Covid-19: um sintoma da fase terminal da decadência capitalista

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No final do nosso primeiro artigo sobre a pandemia de Covid-19, assinalámos: "Quer este novo vírus Covid-19 se torne uma nova pandemia, como aconteceu com a SRAG, quer persista como um novo vírus respiratório sazonal, esta nova doença é uma nova uma advertência de que o capitalismo se tornou um perigo para a humanidade e para a vida neste planeta. As enormes capacidades de desenvolvimento das forças produtivas, incluindo a ciência médica, para nos proteger das doenças estão sendo atropeladas com essa busca criminosa do lucro, pela superconcentração de uma grande parte da população humana em cidades inabitáveis, e com os riscos de novas epidemias que isso implica."

Hoje, esta pandemia tornou-se um problema de grande magnitude a nível mundial e causou um verdadeiro "tsunami" económico com consequências desastrosas. Por falta de espaço, não vamos entrar aqui na análise das suas implicações nesta dimensão económica. Faremos isso em um artigo futuro. No que se segue, vamos nos concentrar em analisar como esta epidemia revela a doença do capitalismo. 

Está confirmado: a Covid-19 é uma manifestação da decomposição capitalista!

Hoje, confirmam-se as previsões mais pessimistas e a OMS deve reconhecer que se trata de uma pandemia global que já se estendeu a 117 países em todos os continentes, que o número de pessoas afetadas ultrapassa 120 000, que o número de mortes nas primeiras semanas da pandemia é superior a 4 000, etc. O que começou como um "problema" na China tornou-se agora uma crise social nas principais potências capitalistas do planeta (Japão, Estados Unidos, Europa Ocidental, etc.). Só na Itália, o número de mortes já excede as causadas a nível mundial pela epidemia da SRAS de 2002-2003. E as medidas draconianas de controle da população tomadas há um mês pelas autoridades "tirânicas" chinesas, como o confinamento de milhões de pessoas[1], e o draconiano "darwinismo social" de excluir dos serviços hospitalares todos aqueles que não são "prioridades" na luta para conter a doença, são agora comuns em muitas grandes cidades em todos os países afetados em todos os continentes.

As "mídias" burgueses estão constantemente nos bombardeando com dados, recomendações e "explicações" sem fim sobre o que eles querem nos apresentar como uma espécie de praga, um novo desastre "natural". Mas não há nada de "natural" nesta catástrofe; ela é o resultado da ditadura asfixiante do modo de produção capitalista senil e ultrapassado contra a natureza, e dentro dela, contra a espécie humana.

Os revolucionários não são competentes para realizar estudos epidemiológicos nem para fazer prognósticos sobre a evolução das doenças. O nosso papel é explicar, numa base materialista, as condições sociais que tornam possível e inevitável a ocorrência destes eventos catastróficos. Portanto, deixamos claro que a essência do sistema capitalista é colocar a exploração, o lucro e a acumulação à frente das necessidades humanas.  Que um tipo diferente de capitalismo não é possível.  Mas também podemos afirmar que essas mesmas relações capitalistas de produção que, num momento da história, permitiram um enorme progresso das forças produtivas (da ciência, de um certo domínio sobre a natureza para conter o sofrimento que ela impunha aos homens, ...) se tornaram hoje um obstáculo ao desenvolvimento destas.  Também explicamos como o prolongamento por décadas desta fase de decadência capitalista levou, na ausência de uma solução revolucionária, à entrada numa nova fase: a da decomposição social[2], onde todas estas tendências destrutivas estão ainda mais concentradas, à deriva numa multiplicação do caos, da barbárie, do colapso progressivo das próprias estruturas sociais que garantem um mínimo de coesão social, ameaçando a própria sobrevivência da vida no planeta Terra.

