Há aproximadamente três anos, certos indivíduos ou grupos anarquistas e a CCI tem derrubado as barreiras que os separam, atrevendo-se a discutir de forma aberta e fraternal. Rompendo com a indiferença ou o rechaço recíproco, a priori e sistemático, de anarquismo para marxismo e vice-versa, deram lugar a uma vontade de discutir, de compreender as posições do outro e de delimitar honradamente os pontos de convergência e de divergência.
No México, este novo estado de espírito permitiu a redação comum de um panfleto assinado por dois grupos anarquistas (o GSL e o PAM)[1] e uma organização da Esquerda Comunista (a CCI). Na França, recentemente, a CNT-AIT de Toulouse convidou a CCI para realizar uma apresentação em uma das suas reuniões públicas [2]. Na Alemanha também, os laços começam a desenvolver-se.
Sobre a base dessa dinâmica, a CCI tem iniciado um trabalho de fundo sobre a questão da história do Internacionalismo dentro do movimento anarquista. Publicamos ao longo do ano de 2009 toda uma série de artigos intitulados Os anarquistas e a guerra [3]. Nosso objetivo foi mostrar que em cada conflito imperialista, uma parte dos anarquistas tem tratado de evitar a armadilha do nacionalismo e defender o internacionalismo proletário. Também mostrar que esses camaradas estavam dispostos a continuar lutando pela revolução e pelo proletariado internacional embora ao seu redor se desencadeava o chauvinismo e a barbárie guerreira.
Quando se conhece a importância que a CCI atribui ao Internacionalismo, verdadeira fronteira que delimita os revolucionários que lutam realmente pela emancipação da humanidade dos que traem o combate do proletariado, esses artigos são a evidência não somente de uma crítica sem concessões dos anarquistas belicistas, que apoiaram a guerra, mas, sobretudo, uma saudação aos anarquistas internacionalistas!
Entretanto nossa intenção não tem sido bem percebida. Esta série foi recebida momentaneamente com uma certa frieza. De um lado, os anarquistas viram um ataque em série contra seu movimento. Do outro, os simpatizantes da Esquerda Comunista e da CCI não têm compreendido nossa vontade de "aproximação aos anarquistas" [4].
Para além dos deslizes cometidos nos nossos artigos, que podem ter "ofendido" alguns entre eles [5], estas críticas aparentemente contraditórias têm de fato a mesma raiz. Revelam a dificuldade de ver, além das divergências, os elementos essenciais que aproximam os revolucionários.
Os que se reclamam da luta pela revolução são tradicionalmente classificados em duas categorias: os marxistas e os anarquistas. Há, com efeito, divergências muito grandes que os separam: centralismo / federalismo; materialismo / idealismo; "período de transição" ou "abolição imediata do estado"; reconhecimento ou denúncia da Revolução de Outubro de 1917 e do Partido Bolchevique...
Todas essas questões são efetivamente muito importantes. É nossa responsabilidade não escamoteá-las e debatê-las abertamente. Porém, por outro lado, não delimitam dois campos. Concretamente, nossa organização que é marxista, considera que luta pelo proletariado ao lado dos militantes anarquistas internacionalistas e frente aos chamados partidos "comunistas" e maoístas (que, no entanto, se proclamam também marxistas). Por quê?
Dentro da sociedade capitalista, existem dois campos fundamentais: o da burguesia e o da classe operária. Nós denunciamos e combatemos todas as organizações políticas que pertencem ao primeiro. E discutimos, às vezes vivamente, mas sempre fraternalmente, e tratamos de colaborar com os membros do segundo. Desse modo, sob o rótulo de "marxista" se escondem organizações autenticamente burguesas e reacionárias; do mesmo modo sob o rótulo de "anarquista"!
Não se trata de pura retórica. A história está repleta de exemplos de organizações "marxistas" ou "anarquistas" que tem jurado defender a causa do proletariado para imediatamente apunhalar pelas costas. A social-democracia alemã se dizia marxista em 1919, ao mesmo tempo que assassinava Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht e milhares de operários. Os partidos stalinistas abateram sanguinariamente as insurreições operárias em Berlim em 1953 e na Hungria em 1956 em nome, também, do "comunismo" e do "marxismo" (na realidade pelo interesse do bloco imperialista dirigido pela URSS). Na Espanha, em 1937, os dirigentes da CNT participando do governo, serviram de garantia aos verdugos stalinistas que massacraram e reprimiram sanguinariamente milhares de revolucionários... anarquistas! Atualmente na França, por exemplo, a mesma denominação "CNT" abriga duas organizações anarquistas, uma com posições autenticamente revolucionárias (CNT-AIT) e outra puramente "reformista" e reacionária (CNT Vignoles [6]).
Descobrir os falsos amigos que se escondem atrás dos "rótulos" é vital.
Porém não temos de cair na armadilha contrária e acreditar-se os únicos no mundo, os detentores exclusivos da "verdade revolucionária". Os militantes comunistas são atualmente pouco numerosos e não há nada pior que o isolamento. Faz falta também lutar contra a tendência ainda muito grande da defesa do "feudo", da "família" (anarquista ou marxista) e contra o espírito concorrencial que nada tem a desempenhar no campo da classe operária. Os revolucionários não competem entre si. As divergências, os desacordos, por mais profundos que sejam, são uma fonte de enriquecimento para a consciência de toda a classe operária quando se discutem aberta e sinceramente. Criar laços e debater em escala internacional é uma necessidade absoluta.
Mas por tudo isso é necessário saber distinguir os revolucionários (aqueles que defendem a perspectiva da derrubada do capitalismo pelo proletariado) dos reacionários (aqueles que, de uma maneira ou de outra, contribuem com a perpetuação desse sistema), sem focar sobre o único rótulo "marxismo" ou "anarquismo".
Para a CCI existem critérios fundamentais que distinguem as organizações burguesas e proletárias.
Apoiar o combate da classe operária contra o capitalismo significa ao mesmo tempo lutar de forma imediata contra a exploração (quando das greves, por exemplo) sem perder de vista o desafio histórico desse combate: a derrubada desse sistema de exploração pela revolução. Para isso, as organizações que se reclamam desse combate, não devem jamais dar seu apoio, da maneira que for (de forma "crítica", por "tática", ou em nome do "mal menor"...), a um setor da burguesia: nem a burguesia "democrática" contra a burguesia "fascista": nem à esquerda contra a direita; nem à esquerda contra a direita; nem a burguesia palestina contra a burguesia israelense; etc. Tal política tem duas implicações concretas:
Esses critérios, expostos aqui muito brevemente, explicam porque a CCI considera certos anarquistas como camaradas de combate, porque deseja discutir e colaborar com eles enquanto denuncia paralelamente com virulência outras organizações anarquistas.
Por exemplo, nós colaboramos com o KRAS (secção da AIT anarcosindicalista na Rússia), publicando e saudando suas tomadas de posição internacionalistas frente à guerra, sobretudo a da Chechênia. A CCI considera esses anarquistas, apesar das divergências, como pertencente de verdade ao campo do proletariado. Eles se demarcam claramente de todos esses anarquistas e de todos esses "comunistas" (como os partidos "comunistas" ou maoístas ou trotskistas) que defendem em teoria o internacionalismo, mas que se opõem a ele na prática, defendendo em cada guerra um campo beligerante contra o outro. Isso não nos faz esquecer que em 1914, ante a deflagração da Primeira Guerra Mundial, e em 1917, ante a Revolução Russa, a maior parte de "marxistas" da social-democracia se colocaram do lado da burguesia contra o proletariado enquanto a CNT espanhola denunciara a guerra imperialista e apoiou a revolução! Quando dos movimentos revolucionários no final dos anos 1910, os anarquistas e os marxistas que atuam sinceramente em favor da causa do proletariado se encontraram ombro a ombro no combate, apesar dos seus desacordos. Neste período, houve uma tentativa de colaboração de grande amplitude entre os revolucionários marxistas (os bolcheviques, os espartaquistas alemães, os tribunistas holandeses, os abstencionistas italianos, etc), que tinham rompido com uma Segunda Internacional em degeneração, e numerosos grupos que se reivindicavam do anarquismo internacionalista. Um exemplo desse processo é o fato de uma organização como a CNT estudou a possibilidade, finalmente rechaçada, de integrar-se na Terceira Internacional [8].
Para mostrar um exemplo mais recente, por todo o mundo e diante dos acontecimentos atuais, existem grupos anarquistas e secções da AIT que não somente mantém uma posição internacionalista como também lutam pela autonomia do proletariado diante de todas as ideologias e todas correntes da burguesia;
Em outras palavras, são partidários dos princípios formulados pela Primeira Internacional: "A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores". Aqueles agem desse jeito para o combate pela revolução e por uma comunidade humana mundial.
A CCI pertence ao mesmo campo que os anarquistas internacionalistas que defendem realmente a autonomia operária. Sim, nós os consideramos como camaradas com os quais desejamos debater e colaborar! Sim, nós também pensamos que esses militantes anarquistas tem mais em comum com a Esquerda Comunista que com os que, sob o mesmo rótulo anarquista, defendem na realidade posições nacionalistas ou "reformistas" e que são de fato, defensores do capitalismo, reacionários.
Pouco a pouco está se desenvolvendo entre todos os elementos e grupos revolucionários e internacionalistas do planeta debates vivos e animados. Haverá erros, mal entendidos e verdadeiros desacordos. Porém as necessidades da luta do proletariado contra um capitalismo cada vez mais desumano e bárbaro, a perspectiva indispensável da revolução proletária mundial, condição para garantir a sobrevivência da humanidade e do planeta, exigem este esforço. Trata-se aqui de um dever. E atualmente quando emergem novamente minorias revolucionárias em numerosos países, que se reivindicam do marxismo ou do anarquismo (ou que estejam abertas aos dois), o dever de debater e colaborar deve encontrar uma adesão determinada e entusiasta.
Tradução de Révolution Internationale (publicação da CCI na França).
[1] GSL: Grupo Socialista Libertário (https://webgsl.wordpress.com/; [1] PAM: Proyecto Anarquista Metropolitano (https://proyectoanarquistametropolitano.blogspot.com [2]).
[2] Um ambiente caloroso reinou ao longo dessa reunião. Ler artigo intitulado "Reunião CNT-AIT de Toulouse de 15 de abril de 2010: para a constituição de um crisol de reflexão no meio internacionalista" [https://fr.internationalism.org/node/4256] [3].
[3] Os anarquistas e a guerra (I) (RI nº 402): [https://es.internationalism.org/ap2000s/2009/208_anarguerra] [4]. A participaçao dos anarquistas na Segunda Guerra Mundial (II) (RI nº 403): [https://es.internationalism.org/ap2000s/2009/209%3Aanar2] [5]. Da Segunda Guerra Mundial até hoje (III) (RI nº 404): [https://es.internationalism.org/ap/2009/210_anartres] [6]. O Internacionalismo, uma questão crucial (IV) (RI nº 405): [https://es.internationalism.org/ap/2009/210_anartres] [6].
[4] Em particular, os camaradas ficaram em um primeiro momento contrariados pela realização de um panfleto em comum GSL-PAM-CCI. Tratamos de explicar nossa atitude em um artigo em espanhol intitulado "¿Cuál es nuestra actitud frente a los camaradas que se reclaman del anarquismo?" [https://es.internationalism.org/node/2715 [7]].
[5] Alguns camaradas anarquistas tem salientado com toda razão os erros, as formulações imprecisas e também os erros históricos. Voltaremos sobre isso posteriormente. Temos, no entanto, que retificar de imediato dois erros mais grosseiros:
[6] "Vignoles" é o nome da rua onde se situa seu local principal.
[7] É necessário mencionar também os elementos ou grupos que apesar disso conseguiram romper com organizações que se passaram para o campo da burguesia, por exemplo, a tendência de Munis ou a que deu origem a "Socialismo ou Barbárie" no seio da "IV Internacional" trotskista. [https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/As-rupturas_em_reacao_a_d... [9]
[8] Ler Historia del movimiento obrero: la CNT frente a la guerra y a la revolución (1914-1919), segundo artigo de uma série sobre a história da CNT, na Revista Internacional nº 129: [https://es.internationalism.org/rint129cnt] [10].
Na primeira parte dessa série de artigos, tentamos evidenciar quais pontos de acordo fundamentais aproximam os anarquistas internacionalistas e a Esquerda Comunista. Para a CCI, sem negar que existam divergências importantes, o aspecto crucial é que defendemos com determinação a autonomia da classe operária rechaçando "dar apoio ou suporte de qualquer espécie (que seja "crítico", "tático",ou em nome de qualquer "mal menor") a qualquer setor da burguesia: nem à burguesia "democrática" contra a "fascista"; nem à esquerda contra a direita; nem à burguesia palestina contra a burguesia israelense etc.". Trata-se, pois, concretamente de:
Todos os que defendem teórica e praticamente essas posições essenciais devem ser conscientes de que pertencem ao mesmo campo: o da classe operária, o da revolução.
No seio desse campo há, necessariamente, diferenças de opinião e de posição entre os indivíduos, grupos, tendências. É através do debate em escala internacional, aberto, fraternal, mas também sem falsas concessões, que os revolucionários conseguirão participar da melhor maneira, no desenvolvimento geral da consciência proletária. Para conseguirem terão de compreender a origem das dificuldades que ainda hoje entorpecem este debate.
Essas dificuldades são fruto da história. A onda revolucionária que, a partir de 1917 na Rússia e 1918 na Alemanha, acabou com a Primeira Guerra Mundial foi vencida pela burguesia. A partir de então, uma terrível contrarrevolução se abateu sobre a classe operária de todos os países e da qual as expressões mais monstruosas foram o stalinismo e o nazismo; implantados justamente nos países onde o proletariado tinha sido a vanguarda da revolução.
A instauração, através de um partido que se reivindicava do "marxismo", de uma aterradora ditadura militar no país da Revolução de Outubro de 1917 tem sido considerada pelos anarquistas como uma confirmação das críticas que eles haviam mantido durante muito tempo contra as concepções marxistas. A crítica a essas concepções era seu "autoritarismo", seu "centralismo", o fato de que não chamem a abolição imediata do Estado desde o dia seguinte da revolução, o fato de não ter como princípio fundamental a liberdade. Ao findar-se o século XIX, o triunfo do reformismo e do "cretinismo parlamentar" nos partidos socialistas foi considerado pelos anarquistas como a confirmação da validade do seu rechaço a qualquer participação nas eleições. [1] É um pouco o que se produziu depois do triunfo do stalinismo: para o movimento anarquista este regime não era nada mais que a conseqüência lógica do "autoritarismo congênito" do marxismo. Em particular, existiria uma "continuidade" entre a política de Lênin e a de Stálin, considerando que a polícia e o terror político se desenvolveram quando o primeiro ainda estava vivo e até pouco depois da revolução.
Evidentemente, um dos argumentos empregados para exemplificar esta "continuidade" é o fato de que desde a primavera de 1918 alguns grupos anarquistas da Rússia foram reprimidos e sua imprensa amordaçada. Entretanto, há um argumento que consideram "decisivo": o massacre sangrento da insurreição de Kronstadt, em março de 1921, pelos bolcheviques, com Lênin e Trotsky encabeçando. O episódio de Kronstadt é sem dúvida muito significativo já que os marinheiros e operários dessa base naval constituíam, em outubro de 1917, uma das vanguardas da insurreição que derrubou o governo burguês e facilitou a tomada do poder pelos sovietes (Conselhos de operários e soldados). E é justamente este setor, dos mais avançados da revolução, quem se rebelou em 1921 com a consigna: "o poder para os Sovietes, sem os partidos"
No seio da Esquerda Comunista há um total acordo, entre suas diferentes tendências, em torno dos pontos que são evidentemente essenciais:
Sobre esses pontos decisivos a Esquerda comunista está de acordo com os anarquistas internacionalistas, porém se opõe totalmente ao trotskismo que considera o Estado stalinista como um "Estado operário degenerado" e os partidos "comunistas" como "partidos operários" e que na sua grande maioria alistou seus seguidores na Segunda Guerra Mundial (concretamente nas fileiras da Resistência).
Há, no entanto, no próprio seio da Esquerda Comunista, notáveis diferenças na compreensão do processo que levou a revolução de Outubro de 1917 a desembocar no stalinismo.
Por exemplo, a corrente da Esquerda Holandesa (os "comunistas de conselhos" ou "conselhistas") considera que a Revolução de Outubro foi uma revolução burguesa cuja função era substituir o regime czarista feudal por um Estado burguês, melhor adaptado para desenvolver uma economia capitalista moderna. Consideram o Partido bolchevique, que estava à cabeça dessa revolução, como um partido burguês de tipo particular encarregado de dirigir a instauração de um capitalismo de Estado, embora seus militantes e dirigentes não fossem verdadeiramente conscientes disso. Para os "conselhistas" há realmente uma continuidade entre Lênin e Stálin, sendo este último, de alguma maneira o "executor testamentário" do primeiro. Neste sentido, podemos dizer que existe certa convergência entre os anarquistas e os conselhistas, mas não é por isso que esses últimos têm rechaçado sua referência com respeito ao marxismo.
A outra grande tendência da Esquerda Comunista, a vinculada à Esquerda Comunista italiana, considera que a Revolução de Outubro e o Partido bolchevique eram de natureza proletária. [2] O marco no qual esta tendência insere sua compreensão do triunfo do stalinismo é o do isolamento na Rússia da Revolução de Outubro; por causa, fundamentalmente, da derrota das lutas revolucionárias em outros países, em primeiro lugar na Alemanha. Pouco antes da Revolução de Outubro, o conjunto do movimento operário, e os anarquistas não eram uma exceção, considerava que se a revolução não se estendesse em escala mundial seria derrotada. O fato histórico fundamental que exemplifica o trágico destino da Revolução russa foi que esta derrota não veio do "exterior" (os exércitos brancos apoiados pela burguesia mundial foram derrotados), mas do "interior", através da perda do poder pela classe operária, especialmente do controle sobre o Estado surgido no dia seguinte da revolução; e também através da degeneração e da traição do partido que, após ter liderado a revolução, acabou integrado nesse Estado.
Neste marco, os diferentes grupos que se consideram da Esquerda Italiana não compartilham as mesmas análises sobre a política dos bolcheviques nos primeiros anos da revolução. Para os "bordiguistas", o monopólio do poder por um partido político, a instauração de certo monolitismo neste partido, o emprego do terror, inclusive a repressão sangrenta da sublevação de Kronstadt, não são criticáveis; muito pelo contrário, ainda hoje assumem plenamente isso. Por isso, durante muito tempo, na medida em que a corrente da Esquerda Italiana era conhecida em escala internacional essencialmente através do "bordiguismo", esse tem atuado como repelente, entre os anarquistas, como repelente das posições e princípios da Esquerda Comunista.
Todavia, a corrente da Esquerda Italiana não se reduz ao "bordiguismo". A Fração de Esquerda do Partido Comunista da Itália (mais tarde Fração Italiana da Esquerda Comunista) iniciou nos anos 1930 todo um trabalho de balanço da experiência russa (Bilan - que significa balanço em francês - era então o nome da sua revista nesta língua). Entre 1945 e 1952 a Esquerda Comunista da França (que publicava Internationalism) prossegue este trabalho e a corrente que se constituiu em 1975, a CCI, recolheu esta tocha desde 1964 na Venezuela e em 1968 na França.
Esta corrente (e, em parte, também a que se relaciona com o Partito Comunista Internazionalista na Itália) considera necessária a crítica de alguns aspectos da política dos bolcheviques após a revolução. Em particular, a de muitos aspectos que denunciam os anarquistas: a tomada do poder por um partido, o terror e, especialmente, a repressão de Kronstadt são considerados por nossa organização (em continuidade com Bilan e a GCF) como erros, falhas cometidas pelos bolcheviques que podem ser criticados perfeitamente no marco do marxismo e mesmo das concepções de Lênin; especialmente as que são expressas na sua obra O Estado e a revolução, redigida em 1917. Esses erros podem ser explicados por numerosas razões que não podemos desenvolver aqui, porém que fazem parte do debate geral entre a Esquerda Comunista e os anarquistas internacionalistas. Diremos simplesmente que a razão essencial é o fato de que a revolução Russa constituiu a primeira (e única até hoje) experiência histórica de uma revolução proletária momentaneamente vitoriosa. Cabe aos revolucionários tirar os ensinamentos dessa experiência; como fez, desde os anos 1930, Bilan para quem "o conhecimento profundo das causas da derrota" era uma exigência primordial: "E este conhecimento não pode tolerar nenhuma proibição nem nenhum ostracismo. Fazer o balanço dos fatos do pós-guerra é, portanto, estabelecer as condições para a vitória do proletariado em todos os países" (Bilan nº1, Novembro de 1933, tradução nossa).
Os períodos de contrarrevolução realmente não favorecem a unidade, nem a cooperação entre forças revolucionárias. A confusão extrema e a dispersão que afetam o conjunto da classe operária repercutem também nas fileiras dos seus elementos mais conscientes. Da mesma maneira que não foi fácil o debate no seio dos grupos que haviam rompido com o stalinismo e que apesar disso reivindicavam a Revolução de Outubro, nem durante os anos 20 nem ao longo dos anos 30; também foi particularmente difícil o debate entre anarquistas e Esquerda Comunista ao longo de todo período da contrarrevolução.
