Resolução sobre a situação internacional (2023)

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1. Preâmbulo

O texto da CCI sobre as perspectivas para a década de 2020[1] afirma que as múltiplas contradições e crises do sistema capitalista global - econômicas, sanitárias, militares, ecológicas, sociais - estão se unindo cada vez mais , interagindo para criar uma espécie de "efeito vórtice" que torna a destruição da humanidade um resultado cada vez mais provável. Essa conclusão se tornou tão óbvia que setores significativos da classe dominante estão pintando um quadro semelhante. O Relatório de Desenvolvimento Humano 2021-22 da ONU já havia soado o alarme, mas o Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial (WEF), publicado em janeiro de 2023, é ainda mais explícito, falando da "policrise" que a civilização humana enfrenta: "No início de 2023, o mundo está enfrentando um conjunto de riscos que parecem totalmente novos e estranhamente familiares. Testemunhamos um retorno dos "velhos" riscos - inflação, crises de custo de vida, guerras comerciais, saídas de capital dos mercados emergentes, agitação social generalizada, confrontos geopolíticos e o espectro da guerra nuclear - que poucos líderes empresariais e tomadores de decisões públicas desta geração vivenciaram. Esses fenômenos são amplificados por desenvolvimentos relativamente novos no cenário de risco global, incluindo níveis insustentáveis de dívida, uma nova era de baixo crescimento, baixo investimento global e desglobalização, um declínio no desenvolvimento humano após décadas de progresso, o desenvolvimento rápido e irrestrito de tecnologias de uso duplo (civil e militar) e a crescente pressão dos impactos e ambições das mudanças climáticas em uma janela de transição cada vez mais estreita para um mundo de 1,5°C. Todos esses elementos estão convergindo para moldar uma década única, incerta e turbulenta".

Essa é a burguesia falando honestamente consigo mesma sobre a atual situação mundial, mesmo que só consiga se iludir sobre a possibilidade de encontrar soluções no sistema existente. E continuará a vender essas ilusões para a população mundial, auxiliada e incentivada por inúmeros partidos políticos e campanhas de protesto que propõem programas "radicais" que nunca questionam as relações sociais capitalistas que deram origem à catástrofe iminente.

Para nós, comunistas, não pode haver solução sem a abolição das relações capitalistas e o estabelecimento de uma sociedade comunista em escala global. E aquilo a que o WEF se refere como outro "risco" no período que se aproxima - "agitação social generalizada" - constitui, se desvincularmos esse termo de todos os vários movimentos burgueses ou interclassistas que ele agrupa nessa categoria, a alternativa oposta com que a humanidade enfrenta: a luta de classes internacional, a única que pode levar à derrubada do capital e ao estabelecimento do comunismo.

2. Antecedentes históricos

A burguesia não é capaz de situar a "policrise" nas insolúveis contradições econômicas decorrentes das relações sociais antagônicas existentes, mas vê a causa na abstração da "atividade humana"; tampouco consegue situá-las em um quadro histórico coerente. Para os comunistas, ao contrário, a trajetória catastrófica do capitalismo mundial é o resultado de mais de um século de decadência desse modo de produção.

A guerra de 1914-18 e a onda revolucionária que ela provocou levaram o Primeiro Congresso da Internacional Comunista a proclamar que o capitalismo havia chegado à sua época de "desintegração interna", de "guerras e revoluções", oferecendo a opção entre o socialismo e a queda na barbárie e no caos. A derrota das primeiras tentativas revolucionárias do proletariado significou que os eventos do final da década de 1920, depois das décadas de 1930 e 1940 (a maior depressão econômica da história do capitalismo, uma guerra mundial ainda mais devastadora, genocídios sistemáticos etc.), inclinaram a balança para a barbárie e, após a Segunda Guerra Mundial, o conflito entre os blocos americano e russo confirmou que o capitalismo decadente agora podia destruir a humanidade. Mas a decadência do capitalismo continuou por meio de uma série de fases: o boom econômico do pós-guerra, o retorno da crise aberta no final da década de 1960 e o ressurgimento da classe trabalhadora internacional após 1968. Essa última fase pôs fim ao domínio da contrarrevolução, impedindo a marcha para uma nova guerra mundial e abrindo um novo caminho histórico para o confronto de classes, que continha o potencial para o renascimento da perspectiva comunista. Mas a incapacidade da classe trabalhadora como um todo em desenvolver essa perspectiva levou a um impasse de classe que se tornou cada vez mais evidente na década de 1980. O colapso da velha ordem mundial imperialista após 1989 confirmou e acelerou a abertura de uma fase qualitativamente nova e terminal da época de decadência, que chamamos de decomposição do capitalismo. O fato dessa fase ser caracterizada por uma tendência crescente ao caos nas relações internacionais acrescentou mais um obstáculo à trajetória rumo à guerra mundial, mas de forma alguma tornou o futuro da sociedade humana mais seguro. Em nossas Teses sobre Decomposição, publicadas em 1990, previmos que a decomposição da sociedade burguesa poderia levar à destruição da humanidade sem uma guerra mundial entre blocos imperialistas organizados, por meio de uma combinação de guerras regionais, destruição ecológica, pandemias e colapso social. Também previmos que o ciclo de lutas dos trabalhadores de 1968 a 1989 estava chegando ao fim e que as condições da nova fase levariam a grandes dificuldades para a classe trabalhadora.

3. Decomposição acelerada

O estado atual do capitalismo global é uma confirmação impressionante desse prognóstico. A década de 2020 começou com a pandemia de Covid, seguida em 2022 pela guerra na Ucrânia. Ao mesmo tempo, vimos inúmeras confirmações da crise ecológica global (ondas de calor, inundações, derretimento das calotas polares, poluição maciça do ar e dos oceanos etc.). Desde 2019, também estamos vivenciando um novo mergulho na crise econômica, com os "remédios" para a chamada crise financeira de 2008 revelando todos os seus limites. Mas enquanto nas décadas anteriores as classes dominantes dos principais países conseguiram, até certo ponto, preservar a economia do impacto da decomposição, agora estamos testemunhando esse "efeito turbilhão", em que todas as diferentes expressões de uma sociedade em decomposição interagem entre si e aceleram a descida à barbárie. Por exemplo, a crise econômica foi claramente agravada pela pandemia e pelos lock-downs, pela guerra na Ucrânia e pelo custo crescente dos desastres ecológicos; enquanto isso, a guerra na Ucrânia terá sérias implicações ecológicas e globais; a competição por recursos naturais cada vez menores exacerbará ainda mais as rivalidades militares e as revoltas sociais. Nessa concatenação de efeitos, a guerra imperialista, resultado de escolhas deliberadas da classe dominante, desempenhou um papel central, mas até mesmo o impacto de um desastre "natural", como o terrível terremoto na Turquia e na Síria, foi consideravelmente agravado pelo fato de ter ocorrido em uma região já paralisada pela guerra. Também podemos apontar a corrupção endêmica de políticos e empresários, outra característica da decadência social: na Turquia, a busca imprudente por lucro no setor de construção local levou ao desrespeito às normas de segurança que poderiam ter reduzido consideravelmente o número de vítimas do terremoto. Essa aceleração e interação dos fenômenos de decomposição marcam uma nova transformação da quantidade para a qualidade nessa fase terminal de decadência, deixando mais claro do que nunca que a continuidade do capitalismo se tornou uma ameaça tangível à sobrevivência da humanidade.

