Comentários sobre o livro “Descaminhos da esquerda: Da centralidade do trabalho à centralidade da política”

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Publicamos a seguir nossos comentários sobre o livro Descaminhos da esquerda: Da centralidade do trabalho à centralidade da política de Ivo Tonet e Adriano Nascimento. [1]

A questão essencial que coloca este livro é de grande interesse para o futuro da luta de classes e também o da humanidade, que depende desta:

  • "Como se explica esse abandono do ideal revolucionário? Como se explica que partidos, que pretendiam liderar a mudança radi­cal do mundo, tenham se emasculado tanto, transformando-se em instrumentos de reprodução da ordem social do capital? Como se explica essa crença absurda no Estado como instrumento de mudança do mundo?" (Tonet e Nascimento, p. 14)

Segundo a nossa própria interpretação da tese dos autores do livro, a situação que descrevem seria resultado de um abandono progressivo  do que fundamenta a essência revolucionária desta classe (por excelência a classe do trabalho associado), isto é, seu lugar no seio das relações de produção. O enfraquecimento da dimensão "social" da luta do proletariado ter-se-ia produzido assim em benefício da sua dimensão "política". Os autores resumem isso através da formulação seguinte:

  • "Parece-nos (...) que existe, nesse processo, um fio que corre ao longo de todo ele e que podemos denominar: o deslocamento da Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política. Um processo complexo, que envolve aspectos econômicos, políticos, sociais e ideológicos e que acabou por colocar a classe trabalhadora de joelhos face ao capital." (Ibid., p. 14)

Um conjunto de pontos de vista essenciais defendidos no livro correspondem, segundo o que pensamos, às necessidades da luta histórica do proletariado para sua emancipação: a visão do comunismo, a defesa do materialismo histórico, a insistência sobre a grande importância do trabalho associado da classe operária na transformação social depois da revolução, a luta contra a veneração do Estado. Temos, entretanto, desacordos com os autores sobre algumas questões, os quais explicitaremos ao longo de nossos comentários. Assinalamos só um entre eles, já nesta introdução: a crítica feita pelos autores à orientação "por demais política" tomada pelas organizações que se reivindicam do movimento operário, particularmente desde a fundação e o desenvolvimento dos partidos social-democratas no final do século XIX. Para nós, não se trata de uma dimensão "por demais política", mas de uma política específica proveniente de organizações operárias cada vez mais gangrenadas pelo oportunismo. Pior ainda, trata-se também de uma política claramente a serviço da perpetuação deste sistema travada por ex-organizações operárias que não têm mais nada a ver com a defesa dos interesses históricos do proletariado e que guardam de "operário" só o discurso para melhor mistificar a classe revolucionária. Por fim, e ligado ao que precede, há que se constatar que um bom conhecimento do marxismo não impediu os autores do livro de sucumbir às mistificações da burguesia, retomando por sua conta as mentiras quanto ao caráter revolucionário de confrontações que, na realidade, só foram lutas entre frações rivais da burguesia, as quais levaram ao estabelecimento de regimes capitalistas de Estado como na China ou em Cuba. Ao fazer isso, os autores apresentam autênticos servidores do capital nacional, como Mao ou Fidel Castro, como revolucionários, enquanto estes nunca tiveram nada a ver com o movimento revolucionário da classe operária para sua emancipação.

Durante a nossa analise crítica, não nos satisfaremos em afirmar nosso acordo com as ideias que apoiamos, mas argumentaremos em seu favor, notadamente através de referências à obra de Marx. Este "apoio" pode não convir aos autores do livro ou àqueles que compartilham as opiniões expressas por ele. Entendemos isso muito bem e, neste caso, incitamos os mesmos para que se manifestem e alimentem o debate. Esta chamada à crítica se aplica mais ainda à nossa crítica das ideias do livro que não compartilhamos.

O proletariado, a classe portadora do comunismo

  • "É sabido que a elaboração marxiana está vinculada, desde o seu nascedouro, com a classe trabalhadora. Opondo-se, precisamente, ao caráter especulativo da filosofia até então vigente, Marx afirma a sua decisão de partir "da terra para o céu", "dos indivíduos concretos, sua ação e suas condições materiais de vida..." e não de especulações ou situações imaginárias, para o exame do processo histórico-social na sua concretude." (Tonet e Nascimento, p. 20)

Com efeito, o que permitiu a Marx superar suas hesitações sobre o comunismo foi o reconhecimento de que existia na sociedade uma força com um interesse material para o comunismo. Dado que o comunismo tinha deixado de ser a abstração dogmática, o simples belo ideal dos utopistas, o papel dos comunistas não se reduzia mais a pregar contra os danos do capitalismo e a favor dos benefícios do comunismo. Significava identificar-se com as lutas da classe operária, mostrando ao proletariado "porque luta" e como "deve adquirir a consciência" dos objetivos finais de sua luta. A adesão de Marx ao comunismo se confunde com sua adesão à causa do proletariado que é a classe portadora do comunismo. [2]

A exposição clássica de sua posição se encontra na passagem final de A crítica da filosofia do direito de Hegel. Apesar deste artigo ter sido consagrado à questão de saber qual força social permitiria à Alemanha se emancipar de suas cadeias feudais, a resposta dada era na realidade mais adaptada à questão: Como a humanidade podia se emancipar do capitalismo? Com efeito, desenvolve que:

"a possibilidade positiva da emancipação alemã "reside"na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a dissolução de todos os estados; de uma esfera que possui um carácter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas simplesmente ao título humano; (...) de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu objectivo mediante a recuperação total do homem. Esta dissolução da sociedade como uma classe especial é o proletariado.[3]

O comunismo, a elevação da humanidade às suas maiores capacidades criativas

  • "a elevação do patamar de liberdade exige a extinção da própria sociedade civil, marcada pela existência das classes sociais, mediante o estabelecimento da verdadeira comunidade humana, o momento real da efetiva interatividade entre os homens ativos" (Tonet e Nascimento, p. 109)

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, depois de ter examinado as diversas facetas da alienação humana, Marx dedicou-se à crítica das concepções do comunismo, rudimentares e inadequadas, que predominavam no movimento proletário dessa época. Marx rechaçou as concepções herdadas de Babeuf que os adeptos de Blanqui continuavam a defender, pois tendiam a apresentar o comunismo como um nivelamento geral por baixo, uma negação da cultura em que "a condição do trabalhador não é abolida, mas generalizada a todos os homens[4]. Nesta concepção, todo mundo devia se tornar trabalhador assalariado sob a dominação de um capital coletivo, da "comunidade como capitalista universal[5]

Em virtude de Marx nunca ter publicado pessoalmente os Manuscritos Econômico-Filosóficos e que nesta obra tratasse de questões aparentemente pouco desenvolvidas nos seus escritos posteriores, alguns supuseram que esta obra expressava um Marx imaturo, feuerbachiano, até hegeliano, que o Marx posterior, mais maduro e científico, teria rechaçado de maneira decisiva. Os principais defensores deste ponto de vista foram ... os stalinistas, e particularmente Althusser, seu digno teórico francês nos anos 1960-70. Segundo eles, o que Marx abandonou essencialmente é a concepção da natureza humana que se encontra nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, e em particular a noção de alienação. [6]

É óbvio que tal ponto de vista não pode ser considerado independentemente da natureza de classe burguesa do stalinismo. A crítica do trabalho alienado nos Manuscritos Econômico-Filosóficos está intimamente ligada à crítica do "comunismo de quartel", um comunismo em que a comunidade se torna capitalismo abstrato pagando salários, visão do comunismo que foi defendida por autênticas correntes proletários imaturas como os Blanquistas nessa época. [7] Marx condena francamente tais visões do comunismo nos Manuscritos Econômico-Filosóficos pois, para ele, o comunismo só tinha sentido ao acabar com a aniquilação das capacidades criativas do homem e transformar o fardo do trabalho numa atividade livre e alegre.