Elucubrações de um punhado de marxistas ultrapassados?  Com certeza não.  Os cientistas que falam mais rigorosamente sobre o desenvolvimento da atual pandemia de Covid-19 afirmam que a proliferação deste tipo de epidemia é causada, entre outras coisas, pela deterioração acelerada do meio ambiente, que leva a um maior contágio a partir de animais (zoonoses) que, para sobreviver, estão próximos às concentrações humanas, e ao mesmo tempo é favorecida pela superpopulação de milhões de seres humanos em megalópoles que causam curvas de contágio verdadeiramente vertiginosas.  Como explicamos em nosso artigo anterior sobre o Covid-19[3] , alguns médicos na China haviam de fato tentado alertar sobre um novo risco de uma epidemia de corona vírus, a partir de dezembro de 2019, mas foram diretamente censurados e reprimidos pelo Estado, pois isso ameaçava a imagem de uma importante potência mundial à qual a capital chinesa aspira.

A CCI também não é a primeira a insistir que uma das principais forças motrizes por trás da propagação desta pandemia é a crescente falta de coordenação das políticas dos diferentes países, que é uma das características do capitalismo, mas que é cada vez mais reforçada pelo avanço do "cada um por si" e da "voltada para si próprio" que caracteriza os estados e os capitalistas na fase de decomposição deste sistema e que tende a permear todas as relações sociais.

Não estamos a descobrir nada de novo quando assinalamos que o perigo desta doença não reside tanto no vírus em si, mas no fato de esta pandemia estar ocorrendo num contexto de enorme deterioração, ao longo de décadas e à escala global, das infraestruturas de saúde. De fato, é a "administração" destas estruturas cada vez mais pequenas e defeituosas que dita as políticas dos vários Estados, numa tentativa de atrasar o anúncio do aparecimento de novos casos, mesmo que isso signifique prolongar o efeito desta pandemia ao longo do tempo. E será esta degradação irresponsável dos recursos acumulados por décadas de trabalho humano - conhecimento, tecnologia, etc. – não reflete uma absoluta falta de perspectiva, uma total ausência de preocupação com o futuro da espécie humana, característica de uma forma de organização social - o capitalismo - que está em decomposição?

Como é possível que no século XXI haja uma epidemia que os Estados mais poderosos do mundo não possam conter?

É claro que houve outras epidemias extremamente mortais na história da humanidade. Hoje em dia, é fácil encontrar nas "mídias" burgueses investigações e livros sobre como a varíola e o sarampo, a cólera ou a peste causaram milhões de mortes. O que falta em tais alegações é uma explicação de que a causa dessas mortes é essencialmente uma sociedade de escassez, tanto em termos de condições de vida como de conhecimento da natureza. O capitalismo coloca, precisamente, a possibilidade histórica de superar esta etapa de escassez material e, através do desenvolvimento das forças produtivas, de lançar as bases de uma abundância que poderia permitir uma verdadeira unificação e libertação da humanidade em uma sociedade comunista. Se considerarmos o século XIX, ou seja, o estágio de máxima expansão capitalista, podemos ver como a saúde, e portanto a doença, não é mais percebida como inevitável, como há progresso não só na pesquisa, mas também na comunicação entre diferentes pesquisadores, como há uma mudança real em direção a uma abordagem mais "científica" da medicina[4]. E tudo isso tem uma aplicação na vida diária das populações: desde medidas para melhorar o saneamento público até vacinas, desde a formação de especialistas médicos até a criação de hospitais. O aumento da população (de um para dois bilhões de pessoas) e especialmente da expectativa de vida (de 30-40 anos no início do século 19 para 50-65 anos em 1900) deve-se essencialmente a este avanço da ciência e do saneamento. Nada disto foi feito pela burguesia num espírito altruísta para as necessidades da população. O capitalismo nasceu "respingando de sangue e lama", como disse Marx. Mas em meio a este horror, o seu objetivo é obter a máxima rentabilidade da mão-de-obra, dos conhecimentos adquiridos pelos seus escravos assalariados durante as décadas de aprendizagem de novos procedimentos de produção, para garantir a estabilidade do transporte de fornecimentos e mercadorias, etc. Isto tornou a classe exploradora "interessada" - ao menor custo, também é verdade - em prolongar a vida laboral dos seus empregados, em assegurar a reprodução da mercadoria que é a força de trabalho, em aumentar a mais-valia relativa através do aumento da produtividade da classe explorada.