4. Impacto da guerra na Ucrânia

A guerra na Ucrânia também tem uma longa "pré-história". Ela é o ponto culminante dos desenvolvimentos mais importantes nas tensões imperialistas das últimas três décadas, em especial:

  • O colapso do sistema de blocos pós-1945 no final da década de 1980 e o surgimento da abordagem "cada um por si" nas relações interimperialistas, o que levou a um declínio significativo da liderança global dos Estados Unidos;
  • O surgimento, nessa nova luta global, da China como o principal desafiante imperialista dos EUA, com sua estratégia de longo prazo para estabelecer as bases econômicas globais para seu futuro domínio imperialista. A resposta dos EUA ao seu próprio declínio e à ascensão da China não foi se retirar dos assuntos mundiais, muito pelo contrário. Os EUA lançaram sua própria ofensiva para limitar o avanço da China, desde o "pivô para o leste" de Obama até a abordagem mais diretamente militar de Biden, passando pela ênfase de Trump na guerra comercial (provocações em torno de Taiwan, destruição de balões espiões chineses, formação da AUKUS, nova base dos EUA nas Filipinas etc.). O objetivo desta ofensiva é erguer um muro de fogo ao redor da China, bloqueando sua capacidade de se desenvolver como uma potência global.
  • Ao mesmo tempo, os Estados Unidos continuaram seu cerco gradual à Rússia por meio da expansão da OTAN, com o objetivo não apenas de conter e enfraquecer a própria Rússia, mas também, e principalmente, de sabotar sua aliança com a China. A armadilha preparada para a Rússia na Ucrânia foi o movimento final nesse jogo de xadrez, deixando Moscou sem escolha a não ser retaliar militarmente, empurrando-a para uma guerra com o potencial de sangrá-la até o fim e minar suas ambições como uma força regional e global.

À sombra dessas rivalidades imperialistas globais, estamos testemunhando a disseminação e a intensificação de outros tipos de conflito que também estão ligados à luta entre as grandes potências, mas de uma forma ainda mais caótica. Muitas potências regionais estão cada vez mais jogando seu próprio jogo, tanto em relação à guerra na Ucrânia quanto aos conflitos em suas próprias regiões. Por exemplo, a Turquia, membro da OTAN, está agindo como "intermediária" em nome da Rússia de Putin na questão dos suprimentos de grãos, ao mesmo tempo em que fornece drones militares à Ucrânia e se opõe à Rússia na "guerra civil" da Líbia; a Arábia Saudita desafiou os EUA ao se recusar a aumentar suas entregas de petróleo e, assim, reduzir os preços mundiais do petróleo; a Índia se recusou a cumprir as sanções econômicas lideradas pelos EUA contra a Rússia. Enquanto isso, a guerra na Síria, que mal foi mencionada pela grande mídia desde a invasão da Ucrânia, continuou a causar estragos, com a Turquia, o Irã e Israel mais ou menos diretamente envolvidos no massacre. O Iêmen tem sido um campo de batalha sangrento entre o Irã e a Arábia Saudita; a adesão de um governo de extrema-direita em Israel está adicionando combustível ao fogo do conflito com a OLP, o Hamas e o Irã. Após uma nova cúpula EUA-África, Washington anunciou uma série de medidas econômicas destinadas explicitamente a combater o crescente envolvimento da Rússia e da China no continente, que continua a sofrer com o impacto da guerra na Ucrânia sobre os suprimentos de alimentos e com todo um mosaico de guerras e tensões regionais (Etiópia-Tigre, Sudão, Líbia, Ruanda-Congo, etc.) que oferecem aberturas para todos os abutres imperialistas regionais e globais. No Extremo Oriente, a Coreia do Norte, que é um dos poucos países a fornecer armas diretamente para a Rússia, está agitando seu sabre contra a Coreia do Sul (principalmente com novos lançamentos de mísseis, que também são uma provocação ao Japão). E atrás da Coreia do Norte está a China, reagindo ao crescente cerco dos Estados Unidos.

Outro objetivo de guerra dos EUA na Ucrânia, em nítido contraste com os esforços de Trump para minar a aliança da OTAN, tem sido restringir as ambições independentes de seus "aliados" europeus, forçando-os a cumprir as sanções dos EUA contra a Rússia e a continuar armando a Ucrânia. Essa política de aproximação com a aliança da OTAN teve algum sucesso, com a Grã-Bretanha sendo a apoiadora mais entusiasmada do esforço de guerra da Ucrânia. No entanto, a reconstituição de um verdadeiro bloco controlado pelos EUA continua muito distante. A França e a Alemanha - esta última é a que mais tem a perder com o abandono de sua tradicional "Ostpolitik", dada sua dependência do fornecimento de energia russo - continuam inconsistentes quanto à entrega das armas solicitadas por Kiev e persistiram em suas próprias "iniciativas" diplomáticas em relação à Rússia e à China. A China, por sua vez, adotou uma atitude muito cautelosa em relação à guerra na Ucrânia, revelando recentemente seu próprio "plano de paz" e abstendo-se de fornecer a Moscou a "ajuda letal" de que tanto necessita.

Todos os fatos - mesmo deixando de lado a questão da mobilização do proletariado nos países centrais que isso exigiria - confirmam, portanto, o ponto de vista segundo o qual não estamos caminhando para a formação de blocos imperialistas estáveis. Mas isso não diminui em nada o perigo de escaladas militares descontroladas, incluindo o uso de armas nucleares. Desde que George Bush Sênior anunciou o advento de uma "nova ordem mundial" após o fim da URSS, as tentativas dos Estados Unidos de impor essa "ordem" fizeram com que eles se tornassem a força mais poderosa para aumentar a desordem e a instabilidade no mundo. Essa dinâmica foi claramente ilustrada pelo caos de pesadelo que continua a reinar no Afeganistão e no Iraque após as invasões dos EUA nesses países, mas o mesmo processo também está em ação no conflito ucraniano. Encostar a Rússia na parede, portanto, acarreta o risco de uma resposta desesperada do regime de Moscou, incluindo o uso de armas nucleares; por outro lado, se o regime entrar em colapso, isso pode desencadear a desintegração da própria Rússia, criando uma nova zona de caos com as consequências mais imprevisíveis. A irracionalidade da guerra na decadência do capitalismo pode ser medida não apenas por seus custos econômicos gigantescos, que superam em muita qualquer possibilidade de lucro ou reconstrução a curto prazo, mas também pelo colapso brutal dos objetivos estratégicos militares que, no período de decadência capitalista, suplantaram cada vez mais a racionalidade econômica da guerra.

