças, sentir o prazer de infringir a lei, a verdade, impressiona" [5].
É certo que o movimento não colocou uma confrontação aberta sobre reivindicações contra o Estado democrático. De fato, cada tentativa de chegar a reivindicações concretas, se desviava para a "reforma democrática", introduzindo as palavras de ordem de Democracia Real Já! E é normal, porque falta a confiança para se lançar na luta e a compreensão sobre a perspectiva, e, sobretudo, falta a classe operária recuperar sua identidade como sujeito revolucionário e possa se colocar a frente de um assalto revolucionário. Todavia, a discussão, a reflexão e a tentativa de tomar o destino da luta em suas mãos é justamente o caminho para a confiança, o esclarecimento e a recuperação da identidade da classe operária, como tem mostrado, particularmente em Barcelona, as tentativas de setores em greve de se unir às assembleias e a convocação de manifestações unitárias por reivindicações trabalhistas em Tarrasa [6]. A verdadeira confrontação com o Estado democrático tem ocorrido nas assembleias auto-organizadas e massivas, que tem se estendido por todo o país e além.
E isso é justamente o que o Estado não podia tolerar.
Após uma primeira tentativa de frear os acontecimentos no final de semana eleitoral de 22 de maio, proibindo legalmente as concentrações, que foi ignorada pela assistência massiva em todas as praças na hora em que se devia cumprir a lei, na madrugada de Sábado, 21 de maio, a estratégia foi a de combinar a espera do enfraquecimento natural do movimento devido ao cansaço e à dificuldade de colocar uma perspectiva de luta, com a sabotagem a partir de dentro do movimento.
Quando uma semana depois das eleições municipais, o movimento começava a se enfraquecer, o Estado desencadeou em Madrid e Barcelona, uma estratégia com grande repercussão midiática.
Em Madri, deram corda às lamentações dos donos de restaurantes e "pequenos empresários" da Praça Puerta del Sol, para culpar os acampados, como se eles tivessem aumentando a crise, e apoiar uma estratégia consistindo em desmantelar as concentrações massivas para substituí-las por "pontos de informação".
Em Barcelona, a intervenção calculada da Polícia Local [7], se bem que teve o efeito de aumentar momentaneamente a participação nas concentrações [8], conseguiu desviar completamente as discussões para a reivindicação democrática de solicitar a demissão do conselheiro do Interior, Felip Puig, introduzindo o discurso da oposição contra o novo governo de direita nacionalista.
Porém tudo isso não teria o mesmo impacto sem o trabalho de sabotagem a partir do interior do movimento por parte de Democracia Real Já!.
A sabotagem a partir do interior: A ditadura de Democracia Real Já!
Nos primeiros dias, diante da avalanche de assembleias, Democracia Real Já! (DRY) não teve outro remédio a não ser ficar por detrás da cena, mas isso não significa que não tratassem de tomar posições nas comissões chave dos acampados e de difundir suas posições cidadãs de reforma do sistema, como o famoso "decálogo" ou outros do mesmo estilo; isso, sem dar a cara abertamente e defendendo o apoliticismo, que impedia que as demais opções políticas pudessem difundir suas posições políticas, embora DRY as difundisse (sem assinar) com o maior descaramento.
Os companheiros anarquistas de Madrid já detectavam este ambiente no início do movimento: "Em muitas comissões e grupos está se vendo de tudo: perdas casuais de atas, personalismos, pessoas que se aferram ao papel de porta-voz, delegados que deixam de dizer coisas nas assembleias gerais, comissões que ignoram acordos, pequenos grupos que querem manter seus negócios, etc. Muitas, seguramente, fruto da inexperiência e dos egos, outras, parecem diretamente tiradas dos velhos manuais de manipulação de assembleias".
Mas foi preciso esperar os primeiros sintomas de refluxo do movimento, para ver uma autêntica ofensiva do "movimento cidadão", encabeçado por DRY, contra as assembleias.
Na Puerta del Sol, são eles os que têm apoiado as queixas dos comerciantes e têm impulsionado o desmantelamento do acampamento, para tornar um ponto de informação". São eles os que filtram as intervenções nas assembleias, onde, agora, somente se discute as propostas das comissões, que eles controlam. Apresentam abertamente suas posições como expressão do movimento, sem que se tenha discutido nas assembleias. Convocam reuniões de coordenação das assembleias de bairro sem que essas tenham elegido delegados que representam a assembleia; ou inclusive uma assembleia de coordenação nacional para 4 de junho da qual praticamente não se ouviu falar em assembleias gerais... E a mesma dinâmica se vê em todas grandes cidades.
Em Barcelona, a liberdade de palavra foi sequestrada e as assembleias simplesmente têm de se pronunciar no escuro sobre as propostas elaboradas para elas. A discussão foi substituída por Conferências de professores intelectuais. Aqui um dos sintomas mais sensíveis da ofensiva contra as assembleias é como tem ganhado peso o nacionalismo. Na primeira semana, após 15M, milhares de pessoas abarrotavam a Praça de Catalunha e discutiam em diferentes idiomas, traduzindo-se igualmente para vários idiomas os comunicados feitos e recebidos. Nenhuma só bandeira catalã. No entanto, recentemente, foi votado para se falar exclusivamente em catalão.
Em Valência, mais do mesmo, corrigido e aumentado. Deixemos a palavra a um texto intitulado Control asambleas en Valencia [9], que circula anonimamente: "Desde o dia 27 a dinâmica interna dos acampados e as assembleias diárias tem mudado radicalmente... e nelas quase já não se pode falar de política nem de problemas sociais... Em resumo, é o seguinte: uma comissão chamada de "Participação Cidadã" e outra chamada "Jurídica", no total umas 15-20 pessoas, têm feito com controle absoluto a moderação das assembleias, são "moderadores profissionais" que se impõem também nos grupos e nas comissões... Da praça tem se retirado todos os cartazes que tinham algum conteúdo político, econômico ou simplesmente social. Agora é uma espécie de feira alternativa (...) Não há liberdade de expressão nem na praça nem na assembleia. Instauraram, nas comissões que puderam, a ditadura do sistema de "consenso de mínimos" [10] com o qual nunca se pode chegar a acordos com conteúdo (...) Foi apresentado um documento, que pretendem que se aprove hoje, chamado "Cidadão Participativo" onde, recheado de muitas coisas bonitas, se estabelece que só as comissões tenha direito de apresentar propostas às assembleias (...) Nesse papel, se estabelece que as comissões desde já, obrigatoriamente, funcionaria por consenso de mínimos (...) estabelecimento total do controle para primeiro esvaziar de conteúdo o movimento." E como se fosse pouco, hoje mesmo uma manifestação de aposentados contra as "pensões" foi convertida em um protesto contra o artigo 87-3 da Constituição; embora os aposentados gritassem "por uma pensão mínima de 800 €" e "pela aposentadoria aos 60 anos", o movimento cidadão gritava "presos desde 1978 [11]" para reivindicar uma constituição mais representativa.
Apesar disso, é Sevilha que tem sido um dos lugares onde o DRY tem se mostrado mais escancarado e tem solicitado sem restrições um cheque em branco à assembleia, para fazer e desfazer seu capricho. Inclusive se atreveram a chamar os participantes das assembleias a se integrar massivamente sob suas siglas.
É mais do que evidente que a estratégia do DRY, a serviço do Estado democrático, consiste em colocar para frente um movimento cidadão de reforma democrática, para tratar de evitar que surja um movimento social de luta contra o Estado democrático, contra o capitalismo. Entretanto, os fatos mostram que, quando o mal estar social acumulado encontra um mínimo terreno para se expressar, os chorões da democracia mais-que-perfeita são descartados sem a menor consideração. Nem DRY nem o Estado democrático podem deter o desenvolvimento do descontentamento social e da combatividade; todavia, podem tentar colocar todos os tipos de travas.
O peso contra as assembleias é uma delas. Para uma "grande minoria" (se é permitido usar o termo paradoxo), estas assembleias são uma referência de como buscar a solidariedade e a confiança, de como discutir, para tomar para si as lutas contra os terríveis ataques às nossas condições de vida.
Continuar discutindo como nas assembleias, mesmo que sejam em reuniões menores, é o caminho para preparar as lutas. Organizar assembleias massivas e abertas cada vez que haja uma luta, é o exemplo que tem de ser seguido. A sabotagem do DRY e a imposição do movimento cidadão podem fazer que uma parte dessa "minoria crescente" se desengane e pense que "foi tudo um sonho". Não pode apagar a história como o Big Brother [12], porém podem confundir a memória.
Por isso a alternativa é defender as assembleias onde ainda haja uma vitalidade; combater e denunciar a sabotagem do DRY; e chamar para continuar em cada ocasião, em agrupamentos de minorias ou em assembleias nas lutas, a dinâmica de se encarregar do debate e da luta.
Lutar contra o capitalismo é possível! O futuro pertence à classe operária!
03.06.2011
[1] "PSOE e PP é a mesma merda" é um slogan contra o "bipartidarismo" e se converteu em emblema deste movimento. [Nota do Tradutor]
[3] "Liberar a palavra" tem sido uma das palavras de ordem das recentes assembleias no movimento contra o corte nas aposentadorias na França.
[4] No domingo, 22 de maio, houveu eleiçoes locais na Espanha. La lei estipula que o sábado anterior (21) é o dia da "reflexão", que está proibida qualquer reunião ... [NdT]
[6] Cidade industrial nos arredores de Barcelona. [NdT]
[7] A burguesia na Espanha não é tão torpe em relação à confrontação com a classe operária, e menos ainda na Catalunha, e custa acreditar que, poucos dias depois a repressão das manifestações do 15M, quando surgiram as mobilizações, voltassem a cometer de novo o mesmo erro. Além disso, as patéticas declarações na TVE do porta-voz da oposição do PSC, que tachou os acampados de "elementos" e disse que estava de acordo com a desocupação, embora de outra maneira, mostra que o plano tinha sido discutido entre governo e oposição.
[8] A repressão tem sido brutal (ainda há alguns gravemente feridos ) o que impulsionou a solidariedade em diferentes assembleias.
[10] Sob a desculpa de canalizar para um mínimo de reivindicações que fossem consenso entre todos formou-se o tal "consenso de mínimos", que, na verdade, coincidiam com as palavras de ordem Democracia Real Já! e não foram discutidas em assembleias.
[11] Ano da entrada em vigor última Constituição da Espanha, logo depois da morte do ditador Franco.
[12] Do livro 1984, de George Orwell.
Os acontecimentos atuais no Oriente Médio e no Norte da África têm uma importância histórica, cujas conseqüências ainda estão difíceis de delimitar. Entretanto é importante desenvolver a propósito deles um marco coerente de análise. Os pontos que seguem não são esse marco em si e ainda menos uma descrição detalhada dos acontecidos, mas simplesmente alguns pontos básicos de referência para estimular a reflexão sobre esta questão. [1]
1. Nunca antes desde 1848 ou 1917-19 temos visto uma onda simultânea de revoltas tão amplas. Embora o epicentro do movimento esteja localizado no Norte da África (Tunísia, Egito e Líbia, e também Argélia e Marrocos), também tem explodido protestos contra os diferentes regimes em Gaza, Jordânia, Iraque, Irã, Iêmen, Bahrein e Arábia Saudita, e outros Estados repressivos árabes, particularmente Síria, está em estado de alerta máximo. O mesmo pode se dizer do regime stalinista na China. Também existem ecos claros dos protestos no resto da África: Sudão, Tanzânia, Zimbábue, Suazilândia... Também podemos perceber o impacto direto das revoltas nas manifestações contra a corrupção do governo e os efeitos da crise econômica na Croácia, em cartazes e slogans das manifestações dos estudantes na Inglaterra e nas lutas dos operários de Wisconsin e sem dúvida também em outros países. Isto não é para dizer que todos esses movimentos no mundo árabe são idênticos, nem pelo seu conteúdo de classe, nem por suas reivindicações, nem pela resposta da classe dominante; porém evidentemente há certo número de características comuns que tornam possível que falemos de um fenômeno global.
2. Contexto histórico no qual se desenvolvem esses acontecimentos é o seguinte:
3. A natureza de classe desses movimentos não é uniforme e varia nos diferentes países e conforme a fase do movimento. Mas, globalmente, podemos caracterizá-los como movimentos das classes não exploradoras, revoltas sociais contra o Estado. Em geral, a classe operária não tem assumido a liderança dessas revoltas, mas, sem dúvida, teve uma presença significativa e uma influência que se vê tanto nos métodos de lutas como nas formas de organização postos em prática e, em alguns casos, no desenvolvimento de lutas operárias, , como as greves na Argélia e sobretudo na grande maré de lutas no Egito, que tem sido um fator chave na decisão de expulsar Mubarak. Na maioria desses países, o proletariado não é a única classe oprimida. O campesinato e outras camadas derivadas de modos de produção ainda mais antigos, embora estejam arruinados e amplamente fragmentados por décadas de decadência capitalista, ainda possui um peso nas áreas rurais, enquanto nas cidades, onde se centraram todo o tempo as revoltas, a classe operária convive com uma numerosa classe média que está em vias de proletarização, mas ainda tem suas peculiaridades, e com uma massa de habitantes de bairros degradados, uma parte dos quais são proletários e outros pequenos comerciantes e elementos lumpenizados. Inclusive no Egito, onde está a classe operária mais concentrada e experimentada, testemunhas oculares na Praça Tahrir insistiam que os protestos haviam mobilizado a "todas as classes", com exceção dos escalões mais altos do regime. Em outros países, o peso das camadas não proletárias tem sido muito maior que na maioria das lutas nos países centrais.
4. Ao tratar de compreender a natureza de classe dessas revoltas, temos que tentar evitar dois erros simétricos: por um lado, uma identificação geral de todas as massas que têm se mobilizado com o proletariado (uma posição mais que característica do Grupo Comunista Internacional) e, por outro lado, um rechaço de que as revoltas que não são explicitamente da classe operária possam conter algo positivo. A questão que se coloca nos remete a acontecimentos anteriores, como os do Irã no fim da década de 1970, onde também vimos uma revolta popular na qual, por um tempo, a classe operária foi capaz de assumir a liderança; embora no final esta não fora suficiente para impedir a recuperação do movimento pelos islamitas. A partir de um ponto de vista mais histórico, o problema da relação entre a classe operária e as revoltas sociais mais gerais é também o problema do Estado no período de transição, que surge do movimento de todas as classes não exploradas, porém diante da qual a classe operária necessita manter sua autonomia de classe.
5. Na revolução russa, os sovietes foram engendrados pela classe operária, porém também sua forma de organização forneceu um modelo para todos os oprimidos. Sem perder o sentido da proporção – porque ainda estamos longe de uma situação revolucionária na qual a classe operária seja capaz de fornecer liderança política clara a outras camadas – podemos ver que os métodos de luta da classe operária tiveram um impacto nas revoltas sociais no mundo árabe:
Não é nenhuma casualidade que essas tendências se desenvolveram mais fortemente no Egito, onde a classe operária tem uma grande tradição de luta e em um momento crucial do movimento emergiu como uma força destacada, desencadeando uma onda de lutas que como as de 2006-7, devem ser avaliada como "germe" da futura greve de massas que contêm certo número das suas características mais importantes: a extensão espontânea das greves e das reivindicações de um ou outro setor, o rechaço intransigente dos sindicatos estatais e certas tendências à auto-organização, a luta por reivindicações econômicas junto a reivindicações políticas. E nisso podemos ver, em linhas gerais, a capacidade da classe operária de se colocar à frente como tribuno de todos os oprimidos e explorados e colocar a perspectiva de uma nova sociedade.
6. Todas estas experiências são importantes passos firmes adiante para o desenvolvimento de uma consciência genuinamente revolucionária. Porém o caminho nessa direção ainda é longo e está obstruído por muitas e óbvias ilusões e debilidades ideológicas:
7. A situação atual no Norte da África e no Oriente Médio ainda está em desenvolvimento. No momento que escrevemos, existem expectativas de protestos em Riad, apesar de que o regime saudita já decretou que todas as manifestações vão conta a Sharia (conjunto de leis mulçumanas). No Egito e Tunísia, onde a revolução supostamente já triunfou, há contínuos enfrentamentos entre os manifestantes e o estado agora "democrático", que está administrando mais ou menos pelas mesmas forças que atuavam antes que os "ditadores" se fossem. A onda de greves no Egito, que ganhou rapidamente muitas das suas reivindicações, parece está se extinguindo; mas nem a luta operária nem o amplo movimento social tem sofrido um retrocesso nesses países, e há sinais de que se desenvolve uma ampla discussão e reflexão, ao menos sem dúvida no Egito. Entretanto os fatos na Líbia têm dado um giro muito diferente. O que parece ter começado como uma genuína revolta da população, com civis desarmados assaltando com coragem quartéis militares e queimando a sede dos chamados "Comitês do Povo", especialmente no leste do país, tem se transformado rapidamente em uma "guerra civil" em toda sua dimensão e muito sangrenta, entre frações da burguesia, com as potências imperialistas espreitando a carniça. Em termos marxistas, de fato é um exemplo da transformação de uma incipiente guerra civil – no seu verdadeiro significado de uma confrontação direta e violenta entre as classes – em uma guerra imperialista. O exemplo histórico da Espanha em 1936 – apesar das diferenças consideráveis no que se refere ao balanço global das relações de forças entre as classes e o fato de que a revolta inicial contra o golpe de Franco era inequivocamente de natureza proletária – mostra como a burguesia nacional e internacional pode intervir nesse tipo de situações para defender seus interesses fracionais, nacionais e imperialistas, e para debelar qualquer possibilidade de revolta social.