Como vimos acima, devido ao fato de que o destino da revolução parecia levar água ao moinho de suas críticas ao marxismo, a atitude no seio do movimento anarquista foi a de rechaçar qualquer discussão com os marxistas, "ferozmente autoritários", da Esquerda Comunista; E isto crescia à medida que a popularidade desse movimento, nos anos 1930, era muito superior à dos pequenos grupos da Esquerda Comunista, graças, fundamentalmente, ao papel de primeiro plano que chegaram a desempenhar os anarquistas em um país, Espanha, onde teve lugar um dos acontecimentos históricos mais decisivos deste período.
Reciprocamente, ao fato de que, de maneira quase unânime, o movimento anarquista considerava que os acontecimentos da Espanha constituíam uma espécie de confirmação da validade das suas concepções e que a Esquerda Comunista os vira sobretudo como a prova de seu fracasso, constituiu durante muito tempo um obstáculo para a colaboração desta com os anarquistas. Há, não obstante, que assinalar que Bilan se negou a incluir todos anarquistas no mesmo saco e publicou, após seu assassinato pelo stalinismo em maio de 1937, uma homenagem ao anarquista italiano Camilo Berneri, que havia realizado uma crítica sem concessões da política levada a cabo pela direção da CNT espanhola.
Mais significativo ainda é o fato de que se celebrara em 1947 uma conferência que reuniu a Esquerda Comunista Italiana (Grupo de Turim), a Esquerda Comunista da França, a Esquerda Comunista Holandesa e certo número de anarquistas internacionalistas. Um dos quais copresidiu esta Conferência. Isto mostra que, inclusive durante a contrarrevolução, certo número de militantes da Esquerda Comunista e do anarquismo internacionalista era animado por um verdadeiro espírito de abertura, uma vontade de debater e uma capacidade para reconhecer os critérios fundamentais que unem os revolucionários mais além das suas divergências.
Esses camaradas de 1947 nos dão uma lição e uma esperança para o futuro [3].
É evidente que as atrocidades cometidas pelo stalinismo, usurpando o nome do marxismo e do comunismo, ainda pesam hoje. Atuam como uma barreira emocional que obstaculiza, sempre e poderosamente, o debate sincero e a colaboração leal.
"A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebrodos vivos" (Karl Marx - O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann - Ed. Paz e Terra, 4ªed., pg17;) Este muro que nos impede atuar não pode ser demolido de um dia para o outro, porém começa a se fissurar. Devemos cultivar o debate que nasce pouco a pouco diante de nossos olhos, animados por um espírito fraternal, tendo sempre na mente que todos tentamos sinceramente trabalhar para o advento do comunismo, de uma sociedade sem classes.
CCI (agosto 2010)
[1] Para Lênin,"Na Europa ocidental o sindicalismo revolucionário apareceu em numerosos países como o resultado direto e inevitável do oportunismo, do reformismo, do cretinismo parlamentar." (prólogo à brochura de Bóinov (A.V. Lunacharski); "Sobre a atitude do partido diante dos sindicatos" (1907). Obras completas Tomo XIII, página 156. Akal Editor) (Tradução nossa). O anarquismo, que existia antes do sindicalismo revolucionário, mas que lhe é próximo, tem se beneficiado também desta evolução dos partidos socialistas.
[2] É necessário ressaltar que na Rússia existiam muitos vários grupos, desgarrados do partido bolchevique, que compartilhavam suas análises. Ver sobre esse isso nosso folheto A Esquerda Comunista na Rússia (disponível em inglês e logo em francês).
[3]Com efeito, o debate, a cooperação e o respeito recíproco entre anarquistas internacionalistas e comunistas não era naquele tempo nenhuma novidade.
Além de outros exemplos, pode-se citar o que escrevia a anarquista americana Emma Goldman na sua autobiografia (publicada em 1931, dez anos depois de Kronstadt): "... o bolchevismo era uma concepção social sustentada pelo espírito brilhante de homens animados pelo ardor e a coragem dos mártires. (...) era da maior urgência que os anarquistas e outros autênticos revolucionários se implicassem resolutamente na defesa desses homens difamados e da sua causa, nos acontecimentos que se precipitaram na Rússia." (Living my life).
Outro anarquista muito conhecido Victor Serge, em um artigo redigido em agosto de 1920 "Os anarquistas e a experiência da Revolução russa" tem uma opinião muito semelhante embora ao continuar considerando-se anarquista e criticando alguns aspectos da política do Partido Bolchevique, continuou dando seu apoio a este partido.
Por outro lado, os bolcheviques convidaram uma delegação da CNT espanhola anarco-sindicalista ao Segundo Congresso da Internacional Comunista. Juntos mantiveram com debates realmente fraternais e a convidaram para ingressar na Internacional.
Esta série de artigos se deu como objetivo demonstrar que os membros da Esquerda Comunista e os anarquistas internacionalistas têm o dever não só de discutir, também de colaborar. A razão é simples: apesar das nossas divergências - às vezes, importantes - compartilhamos posições revolucionárias essenciais: o internacionalismo, o rechaço de qualquer colaboração ou compromisso com forças políticas burguesas, a defesa de que "os operários se apoderem das suas lutas" [1].
Apesar dessa evidência, durante muito tempo, as relações entre estas duas correntes revolucionárias têm sido quase nulas. Justo agora e após muitos anos começamos a esboçar um debate e uma colaboração. Sem dúvida, isto é resultado da dolorosa história do movimento operário. A atitude da maioria do Partido bolchevique durante os anos 1918-1924 (proibição sem distinções de toda imprensa anarquista, enfrentamento com o Exército de Makhno; massacre dos marinheiros insurgentes de Kronstadt...) abriu um abismo entre os revolucionários marxistas e os anarquistas. Mas acima de tudo, o stalinismo, que massacrou milhares de anarquistas [2] em nome do "comunismo", causou um autêntico traumatismo que durou décadas [3].
Ainda hoje persistem, de uma parte e de outra, certos medos para debater e colaborar. Para superar estas dificuldades, é necessário estar totalmente convencidos, apesar das divergências, de pertencer ao mesmo campo: o da revolução e o do proletariado. Mas isso não pode ser suficiente. Deveremos fazer um esforço consciente para cultivar a qualidade dos nossos debates. "Alçar do abstrato para o concreto" tendo em conta que é sempre a etapa mais arriscada. É por isso que, através deste artigo, a CCI procura precisar com qual estado de espírito aborda esta possível e necessária relação da Esquerda Comunista e o anarquismo internacionalista.
Em nossa imprensa temos afirmado numerosas vezes e de diferentes formas, a afirmação segundo a qual o anarquismo carregava com si a marca original da ideologia pequeno-burguesa. Esta crítica, efetivamente radical, é freqüentemente taxada de inaceitável pelos militantes anarquistas, inclusive pelos mais habitualmente abertos à discussão. E ainda hoje, mais uma vez, este qualificativo de "pequeno-burguês" agregado ao termo "anarquismo" é motivo suficiente para que alguns não queiram nem ouvir falar da CCI. Recentemente em nosso foro na internet, um participante que se diz anarquista tem definido essa crítica de autêntica "injúria". Não é nosso ponto de vista.
Por mais profundos que sejam os desacordos recíprocos, não devem fazer perder de vista que os militantes da Esquerda comunista e do anarquismo internacionalistas debatem entre revolucionários. Por outro lado, os anarquistas internacionalistas, por sua vez, também dirigem numerosas críticas ao marxismo, começando pelo que eles chamam inclinação natural dos marxistas pelo autoritarismo e pelo reformismo. O site da CNT-AIT na França, contém múltiplas passagens dessa índole:
"Os marxistas se converteram progressivamente (desde 1871) em adormecedores dos explorados e assinaram a ata de nascimento do reformismo operário" [4].
"O marxismo é responsável pelo desvio da classe operária para o parlamentarismo (...). Só quando tenha se compreendido isso se poderá ver que a via da libertação social nos leva ao mundo venturoso do anarquismo, passando por cima do marxismo" [5].
Não se trata de "injúrias", mas de críticas radicais... com as quais estamos evidentemente, em total desacordo. Assim sendo, também é no sentido da crítica aberta que deve ser entendida nossa análise da natureza do anarquismo . Portanto, vale a pena recuperar aqui esta análise, aportando algumas citações, curtas. Em um capítulo intitulado "O núcleo pequeno burguês do anarquismo", escrevemos em 1994: "O crescimento do anarquismo na segunda metade do século XIX foi produto da resistência das camadas pequeno burguesas (artesões, intelectuais, pequenos comerciantes, pequenos camponeses) à marcha triunfal do capital, resistência ao processo de proletarização que os privava da sua "independência" social original. Mais forte naqueles países onde o capital industrial chegou tarde, nos países da periferia no Leste e Sul da Europa, o anarquismo expressava tanto a rebelião dessas camadas contra o capitalismo, como sua incapacidade para ver, mais adiante, o futuro comunista. Pelo contrário, o anarquismo expressava assim o anseio por um passado semimítico de comunidades locais livres e produtores estritamente independentes sem o estorvo da opressão do capital industrial ou da centralização do Estado burguês. O "pai" do anarquismo, Pierre-Joseph Proudhon, era a encarnação clássica dessa atitude, com seu ódio feroz não só ao Estado e aos grandes capitalistas como ao coletivismo em todas as suas formas, incluindo os sindicatos, as greves e expressões similares de coletividade da classe operária. O ideal de Proudhon, contra todas as tendências que se desenvolviam na sociedade capitalista, era uma sociedade "mutualista" fundada na produção artesanal individual e unida pelo livre intercâmbio e o livre crédito " [6].
Também em "Anarquismo e comunismo: Carta aberta aos militantes do Comunismo de Conselhos (Esquerda comunista libertária)", redigido em 2002, dizíamos: "Na gênese do anarquismo o que se expressa é o ponto de vista do operário recém proletarizado e que rechaça com todas as suas forças a proletarização. Esses operários, recém saídos do campesinato e do artesanato, geralmente metade operários metade artesãos (no caso dos relojoeiros do Jura Suíça) expressavam a nostalgia do passado diante do drama que para eles era ter caído na condição operária. Sua aspiração social era que fosse dada marcha a ré à roda da história No miolo dessa concepção está a nostalgia da pequena propriedade. Por isso é que, seguindo Marx, nós analisamos o anarquismo como a expressão da penetração da ideologia pequeno burguesa no proletariado." [7]
Dito em outras palavras, reconhecemos que, desde seu nascimento, o anarquismo se caracteriza por um profundo sentimento de revolta contra a barbárie da exploração capitalista, porém, também, que herda a visão dos "artesões, comerciantes, granjeiros,..." que fora sua origem. Isto não significa absolutamente que, hoje, todos os grupos anarquistas sejam "pequenos burgueses". É evidente que a CNT-AIT, o KRAS [8] estão animados pela chama revolucionária da classe operária. Indo mais longe ainda, ao largo dos séculos XIX e XX numerosos operários abraçaram a causa anarquista e lutaram autenticamente pela abolição do capitalismo e a chegada do comunismo, desde Louise Michel a Durruti, passando por outros como Volin ou Malatesta. Inclusive, durante a onda revolucionária de 1917, grande número de anarquistas formaram, nas fileiras operárias, batalhões dos mais combativos.
Sempre houve no movimento anarquista uma batalha contra a tendência originária de se deixar influenciar pela ideologia da pequena burguesia radicalizada. Por isso, em parte, é que há profundas divergências entre anarquistas individualistas, mutualistas, reformistas, comunistas nacionalistas e comunistas internacionalistas (só os últimos pertencem realmente ao campo revolucionário). Porém inclusive os anarquistas internacionalistas sofrem a influência das raízes históricas do seu movimento. Esta é a causa da sua tendência a substituir a "luta da classe operária" pela "resistência popular autônoma", por exemplo.
Para a CCI é uma responsabilidade expor honestamente à luz do dia todos esses desacordos para contribuir da melhor maneira ao fortalecimento geral do campo revolucionário. De igual maneira, que deve ser uma responsabilidade dos anarquistas internacionalistas expressarem suas críticas ao marxismo. Isso não tem porque ser um obstáculo para desenvolver nossos debates de maneira fraternal nem tem porque ser um freio a futuras colaborações, muito pelo contrário [9].
Todas suas críticas aos anarquistas internacionalistas, a CCI não as dirige do modo que um professor corrige os erros de seu aluno. Entretanto, intervenções em nosso fórum têm se queixado do tom "professoral" da nossa organização. Deixando de lado o gosto por um ou outro estilo literário, entendemos que o que se oculta por trás desses comentários é uma questão teórica. Será que o papel da CCI com respeito a CNT-AIT e em geral o papel da Esquerda comunista com relação ao anarquismo internacionalista é o de "guia" ou de "modelo" ? Será que pensamos ser uma minoria iluminada cuja tarefa é de incutir a verdade, a boa consciência?
Tal concepção estaria em total contradição com a própria tradição da Esquerda comunista. É ligada mais profundamente ao que une os revolucionários comunistas com a sua classe.
Marx nos afirma em uma carta a Ruge: "não vamos ao encontro do mundo de modo doutrinário com um novo princípio: "aqui está a verdade, todos de joelho!" Desenvolvemos novos princípios para o mundo a partir dos princípios para o mundo a partir dos princípios do mundo. Não dizemos a ele: "Deixa de lado esssas tuas batalhas, pois é tudo bobagem; nós é que proferiremos o verdadeiro mote para a luta". Nós apenas lhes mostramos o porquê de ele estar lutando e a consciência é algo de que ele terá de apropriar-se, mesmo que não queira." [10]
Os revolucionários, marxistas ou anarquistas internacionalistas, não se colocam acima da classe operária, mas sãoparte integrante dela, à qual estão unidos por milhares de laços. Sua organização é o produto coletivo do proletariado.
A CCI jamais se considerou uma organização com vocação de impor seu ponto de vista à classe operária ou a outros grupos revolucionários. Assumimos plenamente os seguintes parágrafos do Manifesto comunista de 1848: "Os comunistas não são nenhum partido particular face aos outros partidos operários. Não têm nenhuns interesses separados dos interesses do proletariado todo. Não estabelecem nenhuns princípios particulares segundo os quais queiram moldar o movimento proletário." [11]. Este mesmo princípio é o que Bilan, órgão da Esquerda comunista italiana, manteve vivo em toda sua obra desde o aparecimento do seu primeiro número em 1933: "efetivamente nossa fração se considera parte de um longo passado político, de uma tradição enraizada no movimento italiano e internacional, de um conjunto de posições políticas fundamentais. Porém não faz prevalecer seus predecessores políticos para pedir a adesão às soluções políticas que preconiza para a situação atual. Pelo contrário, convida os revolucionários a submeter à verificação dos acontecimentos as posições que defende atualmente assim como as posições políticas contidas nos seus documentos básicos".
Desde seu nascimento, nossa organização tenta cultivar este mesmo estado de espírito quanto à abertura e essa mesma vontade de debater. Assim já em 1977, escrevemos:
"Nas nossas relações com [os outros grupos revolucionários] próximos a CCI, mas exteriores, nossa intervenção é clara; tentamos estabelecer com eles uma discussão fraternal e aprofundada sobre as diferentes questões com às quais se defronta a classe operária."
"Não poderemos assumir realmente nossa função (...) com respeito a eles se não formos ao mesmo tempo capazes:
Para nós, trata-se de uma norma de conduta. Estamos convencidos da validade das nossas posições (embora abertos a uma crítica fundamentada), porém não as consideramos como "a solução para os problemas do mundo". Para nós, se trata de um aporte ao debate coletivo da classe operária. Por isso é que concedemos uma importância muito particular à cultura do debate. Em 2007, a CCI dedicou todo um texto de orientação somente a esse tema: "A cultura do debate: uma arma da luta da classe": "Se as organizações revolucionárias querem cumprir seu papel fundamental de desenvolvimento e de extensão da consciência de classe, a cultura da discussão coletiva, internacional, fraterna e pública é absolutamente essencial" [13]
Portanto, o leitor atento terá percebido que todas as citações contêm também a idéia da necessidade de debater, a afirmação de que a CCI deve defender firmemente suas posições políticas. Não se trata de uma contradição. Querer discutir abertamente não significa acreditar que todas as idéias são iguais, que todas as posições têm validade. Como assinalávamos em nosso texto de 1977: "Longe de se excluírem, firmeza nos princípios e abertura na atitude caminham de mãos dadas: não temos medo de discutir, precisamente porque estamos convencidos da validade das nossas propostas."
Tanto no passado como no futuro, o movimento operário teve e terá necessidade de debates francos, abertos e fraternais entre suas diferentes tendências revolucionárias. Esta multiplicidade de pontos de vista e de abordagens será uma riqueza e um aporte indispensável para a luta do proletariado e para o desenvolvimento da sua consciência. Nós reiteramos, porém no interior do território comum dos revolucionários pode haver divergências profundas. Essas devem ser expressas e debatidas na sua totalidade. Não pedimos aos anarquistas internacionalistas que renunciem seus próprios critérios nem ao que consideram ser seu patrimônio teórico; pelo contrário, lhes exortamos vivamente que o exponham com clareza, em resposta às questões que nós colocamos, e que aceitem a crítica e a polêmica, da mesma maneira que nós não consideramos nossas posições como "a última palavra", mas como uma contribuição aberta a argumentos contraditórios. Não dizemos a esses camaradas: "ajoelhe-se diante da superioridade proclamada do marxismo".
Respeitamos profundamente a natureza revolucionária dos anarquistas internacionalistas, sabemos que combateremos ombro a ombro quando os movimentos de lutas massivas se farão presentes; porém defenderemos firmemente e com convicção (desejamos por sua vez ser convincentes) nossas posições sobre a revolução russa e o partido bolchevique, a centralização, o período de transição, a decadência do capitalismo, o papel antioperário do sindicalismo,... Isso não é se colocar numa relação mestre-aluno ou aguardar a que, convertidos, alguns anarquistas se somem as nossas fileiras mas participar plenamente do necessário debate entre revolucionários.
Como vêem, camaradas, este debate "corre o risco" de ser animado e apaixonante!
Concluiremos esta série de três artigos sobre a Esquerda comunista e o anarquismo internacionalista com essas palavras de Malatesta:
CCI, Setembro de 2010
[1] Leia a primeira parte desta série: "O que temos em comum": pt.internationalism.org/ICConline/2010/A_Esquerda_comunista_e_o_anarquismo_internacionalista
[2] Como milhares de marxistas e milhões de proletários em geral também;
[3] Leia a segunda parte desta série: "Sobre as nossas dificuldades para debater e os meios de superá-las [11]"
[4] cnt-ait.info/article.php3?id_article=472&var_recherche=r%E9formisme+marxisme
[5] Trata-se concretamente de uma citação de Rudolf Rocker que a CNT-AIT faz sua.
[6] Em "O comunismo não é um belo ideal, mas uma necessidade material"; Revista Internacional nº102, 2002.
[7] "Anarquismo y comunismo - Carta abierta a los militantes del comunismo de consejos (Izquierda comunista libertaria) [12]"; Ver. Revista Internacional nº102, 2002.
[8] Trata-se da secção na Rússia da AIT com quem mantemos muito boas relações de camaradagem e que temos publicado várias tomadas de posição na nossa imprensa.
[9] Dito isso, durante o debate que temos mantido nesses últimos meses, companheiros anarquistas protestaram, com justiça, contra os termos exagerados que sentenciam definitiva e injustificadamente a respeito do anarquismo. Repassando nossos antigos textos temos encontrado passagens que não escreveríamos hoje. Por exemplo:
[10] Carta de Marx a Ruge, setembro de 1843. In: Marx, K.Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.
[11] Marx e Engels. Manifesto Comunista. Fonte: https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista... [15]
[12] "Os grupos políticos proletários" na Revista Internacional nº11, out/dez 1977
[13] Consultar: Revista Internacional nº 131, 2007. -"La cultura del debate: un arma de la lucha de la clase [16]"
[14] Quando Malatesta escreve este artigo, o partido socialista italiano agrupava também, juntamente com os reformistas, os elementos revolucionários que fundaram o PCI em janeiro de 1921 no congresso de Livorno.
[1] https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Sera-que_o_trotskismo_pertence_ao_campo_do_proletariado [17]
Por outra parte, fazia-se indispensável reconsiderar a tática tradicional, que data da Comuna de Paris e da Revolução Russa, bem como determinados aspectos da estratégia, a fim de adequá-los às importantes mudanças sobrevindas desde 1917. De fato, o retrocesso termidoriano da Revolução russa iniciado em 1921 (N.E.P.= Nova Política Econômica), completou-se depois em contrarrevolução capitalista de Estado. E graças principalmente a esse fato, o capitalismo em geral conseguiu perdurar e aumentar seu potencial explorador em forma cada vez mais centralizada e prejudicial aos homens.
Esse mesmo processo acarretou uma modificação radical dos partidos antes comunistas fazendo deles, não organizações oportunistas ou lacaios operários da burguesia, mas representantes diretos de uma forma particular de capitalismo, a intrínseca à lei de concentração de capitais anexa ao automatismo da sociedade atual e deliberadamente acelerada na Rússia. Por sua vez os sindicatos, foram dominados pelo stalinismo ou independentes dele, foram se moldando sem cessar ao sistema de exploração, do qual já parecem pelo menos inseparáveis.
