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I
Pp. 11-13. Mehring cita o famoso Prefácio à Crítica da Economia Política de Marx: “A conclusão a que cheguei e que, uma vez atingida, se tornou o princípio diretor dos meus estudos, pode ser resumida como se segue. Na produção social da sua existência, os homens entram inevitavelmente em relações definidas, que são independentes da sua vontade, a saber, as relações de produção que se adequam a um dado estágio do desenvolvimento das forças materiais de produção. A totalidade destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, os verdadeiros alicerces sobre que se ergue a superestrutura legal e política e a que correspondem formas definidas de consciência social. O modo de produção das condições da vida material condiciona o processo geral da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a sua existência, é a existência social que determina a consciência. Em determinado estádio do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes ou—o que apenas exprime a mesma coisa em termos legais—com as relações de propriedade em cujo quadro até ao operaram. De formas de desenvolvimento das forças produtivas tais relações transformam-se em seus freios. Inicia-se então uma era de revolução social. As transformações de base econômica levam mais tarde ou mais cedo à transformação de toda a imensa superestrutura. Sempre que se estudam tais transformações há que estabelecer a distinção entre a transformação das condições econômicas da produção, que podemos determinar com a precisão da ciência natural e das formas legais, jurídicas, religiosas, artísticas ou filosóficas—em resumo, ideológicas—pelas quais os homens ganham consciência desse conflito e o vencem. Tal como não julgamos um indivíduo pelo que ele pensa de si próprio, também não podemos julgar um tal período de transformação pela sua própria consciência; pelo contrário, essa consciência é que tem de ser explicada pelas contradições da vida material, a partir do conflito existente entre as forças sociais de produção e as relações de produção. Nenhuma ordem social é destruída antes que todas as forças produtivas que pode conter em si se tenham desenvolvido, e nunca novas e superiores relações de produção substituem outras mais antigas antes que as condições materiais da sua existência tenham amadurecido no quadro da velha sociedade. Assim, a humanidade só se coloca missões que é capaz de levar a cabo; com efeito, uma análise mais aprofundada mostra sempre que o próprio problema só se levanta quando as condições materiais da sua solução já existem, ou pelo menos se estão a formar. Em traços gerais, podem apontar-se os modos de produção Asiático, antigo, feudal e burguês moderno como épocas que marcaram o progresso do desenvolvimento econômico da sociedade. O modo burguês de produção é a última forma antagônica do processo social de produção—antagônico não no sentido do antagonismo individual, mas de um antagonismo que emana das condições sociais de existência dos indivíduos—mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam também as condições materiais para a resolução desse antagonismo. Assim, a pré-história da sociedade é encerrada por esta formação social.”
Comentário 1:
Em primeiro lugar, o que deve ser salientado é que se trata de uma síntese, aliás, talvez a mais imponente e genial já feita, não de um período da História, mas da própria História como um todo; e não de uma síntese do devir da História, mas das mais gerais leis de seu devir. É de sínteses como esta que os “descosturadores” não gostam, mas é exatamente de sínteses como esta—que fundamentam as grandes narrativas e os grandes cenários—que a ciência e a sociedade necessitam. E quais são, então, os traços distintivos dessas leis mais gerais da História?
Traço 1: Os homens, ao nascerem e, daí por diante, durante toda sua vida, entram em relações que são e seguem sendo definidas independentemente de sua vontade. Trata-se de relações que são objetivadas pelos próprios homens, mas não de qualquer modo. Os homens objetivam o ser social por meio de uma infinidade de atos de trabalho—atos teleológicos, portanto—, que desembocam numa realidade que, como totalidade, que se coloca para além da simples soma de tais atos de trabalho, passa a ter leis próprias que derivam de sua estrutura em (seu) movimento. A totalidade social já não se move por um ato teleológico, mas pela causalidade.
Traço 2: A História não se desenvolve por meio de um processo evolutivo linear; ao contrário, ela se desenvolve por meio de períodos, de duração variável, qualificados por modos de produção e formações sociais. Essas formações sociais não seguem necessariamente uma seqüência linear, como também nem todos os povos tiveram de passar por todas as formações sociais conhecidas; nem todos os povos conheceram a formação asiática ou a feudal; e mais, existem povos que persistiram até os dias atuais como povos primitivos e só agora começam a se dissolver como tais—o que equivale a dizer que o capitalismo é a única formação social capaz de dissolver todas as demais que subsistiram até a sua vigência.
Traço 3: Os períodos qualitativamente distintivos da História, as formações sociais, se sucedem através de saltos produzidos por rupturas—o que equivale dizer que elas se transformam por conta de contradições fundamentais e irreconciliáveis que se aninham em seu seio. Essas contradições são exatamente as que se colocam entre as relações sociais de produção e as forças produtivas que cada formação social comporta. O mais impressionante é como pôde Marx formular tal quadro de movimento das formações sociais e, dentre elas, a do capitalismo, quando o capitalismo ainda não dava mostra de crise agônica como é a de agora. Aqui, o capital foi traído por si próprio: ao incorporar gigantescas possibilidades tecnológicas numa produção limitada pela estreiteza das relações de produção capitalistas, o capital terminou por pôr diante de si seus limites definitivos—de onde se deduz o acerto da afirmação de Marx que as relações de produção entram, a partir de certo momento, em contradição com as forças produtivas.
Traço 4: Toda formação social possui uma base—o modo de produção—que determina, por muitos fios diretos e indiretos, mediatos e imediatos, a larga e variada superestrutura social. A razão, em última instância, dessa determinação reside no fato de que é nas relações de produção—instância nuclear do modo de produção e, por extensão, da própria formação social—que se define a condição essencial da vida social: é ali que os homens se relacionam entre si e com a natureza para produzirem e distribuírem os meios materiais de sua própria reprodução como espécie. Isso não significa que as superestruturas não interfiram no movimento da base, ou que se coloque as determinações da base à superestrutura como linha de mão única. De que se trata é de verificar em que instância se encontra a condição fundante, onto-genética, da totalidade social. Compreendida esta gênese, podemos compreender o intrincado movimento de relações mútuas entre base e superestrutura e vice-versa.
Traço 5: As rupturas são todas elas promovidas pelas das lutas de classes, personas que correspondem socialmente às condições materiais: a contradição entre o capital (trabalho morto) e o trabalho (trabalho vivo) se manifesta por classes que personificam subjetivamente essa mesma contradição: burguesia de um lado, proletariado de outro. A contradição estrutural está aqui: na relação antinômica entre o capital constante e o variável na c/v, na m/v e na Tl, enquanto a esfera subjetiva dessa contradição na luta de classe entre a persona do capital e a do trabalho. Tampouco significa que as duas ordens de contradição—a objetiva e a subjetiva—se dêem no mesmo compasso ou ocorra como um automático. De modo que se o trabalho se coloca como categoria fundante de toda sociedade humana, a luta de classes se coloca como luta fundante das transformações por rupturas da História.