8. O pano de fundo desse giro dos acontecimentos na Líbia é o atraso extremo do capitalismo líbio, que tem sido governado durante 40 anos pelo bando de Kadafi predominantemente através do aparato de terror diretamente sob suas ordens. Esta estrutura tem atenuado o desenvolvimento do exército como uma força capaz de colocar o interesse nacional acima do interesse de uma fração particular ou um líder, como vimos na Tunísia e Egito. Ao mesmo tempo, o país está desintegrado por divisões regionais e tribais, que tem desempenhado um papel chave em determinar o apoio ou a oposição a Kadafi. Uma forma "nacional" de islamismo também parece ter desempenhado um papel na revolta desde o início, ainda que originalmente a revolta foi geral e social, mais que meramente tribal ou islâmica. A indústria principal na Líbia é o petróleo. No entanto, uma grande parte da força de trabalho empregada na indústria do petróleo são imigrantes europeus e o resto do Oriente Médio, Ásia e África; embora houvesse a princípio informe de greves neste setor, o êxodo massivo de operários "estrangeiros" é um sinal claro que pouco tinha em identificarem em uma "revolução" que desfraldava a bandeira nacional. De fato, houve relatos de assédio a operários negros pelas forças "rebeldes", porque se espalharam rumores de que alguns dos mercenários pagos pelo regime para reprimir os protestos foram recrutados nos estados africanos de população negra, levantando assim suspeitas sobre todos os negros imigrantes. A debilidade da classe operária na Líbia é, portanto, um elemento crucial no desenvolvimento negativo da situação local.
9. A apressada deserção do regime de Kadafi de numerosos altos integrantes, incluindo embaixadores estrangeiros, oficiais do exército e da polícia e civis, é uma clara evidencia de que a "revolta" tem se transformado em uma guerra entre burgueses. Os comandantes militares, em particular, passaram para o primeiro plano na "regularização" das forças armadas anti-Kadafi. Mas quem sabe o símbolo mais importante destra transformação é a decisão de uma parte da "comunidade internacional" de tomar partido pelos "rebeldes". O conselho Nacional de Transição, instalado em Benghazi, já foi reconhecido pela França como a voz da nova Líbia e desde bem cedo ocorreu uma intervenção militar em pequena escala com o envio de "assessores" para apoiar as forças anti-Kadafi. Tendo intervido diplomaticamente já antes, para acelerar a saída de Ben Ali e Mubarak, Estados Unidos, Inglaterra e outras potências, se encorajaram de início ao verem abalado o regime de Kadafi: William Hague [2] [54], por exemplo, anunciou prematuramente que Kadafi estava a caminho da Venezuela. À medida que as forças de Kadafi começaram a recuperar a iniciativa, cresceram os chamamentos à imposição de uma zona de exclusão área ou a utilizar outras formas de intervenção militar. No momento em que escrevemos isto, no entanto, parece que existem profundas divisões no seio da União Européia e da OTAN, com a França e Inglaterra mais fortemente favoráveis a uma ação militar e Estados Unidos e Alemanha mais reticentes. Certamente a administração Obama não se opõe por princípio à intervenção militar; porém não o entusiasma a possibilidade de se ver metido em outra atoleiro sem solução no mundo árabe. Também é possível que algumas partes da burguesia mundial estejam avaliando se o terror em massa de Kadafi não é uma "cura" para desanimar outras expressões de descontentamento na região. Uma coisa, entretanto é segura: os acontecimentos na Líbia e na realidade todo o desenvolvimento da situação na região, tem revelado a grotesca hipocrisia da burguesia mundial. Depois de vilipendiar durante anos a Líbia de Kadafi como um caldo de cultura do terrorismo internacional (como assim era certamente), a recente mudança de atitude de Kadafi e sua decisão de desfazer-se das armas de destruição em massa em 2006, enterneceram os dirigentes de países como Estados Unidos e Inglaterra, que lutavam para justificar sua postura a respeito das supostas armas de destruição em massa de Saddam Hussein. Tony Blair, particularmente, de maneira indecente se apressou em ir abraçar o "líder terrorista louco" de antes. Só alguns anos depois, Kadafi é de novo um chefe terrorista louco e todos os que o apoiaram tem de lidar não menos rapidamente para distanciar-se dele. E isto é só uma versão da mesma história: quase todos, os recentes e atuais "ditadores árabes" gozaram do respaldo dos Estados Unidos e outras potências, que até agora tem demonstrado muito pouco interesse nas "aspirações democráticas" do povo da Tunísia, Egito, Bahrein ou Arábia Saudita. A explosão de manifestações contra o governo do Iraque imposto pelos Estados Unidos (incluindo os atuais governantes do Curdistão iraquiano), provocadas pelo aumento dos preços e da escassez de produtos básicos, que tem sido violentamente reprimida em alguns casos, exemplifica também as promessas vazias do "Ocidente democrático".
10. Alguns anarquistas internacionalistas da Croácia (pelo menos antes de começarem tomar parte nos protestos de Zagreb e em outras localidades) interviram no site libcom.org [3] [55] para argumentar porque os acontecimentos no mundo Árabe lhes pareciam um "remake" dos da Europa do leste em 1989, quando todas as aspirações de mudança se desviaram para o terminal "democracia" e que não aportaram absolutamente nada à classe operária. Esta é uma preocupação muito legítima, tendo em conta a força evidente das mistificações democráticas neste novo movimento, mas que deixa de lado a diferença essencial entre os dois momentos históricos, sobretudo no que concerne à relação de forças entre as classes em escala mundial. No momento da queda do bloco do Leste, com as campanhas que foram desencadeadas sobre a morte do comunismo e o fim da luta de classes, assim como a incapacidade da classe operária do Leste de responder no seu próprio terreno de classe, impulsionou a classe operária em escala internacional a um profundo retrocesso. Ao mesmo tempo, embora os regimes stalinistas fossem na realidade vítima da crise econômica mundial, isso não era inteiramente óbvio naquele momento, e havia ainda margem de manobra para que as economias ocidentais alentassem a ilusão de que se abria um brilhante novo amanhecer para o capitalismo. A situação atual é muito diferente. A verdadeira natureza global da crise capitalista nunca foi mais evidente, tornando muito mais fácil para os proletários em todas as partes compreender que, na essência, se defronta aos mesmos problemas: desemprego, aumento dos preços, falta de perspectiva e futuro neste sistema. E nos últimos sete ou oito anos temos visto um lento, porém genuíno ressurgimento das lutas operárias em todo o mundo; lutas conduzidas por uma nova geração de proletários, menos escaldados pelos tropeços dos anos 1980 e 1990 e que está gerando uma crescente minoria de elementos politizados também em uma escala global. Tendo em conta essas profundas diferenças, há uma possibilidade real de que os acontecimentos no mundo árabe, longe de ter um impacto negativo na luta de classes nos países centrais, seja um estímulo para seu futuro desenvolvimento:
Esses e outros elementos serão inicialmente muito mais evidentes para a minoria politizada que para a maioria de trabalhadores nos países centrais, porém a longo prazo contribuirão para a unificação real da classe operária acima das fronteiras nacionais e continentais. Nada disso, porém diminui a responsabilidade da classe operária nos países avançados, que tem sofrido anos de experiência das "delicias" da democracia e do "sindicalismo independente", cujas tradições políticas e históricas estão muito profundamente arraigadas, mesmo que não estejam generalizadas ainda, e que está concentrada no coração do sistema imperialista mundial. A capacidade da classe operária no Norte da África e no Oriente Médio de romper com as ilusões democráticas e colocar uma perspectiva distinta para as massas deserdadas da população, ainda está fundamentalmente condicionada pela capacidade dos operários nos países centrais fornecerem um claro exemplo das lutas operárias auto-organizadas e politizadas.
CCI, 11 de março de 2011
[1] Este documento foi redigido no dia 11 de março, isto é, uma semana antes da intervenção da “coalizão” na Líbia. É por isso que, embora deixe pressentir esta intervenção, não faz mensão dela.
[2] Secretário de Assuntos exteriores do atual governo da Inglaterra.
[3] Libcom é um fórum em língua inglesa de orientação anarquista onde intervêm alguns dos nossos contatos e também nossos camaradas de World Revolution e de Dunya Devrimi.
Após os motins que eclodiram em todo o país esta semana, os porta-vozes da classe dominante – o governo, os políticos, os meios de comunicações, etc. – nos pedem para participar na defesa de uma campanha destinada a apoiar seu "programa": aumento da austeridade e incremento da repressão contra qualquer um que se opunha.
Aumento da austeridade porque não tem nenhuma solução para remediar a crise econômica do seu sistema agonizante. O único que podem fazer é eliminar postos de trabalho, baixar os salários, cortar os gastos em ajuda social, pensões, saúde, educação. Tudo isso não pode significar mais do que um considerável agravamento das mesmas condições sociais que precisamente empurraram a esses motins. Condições que conduzem particularmente à crença, numa parte importante de toda uma geração, de que não têm nenhum futuro pela frente. Por isso, toda discussão séria sobre as causas econômicas e sociais dos motins tem sido denunciada como vontade de encontrar "uma desculpa" para os manifestantes. Têm-nos dito que são criminosos e que poderiam ser tratados como tais. Ponto final. Isto é muito prático porque o Estado não possui nenhuma intenção de dar dinheiro aos centros urbanos, como fez depois dos motins nos anos 1980.
Repressão acentuada porque é a única coisa que a classe dominante pode nos oferecer. Esta classe tira a máxima vantagem da preocupação das populações pelas destruições causadas pelos motins para aumentar os gastos da polícia, para equipá-la com balas de borracha, canhões de água e também para plantar a ideia de impor um toque de recolher e o exército na rua. Estas armas, junto com a maior vigilância das redes sociais na internet e a "justiça" sumária que tem se abatido sobre aqueles que são detidos depois dos motins, não só serão utilizados contra o saque e a destruição. Nossos governantes sabem muito bem que a crise não pode mais que desembocar em uma torrente de levantes sociais e lutas operárias que estão se estendendo desde a África do Norte à Espanha e da Grécia até Israel. São perfeitamente conscientes que enfrentarão movimentos de massas no futuro e que suas pretensões democráticas servem para justificar a utilização da violência contra estes movimentos, da mesma maneira que têm feito os regimes abertamente ditatoriais, como no Egito, Bahrein ou na Síria. Já foi demonstrado na luta dos estudantes na Inglaterra no ano passado.
A campanha acerca dos motins se baseia na proclamação de nossos governantes que defendem, assim, a moral da sociedade. Vale a pena considerar o conteúdo dessas declarações.
Os porta-vozes do Estado condenam a violência dos motins. Mas é este mesmo Estado que hoje exerce a violência, e em uma escalada muito maior, contra as populações no Afeganistão e na Líbia. Uma violência que todo dia é apresentada como heroica e altruísta, enquanto só serve aos interesses dos nossos governantes.
O governo e os meios de comunicação condenam os fora da lei e o delito. Porém é a brutalidade de suas próprias forças de repressão em nome da manutenção da lei e da ordem, que a polícia, em primeiro lugar, colocou fogo na pólvora com o assassinato de Mark Duggan e seu comportamento grosseiro com sua família e seus amigos que se manifestavam em frente à delegacia de polícia de Tottenham para averiguar o que havia acontecido realmente. E isto é parte de uma longa série de mortes de pessoas nas delegacias situadas em zonas semelhantes a Tottenham ou pessoas que sofrem cotidianamente o assédio policial nas ruas.
O Governo e os meios de comunicação condenam a ganância e o egoísmo dos saqueadores. Mas são eles os guardiões e os propagandistas de uma sociedade que funciona sobre a base da ganância organizada, da acumulação de riqueza nas mãos de uma pequena minoria. São eles os que nos incitam constantemente a consumir mais para realizar seus lucros, a identificar nosso valor social segundo a quantidade de mercadorias que podemos comprar. Já que este sistema só se baseia na desigualdade, que é cada vez pior, não é surpreendente que os que estão na parte inferior da escala social, que não podem possuir "coisas bonitas" – coisas cuja necessidade tem sido criada pelos próprios capitalistas – pensem que a resposta ao seu problema é tomar tudo o que podem, enquanto puderem.
Os governantes condenam esses pequenos saques enquanto eles mesmos estão envolvidos em uma vasta operação de saque em escala planetária: as empresas petrolíferas ou florestais que estão destruindo a natureza para seu lucro particular, os especuladores que engordam aumentando o preço dos alimentos, os traficantes de armas que vivem da morte e destruição, as respeitáveis instituições financeiras que lavam bilhões de euros do tráfico de drogas. Uma contrapartida essencial desse saque é que uma parte crescente da classe explorada está afundada na pobreza, no desespero e na delinquência. A diferença é que os pequenos delinquentes geralmente são castigados, enquanto os grandes criminosos não são.
Em resumo: Cadê a moralidade da classe dominante? Não existe!
A pergunta real a que está confrontada a imensa maioria que não se beneficia com esta enorme empresa criminosa, chamada capitalismo, é a seguinte: Como podemos nos defender efetivamente, no momento que este sistema, já visivelmente em colapso pelas dívidas, vê-se obrigado a nos tirar tudo?
Será que os motins que vimos no início de agosto de 2011 na Inglaterra não dão um método para combater, para tomar o controle dessas lutas, para unir nossas forças, para criar um futuro diferente para nós mesmos?
Muitos dos que participaram dos motins expressam claramente a sua ira contra a polícia e contra os proprietários da riqueza que são considerados como a causa essencial da sua miséria. Porém, quase de imediato, os amotinados expressaram os aspectos mais negativos, os comportamentos mais problemáticos, alimentados por décadas de desintegração social nos bairros urbanos mais pobres, pela moral própria das gangues, que vão buscar na filosofia dominante do "cada um por si" e "do ser rico ou morrer tentando"! Foi assim que uma manifestação, inicialmente, contra a repressão policial se degenerou em um caos francamente antissocial e em ações antiproletárias: intimidação e agressão contra indivíduos, roubo de casas comerciais nos arredores, ataques contra os condutores de ambulâncias e bombeiros, incêndios indiscriminados de edifícios, frequentemente com seus moradores ainda dentro.
Tais ações não oferecem absolutamente nenhuma perspectiva que permita se colocar contra este sistema de saques em que vivemos. Pelo contrário, só servem para ampliar as divisões entre os que sofrem neste sistema. Diante dos ataques contra os comércios e edifícios, os residentes se armaram por conta própria com tacos de beisebol e formaram "unidades de autodefesa". Outros se ofereceram como voluntários para operações de limpeza depois dos motins. Muitos se queixaram da falta de presença da polícia e pediram medidas mais enérgicas.
Quem se beneficiará dessas divisões? A classe dominante e seu Estado. Como mencionado, os que estão no poder já se muniram de uma petição popular para reforçar o aparato repressivo e policial militar, para tipificar como delito toda forma de protesto, manifestações e desacordos políticos. Os motins já estão sendo imputados a "anarquistas" e, há uma semana ou duas, a polícia de Londres (MET) cometeu o erro de publicar pesquisas sobre pessoas que militam por uma sociedade sem estado.
Os motins são um reflexo do impasse alcançado pelo sistema capitalista. Não são uma forma de luta da classe trabalhadora, são bem mais uma expressão de raiva e desespero em uma situação onde está ausente a classe operária como classe. Os saques não são um passo para uma forma de luta superior, mas um obstáculo neste caminho. Daí a frustração de uma mulher do distrito londrinense de Hackney, que foi vista por milhares de pessoas no Youtube [1], denunciando o saque, porque este impedia que as pessoas se reunissem e refletissem juntos como levar a cabo a luta: "É foda... não estamos reunidos para lutar pela defesa de uma causa. Mas vamos roubar uma sapataria?"
Se reunir e lutar por uma causa: estes são os métodos da classe trabalhadora; é a moral da luta de classes proletária, mas esses métodos correm o risco de serem engolidos pela atomização e o niilismo, a ponto de conduzir setores inteiros da classe trabalhadora a esquecerem quem são.
No entanto, existe uma alternativa. Pode-se perceber nos movimentos massivos que se desenvolveram na Tunísia, Egito, Espanha, Grécia ou em Israel com o ressurgimento de uma identidade de classe, com o ressurgimento da luta de classes. Estes movimentos, com todas suas debilidades, nos dão uma visão geral sobre uma forma distinta de levar a cabo a luta proletária: através de assembleias na rua onde todo mundo pode pedir a palavra; através de um intenso debate político onde é possível se discutir cada decisão; através de uma defesa organizada contra os ataques da polícia e dos bandidos; através de manifestações e greves de trabalhadores; através da ascensão da questão da revolução, da interrogação sobre uma forma de sociedade completamente diferente, não baseada na visão de que o homem é o "lobo do homem", mas na solidariedade entre os seres humanos, baseada na produção para satisfazer nossas necessidades reais.
A curto prazo, devido às divisões criadas pelos motins e porque, ao disseminar a mensagem segundo a qual qualquer luta contra o sistema atual está condenada a terminar em destruições gratuitas, o Estado conseguiu uma vantagem, é provável que o desenvolvimento de um real movimento de classe no Reino Unido ainda se defronte com maiores dificuldades que antes. Mas, em escala mundial, a perspectiva é a mesma: o aprofundamento na crise desta sociedade verdadeiramente doente, a resistência cada vez mais consciente e organizada dos explorados. A classe dominante na Inglaterra não poderá evitar nenhuma dessas duas realidades.
CCI (14/08/2011)
Publicamos a seguir a tradução de um panfleto distribuído no movimento na Espanha que expressa um ponto de vista entre os mais radicais existentes nas assembleias massivas que aconteceram em muitas cidades, não somente nas maiores, cuja tradução em português apareceu em diversos grupos de discussão, blogs e listas na internet.