Após a primeira Guerra do Golfo, em nosso texto de orientação Militarismo e decomposição, previmos o seguinte cenário para as relações imperialistas na fase de decomposição:

  • "No novo período histórico em que entramos, e os acontecimentos do Golfo acabam de confirmar isso, o mundo se apresenta como uma imensa corrida de ratos, onde a tendência do "cada um por si" entrará em ação, em que as alianças entre os Estados não terá, longe disso, o caráter de estabilidade que caracterizou os blocos, mas será ditado pelas necessidades do momento. Um mundo de desordem assassina, no qual o gendarme norte-americano tentará manter um mínimo de ordem através do uso cada vez mais maciço e brutal de seu poder militar."

Como demonstraram as consequências das invasões do Afeganistão e do Iraque no início dos anos 2000, o uso crescente do poderio militar dos Estados Unidos deixou claro que, longe de alcançar esse mínimo de ordem, "a política imperialista dos Estados Unidos se tornou um dos principais fatores de instabilidade no mundo" (Resolução sobre a Situação Internacional, 17º Congresso do CCI, e os resultados da ofensiva dos EUA contra a Rússia deixaram ainda mais claro que "a polícia mundial" se tornou o principal fator de intensificação do caos em escala global.

5. A crise econômica

A guerra na Ucrânia foi mais um golpe para uma economia capitalista já enfraquecida e minada por suas contradições internas e pelas convulsões resultantes de sua decomposição. A economia capitalista já estava sofrendo uma desaceleração, marcada pelo aumento da inflação, pela crescente pressão sobre as moedas das principais potências e pela crescente instabilidade financeira (refletida no estouro das bolhas imobiliárias na China, bem como nas criptomoedas e na tecnologia). A guerra agora está agravando poderosamente a crise econômica em todos os níveis.

A guerra significa a aniquilação econômica da Ucrânia, o grave enfraquecimento da economia russa devido ao imenso custo da guerra e aos efeitos das sanções impostas pelas potências ocidentais. Suas ondas de choque estão sendo sentidas em todo o mundo, alimentando a crise alimentar e a fome por meio do aumento dos preços dos produtos de primeira necessidade e da escassez de grãos.

A consequência mais tangível da guerra em todo o mundo é a explosão dos gastos militares, que ultrapassaram 2.000 bilhões de dólares. Todos os países do mundo estão envolvidos na espiral do rearmamento. Mais do que nunca, as economias estão sujeitas às necessidades da guerra, aumentando a proporção da riqueza nacional dedicada à produção de instrumentos de destruição. O câncer do militarismo significa a esterilização do capital e é um fardo esmagador para o comércio e a economia nacional, exigindo sacrifícios cada vez maiores dos explorados.

Ao mesmo tempo, as convulsões financeiras mais graves desde a crise de 2008, desencadeadas por uma série de falências bancárias nos Estados Unidos (incluindo a do 16º maior banco dos EUA) e, em seguida, a do Credit Suisse (o 2º maior banco da Suiça), estão se espalhando internacionalmente, enquanto a intervenção maciça dos bancos centrais dos EUA e da Suiça não conseguiu evitar o risco de contágio para outros países europeus e outros setores de alto risco, ou impedir que essas falências se transformassem em uma crise de crédito "sistêmica".

Diferentemente de 2008, quando a falência dos grandes bancos foi causada por sua exposição a hipotecas subprime, desta vez os bancos estão sendo debilitados principalmente por seus investimentos de longo prazo em títulos públicos, que estão perdendo valor à medida que as taxas de juros sobem repentinamente para combater a inflação. A atual instabilidade financeira, embora não seja (ainda) tão dramática quanto em 2008, está se aproximando do coração do sistema financeiro, porque o recurso à dívida pública - e em particular ao Tesouro dos EUA, no centro desse sistema - sempre foi considerado o refúgio mais seguro.

De qualquer forma, as crises financeiras, independentemente de sua dinâmica interna e de suas causas imediatas, são sempre, em última análise, uma manifestação da crise de superprodução que ressurgiu em 1967 e se agravou ainda mais por fatores ligados à decomposição do capitalismo.

Acima de tudo, a guerra revela o triunfo da abordagem do "cada um por si" e o fracasso, se não o fim, de toda a "governança global" em termos de coordenação de economias, enfrentamento de problemas climáticos e assim por diante. Essa tendência de "cada um por si" nas relações entre os Estados tornou-se cada vez mais acentuada desde a crise de 2008, e a guerra na Ucrânia pôs fim a muitas das tendências econômicas, descritas sob o termo "globalização", que vinham ocorrendo desde a década de 1990.

Não só a capacidade das principais potências capitalistas de cooperar para conter o impacto da crise econômica mais ou menos desapareceu, como também, diante da deterioração de sua economia e do agravamento da crise global, e a fim de preservar sua posição como a principal potência mundial, os Estados Unidos estão agindo cada vez mais deliberadamente para enfraquecer seus concorrentes. Isso representa uma ruptura aberta com muitas das regras adotadas pelos governos desde a crise de 1929. Ele abre caminho para uma terra de incerteza cada vez mais dominada pelo caos e pela imprevisibilidade.

Os Estados Unidos, convencidos de que a preservação de sua liderança diante da ascensão da China ao poder depende, em grande parte, da força de sua economia, que a guerra colocou em uma posição de força política e militar, também estão na ofensiva contra seus rivais em termos econômicos. Essa ofensiva está ocorrendo em várias direções. Os Estados Unidos são os grandes vencedores da "guerra do gás" lançada contra a Rússia, em detrimento dos países europeus, forçados a parar a importação do gás russo. Tendo alcançado a autossuficiência em petróleo e gás graças a uma política energética de longo prazo iniciada por Obama, essa guerra confirmou a supremacia americana na esfera estratégica da energia. Ela colocou seus rivais na defensiva nessa área: a Europa teve que aceitar sua dependência do gás natural liquefeito americano; a China, que depende muito de hidrocarbonetos importados, foi debilitada pelo fato de os Estados Unidos estarem agora em posição de controlar as rotas de abastecimento da China. Os Estados Unidos agora têm uma capacidade sem precedentes de exercer pressão sobre o resto do mundo nessa área.

Aproveitando o papel central do dólar na economia global e sua posição como principal potência econômica do mundo, as várias iniciativas monetárias, financeiras e industriais (desde os planos de estímulo econômico de Trump até os subsídios maciços de Biden para produtos "made in USA", a Lei de Redução da Inflação etc.) aumentaram a "resiliência" da economia dos EUA, atraindo investimentos de capital e realocação industrial para o território americano. Os Estados Unidos estão limitando o impacto da atual desaceleração global em sua economia e adiando os piores efeitos da inflação e da recessão no resto do mundo.