O proletariado mundial padecia enquanto isso de uma série de derrotas que nada veio interromper até agora. Quando falsos amigos apresentavam-nas como suas vitórias, China ou Cuba, Argélia ou Gana, isto só serve para desmoralizá-lo e pô-lo, inerte, ao gosto de seus inimigos. Essas vitórias, que são na realidade as de determinados círculos capitalistas frente a outros, representam outras tantas derrotas do proletariado; tornadas possibilitadas pelo peso material da contrarrevolução russa no mundo, sim, mas não sem que deixasse a via livre para uma vanguarda revolucionária prisioneira de suas próprias idéias envelhecidas. Mais do que nunca "a crise da humanidade é uma crise de direção revolucionária" como dizia Leon Trotsky, mas as organizações que se dizem trotskistas ficaram encalhadas, por trágico sarcasmo, nas águas lamacentas do stalinismo.
Da luta contra a degeneração da IV Internacional nasceu a maioria das idéias e proposições contidas no presente manifesto. A origem de algumas das modificações ideológicas enunciadas ascende ao período mais incandescente da revolução espanhola, 1936-1937, quando pela primeira vez fora da Rússia, o stalinismo revela toda sua natureza contrarrevolucionária, em relação à qual quaisquer Kerensky ou Noske parecem apenas daninhos. Por tal razão, entre outras, resulta indispensável conhecer a fundo as peripécias da revolução espanhola, tão falsificadas ou desnaturalizadas em livros como o de P. Broué e E. Témine. Ela fecha uma etapa combativa e ideológica do proletariado mundial e abre outra. Seus ensinamentos servirão de luz a uma futura reincidência de combatividade dos oprimidos.
Ainda não encontramos tempo para considerar a rica experiência da revolução espanhola, quando os organismos dirigentes da IV Internacional deram frente à guerra mundial provas de uma carência de internacionalismo, cujas conseqüências últimas seriam a esterilidade ideológica e a aproximação ao stalinismo. Não só a revolução espanhola, senão também os importantíssimos acontecimentos da guerra e do pós-guerra desfilaram diante deles sem maior conseqüência do que acentuar sua inaptidão.
Desde os primeiros sintomas de degeneração ideológica, o grupo espanhol da IV Internacional no México se alçou vigorosamente contra ela, ao mesmo tempo em que se lançava em um amplo trabalho de interpretação dos acontecimentos mundiais e da revolução espanhola em particular. Surdos e estultos, os organismos dirigentes impediram que informação, críticas e proposições chegassem à base de todos os partidos, excluindo deliberadamente a própria possibilidade da discussão. No primeiro congresso do pós-guerra, em 1948, a seção espanhola rompeu com a IV Internacional acusando-a de abandono do internacionalismo e de curso pró-stalinista. Pouco tempo depois, e sobre as mesmas bases, rompia também com ela Natalia Sedova Trotsky, que desde 1941 esteve ao nosso lado.
A situação do proletariado mundial foi piorando sem cessar desde o aniquilamento da revolução espanhola. Continuamente empurrado a apoiar causas reacionárias chamadas de libertadoras, ideologicamente defraudado dia-a-dia em todos os países, esse proletariado se encontra amordaçado e enquadrado por organizações escravizantes. A humanidade inteira, pelo ato único de achar-se submetida ao terror termonuclear além e aquém da cortina de ferro, vive uma situação degradante, sem dela se desvencilhar, da qual toda modificação a agravará. Assim, a sociedade capitalista, consubstancial à guerra de classes e a guerra inter-nações, atinge o grau de desenvolvimento em que sua simples continuidade destrói ao homem, a não ser que o homem dê cabo dela. Indicadora da rebelião da humanidade, só a do proletariado frente ao capital e ao trabalho assalariado é susceptível de transtornar tão grosseira condição e acender a alvorada do sonho revolucionário, fator histórico materialista entre todos primordial.
Estão, no entanto, longe de bastar para tal embate as idéias concretas da revolução russa, que o Programa de Transição acolhe. Escrito por Leon Trotsky em 1937-38, quando ainda não se perfilava bem o significado do período que a derrota da revolução espanhola abre, esse programa revela-se hoje, mais do que insuficiente, suscetível de propiciar oportunismos frente à contrarrevolução stalinista e suas vielas. Caducou do mesmo modo que, em 1917, o programa anterior de Lênin. Sem superá-lo conforme à experiência, às condições objetivas nascidas da rotação capitalista e às possibilidades subjetivas do proletariado em pleno ardor revolucionário, este não conseguirá triunfar em parte alguma e qualquer movimento insurrecional será esmagado pelos falsários.
A obviar tal carência ideológica se emprega o presente Manifesto, que inspira nossa atividade na Espanha e internacionalmente. Dirigimo-nos a todos os grupos e organizações do mundo que vêem a mesma necessidade de revolução socialista no bloco oriental e no ocidental. Convidamos-lhes a meditar as idéias aqui expostas. O renascimento de uma organização operária em escala planetária exige a ruptura com numerosos atavismos e um pensamento em permanente inventiva. Estamos dispostos, quando expomos, a discutir publicamente com qualquer grupo cuja atividade prática e teórica mostre seu apego à revolução. Mas desdenharemos aqueles nos quais o diletantismo domina, ainda que pretendam acolher totalmente ou em parte a nossas idéias. O intelecto revolucionário "não é uma paixão cerebral, mas o cérebro da paixão" (Karl Marx), e como tal reivindica algo muito diferente de aventuras livrescas ou protestos só mentais. Todo diletantismo é uma reverberação do mundo contra o qual nos batemos.
Fica por notificar que algumas partes do nosso Manifesto foram publicadas em 1949 com o título "O Proletariado frente aos dois blocos", sob a responsabilidade de um agrupamento de vida efêmera chamada União Operária Internacional. Mas tanto aquela versão sucinta como a atual são a elaboração ideológica e redação de Benjamín Péret e G. Munis como militantes de Fomento Operário Revolucionário[Fomento Obrero Revolucionario], cuja origem é a seção espanhola da IV Internacional. Em plena revolução de 1936, no México ainda sob a ameaça dos assassinos de Stálin, na Espanha outra vez desafiando a repressão franquista, Benjamín Péret não cedeu um só instante no combate ao nosso lado. É este lugar apropriado para recordar ao amigo, revolucionário, poeta cuja pluma transluz aqui e ali neste Manifesto.
G. Munis
Paris, 1965.
Em 4 de fevereiro de 1989 morreu Manuel Fernandez Grandizo, apelidado de G. Munis. Com ele, o proletariado perdeu um militante que entregou toda sua vida ao combate de sua classe.
Munis nasceu em princípios do século em Extremadura, Espanha. Ainda muito jovem, iniciou sua vida revolucionária militando no trotskismo, numa época na qual essa corrente ainda pertencia ao proletariado e estava levando a cabo uma luta sem quartel contra a degeneração stalinista dos partidos da Internacional Comunista. Foi membro da Oposição de Esquerda Espanhola (OIE) criada em Liège, Bélgica, em Fevereiro de 1930, em torno de F. García Lavid, conhecido por H. Lacroix. Militou em sua seção de Madri, tomando posição a favor da tendência Lacroix em Março de 1932 contra o centro dirigido por Andrés Nin. A discussão no seio da Oposição de Esquerda (OI) residia na necessidade de criar ou não um «segundo partido comunista» ou ainda manter a Oposição nos PCs para fazê-los voltar ao bom caminho. Esta última posição, que foi a de Trotsky durante os anos 30, ficou em minoria na IIIª Conferência da OIE, que mudou então de nome para converter-se em Esquerda Comunista Espanola (ICE). Munis, apesar de seu desacordo, continuará militando nela.
Essa orientação de criar um novo partido acabou plasmando-se na fundação, em setembro de 1934, do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), partido centrista, catalanista e sem princípios que agrupou à ICE e ao Bloco Operário e camponês (BOC) de J. Maurín. Munis se opôs então a essa dissolução dos revolucionários no POUM, fundando o Grupo Bolchevique-Leninista da Espanha.
Quando chegaram as primeiras notícias do levante de 1936 na Espanha, regressou a este país abandonando o México, onde as circunstâncias da vida o tinham levado; volta a formar o grupo B-L que tinha desaparecido e, sobretudo, participa com valentia e decisão, ao lado dos "Amigos de Durruti", na insurreição dos operários de Barcelona em Maio de 1937 contra o governo da Frente Popular. É detido em 1938, mas consegue evadir-se dos cárceres stalinistas em 1939.
O desencadeamento da IIª Guerra Mundial levou Munis a romper com o trotskismo sobre a questão de defender a um campo imperialista contra o outro, adotando uma clara posição internacionalista de derrotismo revolucionário contra a guerra imperialista. Munis denunciou a Rússia como país capitalista que era, o que acabou na ruptura de sua seção espanhola com a IVª Internacional, no primeiro congresso do pós-guerra em 1948. (Ver "Explicação e apelo aos militantes, grupos e seções da IV° Internacional", setembro de 1949).
Após essa ruptura, continuou sua evolução política para uma maior clareza revolucionária, em especial sobre a questão sindical e a questão parlamentar, sobretudo depois de ter mantido discussões com militantes da Esquerda Comunista na França.
No entanto, o Segundo Manifesto Comunista, que publicou em 1965, depois de ter passado longos anos nos cárceres franquistas, testemunha suas dificuldades para romper completamente com a orientação Trotskista, ainda que tal documento se situe claramente em um terreno de classe proletário.
Em 1967 participou na companhia de camaradas de Internacionalismo (Venezuela), de um contato com o meio revolucionário da Itália. No final dos anos 60, com o ressurgir da classe operária no palco histórico, estará mobilisado junto às fracas forças revolucionárias existentes e, entre elas, as que fundariam Revolution Internationale [1]. No início dos anos 70, Munis ficou, infelizmente, à margem do esforço de discussão e agrupamento que desembocaria em especial, na constituição da Corrente Comunista Internacional. Por outro lado, Fomento Operário Revolucionário (FOR), organização por ele fundada em torno das posições do Segundo Manifesto, participou da Primeira Conferência de Grupos da Esquerda Comunista, realizada em Milão em 1977. No entanto, esta atitude foi abandonada na Segunda Conferência, da qual FOR se retirou desde o seu início, plasmando-se assim uma atitude de isolamento sectário que até hoje prevaleceu em tal organização.
É evidente que nós tínhamos divergências muito importantes com FOR, as quais levaram-nos polemizar em numerosas ocasiões na nossa imprensa com esta organização (ver, por exemplo, a Revista Internacional nº 52 - em espanhol). No entanto, apesar dos erros que Munis pudesse ter cometido, até o final foi um militante dos mais fiéis ao combate da classe operária. Foi dos raríssimos militantes que resistiram à terrível pressão da contrarrevolução mais sinistra que o proletariado pôde viver em toda sua história, isso quando muitos desertaram do combate militante e até traíram, para estar presente nas fileiras da classe operária desde a recuperação de seus combates de classe no final dos anos 60.
Ao militante do combate revolucionário, à sua fidelidade ao campo proletário, a seu indefectível envolvimento queremos hoje prestar homenagem.
Aos seus camaradas do FOR dirigimos nossa saudação mais fraterna.
Corrente Comunista Internacional
[1] Revolution internationale participou do agrupamento a base da fundação da Corrente Comunista Internacional
Para: o Comitê Político do Socialist Workers Party
Camaradas:
Vocês sabem muito bem que não tenho estado de acordo politicamente com vocês durante os últimos cinco ou seis anos, desde o final da guerra e até mesmo antes. As posições tomadas por vocês sobre os importantes acontecimentos dos últimos tempos, demonstram que, em vez de corrigirem seus erros anteriores, vocês persistem neles e os aprofundam Na rota que vocês assumiram, chegaram a um ponto em que já não me é possível permanecer silenciosa ou me limitar a protestos privados. Devo expressar agora minhas opiniões publicamente.
Sinto-me obrigada a dar um passo grave e difícil para mim, e só posso lamentá-lo sinceramente. Mas não há outra via. Após muitas reflexões e hesitações sobre um problema que me afligiu profundamente, acredito que não há outra maneira senão dizer-lhes abertamente que nossos desacordos não me permitem permanecer mais tempo em suas fileiras.
As razões para esta minha atitude final são conhecidas pela maioria entre vocês. Eu as repito aqui brevemente somente para aqueles que não estão familiarizados com as mesmas, mencionando apenas nossas diferenças fundamentais e não as diferenças sobre questões de política cotidiana que estão relacionadas a elas ou que delas decorrem.
Obcecados por fórmulas velhas e ultrapassadas, vocês continuam considerando o estado stalinista como um Estado operário.
Eu não posso e não seguirei vocês nesse ponto. Depois do começo da luta contra a burocracia stalinista usurpadora, L.D. Trotsky repetia praticamente a cada ano que o regime estava se deslocando para a direita, sob as condições de retardo da revolução mundial e da conquista de todas as posições políticas na Rússia pela burocracia. Repetidas vezes ele sublinhou que a consolidação do stalinismo na Rússia conduzia a uma deterioração das posições econômicas, políticas e sociais da classe operária, e ao triunfo de uma aristocracia tirânica e privilegiada. Se esta tendência continuar, disse ele, a revolução chegará a um fim e o capitalismo será restaurado. Infelizmente, isso é o que aconteceu, ainda que em formas novas e inesperadas. Dificilmente há um país no mundo onde as ideias e defensores autênticos do socialismo sejam perseguidos de maneira tão bárbara. Deveria estar claro para qualquer um que a revolução foi completamente destruída pelo stalinismo, não obstante vocês ainda continuarem a dizer que sob este regime inominável, a Rússia é ainda um Estado operário. Considero isto como um golpe desfechado ao socialismo. O stalinismo e o Estado stanilista não têm absolutamente nada em comum com um Estado operário e com o socialismo. Eles são os mais perigosos inimigos do socialismo e do proletariado.
Vocês consideram agora que os Estados da Europa Oriental, sobre os quais o stalinismo estabeleceu sua dominação durante e após a guerra, são igualmente Estados operários. Isto é equivalente a dizer que o stalinismo preencheu um papel socialista revolucionário. Eu não posso e não quero segui-los neste ponto. Após a guerra e antes mesmo que terminasse, houve um movimento revolucionário ascendente das massas nestes países. Mas não foram as massas que tomaram o poder e, não foram estabelecidos Estados operários pelas suas lutas. É a contra-revolução stalinista que se apossou do poder, reduzindo esses países ao estado de vassalos do Kremlin, estrangulando as massas trabalhadoras, as suas lutas e aspirações revolucionárias. Ao considerar que a burocracia stalinista estabeleceu Estados operários nesses países, vocês lhe atribuem um papel progressista e até mesmo revolucionário. Ao propagarem esta inverdade monstruosa vocês negam à IV Internacional qualquer razão fundamental de existência como partido mundial da revolução socialista. No passado, nós sempre consideramos o stalinismo como uma força contra-revolucionária em todos os sentidos do termo, vocês já não o fazem, mas eu continuo a fazê-lo.
Em 1932 e 1933, para justificar a capitulação desavergonhada diante do hitlerismo, os stalinistas declararam que pouco importava se os fascistas chegassem ao poder, porque o socialismo viria depois e através do domínio do fascismo. Só brutos desprovidos de humanidade sem uma gota de pensamento ou espírito socialistas poderiam se expressar assim. Hoje, independentemente dos objetivos revolucionários que animam vocês, pretendem que a reação stalinista despótica que triunfou na Europa Oriental é uma das vias pelas quais o socialismo eventualmente virá. Este ponto de vista marca uma ruptura irremediável com as convicções mais profundas que nosso movimento sempre defendeu e que continuo a partilhar.
É impossível segui-los na questão do regime de Tito na Iugoslávia. Toda a simpatia e todo o apoio dos revolucionários, e até de todos os democratas, deveriam ser levados ao povo iugoslavo na sua resistência determinada aos esforços de Moscou para reduzir-lhes e reduzir seu país à servidão, é necessário aproveitar cada concessão que o regime iugoslavo é agora obrigado a fazer ao seu povo. Mas toda a sua imprensa agora está consagrada a uma indesculpável idealização da burocracia titoísta, para a qual não há nenhuma base nas tradições e princípios de nosso movimento. Essa burocracia não é mais que uma réplica, sob uma nova forma, da velha burocracia stalinista. Ela foi educada nas ideias, na política e na moral da GPU. Seu regime não difere em nada de fundamental do regime de Stalin. É absurdo crer ou ensinar que a direção revolucionária do povo iugoslavo desenvolver-se-á desta burocracia ou por outras vias que não a de uma luta contra ela.
O que é mais insuportável que tudo é a posição sobre a guerra com a qual vocês se comprometeram A terceira guerra mundial que ameaça a humanidade põe o movimento revolucionário diante dos problemas mais difíceis, as situações mais complexas, as decisões mais graves. Nossa posição pode ser tomada apenas após discussões feitas da maneira mais séria e mais livre. Mas face aos acontecimentos dos anos recentes, vocês continuam a preconizar a defesa do Estado stalinista e engajando todo o movimento operário nela. Vocês apóiam inclusive agora os exércitos do stalinismo na guerra à qual está submetido o crucificado povo coreano. Eu não posso e nem quero segui-los neste ponto. Em 1927 que Trotsky, em uma resposta a uma questão desleal dirigida a ele no Burô Político, expôs suas posições como segue: Pela pátria socialista, sim! Pelo regime stalinista, não! Isso foi em 1927! Hoje, vinte e três anos depois, Stalin nada deixou da pátria socialista. Ela foi substituída pela escravização e pela degradação do povo pela autocracia stalinista. Este é o estado que vocês propõem defender na guerra, que vocês já estão defendendo na Coréia. Sei muito bem que vocês dizem seguidamente criticar o stalinismo e que o estão combatendo. Mas o fato é que a sua crítica e sua luta perderam o seu valor e não podem dar resultados, porque são determinadas pela posição de defesa do estado stalinista e subordinadas a ela. Quem quer que defenda esse regime de opressão bárbara abandona, independente dos seus motivos, os princípios do socialismo e do internacionalismo.
Na mensagem que me foi enviada pelo último congresso do SWP, está escrito que as ideias de Trotsky continuam a guiá-los. Devo dizer-lhes que li estas palavras com muita amargura. Como puderam constatar pelo que acabo de escrever, não vejo as ideias dele nas suas políticas. Eu tenho confiança nessas ideias. Permaneço convencida de que a única saída para a situação atual é a revolução social, a autoemancipação do proletariado mundial.
Natalia Sedova Trotsky
México D.F., 9 de maio de 1951
FONTE: REVOLUTAS
SITE: https://www.revolutas.net [18]
PUBLICAÇÃO: 08/03/2005
Quando do aniversario da morte de Che Guevara, em 2007 recebemos no contato de Internet da nossa seção na França (Révolution Internationale) duas mensagens sobre Che Guevara de um companheiro que assina E.K. Publicamos aqui pela primeira vez em português esta correspondência entre E.K e a CCI. Para nós, CCI, não se trata de nos colocar na roda dessas celebrações que aconteceram no mundo inteiro em homenagem a memória de Che Guevara, senão, ao contrário, tentar deixar claro se foi realmente um revolucionário e se a classe operária e as gerações jovens devem ou não reivindicar-se de sua ação e exemplo.
Para o companheiro EK, Che Guevara foi um autêntico combatente pela causa dos povos oprimidos. Para ele, com efeito, "o internacionalismo do Che é indubitável. É o modelo de combatente internacional e da solidariedade entre os povos". E teria sido um dos poucos revolucionários em atrever-se a criticar o regime da URSS: "Durante o seminário de solidariedade afro-asiática, o Che critica sem rodeios as posições conservadoras e exploradoras da URSS". E EK expõe nessa primeira carta sua visão do proletariado e do papel dos revolucionários: "Quanto ao agente histórico da transformação social, parece-me que não há razões para reduzir o conceito de proletariado unicamente aos operários, negação absoluta da condição humana. (...) A tarefa dos intelectuais é introduzir no proletariado a consciência de sua situação com meios eminentemente políticos".
Depois de nossa resposta, o companheiro E.K nos mandou muito rapidamente uma segunda mensagem no que, de entrada, se desmarca de quem transforma Che em ícone, fazendo camisetas e pôsteres com sua figura: "A tendência a fazer um mito do Che mediante a midiatização de sua imagem significa ocultar sua vida e sua obra". Mas, sobretudo, EK reafirma que "ao procurar objetivos distintos, o Che acabará, como é muito lógico, separando do modelo social-imperialista da URSS. A CIA e o KGB cooperarão inclusive para livrar-se dele durante sua intentona revolucionária na Bolívia". E EK conclui: "Ernesto Che Guevara pagou com sua vida sua integridade intelectual. Render-lhe homenagem é ler seus textos; perpetuar sua memória é continuar a luta; render-lhe justiça é apoiar seus valores. Em vésperas das celebrações dos 40 anos de sua morte em combate, chegou a hora de voltar a dar força a seu pensamento e vida a suas idéias".
Agradecemos-lhe sua mensagem de abril. Pedimos-lhe desculpas pelo atraso deste complemento à resposta. Queremos fazer aqui uma crítica do que nos tem escrito, que, por muito rude que pareça, não significa, tampouco, um rechaço, mas pelo contrário: continuamos dispostos a responder a suas perguntas e opiniões. Vamos contestar o que você diz sobre o Che Guevara, analisando o mais séria e sinceramente o que de verdade foram como você diz, "seus valores", "suas idéias" e "sua luta".