"Que se vão embora todos!" Somos muitos os que nestes dias confluímos nas ruas para protestar. Todos nos identificamos com a rejeição dos partidos políticos, com a rejeição dos sindicatos, dos empresários… Sobretudo demo-nos conta de que chegámos ao limite. Que estamos fartos de ser os párias deste mundo. Que não suportamos mais que uns poucos encham os bolsos e vivam como reis, enquanto aos outros apertem os cintos para além de todo o limite com o fim de manter a saúde da sacrossanta economia. Que sabemos que para mudar isto temos que lutar nós mesmos, à margem de partidos, sindicatos e demais representantes que querem fazê-lo por nós. Acima de tudo, esta realidade está a exprimir uma questão fundamental que afeta o mundo inteiro: a contraposição de necessidades e interesses entre a economia e a humanidade. Isto foi entendido perfeitamente pelos nossos irmãos rebeldes no Norte da África, isto entendemo-lo hoje aqui agora que a situação já é insustentável para todos nós e saímos à rua para lutar. Aguentámos o insuportável, sofremos uma degradação das condições de vida como não acontecia há décadas. Mas finalmente dissemos basta, e aqui estamos exprimindo a nossa rejeição de todo este sistema infernal que transforma a nossa vida em mercadoria. Queremos, claro, exprimir a nossa rejeição completa da etiqueta de cidadão. Sob essa etiqueta junta-se tudo o que mexe, desde o político ao desempregado, desde o dirigente sindical ao estudante, desde o empresário mais rico até ao operário mais miserável; misturam-se condições de vida totalmente antagónicas. Para nós não se trata de uma luta de cidadãos. É uma luta de classe entre explorados e exploradores, entre proletários e burgueses como dizem alguns. Desempregados, trabalhadores, estudantes, aposentados, imigrantes… formamos uma classe social sobre a qual incidem, em maior ou menor medida, todos os sacrifícios. Políticos, banqueiros, patrões… formam a outra classe da sociedade, a que se beneficia, também em maior ou menor medida, das nossas penúrias. Quem não queira ver a realidade desta sociedade de classes vive no mundo das maravilhas. Chegados aqui, protestando em numerosas praças por todo o país, é hora de refletir, é hora de concretizar as nossas posições, de orientar bem a nossa prática. A heterogeneidade é grande, sem dúvida. Convergimos neste movimento companheiros que há muitos anos andamos na luta contra este sistema, outros que saímos pela primeira vez às ruas, uns que estão certos de querer ir até ao fim, ao tudo por tudo ("queremos tudo e agora" rezava um cartaz na Puerta del Sol), outros falam de reformar diversos aspectos da realidade, outros encontram-se desorientados, outros só querem manifestar que estão fartos do que lhes acontece… E também há quem, isto é preciso tê-lo bem presente, trata de pescar em águas turvas, quem procura canalizar este descontentamento para neutralizar a sua força aproveitando as nossas indecisões e debilidades. Desde logo, algo que discutimos entre os diversos companheiros nas ruas é que a nossa força está na rejeição, no movimento de negação do que nos impede viver. É o que forjou a nossa unidade nas ruas. Pensamos que há que avançar por aí, aprofundar e concretizar melhor a nossa rejeição. Por isso, porque a nossa força reside nessa negação, temos consciência de que não solucionaremos os nossos problemas exigindo melhorar a democracia, tal como se afirmou em certas palavras de ordem, nem sequer reivindicando a melhor democracia que possamos imaginar. A nossa força está na rejeição que estamos a manifestar à democracia real, a democracia "de carne e osso" que sofremos no dia-a-dia e que não é outra coisa que a ditadura do dinheiro.
Não há outra democracia. É uma armadilha reivindicar essa democracia ideal e maravilhosa de que nos falaram desde pequeninos. Da mesma maneira não se trata de melhorar este aspecto ou outro, pois o fundamental continuará a existir: a ditadura da economia. Trata-se de transformar totalmente o mundo, de mudá-lo de cima a baixo. O capitalismo não se reforma, destrói-se. Não há caminhos intermédios. Há que ir até ao fundo do problema, há que abolir o capitalismo. Ocupámos a rua uns dias antes da festa parlamentar, essa festa onde se elege quem executará as diretrizes do mercado. Bem, é um primeiro passo. Mas não podemos ficar por aí. Trata-se de dar continuidade ao movimento, de criar e consolidar estruturas e organizações para a luta, para a discussão entre companheiros, para enfrentar a repressão que já caiu sobre nós em Madrid e em Granada. É preciso tomar consciência de que sem transformação social, sem revolução social, tudo continuará igual. Apelamos a continuar mostrando toda a nossa rejeição ao espetáculo do circo eleitoral de todas as maneiras possíveis. Apelamos a gritar em toda a parte a palavra de ordem "Que se vão embora todos!". Mas apelamos também a que a luta continue depois das eleições do Domingo 22. A que vamos muito para lá destes dias. Não podemos deixar morrer os laços que estamos a construir. Apelamos à formação de estruturas para lutar, apelamos a que entremos em contato, a que coordenemos o combate, a lutar nas assembleias que se estão a criar fazendo delas órgãos para a luta, para a conspiração, para a discussão da luta, não para reuniões cidadãs. Apelamos a organizar-nos em todo o país para lutar contra a tirania da mercadoria. À RUA, A LUTAR! A DEMOCRACIA É A DITADURA DO CAPITALO CAPITALISMO. NÃO SE REFORMA, DESTRÓI-SE!
BLOCO "QUE SE VÃO EMBORA TODOS!" (BLOQUE "¡QUE SE VAYAN TODOS!")
email: [email protected] [57]"O comunismo está morto! O capitalismo venceu porque é o único sistema que pode funcionar; É inútil e perigoso sonhar com outro tipo de sociedade!".
Essas mensagens fazem parte da gigantesca campanha que a burguesia dissemina desde a queda do bloco do Leste e dos regimes supostamente "comunistas" no início dos anos 1990. Ao mesmo tempo, em conclusão, a propaganda burguesa tenta, mais uma vez, desmoralizar a classe operária tentando persuadi-la de que daí para frente ela já não será uma força na sociedade, de que já não tem nada a dizer, que definitivamente já não existe. O ressurgimento dos combates de classe, desde 2003, desmente na prática tais mentiras. Porém, ainda assim, a burguesia não cessará, inclusive durante o curso de grandes lutas operárias, de repisar a idéia de que essas lutas de modo algum poderão atribuir-se como meta a derrubada do capitalismo e a instauração de uma sociedade que nos liberte das mazelas que esse sistema impõe à humanidade. Assim, contra todas as mentiras da burguesia, e também contra o ceticismo de alguns que pretendem ser combatentes da revolução, a afirmação do caráter revolucionário do proletariado continua sendo uma responsabilidade dos comunistas. É o objetivo desses dois artigos.
Dentre as campanhas de ataque que temos sofrido nesses últimos anos, um dos temas maiores tem sido a "refutação" do marxismo. Segundo os ideólogos a soldo da burguesia, o marxismo está falido. Sua colocação em prática e seu fracasso nos países do Leste Europeu constituíram o exemplo maior dessa falência. Na nossa imprensa, temos manifestado até que ponto o stalinismo não teve nada a ver com o comunismo tal como Marx e o conjunto do movimento operário sempre reivindicaram[1]. Quanto à capacidade revolucionária da classe operária, a tarefa dos comunistas é reafirmar a posição marxista sobre essa questão e, em primeiro lugar, recordar o que o marxismo entende por classe revolucionária.
"A história de todas as sociedades até nossos dias é a história das lutas de classes" [2]. Esse é o início de um dos textos mais importantes do movimento operário: O Manifesto Comunista. Esta tese não é própria do marxismo [3], porém uma das contribuições fundamentais da teoria comunista é o de ter estabelecido que o enfrentamento da classe na sociedade capitalista tem como perspectiva última a derrubada da burguesia pelo proletariado e a instauração do poder por este último sobre o conjunto da sociedade, tese que sempre tem sido rechaçada evidentemente pelos defensores do sistema capitalista. No entanto, se alguns burgueses do período ascendente desse sistema conseguiram descobrir (de forma incompleta e mistificada, evidentemente) certo número de leis da sociedade [4], este fenômeno não vai se reproduzir hoje em dia: a burguesia na decadência capitalista é totalmente incapaz de produzir tais pensadores. Para os ideólogos da classe dominante, a prioridade fundamental de todos os seus esforços de "pensamento" é demonstrar que a teoria marxista é incorreta (inclusive quando alguns entre esses ideólogos reivindicam algum aporte específico de Marx). A pedra angular das suas "teorias" é a afirmação de que a luta de classes não cumpre nenhum papel na história. Isso quando não trata de negar, pura e simplesmente, a existência de tal luta ou, pior ainda, quando negam a existência de classes sociais.
Mas a defesa de tais ideias não se limita somente aos defensores cegos da sociedade burguesa. Alguns "pensadores radicais", que cerram fileiras da contestação da ordem estabelecida, se juntaram aos primeiros desde algumas décadas. O guru do grupo Socialismo ou Barbárie (o inspirador do grupo Solidarity na Inglaterra), Cornelius Castoriadis, ao mesmo tempo que previa a mudança do capitalismo para um "terceiro sistema", a "sociedade burocrática", anunciou há cerca de 40 anos que o antagonismo entre burguesia e proletariado, entre exploradores e explorados, estava destinado a ceder lugar ao antagonismo entre "dirigentes e dirigidos" [5]. Mais recentemente outros "pensadores" que tiveram seu apogeu, como o professor Marcuse, afirmaram que a classe operária tinha sido "integrada" na sociedade capitalista e que as únicas forças de contestação à mesma se encontravam entre as categorias sociais marginalizadas tais como os negros nos Estados Unidos, os estudantes ou os camponeses dos países subdesenvolvidos. Portanto, as teorias sobre "o fim da classe operária", que voltam a florescer hoje em dia, são, na realidade, muito velhas: uma das características do "pensamento" da burguesia decadente, que expressa muito bem a senilidade dessa classe social, é a incapacidade de produzir a menor novidade. A única coisa que é capaz de fazer é revirar o lixo da história para tirar velhos itens que nos vende como "a descoberta do século".
Um dos meios favoritos utilizados hoje pela burguesia para escamotear os antagonismos de classe, e inclusive a realidade das classes sociais, são os "estudos" sociológicos. Graças a jogadas estatísticas, têm "demonstrado" que as verdadeiras divisões sociais não têm nada a ver com as diferenças de classe, mas com critérios como o nível de instrução, o local onde se vive, a idade, a origem étnica ou a prática religiosa [6]. Para apoiar esse tipo de afirmação, empenham-se em exibir o fato, por exemplo, de que o voto de um cidadão a favor da direita ou da esquerda depende menos da sua situação econômica que de outros critérios. Nos Estados Unidos, a Nova Inglaterra, os negros e os judeus votam tradicionalmente nos democratas, na França, os católicos praticantes, os alsacianos e os habitantes de Lyon votam tradicionalmente na direita. Esquecem-se, e não é por casualidade, de destacar que a maioria dos operários americanos jamais votam e que, nas greves, os operários franceses que vão à igreja não são necessariamente os menos combativos. De maneira geral, a "ciência" sociológica "esquece" sempre de dar uma dimensão histórica a suas afirmações. Assim empenham-se em esquecer que os mesmos operários russos que se lançaram na primeira revolução proletária do século XX, a de 1905, começaram, em 9 de Janeiro (o "Domingo Sangrento"), com uma manifestação conduzida por um sacerdote pedindo benevolência ao czar para que os livrasse da miséria [7].
Quando os especialistas em sociologia fazem referência à história, é somente para afirmar que as coisas mudaram radicalmente no último século. E, segundo eles, nessa época, o marxismo e a teoria da luta de classes podiam ter certo sentido, quando as condições de vida e trabalho dos assalariados da indústria eram efetivamente penosas. Porém, depois, os operários se "aburguesaram" e ascenderam à "sociedade de consumo" até o ponto de perder sua identidade. Da mesma forma, os burgueses de alto nível de vida e barrigudos deram lugar aos "administradores" assalariados. Todas essas considerações querem ocultar que, fundamentalmente, as estruturas profundas da sociedade não mudaram. Na realidade, as condições que no século passado deram à classe operária sua natureza revolucionária, estiveram e estão sempre presentes. O fato de que hoje em dia o nível de vida dos operários seja superior ao dos seus irmãos de classe de gerações passadas não modifica de modo algum seu lugar nas relações de produção que dominam a sociedade capitalista. As classes sociais continuam existindo e a luta entre elas continua sendo o motor fundamental do desenvolvimento histórico.
Certamente é uma ironia da história que os ideólogos oficiais da burguesia pretendam, de um lado, que as classes não desempenhem nenhum papel específico (ou seja, que elas não existam) e reconheçam, por outro lado, que a situação econômica é um problema essencial, crucial, com que se depara esta mesma burguesia.
Na realidade a importância fundamental das classes sociais se origina justamente do lugar preponderante que ocupa a atividade econômica dos homens. Uma das afirmações de base do materialismo histórico é que, em última instância, a economia determina as outras esferas da sociedade: as relações jurídicas, as formas de governo, os modos de pensar. Esta visão materialista da história manda para o espaço as filosofias que vêem os acontecimentos históricos ou como o mero fruto do azar, ou a expressão da vontade divina, ou ainda o simples resultado das paixões ou dos pensamentos dos homens. Todavia, como dizia Marx em sua época, "a crise se encarrega de fazer entrar a dialética na cabeça dos burgueses". O fato, hoje evidente, dessa preponderância da economia na vida da sociedade determina basicamente a importância das classes sociais, justamente porque estas estão determinadas, contrariamente a outras classificações sociológicas, pelo lugar ocupado nas relações econômicas. Isto sempre foi uma realidade desde a existência das sociedades de classe, mas no capitalismo se expressa com maior clareza.
Na sociedade feudal, por exemplo, a diferenciação social estava consignada nas leis. Existia uma diferença jurídica fundamental entre os exploradores e os explorados: os nobres tinham, por lei, uma condição oficial de privilegiados (isenção de impostos, recebimento de um tributo pago pelos servos, por exemplo) enquanto os camponeses, que estavam ligados a sua terra, estavam obrigados a ceder uma parte dos seus rendimentos ao senhor (ou trabalhar gratuitamente nas terras deste). Em tal sociedade, a exploração, que era facilmente medida (por exemplo, sob a forma de tributo pago pelo servo) parecia originar-se das normas jurídicas. No entanto, na sociedade capitalista, a abolição dos privilégios, a introdução do sufrágio universal, da Igualdade e da Liberdade proclamadas pelas suas constituições, não permite que a exploração e a divisão em classes se escondam atrás das diferenças de normas jurídicas. É a posse, ou a não posse, dos meios de produção [8], assim como o modo como estes são empregados o que determina, na essência, o lugar na sociedade dos seus membros e seu acesso às riquezas. Quer dizer, a filiação a uma classe social e a existência de interesses comuns com outros membros da mesma classe. De forma geral, o fato de possuir meios de produção e colocá-los a trabalhar individualmente determina a filiação à pequena burguesia (artesãos, explorações agrícolas, profissionais liberais, etc.) [9]. O fato de estar privado de meios de produção e de estar obrigado, para viver, a vender sua força de trabalho aos que os detenham e os utilizam em seu proveito para apropriar-se de uma mais-valia, determina o pertencimento à classe operária. Por fim, fazem parte da burguesia, os que detêm (no sentido jurídico ou no sentido global do seu controle, de maneira coletiva ou individual) meios de produção que, para colocá-los em movimento, utilizam o trabalho assalariado e que vivem da exploração deste último, sob a forma de mais-valia que este produz. Na essência, essa divisão em classes é hoje em dia tão presente como era no século passado. Do mesmo modo que subsistiram os interesses de cada classe e os conflitos entre esses interesses. Por esta razão, os antagonismos entre os principais componentes da sociedade, determinados pelo que constitui o quadro da mesma, a economia, continua se encontrando no centro da vida social.
Dito isso, é preciso assinalar que, apesar de os antagonismos entre exploradores e explorados constituírem um dos motores principais da história das sociedades, isso não se expressa de forma idêntica em todas elas. Na sociedade feudal, as lutas, frequentemente ferozes e de grande alcance, entre os servos e os senhores feudais não levaram nunca a uma mudança radical da mesma. O antagonismo de classe, que conduziu à derrubada do antigo regime e aboliu os privilégios da nobreza, não foi aquele que opôs esta e a classe explorada, a população serva, mas o enfrentamento entre essa nobreza e outra classe exploradora: a burguesia (Revolução Inglesa da metade do século XVII, Revolução Francesa no final do século XVIII). Do mesmo modo a sociedade escravista da antiguidade romana não foi abolida pelas classes de escravos (apesar de terem empreendido alguns combates formidáveis, como a revolta de Spartacus e dos seus no ano 73 A.C.), mas pela nobreza que chegou a dominar o ocidente cristão durante mais de um milênio.
Na realidade, nas sociedades do passado, as classes revolucionárias nunca foram classes exploradas, mas novas classes exploradoras. Evidentemente, este fato não se deve de modo algum ao azar. O marxismo distingue as classes revolucionárias (que se chamam também classes "históricas") de outras classes da sociedade pelo fato de que, contrariamente a essas últimas, elas têm a capacidade de tomar a direção da sociedade. E enquanto o desenvolvimento das forças produtivas era insuficiente para assegurar uma abundância de bens ao conjunto da sociedade, impondo a essa a manutenção de desigualdades econômicas e, portanto, de relações de exploração, só uma classe exploradora estava em condições de se impor à frente do corpo social. Seu papel histórico era o de favorecer a eclosão e o desenvolvimento das relações de produção das quais era portadora e que tinham como vocação, suplantando as antigas relações de produção que se tornaram caducas, de resolver as contradições, até então insuperáveis, engendradas pela manutenção dessas últimas.