Comentário 2:
Marx não procede, nesta exposição, como já foi aventado, a uma análise de conjuntura ou de períodos específicos da História. Ao contrário, ele desenha os passos mais largos, numa visão panorâmica ancha, da História como totalidade. Por isso na sua exposição não tem lugar a multidão de mediações que, nas análises contextualizadas, constituem meios obrigatórios para a caracterização e a compreensão de períodos específicos do devir histórico e social.
Comentário 3:
Afirma Marx: “Em determinado estádio do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes ou—o que apenas exprime a mesma coisa em termos legais—com as relações de propriedade em cujo quadro até ao operaram. De formas de desenvolvimento das forças produtivas tais relações transformam-se em seus freios.” Análise premonitória, perfeitamente adequada para expressar a crise atual do capital, que tornou os seus pressupostos de crescimento em pressupostos de sua crise: a potencialização da extração da mais-valia levou, no âmbito da crise atual, a uma brusca redução do trabalho vivo vis-à-vis a expansão do trabalho morto e, por aí, a uma queda da taxa de lucro pela redução do exército ativo de produtores de mais-valia e de consumidores de mercadorias. Existem análises que tomaram o enunciado amplo de Marx como um absoluto num momento em que as condições acima formuladas por Marx ainda não estavam dadas.
Comentário 4:
Marx escreveu: “Nenhuma ordem social é destruída antes que todas as forças produtivas que pode conter em si se tenham desenvolvido, e nunca novas e superiores relações de produção substituem outras mais antigas antes que as condições materiais da sua existência tenham amadurecido no quadro da velha sociedade.” As sociedades de classes, afirmam Marx e Engels, nasceram necessariamente em função da escassez e só terão se tornado supérfluas e desnecessárias quando não se colocar mais o bloqueio da escassez.
Acerca desse desenvolvimento Marx/Engels afirmam que “... esse desenvolvimento das forças produtivas (que contêm simultaneamente uma verdadeira existência humana empírica, dada num plano histórico-mundial e não na vida puramente local dos homens) é um pressuposto prático absolutamente necessário, porque, sem ele, apenas generalizar-se-ia a carência e, portanto, com a penúria, recomeçaria novamente a luta pelo necessário e, toda a imundice anterior seria restabelecida...” Só num tal contexto, que implica a extensão da revolução e a construção do socialismo como fato internacional, o comunismo seria possível. Teoricamente—e também historicamente—foi a escassez que obrigou os homens a se associarem, nos termos de uma sociedade comunista primitiva, como pressuposto social de sua própria sobrevivência e reprodução também social. Se a escassez nunca aparecesse, ou seja, se todos possuíssem tudo o quanto necessitassem, a divisão da sociedade em classes seria desnecessária. Demais, a escassez e o excedente—o excedente em circunstâncias gerais de escassez—é que levaram à sociedade de classes, verbi gratia a sociedade asiática, uma forma de produção que dissolveu as milenares sociedades gentílicas antigas. Uma vez inaugurada a sociedade de classes, uma vez repostas as condições de escassez para toda a humanidade, as demais formas de sociedade de classes apareceram, inclusive o capitalismo.
Não obstante, numa passagem do Anti-Dühring, Engels escreveu que as condições de abastança, que tornavam a sociedade burguesa uma desnecessidade, já estavam dadas em 1875. Com a palavra, Engels: “... a abolição das classes nas sociedades pressupõe um grau de evolução histórica, no qual a existência não simplesmente desta ou daquela classe dominante, mas de qualquer classe dominante como um todo e, por conseguinte, a existência da própria diferença de classe se torne um anacronismo [...] Esta etapa foi agora alcançada... A possibilidade de segurança para cada membro da sociedade através da produção socializada, promove uma existência não só plenamente suficiente em termos materiais, que se completa dia a dia, mas também uma existência que garanta para todos o livre desenvolvimento e exercício das faculdades físicas e mentais... esta possibilidade está aberta, pela primeira vez, concretamente”. Engels não se limita a afirmar que, com o advento da produção capitalista, tais possibilidades estariam abertas como perspectiva—como possibilidade lógica; ao contrário, sua afirmação é feita no sentido de esta etapa foi alcançada, que tais possibilidades já estariam dadas, “pela primeira vez, concretamente”, e que “se completam dia após dia” já no final do século XIX. A primeira parte da passagem de Engels trata das possibilidades teóricas, a segunda, das concretas. Na primeira, a análise sobra de justeza, na segunda, sobra em equívoco—porque aqui Engels confunde os dois âmbitos: o das possibilidades teóricas com o das concretas.
Com efeito, parece-nos que as possibilidades materiais para viabilizar o comunismo, dadas pelo estágio da produção capitalista no entorno de 1875—e isso mesmo trabalhando com o pressuposto de que a maior parte dos países avançados do mundo tivessem realizado suas revoluções socialistas—, eram possibilidades apenas teóricas e lógicas, e isso porque o capitalismo em 1875 não só estava apenas começando, portanto, circunscrito em apenas uma parte pequena do globo, como ainda porque tinha alcançado um nível de forças produtivas de longe insuficiente para proporcionar a abastança das amplas massas sociais da Terra, que tornassem supérfluas as classes e o Estado. Estamos convencidos de que só agora, mais particularmente da década de 1970 em diante, com um capitalismo desenvolvido e mundializado à l’outrance, estaria dada concretamente a possibilidade de produzir meios de subsistência com abundância para toda a humanidade. Agora sim, em condições nas quais a classe dominante—a burguesia—não cede seus privilégios e a classe do trabalho tem de tomar o poder como insuportável (até aqui estamos colocando a questão em termos teóricos bem gerais), é possível inaugurar uma sociedade na qual a abundância torne de novo supérflua a divisão da sociedade em classes e o Estado.
Parece que Engels não logrou descobrir as mediações que poderiam revelar que tais condições não estavam ainda dadas—mas apenas iniciando a sua aparição. O equívoco de Engels deu-se a uma ligação linear da situação do capitalismo no final do século XIX com uma fase que só pôde ser alcançada nos anos 1970 para cá. De fato, só hoje o capitalismo: a) acumulou uma capacidade de produção compatível com as necessidades de toda a população do globo; b) completou a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Esta contradição não estava presente antes das décadas de 1970 a 2010—e tanto não estava completada antes que foi possível ao capital realizar um ciclo de onda longa com seus dois momentos: um de crescimento, do pós-guerra aos anos 1970, quando avançou na mundialização da sua ordem como acumulação ampliada à escala mundial, e outro de decadência, dos anos 1970 aos dias de hoje; c) acumulou todas as contradições que, por outro lado, tornam possível uma era de revoluções—em meio a grandes dificuldades, é certo—como previa Marx em sua síntese magistral. Por outro lado, parece-nos também evidente que o malogro da Revolução Russa se deveu à imaturidade do processo como Marx o formula: como as premissas não estavam dadas no plano internacional, como não estavam dadas na Alemanha e na Europa em geral, a revolução mundial não ocorreu e a Revolução Russa, isolada, malogrou. A própria Alemanha, de que Lênin e Trotsky tanto esperavam, deu provas de que poderia ainda crescer, por não estar no limite a contradição básica entre as forças produtivas e as relações de produção. Só de umas duas ou três décadas para cá é que tais condições estão a amadurecer—o que também não quer dizer que esse amadurecimento ocorra de um dia para outro. E mais: as condições materiais de abastança que tornam desnecessárias as classes sociais não podem, por si sós, por termo às classes sociais; elas precisam ser liberadas por um ato político que ponha termo nas sociedades de classes: a revolução.