Além disso, para garantir sua vantagem tecnológica decisiva, os Estados Unidos também pretendem assegurar a realocação para o país ou o controle internacional de tecnologias estratégicas (semicondutores), das quais pretendem excluir a China, ao mesmo tempo em que ameaçam impor sanções ao rival do seu monopólio.

A determinação dos Estados Unidos em preservar seu poder econômico tem como consequência o enfraquecimento do sistema capitalista como um todo. A exclusão da Rússia do comércio internacional, a ofensiva contra a China e a dissociação de suas duas economias, em suma, o desejo declarado dos Estados Unidos de reconfigurar as relações econômicas globais em seu benefício, marca um ponto de inflexão: os Estados Unidos revelam-se como um fator desestabilizador para o capitalismo global e uma extensão do caos econômico.

A Europa foi particularmente atingida pela guerra, que a privou de sua principal força: a estabilidade. As capitais europeias estão sofrendo com uma desestabilização sem precedentes de seu "modelo econômico" e correm um risco real de desindustrialização e realocação para zonas americanas ou asiáticas sob os golpes da "guerra do gás" e do protecionismo americano.

A Alemanha, em particular, é uma concentração explosiva de todas as contradições dessa situação inédita. O fim do fornecimento de gás russo coloca a Alemanha em uma posição econômica e estratégica frágil, ameaçando sua competitividade e toda sua indústria. O fim do multilateralismo, do qual o capital alemão se beneficiou mais do que qualquer outra nação (poupando-o do ônus das despesas militares), tem um impacto mais direto sobre seu poder econômico, que depende das exportações. Ela também corre o risco de se tornar dependente dos Estados Unidos em relação ao fornecimento de energia, já que esse país pressiona seus "aliados" a se juntarem à guerra econômica/estratégica contra a China e a abrirem mão de seus mercados chineses. Por se tratar de uma saída vital para o capital alemão, a Alemanha enfrenta um enorme dilema, compartilhado por outras potências europeias, em um momento em que a própria UE está ameaçada pela tendência de seus Estados-membros de colocarem seus interesses nacionais à frente dos interesses da União.

Quanto à China, embora há dois anos ela tenha sido apresentada como a grande vencedora da crise da Covid, ela é uma das expressões mais características do efeito "redemoinho". Atualmente é vitimada por uma desaceleração econômica, e agora enfrenta uma grave turbulência.

Desde o final de 2019, a pandemia, os repetidos lock-downs e o tsunami de infecções que se seguiram ao abandono da política "Zero Covid" continuaram a paralisar a economia chinesa.

A China está envolvida na dinâmica global da crise, com seu sistema financeiro ameaçado pelo estouro da bolha imobiliária. O declínio de seu parceiro russo e a interrupção das Rota da Seda direcionada à Europa por conflitos armados e ainda o caos ambiental, que estão causando danos consideráveis. A forte pressão dos Estados Unidos está aumentando suas dificuldades econômicas. E, diante de seus problemas econômicos, de saúde, ecológicos e sociais, a fraqueza congênita de sua estrutura estatal stalinista é uma grande desvantagem.

Longe de poder desempenhar o papel de locomotiva da economia mundial, a China é uma bomba-relógio cuja desestabilização teria consequências imprevisíveis para o capitalismo global.

As principais áreas da economia mundial já estão em recessão ou à beira dela. No entanto, a gravidade da "crise que vem se desenvolvendo há décadas e que está prestes a se tornar a mais grave de todo o período de decadência, cuja importância histórica superará até mesmo a maior crise desta era, a que começou em 1929"[2] não se limita à escala dessa recessão. A gravidade histórica da crise atual marca um ponto avançado no processo de "desintegração interna" do capitalismo mundial, anunciado pela Internacional Comunista em 1919, e que se origina do contexto geral da fase terminal da decadência, cujas principais tendências são:

  • A aceleração da decomposição e a multiplicidade de seus efeitos em uma economia capitalista já degradada;
  • A aceleração do militarismo em escala global;
  • O desenvolvimento agudo do "cada um por si" entre as nações em um cenário de competição cada vez mais acirrada entre a China e os Estados Unidos pela supremacia mundial;
  • O abandono das regras de cooperação entre as nações para lidar com as contradições e convulsões do sistema;
  • A ausência de um motor capaz de revitalizar a economia capitalista;
  • A perspectiva de empobrecimento absoluto do proletariado nos países centrais, que já está em andamento.

Estamos testemunhando a coincidência das várias expressões da crise econômica e, acima de tudo, sua interação na dinâmica de seu desenvolvimento: a inflação elevada exige um aumento das taxas de juros, que, por sua vez, provocam a recessão, que é a fonte da crise financeira, que leva a novas injeções de liquidez e, portanto, a um endividamento ainda maior, que já é astronômico e que é um fator adicional de inflação..... Tudo isso demonstra a falência desse sistema e sua incapacidade de oferecer qualquer perspectiva à humanidade.

A economia mundial está caminhando para a estagflação, uma situação marcada pelo impacto da superprodução e pelo desencadeamento da inflação como resultado do crescimento dos gastos improdutivos (principalmente gastos com armamentos, mas também o custo exorbitante dos estragos da decadência) e do uso da impressão de dinheiro para alimentar ainda mais a dívida. Em um contexto de caos crescente e acelerações imprevistas, a burguesia não está apenas revelando sua impotência: tudo o que ela faz tende a piorar a situação.

Para o proletariado, o aumento da inflação e a recusa da burguesia em agravar a "espiral salários-preços" estão reduzindo drasticamente o poder de compra. Somam-se a isso as demissões em massa, os cortes drásticos nos orçamentos sociais e os ataques às aposentadorias, o que pressagia um futuro de pobreza, como já ocorre nos países periféricos. Para setores cada vez maiores do proletariado nos países centrais, será cada vez mais difícil encontrar moradia, aquecimento, alimentação ou assistência social.

A burguesia está enfrentando uma enorme escassez de mão de obra em vários setores. Esse fenômeno, cuja escala e impacto na produção não têm precedentes, parece ser a cristalização de um conjunto de fatores que combinam as contradições internas do capitalismo e os efeitos de sua decomposição. É o produto da anarquia do capitalismo, que gera tanto o excesso de capacidade - desemprego - quanto a escassez de mão de obra. Outros fatores desse fenômeno são a globalização e a crescente fragmentação do mercado mundial, que dificultam a disponibilidade internacional de mão de obra; fatores demográficos, como a queda das taxas de natalidade e o envelhecimento da população, que limitam o número de trabalhadores disponíveis para exploração; e a relativa falta de mão de obra suficientemente qualificada, apesar das políticas de imigração seletiva implementadas por muitos países. Além disso, há a fuga de trabalhadores de setores onde as condições de trabalho se tornaram insuportáveis.