Assim, a sociedade escravista romana em decadência estava minada pelo fato de que a "provisão" de escravos, baseado na conquista de novos territórios, chocava-se com a dificuldade que Roma tinha para controlar fronteiras cada vez mais distantes e pela incapacidade de obter por parte dos escravos a capacidade exigida pela colocação em prática de novas tecnologias agrícolas. Em tal situação, as relações feudais, nas quais os explorados não tinham uma condição idêntica à do gado (como era o caso dos escravos) [10] e estavam estreitamente interessados em uma grande produtividade do solo que trabalhavam, porque dele viviam, impuseram-se como as mais aptas para fazer a sociedade sair do marasmo em que vivia. É por isso que essas relações se desenvolveram, fundamentalmente por uma libertação crescente dos escravos (o que foi acelerado, em alguns lugares, pela chegada dos "bárbaros" dentre os quais alguns já viviam há algum tempo sob a forma de sociedade feudal).
Do mesmo modo, o marxismo (começando pelo Manifesto Comunista) insiste sobre o papel eminentemente revolucionário desempenhado pela burguesia ao longo da história. Esta classe, que aparece e se desenvolve no seio da sociedade feudal, viu crescer seu poder com relação à nobreza e à monarquia, cada vez mais dependentes dela tanto no que diz respeito a seus abastecimentos em bens de toda natureza (tecidos, móveis, especiarias, armas), como no que se refere ao financiamento dos seus gastos. Ao se esgotar a possibilidade arroteamento e de extensão das terras cultivadas foi se secando uma das fontes da dinâmica das relações de produção feudais, juntamente com a perda da sua razão de ser, no papel de protetor das populações pela nobreza (que foi inicialmente a vocação principal desta classe) por conta da constituição de grandes reinos. Assim, o controle da sociedade por essa classe perde sentido e se converte em uma trava ao desenvolvimento da referida sociedade. Isso se amplia pelo fato de que esse desenvolvimento é cada vez mais tributário do crescimento do comércio, do banco e do artesanato das grandes cidades que alcança um progresso considerável das forças produtivas.
Assim a burguesia, colocando-se à frente do corpo social, primeiro na esfera econômica e depois na esfera política, liberta a sociedade das travas que a tinham colocado no marasmo e cria as condições para o crescimento das riquezas mais formidável que a humanidade tinha conhecido. E, ao mesmo tempo, substitui uma forma de exploração, a servidão, por outra forma de exploração, o trabalho assalariado. Para isso, durante o período que Marx chama de acumulação primitiva, toma medidas de uma barbárie tamanha que podia ser comparada às impostas aos escravos, para que os camponeses se vissem obrigados a vender sua força de trabalho nas cidades (ver, a esse respeito, as páginas admiráveis do Livro I de O Capital). Essa barbárie é o anúncio da barbárie que empregara o capital para explorar o proletariado (trabalho de crianças, trabalho noturno de mulheres e crianças, jornadas de trabalho de até 18 horas, aprisionamento de trabalhadores em Workhouses, etc.) até que as lutas deste conseguissem obrigar os capitalistas a atenuar a brutalidade dos seus métodos.
A classe operária, desde seu surgimento, tem protagonizado revoltas contra a exploração. Assim, essas revoltas colocaram em evidência um projeto de mudança da sociedade, de abolição das desigualdades, de compartilhar os bens sociais. E nisso não se diferencia fundamentalmente das camadas exploradas no passado, particularmente os servos que, em algumas das suas revoltas, podiam aderir a um projeto de transformação social. Esse foi o caso durante a guerra dos camponeses no século XVI, na Alemanha, quando os explorados adotaram como porta-voz Thomas Munzer, que preconizava uma forma de comunismo [11]. No entanto, contrariamente ao projeto de transformação social de outras classes exploradas, o do proletariado não é uma simples utopia irrealizável. O sonho de uma sociedade igualitária sem donos e sem exploração que podiam acolher os escravos ou os servos era uma fantasia porque o grau de desenvolvimento econômico alcançado pela sociedade naquele tempo não permitia a abolição da exploração. Por outro lado, o projeto comunista do proletariado é perfeitamente realizável, não só porque o capitalismo criou as premissas para tal sociedade, mas porque é o único projeto que pode tirar a humanidade do marasmo em que se afunda.
Desde que o proletariado começou a propor seu próprio projeto, a burguesia o despreza, considerando-o elucubrações de profetas sem público. Quando se esforçava em ir mais além do simples desprezo, o único que podia imaginar é que os operários seriam como as demais classes exploradas de épocas passadas: que só podiam sonhar utopias impossíveis. Evidentemente a história parecia dar razão à burguesia, cuja filosofia se reduzia ao "sempre existiu pobres e ricos e sempre haverá. Os pobres não ganham nada rebelando-se: o que tem de ser feito é os ricos não abusarem da sua riqueza e se preocuparem em aliviar a miséria dos mais pobres". Os sacerdotes e as damas de caridade foram de fato os porta-vozes, e os praticantes, dessa "filosofia". O que a burguesia não queria reconhecer é que seu sistema econômico e social, nem mais nem menos que os anteriores, não podia ser eterno e que, da mesma maneira que o escravismo ou o feudalismo, estava condenado a ceder seu lugar a outro tipo de sociedade. É do mesmo modo que as características do capitalismo permitiram resolver as contradições que haviam travado a sociedade feudal (como tinha sido o caso dessa diante da antiga sociedade), as características da sociedade chamada a resolver as mortais contradições do capitalismo se originam do mesmo tipo de necessidade. Portanto, é possível definir as características da futura sociedade partindo dessas contradições.
Não podemos, por razões óbvias, no contexto desse artigo tratar em detalhes dessas contradições. Há mais de um século que o marxismo tem tratado disso de forma sistemática e nossa própria organização dedicou numerosos textos [12] ao tema. Mas, podemos resumir em linhas gerais as origens dessas contradições. Residem nas características essenciais do sistema capitalista: é um modo de produção que generalizou a troca mercantil para todos os bens produzidos, enquanto nas sociedades do passado só uma parte, muitas vezes muito pequena, desses bens eram transformados em mercadorias. Esta colonização da economia pela mercadoria afetou, inclusive no capitalismo, a força de trabalho colocada em movimento pelos homens na sua atividade produtiva. Privado de meios de produção, o produtor não tem outra possibilidade para sobreviver a não ser vender sua força de trabalho a quem detenha os meios de produção: a classe capitalista, enquanto na sociedade feudal, por exemplo, onde havia uma economia mercantil, o que artesão ou camponês vendiam era fruto do seu trabalho. Certamente é essa generalização da mercadoria o que está na base das contradições do capitalismo: a crise de superprodução encontra suas raízes no fato de que o sistema não produz valores de uso, mas sim valores de troca que devem encontrar seus compradores. É a incapacidade da sociedade em comprar a totalidade das mercadorias produzidas (embora as necessidades estejam muito longe de serem satisfeitas) onde reside essa calamidade que aparece como um verdadeiro absurdo: o capitalismo se afunda não porque produz pouco, mas porque produz em demasia [13].
A primeira característica do comunismo será, portanto, a abolição da mercadoria, o desenvolvimento da produção de valores de uso em lugar de valores de troca.
Além disso, o marxismo, e particularmente Rosa Luxemburgo, colocou em evidência que a origem da superprodução reside na necessidade de o capital, considerado como um todo, realizar-se, pela venda fora da sua própria esfera, da parte de valores produzidos correspondente à mais-valia extraída dos operários e destinada à sua acumulação. À medida que esta esfera extracapitalista se reduz, as convulsões da economia tomam formas cada vez mais catastróficas.
Assim, o único meio de superar as contradições do capitalismo reside na abolição, ao mesmo tempo que de todas as outras formas de mercadorias, da mercadoria força de trabalho, quer dizer, do salário.
A abolição da troca mercantil implica que seja abolida, igualmente, o que constitui sua base: a propriedade privada. Só se as riquezas da sociedade são apropriadas de forma coletiva poderão desaparecer a compra e a venda dessas riquezas (o que já existia, de forma embrionária, na comunidade primitiva). Tal apropriação coletiva pela sociedade das riquezas que ela produz e, em primeiro lugar, dos meios de produção, significa que já não é possível que uma parte dessa sociedade, qualquer classe social (inclusive sob a forma de burocracia de Estado), possa dispor de meios com os quais possa explorar a outra parte. Assim, a abolição do salário não pode se realizar sobre a base da introdução de outra forma de exploração, mas unicamente pode se dar sob a abolição da exploração, em todas as suas formas. Contrariamente ao passado, o tipo de transformação que hoje pode salvar a sociedade não pode se basear em novas relações de exploração. E mais, o capitalismo criou realmente as premissas materiais de uma abundância que permite a superação da exploração. Essas condições de abundância também tornam visível a existência de crises de superprodução (como assinalou o Manifesto Comunista).
A questão colocada é a seguinte: qual força na sociedade está em condições de operar essa transformação, de abolir a propriedade privada e de colocar fim a toda forma de exploração?
A primeira característica dessa classe é ser explorada, porque só uma classe assim está interessada na abolição da exploração. Nas revoluções do passado a classe revolucionária não podia ser, de modo algum, uma classe explorada, na medida em que as novas relações de produção eram necessariamente relações de exploração, exatamente o contrário do que acontece hoje. No seu tempo os socialistas utópicos (Fourier, Saint-Simon, Owen) [14] alimentaram a ilusão de que elementos da própria burguesia poderiam tomar para si a responsabilidade da revolução. Confiavam que da própria classe dominante surgiriam filantropos esclarecidos e endinheirados que, ao se dar conta da superioridade do comunismo sobre o capitalismo, estariam dispostos a financiar projetos de comunidades ideais e que o exemplo desses "benfeitores" se espalharia como uma mancha de óleo.
Mas não são os homens que fazem a história, e sim as classes, motivo pelo qual essas esperanças terminaram imediatamente frustradas. É verdade que existiram raríssimos burgueses que simpatizaram com as ideias dos utopistas [15], porém o conjunto da classe dominante, como tal, opôs-se, quando não combateu abertamente, essas tentativas que tinham como projeto seu desaparecimento.
Portanto, ser uma classe explorada não basta, como vimos, para ser uma classe revolucionária. Existem, por exemplo, ainda hoje no mundo, especialmente nos países subdesenvolvidos, uma multidão de camponeses pobres que sofrem a espoliação de uma parte do fruto do seu trabalho, que enriquece uma parte da classe dominante muito diretamente ou através dos impostos ou dos juros que devem reembolsar aos bancos e usurários com os quais se endividam. Sobre essa miséria, frequentemente insuportável, dessas camadas camponesas, levantaram-se todas as mistificações dos terceiro-mundistas, maoístas, guevaristas... Quando esses camponeses foram empurrados a pegar em armas foi como bucha de canhão de uma ou outra fração da burguesia, que uma vez alçada ao poder tem se encarregado de intensificar ainda mais essa exploração, e frequentemente de maneira ainda mais selvagem (por exemplo, a aventura do khmer vermelho no Camboja, na metade da década de 1970). O retrocesso dessas mistificações (difundidas tanto por stalinistas e trotskistas como por "intelectuais radicais", como Marcuse) é a prova mais evidente do fiasco em que resultou a pretensa "perspectiva revolucionária" do campesinato pobre. Na realidade, os camponeses, apesar de serem explorados de múltiplas formas e poderem empreender lutas - às vezes muito violentas - para limitar sua exploração, não podem nunca colocar como objetivo das suas lutas a abolição da propriedade privada, pela simples razão de que eles mesmos são pequenos proprietários, ou por viverem junto desses, aspiram chegar a essa condição algum dia [16].
Ainda quando os camponeses se dotam de estruturas coletivas para aumentar suas rendas, através de uma melhoria da sua produtividade ou da comercialização dos seus produtos, essas tomam geralmente a forma de cooperativas, o que não questiona nem a propriedade privada, nem a troca de mercadorias [17]. Em resumo, as classes e camadas sociais que aparecem como resíduos do passado (exploradores agrícolas, artesãos, profissionais liberais...) [18] que subsistem simplesmente pelo fato de o capitalismo, ainda que domine totalmente a economia mundial, ser incapaz de transformar todos os produtores em assalariados, não podem ter nenhum projeto revolucionário. Ao contrário, a única coisa com que podem sonhar é o retorno a uma mítica "idade do ouro" do passado. Por isso, a dinâmica das suas lutas específicas é sempre reacionária.
Na realidade, ao ser a abolição da exploração substancialmente idêntica à da abolição do salário, só a classe que suporta essa forma específica de exploração, ou seja, o proletariado, está em condições de desenvolver um projeto revolucionário. Só a classe explorada no seio das relações de produção capitalistas, produto do desenvolvimento dessas relações de produção, é capaz de se munir de uma perspectiva de superação destas.
O proletariado é o produto do desenvolvimento da grande indústria, de uma socialização do processo produtivo como nunca antes conheceu a humanidade. Por isso, o proletariado não pode sonhar com nenhuma volta para trás [19]. Por exemplo, ainda que a redistribuição ou a repartição das terras possa ser uma reivindicação "realista" dos camponeses pobres, seria um absurdo que os operários que fabricam, de modo associado, produtos, compostos de peças, de matérias primas e de tecnologia provenientes do mundo inteiro se propusessem a desmontar sua empresa em partes para repartir. Inclusive as ilusões sobre a autogestão, isto é, uma propriedade comum da empresa pelos que trabalham nela (versão moderna da cooperativa operária), começam a ser coisa do passado. Depois de inúmeras experiências, inclusive recentes (como a da LIP na França no começo dos anos 1970), que geralmente acabaram em enfrentamentos entre os que trabalham e os que haviam sido nomeados gerentes, a maioria dos trabalhadores é bastante consciente de que, dada a necessidade de manter a competitividade da empresa no mercado capitalista, a autogestão equivale à autoexploração. No desenvolvimento da sua luta histórica, o proletariado só pode olhar para a frente: não para a repartição da propriedade e da produção capitalistas, mas levar até o final o processo de socialização dessas, o que o capitalismo tem feito avançar de maneira considerável mas que, por sua própria natureza, não pode pode levar a cabo, ainda que concentre a propriedade nas mãos de um Estado nacional (caso, por exemplo, dos regimes stalinistas).
Para cumprir essa missão histórica, o proletariado conta com uma grande força potencial. Em primeiro lugar, porque na sociedade capitalista avançada, o essencial da riqueza social é produzido pelo trabalho da classe operária. Mesmo sendo, ainda hoje, minoritária na população mundial. Nos países industrializados, a parte do produto nacional que pode se atribuir aos trabalhadores independentes (camponeses, artesãos...) é insignificante. E isso é válido também no caso dos países atrasados onde, por outro lado, a maioria da população vive (ou sobrevive) do trabalho da terra.
Mas, em contrapartida, também por necessidade, o capital concentrou a classe operária em unidades de produção gigantescas, que não têm nada a ver com as que existiam nos tempos de Marx. Além disso, essas unidades de produção geralmente se encontram concentradas no entorno de cidades cada vez mais populosas. Esse agrupamento da classe operária, tanto nos seus lugares de residência como de trabalho, constitui uma força incomparável quando se tira proveito disso, em particular mediante o desenvolvimento da sua luta coletiva e da sua solidariedade.
Finalmente, uma das forças essenciais do proletariado é sua capacidade de tomar consciência. Todas as classes, e especialmente as classes revolucionárias, municiaram-se de uma forma de consciência. Esta, porém, era necessariamente mistificada, ou pela inviabilidade do seu projeto (por exemplo, o caso das guerras camponesas na Alemanha), ou porque se via obrigada a mentir, a ocultar a realidade daqueles que os empurrava para a ação, mas que continuaria a explorá-los (tal é o caso da burguesia e suas palavras de ordem de "Liberdade, Igualdade, Fraternidade"). O proletariado, por ser uma classe explorada e portadora de um projeto revolucionário que acabará com qualquer exploração, não tem de ocultar nem às outras classes, nem a si mesmo, os objetivos últimos da sua ação, de modo que poderá desenvolver ao longo do seu combate histórico uma consciência livre de mistificações. De fato, essa consciência pode se elevar a um nível muito superior ao que jamais pôde chegar a classe inimiga, a burguesia. O que constitui a força decisiva do proletariado, junto a sua organização em classe, é justamente essa capacidade de tomar consciência.
Na segunda parte deste artigo veremos como o proletariado atual conserva, apesar de todas as campanhas ideológicas que evocam seu "desaparecimento" ou sua "integração", todas as características que a fazem a classe revolucionária de nossa época.
FM
II. Hoje em dia, o Proletariado continua sendo a classe revolucionária
[1] Ver especialmente o artigo La experiencia rusa, propiedad privada y propiedad colectiva na Revista internacional nº 61 e a série de artigos El comunismo no es un bello ideal, sino una necesidad material a partir da Revista internacional nº 68.
[2] Marx e Engels colocaram em questão esta afirmação, esclarecendo que só era válida a partir da dissolução da comunidade primitiva, quando sua existência foi confirmada pelos trabalhos de etnologia da segunda metade do século XIX, como os de Morgan sobre os índios da América.
[3] Alguns "pensadores" da burguesia (como o político francês do século XIX Guizot, que foi chefe de governo sob o reinado de Luís Felipe) também legaram essa idéia.
[4] É válido também para os economistas "clássicos", tal como Smith ou Ricardo, cujo trabalho foi útil particularmente para o desenvolvimento da teoria marxista.