Ao rechaçar essas concepções, Marx já se antecipava os argumentos que os revolucionários tiveram que desenvolver no século XX para demonstrar a natureza capitalista dos regimes ditos "comunistas" do ex-bloco do Leste (Ressalte-se que estes últimos foram produtos monstruosos de uma contrarrevolução burguesa e não a expressão de um movimento operário imaturo). [8]

Marx também criticou as versões mais "democráticas" e sofisticadas do comunismo como aquelas que Considérant [9] e outros desenvolveram, pois eram "de natureza ainda política"; quer dizer, que estas não propunham mudanças radicais das relações sociais; só propunham mudanças "ainda incompletas e influenciadas pela propriedade privada, isto é, pela alienação do homem.[10]

O materialismo histórico

  • "(...) para Marx, a forma concreta do traba­lho (as relações que os homens estabelecem entre si no proces­so de transformação da natureza) será sempre a raiz, o fundamento a partir do qual se erguerá a totalidade do edifício social" (Tonet e Nascimento, p. 22)

Um ano depois dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx e Engels desenvolvem em A Ideologia alemã uma visão coerente das bases práticas e objetivas do movimento da história (e, portanto, das diferentes etapas da alienação humana). A história se apresentava agora claramente como uma sucessão de modos de produção, desde a comunidade tribal até o feudalismo e capitalismo passando pela sociedade antiga. O que constituía o elemento dinâmico deste movimento não era mais as ideias ou os sentimentos humanos, mas a produção material das necessidades vitais:

"(...) o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder "fazer história". Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos.[11]

O Prefácio à Contribuição à Crítica da economia política fornece, concentradadamente, o quadro de compreensão da origem das diferentes formações sociais que se sucederam desde o comunismo primitivo, em ligação com o desenvolvimento das forças produtivas:

"(...) na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral[12].

Também é a chave da compreensão da ligação entre a consciência e as condições materiais de existência, portanto, da consciência das classes revolucionárias no seio destas sociedades:

"Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência.... é preciso (...) explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção[13]

Este procedimento em relação à história não descarta o papel ativo da consciência, da crença e das instituições políticas e jurídicas, nem a realidade de seu impacto sobre as relações sociais e o desenvolvimento das forças produtivas. [14]

A consciência de classe

Esta questão não é abordada explicitamente no livro. Consagramos, entretanto, a esta algumas linhas na continuação do materialismo histórico, na medida em que tal abordagem teórica é indispensável para fundar o fato de que uma análise da dinâmica da luta de classes não pode ser limitada a um estudo de suas vanguardas consideradas em si. Com efeito, mesmo se em certas circunstâncias sua intervenção pode ser decisiva, não são as vanguardas que fazem o movimento operário (ao contrário da visão desenvolvida por Trotsky no seu Programa de Transição em 1938, totalmente alheia ao método marxista, segundo a qual, a crise do movimento revolucionário resumir-se-ia à crise de sua direção).

A consciência histórica emerge da necessidade do proletariado adquirir a consciência total da realidade a partir de seu ponto de vista de classe. Tal conhecimento, entretanto não lhe é espontaneamente dado. Pelo contrário, é um processo que se sintoniza com o desenvolvimento heterogêneo e doloroso de sua prática e teoria que são confrontadas, desde o início, às pressões coercitivas da burguesia.

Como classe explorada, o proletariado sofre um desprovimento total no seio da sociedade que o determina a ser a primeira vítima da ideologia burguesa. A contradição dialética que existe entre sua situação de classe revolucionária e de classe explorada resulta na impossibilidade de desenvolver sua consciência segundo o princípio estável de uma ideologia ou de uma série de receitas práticas. Assim, o proletariado (que é ao mesmo tempo sujeito e objeto do conhecimento) só toma consciência de sua situação num processo real ligado às condições materiais de sua existência social.

São as condições objetivas e a presença sempre opressora da ideologia dominante que obrigam o proletariado a segregar as minorias revolucionárias, como parte integrante de sua tendência a se constituir em classe revolucionária, para acelerar o processo de teorização de suas aquisições históricas e sua divulgação no seio das lutas. A consciência de classe não é um "espelho" da realidade, reflexo mecânico da situação econômica da classe operária (nestas condições, não teria nenhum papel ativo), e não é espontaneamente produzida no solo da exploração capitalista. [15]

Contra a concepção que transforma o marxismo numa ideologia do fatalismo histórico, que faz um culto da "espontaneidade dos operários" e condena o partido à inação, Lênin (na sua polêmica desenvolvida em Que fazer? em 1902, contra os economicistas) demonstrou com vigor a necessidade do proletariado passar da luta econômica à luta política e defendeu a força da teoria e da ação revolucionárias. Entretanto, a partir de uma preocupação válida (lembrar o objetivo político final das lutas econômicas) acabou subestimando a luta econômica. Segundo essa visão, as lutas reivindicativas não são mais o solo fértil do desenvolvimento da consciência de classe e a dimensão política do movimento evolui "fora da esfera das relações de produção". [16] Mais tarde, Lênin será capaz de reconhecer e corrigir o erro como testemunham várias intervenções de sua parte sobre este assunto [17], esta em particular:

"A verdadeira educação das massas não pode nunca ser separada de uma luta política independente, e sobretudo da luta revolucionária das próprias massas. Só a acção educa a classe explorada, só ela lhe dá a medida das suas forças, alarga o seu horizonte, aumenta as suas capacidades, esclarece a sua inteligência e tempera a sua vontade.[18]

A presença sempre opressora da ideologia dominante que afeta o proletariado na sua tomada de consciência não poupa suas vanguardas que, embora melhor preparadas para enfrentá-la, não são isentas da penetração daquela no seu seio. É o que, em particular, gera o fenômeno do oportunismo, que nunca poupou nenhuma organização do proletariado e deu lugar, dentro destas, a combates políticos memoráveis que agora fazem parte do patrimônio histórico da classe operária: o combate da esquerda marxista no seio dos partidos da Segunda Internacional contra o peso do reformismo; o combate das esquerdas comunistas no seio dos partidos comunistas em reação ao abandono progressivo dos princípios e objetivos últimos da luta sob a pressão do refluxo da onda revolucionária mundial.

Luta social e luta política

  • "Marx enfatizava, desde as Glosas críticas, a diferença essencial entre a revolução da classe trabalhadora e as outras revoluções. Todas as outras, segundo ele, sempre foram revoluções sociais com alma política, ou seja, revoluções que não eliminavam a exploração e a dominação do homem pelo homem. Apenas as modificavam. A revolução do trabalho é a primeira a ser, necessariamente, uma revolução política com alma social. Nisso está a radical diferença. A revolução do trabalho deve ser, sob pena de não atingir os seus objetivos, uma revolução que modifique radicalmente as relações de propriedade, instaurando uma forma de trabalho verdadeiramente livre. Uma forma de trabalho que, por ser a mais livre possível, possa se constituir em fundamento daquelas atividades que expressam o mais alto da liberdade humana. O momento político é absoltamente necessário, mas ele é apenas um momento preparatório. É necessário para quebrar o poder político da burguesia. Sem essa quebra, não séria possível avançar. Porém, dado esse primeiro passo, é a alma social da revolução que deve aparecer". (Tonet e Nascimento, p. 30)
  • "Para Marx, era inteiramente claro que o objetivo da luta dos trabalhadores não era a tomada do poder, mas a emancipação da clas­se trabalhadora e, por consequência, a emancipação de toda a humanidade". (Ibid., p. 30)

Com efeito, a luta do proletariado é fundamentalmente social na plena acepção do termo. Porta, no seu triunfo, a dissolução de todas as classes e da própria classe operária na comunidade humana reconstituída em escala do mundial. Entretanto, esta dissolução passa necessariamente pela luta política - quer dizer, tendo em vista o estabelecimento de seu poder na sociedade - pela qual a classe operária cria os instrumentos que são suas organizações revolucionárias, os partidos políticos.[19]

Apesar de ser muito crítico desde o início em relação às visões "por demais políticas" do comunismo, Marx sempre pregou e praticou o envolvimento no combate político. Assim, na sua carta a Ruge em setembro de 1843, declarava: "Nada nos impede, portanto,  de vincular nossa crítica à crítica da política, ao ato de tomar partido na política, ou seja , nas lutas reais, e de identificar-se com elas." [20]  

De fato, a necessidade de se envolver as lutas políticas, para realizar uma transformação social mais total, era parte integrante da própria natureza da revolução proletária: "não digam que o movimento social exclui o movimento político" [21] escreveu Marx na sua polêmica contra o "anti-político" Proudhon. Com efeito, "não há jamais, movimento político que não seja, ao mesmo tempo social. Somente numa ordem de coisas em que não existam mais classes e antagonismos entre classes que as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas." [22]

Já em 1843, apesar de Marx ter reconhecido o proletariado moderno como agente da transformação comunista, os Manuscritos Econômico-Filosóficos não são ainda precisos sobre o movimento social que levará a sociedade de alienação à comunidade humana autêntica. Este desenvolvimento fundamental no pensamento de Marx chegará à luz através da convergência de dois elementos vitais: a elaboração do método materialista histórico e a politização aberta do projeto comunista. [23]

A ideologia alemã sublinha que no fim deste vasto movimento histórico, como nos modos de produção anteriores, o capitalismo é condenado a desaparecer, não por conta de sua falência moral, mas porque suas contradições internas o constrangem a se audodestruir e porque ele gerou uma classe capaz de substituí-lo por uma forma superior de organização social:

"No desenvolvimento das forças produtivas advém uma fase em que surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que, no marco das relações existentes, causam somente malefícios e não são mais forças de produção, mas forças de destruição (maquinaria e dinheiro) - e, ligada a isso, surge uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens e que, expulsa da sociedade, é forçada à mais decidida oposição a todas as outras classes; uma classe que configura a maioria dos membros da sociedade e da qual emana a consciência da necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista (...)[24]A primeira parte do Manifesto comunista expõe a nova teoria da história, anunciada pela famosa frase "A história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes[25]. O proletariado diferenciava-se da burguesia em que não podia, como classe explorada e sem propriedade, edificar a base econômica de uma nova sociedade dentro da antiga. A revolução que colocaria um termo a todas as formas de dominação de classe, portanto, não podia começar senão com o assalto político contra a ordem antiga. Seu primeiro ato seria a tomada do poder político por uma classe sem propriedade que, sobre esta base, iniciaria as transformações econômicas e sociais levando a uma sociedade sem classes: 

" Uma vez desaparecidos os antagonismos de classes no curso do desenvolvimento e sendo concentrada toda a produção propriamente falando nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político. O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui forçosamente em classe; converte-se, por uma revolução, em classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas relações de produção, destrói juntamente com essas relações de produção, as condições dos antagonismos entre as classes e as classes em geral e, com isso, sua própria dominação como classe..[26]

Dá para perceber, no que precede, a existência de sensibilidades diferentes entre o livro e nós, a propósito da natureza ao mesmo tempo política e social do combate pelo comunismo. Mas, a este estágio é difícil caracterizar claramente as diferenças. Voltaremos a este assunto no momento da concretização histórica, em particular através do exemplo da revolução russa.

Contra o culto do Estado, contra a ideia de um Estado fator de transformação social

  • "Estado que, para Marx, (...) é, por sua natureza, expressão e condição de reprodução da desigualdade so­cial e, portanto, da exploração do homem pelo homem". (Tonet e Nascimento, p. 18.)
  • "(...) já vimos que, para Marx, este tinha, em sua essência, um insuperável caráter de classe. Existiria Estado enquanto existissem classes sociais. Por isso mesmo, o Estado burguês teria que ser destruído e o "Estado proletário" se extinguiria por falta de função social". (Ibid., p. 112.)
  • "Não faz, pois, sentido, no interior do pensamento de Marx, a ideia de um "Estado proletário", de um "Es­tado socialista", a não ser naquele sentido afirmado por Engels e enfatizado por Lênin, de "classe trabalhadora organizada", de "Estado em extinção", de "comuna"". (Ibid., p. 34.)
  • "[Na Rússia o] "Es­tado proletário", (...) cumpria a função essencial do Estado, ou seja, a de ser um instrumente de expropriação da riqueza produzida pela classe trabalhadora". (Ibid., p. 104.)
  • "Certamente já é sintomático que a síntese [feita por Lênin em O Estado e a revolução] se refira apenas à questão do Estado e não também à do socialismo". (Ibid., p. 102.)

Segundo a concepção popular errada que todos os porta-vozes da burguesia, da imprensa e nas universidades, retomam sistematicamente, o comunismo seria uma sociedade onde tudo é dirigido pelo Estado. Toda a identificação entre o comunismo e os regimes stalinistas é apoiada sobre esta presunção. É uma total falsificação, uma inversão da realidade. Para Marx, para Engels, para todos os revolucionários que seguiram seu caminho, o comunismo significa uma sociedade sem Estado, uma sociedade em que os seres humanos dirigem as coisas sem que uma potência coercitiva os domine, sem governo, sem exército, sem prisões e sem fronteiras nacionais. [27]

Antes de se tornar claramente comunista, Marx já tinha criticado a idealização hegeliana do Estado. Para Hegel, o Estado (e, portanto, o Estado na Prússia) definia-se como a encarnação do Espírito absoluto, a forma perfeita da existência social. Em A questão judaica, Marx começou a reconhecer que a real emancipação humana não podia ser restrita à dimensão política, mas requeria uma forma de vida social diferente. Desta forma, assim que se interessou pelo comunismo, Marx ficou muito preocupado em desmistificar o Estado e nunca se desviou disso.

O Manifesto comunista, redigido na véspera das grandes sublevações sociais de 1848, tinha como perspectiva não só a tomada do poder político pelo proletariado, mas também a extinção final do Estado uma vez que suas raízes teriam sido extirpadas e suprimidas.

Falando da Comuna, Marx se expressa nesses termos:

"Pois não foi uma revolução contra tal ou qual forma de poder de Estado, legitimista, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o próprio Estado, este aborto sobrenatural da sociedade; foi a retomada pelo povo e para o povo da sua própria vida social.[28]

O marxismo funda sua concepção do caminho para o comunismo sobre as experiências reais do proletariado contra o capitalismo. Assim, enquanto a palavra de ordem de ditadura do proletariado apareceu no início do movimento marxista, a forma que esta ditadura devia tomar foi tomando precisão através dos grandes eventos revolucionários da história da classe operária, em particular, a Comuna de Paris e a Revolução de Outubro de 1917.

As lições da história não são "espontâneas" no sentido que a vanguarda comunista as desenvolve sobre a base de um quadro de ideias já existentes. Mas estas próprias ideias devem constantemente ser reexaminadas e provadas à luz da experiência da classe operária. É uma glória dos operários parisienses de ter fornecido uma prova convincente de que a classe operária não pode fazer a revolução ao apoderar-se de um aparelho com estrutura e modo de funcionamento próprios, adaptados à perpetuação da exploração e da opressão. Se o primeiro passo da revolução proletária é a conquista do poder político, ela não pode ocorrer sem a destruição violenta do Estado burguês existente. Quanto ao semi-Estado do período de transição para o comunismo, também constitui um problema para o proletariado. É o que expressa Engels dizendo do Estado que é:

"(...) um mal que se transmite hereditariamente ao proletariado triunfante em sua luta pela dominaçao de classe. Como fez a Comuna, o proletariodo vitorioso não pode deixar de amputar imediatamente, na medida do possível, os aspetos mais nocivos desse mal, até que uma futura geração, formada em circunstâncias novas e livres, possa desfazer-se de todo desse velho traste do Estado." [29]

Portanto, a extinção do Estado baseia-se na transformação da infra-estrutura econômica e social, sobre a eliminação das relações capitalistas de produção e sobre o movimento para uma comunidade humana sem classes.

O período de transição

Muitas questões entram nessa rubrica e só selecionaremos as mais essenciais e ligadas ao temas do livro:

  • - Qual desenvolvimento das forças produtivas é necessário para que possa se iniciar a transição do capitalismo para o comunismo?
  • - Qual é o quadro político e geográfico da revolução e da transformação socialista?
  • - Qual é a natureza da sociedade depois da revolução vitoriosa?
  • - Qual é a força revolucionária e o que representa o Estado na sociedade depois da revolução?

Qual desenvolvimento das forças produtivas é necessário à transformação socialista?

  • "(...) em O capital e nos "Grundrisse" [30] enfatiza que esse desenvolvimento das forças produtivas é obra do próprio capitalismo. Mas, por que ele não poderia ser realizado por um "Estado socialista"? Exatamente porque estas forças só podem vir a existir sobre a base de relações sociais de exploração, algo inteiramente contraditório com o socialismo." (Tonet e Nascimento, p. 33)
  • "(...) os revolucionários, diante do atraso da Rússia e do fracasso da revolução no Ocidente, se deram como tarefa construir as bases materiais do socialismo. E isso, por intermédio do Estado. Ora, essas bases materiais não podem ser construídas de maneira socialista, ou seja, igualitária. Sua construção, exatamente por estarem pouco desenvolvidas (incapazes de produzir em abundância) só pode ser obra do capitalismo, ou seja, de um sistema fundado na exploração." (Ibid., p. 29)

Esta ideia da impossibilidade de desenvolver as forças produtivas depois da revolução a não ser condenando ao fracasso a construção da nova sociedade é uma interpretação abstrata e muito pessoal pelos autores do ponto de vista de Marx sobre esta questão.

O livro tem toda razão de insistir sobre o fato que:

  • "Porém, este controle consciente, livre e coletivo só pode existir onde houver capacidade de produzir riqueza em abundância. A carência, como diz Marx em Ideologia Alemã (1986: 50) levará, necessariamente à luta pelo necessário e ao restabelecimento da "imundície anterior"" (Ibid, p. 29)

Mas isso não pode ser interpretado no sentido que, o capitalismo tendo desenvolvido as forças produtivas em quantidade suficiente para permitir a construção de uma sociedade socialista, não seja mais necessário que o proletariado vitorioso tenha de continuar a desenvolver essas mesmas forças.