Esta situação foi invertida através da mudança de período histórico entre o período ascendente do capitalismo e sua decadência, que nós revolucionários colocamos, após a Internacional Comunista, a partir da Primeira Guerra Mundial[5]. Não é por acaso que, por volta de 1918, ocorreu uma das epidemias mais mortíferas da história da humanidade: a chamada "gripe espanhola" de 1918-19. Na magnitude desta pandemia, vemos que não é tanto a virulência do patógeno como as condições sociais características da guerra imperialista na decadência capitalista (a dimensão global do conflito, o impacto da guerra na população civil das principais nações, etc.) que explicam a dimensão da catástrofe: 50 milhões de mortos, quando o número de mortos  na Primeira Guerra Mundial é estimado a 10 milhões de mortos.

Esta guerra e horror teve um segundo episódio, ainda mais aterrador, na Segunda Guerra Mundial. As atrocidades da primeira carnificina imperialista, como o uso de gases asfixiantes, foram momentaneamente deixadas de lado antes das barbaridades da Guerra Mundial de 1939-45 serem desencadeadas por todas as potências envolvidas: desde o uso de seres humanos para as experiências alemãs e japonesas, ao uso precoce de armas biológicas (o antraz foi experimentado pelos britânicos, por exemplo), até seu clímax com o uso da bomba atômica pelos americanos. O respeito mais básico pela vida humana revelou-se então incapaz de impedir o desdobramento de todo o potencial devastador do militarismo capitalista.

E no chamado período de "paz" que se segue? É verdade que as grandes potências capitalistas montaram sistemas de saúde, baseados no modelo do SHS britânico criado em 1948 - que é considerado como uma das referências fundadoras do chamado "Estado-Providência" - para prestar cuidados de saúde "universais" que visavam, entre outras coisas, prevenir epidemias como a gripe espanhola. Será que o capitalismo humanitário se tornou uma conquista dos trabalhadores? Certamente que não. O objetivo destas medidas era assegurar a reparação, ao menor custo, de uma mão-de-obra (um bem raro porque a guerra tinha arrastado grandes sectores do proletariado para a sepultura) e garantir todo o processo produtivo de reconstrução. Isto não significa que os "remédios" empregados não se tornem, eles próprios, fontes de novos males. Vemos isto, por exemplo, no uso de antibióticos prescritos para deter as infecções mas que, de acordo com as necessidades da produtividade capitalista, são prescritos abusivamente a todo o custo para encurtar os períodos de licença médica. E isto acabou por causar um grande problema de resistência bacteriana - as chamadas "superbactérias" - que acabam reduzindo o arsenal terapêutico para atacar infecções. Também se manifesta no aumento de doenças como a obesidade e a diabetes, causadas pela deterioração do regime alimentar da classe trabalhadora - ou seja, uma redução do  custo da reprodução da força de trabalho da classe explorada - e das camadas mais pobres da sociedade, ao ponto de o uso da tecnologia alimentar pelo capitalismo ser um fator de propagação da obesidade. E também podemos ver como os remédios prescritos para tornar mais suportável a dor crescente que este sistema de exploração inflige à população trabalhadora levaram a fenômenos como a epidemia causada pelo uso intensivo de substâncias opiláceas  que, até a chegada do Corona vírus, era, por exemplo, o principal problema de saúde nos Estados Unidos, causando mais mortes do que todas as vítimas da Guerra do Vietnã.

