Um debate entre revolucionários sobre a situação social no Brasil: Perigo de fascismo? Mistificação antifascista ; Perspectivas da luta de classe

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A CCI no Brasil realizou recentemente alguns eventos envolvendo contatos e simpatizantes de nossa organização sobre o assunto, “diante da alternativa fascismo -antifascismo, o proletariado não tem um campo para escolher”. Damos conta dos debates e questionamentos que surgiram, acrescentando alguns comentários e precisões a posteriori da nossa parte.

O tema da situação no Brasil foi precedido por aspectos gerais considerando a pandemia do Corona vírus que a mídia de todo o mundo tem feito uma ampla cobertura, com uma atenção particular para a situação nos Estados Unidos e especialmente no Brasil, principalmente por causa da atuação de Trump e Bolsonaro. Muito mais explicitamente do que em outros países, estes personagens repugnantes expressaram de forma cruel e gritante a verdadeira natureza e preocupação da burguesia mundial diante da crise do Coronavírus: Salvaguardar a todo custo o lucro gerado pela exploração da classe trabalhadora, forçando os trabalhadores a permanecerem em seus postos de trabalho com alto risco de contaminação, às vezes sem proteção.  Na realidade, a política das outras frações da burguesia mundial também demonstra o perigo crescente que o capitalismo mundial constitui para a sobrevivência da humanidade, através da incapacidade de enfrentar a pandemia do Covid 19 apesar do desenvolvimento considerável das forças produtivas. E se elas repercutem tanto em torno do caso Bolsonaro é para tentar ocultar que a  na realidade, no fundo não são tão dissemelhantes.

Se além do  Covid, o proletariado  brasileiro tem de enfrentar a estupidez criminosa de Bolsonaro e as suas odiosas orientações políticas abertamente antitrabalhadores e criminosas, que encontram um solo fértil na proliferação das seitas, das quadrilhas, na rejeição do pensamento racional, coerente, ... esse proletariado tem também de enfrentar um inimigo muito mais insidioso e, portanto, ainda mais perigoso …

Com efeito, em nome do antifascismo, forças ligadas principalmente à esquerda ou extrema esquerda do  capital, pretendam mobilizar contra o “diabo fascista” Bolsonaro. Mais se o diabo existisse, ele seria só uma expressão a mais do capitalismo, ao lado das outras como a democracia burguesa. No fundo, todas defendem a ordem existente, o capitalismo, que está arrastando o mundo para uma catástrofe fatal para a humanidade.

Um contato muito próximo introduziu à discussão

Na última semana, observamos uma onda de manifestações antifascistas nas redes sociais. Muitas pessoas modificaram suas fotos de perfil, postando diversos modelos da bandeira antifa. Essa onda foi alimentada por tensões anteriores, mas parece ter sido desencadeada por uma reação de repúdio às manifestações do grupo “Os 300 do Brasil” e, sobretudo, aos vídeos de Bolsonaro tomando leite. Os 300, liderados pela bolsonarista Sara Winter, realizou uma pequena manifestação em Brasília marchando com tochas, no estilo Ku Klux Klan. O grupo é acusado de ser uma milícia com o objetivo declarado de exterminar a esquerda. Por outro lado, os vídeos tomando leite são um símbolo dos supremacistas brancos. Evidentemente, Bolsonaro nega ter tido essa intenção, porém a tensão não se desfez, sobretudo porque esse caso soma-se ao do ex-secretário da cultura, Roberto Alvim, que fez um pronunciamento cujo texto parafraseava Joseph Goebbels. Parecem ser muitos os sinais de flerte do governo Bolsonaro com o fascismo. Diante disso, surgem algumas questões. O governo atual é fascista? Ainda que não o seja, existe o risco dele se desenvolver nesse sentido? O avanço da extrema direita não é um fenômeno tipicamente brasileiro. Na verdade, ele parece até mais acirrado em outras partes do mundo, sobretudo na Europa. Desde o aprofundamento da crise em 2010, alguns países europeus estão sendo levados por uma onda nacionalista que se agravou com a crise de imigração. No Brasil, o antifascismo se manifestou com alguma notoriedade já nas últimas eleições presidenciais com o movimento “Ele Não”, quando até os grupos de esquerda que geralmente faziam campanhas de voto nulo abraçaram a campanha de Haddad. Porém, diferente de 2017, as manifestações recentes parecem ter ampliado seu espectro ideológico, alcançado partidos mais à direita. Até Celso de Mello, ministro do STF (suprema corte de justiça), manifestou preocupação ao afirmar que “o ovo da serpente parece estar prestes a eclodir no Brasil”.