Com efeito, ao criar as forças produtivas como nenhum modo de produção anterior, o capitalismo cria o potencial para a abundância e, portanto, para o comunismo. Mas isso não significa que a abundância apareça no dia seguinte da revolução, disponível para a satisfação das necessidades humanas. Ao contrário, a revolução é uma resposta a uma profunda desorganização da sociedade caracterizada por uma destruição importante de forças produtivas acumuladas (como conseqüência, em particular da Guerra Mundial antes da primeira onda revolucionária mundial, da crise econômica muito profunda que possivelmente provocará o próximo assalto revolucionário mundial) e, na sua fase inicial, esta desorganização tenderá a piorar. O proletariado vitorioso terá à sua frente um enorme trabalho de reconstrução, de educação e de reorganização. É por isso que O Manifesto comunista tem toda razão de falar da necessidade do proletariado vitorioso de "multiplicar o mais rapidamente possível a massa das forças de produção".

Por outro lado, não faz parte da visão de Marx fixar um limite mínimo à quantidade de forças produtivas a ser atingida para se poder construir uma sociedade comunista. Marx não oferece a visão utópica da abolição imediata de todas as categorias da produção capitalista. Ao contrário, ele sublinha a necessidade de distinguir a fase inferior e a fase superior do comunismo. Falando da fase inferior, ele diz:

"Do que se trata aqui não é de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede". [31]

Nesta fase, existe ainda a escassez, assim como todos os vestígios da normalidade capitalista. É unicamente na fase superior do comunismo, quando for realizada a abundância para cada um, que a sociedade poderá escrever na suas bandeiras:

"De cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades". [32]

Para o marxismo, uma das diferenças fundamentais entre a revolução burguesa e a revolução proletária, consiste no fato que a primeira acontece só depois de um processo de transformação econômica entre o feudalismo e o capitalismo, transformação que a revolução vem ratificar e celebrar na esfera política. Ao contrário disso, a revolução proletária (tomada do poder político) é necessariamente o início da transformação econômica entre o capitalismo e o comunismo. Nessa transformação econômica, as forças produtivas são desenvolvidas em função das necessidades humanas, enquanto é abolida toda propriedade e suprimida a exploração.

Qual é o quadro político e geográfico da revolução e da transformação socialista?

  • "Para Marx, revolução (comunista) significava a articulação de dois momentos: a quebra do poder político da burguesia (momento político) e a efetivação da transformação social pela instauração do trabalho associado (momento social). Dois momentos necessários, mas sendo, sem nenhuma dúvida, o segundo a parte fundamental e positiva na construção de uma ordem social comunista." (Tonet e Nascimento, p. 112)

Aplicados à Revolução russa, estes princípios se expressam, para os autores do livro, na análise seguinte:

  • "Sabe-se que Lênin e os dirigentes revolucionários bolcheviques tinham consciência clara daquela problemática situação. Todavia, a análise do momento histórico do capitalismo mundial, como transparece no texto de Lênin "Imperialismo: etapa superior do capitalismo", pareceu indicar que esse sistema social se encontrava em fase praticamente terminal. E, como o capitalismo já tinha um caráter claramente internacionalizado, parecia razoável pensar que a quebra de qualquer elo dessa corrente levaria ao desmoronamento do conjunto do sistema. Por circunstâncias históricas extremamente complexas, devidas em grande parte à guerra inter-imperialista de 1914 a 1918, o elo fraco da cadeia se mostrou ser a Rússia" (Ibid., p. 68)
  • "(...) os revolucionários bolcheviques tinham consciência de que a revolução na Rússia só poderia transformar-se de democrático-burguesa em socialista se a direção do movimento fosse assumida pelos países mais desenvolvidos. A eclosão da revolução nos países mais desenvolvidos da Europa ocidental era considerada condição indispensável para o sucesso da revolução em nível mundial." (Ibid., p. 69)

No que precede, encontramos os elementos-chave da dinâmica levando a uma onda revolucionária mundial: o primeiro abalo do capitalismo mundial sob os efeitos das suas contradições históricas demonstrando, segundo os revolucionários da época, que com a Primeira Guerra Mundial este sistema entrou numa fase de convulsões colocando a questão da revolução em escala mundial; a importância determinante do proletariado alemão para a vitória da revolução mundial. O livro analisa da maneira seguinte as consequências da derrota da revolução na Alemanha:

  • "O fracasso desta e, portanto, da derrocada do capitalismo mundial, deixou a revolução soviética isolada e com base em um país muito atrasado. Ali não era possível nem produzir riqueza em abundância (base imprescindível para o socialismo), nem instaurar o trabalho associado (a "livre associação dos trabalhadores livres") e, por isso, nem realizar a extinção do Estado, como Lênin tinha afirmado antes da revolução." (Ibid., p. 72)

Já vimos como os autores se iludiram pensando que, no dia seguinte ao da revolução a classe operária poderia dispor imediatamente, para construir a nova sociedade, de um alto grau de desenvolvimento das forças produtivas. Dizem-nos agora que, num contexto em que a revolução foi vencida na Alemanha e as possibilidades de sua extensão mundial liquidadas, o problema da Revolução Russa seria aquele do caráter atrasado da Rússia impedindo a marcha para o socialismo. Tal análise é confirmada por esta outra passagem:

  • "(...) a derrota da revolução na Alemanha deixou os revolucionários russos diante de uma tarefa que a eles pareceu muitíssimo difícil e que, na verdade, era impossível de ser realizada, qual seja, a da construção do comunismo sem o alto grau de desenvolvimento das forças produtivas que seria necessário" (Ibid., p. 103)

Em outros termos, se a Rússia tivesse sido um Estado comparável à Alemanha, então teria sido possível construir o socialismo neste país. O que significa que, para os autores, o socialismo é possível num só país. Sua motivação política não tem evidentemente nada ver com aquela de Stálin quando adotou em 1925 a tese do "socialismo num só país" para legitimar politicamente a ditadura do capitalismo de Estado na Rússia. A ideia do livro a este propósito constitui, entretanto, um erro, resultando de uma visão mecanicista e estreita da relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e a possibilidade de êxito da revolução, considerada fora do único quadro possível, qual seja: o mundo dominado pelas relações de produção capitalista (que já era o caso nessa época).

O comunismo, a construção da comunidade humana mundial, que significa necessariamente o fim da divisão do mundo entre classes sociais, só pode se realizar em escala mundial, pois as relações sociais de produção, que se baseiam sobre a exploração do trabalho assalariado, só podem ser abolidas nesta escala. [33]

É nisso que reside uma diferença importante entre a revolução proletária e a revolução burguesa. Com efeito, o desenvolvimento desigual do capitalismo permitiu à burguesia ascender ao poder em períodos diferentes em diversos países. Isso também era possível, pois a nação é o quadro geopolítico específico do capitalismo, quadro que, apesar de todas suas tentativas, o capitalismo nunca conseguiu ultrapassar. Mas, enquanto o capitalismo pôde se desenvolver por "ilhotas" no seio da sociedade autárquica feudal, o socialismo só pode existir em escala mundial colocando em movimento o conjunto das forças produtivas e das redes de circulação dos bens criados pelo capitalismo. Já em 1847, à pergunta dos Princípios Básicos do Comunismo: "Poderá esta revolução realizar-se apenas num único país?", Engels respondeu categoricamente:

"Não. A grande indústria, pelo fato de ter criado o mercado mundial, levou todos os povos da terra - e, nomeadamente, os civilizados - a tal ligação uns com os outros que cada povo está dependente daquilo que acontece a outro. [...] A revolução comunista não será, portanto, uma revolução simplesmente nacional; será uma revolução que se realizará simultaneamente em todos os países civilizados. Ela é uma revolução universal e terá, portanto, também um âmbito universal.[34]

O debate sobre esta questão conheceu sua maior e mais dramática expressão com a adoção da teoria do socialismo num só país. A Esquerda italiana (Fração da Esquerda comunista internacional, apelidada também de Fração italiana e publicando a revista Bilan [Balanço]) [35], cuja oposição à degeneração da revolução foi mais decidida e conseqüente do que a de Trotsky, colocou-se de repente ao lado da oposição de Trotsky no seu combate contra a teoria de Stálin. Com sua teoria da "acumulação socialista primitiva", Trotsky considerava que, na realidade, a Rússia tinha começado a pôr os alicerces de uma sociedade socialista, mesmo que rejeitasse o que Stálin pretendia,ou seja, para ele e seus epígonos a Rússia já era socialista. Pela Esquerda italiana, no âmbito de um país, o proletariado só podia estabelecer sua dominação política, e mesmo esta seria inevitavelmente enfraquecida pelo isolamento da revolução [36] Assim, segundo a fração:

"Não somente é impossível construir o socialismo num país só, mas também estabelecer suas bases. No país em que o proletariado venceu, não se trata de realizar uma condição do socialismo (através da livre gestão econômica pelo proletariado), mas somente de salvaguardar a revolução, o que exige a permanência de todas as instituições de classe do proletariado." [37]

Qual é a natureza da sociedade depois da revolução vitoriosa?

