Um debate animado em torno da guerra e da luta de classe

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Como em outras reuniões públicas da CCI realizadas em outros continentes sobre o tema da realidade atual da guerra e a ameaça que ela representa para a humanidade, a recente reunião no Brasil contou com a presença de companheiros que participavam pela primeira vez de uma reunião de nossa organização. Não há dúvida de que é a perspectiva terrível e única da barbárie constante que o capitalismo oferece à humanidade que explica o início da mobilização das minorias que estão refletindo sobre a situação e querem debatê-la. Logo, foi muito positivo que a discussão tenha sido motivada por um desejo genuíno de esclarecimento. Além disso, o segundo aspecto da situação mundial, o retorno da luta de classes a nível mundial, foi para a maioria dos novos participantes um fenômeno do qual eles tinham pouca ou nenhuma percepção, o que não é surpreendente, visto a atenção especial dada pela burguesia para mascarar sua realidade. Portanto, também é salutar que essa situação tenha gerado um desejo de saber e entender mais.

Muitas questões foram levantadas com relação à guerra e à luta de classes, mas nem todas puderam ser discutidas sistematicamente no contexto da reunião. Algumas foram consideradas de longe, outras até mesmo "escamoteadas", como as alterações ecológicas e climáticas. É por isso que este relatório também tem o objetivo de responder, embora muito brevemente, ao que a discussão pode ter deixado de fora.

A marcha para uma terceira guerra mundial ou a proliferação de conflitos cada vez mais devastadores

Foi feita a seguinte pergunta: "Quais seriam as consequências de uma Terceira Guerra Mundial, quando a Primeira e a Segunda foram cada vez mais catastróficas?"

A Primeira Guerra Mundial foi destrutiva e mortal, e a Segunda ainda mais. Em cada uma delas, a burguesia mobilizou todos os meios tecnológicos, econômicos e militares à sua disposição para vencer. Tanto é assim que, no final, não houve vencedores, mas apenas perdedores, alguns mais do que outros. Considerando que os arsenais nucleares, que cresceram constantemente durante a Guerra Fria, eram suficientes para erradicar várias vezes toda a atividade humana no planeta, não há ilusões quanto ao resultado de uma Terceira Guerra Mundial. Durante o período “da Guerra Fria” dos blocos imperialistas, todos os defensores do capitalismo competiram em mentiras para explicar como o mundo conseguiu evitar uma guerra mundial graças ao "equilíbrio do terror", à "sabedoria dos governantes" e assim por diante. A realidade é bem diferente.

Desde o final da década de 1960 até o colapso do bloco oriental em 1990 e a dissolução do bloco ocidental, o agravamento da crise econômica foi o fator fundamental não apenas para o agravamento das tensões imperialistas, mas também para o desenvolvimento da luta de classes. É por isso que a burguesia não teve liberdade para entrar em guerra. Uma burguesia que não consegue impedir que a classe operária lute para defender suas condições de vida terá ainda menos condições de manter a paz social, enquanto a exploração e a repressão devem ser consideravelmente reforçadas para atender às necessidades da guerra. Assim, a marcha para a guerra mundial exige em cada bloco imperialista a capacidade de cada burguesia nacional de alistar a classe operária para aceitar a disciplina e os sacrifícios necessários. A esse respeito, embora não no contexto de uma guerra mundial, o exemplo da guerra do Vietnã na década de 1960 - que não foi uma guerra total que mobilizasse todos os recursos da sociedade americana - refrescou bastante a memória da burguesia mundial sobre os riscos de entrar em guerra quando a classe operária não está alistada. É por isso que nenhuma burguesia dos países industrializados teria assumido o risco de uma conflagração social provocada pelas necessidades de uma marcha para a guerra sem a resignação do proletariado diante as implicações desta. Como resultado, a guerra mundial não ocorreu durante o período em que o mundo estava dividido em dois blocos imperialistas rivais.

Sem a existência de blocos imperialistas rivais, como é o caso desde 1990, não pode haver uma guerra mundial como as duas primeiras. No entanto, as tensões imperialistas continuam a se intensificar como resultado do aprofundamento da crise. Mas elas se expressam por uma multiplicidade de conflitos locais no qual as alianças podem existir, mas de forma circunstanciais e frágeis. Estamos até mesmo testemunhando uma explosão sem precedentes no número de conflitos imperialistas em todo o mundo, com o risco de escalada, como na guerra da Ucrânia, com os danos (deliberados ou não) às usinas nucleares e até mesmo o possível uso de armas nucleares táticas. Esses riscos são ainda maiores pelo fato de que o período de decomposição do capitalismo levou ao desenvolvimento, em todos os níveis da sociedade, de uma atitude de cada um por si, afetando particularmente a burguesia com a irresponsabilidade que a acompanha[1].