A pandemia de Covid-19 não pode ser apartada do restante dos problemas que afetam a saúde da humanidade. Pelo contrário, mostram que a situação só pode piorar se continuar sujeita ao sistema de saúde desumanizado e mercantilizado que é o sistema de saúde capitalista do século XXI. A origem das doenças hoje não é tanto a falta de conhecimento ou de tecnologia por parte da humanidade. Da mesma forma, os conhecimentos atuais em epidemiologia devem permitir conter uma nova epidemia. Por exemplo: em apenas duas semanas após a descoberta da doença, os laboratórios de pesquisa já tinham conseguido sequenciar o vírus que causou o Covid-19. O obstáculo que a população deve superar é que a sociedade está sujeita a um modo de produção que beneficia uma minoria social exploradora e se tornou um empecilho ao tratamento contra as doenças. O que vemos é que a corrida para desenvolver uma vacina, em vez de ser um esforço coletivo e coordenado, é na verdade uma guerra comercial entre laboratórios. As necessidades humanas genuínas estão subordinadas às leis da selva capitalista. Concorrência feroz para chegar primeiro a uma parcela do mercado e poder tirar os lucros dessa vantagem é a única coisa que importa a qualquer capitalista.

Quem está pondo em perigo a vida da humanidade, a "irresponsabilidade" individual ou as limitações de um sistema social em decadência?

Em nosso recente 23º Congresso Internacional, adotamos uma resolução sobre a situação internacional, na qual retomamos e reivindicamos a validade do que tínhamos escrito em nossas teses sobre Decomposição :

"As teses de maio de 1990 sobre a decomposição destacam uma série de características na evolução da sociedade resultantes da entrada do capitalismo nesta última fase da sua existência. O relatório aprovado pelo 22º Congresso apontou o agravamento de todas essas características, por exemplo:

  • "A multiplicação da fome nos países do "Terceiro Mundo";
  • A transformação desse mesmo "Terceiro Mundo" em uma enorme aglomeração onde centenas de milhões de seres humanos sobrevivem como ratos nos esgotos;
  • O desenvolvimento do mesmo fenômeno no coração das grandes cidades dos países "avançados";
  • O aumento do número de catástrofes "acidentais" (...) os efeitos humanos, sociais e econômicos cada vez mais devastadores das catástrofes "naturais";
  • A degradação do ambiente, que está a atingindo proporções surpreendentes" (Ibid. ponto. 7)"

O que podemos ver hoje é que estas manifestações se tornaram o fator decisivo na evolução da sociedade capitalista, e que só a partir delas podemos interpretar o surgimento e desenvolvimento de eventos sociais de grande escala. Se olharmos para o que está acontecendo com a pandemia de Covid-19, podemos ver a importância da influência de dois elementos característicos desta fase terminal do capitalismo:

1. Em primeiro lugar, a China não é apenas o cenário geográfico para a origem das epidemias mais recentes com o surto da SRA em 2002-2003 ou Covid-19. Para além deste elemento circunstancial, é necessário compreender as características do desenvolvimento do capitalismo chinês na fase de decomposição do capitalismo mundial e a sua influência na situação atual. Em poucos anos, a China tornou-se a segunda potência mundial com enorme importância no comércio e na economia mundial, beneficiando inicialmente do apoio dos EUA após sua mudança do bloco imperialista (em 1972) e, após o desaparecimento desses blocos em 1989, como principal beneficiário da chamada globalização. Mas precisamente por causa disto, "A potência da China tem todos os estigmas do capitalismo terminal: baseia-se na  superexploração da força de trabalho proletária, no desenvolvimento desenfreado da economia de guerra do programa nacional de "fusão civil-militar" e é acompanhado pela destruição catastrófica do ambiente, enquanto a "coesão nacional" se baseia no controle policial das massas sujeitas à educação política do Partido Único (...) De fato, a China é apenas uma metástase gigantesca do câncer militarista generalizado de todo o sistema capitalista: sua produção militar está se desenvolvendo a um ritmo frenético, seu orçamento de defesa se multiplicou por seis em 20 anos e está em segundo lugar no mundo desde 2010"[6]