[5] Temos de dar a César o que é de César, e a Castoriadis o que lhe pertence: com grande perseverança, as previsões deste último foram desmentidas pelos fatos: não tinha "previsto" que de agora em diante o capitalismo havia superado suas crises econômicas? (ver particularmente seus artigos sobre "A dinâmica do capitalismo" no início dos anos 60 em Socialismo ou Barbárie). Não tinha anunciado ao mundo, em 1981 (ver seu livro Diante da guerra, do qual ainda esperamos a segunda parte anunciada para o outono de 1981), que a URSS havia triunfado definitivamente na "guerra fria"? ("desequilíbrio massivo a favor da Rússia", "situação praticamente impossível de recuperar pelos americanos"). Tais fórmulas tinham sido verdadeiramente bem vindas em uma época na qual Reagan e a CIA tentavam nos assustar a propósito do "império do mal". Tudo isso não impediu a mídia de continuar pedindo o ponto de vista do "especialista" frente a grandes acontecimentos da nossa época: apesar da sua coleção de erros, conserva a gratidão da burguesia pelas suas convicções e seus discursos infatigáveis contra o marxismo, convicções que são a origem dos seus fracassos crônicos.
[6] É verdade que, em muitos países, estas características camuflam parcialmente o pertencimento de classe. Assim em muitos países do Terceiro Mundo, sobretudo na África, a classe dominante recruta a maior parte de seus membros em uma ou outra etnia: todavia, isto não significa que todos os membros dessas etnias sejam exploradores, muito pelo contrário. Do mesmo modo nos EUA, os WASP ("Anglo-saxões brancos protestantes") são, proporcionalmente, os mais representados na burguesia: isto não impede a existência de uma burguesia negra (Colin Powel, ex-chefe do Estado Maior do Exército, é negro), nem de uma multidão de "pequenos brancos" de lutar contra a miséria.
[7] "Soberano, (...) viemos lhe ver para pedir tua justiça e proteção (...) Ordene e Jure satisfazê-las (nossas principais necessidades) e farás a Rússia potente e gloriosa, imprimirás teu nome em nossos corações, nos corações dos nossos filhos para sempre". Era nesses termos que foi dirigida a petição operária ao czar de todas as Rússias. É necessário esclarecer, entretanto, que esta petição também afirmava "chegamos ao limite de nossa paciência, para nós chegou o terrível momento em que a morte vale mais que afundar-se em tormentos insuportáveis (...) Se rechaças atender nossas súplicas morreremos aqui, sobre esta praça, diante do teu palácio...".
[8] Esta posse, não toma necessariamente, como vimos com o desenvolvimento do capitalismo de Estado, especialmente na sua versão stalinista, a forma de uma propriedade individual, pessoal (e transferívelcomo herança). É cada vez mais coletivamente que a classe capitalista "possui" (no sentido em que ela pode dispor, tem o benefício e controle) os meios de produção, mesmo quando estes são estatizados.
[9] A pequena burguesia não é uma classe homogênea. Existem múltiplas formas dela que não possuem, os meios materiais de produção. Assim, os atores de cinema, os escritores, os advogados, por exemplo, pertencem a esta categoria social sem que isso queira dizer que disponham de ferramentas específicas. Seus "meios de produção" residem em um saber ou em um "talento" que colocam em prática no seu trabalho.
[10] O servo não era uma simples "coisa" do senhor. Ligado a sua terra, era vendido com ela (o que é comum com o escravo). Mas existia no princípio um "contrato" entre o servo e o senhor: este último, que possuía as armas, assegurava-lhe proteção em troca do trabalho de servo em terras senhoriais ou em troca de uma parte das suas colheitas.
[11] Ver a primeira parte da série El comunismo no es un bello ideal, sino una necesidad material, na Revista internacional nº 68.
[12] Ver nossa brochura La Decadencia Del Capitalismo.
[13] Sobre esta questão, ver a 5ª parte da série El comunismo no es un bello ideal, sino una necesidad material, na Revista internacional nº 72, que mostra como a crise de superprodução expressa a quebra do capitalismo.
[14] Ver em El comunismo no es un bello ideal..., 1ª parte, na Revista internacional nº 68.
[15] Owen foi inicialmente um grande industrial têxtil e tentou em numerosas ocasiões, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, criar comunidades que se bateram contra as leis capitalistas. Contribuiu, no entanto, para o surgimento das Trade Unions, os sindicatos britânicos. Se fosse possível medir, a sorte das iniciativas dos utopistas franceses foi ainda pior. Durante anos, Fourier esperou em vão, dia após dia, em seu escritório, que se apresentasse o mecenas que financiasse sua cidade ideal. As tentativas dos seus discípulos, sobretudo nos Estados Unidos, de construção de "falanstérios", acabaram em desastrosas quebras econômicas. Por outro lado, se as doutrinas de Saint-Simon tiveram algum êxito maior, foi porque constituíram o credo de uma série de homens da burguesia, tais como os irmãos Pereire, fundadores de um banco, ou Ferdinand de Lesseps, o construtor do canal de Suez.
[16] Existe um proletariado agrícola, cujo único meio de subsistência consiste em vender, em troca de um salário, sua força de trabalho aos proprietários de terras. Esta parte do campesinato pertence à classe operária e constituirá, no momento da revolução, o destacamento avançado do proletariado no campo. No entanto, ao viver sua exploração como conseqüência de uma "desgraça" que lhe priva de herdar uma parte de terra ou que lhe atribuiu uma parcela pequena demais, o proletariado agrícola, que muito frequentemente é temporário ou empregado numa exploração familiar, tende muitas vezes a alimentar o sonho de ascender a uma propriedade ou de uma melhor divisão das terras. Só a luta, em um estágio avançado do proletariado urbano, permitir-lhe-á desfazer-se de tais fantasias, propondo como alternativa a socialização da terra, de maneira idêntica ao resto dos meios de produção.
[17] O que não é um impedimento para que, no curso do período de transição do capitalismo ao comunismo, o reagrupamento de pequenos proprietários agrícolas em cooperativas possa constituir uma etapa para a socialização da terra, sobretudo, porque isso lhes permitirá superar o individualismo característico do seu âmbito de trabalho.
[18] O que temos dito dos camponeses é mais válido ainda para os artesãos, cujo papel na sociedade tem se reduzido cada vez mais drasticamente. Quanto às profissões liberais (medicina privada, advocacia...), seu status social e sua remuneração (que a burguesia inveja em muitos casos) não os incita de maneira alguma a questionar a ordem existente. Com relação aos estudantes, que por definição ainda não têm nenhum lugar na economia, seu destino é o de dividir-se entre as diferentes classes sociais das quais eles vêm por suas origens familiares, ou às quais acabam integrando-se.
[19] No despertar do desenvolvimento da classe operária, certos setores desta, despedidos pela introdução de maquinaria, dirigirão sua revolta para a destruição dessas máquinas. Esta tentativa de voltar no tempo foi, entretanto, uma forma embrionária de luta, que desapareceu com o desenvolvimento econômico e político do proletariado.
Todos esses elementos não são novos. Fazem parte do patrimônio clássico do marxismo. No entanto, um dos meios mais traiçoeiros com os quais a ideologia burguesa tenta desviar o proletariado do seu projeto comunista é convencê-lo que estaria em vias de extinção, ou mesmo que já desapareceu. A perspectiva revolucionária fazia sentido quando os operários industriais eram a imensa maioria dos assalariados, porém com a atual redução dessa categoria, tal perspectiva tornou-se ultrapassada. Há de se reconhecer que semelhante discurso não afeta somente os operários menos conscientes, mas também alguns grupos que se reivindicam do comunismo. Razão maior para lutar com firmeza contra tais bobagens.
As "teorias" burguesas sobre o "desaparecimento do proletariado" já vem de longe. Durante algumas décadas, elas se baseavam no fato de que o nível de vida dos operários conhecia certas melhorias. A possibilidade para estes adquirirem bens de consumo, antes reservados à burguesia ou pequena burguesia, significaria o desaparecimento da condição operária. Mesmo naqueles anos, essas "teorias" não se sustentavam: quando o automóvel, o televisor ou a geladeira, graças ao incremento da produtividade do trabalho humano, se tornaram mercadorias relativamente baratas, e além do mais, se fizeram indispensáveis devido ao contexto de vida dos operários [i], o fato de possuir esses artigos não significava, absolutamente, livrar-se da condição operária, nem sequer ser menos explorado. Na realidade, o grau de exploração da classe operária nunca esteve determinado pela quantidade ou natureza dos bens de consumo que pode dispor em um determinado momento. Já faz tempo, Marx e o marxismo deram uma resposta a essa questão: em linhas gerais, o poder de consumo dos assalariados corresponde ao preço da sua força de trabalho, ou seja, à quantidade de bens necessários para a reposição da referida força de trabalho. O que o capitalista busca quando paga um salário ao operário é que este continue participando no processo produtivo e nas melhores condições de rentabilidade para o capital. Isso supõe que o trabalhador consiga não só se alimentar, se vestir-se e se alojar, como também descansar e adquirir a qualificação necessária para fazer funcionar os meios de produção em constante evolução.
A instauração do descanso remunerado e seu incremento em dias que foram instituídos ao longo do século XX nos países desenvolvidos não se devem, tampouco, a não se sabe que "filantropia" da burguesia. Tornaram-se necessários pelo impressionante aumento da produtividade do trabalho e, portanto, dos ritmos de tal trabalho e da vida urbana em seu conjunto, característico de nossos tempos. Do mesmo modo, o desaparecimento (relativo) do trabalho infantil e da ampliação da escolaridade, que é apresentada como outra manifestação do quanto a classe dominante é bondosa, se devem, essencialmente, à necessidade para o capital de dispor de uma mão de obra adaptada às exigências de uma produção de tecnologia cada vez mais complexa (embora, atualmente, isso também tem se convertido em uma camuflagem do desemprego). Além disso, no "aumento" do salário do qual tanto alardeia a burguesia, especialmente desde a Segunda Guerra Mundial, temos que levar em conta que os operários devem manter os seus filhos por um período maior que no passado. Quando as crianças iam trabalhar aos doze anos ou menos, aportava durante alguns anos uma renda extra para a família operária antes de constituir um novo lar. Com uma escolaridade até os 18 anos, esse apoio desapareceu praticamente. Dito em outras palavras, os "aumentos" salariais também foram, em grande parte, um dos meios mediante os quais o capitalismo preparou a camuflagem da força de trabalho para as novas condições da tecnologia.
Durante certo tempo o capitalismo dos países desenvolvidos produziu a ilusão de ter reduzido os níveis de exploração dos seus assalariados. Na realidade, a taxa de exploração, ou seja, a relação entre a mais-valia produzida pelo operário e o salário que recebe [ii], tem se incrementado continuamente. Isso é o que Marx chamava pauperização "relativa" da classe operária como tendência permanente no capitalismo. Durante os anos que a burguesia de alguns países europeus batizou de "Trinta Gloriosos", a exploração do operário se incrementou continuamente, por mais que isso não se tenha concretizado em uma queda do nível de vida. Mas, hoje, não se trata mais de uma pauperização relativa. Os aumentos salariais já não são possíveis hoje em dia, e a pauperização absoluta, cujo desaparecimento definitivo fora anunciado por todos os apologistas da burguesia, está ressurgindo bruscamente nos países mais "ricos". Agora que a política de todos os setores nacionais da burguesia diante da crise é a de desferir golpes e mais golpes no nível de vida dos proletários, com o desemprego, a redução drástica das prestações "sociais" e inclusive o rebaixamento do salário nominal, todas aquelas estúpidas análises sociológicas sobre a "sociedade de consumo" e o "aburguesamento" da classe operária têm se desmentido por si mesmo. Por isso, agora o discurso sobre a "extinção do proletariado" tem mudado de argumento e, cada vez mais, se apóia, sobretudo, nas modificações que têm afetado as diferentes partes da classe operária e, especialmente, a redução dos efetivos industriais, da proporção de operários "manuais" na massa total dos trabalhadores assalariados.
Semelhantes discursos se baseiam em uma falsificação grosseira do marxismo. O marxismo nunca limitou o proletariado ao proletariado industrial ou "manual". É certo que nos tempos de Marx a maioria da classe operária estava formada por operários chamados "manuais". Mas em todas as épocas existiram no proletariado setores que trabalhavam com uma tecnologia sofisticada ou que exigiam importantes conhecimentos intelectuais. Alguns ofícios tradicionais, praticados por alguns ramos profissionais, exigiam uma maior aprendizagem. Da mesma forma, ofícios, como os dos revisores de imprensa, exigiam uma preparação grande que se assemelhavam aos "trabalhadores intelectuais". E isso não impediu, em nada, que esses trabalhadores se encontrassem muito frequentemente na vanguarda das lutas operárias. De fato, essa oposição entre trabalhadores de "colarinho azul" e de "colarinho branco" é um desses recortes que agradam os sociólogos e os burgueses, que os empregam para causar divisões nas fileiras dos trabalhadores. Essa oposição não é nova, pois a classe dominante compreendeu há bastante tempo que podia enganar a muitos empregados que não pertenciam a classe operária. Na realidade, o pertencimento ou não à classe operária não depende de critérios sociológicos e, muito menos ainda, ideológicos, ou seja, da idéia de que um proletário, ou um grupo de proletários, tem de sua própria condição. São fundamentalmente critérios econômicos os que determinam tal pertencimento.
Fundamentalmente, o proletariado é a classe explorada específica das relações de produção capitalista. Infere-se disso, como já vimos na primeira parte deste artigo, os seguintes critérios: Em linhas gerais, "o fato de estar privado de meios de produção e de estar obrigado, para viver, a vender sua força de trabalho aos que os detenham e os utilizam em seu proveito para apropriar-se de uma mais-valia, determina o pertencimento à classe operária". Mas, diante de todas as falsificações que, de forma interessada, têm se infiltrado nessa questão, é necessário tornar esses critérios mais precisos.
Em primeiro lugar, cabe dizer que, se o fato de ser assalariado é condição necessária para pertencer à classe operária, não é suficiente. Do contrário os policiais, os padres, alguns diretores gerais de grandes empresas (especialmente das públicas) e até os ministros seriam gente explorada e, potencialmente, companheiros de luta daqueles que reprimem, embrutecem e fazem trabalhar e que recebem salários dez ou cem vezes mais baixos [iii]. Por isso, é indispensável destacar que uma das características do proletariado é a de produzir mais-valia. E isto significa duas coisas:
Entre o pessoal de uma empresa, por exemplo, certos executivos técnicos (e inclusive engenheiros) cujo salário não supera muito o de um operário qualificado, pertencem à mesma classe que este, enquanto aqueles cuja remuneração se aproxima muito mais à do patrão (embora não tenha uma função de enquadramento da mão de obra), não fazem parte da classe operária. De igual maneira, em alguma empresa, um ou outro "chefe de limpeza" ou "agente de segurança", cuja remuneração é na maioria dos casos mais baixa que a de um técnico e inclusive a de um operário qualificado, mas cuja função é a de um "chefe" de presídio industrial, não poderá ser considerado como pertencente ao proletariado.
Por outro lado, fazer parte da classe operária não implica necessariamente participar direta e imediatamente na produção de mais-valia. O professor que educa o futuro proletário, a enfermeira, e inclusive o médico assalariado (cujo salário é muitas vezes menor que a de um operário qualificado), que "recupera" a força de trabalho dos operários (mesmo que cure policiais, padres, dirigentes sindicais ou até ministros) pertencem sem dúvida nenhuma à classe operária assim como o cozinheiro de um refeitório de empresa. É óbvio que isso não quer dizer que seja assim também com um cacique da universidade ou da enfermeira que se estabelece por sua própria conta. É necessário esclarecer ainda que o fato de os professores, mesmo os do fundamental (cuja situação econômica, em geral, não é das mais confortáveis), seja consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, um dos transmissores dos valores ideológicos da burguesia, não os exclui da classe explorada e revolucionária como também, por exemplo, os operários metalúrgicos que fabricam as armas [v]. Além disso, podemos constatar que, ao longo de toda a história do movimento operário, os professores (especialmente os do fundamental) sempre proporcionaram grande quantidade de militantes revolucionários. Do mesmo modo, os operários dos arsenais de Kronstadt faziam parte da vanguarda da classe operária durante a revolução de outubro de 1917.
É necessário reafirmar também que a grande maioria dos funcionários públicos também pertence à classe operária. Se tomarmos o exemplo de uma empresa estatal como os Correios, não se poderia dizer que os mecânicos que fazem a manutenção dos caminhões postais ou quem os dirige, bem como os que transportam os malotes de correios, não pertençam ao proletariado. Não é difícil compreender, a partir daqui, que seus companheiros que distribuem o correio ou atendam no guichê, estejam na mesma situação. Do mesmo modo, os empregados do banco, os agentes das companhias de seguros, os funcionários subalternos da previdência social ou dos tributos, cuja situação ou condição são equivalentes aos daqueles, também pertencem à classe operária. Não se pode arguir que esses teriam melhores condições de trabalho que os operários da indústria, por exemplo, de um ajustador ou um fresador. Trabalhar um dia inteiro atrás de um guichê ou diante de uma tela de computador não é menos penoso, porque ficam com as mãos mais limpas, que operar uma máquina-ferramenta. Além disso, o caráter associado do seu trabalho, que é um dos fatores objetivos da capacidade do proletariado tanto para levar a cabo sua luta de classe como a de derrubar o capitalismo, não é, de modo algum, colocado em dúvida pelas condições modernas da produção, muito pelo contrário.
E também, com a elevação do nível tecnológico da produção, esta última passa a exigir uma quantidade crescente do que a sociologia e as estatísticas chamam de "quadros" (técnicos e inclusive engenheiros), de maneira que a maioria deles comprovam, como dissemos antes, que sua condição social, quando não seus salários, se aproximam ao dos operários qualificados. Neste caso, não se trata, de modo algum, de um fenômeno de desaparecimento da classe operária a favor das "camadas médias", mas sim de um fenômeno de proletarização dessas [vi]. Por isso, os discursos sobre o "desaparecimento do proletariado" em virtude do constante crescimento de trabalhadores de "colarinho branco" ou de técnicos em relação aos operários "manuais" da indústria não tem outro objetivo senão o de enganar e desmoralizar a ambos. É irrelevante o fato de que os autores desses discursos acreditarem neles ou não: sempre servirão eficazmente à burguesia, mesmo que eles continuem sendo tão estúpidos a ponto de não ser capaz de se perguntarem quem fabricou a caneta (ou o processador de texto) com a qual estão escrevendo suas sandices.