Comentário 5:
Num outro texto (O método da Economia Política, Grundrisse), Marx assinala que a sociedade burguesa pressupõe sociedades passadas das quais carrega, revê e reintegra vestígios. Por outro lado, naquelas sociedades podiam existir sinais de elementos que se tornariam imprescindíveis (pelo seu caráter, pela sua universalidade, pelas suas funções) para a sociedade burguesa, mas que só vieram a se desenvolver plenamente na própria sociedade burguesa, sendo este, por exemplo, o caso do dinheiro e do trabalho assalariado. Neste sentido e, ademais, dentro de certos limites, é que se pode, a partir da sociedade burguesa, compreender as sociedades anteriores—e é aqui que entra o cum grano salis lembrado por Marx. Não é que as categorias de umas e outras sejam as mesmas e que possam ser igualmente empregadas para a leitura igual e simultânea de todas elas, mas que, dentro de certos limites, a partir da sociedade burguesa—de suas categorias e em “marcha a ré”—pode-se compreender o significado pleno das categorias das sociedades anteriores que ganharam universalidade nas sociedades burguesas. Podemos compreender como certas categorias passadas correspondem a certas categorias presentes e vice-versa (da corvéia à mais-valia, etc.), o que é diferente de considerá-las iguais e igualmente chaves para a compreensão simultânea das diversas formações. Seja como for, o essencial está aqui: a partir da sociedade burguesa, vale dizer, de suas categorias, leis, traços e processos característicos, pode-se compreender mais nitidamente traços e categorias de sociedades passadas, até porque aquelas sociedades, tomadas num plano amplíssimo, com alguns de seus traços e de suas categorias, são como “jornadas” que levaram ao surgimento da própria sociedade burguesa. Pode-se, de um lado, perceber formas embrionárias de formas atuais em formações passadas e, de outro, formas que antes existiam e que foram eliminadas, estioladas, subsumidas, etc. O que não se pode, afinal, é tomar as categorias explicativas de cada formação social como paradigmas para o estudo e a compreensão das demais. E é exatamente este princípio que permite e dá legitimidade ao campo de investigação do materialismo histórico, mas que, ao mesmo tempo, proíbe que se faça dele um corpo uno de teoremas e postulados pretensamente válidos para todas as épocas e formações, ou dotado de um sistema de causações absolutamente único e linear pretensamente capaz de enfeixar, como numa matriz, todas as transformações num modelo concebido de antemão. O materialismo histórico—essencialmente um método que procura compreender a história materialística e dialeticamente—explica as articulações, as passagens, a transformação de umas formações em outras, etc., mas não oferece o mesmo elenco de categorias para explicar a todas a um só tempo. O essencial é a diferença essencial.[1]
Comentário 6:
Mas existe um outro momento no qual o abstrato vem à tona a partir do real concreto. Referimo-nos à análise dos fatos históricos, à reconstituição teórica de reais concretos passados. Um fato histórico que aconteceu, por exemplo, na Grécia antiga ou, se quisermos, muito antes disso, no mesozóico, foi e continua a ser, para o intelecto, um real concreto, só que um real concreto que já aconteceu, que deixou vestígios de sua passagem pelo universo humano—vestígios que podem permitir a sua reconstituição histórica, descritiva e/ou conceitual. Trata-se de um real concreto não presente, já acontecido, objetivado em momentos passados da história, sendo que as emanações que dele saíram, que seriam captáveis pelo intelecto sob a forma de percepções diretas, por estudiosos coetâneos àqueles fatos, só podem ser alcançadas, posteriormente, por meio de registros superpostos e indiretos; emanações apanhadas no passado por estudiosos e observadores contemporâneos dos referidos fatos ou apanhadas em tempos posteriores por estudiosos e observadores que viveram ou que ainda vivem, e que constituem apenas uma maneira indireta de chegar ao intelecto atual dos estudiosos vividos ou viventes depois em cada momento ulterior ao fato. Aqui pode ocorrer que se trate de registros meramente descritivos—como os relatos de Marco Polo sobre o velho Oriente ou a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal acerca da descoberta do Brasil—, que representem a percepção na sua forma mais fenomênica, como pode acontecer que se trate de registros interpretativos, como muitos elaborados por Aristóteles, Newton, Darwin e outros tantos deixados por muitos outros filósofos e cientistas do passado, os quais, de certa forma e em certa medida—e isto independentemente do grau de validade científica que possam conter–, trazem até os intelectuais dos tempos mais presentes, materiais com quais os conceitos podem ser elaborados ou re-elaborados.
Nesse caso, o investigador atual—e aqui já estamos a falar de um investigador que opere com o método dialético—teria um duplo e difícil trabalho: de um lado, levar a efeito uma abordagem acompanhada de uma imprescindível triagem das impressões (registros) empiristas e idealistas (ou metafísicas, como em Homero, Platão, no próprio Aristóteles e em inúmeros outros pensadores), com vistas a separar os conteúdos poéticos e metafísicos das inspeções mais ou menos concretas; de outro, proceder a uma análise crítica dos instrumentos conceituais com os quais foram elaboradas, nas vezes antecedentes e mais ou menos remotas, as interpretações daqueles fatos—o que só é possível, nesse segundo caso, na medida em que o analista se apropria de um mínimo de relações universais registradas que existiam e que contextualizavam os fatos e as relações particulares acontecidos no referido tempo passado. Assim, as interpretações feitas nas diversas épocas anteriores recebem uma espécie de “teste (dialético) de consistência”, porque são postas à prova no seio de relações sociais igual e mutuamente resgatadas e reinterpretadas pela investigação teórica da história.[2],[3]
Comentário 7:
Marx escreveu também: “Sempre que se estudam tais transformações há que estabelecer a distinção entre a transformação das condições econômicas da produção, que podemos determinar com a precisão da ciência natural e das formas legais, jurídicas, religiosas, artísticas ou filosóficas—em resumo, ideológicas—pelas quais os homens ganham consciência desse conflito e o vencem.” Não se pode concordar com passagens como esta, de feitio claramente positivista (“ ... com a precisão da ciência natural...”) que não expressam o conjunto da obra de Marx. O próprio Engels, numa carta feita a Mehring, na qual chancela o livro desse, faz uma auto-crítica de um defeito em formulações passadas, suas e de Marx, a respeito desta questão: “À parte isto, só falta um ponto que, a bem dizer, nunca foi suficientemente realçado nos escritos meus e de Marx, relativamente ao qual ambos somos responsáveis. Trata-se do seguinte: de início, empenhamo-nos em por a tônica na dedução das representações ideológicas—políticas, jurídicas e outras—bem como nas ações por ela condicionadas, a partir dos fatos econômicos que lhe estão na base, e tivemos razão ... Isso geralmente é acompanhado pela seguinte noção estúpida dos ideólogos, segundo a qual, como nós negamos que a diversas esferas ideológicas que desempenham qualquer papel na História possuam um desenvolvimento histórico independentemente, negamos também que possuam qualquer eficácia histórica. A base disto reside na concepção trivial não dialética da causa e efeito como pólos opostos rígidos, na ignorância absoluta dessa interação. Estes senhores esquecem com freqüência, deliberadamente, que logo que um elemento histórico é gerado em última análise por outras causas econômicas, reage também por sua vez e pode reagir sobre o seu meio e até sobre as suas próprias causas...”