Este desenvolvimento da China, tão frequentemente apresentado como um exemplo da força duradoura do capitalismo, é na verdade a principal manifestação da sua decrepitude. A influência das suas conquistas tecnológicas ou da sua expansão pelo mundo graças a iniciativas espetaculares como a nova "Rota da Seda", não pode fazer-nos perder de vista as condições de sobre-exploração enorme (dias de trabalho esgotantes, salários miseráveis, etc.) em que centenas de milhões de trabalhadores sobrevivem, em condições de habitação, alimentação, cultura, que são enormemente retrógradas e que, além disso, estão tornando-se cada vez mais incipientes. Por exemplo, as despesas de saúde per capita, já de si escassas, diminuíram em 2,3%. Outro exemplo edificante são os alimentos que são produzidos com padrões de higiene muito baixos ou diretamente sem nenhuma, como no consumo de carne de animais silvestres no mercado negro. Nos últimos dois anos, a pior epidemia da história da gripe suína africana espalhou-se pela China, forçando o abate de 30% destes animais e provocando um aumento de 70% no preço da carne de porco.

2. O segundo elemento que mostra o crescente impacto da decomposição capitalista é a erosão do mínimo de coordenação que existia entre as diferentes capitais nacionais. É verdade que, como o marxismo analisou, a unidade máxima a que o capitalismo pode aspirar - mesmo relutantemente - é o Estado nacional e, portanto, o superimperialismo não é possível. Isto não significa que, quando o mundo foi dividido em blocos imperialistas, não foi criada toda uma série de estruturas, desde a UNESCO até à Organização Mundial de Saúde, que tentaram gerir um mínimo de interesses comuns entre as diferentes capitais nacionais. Mas esta tendência para um mínimo de coordenação está se deteriorando- à medida que a fase de decomposição capitalista avança. Como também analisámos na já citada resolução sobre a situação internacional do nosso 23º Congresso: "O aprofundamento da crise (assim como as exigências da rivalidade imperialista) está pondo à prova as instituições e mecanismos multilaterais" (ponto 20).

Isto pode ser visto, por exemplo, no papel desempenhado pela Organização Mundial de Saúde. A coordenação internacional face à epidemia da SRAS em 2002-2003, assim como a rapidez de certas descobertas[7] em laboratórios de todo o mundo, explicam a baixa incidência de um vírus de uma família muito semelhante à do atual Covid-19. No entanto, este papel foi posto em causa pela resposta desproporcionada da OMS ao surto de gripe A de 2009, em que o alarmismo da instituição foi usado para provocar vendas massivas do antiviral "Tamiflu" fabricado por um laboratório no qual o ex-secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, tinha um interesse declarado. Desde então, a OMS tem sido quase relegada ao papel de uma ONG que faz "recomendações" pontuais mas é incapaz de impor as suas diretivas aos vários capitais nacionais. Nem sequer são capazes de unificar os critérios estatísticos de contagem de pessoas infectadas, o que abre caminho para que cada capital nacional tente esconder, durante o máximo de tempo possível, o impacto da epidemia nos seus respectivos países. Isto aconteceu não só na China, que tentou esconder os primeiros sinais da epidemia, mas também nos Estados Unidos, que estão tentando varrer para debaixo do tapete o número de pessoas afetadas para não revelar um sistema de saúde baseado em seguros privados, ao qual 30% dos cidadãos americanos praticamente não têm acesso. A heterogeneidade dos critérios de aplicação dos testes diagnósticos, ou as diferenças entre os protocolos de atuação nas diferentes fases, têm sem dúvida repercussões negativas para conter a propagação de uma pandemia global. Pior ainda, cada capital nacional adota medidas que proíbem a exportação de equipamento de proteção e higiene ou de aparelhos de respiração, como fizeram, por exemplo, a Alemanha de Merkel ou a França de Macron. Estas são medidas que favorecem a defesa do interesse nacional em detrimento do que pode ser mais urgente em outros países..