Che Guevara é um exemplo para a juventude revolucionária de hoje?
Este mês de outubro se celebra, portanto, o 40º aniversário da morte do Che Guevara, assassinado pelo exército boliviano, sob a direção da CIA norte-americana.
Desde 1967, o "Che" converteu-se no símbolo, por assim dizer, da eterna "juventude revolucionária romântica": morto jovem, com as armas na mão, em luta contra o imperialismo americano, grande "defensor das massas pobres da América Latina". Todo mundo tem em mente essa imagem mítica do Che com uma estrela na boina e olhar longínquo e triste.
Seu famoso Diário de viagem contribuíram em grande medida a popularizar a história deste rebelde, filho de boa família argentina um tanto boêmio, que se lança a uma viagem de moto pelos caminhos da América do Sul de então, pondo seus conhecimentos médicos ao serviço dos pobres... Vive na Guatemala em um momento (1956) em que os Estados Unidos urdem o enésimo golpe de estado contra um governo que não lhes convém. Este controle permanente sobre os países da América Latina por parte dos EUA vai alimentar em Guevara durante toda sua vida um ódio irreparável para esse país. Unir-se-á depois no México ao grupo cubano de Fidel Castro, refugiado nesse país depois de uma tentativa abortada de derrubada do ditador cubano, Batista, apoiado durante muito tempo pelos Estados Unidos [1]. Depois de uma série de peripécias, o grupo se instala na Sierra Maestra de Cuba até a derrota de Batista, nos inícios de 1959. O núcleo ideológico desse grupo era o nacionalismo. O "marxismo" não foi mais que um pacote de circunstâncias a uma "resistência antiyanque" exacerbada, por muito que alguns de seus elementos, o próprio Guevara entre eles, se considerassem "marxistas". O Partido Comunista cubano, que anteriormente tinha apoiado a Batista, mandou um de seus dirigentes, Carlos Rafael Rodríguez, ao encontro junto ao Castro em 1958, alguns meses antes da vitória castrista.
Essa guerrilha não é tampouco a expressão de não se sabe que revolta camponesa, e menos ainda da classe operária. Foi a expressão militar de uma fração da burguesia cubana que queria quer derrubar à fração no poder para ocupar seu posto. Não houve nenhum "levante popular" na tomada do poder pela guerrilha castrista. Aparece, como tantas vezes ocorreu na América Latina, como uma troca de uma camarilha militar por outra formação armada, no que as camadas exploradas e pobres da população da ilha, alistadas ou não pelos combatentes da guerrilha, não desempenharam nenhum papel relevante a não ser o de lançar saudações aos novos donos do poder. Diante de uma resistência bem fraca por parte da soldadesca de Batista, Guevara aparece como o intrépido guerrilheiro de quem determinação e carisma crescente poderiam chegar, inclusive, a fazer sombra a seu chefe Fidel. Depois da vitória sobre Batista, Fidel Castro vai encarregar a Che de instaurar alguns "tribunais revolucionários", uma máscara sangrenta na melhor tradição dos ajustes de contas entre frações das diferentes burguesias nacionais, em particular na América Latina. Che Guevara leva muito a sério seu papel, por convicção e com zelo, instalando uma justiça "revolucionária" em que, para alívio coletivo, julga-se aos esbirros torturadores do regime de Batista, sem nenhuma prudência visto que uma simples denúncia podia custar o fuzilamento. E Guevara reivindicará mais tarde na ONU, onde, respondendo aos representantes latino-americanos, os notáveis mestres "democráticos", "preocupados" por uns métodos tão conhecidos por eles, declara: "Fuzilamos, estamos fuzilando e continuaremos fuzilando enquanto for necessário". Ou seja, enquanto "for necessário": até que a gente se dê conta de quem manda; primeiro liquidar aos antigos donos e, sobretudo, criar as condições adequadas para esmagar a menor resistência que venha "de baixo". Essas declarações não têm nada a ver com uma defesa mais ou menos torpe, de uma justiça revolucionária. Essas palavras correspondem, repitamos, aos métodos típicos de uma fração da burguesia que desaloja a outra pela força das armas.
Pode então identificar-se com o "herói" austero da Sierra Maestra, com o "guerrilheiro heróico" que morrerá alguns anos mais tarde na serra boliviana, mas no mundo real, outorgaram-lhe o papel de executor das sujas tarefas na instauração de um regime que de comunista só tem o nome.
Che Guevara: internacionalista?
EK, você nos diz: "o internacionalismo do Che é indubitável" e "Durante o seminário de solidariedade afro-asiática, o Che critica sem rodeios as posições conservadoras e exploradoras da URSS" e que "acabará, como é muito lógico, separando do modelo social-imperialista da URSS".
O regime nacionalista de Castro logo se revestiu o qualificativo de "comunista", o que significa simplesmente que se integrou... no campo imperialista regido pela URSS. Considerando a situação geográfica de Cuba, situada a poucas milhas das costas dos EUA, isso traria inquietação evidentemente ao amo do bloco ocidental. O processo de stalinização da ilha, com uma presença de pessoal civil e, sobretudo, militar e dos serviços secretos dos países do bloco do Leste, culminará em 1962 no momento da "crise dos mísseis".
Nesse processo, Che Guevara, agora ministro da Indústria (1960-61), para soldar a nova aliança com o "campo socialista", é enviado por Castro a uma excursão pelos países desse campo. De volta a Cuba, na televisão, dedica-se a apresentar programas propagandísticos no "ano da educação" com discursos dos mais entusiásticos sobre a URSS: "esse país que tão profundamente ama a paz", "onde impera a liberdade de pensamento", "mãe da liberdade"... E elogia "a extraordinária" Coréia do Norte e logo a China do Mao onde "todos estão cheios de entusiasmo, todos fazem horas extraordinárias" e assim para todos os países do Leste: "as realizações dos países socialistas são extraordinárias. Não há comparação possível entre seus sistemas de vida, seus sistemas de desenvolvimento e os dos países capitalistas". Um verdadeiro viajante de comércio do modelo stalinista! Mais adiante, falaremos do "desamor" de Guevara para com a URSS. Mas, contrariamente ao que você afirma, o Che nunca expressou a menor dúvida de princípio sobre o sistema stalinista. Para ele, a URSS e seu bloco eram o campo "socialista, progressista" e sua própria luta se integrava plenamente na do bloco russo contra o bloco ocidental. A ordem lançada por Guevara de "Criar um, dois, vários Vietnãs", não é uma ordem "internacionalista", mas sim uma ordem nacionalista e favorável ao bloco do Leste. O único critério verdadeiro dessa consigna não é, tampouco, a mudança social, mas sim o ódio ao chefe do outro bloco, os Estados Unidos.
Com efeito, depois da 2ª Guerra mundial, o mundo se encontrou dividido em dois blocos antagônicos, um bloco regido pelos EUA e o outro pela URSS. A "libertação nacional" confirmou-se então como uma mistificação ideológica perfeita para justificar o alistamento militar da população. Nessas guerras, nem a classe operária nem as demais classes exploradas tinham nada a ganhar, servem de massa de manobra para as diferentes frações da classe dominante e de seus padrinhos imperialistas. A partilha do mundo entre dois blocos depois dos acordos de Yalta implicava que qualquer saída de um bloco só se poderia fazer caindo no bloco adversário. E, precisamente, não há melhor exemplo que o de Cuba: este país passou da ditadura corrupta de Batista, submetida diretamente a Washington, seus serviços secretos e todo tipo de máfias, ao controle do bloco estalinista. A história de Cuba é um concentrado da história trágica das "lutas de libertação nacional" durante mais de meio século!
Assim, acima de tudo, antes de dizer quando e como Guevara teria se "desviado" mais ou menos da URSS, temos que deixar as coisas claras sobre a natureza da URSS e de seu bloco. Depois da defesa de um Che Guevara revolucionário está a idéia de que a URSS, pouco ou muito, apesar de seus defeitos e demais... era o "bloco socialista, progressista". Essa é a maior mentira do século XX. Houve, sim, uma revolução proletária na Rússia, mas foi derrotada. À forma stalinista da contrarrevolução deu-se uma consigna: a "construção do socialismo em um só país", uma consigna que se localiza no extremo oposto do marxismo. Para o marxismo, "os proletários não têm pátria" [2]. Foi este internacionalismo autêntico a bússola da onda revolucionária mundial que se iniciou em 1917 e a de todos os revolucionários de então, desde Lênin e os bolcheviques até Rosa Luxemburgo e os spartaquistas [3]. A adoção dessa aberração "teórica" de uma "pátria socialista" a defender foi arrematada com o recurso sistemático a um método burguês: o terror e o capitalismo de Estado, uma das expressões mais totalitárias e ferozes da exploração capitalista.
O Che "se desviou do modelo social-imperialista da URSS"?
A origem das críticas do Che à URSS foi a frustração provocada pela "crise dos mísseis", em 1962. Para a URSS, apoderar-se de Cuba era uma ocasião que não podia se desperdiçar. Finalmente, poderiam pagar na mesma moeda aos Estados Unidos, país que a ameaçava diretamente suas portas a partir dos países vizinhos como a Turquia. A URSS começa a instalar rampas de lançamento de mísseis nucleares há poucas milhas da costa norte-americana. Estados Unidos, mediante um cerco total à ilha, obriga aos navios russos a dar meia volta. Kruschev, que era então o chefe do Kremlin, viu-se finalmente obrigado a retirar seus mísseis. É necessário dizer que durante aqueles dias de outubro de 1962, os enfrentamentos imperialistas entre quem pretendia representar o "mundo livre" e quem pretendia representar o "mundo socialista progressista" puseram à humanidade inteira à beira do abismo. Krushev foi considerado pelos dirigentes castristas como uma "joaninha" que não tinha "os ovos" de atacar aos Estados Unidos. Em um ataque de histeria patriótica em que o slogan castrista de "Pátria ou Morte" exibia seu sentido mais sinistro, os dirigentes cubanos estão dispostos a sacrificar seu povo (eles dirão que é o povo que está preparado para o sacrifício) no altar da guerra atômica. Nesse delírio perverso, Guevara está, evidentemente, na primeira fila. Escreve: "Tem razão [os países da OEA [4] de ter medo da "subversão cubana"], pois é o exemplo de um povo disposto a sacrificar-se sob as armas atômicas para que suas cinzas sirvam de cimento às novas sociedades e que, quando se concluiu um acordo sobre a retirada dos mísseis sem que lhe tivesse consultado, não deixa escapar um suspiro de alívio, não acolhe a trégua com reconhecimento. Lança-se à rua para [...] afirmar [...] sua decisão de lutar, inclusive somente ele, contra todos os perigos e contra a própria ameaça atômica do imperialismo ianque" [5]. Esse "herói" decidiu que o povo cubano estava disposto a sacrificar-se pela pátria... Assim, a base da "decepção", da crítica em relação à URSS não foi a perda da crença nas virtudes do "comunismo soviético" (ou seja, o capitalismo stalinista), e sim, pelo contrário, a decepção vem de que esse sistema não foi até o final de sua lógica de guerra, de enfrentamento, não tinha "os ovos" de ir ao limite explosivo da "Guerra Fria". E no discurso de Argel feito por Che Guevara, em que você se apóia para afirmar que o Che "se separou do modelo social-imperialista da URSS" não muda nada na realidade a raiz stalinista das posições de Guevara. Ao contrário! Nesse famoso discurso, o Che crítica, sim, o "mercantilismo" nas relações entre os países do bloco da URSS, mas segue chamando-os socialistas e "povos amigos": "Os países socialistas são, de certo modo, cúmplices da exploração capitalista [...]. Têm o dever moral de liquidar sua cumplicidade tácita com os países exploradores do oeste." Detrás de sua aparência radical, essa crítica é uma crítica de dentro do sistema stalinista. Mais ainda, é a crítica de um responsável que participou com toda sua força na instauração do sistema de capitalismo de Estado em Cuba. E, certamente, nunca usou na sua crítica expressões tais como " imperialismo". Além do mais nunca mais voltou a fazer a menor crítica oficial à URSS.
Certo, Che Guevara, no momento em que foi assassinado pela CIA e o exército boliviano em 1967, foi vítima não só do imperialismo americano, mas também, sem dúvida, também da nova orientação política do Kremlin, chamada "coexistência pacífica" com o bloco ocidental. Não vamos tratar aqui sobre as razões que levaram a direção da URSS e de seu bloco a dar esse "giro". Mas essa mudança não tem nada a ver com não se sabe que "traição" com os povos que queriam se libertar do imperialismo, nem com o proletariado. A política da classe dominante stalinista mudava de rumo em função de seus interesses como classe dominante e, precisamente, a crise dos mísseis foi a demonstração para os dirigentes do imperialismo stalinista de que não dispunham dos meios para desafiar o chefe do outro bloco ante seus próprios narizes e que deveriam ser prudentes na América Latina.
Isso é o que Guevara e uma fração de dirigentes cubanos não querem entender, até o ponto de acabar sendo incômodos não só para a URSS, mas também inclusive com seus próprios amigos da ilha. A partir de então, o destino de Che Guevara ficou selado: depois da desastrosa aventura no Congo [6], acabará encontrando-se só na Bolívia, com um punhado de companheiros de armas, abandonado pelo PC boliviano, que, finalmente, depois de muitos rodeios, acabará adotando a nova linha de Moscou. Para as frações mais "moscovitas", os defensores da tática do "foco" guerrilheiro eram um bando de pequeno-burgueses com anseios de aventuras, "isolados das massas". E para as facções dos PC favoráveis à luta armada, com seus apoios críticos de todo tipo, os "dirigentes" dos PC eram uns "revolucionários de salão", uns burocratas aburguesados e ademais... também "isolados das massas". Para nós, que nos reivindicamos da Esquerda Comunista, são ambas duas formas da mesma contrarrevolução, duas variantes da mesma grande mentira do século, a mentira de apresentar a contrarrevolução stalinista como a continuadora da revolução de Outubro e a URSS e seus clones como comunistas.
Que visão tinha Che Guevara da classe operária?
Para você, EK, a tarefa dos intelectuais seria "introduzir no proletariado a consciência de sua situação ...". Nisto parece adotar a visão de Che Guevara sobre "a elite revolucionária". Mas detrás dessa posição do Che há, na realidade, um profundo desprezo pela classe operária. O que é que há detrás de seus lirismos sobre "o novo homem na revolução cubana"?
A unidade proletária revolucionária tem uma base prática muito concreta: a solidariedade de classe. É esta solidariedade espontânea, feita de ajuda mútua e fraternidade, o que inspira a generosidade, a entrega, as qualidades do proletariado revolucionário. Mas essa "entrega" na boca da Guevara, soa, no melhor dos casos, como uma chamada quase mística ao martírio supremo (tem que reconhecer que ele sempre esteve preparado para o sacrifício, e disposto sem dúvida a virar "cinza", mártir pela causa imperialista que defendia, junto com todo o povo cubano "voluntário", no momento da crise dos mísseis)... Por trás de seu próprio comportamento "exemplar" está essa visão do "sacrifício" ou do "heroísmo" (do mesmo estilo que todos os idealismos patrióticos exaltados pelo stalinismo, por exemplo, na Resistência francesa durante a Segunda Guerra mundial) que deveria se impor de cima, pelas necessidades do Estado e sob o mando de um "líder máximo". Essa visão contém esse desprezo do intelectual pequeno-burguês para com "a massa proletária" a qual se olha de cima, a que terá que "educar" para que acabe entendendo o grandioso da revolução e suas vantagens. "Este ente multifacético [a massa], escreve com condescendência Guevara, não (...) atua como um manso rebanho. É verdade que segue sem vacilar a seus dirigentes, fundamentalmente a Fidel Castro, mas o grau em que ele ganhou essa confiança responde precisamente à interpretação cabal dos desejos do povo, de suas aspirações, e à luta sincera pelo cumprimento das promessas feitas." (...) "Vistas as coisas de um ponto de vista superficial, poderia parecer que têm razão aqueles que falam de sujeição do indivíduo ao Estado, a massa realiza com entusiasmo e disciplina sem iguais as tarefas que o governo fixa, seja de índole econômica, cultural, de defesa, esportiva, etcétera. A iniciativa parte em geral do Fidel ou do alto comando da revolução e é explicada ao povo que a toma como sua" (O socialismo e o homem em Cuba, 1965).
De fato, quando nos diz "que não há razão para reduzir o conceito de proletariado unicamente aos operários", seu raciocínio se arraiga sem dúvida e, possivelmente, involuntariamente, nessa visão depreciativa da classe operária [7]. De fato, duas das características comuns dessas metamorfoses do stalinismo (do maoísmo ao castrismo), são sua desconfiança e seu desprezo pela classe operária, fazendo de um mítico grupo de camponeses pobres o "agente da revolução" dirigido por uns intelectuais possuidores da consciência que "introduzem" no cérebro das massas. No melhor dos casos, a classe operária era para esses neostalinista, uma massa de manobra que lhes servia de referência histórica, uma comparsa de sua revolução. Não há em nenhum escrito desses "revolucionários", e menos ainda em sua prática, a menor referência à classe operária organizada como tal e às organizações do poder de classe, os sovietes. Esses clones do stalinismo já não precisam disfarçar sua ideologia capitalista de Estado e falar de conselhos operários ou outras expressões da vida proletária durante a onda revolucionária de 1917-1927. Agora só resta o Estado, dirigido por gente "ilustrada" e, abaixo, as massas, às quais deixa, às vezes, dar provas de "iniciativa", enquadrada em "comitês de defesa da revolução" e demais organismos de vigilância social.
E em Cuba, um dos primeiros órgãos de enquadramento e direção da classe operária foram, uma vez mais e sem surpresa, os sindicatos. Os sindicatos cubanos (CTC) já eram alguns sindicatos, ao modo americano, perfeitamente integrados no "capitalismo liberal" e suas corrupções. E vão ser rapidamente transformados pela direção cubana, em 1960, em sindicatos ao modo stalinista, segundo o modelo estatal. Entre as primeiras decisões dos sindicatos do regime castrista estará a de nivelar os salários por baixo e fazer respeitar a proibição das greves nas empresas. E também se justificará esse ataque contra a classe operária com a ideologia anti-ianque e de "defesa do povo cubano". Aproveitando em 1960 uma greve contra o rebaixamento de salários dos operários de empresas pertencentes ao capital americano, os dirigentes castristas estigmatizam essa greve de "privilegiados" para declarar a "greve à greve" em palavras do novo dirigente castrista da CTC.
Nestas semanas nos encheram as telas com as controvérsias sobre a vida e a obra do Che. Por um lado, na linha dos propagandistas da "morte do comunismo", as frações direitistas ou centristas da burguesia vão aproveitar a ocasião para reaquecer sua sujeira com a ajuda servil de um ou outro historiador arrependido, preparados agora para denunciar o papel "antidemocrático" do Che, seu papel de chefe executante responsável pelos tribunais "revolucionários" no princípio da era castrista, polemizando uns e outros nas telas sobre se as execuções foram "excessivas", se houve ou não um "banho de sangue", se foi uma justiça "arbitrária" ou, ao contrário, "moderada". Para nós, como dizíamos antes, simplesmente desempenhou o papel necessário para instaurar um novo regime tão burguês, capitalista e repressivo como o precedente. E, por outro lado, servem-nos mentiras ou meias verdades em sua honra. Isso é demonstrado como a Liga Comunista Revolucionária, na França, em sua vontade de ocupar a poltrona do moribundo Partido Comunista Francês e ser o primeiro partido "anticapitalista" da França, utiliza-se de Che, explorando à vontade sua imagem "jovem e rebelde" [8].
Estimado companheiro EK, a realidade é essa: detrás da camiseta com a efígie do Che, há, sem dúvida, um coração generoso e sincero de pessoas que querem combater contra as injustiças e as atrocidades deste mundo capitalista. Além do mais, se coloca o Che na frente, é precisamente para esterilizar o entusiasmo que acompanha a paixão revolucionária. Mas Che não é mais que uma das figuras da grande corte de dirigentes nacionalistas e stalinistas, sem dúvida mais atrativa que as demais, mas representativa, entretanto, dessa metamorfose tropical da contrarrevolução stalinista que é o castrismo.
Apesar de todas nossas divergências, companheiro EK, a discussão segue aberta....
Corrente Comunista Internacional
[1] O êxito da operação da derrubada de Batista por Castro e Guevara se beneficiou, de fato, do apoio dos EUA e da compreensão de uma parte da direita, que tinha começado a se incomodar seriamente com o nível de corrupção do regime. O governo americano decidiu o embargo de armas para Cuba, que, definitivamente, privou de meios a Batista para lutar contra a guerrilha. Será ao cabo de uns meses de exercício do novo poder castrista quando as relações entre o EUA e Cuba acabarão deteriorando-se e, ante a ameaça de intervenção daquele país, que o regime castrista começaria a integrar-se no bloco russo.
[2] Citação muito conhecida do Manifesto Comunista de 1848, redigido pelo Marx e Engels.
[3] Temos escrito muito sobre Outubro de 1917. Podem lê-se os textos seguintes: A revolução proletária de outubro de 1917 é produto da ação consciente e massiva dos trabalhadores (https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/outubro_1917 [20]); Revolução Mundial ou destruição da humanidade (https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/outubro_1917 [20]).