Para desmoralizar os operários, a burguesia não joga uma única cartada. Para os que não acreditam no "desaparecimento da classe operária", ela reserva a ideia de que "a classe operária está em crise". Um dos argumentos definitivos dessa crise seria o declínio da filiação sindical e sua influência nas últimas décadas. Não vamos desenvolver neste artigo nossa análise sobre a natureza burguesa do sindicalismo em todas as suas formas. De fato, é a própria experiência cotidiana da classe operária, da sabotagem sistemática e permanente das suas lutas por parte de organizações que pretendem defendê-la, a que se encarrega, diariamente, de demonstrar isto [vii]. É justamente essa experiência dos operários a primeira responsável por esse rechaço. E por isso mesmo tal rechaço não é nada menos que uma "prova" de uma suposta crise da classe operária, mas, ao contrário e, sobretudo, uma demonstração de um desenvolvimento da consciência de classe. Um exemplo, entre milhares, do que afirmamos é a atitude dos operários nos grandes movimentos ocorridos em um mesmo país, França, em um intervalo de 32 anos. Ao final das greves de maio-junho de 1936, em plena época da contrarrevolução que se seguiu à onda revolucionária da primeira pós-guerra mundial, os sindicatos se beneficiaram de um aumento de filiados sem precedentes. Por outro lado, no final da greve geral de maio de 1968, que foi o marco da retomada histórica dos combates de classe e do final do período contrarrevolucionário, o que se viu foi a quantidade de desfiliações dos sindicatos e a montanha de carteiras sindicais rasgadas.
O argumento da desfiliação como prova das dificuldades que teria o proletariado é um dos indícios mais seguros de que quem utiliza semelhante argumento pertence ao campo burguês. Tal argumento é parecido ao da suposta natureza "socialista" dos regimes stalinistas. A história demonstrou, sobretudo após a Segunda guerra Mundial, a amplitude dos estragos nas consciências operárias dessa mentira propalada por todos os setores da burguesia, de direita, de esquerda e de extrema-esquerda (stalinistas e trotskistas). Nesses últimos anos, podemos comprovar de que modo o colapso do stalinismo tem sido utilizado como "prova" da falência definitiva de qualquer perspectiva comunista. A maneira de utilizar a mentira da "natureza operária dos sindicatos" é, em parte, idêntica: em um primeiro momento, serve para alistar os operários atrás do Estado capitalista; em um segundo momento, faz deles um instrumento para desmoralizá-los e desorientá-los. Existe, ainda, uma diferença de impacto entre essas duas mentiras. Por não ter sido o resultado das lutas operárias, o desmoronamento dos regimes stalinistas foi possível ser utilizado com eficácia contra o proletariado; por outro lado, o desprestígio dos sindicatos é essencialmente resultado dessas mesmas lutas operárias, o que limita seu impacto como fator de desmoralização. Além disso, é por essa razão que a burguesia tem dado origem ao sindicalismo "de base", encarregado de tomar o terreno do sindicalismo tradicional. E também por essa razão tem promovido ideólogos de ares mais "radicais", encarregados de propagar o mesmo tipo de mensagem.
E é assim que vemos florescer, promovidos pela imprensa [viii], análises como a do francês Sr. Alain Bihr, doutor em sociologia e autor, entre outras produções, de um livro intitulado Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu em crise. Em si, a tese deste personagem tem muito pouca importância. Entretanto, o fato de que este esteja presente desde algum tempo pelos ambientes que se reivindicam da esquerda comunista, dentre os quais alguns não têm o menor reparo em tomar por conta própria (de maneira "crítica", isso sim) as "análises" daquele [ix], nos leva a colocar em relevo o perigo que tais análises representam.
O Senhor Bihr se apresenta como um genuíno defensor dos interesses operários. Daí não poder supor que a classe operária estaria em vias de desaparecimento. Começa afirmando, ao contrário, que: "... as fronteiras do proletariado se estendem hoje em dia muito mais longe que o tradicional "mundo operário"". Todavia, isto serve para fazer passar a mensagem central: "Mas, ao largo de quinze anos de crise, na França como na maioria dos países ocidentais, assiste-se a uma fragmentação crescente do proletariado, que, ao colocar em dúvida sua unidade, tende a paralisá-lo como força social" [x].
A intenção principal do doutor em sociologia é, assim, demonstrar que o proletariado "está em crise" e que o responsável por essa situação é a própria crise do capitalismo, causa que há de se acrescentar, evidentemente, as modificações sociológicas que afetou a composição da classe operária: "De fato, as transformações da relação salarial em curso, com seus efeitos globais de fragmentação e de "desmassificação" do proletariado, , (...) tendem a dissolver as duas figuras proletárias que forneceram seus grandes batalhões durante o período fordista de um lado, a do operário qualificado, que as transformações atuais modificaram profundamente, tendendo a extinguir as antigas categorias do operário qualificado ligadas ao fordismo, enquanto novas categorias de "qualificados" surgem ligadas aos novos processos de trabalho automatizados: de outro, a do operário especializado, ponta de lança da ofensiva proletária das décadas de 60 e 70, sendo os operários especializados progressivamente eliminados e substituídos por trabalhadores instáveis dentro desses mesmos processos de trabalho automatizados". [xi]
Deixando de fora essa linguagem pedante (que tanto enche de gozo os pequenos burgueses que se colocam enquanto "marxistas"), Bihr nos traz os mesmos tópicos com os quais nos castigaram gerações de sociólogos: a automatização da produção seria responsável pelo debilitamento do proletariado (como se pretende marxista, não diz "desaparecimento"), etc. E ele acerta o passo com aqueles quando pretende que a dessindicalização também seria um sinal da "crise da classe operária" visto que "todos os estudos efetuados sobre o desenvolvimento do desemprego e da precariedade mostram que estes tendem a reativar e reforçar as antigas divisões e desigualdades no proletariado (...). Esta fragmentação em condições tão heterogêneas tem produzido efeitos desastrosos nas condições de organização e de luta. É testemunho disso, o fracasso das diferentes tentativas do movimento sindical em organizar os precários e desempregados..." [xii]. Assim, por trás das suas frases mais radicais, atrás do seu suposto "marxismo", Bihr quer nos vender o mesmo azeite adulterado que todos os setores da burguesia vendem: os sindicatos seriam ainda hoje "organizações do movimento operário" [xiii].
Assim é o "especialista" no qual se inspira gente como GS ou publicações como Perspective Internacionaliste (PI), que acolhe com simpatia seus escritos. Certo é que Bihr, que não é estúpido, para contrabandear sua mercadoria, tem cuidado em dizer que o proletariado será capaz de superar, apesar de tudo, suas dificuldades atuais e conseguirá se "recompor". Mas a maneira como diz isso tenderia melhor a convencer do contrário: "As transformações da relação salarial lançam, assim, um duplo desafio ao movimento operário; elas o obrigam simultaneamente a se adaptar a uma nova base social (a uma nova composição "técnica" e "política" da classe) e a fazer síntese entre categorias a priori tão heterogêneas como as dos "novos qualificados" e dos instáveis, síntese muito mais difícil de se realizar do que aquela entre operários especializados e operários qualificados, durante o período fordista (...) Enfim, o enfraquecimento efetivo do proletariado, devido à sua fragmentação, provoca entre o conjunto dos proletários, um enfraquecimento do sentimento de pertencer a uma classe, e assim pode abrir caminho para a recomposição de uma identidade coletiva imaginária em outras bases" [xiv]
É assim que, com toneladas de argumentos, a maioria deles especiosos, destinados a convencer o leitor de que tudo anda mal para a classe operária, após haver "demonstrado" que as causas dessa "crise" devem ser buscadas na automatização do trabalho e no afundamento da economia capitalista e na queda do desemprego, fenômenos todos eles que continuarão se agravando, se acaba afirmando de modo lapidar e sem argumento algum que "Tudo irá melhor... talvez!. Porém é um caminho muito difícil de encarar". Se depois de ter engolido as historinhas de Bihr alguém continua pensando que o proletariado e sua luta de classe têm futuro é porque é um otimista crédulo e incorrigível. O doutor Bihr pode estar contente: com suas redes grosseiras capturou os tolos que publicam PI e que se apresentam como os autênticos defensores dos princípios comunistas que a CCI teria jogado na sarjeta.
É certo que a classe operária teve de enfrentar, nos últimos anos, uma série de dificuldades para desenvolver suas lutas e sua consciência. Nós, por nossa vez, nunca vacilamos em assinalar essas dificuldades, contrariamente às acusações dos céticos do momento (ou seja, a FECCI, que é coerente com a sua função de semeadores de confusão, mas também Battaglia Comunista, o que é menos lógico porque Battaglia pertence ao meio político do proletariado). Mas quando assinalamos essas dificuldades e baseamos em uma análise da origem delas, também temos colocado em relevo as condições que permitirão sua superação. É o mínimo que se espera dos revolucionários. Basta examinar com um pouco de seriedade a evolução das lutas operárias durante a última década para se dar conta que sua atual debilidade não se deve de modo algum à diminuição dos números de operários "tradicionais", dos de "colarinhos azuis". Na maioria dos países, os trabalhadores dos correios e telecomunicações aparecem entre os mais combativos. E o mesmo ocorre com os trabalhadores da saúde. Em 1987, na Itália, foram os trabalhadores das escolas que levaram a cabo as lutas mais importantes. Poderíamos multiplicar os exemplos que ilustram que não só o proletariado não se limita aos de "colarinhos azuis", aos operários "tradicionais" da indústria, como tampouco a combatividade operária. Nossas análises não estão enfocadas por considerações sociológicas, boas para professores de universidade ou pequeno burgueses com dificuldades para interpretar não só o "mal estar" da classe operária, como também o seu próprio.
Não podemos voltar aqui, no marco deste artigo, sobre as análises da situação internacional que fizemos nos últimos anos. O leitor poderá buscar praticamente todos os números da nossa Revista Internacional durante todo esse período e especialmente nas teses e resoluções adotadas por nossa organização desde 1989 [xv]. A CCI se deu conta perfeitamente das dificuldades pelas quais atravessa o proletariado hoje, o retrocesso da sua combatividade e da consciência no seu seio, dificuldades nas quais alguns se apóiam para diagnosticar uma "crise" da classe operária. Colocamos em evidência, especialmente, que, durante os anos 80, a classe operária se viu confrontada com o peso crescente da decomposição generalizada da sociedade capitalista, que, ao favorecer a desesperança, o sentimento de "cada um por si", a atomização, desferiu fortes golpes na perspectiva geral da luta proletária e solidariedade de classe. Isso facilitou muito especialmente as manobras sindicais para aprisionar as lutas operárias no corporativismo. Mas o peso permanente da decomposição não conseguiu até 1989 acabar com a onda de combates operários que havia iniciado em 1983 com as greves do setor público na Bélgica. Tudo isso foi uma expressão da vitalidade da luta de classe. Durante todo esse período podemos presenciar um crescente ultrapassagem dos sindicatos, os quais tiveram que ceder, cada vez mais com mais freqüência, o espaço a um sindicalismo de "base", mais radical para o trabalho de sabotagem das lutas [xvi].
Aquela onda de lutas proletárias acabaria sendo enterrada pelos transtornos planetários que vinham acontecendo desde a segunda metade de 1989. O colapso dos regimes stalinistas da Europa em 1989 foi, até hoje, a expressão mais importante da decomposição do sistema capitalista. Embora alguns, em geral os mesmos que não tinham visto nenhuma luta operária em meados dos anos 80, estimavam que esse acontecimento ia favorecer a tomada de consciência da classe operária, nós não esperamos para anunciar o contrário [xvii]. Mais tarde, especialmente em 1990/91, durante a crise e a Guerra do Golfo, e depois, com o golpe de Moscou e o desmoronamento da URSS, colocamos em relevo que esses acontecimentos também iam repercutir na luta de classe e na capacidade do proletariado para fazer frente aos ataques cada dia mais fortes que o capitalismo em crise dirige contra ele.
Por isso, as dificuldades atravessadas pela classe durante o último período não escapou, nem surpreendeu, a nossa organização. No entanto, mediante a análise das verdadeiras causas (que nada tem a ver com a necessidade mítica de "recomposição da classe operária") pudemos também destacar as razões pelas quais a classe operária possui hoje os meios para superar essas dificuldades.
É importante, a esse respeito reconsiderar um dos argumentos de Bihr que lhe é útil para dar crédito à idéia da crise da classe operária: a crise e o desemprego tem "fragmentado o proletariado", "ao ter fortalecido as antigas divisões e desigualdades" no seu seio. Para exemplificar sua tese, Bihr não hesita em carregar as cores confeccionando um catálogo de todos esses "fragmentos": "os trabalhadores estáveis e com garantias", "os excluídos do trabalho e até do mercado de trabalho", "a massa flutuante de trabalhadores precários". E nesta última categoria, o doutor Bihr divide e subdivide com fluidez: "os trabalhadores de empresas que trabalham em subcontratação", "os trabalhadores a tempo parcial", "os estagiários" e "os da economia subterrânea" [xviii]. De fato, o que o doutor Bihr nos dá como argumento não é mais que uma constatação fotográfica, a qual corresponde perfeitamente a sua visão reformista [xix]. É certo que, num primeiro momento, a burguesia tem desferido seus ataques contra a classe operária de modo seletivo para, desse modo, limitar a amplitude das suas reações. Também é certo que o desemprego, especialmente o dos jovens, tem sido um fator de chantagem sobre determinados setores do proletariado e, por isso, tem se reforçado a passividade, acentuando a ação deletéria do ambiente de decomposição social e de "cada um por si". Mas, a crise mesma e seu agravamento inexorável se encarregarão cada vez mais em nivelar por baixo a condição dos diferentes setores da classe operária. Especialmente os setores de "ponta" (informática, telecomunicações, etc.) que pareciam ter evitado a crise, hoje estão sendo atingidos em cheio por ela colocando seus trabalhadores na mesma situação que os da siderurgia e da indústria automobilística. E agora são as maiores empresas, como a IBM, as que demitem em massa. Ao mesmo tempo, e contrariamente à tendência da década passada, o desemprego de todos os trabalhadores de idade mais madura, os que têm vivido uma experiência de trabalho coletivo e de luta, aumenta hoje com maior rapidez que o de jovens, o que tende a limitar o fator de atomização que o desemprego tinha representado no passado.
Embora a decomposição seja uma desvantagem para o desenvolvimento das lutas e da consciência da classe, a quebra cada vez mais evidente e brutal da economia capitalista, com sua série de ataques que se fazem sentir nas condições de existência do proletariado, é um fator determinante da situação atual para a retomada das lutas e da tomada de consciência. Porém isso não pode ser compreendido se pensarmos, tal como afirma a ideologia reformista que se nega a ver a menor perspectiva revolucionária, que a crise capitalista provoca uma "crise da classe operária". Uma vez mais, os fatos têm se encarregado por si mesmos de destacar a validade do marxismo e a vacuidade das elucubrações dos sociólogos. As lutas do proletariado na Itália, no outono de 1992, diante de alguns ataques econômicos de uma violência sem precedentes, voltou a demonstrar, uma vez mais, que o proletariado não morreu, que não tinha desaparecido, que não renunciou à luta mesmo que, e era de se esperar, ainda não tivesse digerido os golpes recebidos nos anos anteriores. Essas lutas não são fogo de palha. Não fazem mais que anunciar (como ocorreu com as lutas operárias de maio de 1968 na França, que agora faz 25 anos), um renascimento geral da combatividade operária, uma retomada da marcha para frente do proletariado rumo à tomada de consciência das condições e dos fins do seu combate histórico pela abolição do capitalismo. E isso, agrade ou não a todos os que se lamentam, sincera ou hipocritamente, da "crise da classe operária" e da sua "necessária recomposição".
FM (fevereiro 2006)
[i] O automóvel é indispensável para ir ao trabalho e fazer compras quando são insuficientes os transportes públicos e quando as distâncias a serem percorridas não fazem senão aumentar. Uma geladeira torna-se vital, quando o único meio de adquirir alimentos a um preço acessível é comprando em um supermercado e isso não pode ser feito todos os dias. Quanto à televisão, apresentada nos seus tempos como símbolo máximo do acesso da "sociedade de consumo", além do interesse que representa como instrumento de propaganda e de embrutecimento nas mãos da burguesia (como "ópio do povo" tem substituído com muita vantagem a religião), pode ser encontrada hoje em muitas moradias nas vilas miseráveis do Terceiro Mundo, fato que diz o quanto esse produto está desvalorizado.
[ii] Marx chamava taxa de mais-valia ou de exploração a relação "pl/v", onde "pl" representa a mais-valia em valor-trabalho (a quantidade de horas da jornada de trabalho que o capitalista se própria) e "v" o capital variável, ou seja, o salário (a quantidade de horas durante a qual o operário produz o equivalente em valor ao que recebe). É um índice que permite determinar em termos econômicos objetivos, e não subjetivos, a intensidade real da exploração.
[iii] Evidentemente, esta afirmação desmente todas essas mentiras que nos contam todos os "defensores da classe operária" como os social-democratas ou os stalinistas, que tem uma longa experiência em reprimir e enganar os operários como dos gabinetes ministeriais. Quando um operário "vindo de baixo" ascende a um cargo de direção sindical, de conselheiro ou prefeito e até de deputado ou ministro, nada tem a ver com a sua classe de origem.