  • "Quer dizer, mesmo no período de transição en­tre o capitalismo e o comunismo, chamado de socialismo, quando a hegemonia estiver nas mãos da ampla maioria constituída pelas classes subalternas, o poder não deixará de ser expressão do fato de que ainda existe exploração do homem pelo homem." (Tonet e Nascimento, p. 26)
  • "Além do mais, nesse processo, o capital permanece vivo. Sua lógica foi constrangida por via da extração política da mais-valia, mas não quebrada." (Ibid., p. 29)
  • "A vigência do capital, em sua plenitude, implica a concorrência e, portanto, a plena existência do mercado. A ausência destes, contudo, não o elimina, apenas dificulta o seu pleno florescimento." (Ibid., p. 29)
  • "(...) a inexistência de um intenso desenvolvimento das forças produtivas impossibilitava a instauração do trabalho associado, condição indispensável para o comunismo. (...) Assim como o ca­pitalismo, na sua forma típica (a propriedade privada, a concorrência), foi suprimido, também o foi o Estado na sua forma burguesa típica. Mas, no lugar do capitalismo típico e do Estado bur­guês típico surgiram duas novas formas que não deixavam de repor a sociedade de classes." (Ibid., p. 103)

A tomada do poder político pelo proletariado é uma etapa indispensável à transformação das relações sociais de produção. O que entendemos por revolução vitoriosa é a derrota política e militar da burguesia mundial pelo proletariado mundial. Este objetivo, enquanto não é atingido, deve mobilizar as energias revolucionárias do proletariado mundial, inclusive nos países em que já tomou o poder, sob pena de voltar à situação anterior. É claro que, por conta da derrota na Alemanha, esta etapa não foi alcançada durante a primeira onda revolucionária mundial.

No conjunto dos países em que o proletariado tiver tomado o poder, as medidas destinadas a tirar o poder da classe burguesa não mudam nada nas relações de produção. Isto porque, inclusive nestes países e nessa etapa da revolução, as relações de produção serão ainda relações de produção capitalistas. E até na ausência do poder da burguesia, como o livro diz, existe ainda a exploração do homem pelo homem, a classe explorada continuando sendo a classe que produz as riquezas, isto é, a classe operária.

Quanto ao Estado que surge depois da revolução, embora se trate de um Estado cujas atribuições mais nocivas terão sido restringidas, como foi dito, sua existência traduz, entretanto, o fato que a sociedade ainda é dividida por antagonismos de classes. Estes últimos resolver-se-ão com a vitória política da revolução mundial, a integração progressiva das camadas não proletárias ao trabalho associado e a transformação consciente e voluntária das relações de produção baseadas sobre um desenvolvimento das forças produtivas libertadas dos obstáculos do capitalismo e colocadas a serviço das necessidades da humanidade.

Qual é a força revolucionária e o que representa o Estado na sociedade depois da revolução?

  • "(...) é um absurdo pensar que se poderá construir uma sociedade de indivíduos livres sem que esses mesmos indivíduos possam ser os efetivos sujeitos desse processo, especialmente naquele aspecto mais fundamental que é o trabalho. Por isso, o controle consciente e coletivo sobre o processo de produção, de modo que a destinação primeira desta seja o atendimento das necessidades humanas, e não a reprodução do capital, é uma condição absolutamente imprescindível" (Tonet e Nascimento, p. 29)
  • "[Na Rússia o] "Es­tado proletário" (...) cumpria a função essencial do Estado, ou seja, a de ser um instrumento de expropriação da riqueza produzida pela classe trabalhadora" (Ibid., p. 104)
  • "Quanto à concepção de Estado, já vimos que, para Marx, este  tinha, em sua essência, um insuperável caráter de classe. Existiria Estado enquanto existissem classes sociais. Por isso mesmo, o Estado burguês teria que ser destruído e o "Estado proletário" se extinguiria por falta de função social." (Ibid., p. 112)
  • "E que este poder seja exercido pela classe burguesa ou pela classe trabalhadora, também é, certamente, importantíssimo para a análise concreta, pois disso pode depender o caráter da revolução, mas não altera a essência da questão, ou seja, o fato de que ele é uma categoria cuja existência está, inextricavelmente, articulada com a sociedade de classes. Quer dizer, mesmo no período de transição en­tre o capitalismo e o comunismo, chamado de socialismo, quando a hegemonia estiver nas mãos da ampla maioria constituída pelas classes subalternas, o poder não deixará de ser expressão do fato de que ainda existe exploração do homem pelo homem." (Ibid., p. 26)
  • "Para a classe trabalhadora, não se trata de distribuir melhor a riqueza produzida, porque a forma da distribuição já esta pressuposta na forma da produção." (Ibid., p. 38)
  • "Por sua vez, essa tomada do Estado estava intimamente ligada à existência de um partido que seria o legitimo e único representante da classe trabalhadora." (Ibid., p. 104)

A experiência russa permitiu o esclarecimento da relação entre os órgãos específicos da classe, os conselhos operários, e o estado soviético no seu conjunto. Este último é a emanação da população não exploradora (incluindo, além dos operários, soldados e camponeses) organizados no país inteiro em sovietes territoriais. Os soldados e os camponeses aderem à revolução, mas não constituem por isso o sujeito da revolução. Em particular, a experiência russa demonstrou que a classe operária não pode se identificar diretamente com o Estado, mas deve exercer uma vigilância e um controle sobre este através de suas próprias organizações de classe (os conselhos operários) que participam deste órgão sem ser absorvidos por ele. [38]

Esta consideração decorre do fato que a classe operária é a única classe revolucionária da sociedade, apesar de outras classes não exploradoras também poderem ter interesse na revolução. Sobre esta questão apoiamo-nos sobre o livro para ilustrar nosso intento:

  • "Não parece haver dúvida que, para ele [Marx], a classe trabalhadora era o sujeito fundamental da revolução. Para quem conhece minimamente os textos marxianos, não há sequer necessidade de qualquer citação. Essa convicção estriba-se no fato de que ela é a única que, pela sua própria natureza (resultante de sua situação no processo de produção) se opõe de modo radicalmente antagônico ao capital. Nessa luta, outras classes ou segmentos de classe ou indivíduos poderiam ser arrastados a apoiá-la." (Tonet e Nascimento, p. 38)

Na realidade, é a necessária autonomia do proletariado em relação a todas as outras camadas da sociedade que é colocada depois da tomada do poder, como já era antes. Sobre esta questão, vale a pena voltar à experiência da Comuna de Paris. Desse modo, o livro História da Comuna de Paris 1871  de Lissagaray [39], em particular, contém muitas críticas feitas às hesitações, confusões, posições vazias de certos delegados no conselho da Comuna, muitos entre eles expressando na realidade um radicalismo pequeno-burguês obsoleto que muitas vezes foi questionado pelas assembleias dos bairros mais proletários. Pelo menos um entre os clubes revolucionários locais declarou que havia que dissolver a Comuna, pois não era bastante revolucionária. Encontramos na Revolução Russa a mesma diferença, até oposição entre, por exemplo, o soviete de Petrogrado dominado no início pelos soldados (cuja maioria era de origem camponesa) favoráveis aos Socialistas Revolucionários e aos Mencheviques e os sovietes dos bairros periféricos de Petrogrado (Vyborg, em particular) que, de início, tiveram posições mais radicais. Foram estes bairros, entre outros, que constituíram a base operária sobre a qual Lênin tinha se apoiado para travar seu combate no seio do Partido Bolchevique para fazer triunfar as Teses de Abril.