Apesar da situação de pandemia, algumas manifestações em defesa da democracia estão acontecendo no país. No Twitter, a troca massiva das fotos de perfil por bandeiras antifas gerou longos debates sobre sua natureza. Alguns stalinistas criticaram sua massificação, inclusive sua utilização por pessoas reconhecidamente liberais. Afirmaram que o antifascismo é simultaneamente “anticapitalista”, por isso nem todos poderiam se reivindicar enquanto tais. Todavia, essa reação parece seguir os desejos stalinistas de controle, tentando trazer a bandeira para o seu domínio ideológico. De qualquer forma, resta a questão: o antifascismo é incompatível com o liberalismo?

As manifestações antifas já provocam reações no campo bolsonarista. No dia primeiro de junho, o deputado Daniel Silveira (PSL/RJ) apresentou um Projeto de Lei que propõe uma emenda alterando a Lei Antiterrorismo nº 13.260, de 16 de março de 2016, a fim de tipificar os grupos antifascistas como organizações terroristas. Dias depois, um grupo neonazista de São Paulo divulgou uma lista na internet com nomes e dados de pessoas identificadas por eles como antifas. Estes dados foi compartilhado pelas próprias pessoas na internet.

Diante da ameaça do avanço da extrema direita, parece irresistível não aderir à causa antifascista, pois o fascismo representa a face mais perversa do Estado. Todavia, antes de agirmos por impulso, devemos fazer uma reflexão racional da situação. Uma face menos perversa significa uma menor perversidade do corpo do Estado? Quais os resultados práticos da adesão ao antifascismo? A democracia é um mal menor? Será ela o extremo oposto do fascismo? O que são o fascismo e a democracia? Por que o Estado ora assume formas políticas ditatoriais, ora democráticas? Como os comunistas devem se posicionar diante desse movimento? Como o movimento operário deve se posicionar?

Apesar do antifascismo ser mais notável hoje do que há 20 anos, não é a primeira vez que os comunistas se veem seduzidos por esta bandeira. No passado, quando o fascismo primeiro se manifestou entre as décadas de 1920 e 1930, diversos grupos comunistas e anarquistas aderiram à causa antifascista. A Quarta Internacional trotskista orientou seus membros e apoiadores a ingressar nas fileiras da guerra contra o Eixo. Durante a guerra civil espanhola, anarquistas e comunistas apoiaram a República, participando das eleições e pegando em armas para conter o avanço da extrema direita na Espanha. Quais são as lições históricas dessas experiências?

Por outro lado, nem todos os revolucionários aderiram ao antifascismo. Bilan[1] foi um crítico de tal adesão por considerá-la um fator de confusão para o proletariado, além de contribuir para sua adesão ao nacionalismo. Na Grécia, a União Comunista Internacionalista negou-se a apoiar as democracias contra os fascismos durante a segunda guerra mundial. Quais eram suas preocupações? Não consideravam o fascismo uma ameaça? Não lutaram contra ele?

As experiências passadas, muito embora não possam ser replicadas, podem fornecer uma luz sobre os acontecimentos do presente. Diante disso, a partir dessa análise história, precisamos colocar a seguinte questão: a quem interessa o antifascismo e como devemos nos posicionar diante dessa bandeira?

As condições históricas do fascismo

Como assinalamos na reunião, concordamos com essa introdução e a necessidade de fornecer uma base histórica para qualquer debate político. E justamente, neste sentido, lembramos quais análises do movimento operário participaram originalmente do posterior engano do proletariado ao antifascismo e quais outras, ao contrário, lançaram as bases para uma defesa intransigente da luta de classes contra a burguesia e suas diversas expressões, fascistas ou democráticas.

A intransigência da Esquerda comunista italiana [2], que de fato liderou o Partido Comunista da Itália, foi particularmente expressa, e de maneira exemplar, diante da ascensão do fascismo na Itália após a derrota dos combates em 1920. Em um nível prático, esta intransigência se manifestou em uma recusa total em forjar alianças com partidos burgueses (liberais ou “socialistas”) diante da ameaça fascista: o proletariado só poderia combater o fascismo em seu próprio terreno, a greve económica e a organização de milícias de autodefesa dos trabalhadores. No nível teórico, Bordiga foi responsável pela primeira análise séria (e ainda válida) do fenómeno fascista, uma análise que ele apresentou aos delegados do 4º Congresso da Internacional Comunista  em refutação à análise desta:

  • O fascismo não é o produto da classe média e da burguesia agrária. É a consequência da derrota do proletariado, que jogou as camadas pequena-burguesas indecisas atrás da reação fascista.
  • O fascismo não é uma reação feudal. Nasceu em grandes concentrações industriais como Milão e recebeu o apoio da burguesia industrial.
  • O fascismo não se opõe à democracia. As forças armadas são um complemento indispensável quando “o Estado não é mais suficiente para defender o poder da burguesia”.