II
Passemos à transcrição de uma fala de Engels, junto ao túmulo de Marx: “Tal como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, também Marx descobriu a lei do desenvolvimento da História humana; o simples fato, que até se encontrava oculto pela enorme confusão da ideologia, de que a humanidade, antes que possa dedicar-se à política, à ciência, à arte, à religião etc., tem primeiro que comer, beber, ter um abrigo e vestir-se; de que, portanto, a produção dos meios de subsistência imediatos e, por conseguinte o grau de desenvolvimento atingido por determinado povo ou durante uma determinada época forma a base sobre que se desenvolvem as instituições estatais, as concepções legais, as idéias sobre a arte e até sobre a religião do povo em questão e de que conseqüentemente, é à luz desse desenvolvimento que aquelas terão que ser explicadas e não ao contrário, como até aí se fazia.”
Comentário 8:
É pela premência da necessidade de comer, beber, abrigar-se, vestir-se em condições de escassez desses meios, que o âmbito da produção material se torna a mais decisiva—e decisiva nos seguintes termos: 1) os homens são compelidos a produzirem, antes de qualquer coisa e em condições de escassez, os bens materiais de que necessitam para não morrerem de fome, sede, frio, etc.—vale dizer, tomam prioridade um, acima de todas as demais, esta produção das condições materiais de sobrevivência; e de tal maneira que é a partir daí que ele deduz todas as demais necessidades, formas de vida, valores, expressões e representações ideacionais; 2) et pour cause, alguns, constituindo-se em agrupamentos sociais—castas ou classes—, organizam-se com vistas a acumularem mais meios do que os demais, vale dizer, centralizam, em suas mãos, os meios de produção desses meios de sobrevivência, fazendo com que o que já era mais decisivo passe a ser mais decisivo ainda e a tal ponto que, pra garantirem a posse e a propriedade desses meios mais fundamentais, estabelecem relações de produção que impliquem em relações de dominação, de exploração e de poder que lhe garantam o monopólio de tal domínio. O mais decisivo precisa ser privado; o mais decisivo precisa de ser defendido como tal; o mais decisivo precisa ser dissimulado. E é a partir dessa instância que eles, agora como castas e classes, organizam os meios e mecanismos que garantam a prevalência dessa base—daí, por ela, em defesa dela e em nome dela criam e articulam os meios secundários para a garantia—pela força e pela persuasão—desse núcleo básico da sociedade, agora de classes, e daí derivam o Estado e todas as demais instâncias superestruturais ideológicas.
III
Na pág. 17, Mehring transcreve um outra passagem do Ludwig Feurbach: “Mas, enquanto nos períodos anteriores, a investigação destas causas motoras da história era quase impossível—devido às inter-relações complicadas e encobertas que se estabeleciam entre tais causas e os seus efeitos—o período em que nos encontramos simplificou tanto essas inter-relações que o enigma pôde ser resolvido. Deixou de ser segredo para quem quer que seja na Inglaterra que, desde o aparecimento da grande indústria, quer dizer, pelo menos desde a paz européia de 1815, toda a luta política se centrava sobre as pretensões à hegemonia de duas classes: a aristocracia terratenente e a burguesia (classe média) ... E a partir de 1830, tem-se reconhecido nos dois países que a classe operária, o proletariado, é um terceiro pretendente ao poder. As condições simplificaram-se tanto que seria preciso fechar deliberadamente os olhos para não ver que na luta entre essas três classes e no conflito entre os seus interesses reside a força motriz da história moderna—pelo menos nos países mais avançados.”
Comentário 9:
Em que consiste a simplificação entre as causas motoras da História e os efeitos dessas causas que, segundo Engels, permitiu a visibilidade dos interesses e das respectivas posições de classes modernas? Em que essa nova visibilidade era mais simplificada e, portanto, mais visível do que as inter-relações, nos mesmos termos de classes, do que as existentes nas sociedades da Antiguidade greco-romana entre Nobreza e escravos ou, na Alta Idade Média, entre Nobreza e servos? Temos dúvidas se a polarização entre burguesia/proletariado é mais “simplificada”—portanto mais visível—de que a polarização nobreza/escravo ou senhor/servo; e se as “inter-relações” das socialidades pré-capitalistas—alienação religiosa, etc.—eram mais opacas do que as da capitalista. Talvez o que aconteceu no capitalismo é que o confronto entre as duas classes fundamentais—burguesia/proletariado—tenha sido mais forte, mais presente, portanto mais visível, de que os confrontos anteriores. Aí sim, e a própria Comuna—fato que nenhuma classe dominada da História logrou (até porque nenhuma delas poderia ter um projeto desse calibre)—deu essa visibilidade. Não há dúvidas de que no capitalismo as relações sociais—como as que envolvem o fetiche, o estranhamento, etc.—são muito mais opacas do que as anteriores. Essa visibilidade, que permitiu a Marx desvelar os segredos da ordem do capital, advém da qualidade e da dimensão da classe operária vis-à-vis às das classes dominadas nas formações anteriores. Talvez não se trate de “simplificação”, mas da densidade das situações contemporâneas.
IV
Mehring, p. 28: “Mais fácil de compreender, embora seja também um erro grosseiro, é a confusão entre o materialismo histórico e o materialismo das ciências naturais. Este último menospreza o fato de o homem não viver apenas na natureza, mas também na sociedade, e de que não existe apenas ciência natural, de que existe também ciência social. O materialismo histórico engloba também o materialismo das ciências sociais, mas o contrário não se passa. O materialismo das ciências naturais vê o homem como uma criação da natureza que age conscientemente, mas não estuda a forma como a consciência do homem é determinada também no seio da sociedade humana...”