6. A destruição da natureza

A guerra na Ucrânia também é uma demonstração impressionante de como a guerra pode acelerar ainda mais a crise ecológica que vem se acumulando durante todo o período de decadência, mas que já havia atingido novos níveis nas primeiras décadas da fase terminal do capitalismo. A devastação de edifícios, infraestrutura, tecnologia e outros recursos representa um enorme desperdício de energia, e sua reconstrução gerará ainda mais emissões de carbono. O uso indiscriminado de armas altamente destrutivas resulta na poluição do solo, da água e do ar, com a ameaça sempre presente de que toda a região possa se tornar novamente uma fonte de radiação atômica, seja como resultado do bombardeio de usinas nucleares ou do uso deliberado de armas nucleares. Mas a guerra também está causando um impacto ecológico em nível global, ao tornar ainda mais difícil atingir as metas globais de limitação de emissões, com cada país mais preocupado com sua "segurança energética", o que geralmente significa maior dependência de combustíveis fósseis.

Assim como a crise ecológica é um fator do "efeito vórtice", ela também está gerando seus próprios "loops de feedback" que já estão acelerando o processo de aquecimento global. Por exemplo, o derretimento das calotas polares não apenas contém os perigos inerentes ao aumento do nível do mar, mas também está se tornando um fator de aumento da temperatura global, pois o derretimento do gelo significa uma redução da capacidade  de refletir a energia solar de volta para a atmosfera. Da mesma forma, o derretimento do permafrost na Sibéria liberará uma enorme reserva de metano, um poderoso gás de efeito estufa. O agravamento e os efeitos combinados do aquecimento global (enchentes, incêndios, secas, erosão do solo, etc.) já estão tornando cada vez mais regiões do planeta inabitáveis, exacerbando ainda mais o problema global dos refugiados, já alimentado pela persistência e disseminação de conflitos imperialistas.

Como Marx e Rosa Luxemburgo explicaram, a busca incessante por mercados e matérias-primas levou o capitalismo a invadir e ocupar todo o planeta, destruindo as áreas "selvagens" remanescentes ou submetendo-as à lei do lucro. Esse processo é inseparável da geração de doenças zoonóticas, como a Covid, lançando as bases para futuras pandemias.

A classe dominante está cada vez mais ciente dos perigos apresentados pela crise ecológica, ainda mais porque tudo isso tem um astronômico custo econômico, mas as recentes conferências sobre o meio ambiente confirmaram a incapacidade fundamental da classe dominante de lidar com a situação, uma vez que o capitalismo não pode existir sem a concorrência entre os estados-nação e devido às demandas de "crescimento". Uma parte da burguesia, como uma ala significativa do Partido Republicano nos Estados Unidos, cuja ideologia é alimentada pela profunda irracionalidade típica da fase final do capitalismo, persiste em negar a ciência do clima, mas, como mostram os relatórios do WEF e da ONU, as facções mais inteligentes estão bem cientes da gravidade da situação. Mas as soluções que elas propõem nunca chegam à raiz da questão e, na verdade, dependem de soluções técnicas que são tão tóxicas quanto a tecnologia existente (como é o caso dos veículos elétricos "limpos" cujas baterias de lítio são baseadas em vastos projetos de mineração, altamente poluentes) ou envolvem novos ataques às condições de vida da classe trabalhadora. Assim, a ideia de uma economia "pós-crescimento" na qual um Estado "benevolente" e "verdadeiramente democrático" preside todas as relações fundamentais do capitalismo (trabalho assalariado, produção generalizada de mercadorias) não é apenas um absurdo lógico - já que são essas mesmas relações que sustentam a necessidade de acumulação infinita - mas também implicaria em medidas de austeridade ferozes, justificadas pelo slogan "consumir menos". E embora a ala mais radical dos movimentos "verdes" (Fridays for Future, Extinction Rebellion, etc.) critique cada vez mais o "blá-blá-blá" das conferências governamentais sobre o meio ambiente, seus apelos à ação direta por parte dos "cidadãos" preocupados só podem obscurecer a necessidade dos trabalhadores lutarem contra esse sistema em seu próprio terreno de classe e reconhecerem que a verdadeira "mudança do sistema" só pode ocorrer por meio da revolução proletária. Em uma época em que os desastres ecológicos se sucedem cada vez mais rapidamente, a burguesia não deixará de usar formas de protesto como falsas alternativas à luta de classes, a única que pode desenvolver a perspectiva de uma relação radicalmente nova entre a humanidade e seu ambiente natural.

7. A instabilidade política da classe dominante

Em 1990, as Teses sobre Decomposição destacaram a tendência crescente da classe dominante de perder o controle de seu jogo político. A ascensão do populismo, alimentada pela total falta de perspectiva oferecida pelo capitalismo e pelo desenvolvimento do "cada um por si" internacionalmente, é provavelmente a expressão mais clara dessa perda de controle, e essa tendência continuou apesar dos movimentos contrários de outras facções mais "responsáveis" da burguesia (por exemplo, a substituição de Trump e a rápida destituição de Truss no Reino Unido). Nos EUA, Trump continua preparando uma nova candidatura presidencial que, se bem-sucedida, prejudicaria seriamente as atuais direções da política externa do governo dos EUA; na Grã-Bretanha, o país clássico de governo parlamentar estável, vimos uma sequência de quatro primeiros-ministros conservadores sucessivos, expressando divisões profundas no partido conservador como um todo e, mais uma vez, impulsionados principalmente pelas forças populistas que empurraram o país para o fiasco do Brexit. Longe dos centros históricos do sistema, demagogos nacionalistas como Erdogan e Modi continuam a agir como dissidentes, impedindo a formação de uma aliança sólida com os EUA em seu conflito com a Rússia. Em Israel, Netanyahu também se levantou do que parecia ser seu túmulo político, apoiado por forças ultra religiosas e abertamente anexionistas, e seus esforços para subordinar a Suprema Corte ao seu governo provocaram um vasto movimento de protesto, totalmente dominado por apelos à defesa da "democracia".