Nesse novo contexto, o proletariado, que não foi derrotado como foi antes da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais, continua a constituir uma força antagônica à marcha para a guerra nos países mais industrializados. No momento, entretanto, ele não pode impedir que o mundo afunde no caos e no desastre ecológico, agravado pela guerra e pela decomposição da sociedade.

Durante a reunião, foram expressas ilusões sobre a capacidade da diplomacia internacional de conter conflitos, enquanto a diplomacia, que há muito tempo vem sendo denunciada pelo movimento operário, é apenas um meio nas mãos dos bandidos imperialistas (e todos os países são bandidos imperialistas) de se preparar para conflitos futuros.

Vários companheiros expressaram a necessidade de uma explicação mais detalhada sobre essa fase de decomposição da sociedade à qual as análises da CCI se referem. A introdução à reunião pública a definiu como "uma situação em que nenhuma das duas grandes classes da sociedade foi capaz de propor uma solução para a crise (seja a guerra pela burguesia, ou a revolução pelo proletariado), um tipo de impasse social, inaugurando uma nova e última fase na decadência do capitalismo, que chamamos de fase de decomposição". Para obter mais explicações, recomendamos que os camaradas consultem nosso artigo Decomposição, a fase final do declínio do capitalismo. Limitamo-nos aqui a salientar a passagem seguinte do artigo: "Todas estas manifestações de putrefação social que, hoje, numa escala desconhecida na história, invadem a sociedade humana de todos os lados, só podem expressar uma coisa: não só a deslocação da sociedade burguesa, mas sobretudo a destruição de todos os princípios da vida coletiva em uma sociedade sem o menor projeto, a menor perspectiva, mesmo a curto prazo, mesmo a mais ilusória".

Como podemos entender a dinâmica atual da luta de classes?

Entre as questões levantadas de real interesse para a luta de classes, mas que não foram suficientemente respondidas, ou mesmo não foram respondidas, estão as seguintes: "Quem é o proletariado hoje? Quais são os setores estratégicos do proletariado? As lutas citadas pelo CCI são fundamentais, mas é necessário analisar quais são estratégicas, quais poderiam desestabilizar o sistema."

Como dissemos durante a reunião pública, o proletariado é, ainda hoje, a classe da sociedade que, como definiu o Manifesto Comunista de 1848, não tem outra opção de sobrevivência a não ser vender sua força de trabalho aos seus exploradores. Ele é revolucionário na medida em que, como classe explorada não possui interesses particulares a defender no capitalismo, é a única que, por meio do estabelecimento de uma sociedade livre de exploração, pode superar as contradições do capitalismo que estão levando a humanidade à ruína.

Os meios fundamentais de sua luta também não mudaram: sua consciência e sua unidade. Por outro lado, as condições de sua luta mudaram entre o período em que o capitalismo era um sistema progressista (o período de sua ascendência) e o período de sua decadência, do qual a Primeira Guerra Mundial foi a primeira grande manifestação. Como ilustrado pela onda revolucionária global - que surgiu em reação à barbárie da Primeira Guerra Mundial - e por todas as lutas significativas que ocorreram desde então, elas tiram sua força de sua unidade e de sua extensão.

É por isso que devemos desconfiar da busca por um setor "estratégico" e "decisivo" do proletariado para impor um equilíbrio de poder à burguesia. Na verdade, essa abordagem apenas obscurece a principal necessidade da classe operária, que é ampliar sua luta. E, na prática, muitas vezes é uma manobra de divisão dos sindicatos ou dos esquerdistas para isolar os setores mais combativos ou "estratégicos" do proletariado, com a intenção de desgastá-los, e assim transferir a "luta por procuração" para esses segmentos.

  • "Com que meios a luta de classes pode contar hoje, sabendo que os sindicatos e os partidos não podem mais servir?"

Com a entrada em decadência do capitalismo, os meios de luta do proletariado efetivamente não são mais os mesmos, como ilustrado pela impossibilidade de usar os sindicatos ou o parlamento. Isso não significa que a classe operária esteja desarmada, como mostra a história de suas lutas: assembleias gerais de luta e comitês de greve, comitês de luta, círculos de discussão, conselhos operários em períodos revolucionários, e assim por diante.

Por outro lado, é verdade que, com o recuo da luta de classes provocado pela derrota da onda revolucionária mundial de 1917-23, todos os partidos comunistas da Terceira Internacional degeneraram e passaram para o campo inimigo; assim como a grande maioria dos partidos socialistas traíram diante da Primeira Guerra Mundial, mas isso não significa que a forma "partido de vanguarda", em um período revolucionário, ou a "organização revolucionária", fora desse contexto, seja inviável ou dispensável. Sua existência e sua necessidade decorrem do fato de que a revolução proletária será a revolução mais consciente de todas as revoluções que ocorreram na história da humanidade. De fato, a classe operária é a classe da consciência, ou seja, ela carrega em si a possibilidade de uma consciência revolucionária e universal muito mais profunda do que qualquer uma das classes revolucionárias do passado. A organização ou partido revolucionário constitui, portanto, a parte mais consciente da classe operária (e não a única parte consciente), cuja função é transmitir a experiência histórica da classe operária e acelerar o processo de tomada de consciência dentro dela.