[4] Organização de Estados Americanos, organismo continental, na realidade ao serviço do EUA, e da qual foi excluída a Cuba castrista.
[5] Escrito no momento da "crise dos mísseis", publicará-se mais tarde, em 1968, em uma revista do exército cubano. Reproduzido na biografia do Che por Pierre Kalfon (e traduzido do francês por nós).
[6] Em 1965, possivelmente para por em prática a ordem de "Dois, três Vietnãs...", um punhado de cubanos se instala no leste da República do Congo (Ex-Zaire) para organizar um "foco anti-imperialista", tudo organizado pelos serviços secretos cubanos com o acordo da URSS (possivelmente, também, para livrar-se do Che). Desde o começo a aventura no Congo aparece como um desastre anunciado: Guevara encontra-se sob as ordens políticas de uma facção de dirigentes congoleses (entre eles Kabila, futuro presidente-ditador do Zaire nos anos 1990), alguns aventureiros que levam a boa vida graças aos subsídios soviéticos e chineses. A população, por sua parte, que pelo visto ia receber com os braços abertos os seus "libertadores" fica bem mais espantada com a visão dessa gente saída de não se sabe onde. Foi uma antecipação do que ia ocorrer na Bolívia no ano seguinte. Deve-se dizer que mais tarde, por conta do imperialismo russo, milhares de cubanos continuaram servindo de "instrutores militares" (e de carne de canhão) em várias "guerras de libertação nacional" em terras africanas (Guiné-Bissau, Moçambique, Angola,...) até o desmoronamento da URSS e de seu bloco em princípios dos anos 90.
[7] Não podemos desenvolver aqui o que é o proletariado ou classe operária, duas expressões equivalentes para nós. Digamos, isso sim, que nossa visão da classe operária não tem nada a ver com a sociologia nem com essas imagens de estampa realista do operário de macacão e botas. Tratamos disso na seguinte série (espanhol): "¿Quién podrá cambiar el mundo? I - El proletariado es la clase revolucionaria [21]" 2ª parte: "¿Quién podrá cambiar el mundo? II - El proletariado sigue siendo la clase revolucionaria [22]"
[8] O líder da LCR, Olivier Besancenot, afirmou durante a campanha eleitoral francesa que seu partido se identifica hoje muito mais com o Che que com Trotsky, ainda que desde seu nascimento essa organização legitimava fraudulentamente, sua identidade à classe operária, reivindicando-se acima de tudo daquele grande militante bolchevique. Marx gostava de sublinhar as ironias da história. E é hoje uma das mais mordazes: constatar que esta nova propaganda da LCR, em seu afã de parecer jovem e estar na moda para atrair à novas gerações da classe operária, reivindica-se de um herdeiro, afinal de contas, da camada stalinista e de sua ideologia, essa mesma matilha que assassinou há mais de sessenta anos a um revolucionário que por muitas incompreensões que tivesse, era um revolucionário de verdade, um tal .... León Trotsky.
Publicamos a seguir nossos comentários sobre o livro Descaminhos da esquerda: Da centralidade do trabalho à centralidade da política de Ivo Tonet e Adriano Nascimento. [1]
A questão essencial que coloca este livro é de grande interesse para o futuro da luta de classes e também o da humanidade, que depende desta:
Segundo a nossa própria interpretação da tese dos autores do livro, a situação que descrevem seria resultado de um abandono progressivo do que fundamenta a essência revolucionária desta classe (por excelência a classe do trabalho associado), isto é, seu lugar no seio das relações de produção. O enfraquecimento da dimensão "social" da luta do proletariado ter-se-ia produzido assim em benefício da sua dimensão "política". Os autores resumem isso através da formulação seguinte:
Um conjunto de pontos de vista essenciais defendidos no livro correspondem, segundo o que pensamos, às necessidades da luta histórica do proletariado para sua emancipação: a visão do comunismo, a defesa do materialismo histórico, a insistência sobre a grande importância do trabalho associado da classe operária na transformação social depois da revolução, a luta contra a veneração do Estado. Temos, entretanto, desacordos com os autores sobre algumas questões, os quais explicitaremos ao longo de nossos comentários. Assinalamos só um entre eles, já nesta introdução: a crítica feita pelos autores à orientação "por demais política" tomada pelas organizações que se reivindicam do movimento operário, particularmente desde a fundação e o desenvolvimento dos partidos social-democratas no final do século XIX. Para nós, não se trata de uma dimensão "por demais política", mas de uma política específica proveniente de organizações operárias cada vez mais gangrenadas pelo oportunismo. Pior ainda, trata-se também de uma política claramente a serviço da perpetuação deste sistema travada por ex-organizações operárias que não têm mais nada a ver com a defesa dos interesses históricos do proletariado e que guardam de "operário" só o discurso para melhor mistificar a classe revolucionária. Por fim, e ligado ao que precede, há que se constatar que um bom conhecimento do marxismo não impediu os autores do livro de sucumbir às mistificações da burguesia, retomando por sua conta as mentiras quanto ao caráter revolucionário de confrontações que, na realidade, só foram lutas entre frações rivais da burguesia, as quais levaram ao estabelecimento de regimes capitalistas de Estado como na China ou em Cuba. Ao fazer isso, os autores apresentam autênticos servidores do capital nacional, como Mao ou Fidel Castro, como revolucionários, enquanto estes nunca tiveram nada a ver com o movimento revolucionário da classe operária para sua emancipação.
Durante a nossa analise crítica, não nos satisfaremos em afirmar nosso acordo com as ideias que apoiamos, mas argumentaremos em seu favor, notadamente através de referências à obra de Marx. Este "apoio" pode não convir aos autores do livro ou àqueles que compartilham as opiniões expressas por ele. Entendemos isso muito bem e, neste caso, incitamos os mesmos para que se manifestem e alimentem o debate. Esta chamada à crítica se aplica mais ainda à nossa crítica das ideias do livro que não compartilhamos.
Com efeito, o que permitiu a Marx superar suas hesitações sobre o comunismo foi o reconhecimento de que existia na sociedade uma força com um interesse material para o comunismo. Dado que o comunismo tinha deixado de ser a abstração dogmática, o simples belo ideal dos utopistas, o papel dos comunistas não se reduzia mais a pregar contra os danos do capitalismo e a favor dos benefícios do comunismo. Significava identificar-se com as lutas da classe operária, mostrando ao proletariado "porque luta" e como "deve adquirir a consciência" dos objetivos finais de sua luta. A adesão de Marx ao comunismo se confunde com sua adesão à causa do proletariado que é a classe portadora do comunismo. [2]
A exposição clássica de sua posição se encontra na passagem final de A crítica da filosofia do direito de Hegel. Apesar deste artigo ter sido consagrado à questão de saber qual força social permitiria à Alemanha se emancipar de suas cadeias feudais, a resposta dada era na realidade mais adaptada à questão: Como a humanidade podia se emancipar do capitalismo? Com efeito, desenvolve que:
"a possibilidade positiva da emancipação alemã "reside"na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a dissolução de todos os estados; de uma esfera que possui um carácter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas simplesmente ao título humano; (...) de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu objectivo mediante a recuperação total do homem. Esta dissolução da sociedade como uma classe especial é o proletariado." [3]
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, depois de ter examinado as diversas facetas da alienação humana, Marx dedicou-se à crítica das concepções do comunismo, rudimentares e inadequadas, que predominavam no movimento proletário dessa época. Marx rechaçou as concepções herdadas de Babeuf que os adeptos de Blanqui continuavam a defender, pois tendiam a apresentar o comunismo como um nivelamento geral por baixo, uma negação da cultura em que "a condição do trabalhador não é abolida, mas generalizada a todos os homens" [4]. Nesta concepção, todo mundo devia se tornar trabalhador assalariado sob a dominação de um capital coletivo, da "comunidade como capitalista universal" [5]
Em virtude de Marx nunca ter publicado pessoalmente os Manuscritos Econômico-Filosóficos e que nesta obra tratasse de questões aparentemente pouco desenvolvidas nos seus escritos posteriores, alguns supuseram que esta obra expressava um Marx imaturo, feuerbachiano, até hegeliano, que o Marx posterior, mais maduro e científico, teria rechaçado de maneira decisiva. Os principais defensores deste ponto de vista foram ... os stalinistas, e particularmente Althusser, seu digno teórico francês nos anos 1960-70. Segundo eles, o que Marx abandonou essencialmente é a concepção da natureza humana que se encontra nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, e em particular a noção de alienação. [6]
É óbvio que tal ponto de vista não pode ser considerado independentemente da natureza de classe burguesa do stalinismo. A crítica do trabalho alienado nos Manuscritos Econômico-Filosóficos está intimamente ligada à crítica do "comunismo de quartel", um comunismo em que a comunidade se torna capitalismo abstrato pagando salários, visão do comunismo que foi defendida por autênticas correntes proletários imaturas como os Blanquistas nessa época. [7] Marx condena francamente tais visões do comunismo nos Manuscritos Econômico-Filosóficos pois, para ele, o comunismo só tinha sentido ao acabar com a aniquilação das capacidades criativas do homem e transformar o fardo do trabalho numa atividade livre e alegre.
Ao rechaçar essas concepções, Marx já se antecipava os argumentos que os revolucionários tiveram que desenvolver no século XX para demonstrar a natureza capitalista dos regimes ditos "comunistas" do ex-bloco do Leste (Ressalte-se que estes últimos foram produtos monstruosos de uma contrarrevolução burguesa e não a expressão de um movimento operário imaturo). [8]
Marx também criticou as versões mais "democráticas" e sofisticadas do comunismo como aquelas que Considérant [9] e outros desenvolveram, pois eram "de natureza ainda política"; quer dizer, que estas não propunham mudanças radicais das relações sociais; só propunham mudanças "ainda incompletas e influenciadas pela propriedade privada, isto é, pela alienação do homem." [10]
Um ano depois dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx e Engels desenvolvem em A Ideologia alemã uma visão coerente das bases práticas e objetivas do movimento da história (e, portanto, das diferentes etapas da alienação humana). A história se apresentava agora claramente como uma sucessão de modos de produção, desde a comunidade tribal até o feudalismo e capitalismo passando pela sociedade antiga. O que constituía o elemento dinâmico deste movimento não era mais as ideias ou os sentimentos humanos, mas a produção material das necessidades vitais:
"(...) o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder "fazer história". Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos." [11]
O Prefácio à Contribuição à Crítica da economia política fornece, concentradadamente, o quadro de compreensão da origem das diferentes formações sociais que se sucederam desde o comunismo primitivo, em ligação com o desenvolvimento das forças produtivas:
"(...) na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral" [12].
Também é a chave da compreensão da ligação entre a consciência e as condições materiais de existência, portanto, da consciência das classes revolucionárias no seio destas sociedades:
"Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência.... é preciso (...) explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção" [13]
Este procedimento em relação à história não descarta o papel ativo da consciência, da crença e das instituições políticas e jurídicas, nem a realidade de seu impacto sobre as relações sociais e o desenvolvimento das forças produtivas. [14]
Esta questão não é abordada explicitamente no livro. Consagramos, entretanto, a esta algumas linhas na continuação do materialismo histórico, na medida em que tal abordagem teórica é indispensável para fundar o fato de que uma análise da dinâmica da luta de classes não pode ser limitada a um estudo de suas vanguardas consideradas em si. Com efeito, mesmo se em certas circunstâncias sua intervenção pode ser decisiva, não são as vanguardas que fazem o movimento operário (ao contrário da visão desenvolvida por Trotsky no seu Programa de Transição em 1938, totalmente alheia ao método marxista, segundo a qual, a crise do movimento revolucionário resumir-se-ia à crise de sua direção).
A consciência histórica emerge da necessidade do proletariado adquirir a consciência total da realidade a partir de seu ponto de vista de classe. Tal conhecimento, entretanto não lhe é espontaneamente dado. Pelo contrário, é um processo que se sintoniza com o desenvolvimento heterogêneo e doloroso de sua prática e teoria que são confrontadas, desde o início, às pressões coercitivas da burguesia.
Como classe explorada, o proletariado sofre um desprovimento total no seio da sociedade que o determina a ser a primeira vítima da ideologia burguesa. A contradição dialética que existe entre sua situação de classe revolucionária e de classe explorada resulta na impossibilidade de desenvolver sua consciência segundo o princípio estável de uma ideologia ou de uma série de receitas práticas. Assim, o proletariado (que é ao mesmo tempo sujeito e objeto do conhecimento) só toma consciência de sua situação num processo real ligado às condições materiais de sua existência social.
São as condições objetivas e a presença sempre opressora da ideologia dominante que obrigam o proletariado a segregar as minorias revolucionárias, como parte integrante de sua tendência a se constituir em classe revolucionária, para acelerar o processo de teorização de suas aquisições históricas e sua divulgação no seio das lutas. A consciência de classe não é um "espelho" da realidade, reflexo mecânico da situação econômica da classe operária (nestas condições, não teria nenhum papel ativo), e não é espontaneamente produzida no solo da exploração capitalista. [15]
Contra a concepção que transforma o marxismo numa ideologia do fatalismo histórico, que faz um culto da "espontaneidade dos operários" e condena o partido à inação, Lênin (na sua polêmica desenvolvida em Que fazer? em 1902, contra os economicistas) demonstrou com vigor a necessidade do proletariado passar da luta econômica à luta política e defendeu a força da teoria e da ação revolucionárias. Entretanto, a partir de uma preocupação válida (lembrar o objetivo político final das lutas econômicas) acabou subestimando a luta econômica. Segundo essa visão, as lutas reivindicativas não são mais o solo fértil do desenvolvimento da consciência de classe e a dimensão política do movimento evolui "fora da esfera das relações de produção". [16] Mais tarde, Lênin será capaz de reconhecer e corrigir o erro como testemunham várias intervenções de sua parte sobre este assunto [17], esta em particular:
"A verdadeira educação das massas não pode nunca ser separada de uma luta política independente, e sobretudo da luta revolucionária das próprias massas. Só a acção educa a classe explorada, só ela lhe dá a medida das suas forças, alarga o seu horizonte, aumenta as suas capacidades, esclarece a sua inteligência e tempera a sua vontade." [18]
A presença sempre opressora da ideologia dominante que afeta o proletariado na sua tomada de consciência não poupa suas vanguardas que, embora melhor preparadas para enfrentá-la, não são isentas da penetração daquela no seu seio. É o que, em particular, gera o fenômeno do oportunismo, que nunca poupou nenhuma organização do proletariado e deu lugar, dentro destas, a combates políticos memoráveis que agora fazem parte do patrimônio histórico da classe operária: o combate da esquerda marxista no seio dos partidos da Segunda Internacional contra o peso do reformismo; o combate das esquerdas comunistas no seio dos partidos comunistas em reação ao abandono progressivo dos princípios e objetivos últimos da luta sob a pressão do refluxo da onda revolucionária mundial.
Com efeito, a luta do proletariado é fundamentalmente social na plena acepção do termo. Porta, no seu triunfo, a dissolução de todas as classes e da própria classe operária na comunidade humana reconstituída em escala do mundial. Entretanto, esta dissolução passa necessariamente pela luta política - quer dizer, tendo em vista o estabelecimento de seu poder na sociedade - pela qual a classe operária cria os instrumentos que são suas organizações revolucionárias, os partidos políticos.[19]
Apesar de ser muito crítico desde o início em relação às visões "por demais políticas" do comunismo, Marx sempre pregou e praticou o envolvimento no combate político. Assim, na sua carta a Ruge em setembro de 1843, declarava: "Nada nos impede, portanto, de vincular nossa crítica à crítica da política, ao ato de tomar partido na política, ou seja , nas lutas reais, e de identificar-se com elas." [20]
De fato, a necessidade de se envolver as lutas políticas, para realizar uma transformação social mais total, era parte integrante da própria natureza da revolução proletária: "não digam que o movimento social exclui o movimento político" [21] escreveu Marx na sua polêmica contra o "anti-político" Proudhon. Com efeito, "não há jamais, movimento político que não seja, ao mesmo tempo social. Somente numa ordem de coisas em que não existam mais classes e antagonismos entre classes que as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas." [22]
Já em 1843, apesar de Marx ter reconhecido o proletariado moderno como agente da transformação comunista, os Manuscritos Econômico-Filosóficos não são ainda precisos sobre o movimento social que levará a sociedade de alienação à comunidade humana autêntica. Este desenvolvimento fundamental no pensamento de Marx chegará à luz através da convergência de dois elementos vitais: a elaboração do método materialista histórico e a politização aberta do projeto comunista. [23]
A ideologia alemã sublinha que no fim deste vasto movimento histórico, como nos modos de produção anteriores, o capitalismo é condenado a desaparecer, não por conta de sua falência moral, mas porque suas contradições internas o constrangem a se audodestruir e porque ele gerou uma classe capaz de substituí-lo por uma forma superior de organização social:
"No desenvolvimento das forças produtivas advém uma fase em que surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que, no marco das relações existentes, causam somente malefícios e não são mais forças de produção, mas forças de destruição (maquinaria e dinheiro) - e, ligada a isso, surge uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens e que, expulsa da sociedade, é forçada à mais decidida oposição a todas as outras classes; uma classe que configura a maioria dos membros da sociedade e da qual emana a consciência da necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista (...)" [24]A primeira parte do Manifesto comunista expõe a nova teoria da história, anunciada pela famosa frase "A história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes" [25]. O proletariado diferenciava-se da burguesia em que não podia, como classe explorada e sem propriedade, edificar a base econômica de uma nova sociedade dentro da antiga. A revolução que colocaria um termo a todas as formas de dominação de classe, portanto, não podia começar senão com o assalto político contra a ordem antiga. Seu primeiro ato seria a tomada do poder político por uma classe sem propriedade que, sobre esta base, iniciaria as transformações econômicas e sociais levando a uma sociedade sem classes:
" Uma vez desaparecidos os antagonismos de classes no curso do desenvolvimento e sendo concentrada toda a produção propriamente falando nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político. O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui forçosamente em classe; converte-se, por uma revolução, em classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas relações de produção, destrói juntamente com essas relações de produção, as condições dos antagonismos entre as classes e as classes em geral e, com isso, sua própria dominação como classe.." [26]
Dá para perceber, no que precede, a existência de sensibilidades diferentes entre o livro e nós, a propósito da natureza ao mesmo tempo política e social do combate pelo comunismo. Mas, a este estágio é difícil caracterizar claramente as diferenças. Voltaremos a este assunto no momento da concretização histórica, em particular através do exemplo da revolução russa.
Segundo a concepção popular errada que todos os porta-vozes da burguesia, da imprensa e nas universidades, retomam sistematicamente, o comunismo seria uma sociedade onde tudo é dirigido pelo Estado. Toda a identificação entre o comunismo e os regimes stalinistas é apoiada sobre esta presunção. É uma total falsificação, uma inversão da realidade. Para Marx, para Engels, para todos os revolucionários que seguiram seu caminho, o comunismo significa uma sociedade sem Estado, uma sociedade em que os seres humanos dirigem as coisas sem que uma potência coercitiva os domine, sem governo, sem exército, sem prisões e sem fronteiras nacionais. [27]
Antes de se tornar claramente comunista, Marx já tinha criticado a idealização hegeliana do Estado. Para Hegel, o Estado (e, portanto, o Estado na Prússia) definia-se como a encarnação do Espírito absoluto, a forma perfeita da existência social. Em A questão judaica, Marx começou a reconhecer que a real emancipação humana não podia ser restrita à dimensão política, mas requeria uma forma de vida social diferente. Desta forma, assim que se interessou pelo comunismo, Marx ficou muito preocupado em desmistificar o Estado e nunca se desviou disso.
O Manifesto comunista, redigido na véspera das grandes sublevações sociais de 1848, tinha como perspectiva não só a tomada do poder político pelo proletariado, mas também a extinção final do Estado uma vez que suas raízes teriam sido extirpadas e suprimidas.
Falando da Comuna, Marx se expressa nesses termos:
"Pois não foi uma revolução contra tal ou qual forma de poder de Estado, legitimista, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o próprio Estado, este aborto sobrenatural da sociedade; foi a retomada pelo povo e para o povo da sua própria vida social." [28]
O marxismo funda sua concepção do caminho para o comunismo sobre as experiências reais do proletariado contra o capitalismo. Assim, enquanto a palavra de ordem de ditadura do proletariado apareceu no início do movimento marxista, a forma que esta ditadura devia tomar foi tomando precisão através dos grandes eventos revolucionários da história da classe operária, em particular, a Comuna de Paris e a Revolução de Outubro de 1917.
As lições da história não são "espontâneas" no sentido que a vanguarda comunista as desenvolve sobre a base de um quadro de ideias já existentes. Mas estas próprias ideias devem constantemente ser reexaminadas e provadas à luz da experiência da classe operária. É uma glória dos operários parisienses de ter fornecido uma prova convincente de que a classe operária não pode fazer a revolução ao apoderar-se de um aparelho com estrutura e modo de funcionamento próprios, adaptados à perpetuação da exploração e da opressão. Se o primeiro passo da revolução proletária é a conquista do poder político, ela não pode ocorrer sem a destruição violenta do Estado burguês existente. Quanto ao semi-Estado do período de transição para o comunismo, também constitui um problema para o proletariado. É o que expressa Engels dizendo do Estado que é:
"(...) um mal que se transmite hereditariamente ao proletariado triunfante em sua luta pela dominaçao de classe. Como fez a Comuna, o proletariodo vitorioso não pode deixar de amputar imediatamente, na medida do possível, os aspetos mais nocivos desse mal, até que uma futura geração, formada em circunstâncias novas e livres, possa desfazer-se de todo desse velho traste do Estado." [29]
Portanto, a extinção do Estado baseia-se na transformação da infra-estrutura econômica e social, sobre a eliminação das relações capitalistas de produção e sobre o movimento para uma comunidade humana sem classes.