A invasão do Capitólio por apoiadores de Trump em 6 de janeiro destacou que as divisões na classe dominante, mesmo no país mais poderoso do planeta, estão se aprofundando e correm o risco de degenerar em confrontos violentos e até mesmo em guerra civil. A eleição de Lula no Brasil viu as forças bolsonaristas tentarem sua própria versão do 6 de janeiro e, na Rússia, a oposição a Putin dentro da classe dominante é cada vez mais evidente, principalmente por parte de grupos ultranacionalistas, insatisfeitos com a forma como a atual "operação militar especial" na Ucrânia se desenrolando. Há muitos rumores de golpes militares e, embora o próprio Putin esteja se adaptando à pressão da direita, ameaçando constantemente aumentar a "guerra com o Ocidente", a substituição de Putin por uma gangue rival seria um processo nada pacífico. Por fim, na China, as divisões da burguesia também estão se tornando mais aparentes, principalmente entre a facção em torno de Xi Jinping, a favor de um fortalecimento do controle central do Estado sobre toda a economia e os rivais mais ligados às oportunidades de desenvolvimento do capital privado e do investimento estrangeiro. Embora o reinado da fração de Xi parecesse inatacável no Congresso do Partido em outubro de 2022, sua gestão desastrosa da crise da Covid, o agravamento da crise econômica e os sérios dilemas criados pela guerra na Ucrânia expuseram as fraquezas da classe dominante chinesa, sobrecarregada por um rígido aparato stalinista que não tem os meios para se adaptar aos principais problemas sociais e econômicos.

Entretanto, essas divisões não põe fim à capacidade da classe dominante de voltar os efeitos da decomposição contra a classe trabalhadora ou, diante da crescente luta de classes, de colocar temporariamente de lado suas divisões para enfrentar seu inimigo mortal. E mesmo quando a burguesia é incapaz de controlar suas divisões internas, a classe trabalhadora é permanentemente ameaçada pelo perigo de ser mobilizada por facções rivais de seu inimigo de classe.

8. 8. A ruptura com 30 anos de recuo e desorientação

O renascimento do espírito de luta dos trabalhadores em vários países é um evento histórico importante que não é resultado apenas de circunstâncias locais e não pode ser explicado por condições puramente nacionais.

Na origem desse ressurgimento, as lutas que vêm ocorrendo na Grã-Bretanha desde o verão de 2022 têm um significado que vai além do contexto britânico apenas; a reação dos trabalhadores na Grã-Bretanha lança luz sobre as que estão ocorrendo em outros lugares e lhes dá um significado novo e particular na situação. O fato das lutas atuais terem sido iniciadas por uma fração do proletariado que mais sofreu com o recuo geral da luta de classes desde o final da década de 1980 é profundamente significativo: assim como a derrota na Grã-Bretanha em 1985 anunciou o recuo geral do final da década de 1980, o retorno das greves e da combatividade dos trabalhadores na Grã-Bretanha revela a existência de uma corrente profunda no proletariado de todo o mundo. Diante do agravamento da crise econômica global, a classe trabalhadora está começando a desenvolver sua resposta à inexorável deterioração das condições de vida e de trabalho em um único movimento internacional. Essa análise também se aplica à mobilização maciça de três meses da classe trabalhadora na França em face do ataque do governo às aposentadorias. Por várias décadas, os trabalhadores desse país estiveram entre os mais combativos do mundo, mas suas mobilizações no início de 2023 não são simplesmente uma continuidade das importantes lutas do período anterior; o alcance dessas mobilizações se explica também, e fundamentalmente, pelo fato de fazerem parte de uma combatividade que anima o proletariado de muitos países.

As atuais lutas dos trabalhadores na Europa confirmam que a classe trabalhadora não foi derrotada e mantém seu potencial. O fato de os sindicatos controlarem esses movimentos sem serem desafiados não deve minimizar ou relativizar sua importância. Pelo contrário, a atitude da classe dominante, que há muito tempo se prepara para a perspectiva de novas lutas dos trabalhadores, atesta seu potencial: os sindicatos estavam prontos para adotar uma postura "combativa" e se colocaram à frente do movimento para desempenhar plenamente seu papel de guardiões da ordem capitalista.

Impulsionados por uma nova geração de trabalhadores, a escala e a simultaneidade desses movimentos atestam uma verdadeira mudança de mentalidade na classe e rompem com a passividade e a desorientação que prevaleceram do final da década de 1980 até hoje.

Diante da provação da guerra, não era possível esperar uma resposta direta da classe trabalhadora. A história mostra que a classe trabalhadora não se mobiliza diretamente contra a guerra, mas contra seus efeitos na vida da retaguarda. A escassez de mobilizações pacifistas organizadas pela burguesia não significa que o proletariado apoie a guerra, mas mostra a eficácia da campanha pela "defesa da Ucrânia contra o agressor russo". No entanto, não se trata apenas de uma questão de não adesão passiva. Não só a classe trabalhadora dos países centrais ainda não está preparada para aceitar o sacrifício supremo da morte, como também rejeita o sacrifício das condições de vida e de trabalho exigidas pela guerra.

As lutas atuais são precisamente a resposta dos trabalhadores nesse nível; elas são a única resposta possível e contêm as premissas para o futuro, mas, ao mesmo tempo, mostram que a classe trabalhadora ainda não consegue estabelecer a relação entre a guerra e a deterioração de suas condições.

A CCI sempre insistiu que, apesar dos golpes desferidos contra a consciência de classe, apesar de seu declínio nas últimas décadas :

  • O proletariado dos países centrais conservou enormes reservas de espírito de luta que não foram postas à prova de forma decisiva até o momento;
  • O desenvolvimento de uma resistência aberta aos ataques do capital constitui, mais do que nunca, na situação atual, a condição mais crucial para que o proletariado recupere sua identidade de classe como ponto de partida de uma evolução mais geral da consciência de classe.

Até agora, as expressões de combatividade que surgiram parecem ter tido "pouco eco no restante da classe: o fenômeno das lutas em um país "respondendo" a movimentos em outros lugares parece ser quase inexistente. Para a classe em geral, a natureza fragmentada e desconectada das lutas faz pouco, pelo menos na superfície, para fortalecer, ou melhor, restaurar a autoconfiança do proletariado, sua consciência de ser uma força distinta na sociedade, uma classe internacional com o potencial de desafiar a ordem existente"[3] .

Hoje, a combinação de um retorno da combatividade dos trabalhadores e o agravamento da crise econômica mundial (em comparação com 1968 ou 2008), que não poupará nenhuma parte do proletariado e atingirá todos simultaneamente, está mudando objetivamente a base da luta de classes.

O aprofundamento da crise e a intensificação da economia de guerra só podem continuar em escala global, e em todos os lugares isso só pode gerar uma combatividade crescente. A inflação desempenhará um papel especial nesse desenvolvimento do espírito de luta e da consciência. Ao atingir todos os países, toda a classe trabalhadora, a inflação empurra o proletariado para a luta. Não sendo um ataque que a burguesia possa preparar e eventualmente retirar, mas um produto do capitalismo, ela implica uma luta e uma reflexão mais profunda.