[iv] Evidentemente, é muito difícil determinar esse nível, pois pode variar no tempo e de um país para outro. O que importa é saber que em cada país ou conjunto de países semelhantes desde o ponto de vista do desenvolvimento econômico e da produtividade do trabalho, existe tal limite, que se situa entre o salário do operário qualificado e o do quadro superior.
[v] Para uma análise mais desenvolvida sobre trabalho produtivo e improdutivo, veja nossa brochura La decadencia del capitalismo.
[vi] Embora seja necessário assinalar ao mesmo tempo que determinada proporção de "quadros" veem um aumento da sua renda que os integra na classe dominante.
[vii] Para uma análise detalhada da natureza burguesa dos sindicatos, veja nossa brochura Os sindicatos contra a classe operária.
[viii] Por exemplo, Le Monde diplomatique, mensal francês humanista publicado também em outros idiomas, especializado na promoção de um capitalismo "de rosto humano", publica frequentemente artigos de Alain Bihr. No seu número de março de 1991, pode-se encontrar, por exemplo, um texto desse autor intitulado Régression des droits sociaux, affaiblissement des syndicats, Le prolétariat dans tous ses éclats [Redução dos direitos sociais, enfraquecimento dos sindicatos, o proletariado em todos seus fragmentos].
[ix] Por exemplo, no nº 22 de Perspective Internationaliste, órgão da chamada "Fração Externa da CCI", pode ser lida uma contribuição de GS (que não é membro da FECCI, mas que parece estar em acordo com ela em todos os pontos essenciais) intitulada A necessária recomposição do proletariado, que cita reiteiradamente o livro de Bihr para reforçar suas afirmações.
[x] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.
[xi] Alain Bihr - Da grande noite à alternativa, Cap. 4ª : ruptura do compromisso fordista , pg.100.
[xii] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.
[xiii] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.
[xiv] Alain Bihr - Da grande noite à alternativa, Cap. 5ª : A fragmentação do proletariado, pg.104.
[xv] Ver Revista internacional nº60, 63, 67, 70 e este número.
[xvi] Evidentemente, quando considera-se, como Bihr, que os sindicatos são órgãos da classe operária e não da burguesia, os progressos logrados pela luta de classes se convertem em retrocessos. E, entretanto, curioso que pessoas como os membros da FECCI, que oficialmente reconhecem a natureza burguesa dos sindicatos, prossigam nessa apreciação.
[xvii] Ver o artigo Dificultades en aumento para el proletariado na Revista internacional nº 60.
[xviii] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.
[xix] Uma das frases preferidas de A. Bihr é que "o reformismo é algo muito sério para deixá-lo em mãos de reformistas". Se, por casualidade, ele acredita ser um revolucionário, queremos aqui desenganá-lo.
1. A resolução adotada pelo congresso anterior da CCI colocava em evidência, desde o início, como a realidade acertava um duro golpe e desmentia categoricamente as previsões otimistas dos dirigentes da classe burguesa no início da última década do século XX, particularmente após o desmoronamento desse "império do mal" constituído pelo bloco imperialista supostamente socialista. Citava a declaração, agora famosa, do presidente George Bush pai em março de 1991, anunciando o nascimento de uma "Nova Ordem Mundial" baseada no "respeito do direito internacional" e colocava em evidência seu caráter surrealista diante do caos crescente no qual está afundando hoje a sociedade capitalista. Vinte anos depois desse "profético" discurso, e particularmente desde o início desta nova década, o mundo mostrou uma imagem de caos como jamais tinha mostrado desde o final da Segunda Guerra Mundial. Com algumas semanas de intervalo, assistimos a uma nova guerra na Líbia que se somou a todos os conflitos sangrentos que têm atingido o planeta no último período; assistimos novos massacres na Costa do Marfim e também a tragédia que afetou o Japão, um dos países mais potentes e modernos do mundo. O terremoto que assolou parte desse país evidenciou, uma vez mais, que não existem "catástrofes naturais", mas consequências catastróficas a fenômenos naturais. Mostrou que a sociedade dispõe hoje de meios para construir edifícios que resistem aos tremores de terra e permitem evitar tragédias como a do Haiti no ano passado, mas mostrou também a imprevidência da qual é capaz um Estado tão avançado como o Japão. Em si mesmo, o terremoto fez poucas vítimas, porém o tsunami que o seguiu matou umas 30.000 pessoas em poucos minutos. Mais ainda, ao provocar um novo Chernobyl, colocou em evidência não só a falta de previsão da classe dominante, como também seu enfoque de aprendiz de feiticeiro, incapaz de dominar as forças que põe em movimento. A empresa Tepco, que explora a central atômica de Fukuyama, não é a primeira, e menos ainda, a única responsável pela catástrofe. É o sistema capitalista em seu conjunto (baseado na busca desenfreada de lucros, assim como na concorrência entre setores nacionais, e não sobre a satisfação das necessidades da humanidade) que é o responsável fundamental pelas catástrofes presentes e futuras sofridas pela espécie humana. No fim das contas, "o Chernobyl japonês" é uma nova demonstração da quebra definitiva do modo de produção capitalista, cuja sobrevivência é uma ameaça crescente para a sobrevivência da própria humanidade.
2. Evidentemente, é a crise atual do capitalismo mundial que expressa mais diretamente a falência histórica desse modo de produção. Há dois anos, a burguesia de todos os países foi tomada por um tremendo pânico diante da gravidade da situação econômica. A OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos) não vacilava em escrever: "A economia mundial é prisioneira da recessão mais profunda e sincronizada desde décadas" (Relatório intermediário de março de 2009). Quando se sabe com que moderação se expressa habitualmente essa venerável instituição, pode-se fazer uma idéia do pavor que a classe dominante sente diante da quebra potencial do sistema financeiro internacional, a queda brutal do comércio mundial (mais de 13% em 2009), a brutalidade da recessão das principais economias, a onda de quebras que golpeia ou ameaça empresas emblemáticas da indústria tais como General Motors ou Chrysler. Esse pavor da burguesia, a conduziu a convocar cúpulas do G20, como a de março de 2009 em Londres, que decidiu em particular duplicar as reservas do Fundo Monetário Internacional e a injeção massiva de dinheiro por parte dos Estados na economia, para salvar um sistema bancário moribundo e relançar, assim, a produção. O fantasma da "Grande Depressão dos anos 30" aparecia nas mentes, o que levava a mesma OCDE a conjurar esses demônios escrevendo: "Embora tenha se qualificado às vezes esta severa recessão mundial de "grande recessão", estamos longe de uma nova "grande recessão" como a dos anos 30, graças à qualidade e a intensidade das medidas que os governos adotam atualmente" (Ibid.). Porém como dizia a resolução do XVIII Congresso, "é próprio dos discursos da classe dominante hoje, esquecerem de seus discursos de ontem", e o mesmo relatório intermediário da OCDE da primavera de 2011 expressa um verdadeiro alívio com a restauração da situação do sistema bancário e a retomada da econômica. A classe dominante não pode fazer outra coisa. Incapaz de se dotar de uma visão lúcida, de conjunto e histórica, das dificuldades do seu sistema (uma vez que essa visão a conduziria a descobrir o beco sem saída definitivo no qual ele se encontra) se encontra limitada a comentar dia a dia as flutuações da situação imediata tentando encontrar nelas motivos de consolo. Entretanto, ao atuar assim, embora de vez em quando os meios massivos de informação adotam certo tom alarmista sobre o tema, está levada a subestimar o significado do fenômeno maior que tem vindo à luz do dia desde dois anos: a crise da dívida soberana de vários Estados europeus. De fato, esta quebra potencial de um número crescente de Estados, é uma nova etapa no afundamento do capitalismo em sua crise sem salvação. Esta coloca em relevo os limites das políticas pelas quais a burguesia conseguiu frear a evolução da crise capitalista durante várias décadas.
3. Agora, já são mais de quarenta anos que o capitalismo está enfrentando a crise. Maio de 68 na França e o conjunto de lutas proletárias, que se seguiram internacionalmente, alcançaram semelhante amplitude só porque estavam alimentados por um agravamento mundial das condições de vida da classe operária, agravamento resultante dos primeiros prejuízos da crise capitalista, em particular, o aumento do desemprego. Esta crise conheceu uma brutal aceleração em 1973-75 com a primeira grande recessão internacional do pós-guerra. Desde então, novas recessões sempre mais profundas e ampliadas golpearam a economia mundial até culminar com a de 2008-09 que rememorou nas mentes o fantasma dos anos 30. As medidas adotadas pelo G20 de março de 2009, para evitar uma "Grande Depressão", são significativas da política da classe dominante desde décadas atrás: podem ser resumidas pela injeção de massas consideráveis de créditos nas economias. Tais medidas não são novas. De fato, há mais de 35 anos, estão no próprio coração das políticas aplicadas pela classe dominante para tentar escapar da principal contradição do modo de produção capitalista: sua incapacidade para encontrar mercados solventes capazes de absorver sua produção. A recessão de 1973-75 foi ultrapassada pelos créditos massivos dedicados aos países do Terceiro Mundo, porém, desde início dos anos 80, com a crise da dívida desses países, a burguesia dos países mais desenvolvidos teve que renunciar a esse pulmão da sua economia. Naquele momento, foram os Estados dos países mais avançados, e, em primeiro lugar, o dos Estados Unidos, que se destacaram como "locomotivas" da economia mundial. Os "reaganomics" (política neoliberal da administração Reagan) do início dos anos 80, que tinham permitido uma retomada significativa da economia desse país, se baseavam em um aumento inédito e considerável dos déficits orçamentários enquanto Ronald Reagan afirmava que "o Estado não era a solução, mas o problema". Ao mesmo tempo, os déficits comerciais igualmente consideráveis dessa potência, permitiam que as mercadorias produzidas por outros países encontrassem saídas. Durante os anos 90, os "tigres" e "dragões" asiáticos (Cingapura, Taiwan, Coreia do Sul, etc.) acompanharam por um tempo os Estados Unidos nesse papel de "locomotiva": sua taxa de crescimento espetacular os convertia em destino importante para as mercadorias dos países industrializados. Porém, esta "história de sucesso" foi fabricada ao preço de um endividamento considerável que conduziu a esses países a maiores convulsões em 1997 da mesma maneira que a Rússia, "nova" e "democrática", que esteve em moratória, decepcionou cruelmente aos que haviam apostado no "fim do comunismo" para estimular duradouramente a economia mundial. No início dos anos 2000, o endividamento conheceu uma nova aceleração, em particular graças ao desenvolvimento espantoso dos empréstimos hipotecários na construção em vários países, particularmente nos Estados Unidos. Então esse país acentuou seu papel de "locomotiva da economia mundial", mas ao preço de um crescimento abismal das dívidas – particularmente da população norte-americana - baseada sobre todo tipo de "produtos financeiros" supostamente considerados para prevenir contra os riscos de inadimplência. Na realidade, a dispersão dos créditos duvidosos não suprimiu em nada o caráter de espada de Dâmocles apontada sobre a economia norte-americana e mundial. Muito pelo contrário, essa dispersão não fez mais que acumular "ativos tóxicos" no capital dos bancos que estiveram na origem do afundamento desses a partir de 2007 e estiveram na origem da brutal recessão mundial de 2008-2009.
4. Assim, como dizia a resolução adotada no congresso anterior: "Não é pois a crise financeira o que originou a recessão atual. Muito ao contrário, o que faz a crise financeira é ilustrar que a fuga em direção ao endividamento, que permitiu superar a superprodução, não pode prosseguir eternamente. Cedo ou tarde, a "economia real" se vinga, isto significa que a base das contradições do capitalismo, a superprodução, a incapacidade dos mercados de absorver a totalidade das mercadorias fabricadas, volta para primeira fila" [1]. E esta mesma resolução apontava, após a cúpula do G20 de março de 2009, que: "A fuga cega na dívida é um dos ingredientes da brutalidade da recessão atual. A única "solução" que a burguesia é capaz de instaurar é... uma nova corrida cega no endividamento. O G20 não pôde inventar uma solução à crise pela simples razão de que esta não tem solução."
A crise das dívidas soberanas que está se propagando hoje, o fato dos Estados serem incapazes de pagar suas dívidas, constituem uma demonstração espetacular dessa realidade. A quebra potencial do sistema bancário e a recessão obrigaram todos os Estados a injetar somas consideráveis na sua economia, ao mesmo tempo em que os lucros estiveram em queda livre devido ao retrocesso da produção. Por isso, os déficits públicos conheceram, na maioria dos países, um aumento considerável. Para os mais expostos dentre eles, como Irlanda, Grécia ou Portugal, isto significou uma situação de falência potencial; a incapacidade de pagar seus funcionários e de saldar suas dívidas. Os bancos agora se negam a conceder-lhes novos empréstimos, a menos que a taxas exorbitantes, já que não tem nenhuma garantia de que serão reembolsados. "Os planos de salvação", por parte do Banco Europeu e do Fundo Monetário Internacional, não são mais que novas dívidas cujo reembolso se acrescenta ao das dívidas anteriores. É algo mais que um círculo vicioso; é uma espiral infernal. A única "eficácia" desses planos está no ataque sem precedentes que esta representa contra os trabalhadores: contra os funcionários cujos salários e outras verbas são drasticamente reduzidos, mas também contra o conjunto da classe operária por meio de cortes tremendos na educação, na saúde e nas pensões de aposentadoria assim como através de aumentos maiores nos impostos. Porém todos esses ataques antioperários, ao reduzir massivamente o poder de compra dos trabalhadores, não poderão ser nada mais que uma contribuição suplementar para uma nova recessão;
5. A crise da dívida soberana dos PIIGS (Portugal, Islândia, Irlanda, Grécia, Espanha) não é senão uma parte ínfima do terremoto que ameaça a economia mundial.
Não é porque se beneficiam ainda, no momento da nota AAA no índice de confiança das agências de qualificação (essas mesmas agências, que até a véspera da debandada dos bancos em 2008, lhes tinham dado a nota máxima), que estão muito melhor às grandes potências industriais. No final de abril de 2011, a agência Standard and Poor’s emitia uma opinião negativa a respeito da perspectiva de um Quantitative Easing nº 3, ou seja, um terceiro plano de recuperação do Estado federal norte-americano destinado a apoiar a economia. Em outras palavras, a primeira potência mundial corre o risco de perder a confiança "oficial" quanto a sua capacidade de resgatar suas dívidas, a não ser com um dólar fortemente desvalorizado. De fato, de forma oficiosa, essa confiança começa a falhar com a decisão da China e do Japão, desde o outono passado, de comprar massivamente ouro e demais matérias primas em lugar do bônus do Tesouro americano, o que obriga hoje o Banco Federal americano a comprar entre 70 e 90% da sua emissão. E esta perda de confiança se justifica perfeitamente quando se constata o incrível nível de endividamento da economia norte-americana: em janeiro de 2010, o endividamento público (Estado federal, Estados, municípios, etc.) representa cerca de 100% do PIB, o que é apenas uma parte do endividamento total do país (que inclui também as dívidas das famílias e das empresas não financeiras) que alcança 300% do PIB. E a situação não é melhor para os demais países avançados em que a dívida total representa, na mesma data, valores de 280% do PIB para a Alemanha, 320% para a França, 470% para o Reino Unido e Japão. Neste país, só a dívida pública alcança 200% do PIB. E desde então, para todos os países, a situação só tem se agravado com os diversos planos de retomada.
Assim, a quebra dos PIIGS é só a ponta visível da falência de uma economia mundial que não pode sobreviver, desde décadas, a não ser por uma fuga desesperada em direção ao endividamento. Os Estados que dispõem da sua própria moeda como o Reino Unido, Japão e evidentemente os Estados Unidos, puderam mascarar essa falência fazendo funcionar a máquina de fazer notas a todo vapor (contrariamente aos da Zona Euro, como Grécia, Irlanda ou Portugal, que não dispõem de semelhante possibilidade). No entanto, essa trapaça permanente dos Estados, que se converteram em verdadeiros falsificadores de moedas, acompanhando seu chefe de gangue que é o Estado norte-americano, não poderá continuar indefinidamente da mesma maneira; assim como não puderam prosseguir as manobras do sistema financeiro, como ficou demonstrado na sua crise de 2008, que quase o fez implodir. Uma das manifestações visíveis dessa realidade está na aceleração atual da inflação mundial. Ao se passar da esfera dos bancos à dos Estados, a crise do endividamento não faz senão marcar o ingresso do modo de produção capitalista em uma nova fase da sua crise aguda na qual vão se agravar, ainda mais consideravelmente, a violência e a extensão das suas convulsões. Não há "saída nem luz ao fim do túnel" para o capitalismo. Este sistema não pode senão arrastar a sociedade para uma barbárie sempre crescente.
6. A guerra imperialista continua sendo a maior manifestação da barbárie para onde o capitalismo decadente está precipitando a sociedade humana. A trágica história do século XX constitui a manifestação mais evidente disso: diante do beco sem saída histórico que é seu modo de produção, diante da exacerbação das rivalidades comerciais entre os Estados, a classe dominante se dirige a uma fuga cega direcionada para as políticas guerreiras, para os enfrentamentos militares. Para a maior parte dos historiadores, inclusive para os que não se reivindicam do marxismo, fica claro que a Segunda Guerra Mundial é filha da Grande Depressão dos anos 30. Do mesmo modo, o agravamento das tensões imperialistas no final dos anos 70 e início dos anos 80, entre os dois blocos de então, o norte americano e o russo (invasão do Afeganistão pela URSS em 1979, cruzada contra o Império do Mal da administração Reagan), resultava em grande parte do retorno da crise aberta da economia no final dos anos 60. No entanto, a história tem mostrado que esse laço entre agravamento dos enfrentamentos imperialistas e crise econômica do capitalismo não é direto ou imediato. A intensificação da Guerra Fria se encerrou finalmente pela vitória do bloco ocidental e a implosão do bloco adversário, o que por sua vez gerou a própria desagregação do primeiro. Embora escapasse da ameaça de uma nova guerra generalizada que poderia ter desembocado no desaparecimento da espécie humana, o mundo não tem conseguido se colocar a salvo de explosão de tensões e enfrentamentos militares: o fim dos blocos rivais significou o fim da disciplina que conseguiam impor nos seus respectivos territórios. Desde então a arena imperialista planetária está dominada pela tentativa da primeira potência mundial em manter sua liderança no mundo e, em primeiro lugar, manter sua liderança sobre seus antigos aliados. Em 1991, a primeira guerra do Golfo já tinha colocado em evidência esse objetivo, mas a história dos 90, particularmente, a guerra na Iugoslávia, mostrou a falência dessa ambição. A "guerra contra o terrorismo mundial", declarada pelos Estados Unidos, após os atentados de 11 de setembro de 2001, pretendia ser uma nova tentativa para reafirmar sua liderança, porém seu fracasso no Afeganistão e Iraque destacou uma vez mais sua incapacidade para conseguir.