Será que existe um perigo de fascismo no Brasil?

A popularidade dos movimentos “antifascistas” impulsionados pela esquerda, bem como pela direita democrática, tem sido motivo de preocupação em nossos contatos. Como foi sublinhado, as ações caóticas do Bolonaro, muito em sintonia com os disparates de Trump, onde ele aparece bebendo leite, num tom claramente racista, encorajando grupos que se auto denominam “fascistas”, acrescentam mais elementos à preocupação de nossos contatos, sobretudo porque a reação antifascista, e seu discurso é atraente para muitos críticos do regime. Então, é possível que o fascismo surja no Brasil? Será que Bolsonaro é um de seus primeiros porta-vozes – como defende o movimento antifascista?

O debate levou a uma conclusão muito clara: apesar das ações caóticas de Bolsonaro – algumas delas claramente racistas – elas não são expressão da ascensão do fascismo pois este sendo o produto de condições históricas muito concretas que não estão reunidas hoje em dia. Com efeito, o fascismo surge em uma época de derrota física e ideológica da classe trabalhadora, como nos anos 30. O proletariado italiano e alemão particularmente estava totalmente esmagado pelo fascismo, o proletariado russo pelo stalinismo e o proletariado em outros países industrializados democráticos, arregimentados pelo antifascismo. Isto não foi somente graças ao fascismo, mas também através das correntes esquerdistas -especialmente sua inclinação “crítica” trotskista- que levou à “luta”, primeiro, a classe trabalhadora na defesa do “mal menor” da República na Espanha, e depois, alistou a classe trabalhadora na 2ª Guerra Mundial do século 20 na defesa das democracias ocidentais.

O debate sobre o “mal menor” questionou o falso dualismo do “fascismo versus democracia”. Como foi argumentado, o antifascismo, portanto, é um beco sem saída, que tem efeitos perniciosos para a unidade de classe, pois sustenta uma série de elementos, previamente apontados, que procuram minar precisamente sua unidade; por um lado, fazendo-os acreditar que diante do perigo do “fascismo”, é necessário organizar-se para salvar os interesses de uma nação; em outras palavras, é imperativo defender a “democracia” que se coloca como “um mal menor”.

O fascismo é o oposto da democracia?

Não. Tanto Mussolini quanto Hitler chegaram ao poder precisamente graças a democracia burguesa e suas instituições parlamentares. A democracia foi a base, a tribuna, que o fascismo utilizou-se para chegar ao poder, e estabelecer sua agenda.

Neste caso, a chegada democrática de Trump o poder e particularmente de Bolsonaro não tendem a comprovar a realidade atual desse perigo de fascismo? Insistimos, as condições históricas são diferentes, daquelas em que o fascismo chegou democraticamente ao poder na Alemanha. Hoje em dia o proletariado não sofreu uma derrota decisiva como foi mundialmente o caso com a derrota da primeira onda revolucionaria mundial de 1917-23. A confusão reside no fato de que o capitalismo na sua fase atual de decomposição produz palhaços / monstros como Bolsonaro ou Trump, que expressam de maneira caricatural a tendência para o caos e o cada um por si desenfreados.

Sobre isso, o debate foi bastante claro. A democracia não é algo oposto ao fascismo que é uma das formas do capitalismo de Estado típicas do período de decadência, era (no início do século 20) uma configuração totalmente nova de organização da burguesia, onde os Estados são reforçados através da  intervenção na economia. Nos EUA, neste mesmo período, como resultado da crise capitalista de 1929, surge o New Deal, numa parte de Europa, o fascismo, na Rússia, o estalinismo. O capitalismo mundial, em resposta à sua crise sistêmica, busca a proteção dessa forma de administração que, a propósito, nas condições atuais da pandemia mundial, tende a se reforçar ainda mais.

O governo de Bolsonaro é fascista? A necessidade de uma abordagem histórica

Mesmo que ele levante elementos que poderiam estar associados ao fascismo, como um claro anticomunismo, ou um discurso abertamente racista, é inviável a existência de um regime fascista na era atual. Efetivamente. Em particular porque só a democracia é capaz de combinar mistificações democráticas e repressão para enfrentar um desenvolvimento da luta de classe contido na situação histórica atual.

Mas será que tal perspectiva está  ainda inscrita para o  futuro? Depende da evolução da correlação de forças entre proletariado e burguesia.

Será que o proletariado ainda representa uma força no Brasil? Mundialmente?