Comentário 10:
A primeira questão posta é a que foi antecipada por Engels: os homens agem, individualmente, em grupos ou em classes sociais e, ao agirem assim, fazem a sua história, mas eles não agem, como pretendem alguns teóricos, na base de um livre arbítrio absoluto, e sim obedecendo a pautas que já encontram socialmente postas e que enquadram os seus atos. A segunda questão é que essas pautas emergem da sociedade (ser social) que os próprios homens objetivam por intermédio de seus atos de trabalho. Os atos de trabalho são atos teleológicos, porém atos que dão por resultado um ser social que já não se move teleologicamente, mas por causalidade—ou seja, uma infinidade de atos de trabalho conscientemente articulados e realizados para alcançarem produtos e resultados imediatos também conscientemente almejados, desembocam numa totalidade social, regida por leis, agora impressas por essa totalidade enquanto tal, que anulam os objetivos deliberados, trocando-os por resultados que, não obstante serem continua e necessariamente reproduzidos pelos mesmos atos deliberados, se dão por causas não mais conscientes, mas cegas, cujo movimento não obedece a nenhum plano traçado nem pelos homens e nem por qualquer entidade supra-humana. Em terceiro lugar, entre essas pautas, as leis sociais são as que detêm as forças de determinação mais importantes e mais decisivas para o devir do ser social reiteradamente produzido e reproduzido pelos mesmos homens, pois são elas que estabelecem as condições fundamentais para o equilíbrio estrutural da sociedade—o que equivale a dizer que a sociedade, agora agindo sem o comando consciente e geral dos homens, cria, em si e para si, seus próprios mecanismos de equilíbrio, sem os quais ela seria um caos que anularia, no ato mesmo da sua emergência, a sua possibilidade de existência. A quarta questão consiste em que na composição tanto das leis sociais como na das demais pautas da ação humana, as determinações da Natureza (incluindo as leis naturais) jogam um papel de destaque—papel minimizado por pensadores do próprio campo do marxismo que reagiram e reagem às posturas deterministas de uma dialética materialista vulgar. De fato, por mais nobres que sejam as reações e as aversões às versões dogmáticas das visões ou concepções dos marxismos de manuais, não se justificam as concepções que defenestraram as determinações da natureza em nome de um marxismo que se estiolou no erro oposto: o da celebração de uma sociedade humana produzida e reproduzida só pela ação humana. Já é hora de repor as coisas nos seus devidos lugares. A questão seguinte consiste em considerar que essas pautas de que se fala mais acima são produtos também da convivência entre os homens, da mesma maneira vista como totalidade social e ainda que nelas não se façam presentes as determinações naturais—como esta: um homem só, não age ou reage socialmente da mesma maneira que o faz em grupos e classe sociais. Mais ainda, mesmo numa esfera na qual não se encontre nenhuma determinação direta das leis naturais, a ação humana coletiva, ou por outra, a ação humana vista como totalidade, impõe pautas imanentes e que diferem das pautas individuais. Uma outra questão se impõe: para que as sociedades humanas não deságüem em caos, faz-se necessário que essas sociedades não se bastem nas forças estruturais de manutenção do equilíbrio, isto é, que estabeleçam pautas de ordem complementar, pautas superestruturais: as normas consuetudinárias e jurídicas de comportamento e convivência social—de que dão testemunho as Constituições, desde os códigos e as leis gerais da Antiguidade (Hamurabi, Drácon, Sólon) até as atuais, seguidas de suas regulamentações complementares. Uma outra questão merece ser lembrada; trata-se de que, nas diversas formações sociais de classe que permearam o caminho da História, todas as pautas, tanto as estruturais como as superestruturais, têm o selo das relações de produção, portanto, das relações de dominação de uma classe sobre outra(s); e que, em adendo, não obstante esteja o núcleo do poder e da dominação de uma classe sobre a outra nas relações sociais de produção, essas relações não esgotam toda a necessidade e toda a possibilidade de manutenção da ordem—daí a necessidade da complementação da dominação política por meio das formas e pautas superestruturais, que implicam o Estado, as leis, as ideologias, a cultura etc. Neste remate, falta uma última questão a ser levada em consideração: essas pautas só têm validade no âmbito das formações sociais nas quais emergiram ou foram criadas, sendo tão transitórias quanto o são as próprias formações sociais que as contêm. Sua vigência, como sua superação, já não dependem dos atos de trabalho, mas de rupturas revolucionárias que se dão no processo de luta de classes que, inaugurando uma nova formação social, vão criar novas pautas sociais, que seguem sendo pautas de equilíbrio e ainda que emerjam de sociedades onde não mais existam as classes sociais e o Estado.
Para compreender as relações que se estabelecem, mediante o trabalho em primeiríssimo plano, entre o homem e a Natureza não basta ater-se a uma formulação tão esquemática e simples como, por exemplo, esta aqui: a sociedade se baseia, em primeira instância, em leis naturais, só que a essas leis naturais são adscritas, modificando-as e tornando-as mais flexíveis e mais elásticas—portanto não tão exatas como as leis que regem os fenômenos da Natureza (gravitação universal, transformação dos estados dos corpos, etc.)—, um sem-número de contingências de tipos variados e a intervenção humana. Esta, a nosso ver, é ainda uma formulação de caráter mecanicista. O corte ontológico que, em última instância lhe é subjacente, parte do pressuposto de que a sociedade humana é tão natural quanto, por exemplo, o sistema solar; que, portanto, é regida endogenamente por leis tão naturais quanto as que regem, ainda, por exemplo, a gravitação universal, com a diferença de que contingências numerosas e intervenções humanas “apenas” intercederiam, “modificando” o curso natural daquelas leis. Esse tipo de formulação, que esteve no Aristóteles da Polis e da Política seria, hoje, de corte expressamente positivista, ainda que, muitas vezes, apresentada sob o manto de um insustentável disfarce. Nela, a ação humana não produz os fatos sociais, limita-se a interferir sobre eles, sendo este o seu defeito essencial.
Mesmo considerando que a humanidade e a sociedade humana não são nada metafisicamente supra-naturais, e que, portanto, constituem um segmento da manifestação da Natureza—a Natureza munida de consciência—, a sociedade humana não é um sistema ou uma sociedade natural como são os sistemas siderais, ou dos átomos, ou mesmo as sociedades dos outros animais (que agem por instinto ou por meio de uma inteligência apenas rudimentar), mas exatamente uma sociedade humana. O homem tornou-se um ser natural especial (ou seja, um ser especificamente consciente e social) porque pertencia a uma categoria de hominídios que pôde desenvolver, num particular processo de adaptação social a condições e circunstâncias do meio natural, os pressupostos da eclosão da consciência: uma formação corpórea—a locomoção bípede, a mão liberada e em forma de pinça—que o capacitou a construir artefatos de caça, ao exercício de uma forma embrionária de trabalho, obrigando-o a pensar, de que resultou o crescimento do cérebro e, ainda, num tal processo, também, ao desenvolvimento de uma cultura conexa. Ou seja, houve um momento, que deve ter durado milhares de anos, no qual ele se diferenciou dos demais seres naturais e, ao diferenciar-se, tornou-se humano, consciente, um momento em que ele deixava passava de um ser social instintivo para ser um ser social consciente. Em outras palavras, o homem tornou-se homem, isto é, ser especialmente consciente, inteligente e social, por uma senda particular dentre as inúmeras transformações da Natureza. Foi dessa maneira que o homem pôde desenvolver a inteligência—e se não tivesse dessa forma se desenvolvido, o homem jamais poderia compor a Nona Sinfonia.