Muitas questões entram nessa rubrica e só selecionaremos as mais essenciais e ligadas ao temas do livro:
Qual desenvolvimento das forças produtivas é necessário à transformação socialista?
Esta ideia da impossibilidade de desenvolver as forças produtivas depois da revolução a não ser condenando ao fracasso a construção da nova sociedade é uma interpretação abstrata e muito pessoal pelos autores do ponto de vista de Marx sobre esta questão.
O livro tem toda razão de insistir sobre o fato que:
Mas isso não pode ser interpretado no sentido que, o capitalismo tendo desenvolvido as forças produtivas em quantidade suficiente para permitir a construção de uma sociedade socialista, não seja mais necessário que o proletariado vitorioso tenha de continuar a desenvolver essas mesmas forças.
Com efeito, ao criar as forças produtivas como nenhum modo de produção anterior, o capitalismo cria o potencial para a abundância e, portanto, para o comunismo. Mas isso não significa que a abundância apareça no dia seguinte da revolução, disponível para a satisfação das necessidades humanas. Ao contrário, a revolução é uma resposta a uma profunda desorganização da sociedade caracterizada por uma destruição importante de forças produtivas acumuladas (como conseqüência, em particular da Guerra Mundial antes da primeira onda revolucionária mundial, da crise econômica muito profunda que possivelmente provocará o próximo assalto revolucionário mundial) e, na sua fase inicial, esta desorganização tenderá a piorar. O proletariado vitorioso terá à sua frente um enorme trabalho de reconstrução, de educação e de reorganização. É por isso que O Manifesto comunista tem toda razão de falar da necessidade do proletariado vitorioso de "multiplicar o mais rapidamente possível a massa das forças de produção".
Por outro lado, não faz parte da visão de Marx fixar um limite mínimo à quantidade de forças produtivas a ser atingida para se poder construir uma sociedade comunista. Marx não oferece a visão utópica da abolição imediata de todas as categorias da produção capitalista. Ao contrário, ele sublinha a necessidade de distinguir a fase inferior e a fase superior do comunismo. Falando da fase inferior, ele diz:
"Do que se trata aqui não é de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede". [31]
Nesta fase, existe ainda a escassez, assim como todos os vestígios da normalidade capitalista. É unicamente na fase superior do comunismo, quando for realizada a abundância para cada um, que a sociedade poderá escrever na suas bandeiras:
"De cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades". [32]
Para o marxismo, uma das diferenças fundamentais entre a revolução burguesa e a revolução proletária, consiste no fato que a primeira acontece só depois de um processo de transformação econômica entre o feudalismo e o capitalismo, transformação que a revolução vem ratificar e celebrar na esfera política. Ao contrário disso, a revolução proletária (tomada do poder político) é necessariamente o início da transformação econômica entre o capitalismo e o comunismo. Nessa transformação econômica, as forças produtivas são desenvolvidas em função das necessidades humanas, enquanto é abolida toda propriedade e suprimida a exploração.
Aplicados à Revolução russa, estes princípios se expressam, para os autores do livro, na análise seguinte:
No que precede, encontramos os elementos-chave da dinâmica levando a uma onda revolucionária mundial: o primeiro abalo do capitalismo mundial sob os efeitos das suas contradições históricas demonstrando, segundo os revolucionários da época, que com a Primeira Guerra Mundial este sistema entrou numa fase de convulsões colocando a questão da revolução em escala mundial; a importância determinante do proletariado alemão para a vitória da revolução mundial. O livro analisa da maneira seguinte as consequências da derrota da revolução na Alemanha:
Já vimos como os autores se iludiram pensando que, no dia seguinte ao da revolução a classe operária poderia dispor imediatamente, para construir a nova sociedade, de um alto grau de desenvolvimento das forças produtivas. Dizem-nos agora que, num contexto em que a revolução foi vencida na Alemanha e as possibilidades de sua extensão mundial liquidadas, o problema da Revolução Russa seria aquele do caráter atrasado da Rússia impedindo a marcha para o socialismo. Tal análise é confirmada por esta outra passagem:
Em outros termos, se a Rússia tivesse sido um Estado comparável à Alemanha, então teria sido possível construir o socialismo neste país. O que significa que, para os autores, o socialismo é possível num só país. Sua motivação política não tem evidentemente nada ver com aquela de Stálin quando adotou em 1925 a tese do "socialismo num só país" para legitimar politicamente a ditadura do capitalismo de Estado na Rússia. A ideia do livro a este propósito constitui, entretanto, um erro, resultando de uma visão mecanicista e estreita da relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e a possibilidade de êxito da revolução, considerada fora do único quadro possível, qual seja: o mundo dominado pelas relações de produção capitalista (que já era o caso nessa época).
O comunismo, a construção da comunidade humana mundial, que significa necessariamente o fim da divisão do mundo entre classes sociais, só pode se realizar em escala mundial, pois as relações sociais de produção, que se baseiam sobre a exploração do trabalho assalariado, só podem ser abolidas nesta escala. [33]
É nisso que reside uma diferença importante entre a revolução proletária e a revolução burguesa. Com efeito, o desenvolvimento desigual do capitalismo permitiu à burguesia ascender ao poder em períodos diferentes em diversos países. Isso também era possível, pois a nação é o quadro geopolítico específico do capitalismo, quadro que, apesar de todas suas tentativas, o capitalismo nunca conseguiu ultrapassar. Mas, enquanto o capitalismo pôde se desenvolver por "ilhotas" no seio da sociedade autárquica feudal, o socialismo só pode existir em escala mundial colocando em movimento o conjunto das forças produtivas e das redes de circulação dos bens criados pelo capitalismo. Já em 1847, à pergunta dos Princípios Básicos do Comunismo: "Poderá esta revolução realizar-se apenas num único país?", Engels respondeu categoricamente:
"Não. A grande indústria, pelo fato de ter criado o mercado mundial, levou todos os povos da terra - e, nomeadamente, os civilizados - a tal ligação uns com os outros que cada povo está dependente daquilo que acontece a outro. [...] A revolução comunista não será, portanto, uma revolução simplesmente nacional; será uma revolução que se realizará simultaneamente em todos os países civilizados. Ela é uma revolução universal e terá, portanto, também um âmbito universal." [34]
O debate sobre esta questão conheceu sua maior e mais dramática expressão com a adoção da teoria do socialismo num só país. A Esquerda italiana (Fração da Esquerda comunista internacional, apelidada também de Fração italiana e publicando a revista Bilan [Balanço]) [35], cuja oposição à degeneração da revolução foi mais decidida e conseqüente do que a de Trotsky, colocou-se de repente ao lado da oposição de Trotsky no seu combate contra a teoria de Stálin. Com sua teoria da "acumulação socialista primitiva", Trotsky considerava que, na realidade, a Rússia tinha começado a pôr os alicerces de uma sociedade socialista, mesmo que rejeitasse o que Stálin pretendia,ou seja, para ele e seus epígonos a Rússia já era socialista. Pela Esquerda italiana, no âmbito de um país, o proletariado só podia estabelecer sua dominação política, e mesmo esta seria inevitavelmente enfraquecida pelo isolamento da revolução [36] Assim, segundo a fração:
"Não somente é impossível construir o socialismo num país só, mas também estabelecer suas bases. No país em que o proletariado venceu, não se trata de realizar uma condição do socialismo (através da livre gestão econômica pelo proletariado), mas somente de salvaguardar a revolução, o que exige a permanência de todas as instituições de classe do proletariado." [37]
A tomada do poder político pelo proletariado é uma etapa indispensável à transformação das relações sociais de produção. O que entendemos por revolução vitoriosa é a derrota política e militar da burguesia mundial pelo proletariado mundial. Este objetivo, enquanto não é atingido, deve mobilizar as energias revolucionárias do proletariado mundial, inclusive nos países em que já tomou o poder, sob pena de voltar à situação anterior. É claro que, por conta da derrota na Alemanha, esta etapa não foi alcançada durante a primeira onda revolucionária mundial.
No conjunto dos países em que o proletariado tiver tomado o poder, as medidas destinadas a tirar o poder da classe burguesa não mudam nada nas relações de produção. Isto porque, inclusive nestes países e nessa etapa da revolução, as relações de produção serão ainda relações de produção capitalistas. E até na ausência do poder da burguesia, como o livro diz, existe ainda a exploração do homem pelo homem, a classe explorada continuando sendo a classe que produz as riquezas, isto é, a classe operária.
Quanto ao Estado que surge depois da revolução, embora se trate de um Estado cujas atribuições mais nocivas terão sido restringidas, como foi dito, sua existência traduz, entretanto, o fato que a sociedade ainda é dividida por antagonismos de classes. Estes últimos resolver-se-ão com a vitória política da revolução mundial, a integração progressiva das camadas não proletárias ao trabalho associado e a transformação consciente e voluntária das relações de produção baseadas sobre um desenvolvimento das forças produtivas libertadas dos obstáculos do capitalismo e colocadas a serviço das necessidades da humanidade.
A experiência russa permitiu o esclarecimento da relação entre os órgãos específicos da classe, os conselhos operários, e o estado soviético no seu conjunto. Este último é a emanação da população não exploradora (incluindo, além dos operários, soldados e camponeses) organizados no país inteiro em sovietes territoriais. Os soldados e os camponeses aderem à revolução, mas não constituem por isso o sujeito da revolução. Em particular, a experiência russa demonstrou que a classe operária não pode se identificar diretamente com o Estado, mas deve exercer uma vigilância e um controle sobre este através de suas próprias organizações de classe (os conselhos operários) que participam deste órgão sem ser absorvidos por ele. [38]
Esta consideração decorre do fato que a classe operária é a única classe revolucionária da sociedade, apesar de outras classes não exploradoras também poderem ter interesse na revolução. Sobre esta questão apoiamo-nos sobre o livro para ilustrar nosso intento:
Na realidade, é a necessária autonomia do proletariado em relação a todas as outras camadas da sociedade que é colocada depois da tomada do poder, como já era antes. Sobre esta questão, vale a pena voltar à experiência da Comuna de Paris. Desse modo, o livro História da Comuna de Paris 1871 de Lissagaray [39], em particular, contém muitas críticas feitas às hesitações, confusões, posições vazias de certos delegados no conselho da Comuna, muitos entre eles expressando na realidade um radicalismo pequeno-burguês obsoleto que muitas vezes foi questionado pelas assembleias dos bairros mais proletários. Pelo menos um entre os clubes revolucionários locais declarou que havia que dissolver a Comuna, pois não era bastante revolucionária. Encontramos na Revolução Russa a mesma diferença, até oposição entre, por exemplo, o soviete de Petrogrado dominado no início pelos soldados (cuja maioria era de origem camponesa) favoráveis aos Socialistas Revolucionários e aos Mencheviques e os sovietes dos bairros periféricos de Petrogrado (Vyborg, em particular) que, de início, tiveram posições mais radicais. Foram estes bairros, entre outros, que constituíram a base operária sobre a qual Lênin tinha se apoiado para travar seu combate no seio do Partido Bolchevique para fazer triunfar as Teses de Abril.
Se retomarmos o raciocínio dos autores, devemos in fine atribuir o fracasso da revolução na Rússia ao desenvolvimento insuficiente das forças produtivas neste país, agravado pelo caráter atrasado da classe operária:
Ao contrário de Kautsky que se opôs à tomada do poder pelo proletariado na Rússia em nome do fato que "a Rússia, sendo um país economicamente atrasado, essencialmente agrícola, (...) ainda não maduro para revolução social e para uma ditadura do proletariado", Rosa Luxemburgo identifica as causas das dificuldades do proletariado na Rússia na imaturidade do proletariado mundial:
"Para todo observador que reflita, este curso das coisas é mais um argumento contra toda a teoria defendida por Kautsky e todo o Partido Social Democrata Alemão, segundo a qual a Rússia, país economicamente atrasado, agrícola em sua maior parte, não estaria ainda maduro para a revolução social. Esta teoria que não admite como possível na Rússia senão uma revolução burguesa, do que decorre, por conseguinte, para os socialistas deste país, a necessidade de colaborar com o liberalismo burguês, é também a da ala oportunista do movimento operário russo dos mencheviques, dirigidos por Dan e Axelrod. Uns e outros, os oportunistas russos como os oportunistas alemães, concordam inteiramente com os socialistas governamentais da Alemanha nesta maneira de compreender a Revolução Russa. Segundo eles, a Revolução russa não deveria ter ultrapassado o estádio que, na imaginação da social democracia, o imperialismo alemão estabeleceu como o fim nobre da guerra, a saber, a derrubada do czarismo. Se ela foi além, se ela se impôs como tarefa a ditadura do proletariado, tal aconteceu, segundo esta doutrina, por simples erro da ala radical do movimento operário russo, dos bolcheviques, e todas as amarguras que em seguida a revolução conheceu, todas as dificuldades que encontrou, não são mais do que as conseqüências desse erro. Teoricamente, esta doutrina, que o "Vorwaerts" apresenta como fruto do pensamento "marxista", chega a esta original descoberta "marxista" de que a revolução social, isto é, uma questão nacional é, por assim dizer, doméstica de cada Estado em particular.
Praticamente, esta doutrina tende a ressalvar a responsabilidade do proletariado internacional e, em primeiro lugar, do proletariado alemão, no que concerne à sorte da Revolução Russa, a negar, numa palavra, as conexões internacionais desta revolução. Na realidade, a guerra e a revolução russa demonstraram não a falta de maturidade da Rússia, mas a incapacidade do proletariado alemão de empreender sua missão histórica. Ressaltar este fato com toda a nitidez desejável é o primeiro dever de um estudo crítico da Revolução Russa. Contando com a revolução mundial do proletariado, os bolcheviques deram precisamente o testemunho mais brilhante de sua inteligência política, de sua fidelidade aos princípios e da audácia de sua política". [40] (o grifo é nosso)
Os autores do livro apoiam, sobre a questão da insurreição, o ponto de vista dos bolcheviques contra aquele dos mencheviques. Entretanto, se deve reconhecer que, apesar disso, sua postura sobre este assunto é ambígua pelo fato de que compartilham com Kautsky uma visão nacional da revolução (para a qual acabaram convergindo os próprios bolcheviques, cada vez mais enredados pelas contradições insuperáveis que resultaram do isolamento da revolução russa, embora não fosse essa sua posição antes da tomada do poder).[41]
Como já dissemos anteriormente quando tratamos da consciência de classe, a compreensão da dinâmica do movimento operário não pode ser limitada à análise de suas organizações políticas de classe. Para entender as fraquezas próprias do proletariado mundial que impediram o proletariado alemão de vencer, convém examinar a situação que tinha que enfrentar:
Assim, não foi o deslocamento da Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política que explica a derrota, mas na realidade a insuficiência das condições subjetivas da revolução e, em particular, uma consciência insuficiente no seio da classe operária na Alemanha de que a social-democracia tinha se tornado, para sempre, seu inimigo e a ponta de lança da contrarrevolução. Apenas dois meses depois do esmagamento ensangüentado da revolta de Berlim, em janeiro de 1919, os últimos, porém ainda importantes, destacamentos do proletariado alemão que tinham ficado fieis à social-democracia voltaram-se contra esta. Mas já era tarde demais. O destino da revolução alemã tinha sido jogado em Berlim. [42] Assim, não é o exemplo da revolução alemã que demonstra a validade da tese dos autores relativa à "impossibilidade de alterar radicalmente a lógica do capital através do poder político", pois o proletariado nem teve a oportunidade de tomar o poder político. Pelas mesmas razões que na Alemanha, e também como consequência da derrota neste país, a classe operária não teve a oportunidade de tomar o poder na Europa central, na Hungria em particular.
Não é que essa tese esteja errada, mas todos os exemplos dados relativos a esse período histórico não permitem ilustrá-la. Com efeito, o poder proletário isolado só podia padecer através de uma ou alternativa outra: ser derrubado pela reação internacional ou degenerar. Sabemos que foi a segunda opção que prevaleceu. A nocividade do discurso do partido bolchevique em degeneração sobre a construção do socialismo num só país em meio às medidas de capitalismo de Estado, não mudou fundamentalmente o curso dos eventos na própria Rússia, mas o acelerou. Além disso, esse discurso mistificou várias gerações de operários no mundo.
Este curso rumo à derrota da revolução mundial não era inelutável, pois, como acabamos de vê-lo, faltou pouco para que a revolução na Alemanha se desenvolvesse mais, abrindo assim a via para o derrubamento da burguesia neste país. Isso, por sua vez, teria aberto a porta para a extensão da revolução vitoriosa na Europa central e, depois, na Europa ocidental. Encontrávamos-nos aí no cenário da revolução em marcha internacionalmente. Não se produziu, mas estava inscrita no leque das possibilidades permitidas pelas condições materiais da situação mundial. Imaginemos que, depois de uma vitória política e militar sobre a burguesia, a classe operária tivesse sido capaz de tomar o poder político em escala mundial. Isso não significaria, que uma estrada levaria diretamente à edificação de uma sociedade socialista. Longe disso! O mais difícil restaria a ser feito, visto que a transformação das relações sociais em nada decorre automaticamente do aumento das forças produtivas disponíveis para a satisfação das necessidades humanas. Uma nova etapa histórica requeria (como requererá amanhã), por parte do proletariado mundial e de sua vanguarda, um altíssimo nível de consciência.
Um novo impulso da revolução mundial provocado pela revolução na Alemanha teria permitido, com a intervenção consciente do proletariado mundial, corrigir os erros cometidos na Rússia. Na ausência deste impulso vital, a revolução na Rússia afundou-se na degeneração e, como consequência disso, vimos florescer toda uma propaganda da qual o stalinismo se fez o campeão, desnaturando totalmente o projeto comunista, identificando-o mentirosamente ao capitalismo de Estado mais abjeto.
O livro oferece uma caracterização válida, em nossa opinião, do peso crescente do reformismo no seio dos partidos da Segunda Internacional e de seu desvio oportunista. Este se manifestou, antes de tudo, não pela existência de um programa mínimo de luta por reformas (numa época em que o capitalismo podia ainda conceder de maneira douradora tais reformas), mas pelo abandono progressivo do programa da revolução proletária. A estes partidos, pode-se aplicar esta caracterização dos autores, isto é, o deslocamento da Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política. Ainda que nos pareça mais adequado falar de abandono do alvo final em benefício da tática parlamentar imediata, como isso foi teorizado notadamente por Bernstein através de sua fórmula famosa "O objetivo final não é nada, o movimento é tudo".
Mas, do nosso ponto de vista, tal caracterização é ainda insuficiente, dada a trajetória destes partidos que traíram o proletariado, salvaram o capitalismo através da mais brutal repressão do proletariado. Aqui, vale a pena lembrar, para apoiar nossa ideia, que para vencer a revolução na Alemanha, a social-democracia recrutou os Corpos Francos nas camadas lumpenizadas da sociedade. Hitler apoiar-se-á nelas, mais tarde, na sua ascensão política. Será que é realmente adequado limitar a crítica a estes partidos somente por terem deslocado "a Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política"? Em outros termos, será que dá para pensar que estes partidos têm ainda algo de proletário (além da fraseologia destinada a mistificar a classe operária) desde sua traição? Sua prática desde então não deixou de ilustrar que nunca mais voltarão para o campo do proletariado. Neste caso, o que temos a ganhar dirigindo-nos a eles, a esquerda, culpando-os por ter abandonado a perspectiva do comunismo? Efetivamente fazem parte da esquerda, mais da esquerda do capital, e tudo que pode obscurecer esta realidade aos olhos do proletariado deve ser proscrito.
E o resto da esquerda? Será que não é menos reformista? Os partidos comunistas, por exemplo?
O Partido Bolchevique, depois de haver sido a vanguarda da revolução em 1917, degenerou identificando-se cada vez mais com o Estado. Em seu seio, os melhores combatentes da revolução foram progressivamente descartados das suas funções de responsabilidade, excluídos, exilados, aprisionados e depois finalmente executados por uma câmara de arrivistas e de burocratas que encontraram em Stálin seu melhor representante. Sua razão de ser não era mais defender os interesses da classe operária, mas, ao contrário, exercer sobre ela, através da mentira e da repressão, a mais hipócrita das ditaduras, a fim de preservar e consolidar a nova forma de capitalismo que estava instaurada na Rússia.