Algumas intervenções expressaram um grande pessimismo a este propósito. Alguns contatos apontam que não há lutas autônomas no Brasil, que a esquerda do capital é popular – especialmente diante da perspectiva antifascista -, que o discurso em defesa da democracia se fortalece, que as ideias da esquerda comunista são fracas, que elas têm pouca influência no Brasil e na América Latina? Um olhar dirigido só para o Brasil e o presente só pode levar a tal pessimismo.

A luta do proletariado é internacional é histórica e a dinâmica desta também é. Ao contrário do período dos anos trinta que falamos na reunião o proletariado saiu do período de contrarrevolução em 1968 com as lutas na França que iniciaram uma dinâmica internacional de luta de classe que culminou nas lutas massivas na Polônia em 1980. Apesar das grandes dificuldades encontradas pela luta de classe desde os anos 1990, o proletariado não sofreu uma derrota como acabou com a Primeira onda revolucionaria mundial. Uma demonstração  de que o proletariado está dando alguns passos em seu terreno de classe: A situação no final de 2019 - início de 2020 foi marcada por demonstrações de combatividade operária em nível internacional, particularmente na Europa e na América do Norte. Na Europa: o movimento na França contra as pensões, a greve dos correios e dos transportes na Finlândia. Nos EUA: a greve mais maciça na General Motors nos últimos 50 anos, e a primeira nos EUA em 12 anos, após um período em que houve pouca mobilização internacional da classe operária. A greve maciça em janeiro de 2020 dos 30.000 professores das escolas públicas de Los Angeles, a segunda maior cidade dos Estados Unidos, a primeira em 30 anos. É verdade que condições dadas pela ameaça persistente da pandemia constituem um obstáculo real ao desenvolvimento da luta de classe enquanto os ataques econômicos contra a classe operária são inigualáveis desde a Segunda Guerra mundial. Mas necessariamente, não sabemos ainda como e quando, classe operária voltará ao cenário. Todas as frações mundiais do proletariado enfrentam dificuldades, mas não a mesmas. É no centro do capitalismo, onde se desenvolveram lutas históricas que as condições são mais favoráveis, por conta justamente dessas experiências e dessa tradição de luta. Entretanto, cada luta do proletariado no mundo constitui uma contribuição à luta do proletariado mundial. Assim, apesar das grandes dificuldades que ele enfrenta no momento, não se pode desconsiderar as lutas passadas do proletariado brasileiro. Notadamente suas lutas massivas em 1979, sua resistência e confrontação à política antioperária dos governos Lula e Dilma (lembre-se da mobilização dos os controladores aéreos em  fevereiro de 2007[3] e sua repressão por Lula).

Uma visão imediata da luta de classes contém o perigo de quitar o terreno da luta de classe do proletariado para mobilizações tipicamente burgueses como as recentes em torno de BLM (Black Lives Matter) com um claro conteúdo burguês, ao exigir um “capitalismo humano”.

Um contato perguntou: como mobilizar o proletariado sem entrar nessas frentes antifascistas? Não se deve pensar que em qualquer momento o proletariado pode entrar em luta. Notadamente, na situação presente de pandemia, as condições de uma mobilização da classe operaria não existem realmente. Sabemos que pela frente o proletariado tem o desafio de desenvolver uma luta à altura dos ataques econômicos no mundo inteiro sem comparação desde a segunda guerra mundial.  Na situação presente imediata a responsabilidade dos revolucionários não é de empurrar os operários a entrarem em luta a tudo custo, mais de incitá-los a discutir entre eles sobre o que está em jogo, a se reagrupar para defender a compreensão disto, mesmo que seja de forma muito minoritária.

O que pensar do anticapitalismo pregado por alguns grupos notadamente antifascistas?

Será que na situação atual, existe uma via entre o anticapitalismo e o futuro comunismo? Nenhuma. Portanto, mais e mais camadas intermediarias, pequenos burgueses, arruinadas pelo capitalismo, se declararão “anticapitalistas”. Até partes importantes da classe operária, em dificuldade para reconhecer sua própria perspectiva revolucionaria, podem adotar este slogan de anticapitalismo. Isso expressa uma grande fraqueza. Mas, quando se trata de uma organização política que defende e prega o anticapitalismo, então não se trata mais de uma fraqueza mas de um logro. Não é por acaso, como foi assinalado que muitos grupos antifascistas, ligado a extrema esquerda do capitalismo como  o trotskismo, se denominam “anticapitalistas”. É o caso na França de uma organização trotskista afiliada à Quarta internacional que se chama Novo Partido Anticapitalista.

Alberto (julho 2020)


[1] Publicação em francês da Facção de Esquerda do Partido Comunista da Itália entre 1933 e 1938..

[2] Ler a este propósito "La noción de Fracción en la historia del movimiento obrero – 1a parte". Revista international n° 156.

 

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Meio proletário