Portanto, a História dos homens inclui a Natureza e sua história, assim como a história da Natureza inclui a história dos homens, porque a história dos homens, a história social deles, não só foi gerada dentro da história da Natureza, como se desenvolve no interior da história da Natureza e tem, ainda, por tudo isso, um pressuposto: o homem se nutre de sua relação de dominação parcial e gradativa sobre a Natureza pela mediação do trabalho, sendo que é exatamente pela porta do trabalho que o elemento consciente, especificidade da ação humana, entra na relação com a Natureza, vai dar caráter diferenciado e específico à “natureza humana” e, portanto, às leis que a regem dentro da totalidade Natureza.
A mera produção de puros valores de uso ou, inversamente, a produção de mercadorias ou, num plano mais geral ainda, a própria produção e reprodução da vida humana dá-se mediante um processo de produção assentado sobre relações sociais historicamente determinadas, que pressupõem o processo de trabalho como mediação da relação do homem com a Natureza, oferta original de meios e objetos de trabalho. Nesta relação, o próprio homem também aparece como um ser dotado de consciência, atributo que lhe confere uma especificidade de longe diferenciada de todos os demais seres naturais—daí porque os atos sociais dos homens não podem ser vistos como fatos naturais, mas sociais—, o que também não quer dizer que as sociedades humanas estejam por isso isentas de leis, exatamente de leis sociais. A reprodução da própria vida e sociabilidade humanas constitui um processo de co-produção, no qual a Natureza não está ausente e a sua necessária presença jamais pode ser considerada um processo passivo, ainda que cego. É da ligação Homem-Natureza, posta nestes termos, que nascem as leis sociais. Isso nos obriga a compreender o que significam e como são geradas estas leis sociais.
A organização social, como a história social (a organização social em seu movimento específico) é, por sua vez, a organização e a história que os homens desenvolvem, mas que o fazem não como fatos subjetivos e sociais puros, mas sim a partir de elementos naturais incluídos, não meramente adscritos. Se esta base natural for excluída, eliminada, a organização e a história sociais também o serão. As leis sociais também são produto desta ligação.
Para exemplificar, a lei do valor—que é uma lei, e uma lei social, já que o valor é, ele próprio, uma relação produzida pela ação dos homens numa relação social de produção—leva em conta, quer na sua forma imediata, tal como se manifesta numa relação mercantil simples, quer na forma em que aparece mediada pelo preço de produção (quando então o preço se diferencia do valor), na forma mercantil complexa da produção/circulação capitalista desenvolvida, os elementos naturais que estão incluídos na produção da mercadoria e, portanto, na própria mercadoria, como tais ou quais materiais, para cuja transformação são exigidos—e devem ser levados em consideração—tempos de trabalho em quantidades diferenciadas. Com efeito, o valor de cada mercadoria, que constitui a essência do valor de troca (esta última, mera proporção como base para a troca de valores de uso distintos, portanto, forma que representa apenas a aparência, que encobre a primeira, o valor, forma essencial), é representado por trabalho abstrato nela objetivado, e este trabalho abstrato é, no caso de cada mercadoria, a objetivação dos trabalhos abstratos de todos os componentes que entram na sua produção. A grandeza de valor de uma mercadoria é medida, portanto, pela quantidade de trabalho nela objetivado—e tal grandeza só pode ser medida pelo tempo de trabalho nela cristalizado.[4] Naturalmente, dado determinado padrão de técnica produtiva, que representa sempre um determinado estágio da evolução social da produção, a transformação, por exemplo, de uma barra de ferro de uma tonelada em, digamos, parafusos de uma mesma dimensão contém, em função das qualidades físicas do ferro, portanto qualidades naturais (resistência ao atrito, ao corte etc.), mais tempo de trabalho do que, completando o exemplo, a transformação de uma tonelada de alumínio também em parafusos de mesma dimensão. Vê-se claramente, por esse exemplo, que o valor de troca (forma aparente do valor) e o próprio valor, apesar de constituírem relações sociais—e não formas naturais—, todavia não podem fazer abstração, na sua constituição, das qualidades naturais dos valores de uso enquanto suportes materiais das mercadorias. Como todas as mercadorias possuem, por este ângulo de observação, processos constitutivos semelhantes, todas elas possuem, como elemento comum, trabalho abstrato objetivado. Se, entre as diversas formas de valores de uso produzidos pelo homem, não existissem distinções naturais, como as acima comentadas, ou seja, se todos os produtos possuíssem as mesmas características naturais (o mesmo peso, a mesma durabilidade, etc.) e pudessem ser encontrados, coletados, transportados etc., da Natureza, em iguais condições, todos os produtos socialmente produzidos teriam, por unidade de massa, o mesmo tempo de trabalho: 1 grama de ferro, 1 grama de milho, 1 grama de pão, etc., encerrariam a mesma quantidade de trabalho e os tempos de trabalho só difeririam no que respeitasse às diferenças de quantidade—1 grama de pão = 1 grama de ferro, da mesma forma que 10 gramas de pão = 10 gramas de ferro ou 20 gramas de pão = 20 gramas de ferro.
Comentário 11:
De modo que aquele que pensa a sociedade sem levar em consideração a Natureza e as ligações dela (com suas leis) com a atividade social dos seres humanos, não estará produzindo nada mais do que pura especulação idealista. Quando Marx lembra que uma jornada de trabalho humano possui um limite inferior a vinte e quatro horas, ele está trabalhando com um fator natural que se liga a uma atividade em relação social, na medida em que ninguém pode trabalhar ininterruptamente durante vinte e quatro horas sem que possa dispensar um tempo mínimo para alimentar-se e, pelo descanso, repor forças. De modo inverso, todo aquele que não considerar a autonomia relativa da organização e da história social consciente dos homens, reduzindo-as ao elemento e às leis naturais pura e simplesmente, como se esses processos fossem regidos por leis exclusivamente naturais e mecanicamente estabelecidas, estará agindo, pelo modo oposto, também idealisticamente. .
É esta autonomia relativa que ofusca a mente de determinados pensadores, levando-os a considerar a história e a organização sociais por si mesmas, sem qualquer ligação com as leis e determinações naturais.