As causas reais do fracasso das tentativas revolucionárias

  • "Todos esses exemplos confirmam, à saciedade, a impossibilidade de alterar radicalmente a lógica do capital através do poder político" (Tonet e Nascimento, p. 30)
  • "Infelizmente, as circunstâncias históricas, tanto no caso da social-democracia alemã, quanto no caso da revolução soviética e similares, levaram a uma mudança profunda nessa concepção, atribuindo à política o estatuto de pólo norteador do processo de construção de uma sociedade comunista." (Ibid., p. 39)
  • "(...) a trajetória da esquerda, nos últimos cento e cinqüenta anos, ainda que com momentos de forte impulso revolucionário seguiu um caminho cada vez mais reformista. (...) o abandono do trabalho e consequentemente das lutas nucleadas e orientadas pela perspectiva do trabalho em sua oposição ao capital e a concentração de todas as lutas no parlamento e no Estado" (Ibid., p. 101)
  • "Contrariando o método materialista-dialético de Marx, a causa fundamental desses desvios e deformações não era buscada no campo de possibilidades posto pela base material, mas nas concepções existentes na cabeça dos homens". (Ibid., p. 105)
  • "Para os revolucionários soviéticos, revolução passou a ser a tomada do poder para, por meio dele, realizar as transformações econômicas, políticas e sociais que levariam ao comunismo. Portanto, ao Estado caberiam as tarefas positivas na construção do socialismo." (Ibid., p. 113)
  • "Para os revolucionários soviéticos, no entanto, socialismo passou a significar "socialização da economia", ou seja, a supressão da propriedade privada, a passagem para as mãos do Estado, que supostamente representava os interesses da classe trabalhadora, do controle da economia." (Ibid., p. 116)
  • "Esse deslocamento da Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política teve outro efeito extremamente perverso para a luta dos trabalhadores. Ao situar a crítica às tentativas revolucionárias (de tipo soviético) no campo da política, ignorando a radical novidade da perspectiva instaurada por Marx, que tem no trabalho (ontologicamente entendido) a categoria fundante do ser social, a esquerda passou a ter como pano de fundo de toda a discussão teórica e de toda a prática política uma posição completamente equivocada. Ao invés de fazer a crítica a par­tir da raiz do ser social, que é o trabalho, buscou as causas do fracasso das tentativas revolucionárias no campo da política" (Ibid., p. 116)
  • "E, ao invés de concentrar o seu esforço principal - embora não único nem exclusivo - nas lutas extra-parlamentares num enfoque radicalmente anti-capitalista (evidentemente, adaptando isso a cada momento histórico), ela passou a orientar todas as lutas no sentido de desembocar no parlamento." (Ibid., p. 116)

Se retomarmos o raciocínio dos autores, devemos in fine atribuir o fracasso da revolução na Rússia ao desenvolvimento insuficiente das forças produtivas neste país, agravado pelo caráter atrasado da classe operária:

  • "E, como agravante, uma classe trabalhadora que, não obstante ter demonstrado o seu espírito revolucionário, era numericamente pequena e, além disso, atrasada em inúmeros aspectos." (Ibid., p. 72)

Ao contrário de Kautsky que se opôs à tomada do poder pelo proletariado na Rússia em nome do fato que "a Rússia, sendo um país economicamente atrasado, essencialmente agrícola, (...) ainda não maduro para revolução social e para uma ditadura do proletariado", Rosa Luxemburgo identifica as causas das dificuldades do proletariado na Rússia na imaturidade do proletariado mundial:

"Para todo observador que reflita, este curso das coisas é mais um argumento contra toda a teoria defendida por Kautsky e todo o Partido Social Democrata Alemão, segundo a qual a Rússia, país economicamente atrasado, agrícola em sua maior parte, não estaria ainda maduro para a revolução social. Esta teoria que não admite como possível na Rússia senão uma revolução burguesa, do que decorre, por conseguinte, para os socialistas deste país, a necessidade de colaborar com o liberalismo burguês, é também a da ala oportunista do movimento operário russo dos mencheviques, dirigidos por Dan e Axelrod. Uns e outros, os oportunistas russos como os oportunistas alemães, concordam inteiramente com os socialistas governamentais da Alemanha nesta maneira de compreender a Revolução Russa. Segundo eles, a Revolução russa não deveria ter ultrapassado o estádio que, na imaginação da social democracia, o imperialismo alemão estabeleceu como o fim nobre da guerra, a saber, a derrubada do czarismo. Se ela foi além, se ela se impôs como tarefa a ditadura do proletariado, tal aconteceu, segundo esta doutrina, por simples erro da ala radical do movimento operário russo, dos bolcheviques, e todas as amarguras que em seguida a revolução conheceu, todas as dificuldades que encontrou, não são mais do que as conseqüências desse erro. Teoricamente, esta doutrina, que o "Vorwaerts" apresenta como fruto do pensamento "marxista", chega a esta original descoberta "marxista" de que a revolução social, isto é, uma questão nacional é, por assim dizer, doméstica de cada Estado em particular.
Praticamente, esta doutrina tende a ressalvar a responsabilidade do proletariado internacional e, em primeiro lugar, do proletariado alemão, no que concerne à sorte da Revolução Russa, a negar, numa palavra, as conexões internacionais desta revolução. Na realidade, a guerra e a revolução russa demonstraram não a falta de maturidade da Rússia, mas a incapacidade do proletariado alemão de empreender sua missão histórica. Ressaltar este fato com toda a nitidez desejável é o primeiro dever de um estudo crítico da Revolução Russa. Contando com a revolução mundial do proletariado, os bolcheviques deram precisamente o testemunho mais brilhante de sua inteligência política, de sua fidelidade aos princípios e da audácia de sua política". [40] (o grifo é nosso)

Os autores do livro apoiam, sobre a questão da insurreição, o ponto de vista dos bolcheviques contra aquele dos mencheviques. Entretanto, se deve reconhecer que, apesar disso, sua postura sobre este assunto é ambígua pelo fato de que compartilham com Kautsky uma visão nacional da revolução (para a qual acabaram convergindo os próprios bolcheviques, cada vez mais enredados pelas contradições insuperáveis que resultaram do isolamento da revolução russa, embora não fosse essa sua posição antes da tomada do poder).[41]

Como já dissemos anteriormente quando tratamos da consciência de classe, a compreensão da dinâmica do movimento operário não pode ser limitada à análise de suas organizações políticas de classe. Para entender as fraquezas próprias do proletariado mundial que impediram o proletariado alemão de vencer, convém examinar a situação que tinha que enfrentar:

  • - A desorientação enorme causada em suas fileiras pelo estouro da Primeira Guerra Mundial para a qual não estava preparado, em sua grande maioria, apesar de todo o trabalho de alerta efetuado pela Esquerda marxista na social-democracia (Lênin, Luxemburgo, Pannekoek, etc.). A melhor ilustração disso é que foram necessários mais de dois anos de matanças, a repetição de centenas de milhares de mortes, para que a classe operária emergisse de sua embriaguez nacionalista e se colocasse no terreno da luta de classe pela defesa de seus próprios interesses de classe, do internacionalismo proletário e rumo à revolução mundial;
  • - A perturbação completa causada nas suas fileiras pela traição do internacionalismo proletário por parte da grande maioria dos partidos social-democratas e dos sindicatos que se colocaram a serviço do capital nacional para defender o esforço de guerra;
  • - Confirmando esta traição, os sindicatos e partidos social-democratas revelaram constituir-se também os últimos baluartes da ordem capitalista contra o desenvolvimento da revolução, na Alemanha em particular;
  • - Frente às tentativas revolucionárias, não foi tanto a resistência oposta pela burguesia tradicional com suas instituições clássicas que ameaçou a vitória da revolução, mas toda a inteligência política da dos chefes da social-democracia, com seu conhecimento da classe operária e suas fraquezas, que foi fatal à revolução. Se, na Rússia, os bolcheviques souberam desmascarar as armadilhas travadas para provocar insurreições prematuras, não foi o caso na Alemanha, diante de uma burguesia e uma social-democracia, passada ao inimigo, muito mais experimentadas.

Assim, não foi o deslocamento da Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política que explica a derrota, mas na realidade a insuficiência das condições subjetivas da revolução e, em particular, uma consciência insuficiente no seio da classe operária na Alemanha de que a social-democracia tinha se tornado, para sempre, seu inimigo e a ponta de lança da contrarrevolução. Apenas dois meses depois do esmagamento ensangüentado da revolta de Berlim, em janeiro de 1919, os últimos, porém ainda importantes, destacamentos do proletariado alemão que tinham ficado fieis à social-democracia voltaram-se contra esta. Mas já era tarde demais. O destino da revolução alemã tinha sido jogado em Berlim. [42] Assim, não é o exemplo da revolução alemã que demonstra a validade da tese dos autores relativa à "impossibilidade de alterar radicalmente a lógica do capital através do poder político", pois o proletariado nem teve a oportunidade de tomar o poder político. Pelas mesmas razões que na Alemanha, e também como consequência da derrota neste país, a classe operária não teve a oportunidade de tomar o poder na Europa central, na Hungria em particular.