  • "Como seria um processo revolucionário genuíno hoje?"

Seria o desenvolvimento final da situação atual em que a classe operária, diferentemente do período anterior à Primeira e Segunda Guerra Mundial, não sofreu uma derrota decisiva e que, apesar das grandes dificuldades, é e será - salvo uma derrota - cada vez mais capaz de desenvolver sua luta contra os ataques cada vez mais brutais e generalizados do capitalismo em crise. É através desse confronto que o proletariado deve ser capaz de politizar sua luta, compreendendo que sua salvação e a da humanidade só podem vir por meio da derrubada do capitalismo.

A crise econômica é, portanto, o primeiro fator de tomada de consciência do proletariado quanto à necessidade de derrubar o capitalismo. Durante a reunião pública, foi dito: "Vimos que o capitalismo tem os meios para superar sua crise". O oposto é verdadeiro. Todo o período desde o final da década de 1960, com o reaparecimento da crise aberta do capitalismo, mostra um aprofundamento dessa crise, mesmo que a burguesia tenha conseguido desacelerar seu curso por meio de várias fraudes com a lei do valor, em particular a corrida desenfreada para o endividamento. Mas isso está se tornando cada vez mais difícil e arriscado à medida que a burguesia acumula contradições incontornáveis. 

Se a crise econômica é o fator essencial para que o proletariado perceba a necessidade de derrubar esse sistema, há outro que está destinado a desempenhar um papel cada vez mais importante: a guerra, que causa o massacre de populações em cada vez mais partes do mundo, semeia a miséria e a desolação, provoca o êxodo e, também é um fator considerável para agravar a crise econômica e destruir o meio ambiente. E, ao contrário de uma ideia preconcebida e infundada, que parece ter encontrado eco em alguns discursos – que por outro lado são perfeitamente válidos - a guerra não pode contribuir para resolver nenhuma das contradições econômicas do capitalismo, a menos que consideremos que a morte cura os doentes.

Nesse contexto, não foi possível, por falta de tempo, responder à pergunta se a crise ecológica pode se tornar um fator de tomada de consciência da necessidade da revolução. A destruição acelerada do meio ambiente nos últimos anos é uma consequência do capitalismo em crise, que está ameaçando cada vez mais a existência da vida na Terra, e é importante lutar contra todas as mistificações baseadas na possibilidade de um capitalismo que respeite a natureza.

A maioria das intervenções sobre a situação da luta de classes se preocupou, de forma bastante legítima, em estabelecer um vínculo entre as lutas atuais e as de 2008 e posteriores, principalmente "occupy", "indignados" e a "Primavera Árabe". No auge da mobilização, alguns desses movimentos, como os "indignados", foram palco de grandes assembleias gerais de rua, especialmente na Espanha, e fonte de vários slogans internacionalistas. Mas, fortemente marcados pela perda da identidade de classe, eles sucumbiram ao interclassismo dos movimentos de cidadãos. Bastante diferentes são as mobilizações do "Verão da Raiva" de 2022 no Reino Unido (em referência ao "Inverno da Raiva" de 1979) e seu slogan "Basta", bem como todas as mobilizações maciças que ocorreram desde então, principalmente na Europa e na América do Norte, cujo caráter "histórico" a mídia não pôde deixar de reconhecer. Todas essas lutas compartilham um processo de recuperação da identidade de classe pela classe operária, e é por isso que elas fazem parte de uma nova dinâmica da luta de classes que constitui uma ruptura[2] com todo o período anterior, marcado pelo profundo recuo da luta de classes desde 1990, causado especialmente pelas campanhas da burguesia sobre a morte do comunismo (os países do bloco oriental estavam falsamente qualificados como "comunistas") e o fim da classe operária.

Perguntou-se se "a CCI poderia ver uma perspectiva revolucionária no horizonte". Ela está se formando nas lutas da "ruptura". Em um contexto muito difícil, o da decomposição da sociedade, mas diante de ataques insuportáveis, a classe operária terá que assumir conscientemente a organização e a extensão de sua luta, o que inevitavelmente envolverá o confronto com os sindicatos e sua constante sabotagem da unidade dos operários. Dessa forma, a classe operária terá de retomar o caminho de luta que tomou com o retorno internacional da luta de classes em 1968, após meio século de contrarrevolução. Mas, desta vez, ela terá de ir muito mais longe na politização de suas lutas, principalmente ao tomar consciência da necessidade de derrubar o capitalismo.

 

Rubric: 

Balanço da reunião pública : "Será que o capitalismo está nos levando à Terceira Guerra Mundial ?"