Como podemos pôr fim à devastação da saúde, ao trabalho de dominação das relações capitalistas?

A propaganda da mídia nos bombardeia constantemente com apelos à responsabilidade individual dos cidadãos para evitar o colapso dos sistemas de saúde que, em muitos países, estão mostrando sinais de exaustão (exaustão dos trabalhadores, falta de recursos materiais e técnicos, etc.) A primeira coisa a denunciar é que estamos diante da crônica de um desastre anunciado, e não por causa da "irresponsabilidade" dos cidadãos, mas por causa de décadas de cortes nos gastos na saúde, o número de trabalhadores da saúde e os orçamentos de manutenção dos hospitais e da pesquisa médica.[8]...  Por exemplo, na Espanha, um dos países mais próximos do "colapso" que somos chamados a evitar, sucessivos planos de redução levaram ao desaparecimento de 8 000 leitos hospitalares[9], com  unidades de tratamento intensivo abaixo da média europeia,  com equipamentos em mau estado de conservação (67% do equipamento respiratório tem mais de 10 anos). A situação é muito semelhante na Itália e na França. Na Grã-Bretanha acima mencionada, que havia sido apresentada como modelo de atenção universal à saúde, houve uma deterioração contínua na qualidade do atendimento nos últimos 50 anos, com mais de 100 000 vagas a serem preenchidas no setor de saúde. E tudo isto foi mesmo antes do Brexit!

E são estes mesmos profissionais de saúde que viram as suas condições de vida e de trabalho deteriorarem-se sistematicamente, confrontados com uma pressão crescente para prestar cuidados (mais pacientes e mais doenças) com um número cada vez menor de funcionários, que estão agora a sofrer uma pressão adicional devido ao colapso dos serviços de saúde como resultado da pandemia, aqueles que pedem aplausos pela coragem e o auto sacrifício destes funcionários do serviço público são os mesmos que os levaram à exaustão, eliminando os intervalos  regulamentares, transferindo-os à força de um local de trabalho para outro, fazendo-os trabalhar - face a uma pandemia cuja evolução é desconhecida - sem equipamento de proteção individual suficiente (máscaras, vestuário, equipamento descartável) e formação adequada. Fazê-los trabalhar nestas condições torna-os ainda mais vulneráveis ao próprio impacto da epidemia, como vimos na Itália, onde pelo menos 10% deles foram infectados com o vírus.

E para forçar os trabalhadores a obedecer a essas requisições, eles recorrem ao arsenal repressivo de "estados de alerta" que ameaçam aqueles que se recusam a segui-los com todo tipo de sanções, multas e processos. Estas ordens e esta política das autoridades têm sido em muitos casos a causa direta de tal caos.

Diante desta situação, que impõe ao pessoal de saúde o "facto consumado" do estado desastroso dos cuidados, os trabalhadores deste sector são também obrigados a ser aqueles que, tendo de aplicar métodos próximos da eugenia, optam por dedicar os escassos recursos disponíveis aos doentes com maiores possibilidades de sobrevivência, como vimos com as orientações defendidas pela Associação Italiana de Anestesistas e Médicos de Urgência, que caracteriza a situação como a de um "estado de guerra". Na verdade, é uma guerra às necessidades humanas travada pela lógica do capital, na qual os próprios trabalhadores deste setor sofrem cada vez mais ansiedade porque têm de trabalhar de acordo com estas leis desumanas. A ansiedade expressa por muitos desses trabalhadores é o resultado do fato de que eles não podem sequer se rebelar contra tais critérios, nem podem se recusar a trabalhar em condições indignas, nem podem recusar os sacrifícios de suas condições de vida, porque fazê-lo, por exemplo, por meio de greves, prejudicaria seriamente seus irmãos e irmãs de classe, os demais explorados. Não podem sequer encontrar-se, reunir-se com outros camaradas, expressar fisicamente a solidariedade entre os trabalhadores, porque isso contraria os protocolos de "dispersão social" que a contenção da epidemia exige.