Os outros partidos da Internacional, os partidos "comunistas", seguiram o mesmo caminho. O revés da revolução mundial e a confusão que se seguiu dentro das fileiras operárias favoreceram o desenvolvimento do oportunismo no seio desses partidos, isto é, uma política que sacrifica os princípios revolucionários e as perspectivas históricas do movimento da classe operária por ilusórios "sucessos" imediatos. Infestados pela doença oportunista, esses partidos caíram sob o controle de burocratas arrivistas, e foram submetidos pela pressão do Estado Russo que, através da mentira e da intimidação, promoveu estes burocratas aos órgãos de direção. Após terem expulsado de suas fileiras os elementos fiéis ao combate revolucionário, esses partidos terminaram por trair e passar com todas suas armas para dentro do campo da burguesia. Como o partido bolchevista dominado pelo stalinismo, esses partidos se converteram na vanguarda da contrarrevolução nos seus respectivos países. Eles puderam cumprir bem melhor este papel, porque continuaram a se apresentar como partidos da revolução comunista, como os herdeiros do "Outubro Vermelho". Do mesmo modo que Stálin, para estabelecer seu poder no partido bolchevista em degeneração, a fim de eliminar os militantes os mais sinceros e devotos à causa do proletariado, tinha se enfeitado com todo o prestígio de Lênin; do mesmo modo os partidos stalinistas, a fim de sabotar mais eficazmente as lutas operárias, usurparam o prestígio que adquiriu, aos olhos dos operários do mundo inteiro, a Revolução Russa de 1917 e os combatentes bolcheviques.
Em outros termos, a caracterização precedente que fizemos dos partidos social-democratas aplica-se do mesmo modo aos partidos comunistas ou a suas variantes atuais: trotskistas, guevaristas, chavistas, etc. Todos fazem parte da esquerda do capital.
Dirigir-se à esquerda do capital para lhe mostrar seus "erros" só pode ser fonte de mistificação da classe operária. A mistificação se torna maior ainda quando se fala "das revoluções soviéticas, chinesas e cubanas", ou também dos revolucionários "Mao, Fidel e muitos outros".
O triunfo da contrarrevolução na Rússia produziu-se sob a marca da reorganização da economia nacional com as formas mais acabadas do capitalismo de Estado, cinicamente apresentadas pela circunstância como "prolongamentos de outubro" e "construção do socialismo". O exemplo foi retomado em outros lugares: China, Países do Leste, Cuba, Coreia do Norte, Indochina, etc. Entretanto, não há nada de proletário, e menos ainda de comunista em todos estes países, onde sob o peso da maior mentira da história, reina nas suas formas mais decadentes, a ditadura do capital. Além do mais, os regimes destes países não são o resultado de revoluções proletárias degeneradas, como foi o caso na Rússia, mas de confrontações entre frações adversas da burguesia.
Achamos que o assunto escolhido pelos autores do livro merece amplamente ser dicutido no campo do proletariado. Mas estimamos também que este livro coloca a necessidade de discussões pelo menos tão fundamentais para clarear a própria natureza das ditas revoluções chinesas e cubanas, do campo ao qual pertencem pretendidos revolucionários como Mao e Fidel. Em nossa opinião, uma caracterização da fronteira de classe entre organizações do proletariado e organizações da esquerda do capital é necessária. Mas ela não se efetua sobre a base de critérios próprios de tal ou qual organização, tal ou qual pensador, e sim a partir do posicionamento diante de momentos chave na vida da sociedade que são a guerra e a revolução, que colocam a necessidade da defesa dos princípios intimamente ligados à essência internacionalista e revolucionária do proletariado.
[1] Tonet, Ivo e Nascimento, Adriano. Descaminhos da esquerda: Da centralidade do trabalho à centralidade da política. Editora Alfa-Omega, São Paulo: 2009.
[2] Para mais desenvolvimentos sobre esta questão da adesão de Marx ao comunismo, ler o artigo em espanhol "Como el proletariado se ganó a Marx para el comunismo" da série El comunismo no es un bello ideal... na Revista internacional n° 69.
[3] Marx. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel [23].
[4] Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos. Cáp: Propriedade Privada e Comunismo; [https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap04.htm [24]]; tradução alterada por nós, em comparação com a versão francesa; no original em português é a seguinte: "O papel do trabalhador não é abolido, mas ampliado a todos os homens"
[5] Ibid..
[6] Para desenvolvimentos mais amplos sobre esta questão da adesão de Marx ao comunismo e da alienação, ler os artigos em espanhol "La alienación del trabajo constituye la premisa de su emancipación" e "El comunismo: verdadero comienzo de la sociedad humana" da série El comunismo no es un bello ideal... nos números 70 e 71 da Revista internacional.
[7] Sobre as críticas do "comunismo vulgar" feitas por Marx, ler o artigo "Del comunismo primitivo al socialismo utópico" da série El comunismo no es un bello ideal... no número 68 da Revista internacional.
[8] Sobre a contrarrevolução na Revolução Russa leia o nosso artigo: "A degeneração da Revolução Russa" [Link: https://pt.internationalism.org/ICCOline/2008/degeneracao_da_Revolucao_R... [25]
[9] Victor Considérant (1808-1893). Filósofo e economista francês adepto das concepções de Fourier.
[10] Manuscritos Econômico-Filosóficos. Cáp.: Propriedade Privada e Comunismo; Traduzido a partir do francês.
[11] Marx e Engels, A Ideologia alemã. Ed. Boitempo: 2007, p. 32-33.
[12] Marx, Prefácio à Introdução à Crítica da economia política - Ed. Martins Fontes, 1977, p. 24-25
[13] Ibid.
[14] Para desenvolvimentos mais amplos sobre esta questão do materialismo em Marx, ler Que método científico deve usar-se para compreender a ordem social existente, as condições e meios de sua superação? https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/decadencia_do_capitalismo_Que_m%C3%A9todo_cient%C3%ADfico [26] ; https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Decadencia_dos_modos_de_producao [27]
Ler a propósito desta questão nossa brochura em espanhol Organización comunista y conciencia de clase e o artigo em espanhol "La conciencia de clase y el papel de los revolucionarios [28]" da Revista internacional n°7.
Lênin retomou em Que Fazer passagens inteiras de um artigo de Kausky publicado no Neue-Zeit de 1901: "A consciência socialista de hoje não pode surgir senão à base de um profundo conhecimento científico. De fato, a ciência econômica contemporânea constitui tanto uma condição da produção socialista como, por exemplo, a técnica moderna, e, apesar de todo o seu desejo, o proletariado não pode criá-las; ambas surgem do processo social contemporâneo. Ora, o portador da ciência não é o proletariado, mas os intelectuais burgueses: foi do cérebro de certos indivíduos dessa categoria que nasceu o socialismo contemporâneo, e foram eles que o transmitiram aos proletários intelectualmente mais evoluídos, que o introduziram, em seguida, na luta de classe do proletariado onde as condições o permitiram. Assim, pois, a consciência socialista é um elemento importado de fora na luta de classe do Proletariado, e não algo que surgiu espontaneamente" (Que Fazer?- https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm [29])
A propósito disso, ler nosso artigo Lênin e as questões de organização. https://pt.internationalism.org/icconline/2007/leninismo-e-organizacao [30].
[18] Lênin, Relatório sobre a revolução 1905 (janeiro de 1917) https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/01/22.htm [31]
[19] A propósito da nossa concepção do partido, ler nosso artigo em espanhol "El Partido y sus lazos con la clase [32]" na Revista internacional n° 35.
[20] Marx, Sobre a questão judaica. Ed. Boitempo: 2010, p. 72.
[21] Marx, A Miséria da Filosofia. Global Editora, p.160.
[22] Ibid.
[23] Para mais desenvolvimentos sobre esta questão, ler o artigo em espanhol "1848: el comunismo como programa político [33]" da série El comunismo no es un bello ideal... na Revista internacional n° 72.
[24] Marx e Engels, A Ideologia alemã. Ed. Boitempo, pag.41.
[25] Nas últimas edições deste texto, Engels precisou que esta tomada de posição aplicava-se a "toda a história escrita" e não às formas sociais comunitárias que antecederam a aparição das divisões em classes.
[26] Marx e Engels. Manifesto do partido comunista. Cáp: Proletários e Comunistas. https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap2.htm [15]
[27] Para mais desenvolvimentos sobre esta questão, ler o artigo em espanhol "1871: la primera dictadura del proletariado [34]" - El comunismo: una sociedad sin Estado - da série El comunismo no es un bello ideal... na Revista internacional n° 77.
[28] Marx, A Guerra civil na França. Editions sociales. Traduzido do francês a partir do primeiro ensaio de Marx.
[29] Engels. Introdução à Guerra civil na França. 1891. https://www.bookess.com/read/1920-a-guerra-civil-na-franca/ [35]
[30] Nota da redação: Obra de Marx conhecida também sob o título Materiais para O Capital.
[31] Crítica ao Programa de Gotha. Observações à Margem do Programa do Partido Operário Alemão. Parte I [36], p. 22.
[32] Ibid., p. 26.
[33] Ler mais em A Primeira Guerra mundial e a onda revolucionária mundial de 1917-23 abrem a época das guerras e das revoluções. https://pt.internationalism.org/icconline/2006/debate_guerras_e_das_revolucaoes_CCI [37]
[34] Engels. Os princípios do comunismo. Obras Escolhidas em três tomos, Editorial Avante!; https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/11/principios.htm [38]
[35] A propósito da Esquerda comunista, ler nosso artigo A Esquerda comunista e a continuidade do marxismo. https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista [39]
[36] Ler mais em "1933-1946: el enigma ruso y la Izquierda comunista italiana" na Revista Internacional n° 106.
[37] Natureza e evolução da revolução russa - resposta ao companheiro Hennaut. Em Bilan n° 35, setembro de 1936. Traduzido a partir do francês.
[38] Para uma exposição mais detalhada da nossa posição sobre esta questão, ler a série de artigos O período de transição do capitalismo ao comunismo (https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/per%C3%ADodo_de_transi%C3%A7cao_do_capitalismo_ao_comunismo [40]) e, em particular O estado no período de transição (https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_per%C3%ADodo_de_transicao [41])
[39] Lissagaray, História da Comuna de 1871. Ed. Ensaio :1991.
[40] Rosa Luxemburg. A revolução russa. www.socialismo.org.br/portal/images/stories/documentos/revista2/A_Revolu... [42]
[41] Ler a este propósito a argumentação desenvolvida no nosso artigo "Debate sobre os erros da Revolução Russa [43]".
Ler a propósito destes acontecimentos nossos artigos em espanhol Hace 90 años, la revolución alemana (IV): "1918-1919: la guerra civil en Alemania [44]" e El terror dirigido por la socialdemocracia contra la clase obrera preparó el terreno al fascismo (https://es.internationalism.org/node/2566 [45]) dos n° 136 e 137 da Revista internacional.
[1] http\\opopssa.info
Ao mesmo tempo em que reconhece "o respeito muito grande que todos os revolucionários do mundo devem a Rosa Luxemburgo, por sua coragem, seu valor, a denúncia do reformismo, sua capacidade política e revolucionária e sua incansável atitude militante", a contribuição da OPOP conclui também que "Rosa Luxemburgo apresentou a maior parte do tempo uma imagem contrária de uma realidade que ela foi incapaz de compreender quando tratou das relações econômicas do capitalismo".
É com o mesmo estado de espírito que criticaremos a contribuição da OPOP, com respeito e fraternidade, mas também sem concessão no plano teórico.
Na realidade, este debate traz à luz duas explicações econômicas da crise do capitalismo que muitas vezes foram consideradas, de maneira incorreta segundo nossa opinião, como opostas e até antinômicas (visto que muitas vezes ambas foram açambarcadas por defensores tanto sectários como acadêmicos):
A primeira tese, geralmente, é associada com a ideia de que a superprodução não seria uma contradição intrínseca do modo de produção, mas unicamente a conseqüência de uma situação em que a produção, ao não poder gerar bastante lucro (pois realizada na base de uma taxa de lucro insuficiente), gera como conseqüência o fechamento de fábricas, demissões e grande quantidade de mercadorias não vendidas. Em contrapartida, a segunda tese reconhece plenamente a realidade da queda da taxa de lucro como contradição do capitalismo, sem por isso lhe dar a supremacia, e identifica o fato de que as duas contradições se fortalecem mutuamente em detrimento da acumulação capitalista [1].
A polêmica da qual toma parte o texto da Revista Germinal não é nova, pois tem sua origem quando da publicação em 1912 da obra de Rosa Luxemburgo, A acumulação do capital, que suscitou críticas violentas, muitas delas em reação à ideia de que a conquista do mundo pelas relações de produção capitalistas iria afundar este sistema dentro de contradições insuperáveis [2].
Como assinalado pela contribuição da OPOP, o esquema da acumulação capitalista do livro II de O capital abrange, segundo Rosa Luxemburgo, um problema. Para ela, não se pode explicar o mecanismo da acumulação ampliada sem que haja uma demanda adicional, isto é, uma demanda adicional em relação às necessidades da reprodução simples do capital, e que esta demanda adicional não pode ser originada do seio das relações de produção capitalistas. Ela deve, portanto, situar-se na esfera extracapitalista.
Em relação a isso, segundo nossa opinião, a contribuição da OPOP passa muito rapidamente pelo episódio da elaboração teórica por Marx do esquema da acumulação ampliada. Com efeito, não fala das hesitações e reflexões expressas por Marx neste capítulo de O Capital, nem sequer explica que estas estão relacionadas à mesma problemática daquela colocada por Rosa em A acumulação do capital. A propósito disso, Irène Petit, na sua introdução à tradução em francês desta obra [3], resume magistralmente o problema nestes termos:
Considerando este problema colocado por Rosa, a contribuição da OPOP se expressa nestes termos: "Marx demonstrou que essas trocas [com os mercados extracapitalistas] não são necessárias para compreender a acumulação ampliada; nem são verdadeiramente indispensáveis, senão na fase da acumulação primitiva, "da gênese do capital"; e que a crise, a "tendência à superprodução", não advém, de modo algum, da insuficiência dos mercados extracapitalistas, mas, antes de tudo, "da relação imediata do capital" no seio do capitalismo puro". Existe pelo menos uma falta de explicação. Onde Marx realizou tal demonstração? Por que não é fornecida nenhuma citação de Marx para apoiar esta afirmação? Porque nada foi dito do questionamento de Marx que o leva a fazer intervir, em última instância, o produtor de ouro capaz de fornecer a fonte de dinheiro adicional.
Para os oponentes atuais da tese de Rosa Luxemburgo sobre a acumulação, é o próprio capitalismo que cria seu mercado: "Pois é a própria acumulação do capital que resolve o problema do necessário dinheiro adicional e faz desaparecer as dificuldades de realização em meio de diversas técnicas de financiamento" (Paul Mattick; Crise e teoria das crises; Tradução nossa), o que supõe que a produção capitalista seja efetuada por si mesma, sem que para isso haja necessidade de uma demanda para financiá-la. A ideia segundo qual a produção criaria a demanda é só uma ficção que Marx descarta.
Chegamos agora a outro problema colocado pela contribuição. Porque não menciona neste lugar de seu desenvolvimento que Marx desenvolve explicitamente, em diferentes lugares de seus escritos, uma ideia contraditória com aquela da OPOP, isto é, que o capitalismo precisa, para se desenvolver, de um mercado que não seja aquele constituído pelos operários :
A contribuição da OPOP tem todo direito de pensar que esta ideia de Marx não merece constituir o objeto de um desenvolvimento perante o leitor, pois não seria significante, até incorreta, mas neste caso, o método científico de apreensão da realidade exige que o leitor seja avisado e igualmente sejam apresentados os argumentos comprovando que Marx se equivocou.
A contribuição continua do mesmo modo argumentando porque Marx exclui categoricamente os mercados extracapitalistas de sua análise: "Com efeito, se o capitalismo vende suas mercadorias fora de sua esfera vai dispor do dinheiro correspondente àquelas vendas, mas deixa de dispor dos meios materiais necessários para a sua expansão (bens de consumo, máquinas, meios de transporte, etc.). Esses não estariam mais disponíveis, pois seriam consumidos ou incorporados na esfera não capitalista".
Devemos confessar humildemente que não nos lembramos que Marx tenha desenvolvido tal argumentação e, mais uma vez, teria sido útil ao debate a possibilidade de dispor de citações de Marx explicitando esta ideia. Isso teria confirmado o que já evidenciamos considerando a existência de contradições no seio de O capital, sendo essas essencialmente em conseqüência de que esta obra não foi concluída. É efetivamente o que Rosa tinha percebido antes de nós considerando o problema que nos preocupa:
Dito isso, devemos dedicar uma atenção particular a esta questão pertinente da contribuição segundo a qual, ao privar a acumulação das mercadorias produzidas, a venda aos mercados extracapitalistas poderia constituir um obstáculo à acumulação. Rosa baseia sua resposta a este problema sobre a capacidade do capitalismo de produzir em excesso em relação a suas próprias necessidades, notadamente graças a um constante aumento da produtividade. Ela argumenta longamente da maneira seguinte:
Examinemos agora o caso inverso. Neste a reprodução capitalista produz meios de produção que excedem as necessidades próprias e encontra compradores em países não capitalistas. Por exemplo: a indústria inglesa forneceu, na primeira metade do século XIX, material de construção para ferrovia em países americanos e australianos. A ferrovia por si só não significa que haja domínio do modo de produção capitalista em um país. Efetivamente, as ferrovias constituíram, no caso, apenas um dos primeiros pressupostos da penetração da produção capitalista. Outro exemplo é o da indústria química alemã, que fornecia meios de produção, como tintas, de grande saída em países de produção não-capitalista, como os da Ásia, África etc. Nesse caso, o Departamento I da produção capitalista realiza seus produtos em círculos extracapitalistas. A ampliação crescente do Departamento I que daí resulta provoca, no país de produção capitalista, uma ampliação correspondente do Departamento II. Este fornece meios de consumo para um contingente enorme de operários do Departamento I, departamento que se encontra em constante aumento." (Rosa Luxemburgo - A Acumulação do Capital - Vol. II - Cap. XXV - A Reprodução do Capital e seu Meio - pg.19 e 20 Ed. Abril Cultural.)
Assim, longe de constituir um obstáculo à acumulação, a venda aos setores extracapitalistas é um fator que a favorece. Já que as vendas para a esfera extracapitalista não faltam à acumulação (pelo fato do dinamismo deste modo de produção que por sua própria natureza sempre tende a produzir um excedente); e também que essas vendas permitem dispor, no seio das relações de produção capitalistas, dos meios de pagamento (o produto da venda) para sustentar uma demanda solvente passada (e paga a crédito) ou futura. É toda a diferença entre uma economia desenvolvendo-se sobre bases sãs, como era o caso até o inicio do século 20, e uma economia que não tem outra solução além de acumular dívidas, pois não dispõe de outros meios que se endividar para estimular a demanda, como acontece plenamente desde o fim dos anos 1950.
Entretanto, a seguinte passagem de Rosa, citada pela contribuição da OPOP, parece limitar as virtudes econômicas dos mercados extracapitalistas:
Isso é só uma ilusão de ótica que desaparece assim que lemos a frase seguinte da obra, a qual só faz resumir a exposição de Rosa sobre este tema:
É a razão pela qual não é necessário que as mercadorias vendidas pelo capitalismo à esfera extracapitalista voltem para a esfera capitalista sob a forma de produtos para participar da acumulação. Dessa vez concordamos totalmente com a contribuição da OPOP: "Nenhum fato econômico, nenhum processo histórico, nenhuma passagem nem de Marx nem de Rosa atestam, de resto, qualquer movimento de retorno dessas mercadorias inicialmente vendidas na esfera extracapitalista de volta ao "capitalismo puro" a fim de lhe assegurar os meios materiais necessários ao seu desenvolvimento".
Como acabamos de ver acima, não é indispensável que o dinheiro das vendas efetuadas em direção aos mercados pré-capitalistas seja utilizado para comprar mercadorias provenientes destes mercados. A contribuição da OPOP se engana quando atribui a ideia contrária à obra de Rosa: "o dinheiro proveniente da venda de mercadorias sobre esses mercados serviria então para comprar os meios materiais necessários para a ampliação do capitalismo puro."
Rosa Luxemburgo coloca o problema de maneira diferente. Em primeiro lugar, ela evidencia que não é indispensável, para permitir a acumulação, que os meios de produção e de consumo todos sejam de origem capitalista, ao contrário da hipótese de base colocada por Marx no seu esquema da acumulação:
Além disso, existem, segundo ela, fatores que favorecem a utilização, pelo capitalismo, de produtos originários de economias pré-capitalistas: de um lado, a necessidade do capitalismo tentar aumentar permanentemente a taxa de lucro; por outro lado, o fato que, no momento em que Rosa escreveu sua obra, a imensa maioria das riquezas naturais do planeta e da produção pré-capitalista ainda estava situada fora das zonas dominadas economicamente pelo capitalismo e que faz parte da natureza deste tentar abarcá-los por todos os meios.
Rosa Luxemburgo nos fornece acima um resumo da economia mundial tal como se apresentava no início do século XX. Salvo se isso for inexato, e neste caso esperamos uma crítica construtiva para retificar a nossa visão, a seguinte afirmação da contribuição da OPOP, bastante aproximativa, tende a refletir uma imagem pouco fiel do estado do mundo na mesma época: "Sem dúvida é inegável que o capitalismo encontrou certos bens úteis à sua ampliação: matérias-primas, bens de consumo e, sobretudo, a mão-de-obra adicional. Entretanto, contrariamente ao que pensava Rosa, numerosos bens foram rapidamente produzidos localmente por empresas capitalistas empregando assalariados".
Se o processo de integração ao capitalismo das zonas pré-capitalistas é efetivamente o produto do estabelecimento de relações comerciais do capitalismo com estas, tal processo está ainda longe de ser concluído no início do século XX.