Se os seres humanos, agindo socialmente, atuassem desligados da Natureza e, conseqüentemente, das leis da Natureza, aí sim, a sua práxis seria produto de atos exclusivamente volitivos, subjetivos, conscientes—ou inconscientes, inclusive. Mas os seres humanos agem ligados à Natureza; essa ligação se dá, basicamente, por meio do processo de produção e reprodução das condições sociais de subsistência e, portanto, através do processo de trabalho, que é, como Marx o definiu com exatidão, o que media as relações dos seres humanos com a própria Natureza. É desta ligação, mediada pelos processos, também interligados, de produção e trabalho, que nascem as leis sociais—as quais subtraem das sociedades humanas, da práxis humana e da subjetividade humana, a pretensa autonomia absoluta que alguns autores, mesmo entre os marxistas, querem atribuir.
As leis da Natureza são leis cegas e a própria Natureza se movimenta cegamente, vale dizer, sem ação ou plano consciente. O que mantém e preserva a ordem e a evolução da Natureza—e, por extensão, de todo o Universo (a Natureza no seu sentido mais amplo)—são as suas leis, sem as quais qualquer ordem, qualquer sucessão, desta forma sem nexo ou relação causal, não passaria de um caos e de uma indeterminação que tornaria impossível, nos termos e de partida, a possibilidade de existência da própria Natureza e, por extensão, de qualquer tipo de sociedade, a humana incluída. No que diz respeito à sociedade humana, ela seria da mesma forma inviável se constituída apenas de contingências (surpresas em toda a linha) ou de atos e ações puramente subjetivos. No conjunto de uma dada formação social futura, tais ações e iniciativas crescerão enormemente de importância—com elas, a liberdade—, mas não a um ponto em que as leis naturais e (outras) leis sociais deixem de existir. A existência e a transformação da Natureza dependem de uma ordem, e essa ordem só é possível por conta das leis naturais. Aliás, pode-se antecipar a idéia e o princípio mais geral de que qualquer ordem de existência—que pressupõe a sua transformabilidade (por evolução e por ruptura) em outra ordem—pressupõe leis. Sem elas, como já foi dito, não existiriam contingências e nem a ação humana (consciente). A própria revolução, a luta de classes em estado de paroxismo, que é o único método de transformação qualitativa da sociedade e da história, é um processo de mudança, também radical, de leis sociais—ou, se se quiser, de uma ordem por outra ordem. A seguir, pretendemos deixar mais claro porque, a nosso juízo, estas assertivas estão implícitas na seguinte afirmação de Marx, fixada já nos parágrafos iniciais de O 18 Brumário: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.
Comentário 12:
Voltemos às sociedades humanas. Dizíamos, mais atrás, que as leis sociais, que diferem, obviamente, das leis naturais, são constituídas, com a distinção e a especificidade que lhes são características, como produto da ligação das atividades humanas, através do processo de produção e trabalho, com a Natureza, seus processos e suas leis.
Os homens praticam a agricultura; os homens agem conscientemente ao plantarem, semearem e colherem. São atos, sem dúvida, conscientes, de caráter volitivo, subjetivo, atos que contêm, como disse Engels, uma “finalidade desejada”, como colher trigo, centeio, arroz, milho, frutas, etc., quer para serem imediatamente consumidos como puros valores de uso, quer para serem comercializados como mercadorias e serem consumidos (consumo pessoal ou consumo produtivo) depois. Mas, após plantada a semente, depois de encerrado um determinado lapso de tempo, no qual também se encerra a intervenção do ser humano através do processo de trabalho, o processo de produção continua, agora não só sem a intervenção humana, como totalmente sujeita a leis exclusivamente naturais, como acontece com a germinação da semente ou com a fermentação de bebidas, processos que, por sua vez, estão sujeitos a condições e leis naturais como clima, entre outros, que marcam o ciclo sazonal da produção agrícola. Esse fato foi verdadeiro desde a sociedade primitiva até a sociedade capitalista atual: em todas elas a germinação da semente, por exemplo, requer um tempo destinado ao “trabalho” dos processos e leis naturais.Temos aqui um exemplo mais do que evidente de que a ação de intervenção humana, ao ligar-se com a Natureza, através do processo de trabalho (e produção), assume, na ligação, ritmos, tempos e leis específicas, agora leis sociais, constituídas na imbricação da atividade humana do trabalho (consciente) com leis naturais (cegas). É desta ligação que nascem as determinações e leis sociais da produção e a especificidade das mesmas: são leis e processos objetivados e estruturados porque adquirem necessidade e regularidade em função do elemento natural incluído, e são, ao mesmo tempo, processos e leis especificamente humanas porque adquirem, exatamente por conta da atividade humana, uma esfera que não se caracteriza pela rigidez e exatidão dos processos e das leis naturais. Esta diferença, que não é algo nem simples e nem destituído de importância, se deve a que a ação humana pode mudar e muda, dentro de determinadas condições, circunstâncias e limites—historicamente determinados (pela técnica, pela organização)—, as leis naturais. E muda porque compreende tais leis a age sobre elas.
A intervenção humana crescentemente monitorada pela ciência aplicada aumenta, tendencialmente, a força de determinação da ação consciente e planejada em casos como os atrás examinados, enquanto que, corolariamente, diminui, na razão inversa, a força de determinação das leis naturais, mas certamente não a ponto de redundar numa anulação completa da totalidade desses processos e dessas leis—os quais, de resto, são, como foi dito, processos e leis da produção presentes, conquanto variáveis em função do desenvolvimento da técnica, em todos os modos de produção e estágios de desenvolvimento da humanidade. Em muitos casos, a evolução da ciência e de sua aplicação no processo de trabalho e produção pode até anular a força de determinação desses tipos de processos e leis, aumentando, com isso, o grau de liberdade que deve acompanhar a intervenção consciente dos homens, mas de nenhum modo deve-se esperar que o progresso da técnica leve à anulação de todas as leis e processos, como os examinados mais atrás, na sua totalidade. Com a evolução da técnica, nos termos aqui colocados, o grau de liberdade da ação humana na produção—portanto na esfera do domínio das forças naturais—cresce, mas crescerá muito mais, indubitavelmente, numa formação social futura lastreada em relações sociais de produção e sociabilidade já sem a presença das classes sociais e do Estado. Mas, mesmo nesse caso, que se coloca como perspectiva, a Natureza, sob crescente regime de dominação pelo homem, renovará, em frentes cada vez mais novas e mais amplas de exploração, a sua força de resistência traduzida por novas leis e novos processos a serem igualmente conhecidos para serem domados. Convém não esquecer, por fim, que muitos outros tipos de leis presentes no processo de produção, são tipos de leis especificas do modo de produção capitalista, e que, portanto, desaparecerão com ele—como a lei do valor, a lei da queda tendencial da taxa de lucro, a lei absoluta da acumulação capitalista etc.; mais ainda, que muitas dessas leis tendem a ser parcial ou totalmente anuladas com a crescente desorganização endógena do próprio sistema capitalista em exaustão.