Não é que essa tese esteja errada, mas todos os exemplos dados relativos a esse período histórico não permitem ilustrá-la. Com efeito, o poder proletário isolado só podia padecer através de uma ou alternativa outra: ser derrubado pela reação internacional ou degenerar. Sabemos que foi a segunda opção que prevaleceu. A nocividade do discurso do partido bolchevique em degeneração sobre a construção do socialismo num só país em meio às medidas de capitalismo de Estado, não mudou fundamentalmente o curso dos eventos na própria Rússia, mas o acelerou. Além disso, esse discurso mistificou várias gerações de operários no mundo.

Este curso rumo à derrota da revolução mundial não era inelutável, pois, como acabamos de vê-lo, faltou pouco para que a revolução na Alemanha se desenvolvesse mais, abrindo assim a via para o derrubamento da burguesia neste país. Isso, por sua vez, teria aberto a porta para a extensão da revolução vitoriosa na Europa central e, depois, na Europa ocidental. Encontrávamos-nos aí no cenário da revolução em marcha internacionalmente. Não se produziu, mas estava inscrita no leque das possibilidades permitidas pelas condições materiais da situação mundial. Imaginemos que, depois de uma vitória política e militar sobre a burguesia, a classe operária tivesse sido capaz de tomar o poder político em escala mundial. Isso não significaria, que uma estrada levaria diretamente à edificação de uma sociedade socialista. Longe disso! O mais difícil restaria a ser feito, visto que a transformação das relações sociais em nada decorre automaticamente do aumento das forças produtivas disponíveis para a satisfação das necessidades humanas. Uma nova etapa histórica requeria (como requererá amanhã), por parte do proletariado mundial e de sua vanguarda, um altíssimo nível de consciência.

Um novo impulso da revolução mundial provocado pela revolução na Alemanha teria permitido, com a intervenção consciente do proletariado mundial, corrigir os erros cometidos na Rússia. Na ausência deste impulso vital, a revolução na Rússia afundou-se na degeneração e, como consequência disso, vimos florescer toda uma propaganda da qual o stalinismo se fez o campeão, desnaturando totalmente o projeto comunista, identificando-o mentirosamente ao capitalismo de Estado mais abjeto.

A confusão entre a política proletária e a política da esquerda do capital

  • "(...) mesmo os revolucionários, aqueles que encabeçaram, teórica e praticamente, as tentativas de realizar a revolução socialista, ao não perceberem, ou, pelo menos, ao não explicitarem com toda clareza essa questão do caráter ontologicamente fundante do trabalho, acabaram por dar margem a uma concepção de alguma forma politicista e/ou economicista da revolução. É, com enormes diferenças entre eles, o caso de Rosa, Lênin, Trotski, Gramsci, Mao, Fidel e muitos outros." (Tonet e Nascimento, p. 24)
  • "Por isso mesmo, pode dar-se o fato de que o poder político do trabalho derrote o poder político do capital, sem que disto se siga necessariamente à vitória integral do primeiro sobre o segundo. Essa afirmação é da maior importância porque põe a nu o enga­no de grande parte da esquerda na interpretação das tentativas de revolução socialistas. E deixa claro o significado da mudança da Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política." (Tonet e Nascimento, p. 28)
  • "Três exemplos claros desse engano da esquerda podem ser vistos nas interpretações das revoluções soviética, chinesa e cubana." (Tonet e Nascimento, p. 28)
  • "A revolução chinesa seguiu um caminho ao mesmo tempo se­melhante e diferente. Semelhante no sentido de, visto o atraso da China, ter que lançar mão da exploração e da coerção para desenvolver mais rapidamente as forças produtivas, ao mesmo tempo em que impunha certos limites políticos à lógica do capital. Dife­rente porque, diante dos problemas acarretados por essa via, procurou (e é o que está em curso) impedir uma explosão do sistema, estabelecendo um processo gradativo de volta ao capitalismo, embora chame a isso de construção do socialismo. Assim, a lógica do capital, que nunca deixou de vigir, mas apenas se viu limitada, está se repondo de modo "lento, gradual e seguro". (Tonet e Nascimento, p. 30)

O livro oferece uma caracterização válida, em nossa opinião, do peso crescente do reformismo no seio dos partidos da Segunda Internacional e de seu desvio oportunista. Este se manifestou, antes de tudo, não pela existência de um programa mínimo de luta por reformas (numa época em que o capitalismo podia ainda conceder de maneira douradora tais reformas), mas pelo abandono progressivo do programa da revolução proletária. A estes partidos, pode-se aplicar esta caracterização dos autores, isto é, o deslocamento da Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política. Ainda que nos pareça mais adequado falar de abandono do alvo final em benefício da tática parlamentar imediata, como isso foi teorizado notadamente por Bernstein através de sua fórmula famosa "O objetivo final não é nada, o movimento é tudo".

Mas, do nosso ponto de vista, tal caracterização é ainda insuficiente, dada a trajetória destes partidos que traíram o proletariado, salvaram o capitalismo através da mais brutal repressão do proletariado. Aqui, vale a pena lembrar, para apoiar nossa ideia, que para vencer a revolução na Alemanha, a social-democracia recrutou os Corpos Francos nas camadas lumpenizadas da sociedade. Hitler apoiar-se-á nelas, mais tarde, na sua ascensão política. Será que é realmente adequado limitar a crítica a estes partidos somente por terem deslocado "a Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política"? Em outros termos, será que dá para pensar que estes partidos têm ainda algo de proletário (além da fraseologia destinada a mistificar a classe operária) desde sua traição? Sua prática desde então não deixou de ilustrar que nunca mais voltarão para o campo do proletariado. Neste caso, o que temos a ganhar dirigindo-nos a eles, a esquerda, culpando-os por ter abandonado a perspectiva do comunismo? Efetivamente fazem parte da esquerda, mais da esquerda do capital, e tudo que pode obscurecer esta realidade aos olhos do proletariado deve ser proscrito.

E o resto da esquerda? Será que não é menos reformista? Os partidos comunistas, por exemplo?

O Partido Bolchevique, depois de haver sido a vanguarda da revolução em 1917, degenerou identificando-se cada vez mais com o Estado. Em seu seio, os melhores combatentes da revolução foram progressivamente descartados das suas funções de responsabilidade, excluídos, exilados, aprisionados e depois finalmente executados por uma câmara de arrivistas e de burocratas que encontraram em Stálin seu melhor representante. Sua razão de ser não era mais defender os interesses da classe operária, mas, ao contrário, exercer sobre ela, através da mentira e da repressão, a mais hipócrita das ditaduras, a fim de preservar e consolidar a nova forma de capitalismo que estava instaurada na Rússia.

Os outros partidos da Internacional, os partidos "comunistas", seguiram o mesmo caminho. O revés da revolução mundial e a confusão que se seguiu dentro das fileiras operárias favoreceram o desenvolvimento do oportunismo no seio desses partidos, isto é, uma política que sacrifica os princípios revolucionários e as perspectivas históricas do movimento da classe operária por ilusórios "sucessos" imediatos. Infestados pela doença oportunista, esses partidos caíram sob o controle de burocratas arrivistas, e foram submetidos pela pressão do Estado Russo que, através da mentira e da intimidação, promoveu estes burocratas aos órgãos de direção. Após terem expulsado de suas fileiras os elementos fiéis ao combate revolucionário, esses partidos terminaram por trair e passar com todas suas armas para dentro do campo da burguesia. Como o partido bolchevista dominado pelo stalinismo, esses partidos se converteram na vanguarda da contrarrevolução nos seus respectivos países. Eles puderam cumprir bem melhor este papel, porque continuaram a se apresentar como partidos da revolução comunista, como os herdeiros do "Outubro Vermelho". Do mesmo modo que Stálin, para estabelecer seu poder no partido bolchevista em degeneração, a fim de eliminar os militantes os mais sinceros e devotos à causa do proletariado, tinha se enfeitado com todo o prestígio de Lênin; do mesmo modo os partidos stalinistas, a fim de sabotar mais eficazmente as lutas operárias, usurparam o prestígio que adquiriu, aos olhos dos operários do mundo inteiro, a Revolução Russa de 1917 e os combatentes bolcheviques.

Em outros termos, a caracterização precedente que fizemos dos partidos social-democratas aplica-se do mesmo modo aos partidos comunistas ou a suas variantes atuais: trotskistas, guevaristas, chavistas, etc. Todos fazem parte da esquerda do capital.

Dirigir-se à esquerda do capital para lhe mostrar seus "erros" só pode ser fonte de mistificação da classe operária. A mistificação se torna maior ainda quando se fala "das revoluções soviéticas, chinesas e cubanas", ou também dos revolucionários "Mao, Fidel e muitos outros".