Eles, nossos camaradas do setor da saúde não podem lutar abertamente, na situação atual, mas o resto da classe trabalhadora não pode deixá-los sozinhos. Todos os trabalhadores são vítimas deste sistema e todos os trabalhadores acabarão por pagar, mais cedo ou mais tarde, o custo desta epidemia. Seja por causa de cortes de saúde "não prioritários" (suspensão de operações cirúrgicas, consultas médicas, etc.) ou por causa das dezenas de milhares de cancelamentos de contratos temporários, ou por causa da redução de salários devido a licenças médicas, etc. E aceitar isto seria dar luz verde a novos e ainda mais brutais ataques antitrabalhadores em elaboração. Devemos, portanto, continuar afiando a arma da solidariedade dos trabalhadores, como vimos recentemente nas lutas em França contra a reforma das pensões.

A explosão das contradições insuperáveis do capitalismo no coração do sistema de saúde são sintomas inequívocos da senilidade terminal e do impasse do sistema capitalista. Assim como os vírus afetam os organismos mais desgastados e causam episódios mais graves de doença, o sistema de saúde é irrevogavelmente sucateado por anos de austeridade e "gestão" baseada não nas necessidades da população, mas nas exigências de um capitalismo em crise e declínio. O mesmo vale para a economia capitalista, sustentada artificialmente pela constante manipulação das próprias leis de valor do capitalista e a fuga para o endividamento, tornando-a tão frágil que uma epidemia poderia precipitar uma nova e ainda mais brutal recessão global.

Mas o proletariado não é apenas a vítima desta catástrofe para a humanidade que é o capitalismo. É também a classe que tem o potencial e a capacidade histórica de erradicá-lo definitivamente através de sua luta, desenvolvendo sua reflexão consciente, sua solidariedade de classe. Só a sua revolução comunista pode e deve substituir as relações humanas baseadas na divisão e na competição por aquelas baseadas na solidariedade. Ao organizar a produção, o trabalho, os recursos da humanidade e da natureza com base nas necessidades humanas e não com base nas leis do lucro de uma minoria exploradora.

Valerio 13 de Março de 2020


[1]   Claramente, é necessário impedir as pessoas de viajar ou encorajá-las a ficar em casa, pois a propagação da infecção deve ser evitada. Mas a forma como estas medidas são impostas (sem praticamente nenhum apoio estatal para o cuidado de crianças ou idosos, seletivamente - e embora não ponham em causa, por exemplo, o trabalho nas fábricas - ao mesmo tempo que desenvolvem um verdadeiro policiamento da população) ostenta a marca do modus operandi do totalitarismo de estado capitalista. Em nossos próximos artigos, voltaremos também ao impacto dessas ações na vida cotidiana dos explorados no mundo.

[4] Procurando as causas objetivas das infecções e não religiosas ou fantásticas (a "tória de 4 humores" da medicina antiga, por exemplo), tentando obter uma imagem materialista da anatomia e fisiologia humana, etc., somos capazes de identificar as causas das infecções.

[5] Veja nos números mais recentes da nossa Revista Internacional (Nos. 162 e 163) os nossos artigos sobre o centenário da Internacional Comunista.

[7] Por exemplo, o papel do civeta  como transmissor intermediário da doença para os seres humanos levou a uma eliminação relâmpago destes animais na China, o que impediu muito rapidamente a propagação da doença.

[8] Em França, por exemplo, a pesquisa iniciada sobre a família coronavírus após a epidemia de 2002-2003 foi abruptamente interrompida em 2005 devido a cortes orçamentais.

[9] Esta tendência é uma dinâmica que pode ser vista em todos os países e sob governos de todas as cores políticas, como pode ser visto neste gráfico do Euroestat.

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Pandemia de Coronavírus