A retomada das lutas confirma a posição da CCI de que a crise continua sendo a melhor aliada do proletariado:

"o agravamento inexorável da crise capitalista constitui o estímulo essencial para a luta de classes e o desenvolvimento da consciência, a condição prévia para sua capacidade de resistir ao veneno destilado pela podridão social. Pois se as lutas parciais contra os efeitos da decomposição não têm base para a unificação da classe, sua luta contra os efeitos diretos da crise, no entanto, constitui a base para o desenvolvimento de sua força e de sua unidade de classe". (Decomposição, a fase final da decadência do capitalismo). Esse desenvolvimento de lutas não é um lampejo, mas tem um futuro. Ele indica um processo de renascimento da classe após anos de refluxo e contém o potencial para a recuperação da identidade da classe, para que a classe recupere a consciência do que é e do poder que tem quando entra em luta.

Tudo indica que esse movimento de classe, que começou na Europa, pode durar muito tempo e se repetirá em outras partes do mundo. Uma nova situação está se abrindo para a luta de classes.

Diante do perigo de destruição contido na decomposição do capitalismo, essas lutas mostram que a perspectiva histórica permanece totalmente aberta: "Estes primeiros passos serão muitas vezes hesitantes e cheios de fraquezas, mas são essenciais para que a classe trabalhadora possa reafirmar sua capacidade histórica de impor sua perspectiva comunista. Assim, os dois polos da perspectiva se opõem globalmente na alternativa: destruição da humanidade ou revolução comunista, mesmo que esta última alternativa ainda esteja muito distante e enfrente enormes obstáculos".[4]

Embora o próprio contexto de decomposição represente um obstáculo ao desenvolvimento das lutas e à recuperação da confiança do proletariado, embora a decomposição tenha progredido assustadoramente, embora o tempo não esteja mais a seu favor, a classe conseguiu retomar a luta. O período recente confirmou de forma impressionante nossa previsão na Resolução sobre a Situação Internacional do 24º Congresso Internacional:

  • "Como já recordamos, a fase de decomposição contém de fato o perigo de o proletariado simplesmente não responder e ser sufocado durante um longo período - uma "morte por mil golpes" em vez de um confronto de classe frontal. No entanto, argumentamos que ainda há evidências suficientes para mostrar que, apesar do inegável avanço da decomposição, apesar do tempo já não estar do lado da classe trabalhadora, o potencial para um profundo renascimento proletário - levando a uma reunificação entre as dimensões econômica e política da luta de classes - não desapareceu".[5]

A luta em si é a primeira vitória do proletariado, revelando em particular:

  • O caminho para a recuperação da identidade de classe. Embora o frágil ressurgimento da luta de classes (EUA 2018, França 2019) tenha sido amplamente bloqueado pela pandemia e pelos lockdowns, esses eventos revelaram a condição da classe trabalhadora, como a principal vítima da crise de saúde, mas também como a fonte de todo o trabalho e de toda a produção material de bens essenciais. Os trabalhadores estão agora envolvidos em uma experiência coletiva de luta na qual há uma busca por unidade e o início da solidariedade entre diferentes setores da classe, entre trabalhadores de "colarinho azul" e de "colarinho branco", entre gerações. A sensação de estarmos todos no mesmo barco permitirá que a classe trabalhadora se reconheça como uma força social unida pelas mesmas condições de exploração. A recuperação da identidade de classe do proletariado é inseparável desses primeiros passos em direção ao reconhecimento de si mesmo e de sua força; isso também inclui a identificação de seu antagonismo de classe, além de qualquer empregador ou governo em particular. Essa retomada do confronto de classe cria as bases para uma politização mais consciente da luta, um longo e tortuoso processo que apenas começou.
  • Uma progressão no amadurecimento subterrâneo da consciência, que se desenvolveu durante um período bastante longo e em diferentes níveis: nas camadas mais amplas da classe, o amadurecimento subterrâneo primeiro assume a forma de uma perda de ilusão na capacidade do capitalismo de oferecer um futuro, uma consciência de que a situação só pode piorar, que toda a dinâmica do capitalismo está empurrando a sociedade contra a parede e, acima de tudo, uma profunda revolta contra as condições de exploração, resumida na palavra de ordem "basta". Em um setor menor da classe, houve uma reflexão sobre as lutas passadas e uma busca por lições sobre como fortalecer a luta e criar um equilíbrio efetivo de poder contra o Estado. Finalmente, "em uma fração da classe, que é ainda mais limitada em tamanho, mas destinada a crescer à medida que a luta avança, isso assume a forma de uma defesa explícita do programa comunista e, portanto, do reagrupamento em uma vanguarda marxista organizada"[6] . Isso se materializa no surgimento de minorias interessadas nas posições políticas da esquerda comunista.

Foi a perda progressiva da identidade de classe que permitiu que a burguesia esterilizasse ou recuperasse os dois maiores momentos da luta proletária desde a década de 1980 (o movimento contra o Contrato do Primeiro Emprego (CPE) na França em 2006 e os Indignados na Espanha em 2011), porque os protagonistas foram privados dessa base crucial para o desenvolvimento mais geral da consciência. Hoje, a tendência de recuperar a identidade de classe e a evolução da maturação subterrânea expressam a mudança mais importante no nível subjetivo, revelando o potencial para o desenvolvimento futuro da luta proletária. Porque significa a consciência de formar uma classe unida por interesses comuns, opostos aos da burguesia, porque significa a "constituição do proletariado como classe" (Manifesto), a identidade de classe é uma parte inseparável da consciência de classe, para a afirmação do ser revolucionário consciente do proletariado. Sem ela, não há possibilidade da classe se relacionar com sua história a fim de aprender as lições das lutas passadas e, assim, engajar-se em suas lutas presentes e futuras. A identidade e a consciência de classe só podem ser fortalecidas pelo desenvolvimento da luta autônoma da classe em seu próprio terreno.

O despertar da combatividade de classe e o amadurecimento subterrâneo da consciência exigem que os sindicatos, os órgãos estatais especializados em enquadrar as lutas dos trabalhadores, e as organizações políticas de esquerda, os falsos amigos burgueses da classe trabalhadora, se coloquem na linha de frente contra a luta de classes.

A eficácia atual do controle sindical baseia-se nas fraquezas resultantes da decomposição, fraquezas exploradas politicamente pela burguesia e no recuo da consciência que durou várias décadas e que resultou no "retorno em força dos sindicatos" e no fortalecimento da "ideologia reformista sobre as lutas do próximo período, facilitando muito o trabalho dos sindicatos" (Teses sobre a crise econômica e política na URSS e nos países do Leste Europeu).

Em particular, o peso da atomização, a falta de perspectiva, a fraqueza da identidade de classe, a perda de conquistas e as lições dos confrontos passados com os sindicatos estão na raiz da influência extremamente importante do corporativismo. Essa fraqueza permite que os sindicatos mantenham uma influência poderosa sobre a classe.

Embora ainda não estejam ameaçados por um questionamento desse controle da luta, os sindicatos têm sido forçados a se adaptar às lutas atuais, a fim de fazer seu trabalho habitual de divisão, usando uma linguagem mais "combativa", mais "classe trabalhadora", apresentando-se como artesãos da unidade de classe, para melhor sabotá-la.