O triunfo da contrarrevolução na Rússia produziu-se sob a marca da reorganização da economia nacional com as formas mais acabadas do capitalismo de Estado, cinicamente apresentadas pela circunstância como "prolongamentos de outubro" e "construção do socialismo". O exemplo foi retomado em outros lugares: China, Países do Leste, Cuba, Coreia do Norte, Indochina, etc. Entretanto, não há nada de proletário, e menos ainda de  comunista em todos estes países, onde sob o peso da maior mentira da história, reina nas suas formas mais decadentes, a ditadura do capital. Além do mais, os regimes destes países não são o resultado de revoluções proletárias degeneradas, como foi o caso na Rússia, mas de confrontações entre frações adversas da burguesia. 

Conclusão

Achamos que o assunto escolhido pelos autores do livro merece amplamente ser dicutido no campo do proletariado. Mas estimamos também que este livro coloca a necessidade de discussões pelo menos tão fundamentais para clarear a própria natureza das ditas revoluções chinesas e cubanas, do campo ao qual pertencem pretendidos revolucionários como Mao e Fidel. Em nossa opinião, uma caracterização da fronteira de classe entre organizações do proletariado e organizações da esquerda do capital é necessária. Mas ela não se efetua sobre a base de critérios próprios de tal ou qual organização, tal ou qual pensador, e sim a partir do posicionamento diante de momentos chave na vida da sociedade que são a guerra e a revolução, que colocam a necessidade da defesa dos princípios intimamente ligados à essência internacionalista e revolucionária do proletariado.


[1] Tonet, Ivo e Nascimento, Adriano. Descaminhos da esquerda: Da centralidade do trabalho à centralidade da política. Editora Alfa-Omega, São Paulo: 2009.

[2] Para mais desenvolvimentos sobre esta questão da adesão de Marx ao comunismo, ler o artigo em espanhol "Como el proletariado se ganó a Marx para el comunismo" da série El comunismo no es un bello ideal... na Revista internacional n° 69.

[3] Marx. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.

[4] Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos. Cáp: Propriedade Privada e Comunismo; [https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap04.htm]; tradução alterada por nós, em comparação com a versão francesa; no original em português é a seguinte: "O papel do trabalhador não é abolido, mas ampliado a todos os homens"

[5] Ibid..

[6] Para desenvolvimentos mais amplos sobre esta questão da adesão de Marx ao comunismo e da alienação, ler os artigos em espanhol "La alienación del trabajo constituye la premisa de su emancipación" e "El comunismo: verdadero comienzo de la sociedad humana" da série El comunismo no es un bello ideal... nos números 70 e 71 da Revista internacional.

[7] Sobre as críticas do "comunismo vulgar" feitas por Marx, ler o artigo "Del comunismo primitivo al socialismo utópico" da série El comunismo no es un bello ideal... no número 68 da Revista internacional.

[8] Sobre a contrarrevolução na Revolução Russa leia o nosso artigo: "A degeneração da Revolução Russa" [Link: https://pt.internationalism.org/ICCOline/2008/degeneracao_da_Revolucao_R...

[9] Victor Considérant (1808-1893). Filósofo e economista francês adepto das concepções de Fourier.

[10] Manuscritos Econômico-Filosóficos. Cáp.: Propriedade Privada e Comunismo; Traduzido a partir do francês.

[11] Marx e Engels, A Ideologia alemã. Ed. Boitempo: 2007, p. 32-33.

[12] Marx, Prefácio à Introdução à Crítica da economia política - Ed. Martins Fontes, 1977, p. 24-25

[13] Ibid.

[14] Para desenvolvimentos mais amplos sobre esta questão do materialismo em Marx, ler Que método científico deve usar-se para compreender a ordem social existente, as condições e meios de sua superação? https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/decadencia_do_capitalismo_Que_m%C3%A9todo_cient%C3%ADfico ; https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Decadencia_dos_modos_de_producao

[15]

Ler a propósito desta questão nossa brochura em espanhol Organización comunista y conciencia de clase e o artigo em espanhol "La conciencia de clase y el papel de los revolucionarios" da Revista internacional n°7.

[16]

Lênin retomou em Que Fazer passagens inteiras de um artigo de Kausky publicado no Neue-Zeit de 1901: "A consciência socialista de hoje não pode surgir senão à base de um profundo conhecimento científico. De fato, a ciência econômica contemporânea constitui tanto uma condição da produção socialista como, por exemplo, a técnica moderna, e, apesar de todo o seu desejo, o proletariado não pode criá-las; ambas surgem do processo social contemporâneo. Ora, o portador da ciência não é o proletariado, mas os intelectuais burgueses: foi do cérebro de certos indivíduos dessa categoria que nasceu o socialismo contemporâneo, e foram eles que o transmitiram aos proletários intelectualmente mais evoluídos, que o introduziram, em seguida, na luta de classe do proletariado onde as condições o permitiram. Assim, pois, a consciência socialista é um elemento importado de fora na luta de classe do Proletariado, e não algo que surgiu espontaneamente" (Que Fazer?- https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm)

[17]

A propósito disso, ler nosso artigo Lênin e as questões de organização. https://pt.internationalism.org/icconline/2007/leninismo-e-organizacao.

[18] Lênin, Relatório sobre a revolução 1905 (janeiro de 1917) https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/01/22.htm

[19] A propósito da nossa concepção do partido, ler nosso artigo em espanhol "El Partido y sus lazos con la clase" na Revista internacional n° 35.

[20] Marx, Sobre a questão judaica. Ed. Boitempo: 2010, p. 72.

[21] Marx, A Miséria da Filosofia. Global Editora, p.160.

[22] Ibid.

[23] Para mais desenvolvimentos sobre esta questão, ler o artigo em espanhol "1848: el comunismo como programa político" da série El comunismo no es un bello ideal... na Revista internacional n° 72.

[24] Marx e Engels, A Ideologia alemã. Ed. Boitempo, pag.41.

[25] Nas últimas edições deste texto, Engels precisou que esta tomada de posição aplicava-se a "toda a história escrita" e não às formas sociais comunitárias que antecederam a aparição das divisões em classes.

[26] Marx e Engels. Manifesto do partido comunista. Cáp: Proletários e Comunistas. https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap2.htm

[27] Para mais desenvolvimentos sobre esta questão, ler o artigo em espanhol "1871: la primera dictadura del proletariado" - El comunismo: una sociedad sin Estado - da série El comunismo no es un bello ideal... na Revista internacional n° 77.

[28] Marx, A Guerra civil na França. Editions sociales. Traduzido do francês a partir do primeiro ensaio de Marx.

[29] Engels. Introdução à Guerra civil na França. 1891. https://www.bookess.com/read/1920-a-guerra-civil-na-franca/

[30] Nota da redação: Obra de Marx conhecida também sob o título Materiais para O Capital.

[31] Crítica ao Programa de Gotha. Observações à Margem do Programa do Partido Operário Alemão. Parte I, p. 22.

[32] Ibid., p. 26.

[33] Ler mais em A Primeira Guerra mundial e a onda revolucionária mundial de 1917-23 abrem a época das guerras e das revoluções. https://pt.internationalism.org/icconline/2006/debate_guerras_e_das_revolucaoes_CCI

[34] Engels. Os princípios do comunismo. Obras Escolhidas em três tomos, Editorial Avante!; https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/11/principios.htm

[35] A propósito da Esquerda comunista, ler nosso artigo A Esquerda comunista e a continuidade do marxismo. https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista

[36] Ler mais em "1933-1946: el enigma ruso y la Izquierda comunista italiana" na Revista Internacional n° 106.

[37] Natureza e evolução da revolução russa - resposta ao companheiro Hennaut. Em Bilan n° 35, setembro de 1936. Traduzido a partir do francês.

[38] Para uma exposição mais detalhada da nossa posição sobre esta questão, ler a série de artigos O período de transição do capitalismo ao comunismo (https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/per%C3%ADodo_de_transi%C3%A7cao_do_capitalismo_ao_comunismo) e, em particular O estado no período de transição (https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_per%C3%ADodo_de_transicao)

[39] Lissagaray, História da Comuna de 1871. Ed. Ensaio :1991.

[40] Rosa Luxemburg. A revolução russa. www.socialismo.org.br/portal/images/stories/documentos/revista2/A_Revolu...

[41] Ler a este propósito a argumentação desenvolvida no nosso artigo "Debate sobre os erros da Revolução Russa".

[42]

Ler a propósito destes acontecimentos nossos artigos em espanhol Hace 90 años, la revolución alemana (IV): "1918-1919: la guerra civil en Alemania" e El terror dirigido por la socialdemocracia contra la clase obrera preparó el terreno al fascismo (https://es.internationalism.org/node/2566) dos n° 136 e 137 da Revista internacional.