7. Esses fracassos dos Estados Unidos não desanimaram essa potência em prosseguir a política ofensiva implementada desde o início dos anos 90 e que o converte no principal fator de instabilidade do cenário mundial. Como dizia a resolução do congresso anterior: "Diante desta situação, a única coisa que Obama e sua administração poderão fazer é prosseguir a política belicista de seus predecessores... Obama previu retirar as forças norte-americanas do Iraque, mas foi para reforçar seu recrutamento no Afeganistão e no Paquistão." O que foi demonstrado recentemente com a execução de Bin Laden por um comando norte-americano em território paquistanês. É evidente que essa operação "heroica" tem uma vocação eleitoral a um ano e meio das eleições norte-americanas. Desarma particularmente as críticas dos republicanos que recriminam Obama por sua indolência na afirmação da supremacia dos Estados Unidos no plano militar; críticas que se radicalizaram com a intervenção na Líbia onde a liderança da operação tinha sido deixada em mãos da coalizão franco-britânica. Também significa que, após ter feito Bin Laden desempenhar o papel de "mal" da história durante 10 anos, já era tempo de liquidá-lo sob pena de se passar por verdadeiros impotentes. Isso permitiu também a potência norte-americana provar que ela era a única que tinha os meios militares, tecnológicos e logísticos para lograr esse tipo de operação, precisamente no momento em que França e o Reino Unido tinham dificuldades para levar a efeito sua operação anti-Kadafi. Mostrava ao mundo que não vacilaria em violar a "soberania nacional" de um "aliado", que estava disposto a estabelecer as regras do jogo em qualquer região onde considerar necessário. Por fim, conseguia obrigar a maior parte dos governos do mundo a saudar, frequentemente de mal grado, o valor dessa proeza.
8. Dito isso, o efeito logrado por Obama no Paquistão não lhe permitirá estabilizar a situação na região, particularmente no próprio Paquistão onde o menosprezo sofrido pelo "orgulho nacional" pode atiçar os antigos conflitos entre diversos setores da burguesia e do aparelho estatal. Muito menos a morte de Bin Laden permitirá aos Estados Unidos, nem a outros países comprometidos no Afeganistão, tomar o controle do país e assegurar a autoridade de um governo Karzai, totalmente minado pela corrupção e o tribalismo. Mas no geral, não permitirá, de modo algum, colocar um freio nas tendências do "cada um por si" e à contestação da autoridade da primeira potência mundial tal como continua se manifestando, como se pode ver recentemente com a constituição de uma série de alianças pontuais surpreendentes: aproximação entre Turquia e Irã, aliança entre Brasil e Venezuela (estratégica e anti-EUA), entre Índia e Israel (militar e saída do isolamento), entre China e Arábia Saudita (militar e estratégica), etc. Em particular, não poderia desanimar a China em fazer prevalecer suas ambições imperialistas que permite seu estatuto recente de grande potência industrial. É claro que esse país, apesar da sua importância demográfica e econômica, não tem, de modo algum, os meios militares ou tecnológicos, e não está próximo de ter, para se constituir como uma nova cabeça de bloco. No entanto, tem os meios de perturbar, ainda mais, as ambições norte-americanas – quer seja na África, no Irã, na Coreia do Norte ou na Birmânia – e colocar sua pedra na instabilidade crescente que caracteriza as relações imperialistas. A "nova ordem mundial" prevista há vinte anos por George Bush pai, e sonhada por este sob a égide dos Estados Unidos, só pode se apresentar, cada vez mais, como um "caos mundial", um caos que as convulsões da economia capitalista agravarão ainda mais.
9. Diante do caos que está afetando a sociedade burguesa em todos os planos (econômicos, da guerra e também do meio ambiente, como acabamos de ver no Japão), só o proletariado pode aportar uma solução, sua solução: a revolução comunista. A crise insolúvel da economia capitalista, as convulsões cada vez maiores que vão se expressar, constituem condições objetivas para esta. Por um lado, porque obriga a classe operária a desenvolver suas lutas de forma crescente diante dos ataques dramáticos que vai sofrer por parte da classe exploradora. Por outro lado, permitindo compreender que essas lutas adquiram todo seu significado como momentos de preparação do seu enfrentamento decisivo com um modo de produção – o capitalismo – condenado pela história, tendo em vista a sua derrubada.
No entanto, como dizia a resolução do Congresso Internacional anterior: "O caminho que conduz aos combates revolucionários e à derrubada do capitalismo é ainda longo e difícil. [...] Para que a possibilidade de que a revolução comunista possa ganhar um terreno significativo na classe trabalhadora, é necessário que esta possa adquirir confiança nas suas próprias forças, e isso passa pelo desenvolvimento das suas lutas massivas". De forma muito mais imediata, a resolução apontava que: "a forma principal que está tomando hoje esse ataque, os desempregos massivos, não favorece, em um primeiro tempo, a emergência de tais movimentos [...] Em uma segunda etapa, quando [a classe trabalhadora] será capaz de resistir às chantagens da burguesia, quando se imporá a ideia de que só a luta unida e solidária pode frear a brutalidade dos ataques da classe dominante, sobretudo quando esta vai tentar fazer com que os trabalhadores paguem os colossais déficits orçamentários que estão se acumulando por causa dos planos de salvação dos bancos e retomada da economia, será então que combates operários de grande amplitude poderão desenvolver-se melhor."
10. Os dois anos que nos separam do congresso anterior têm confirmado amplamente esta previsão. Nesse período, não se conheceu lutas de amplitude contra o desemprego massivo e contra o auge sem precedentes do desemprego sofrido pela classe operária nos países mais desenvolvidos. Em contrapartida, é a partir dos ataques feitos diretamente pelos governos ao aplicar planos "de enxugamento das contas públicas" que começaram a se desenvolver lutas significativas. Esta resposta ainda é muito tímida, particularmente ali onde esses planos de austeridade tomaram as formas mais violentas (países como Grécia ou Espanha, por exemplo), onde a classe operária tinha mostrado, não obstante, em um passado recente, uma combatividade relativamente grande. De certa forma, parece que a própria brutalidade dos ataques provoca um sentimento de impotência nas filas operárias, especialmente que são aplicadas por governos "de esquerda". Paradoxalmente, é lá onde os ataques parecem ser os menos violentos (por exemplo, na França), que a combatividade operária se expressou mais massivamente com o movimento contra a reforma das aposentadorias no outono de 2010.
11. Ao mesmo tempo, os movimentos mais massivos que se tem conhecido no curso do último período não vieram dos países mais industrializados, mas de países da periferia do capitalismo, principalmente de vários países do mundo árabe, e mais precisamente da Tunísia e Egito, onde, finalmente, depois de ter tentado sufocá-los através de uma repressão feroz, a burguesia teve que despedir os ditadores reinantes. Esses movimentos não eram lutas operárias clássicas como as que esses países já tinham conhecido recentemente (por exemplo, as lutas em Gafsa, na Tunísia, em 2008, ou as greves massivas da indústria têxtil no Egito, durante o outono de 2007, que encontraram a solidariedade ativa por parte de muitos outros setores). Esses movimentos têm tomado com frequência a forma de revoltas sociais nas quais se encontram associados todos os tipos de setores da sociedade: trabalhadores do setor público e do privado, desempregados, mas também pequenos comerciantes, artesãos, profissionais liberais, a juventude estudantil etc. É por isso que o proletariado, na maior parte do tempo, não apareceu diretamente identificado (como de forma distinta esteve, por exemplo, nas greves no Egito ao findar-se as revoltas), menos ainda assumindo o papel de força dirigente. No entanto, na origem desses movimentos (o que se refletia em muitas das reivindicações colocadas) se encontra fundamentalmente as mesmas coisas que estão na origem das lutas operárias nos demais países: o considerável agravamento da crise, a miséria crescente que ela provoca no conjunto da população não exploradora. E se, em geral, o proletariado não apareceu diretamente como classe nesses movimentos, sua marca estava presente nos países nos quais tem uma importância significativa, particularmente pela profunda solidariedade que manifestou durante as revoltas, por sua capacidade de evitar que se lançassem em atos de violência cega e desesperada apesar da terrível repressão que tiveram de enfrentar. Afinal de contas, se a burguesia na Tunísia e no Egito resolveu finalmente – seguindo os bons conselhos da burguesia norte-americana – despedir os velhos ditadores, foi em grande medida, devido à presença da classe operária nesses movimentos. Uma das provas, de modo negativo, dessa realidade, está na saída que tiveram os movimentos na Líbia: não a derrubada do velho ditador Kadafi, mas sim o enfrentamento militar entre frações burguesas na qual os explorados são envolvidos como bucha de canhão. Nesse país, uma grande parte da classe operária estava composta de trabalhadores imigrantes (egípcios, tunisianos, chineses, subsaarianos, bangladeshianos) cuja reação principal foi fugir da repressão que se desencadeou ferozmente desde os primeiros dias.
12. A saída beligerante do movimento na Líbia, com a participação dos países da OTAN, permitiram que a burguesia promovesse campanhas de mistificação em direção aos operários dos países avançados, cuja reação espontânea tinha sido de se sentir solidários com os manifestantes da Tunísia e do Cairo, saudando sua valentia e determinação. Em especial, a presença massiva das novas gerações no movimento, particularmente da juventude estudantil cujo futuro está feito de desemprego e de miséria, fazia eco aos recentes movimentos que animaram aos estudantes em vários países europeus no período recente: movimento contra o CPE na França na primavera de 2006, revoltas e greves na Grécia no final de 2008, manifestações e greves dos desempregados e estudantes na Inglaterra no final de 2010, os movimentos estudantis na Itália em 2008 e nos Estados Unidos em 2010 etc. Essas campanhas burguesas para desnaturalizar, diante dos olhos dos operários de outros países, o significado das revoltas na Tunísia e no Egito, foram evidentemente facilitadas pelas ilusões que continuam pesando fortemente sobre a classe operária desses países: as ilusões nacionalistas, democráticas e sindicalistas, em particular, como foi o caso em 1980-81 com a luta do proletariado polonês.
13. Esse movimento acontecido há 30 anos permitiu à CCI elaborar sua análise crítica da teoria dos "elos mais fracos" desenvolvida em particular por Lênin no momento da revolução na Rússia. A CCI colocou em relevo, se baseando nas posições elaboradas por Marx e Engels, que será dos países centrais do capitalismo e, particularmente, dos velhos países industriais da Europa, que virá o sinal da revolução proletária mundial, devido à concentração do proletariado desses países e mais ainda devido à sua experiência histórica, e que lhe fornecem as melhores armas para acabar desmontando as armadilhas ideológicas mais sofisticadas elaboradas desde há muito tempo pela burguesia. Assim, uma das etapas fundamentais do movimento da classe operária mundial no futuro está constituída não só pelo desenvolvimento das lutas massivas nos países centrais da Europa ocidental, como também pela sua capacidade para desmontar as armadilhas democrática e sindical, particularmente pela tomada em mãos das lutas pelos próprios trabalhadores. Esses movimentos serão o farol para a classe operária mundial, incluindo a classe operária da principal potência capitalista, Estados Unidos, cujo afundamento na miséria crescente, uma miséria que já afeta dezenas de milhões de trabalhadores, vai transformar o "sonho americano" em verdadeiro pesadelo.
CCI (maio de 2011)
Ligações
[1] https://pt.internationalism.org/icconline/2006_estudiantes_franca
[2] https://es.internationalism.org/node/2182
[3] http://www.moreira.pro.br/textose27a.htm
[4] https://pt.internationalism.org/content/23/os-sindicatos-no-capitalismo-decadente
[5] https://www.moreira.pro.br]
[6] https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/XVIII_congresso_da_CCI_rumo_ao_agrupamento_das_for
[7] https://en.internationalism.org/forum/4515/occupy-wall-street-protests
[8] https://pt.internationalism.org/content/313/mobilizacoes-dos-indignados-na-espanha-e-suas-repercussoes-no-mundo-um-movimento
[9] https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/Movimento_Cidadao_Democracia_Real_Ja
[10] https://news.yahoo.com/occupy-protests-seismic-effect-062600703.html
[11] https://en.internationalism.org/internationalismusa/201110/4536/struggles-verizon
[12] https://pt.internationalism.org/tag/1/6/Organiza%C3%A7%C3%A3o-revolucionaria
[13] https://en.internationalism.org/worldrevolution/201103/4235/democracy-arms-gaddafi-s-brutal-repression
[14] https://en.internationalism.org/wr/342/libya
[15] https://en.internationalism.org/wr/342/leftists-gaddafi
[16] https://pt.internationalism.org/ICCOline/2008/degeneracao_da_Revolucao_Russa.html
[17] https://es.internationalism.org/cci-online/201106/3107/debate-sobre-el-movimiento-15m
[18] https://www.burbuja.info/inmobiliaria/temas/tenemos-18-millones-de-excluidos-o-pobres-francisco-lorenzo-responsable-de-caritas.230828/
[19] https://es.internationalism.org/cci-online/201106/3128/comunicado-de-lxs-detenidxs-en-la-manifestacion-del-15-de-mayo-de-2011
[20] https://fr.internationalism.org/content/4696/communique-methodes-policieres-redige-des-personnes-arretees-a-suite-manifestation-du
[21] https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/Movimento_Cidadao_Democracia_Real_Ja]
[22] https://www.google.com.br/url?q=https://pt.wiktionary.org/wiki/%25C3%25A1gora&sa=X&ei=_fQtTsTMCcjj0gGO8LzkDg&ved=0CDIQngkwAA&usg=AFQjCNHW0N_7XuCp9Siz1AG6hpfgEtKslw
[23] https://es.internationalism.org/cci-online/201106/3120/carta-abierta-a-las-asambleas
[24] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200510/223/la-descomposicion-fase-ultima-de-la-decadencia-del-capitalismo
[25] https://pt.internationalism.org/content/280/o-que-sao-os-conselhos-operarios
[26] https://esparevol.foroactivo.com/t317-a-proposito-de-un-protocolo-anti-violencia
[27] https://asambleaautonomazonasur.blogspot.com/
[28] https://infopunt-vlc.blogspot.com/2011/06/19-j-bloc-autonom-i-anticapitalista.html
[29] https://es.internationalism.org/content/910/huelga-del-metal-de-vigo-los-metodos-proletarios-de-lucha
[30] https://es.internationalism.org/node/2585
[31] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200806/2281/mayo-del-68-y-la-perspectiva-revolucionaria-1a-parte-el-movimiento
[32] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200904/2483/las-revueltas-de-la-juventud-en-grecia-confirman-el-desarrollo-de-
[33] https://es.internationalism.org/cci-online/201107/3164/notas-preliminares-para-un-analisis-del-movimiento-de-asambleas-populares-tpt
[34] https://kaosenlared.net/
[35] https://es.internationalism.org/node/2142
[36] https://www.dailymotion.com/video/xlcg84
[37] http://www.jacquesbgelinas.com/index_files/Page3236.htm
[38] https://www.abcbourse.com/apprendre/1_vad.html
[39] https://es.internationalism.org/revista-internacional/201102/3054/francia-gran-bretana-tunez-el-porvenir-es-que-la-clase-obrera-desa
[40] https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/O_que_esta_acontecendo_no_Oriente_Medio
[41] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_que_sao_os-Conselhos_Operários
[42] https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/A_cultura_do_debate_uma_arma_da_luta_da_classe
[43] https://www.arabawy.org/
[44] https://www.theguardian.com/commentisfree/2011/feb/14/egypt-protests-democracy-generals
[45] https://gulfnews.com/news/region/egypt/labour-unions-boost-egyptian-protests-1.760011
[46] https://www.davidmcnally.org/?p=354
[47] https://es.internationalism.org/content/1915/egipto-el-germen-de-la-huelga-de-masas
[48] https://es.internationalism.org/accion-proletaria/200711/2101/luchas-en-egipto-una-expresion-de-la-solidaridad-y-la-combatividad-obr
[49] https://es.internationalism.org/content/2271/amenaza-de-hambrunas-por-la-inflacion-crisis-capitalista-y-respuesta-obrera
[50] https://www.europe-solidaire.org/spip.php?article20203
[51] https://www.guardian.co.uk/world/2011/feb/05/egypt-protest-demands-mubarak-departure]
[52] https://es.internationalism.org/cci-online/201106/3110/los-anarquistas-y-el-15m-reflexiones-y-propuestas
[53] https://es.internationalism.org/cci-online/201106/3119/control-de-las-asambleas-en-valencia
[54] https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/O_que_esta_acontecendo_no_Oriente_Medio#_ftn1
[55] https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/O_que_esta_acontecendo_no_Oriente_Medio#_ftn3
[56] https://www.youtube.com/watch?v=G18EmYGGpYI
[57] mailto:[email protected]
[58] https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Resolucao_sobre_a_situacao_internacional_XVIIIe_congresso_da_CCI