Ao mesmo tempo, as várias organizações de esquerda (e a esquerda em geral) trabalham dentro e fora dos sindicatos e lhes dão um apoio poderoso. Como defensores das mais sofisticadas mistificações antitrabalhadores em um disfarce radical, sua função também é capturar minorias em busca de posições de classe.

A defesa constante da "democracia" e dos interesses do "povo" visa ocultar a existência de antagonismos de classe, alimentar a mentira do estado protetor e atacar a identidade da classe proletária, reduzindo a classe trabalhadora a uma massa de cidadãos ou a "setores" de atividade separados por interesses particulares.

Diante dos movimentos das classes não exploradoras ou da pequena burguesia pulverizada pela crise econômica, o proletariado deve desconfiar das revoltas "populares" ou das lutas entre classes que afogam seus próprios interesses na soma indiferenciada dos interesses do "povo". Ele deve se colocar resolutamente no terreno da defesa de suas próprias reivindicações e de sua autonomia de classe, uma condição para o desenvolvimento de sua força e de sua luta.

Ela também deve rejeitar as armadilhas criadas pela burguesia em torno de lutas fragmentadas (para salvar o meio ambiente, contra a opressão racial, feminismo, etc.) que a desviam de seu próprio terreno de classe. Uma das armas mais eficazes da classe dominante é sua capacidade de virar os efeitos da decomposição contra ela e de incentivar as ideologias decompostas da pequena burguesia. No terreno da decomposição, da irracionalidade, do niilismo e do "sem futuro", proliferam correntes ideológicas de todo o tipo. Seu papel central é transformar cada aspecto repugnante do sistema capitalista decadente em uma causa específica de luta, adotada por diferentes setores da população ou, às vezes, pelo "povo", mas sempre separada de um questionamento genuíno do sistema como um todo.

Todas essas ideologias (ecologistas, "wokismo", raciais etc.) que negam a luta de classes, ou que, como as que defendem a "interseccionalidade", colocam a luta de classes no mesmo nível da luta contra o racismo ou o machismo, representam um perigo para a classe, em particular para a jovem geração de trabalhadores inexperientes que estão profundamente revoltados com o estado da sociedade. Nesse nível, essas ideologias são complementadas pela panóplia de esquerdistas e modernistas ("comunizadores"), cujo papel é esterilizar os esforços do proletariado para desenvolver a consciência de classe e distanciar os trabalhadores da luta de classes.

Se a luta de classes é por natureza internacional, a classe trabalhadora é ao mesmo tempo, uma classe heterogênea que deve forjar sua unidade por meio de sua luta. Nesse processo, é o proletariado dos países centrais que tem a responsabilidade de abrir as portas da revolução para o proletariado mundial.

Nos países desenvolvidos mais recentemente, como China, Índia etc., embora a classe trabalhadora tenha se mostrado muito combativa e apesar de sua importância em termos quantitativos, essas frações do proletariado, devido à sua falta de experiência histórica, são particularmente vulneráveis às armadilhas ideológicas e mistificações da classe dominante. Suas lutas são facilmente reduzidas à impotência ou desviadas para becos sem saída burgueses (pedidos de mais democracia, liberdade, igualdade etc.) ou completamente diluídas em movimentos interclassistas dominados por outras camadas sociais. Como mostrou a Primavera Árabe de 2011: a luta muito real dos trabalhadores no Egito foi rapidamente diluída em "o povo" e depois arrastada atrás das frações da classe dominante no terreno burguês de "mais democracia". Ou ainda, o imenso movimento de protesto no Irã, onde, na ausência de uma perspectiva revolucionária clara defendida pelas frações mais experientes do proletariado mundial da Europa Ocidental, as muitas lutas dos trabalhadores no país só podem ser afogadas no movimento popular e desviadas de seu terreno de classe por trás do slogan dos direitos das mulheres.

Nos Estados Unidos, embora marcado por fraquezas ligadas ao fato de que a classe desse país não ter sido confrontada diretamente com a contrarrevolução e de não possuir uma tradição revolucionária profunda, o proletariado da primeira potência mundial, apesar dos inúmeros obstáculos gerados pela decomposição da qual os Estados Unidos se tornaram o epicentro (o peso das divisões raciais e do populismo, toda a atmosfera de quase guerra civil entre populistas e democratas, o impasse dos movimentos que trabalham em terreno burguês como o Black Lives Matter) mostra a capacidade de desenvolver suas lutas (durante a pandemia, durante o "Striketober" em 2021) em seu terreno de classe. O proletariado americano mostra, em uma situação política muito difícil, que começa a responder aos efeitos da crise econômica.

A chave para o futuro revolucionário do proletariado permanece nas mãos de sua fração nos países centrais do capitalismo. Somente o proletariado dos velhos centros industriais da Europa Ocidental constitui o ponto de partida da futura revolução mundial:

  • Porque é o local da mais importante experiência revolucionária da classe trabalhadora desde as primeiras batalhas de 1848 até a Comuna de Paris de 1871 e a revolução na Alemanha em 1918-19;
  • Porque foi o mais endurecido pelo confronto com as mais sofisticadas mistificações burguesas sobre democracia, eleições e sindicatos.
  • Porque também se confrontou com a contrarrevolução nas várias formas assumidas pela ditadura da classe dominante: democracia burguesa, stalinismo e fascismo.
  • Porque a questão da internacionalização da luta de classes é imediatamente levantada pela proximidade das nações mais poderosas da Europa;
  • Porque os grupos políticos da esquerda comunista, embora ainda sejam minoria e fracos, estão presentes ali.

 

9. A responsabilidade dos revolucionários

Diante do crescente confronto entre os dois polos da alternativa – a destruição da humanidade ou a revolução comunista – as organizações revolucionárias da esquerda comunista, e a CCI em particular, têm um papel insubstituível a desempenhar no desenvolvimento da consciência de classe, e devem dedicar suas energias ao trabalho permanente de aprofundamento teórico, a propor uma análise clara da situação mundial, e a intervir nas lutas de nossa classe para defender a necessidade de autonomia, auto-organização e unificação da classe e do desenvolvimento da perspectiva revolucionária.

Esse trabalho só pode ser feito com base em uma paciente construção organizacional, lançando as bases para o partido mundial do amanhã. Todas essas tarefas exigem uma luta militante contra todas as influências da ideologia burguesa e pequeno-burguesa no meio da esquerda comunista e da própria CCI. Na atual conjuntura, os grupos da esquerda comunista estão enfrentando o perigo de uma crise real: com poucas exceções, não conseguiram se unir em defesa do internacionalismo diante da guerra imperialista na Ucrânia e estão cada vez mais abertos à penetração do oportunismo e do parasitismo. A adesão rigorosa ao método marxista e aos princípios proletários é a única resposta a esses perigos.

Maio de 2023

Rubric: 

Documentos do 25º Congresso da CCI