Comentário 13:
A questão que surge agora é a seguinte: todas estas pequenas e parciais atitudes e práticas voluntárias, que formam uma práxis maior e unitária (sujeita, naturalmente, a contradições internas), a atividade da produção de mercadorias representada por um determinado ciclo de produção, é formada ou determinada somente por atos conscientes, subjetivos, volitivos, ou, ao contrário, encerram algo mais, a saber, determinações, traduzíveis sob a forma de processos e leis, que ultrapassam a esfera e a escala das ações meramente subjetivas? Se é esse o caso, como são geradas essas determinações e as referidas leis? Para esclarecer esta questão, não nos resta alternativa senão percorrer de novo o mesmo processo de circulação do capital posto em movimento pelo nosso capitalista, o mesmo processo por cujos meandros tomaram curso as inumeráveis ações conscientes e subjetivas. Comecemos pelo primeiro ato de circulação, D – M, que realiza uma compra. Quando o capitalista individual faz uma aplicação, com uma soma determinada de capital-dinheiro, em meios de produção e força de trabalho, ele e sua aplicação—ele um ser que age conscientemente, ela uma atividade que resulta de sua atitude consciente—se inserem na esfera da circulação (pondo-a em movimento), uma esfera que é objetivada previamente e de cuja objetivação o capitalista passa a depender em termos de tempo (prazo), movimento, etc. A circulação implica em um percurso que, sob determinadas condições e circunstâncias médias de funcionamento, numa determinada etapa do desenvolvimento social, se desenvolve em um correspondente tempo médio padrão: uma determinada distância, a ser percorrida por determinado meio de transporte (navio, trem, etc.), que faz circular determinado quantum de mercadorias (meios de produção ou produto-mercadoria final, para um ciclo dado), implica um tempo médio determinado segundo uma também determinada etapa da evolução da tecnologia dos transportes etc.; um determinado estoque de produto-mercadoria, que está em depósito e pronto para entrar em circulação, tem de esperar um tempo também socialmente determinado para entrar na referida circulação, tempo este que requer a espera da hora do consumo, que depende do processamento produtivo ou pessoal do produto-mercadoria como meio de consumo, etc. Estes—e muitos outros poderiam ser lembrados—são apenas alguns exemplos de casos nos quais a circulação deve se dar levando em conta tempos médios que não dependem exclusivamente da vontade humana. Já ai a ação subjetiva começa a se enquadrar em tempos, ritmos, determinações, processos e estruturas que deixaram de ser exclusivamente volitivos, ou por outra, que estão objetivados e que, por isso mesmo, adquirem certo grau—sempre relativo, em maior ou em menor nível e escala—de autonomia e determinidade. Já aqui as ações volitivas, que buscam determinadas “finalidades desejadas”, não gozam da plena liberdade que permitiria que tais resultados fossem realizados em tempos arbitrários e totalmente sujeitos aos puros e plenos desígnios subjetivos. O mesmo tipo de fenômeno se repete no segundo ato da circulação, M’—D’, venda. Também aqui, quando o produto-mercadoria cai na circulação, vai ao mercado e de lá retorna sob a forma de dinheiro, este percurso se dá por entre tempos, ritmos, determinações, processos e estruturas que da mesma forma não são exclusivamente subjetivos, que igualmente possuem um certo grau de autonomia e determinidade. De fato, a ida, como produto-mercadoria, e a volta, como forma-dinheiro, do valor ao mercado passa por condições e circunstâncias sociais médias de funcionamento—podendo, num caso ou noutro, dar-se, uma ou outra ida e volta, um pouco abaixo ou um pouco acima desta média (condições de concorrência estabelecidas pela produtividade dos meios de circulação, etc.). Não é por ouro motivo que se constata, no processo de circulação do capital, um tempo de circulação e um processo e tempo de rotação do valor. Com mais razão, o mesmo tipo de fenômeno se repete no momento da produção, P. O momento da produção encerra o processo de produção, o qual, como já vimos, contém, sem nele se esgotar (pelo menos teoricamente, ou em certos casos), o processo de trabalho. Aos dois processos correspondem tempos e ritmos que se dão em função de condições e circunstâncias sociais médias, histórica e socialmente determinadas, de funcionamento: a produção implica em exploração e transformação de produtos naturais—os quais, para serem transformados, devem sofrer pressões mecânicas, químicas etc., sobre suas substâncias corpóreas—, desgaste de meios de produção e demais processos que, sob tais condições e circunstâncias sociais médias, dão-se em determinados tempos de certa forma também padronizados. De tudo isto resulta que as ações subjetivas e conscientes da atividade humana, ao imbricar-se com corpos e fatos naturais objetivados, perdem aquela autonomia, que é dada à mesma de forma idealista, pelos teóricos, inclusive alguns marxistas, à práxis humana. Por isso tem razão Lukács quando afirma, de um lado, que “a essência do marxismo científico consiste em reconhecer a independência das forças motrizes reais da história em relação à consciência (psicológica) que os homens têm delas” e quando afirma, de outro, que é imperativo não “conceber o marxismo exclusivamente como uma doutrina social, uma filosofia social ou rejeitando a tomada de posição que ele contém em relação à natureza”.[5][1] Excerto do Livro, em fase de acabamento, O Processo de Produção do Conhecimento, de nossa autoria (E.C.)
[2] Nesses termos
tem toda procedência a seguinte observação feita por István Mészáros: “O
desenvolvimento da consciência histórica está centrada em torno de três grupos
fundamentais de problemas: 1) a determinação da ação histórica; 2) a percepção
da mudança não como simples lapso de tempo, mas como um movimento de caráter
intrinsecamente cumulativo, implicando alguma espécie de avanço e
desenvolvimento; 3) a oposição implícita ou consciente entre a universalidade e
a particularidade, visando obter uma síntese de ambas, de modo a explicar
historicamente eventos relevantes em termos de seu significado mais amplo que,
necessariamente, transcende sua especificidade histórica imediata”. In, Para
Além do Capital, Editora da UNICAMP e Boitempo Editorial, São Paulo, 2002,
pág. 59. De conformidade com a análise levada a efeito no presente estudo,
todos os “três grupos fundamentais de problemas” que implicam no
“desenvolvimento da consciência histórica”, são da maior pertinência para a
pesquisa histórica como a entendemos, mas, para caracterizar o enquadramento
estrutural dos fatos singulares apropriados pela pesquisa histórica, o terceiro
grupo de problemas é de fundamental importância para exatamente definir a que
formação social tais ou quais fatos recolhidos pelos registros pertenceram—ou
seja, a que universalidade pertenciam
dadas “especificidades históricas imediatas relevantes” passadas, recolhidas
pela “percepção indireta”, isto é, por meio dos registros recolhidos por
descobertas arqueológicas, meras descrições ou análises teóricas feitas por
pensadores do passado.
[3] Excerto, Op. Cit. (E.C.).
[4] Marx, Carlos, El Capital, I, Sección Primera, Capítulo I, Fondo de Cultura Económica, México-Buenos Aires, 1966, pág. 7.
[5] Lukács, G., Posfácio de 1967, Op. Cit., pág. 356.