Os mercados extracapitalistas freiam a acumulação em lugar de estimulá-la?
Isto seria verificado nas taxas de crescimento do PIB por habitante das potências coloniais entre 1870 e 1913, mais fracas do que nos países sem colônias. Antes de examinar os dados fornecidos, convém destacar três erros no método utilizado para verificar empiricamente se os mercados extracapitalistas constituíram ou não um fator positivo da acumulação:
1) O método identifica mercados extracapitalistas e colônias, enquanto os mercados extracapitalistas incluem tanto os mercados internos como as colônias, ainda não submetidos às relações de produção capitalistas. Assim, o dinamismo do desenvolvimento dos Estados Unidos deve-se à exploração de seu mercado interno durante o período considerado.
2) O recurso aos mercados extracapitalistas por parte da esfera das relações exclusivamente capitalistas coloca-se a nível mundial e não isoladamente em cada país. Isso significa, por exemplo, que as vendas dos produtos de consumo efetuadas pela França direcionadas para seus setores extracapitalistas (internamente ou coloniais), poderiam beneficiar indiretamente à Alemanha através de suas exportações de meios de produção direcionadas à França.
3) Antes da Primeira Guerra Mundial, um país como a Alemanha podia comerciar, ainda que com dificuldades crescentes, com as colônias francesas e inglesas.
Destas considerações, no nosso entendimento, decorre que os dados fornecidos pela contribuição não prestam em nada para apoiar a tese defendida. Por enquanto, esses dados nos dão a oportunidade de examinar mais detidamente o caso dos Estados Unidos, país que conheceu a maior expansão durante o período considerado, diretamente ligada aos mercados extracapitalistas, internos, anexados (uma forma radical de colonização) ou coloniais.
Depois da destruição da economia escravista dos Estados do Sul pela Guerra Civil (1861-1865), o capitalismo expandiu-se durante os trinta anos seguintes para o Oeste americano através de um processo contínuo que pode ser resumido da seguinte forma: massacres e limpeza étnica da população indígena; estabelecimento de uma economia pré-capitalista através da venda e da concessão de territórios, anteriormente anexados pelo governo, a colonos e pequenos criadores; destruição desta economia extracapitalista por meio da dívida, da fraude e da violência; extensão da economia capitalista. Em 1890, o Órgão Americano do recenseamento proclamou "a Fronteira" interna fechada. Em 1893, os Estados Unidos conheceram uma forte depressão e, durante os anos 1890, a burguesia americana estava cada vez mais preocupada com a necessidade de expandir suas fronteiras nacionais. Em 1898, um documento do Departamento de Estado americano explicava: "Parece existir um acordo geral sobre o fato que, se quisermos manter o emprego dos operários e artesãos americanos, todos os anos iremos nos encontrar com um excedente crescente de produtos manufaturados destinados aos mercados estrangeiros. A expansão do consumo nos mercados estrangeiros dos produtos das nossas fábricas e oficinas torna-se um sério problema comercial, como também político" [4]. Isso foi acompanhado de uma rápida expansão imperialista: Cuba (1898), Havaí (1898), Filipinas (1899), a zona do canal do Panamá (1903). Em 1900, Albert Beveridge (um dentre os principais defensores da política imperialista americana) declarou no Senado: "As Filipinas são nossas para sempre (...). E atrás das Filipinas, há os mercados ilimitados da China (...) O Pacifico é nosso oceano (...). Onde encontrar os consumidores para nossos excedentes? A geografia nos dá a resposta. A China é o nosso cliente natural" [5].
Com o que são feitas, realmente, as trocas com as zonas extracapitalistas?
Pode-se afirmar, como faz a contribuição, que "os países desenvolvidos exportam principalmente bens de produção ao Terceiro Mundo, bens manufaturados, e importam os bens de consumo"?
Aqui nos deparamos novamente com o problema do método que é duplo:
1) Devemos reconhecer: não sabemos se a esfera das relações de produção unicamente capitalistas exportou em direção da esfera pré-capitalista, mais ou menos produtos do setor I (meios de produção) ou de produtos do setor II (meios de consumo). Não sabemos também qual era a opinião de Rosa sobre esta questão. Não conseguimos também encontrar em A acumulação do capital uma só passagem afirmando a ideia que a contribuição da OPOP atribui à autora desta obra: "Todo o raciocínio de Rosa conduz a um "déficit dos meios de produção" e a um "excedente invendável dos meios de consumo"". Na realidade, encontramos duas frases com termos idênticos, mas que não têm nada a ver com esta ideia da citação da contribuição da OPOP. Estão localizadas nas seguintes passagens:
Com efeito, estas duas frases são relativas aos comentários de Rosa depois de ela ter feito alterações no esquema de Marx pelas necessidades de uma polêmica com Tougan Baranowsky. Trata-se de hipóteses de trabalho totalmente alheias ao assunto considerado pela contribuição da OPOP. Como o autor da referida contribuição pôde se enganar a tal ponto? Parece que estava distraído, que pensava em outra coisa quando redigiu essa passagem.
2) O segundo problema é relativo à utilização do termo "Terceiro Mundo" em lugar de "esfera extracapitalista". Com efeito, este termo foi cunhado, para designar um conjunto de países "subdesenvolvidos", em 1952, isto é, no início dos 10 últimos anos em que os mercados extracapitalistas se esgotaram totalmente. Por conta disso, a afirmação da contribuição considerando as importações e exportações entre estes países e a esfera das relações capitalistas parece pouco representativa e pertinente do ponto de vista considerado.
Uma grave subestimação da lei da queda da taxa de lucro e dos ciclos econômicos para explicar as crises?
Por parte de Rosa haveria "uma grave subestimação da lei da baixa tendencial da taxa de lucro e dos ciclos econômicos para explicar as crises".
O que comprova esta pretendida subestimação da queda da taxa de lucro? Será que é o fato de que Marx ter escrito que "É de todas as leis da economia política moderna, a mais importante." (Princípios de uma crítica da economia política (1857-1858); II O Capital - Queda da taxa de lucro; Ed La Pléyade II, p 271 y 272). (Tradução nossa).
Encontramos aqui o mesmo problema já evocado que consiste em reter de Marx unicamente o que vai em direção da tese defendida. Quando na realidade, Marx não diz só isso. Em Teorias da Mais-valia, ele considera a superprodução de mercadorias como o problema fundamental das crises: "... o modo de produção burguês contenha limite para o livre desenvolvimento das forças produtivas, limite que vem à tona nas crises e em outras manifestações como a superprodução - o fenômeno fundamental das crises" (Teorias da Mais-Valia. São Paulo: DIFEL, 1980, Cap. XVII, 14, p. 962).
Dito isso, nosso objetivo não é de participar de um duelo de citações, mas, ao tomá-las em conta, como expressões reais de ideias significativas do autor, tentar abraçar de maneira não dogmática o conjunto das condições reais do desenvolvimento do capitalismo. Sobre esta questão, os argumentos que já demos e que destacam a importância do mercado, constituem, segundo nossa opinião, uma reposta.
Continuemos com a questão do caráter cíclico das crises a propósito da qual a contribuição explicita: "Na verdade, é o peso do capital fixo que está na base dos ciclos decenais e estes no seio de sua análise da acumulação e das crises". Em seguida dessa vem uma outra citação de Marx apoiando tal afirmação. Quando, como Rosa, consideramos que a abertura da crise depende essencialmente dos mercados e que, como Marx, considerou que "o mercado e a produção são fatores não idênticos" (Matériaux, Les crises. La Pléiade - Economie II, p. 489 - Tradução nossa), assim, temos de associar a irrupção da crise à saturação do mercado e não exclusivamente ao ciclo de renovação do capital fixo:
A duração dos ciclos da crise não pode ser periódica visto que a saturação momentânea do mercado não obedece a nenhuma lei.
Quanto à duração observada do ciclo de surgimento das crises, Engels necessitou fazer correção, quando se encarregou de publicar O capital, da ideia seguinte exposta por Marx no livro III: "Esse ciclo industrial é de tal natureza que o mesmo ciclo, uma vez dado o primeiro impulso, tem de reproduzir-se periodicamente" (O Capital, Volume III Tomo I, Pg. 28 Ed. Abril Cultural, 1984).
Engels efetua esta correção dentro de uma nota que vale a pena citar na íntegra, visto que ela traz muitos elementos da realidade concreta da época, nem sempre percebidos neste debate:
É importante assinalar que Engels justifica o fim das crises periódicas baseando-se em considerações não relativas à produção, mas aos mercados, a concorrência, etc.
Apoiando-se em um gráfico que permite analisar a correlação entre a evolução e a ocorrência das recessões da economia americana no período 1948-2007 [6], a contribuição da OPOP conclui esta parte da maneira seguinte: "Como Marx havia analisado, a vida do capitalismo é bem ritmada por uma sucessão de ciclos mais ou menos regulares; cada um deles é composto por uma fase de alta e depois de baixa da taxa de lucro, em meio à qual estoura uma nova crise. Isso também desmente de maneira formal a tese de Rosa que faz depender as crises e a evolução da taxa de lucro essencialmente da saturação dos mercados".
Não sabíamos que Rosa condicionava a evolução da taxa de lucro à saturação dos mercados! Na realidade, é a quantidade de mais-valia realizada que é prejudicada ao mesmo tempo pela insuficiência dos mercados e da taxa de lucro, esta última sendo totalmente independente da situação do mercado. Segundo nossa opinião, a contribuição da OPOP é muito precipitada em concluir que a teoria que defende seria verificada pela realidade demonstrada através do gráfico.
Contra esta conclusão, queremos apresentar as seguintes objeções:
1) O período não abrangido pelo gráfico incluído na contribuição não corrobora esta conclusão:
2) Ao examinar o gráfico da contribuição, pode-se encontrar elementos contrários à conclusão da contribuição;
Será que a realidade refutou as teses de Rosa Luxemburgo quanto à entrada do capitalismo em decadência?
"Rosa Luxemburgo retomou a questão da entrada em decadência do capitalismo na sequência da fase imperialista para a partilha das "zonas do mundo ainda não capitalistas", durante o último terço da fase ascendente do capitalismo. Em consonância com essa análise, muitas correntes e frações políticas se sentiram inspiradas para anunciar o fim do sistema capitalista após a Primeira Guerra Mundial"
A questão não é de saber como é interpretada a teoria de Rosa Luxemburgo, mas o que ela diz realmente. Rosa nunca disse que o capitalismo ia desaparecer depois da Primeira Guerra Mundial.
O que ela realmente disse a partir de 1913? Que a sociedade ia entrar numa nova fase, aquela de seu declínio histórico, expressando-se através de convulsões sociais, colocando na ordem do dia a alternativa "socialismo ou barbárie". Constatação essa feita pelo conjunto dos revolucionários quando da fundação da Internacional Comunista em 1919, qualquer que fosse sua análise do imperialismo. Rosa se expressava nesses termos:
Não se deve confundir o estágio mundial quando as diferentes potências do mundo concluíram a partilha dos territórios extracapitalistas (antes da Primeira Guerra Mundial), visto que essa parcela "Geograficamente [..] abrangem, mesmo hoje, vastas regiões da Terra" [7] e este outro estágio mundial, quando a esfera extracapitalista acabou de ser integrada na sua quase totalidade às relações capitalistas (final dos anos 1950).
O primeiro estágio é diretamente o causador da Primeira Guerra Mundial, análise sobre a qual convergiram Rosa Luxemburgo e Lênin. O segundo, abre um período sem volta de endividamento crescente por parte do capitalismo (para compensar a ausência de mercados solventes extracapitalistas) para sobreviver, mas que só faz adiar o fim.
Entre os dois, encontra-se um período de convulsões (crise de 1929, depressão dos anos trinta e Segunda Guerra Mundial) que diretamente é a conseqüência de uma insuficiência dos mercados extracapitalistas em relação às necessidades da produção. Durante a fase de depressão dos anos 1930, estes mercados foram relativamente pouco conquistados pelas relações capitalistas. Sua participação na prosperidade do período pós Segunda Guerra Mundial é essencialmente devida aos progressos da indústria capitalista que permitiu obter mais lucro decorrente de sua exploração [8]. A fase de prosperidade dos anos 1950 e 60 [9], que aparece como uma exceção na decadência do capitalismo [10], por um lado, corresponde a um desenvolvimento "sadio" apoiando-se sobre a exploração dos últimos mercados extracapitalistas; por outro lado, significa um desenvolvimento artificial, uma transgressão à lei do valor, mas para o qual, um dia, deverá ser pago a um preço devastador [11]. O capitalismo mundial já se engajou num período de reajuste brutal.
A nosso ver, não tem nada nesta análise que constitua "uma bela confissão de que grande parte das previsões luxemburguistas anteriores se revelaram falsas". Na realidade, sem dúvida, não é nada menos que a barbárie que reina sobre o mundo desde o fracasso da onda revolucionaria de 1917-23. É essa situação que faz do século XX o século mais bárbaro nunca conhecido pela humanidade.
Há uma perspectiva sobre a qual Rosa Luxemburgo se enganou efetivamente, quando previu que um mundo privado de mercados extracapitalistas (e, pois, conforme o esquema da acumulação desenvolvido por Marx) significaria a quebra das relações de produção (e não a fatalidade de sua destruição pelo proletariado revolucionário):
Tal erro na previsão da revolucionária não é conseqüência de uma insuficiência intrínseca da sua teoria, mas resultado da dificuldade de prever até que ponto a burguesia seria capaz de transgredir as próprias leis de seu sistema, como a de um endividamento sem reembolso possível com a finalidade de manter a acumulação e adiar o momento do naufrágio.
Mas a maior perspicácia de seu julgamento político reside no fato de que ela foi capaz de evidenciar que a revolta das forças produtivas aconteceria antes do último estágio do imperialismo, ou seja, a integração da última parcela de mercado extracapitalista às relações de produção capitalistas:
Antes de concluir, devemos examinar uma última crítica segundo a qual o método de Rosa Luxemburgo defendido em A acumulação do capital e sua visão da decadência teriam levado ao desaparecimento de organizações revolucionárias ou a previsões totalmente defeituosas como teria sido o caso de Internationalisme (Esquerda comunista da França) em 1952. Segundo a passagem a seguir, colhida a partir de citações de Internationalisme n° 46, publicado em 1952, os mercados extracapitalistas estando esgotados, o sistema viveria uma situação de crise permanente com a perspectiva de iminência da Guerra Mundial.
Isso é uma deformação das posições de Internationalisme. Na realidade, Internationalisme não considerava, nessa época, os mercados extracapitalistas como esgotados e, sobretudo, não fazia decorrer mecanicamente a perspectiva de guerra desta situação. Na realidade, a contribuição da OPOP recuperou na Internet, sem se dar conta disso, um parágrafo que é nada menos que uma contrafação destinada a desnaturar o pensamento de Internationalisme através de uma manipulação grosseira [14]. Achamos importante, em relação à clareza da discussão, evitar se inserir em falsos debates.
A conclusão da contribuição da OPOP termina com essas palavras: "A raiz dessa incompreensão [de Rosa Luxemburgo] está nos seus pressupostos teóricos, tema que será tratado e analisado num momento posterior". É com uma grande satisfação que tomaremos conhecimento desta futura publicação que, esperamos, seja publicada brevemente e, que desejamos, responda nossas críticas.
[1] A queda da taxa de lucro obriga o capitalista a procurar permanentemente compensar a redução do lucro extraído de cada mercadoria pela venda de um maior número delas, favorecendo assim o esgotamento dos mercados. Reciprocamente, o mercado, quando estiver esgotado, não vai mais permitir tal compensação, o que implica na impossibilidade de aliviar os efeitos da queda da taxa de lucro.
[2] Um número importante de contribuições sobre este tema já foi publicado desde a saída de A acumulação o capital. Elas são essencialmente provenientes do meio revolucionário e de inúmeras "personalidades de cultura marxista", militantes de organizações da esquerda do capital e que muitas vezes são motivadas por sua glória pessoal ou por estarem a serviço de uma ideologia entre as numerosas do capitalismo: democrática, reformista ou capitalista de estado (stalinista ou trotskista). Duas boas obras (escritas por revolucionários) permitem uma boa visão geral das contribuições essenciais sobre este assunto e de suas especificidades e diferenças: A Anticrítica de Rosa Luxemburgo (1913) e Crise e teoria das crises de Paul Mattick (1974 ; Cap Os epígonos), defensor da tese da queda da taxa de lucro. Os textos em defesa da tese de Rosa Luxemburgo são menos conhecidos que aqueles em defesa da tese da queda da taxa de lucro. Entre eles existem alguns escritos da Esquerda Comunista da França (em que coexistiam as duas teses) e o elogio ao método empregado por Rosa Luxemburgo feito por Georg Lukács em História e consciência de classe durante o curto período em que foi um militante revolucionário, antes de ter renegado sua obra na sua submissão ao stalinismo. Citamos uma passagem desta obra: "Esta rejeição de todo o problema está estreitamente ligada ao fato dos críticos de Rosa Luxemburgo terem passado distraidamente à margem da parte decisiva do livro (As condições históricas da acumulação) e, coerentes consigo mesmos, puseram a questão sob a seguinte fórmula: serão aceitas as fórmulas de Marx, que se baseiam no princípio isolador, de uma sociedade composta unicamente por capitalistas e por proletários, princípio esse admitido por preocupação metodológica? E qual a melhor interpretação delas? Esse princípio não era mais do que uma hipótese metodológica de Marx, a partir da qual se devia progredir para pôr a questão quanto à totalidade da sociedade, e foi isso que escapou completamente aos críticos. Escapou-lhes que o próprio Marx transpôs esse passo no primeiro volume d'O Capital a propósito daquilo a que se chama a acumulação primitiva. Ocultaram - consciente ou inconscientemente - o fato de, justamente em relação a esta questão, O Capital ser só um fragmento interrompido precisamente no ponto em que este problema deve ser levantado, e que, consequentemente, Rosa Luxemburgo se limitou a levar até ao fim, no mesmo sentido, este fragmento, completando-o em conformidade com o espírito de Marx." (História e Consciência de Classe; Elfos editora, 1989, 2ed. p. 45)
[3] L'accumulation du capital. Tome I. Edt. François Maspero.
[4] Citado em Howard Zinn, History of American People. Tradução nossa.
[5] Idem
[6] Gráfico disponível através do link [46].
[7] Rosa Luxemburgo - A Acumulação do Capital - Vol. II - Cap. XXXI - Tarifas protecionistas e Acumulação - pg. 83
[8] Um território ainda não conquistado pelas relações de produção capitalistas constitui um mercado potencial, mas não necessariamente imediatamente lucrativo. Neste caso, sua exploração será adiada até que estejam presentes condições mais favoráveis para a lucratividade de sua exploração. Essas condições consideram os custos de produção das mercadorias, dos transportes ou ainda o modo de administração do território considerado (supressão da forma colonial de dominação, muito dispendiosa).
[9] Esta fase foi precedida pela reconstrução das economias europeias e japonesas destruídas pela guerra. Seu financiamento foi assumido pelas doações e empréstimos consentidos pelo Estado americano (o plano Marshall) que, para isso, teve que subtrair fundos das suas reservas. São aquelas reservas que chamamos "fundo de guerra" no seio do texto de uma reunião pública, talvez de maneira não adaptada. É óbvio que esta poupança do Estado americano, produto de ciclos anteriores de acumulação, não tinha nada de premeditada para futuramente servir de estímulo à atividade econômica, ao contrário da interpretação irônica feita pela contribuição da OPOP.
[10] É preciso assinalar que os períodos de decadência das formações sociais anteriores ao capitalismo conheceram, elas também, fases de estagnação (até recuperação) devidas aos esforços da classe dominante para resistir ao declínio.
[11] Sobre esta questão, ler os vários artigos do debate interno da CCI, publicados na Revista internacional N° 133, 135, 136, 138 e 141.
[12] (Rosa Luxemburgo - A Acumulação do Capital - Vol. II - Anticrítica - pg.113 Ed. Abril Cultural.)
[13] (Idem pg.178)
[14] A nota 1 da contribuição da OPOP avisa que esta é "produto de uma troca de ideias e opiniões com um militante de outro continente". Será que este militante tem um laço com as passagens citadas que são resultado de recortes "sem escrúpulos" efetuados sucessivamente nas páginas 9, 11, 17 e 1 no seio de diferentes exposições apresentadas nesta revista?
A primeira passagem citada, "O desaparecimento dos mercados extracapitalistas provoca, por conseguinte, uma crise permanente" é imediatamente seguida, em Internationalisme, pela frase seguinte que lhe confere todo seu sentido, mas que não é citada na passagem considerada: "Rosa Luxemburgo demonstra por outro lado que o ponto indicativo de abertura desta crise se inicia bem antes que este desaparecimento se torne absoluto". Em outros termos, pela teoria de Rosa Luxemburgo como para Internationalisme, a situação de crise que prevalece no momento da redação deste artigo não implica em nada o esgotamento dos mercados extracapitalistas, "pois a crise tem início bem antes deste prazo".
A ideia segundo a qual "o caráter inevitável e iminente da guerra que decorreria do esgotamento dos mercados extracapitalistas" na realidade não é uma ideia do grupo Internationalisme como tal, mas de alguns companheiros no seu interior com os quais a discussão tinha se iniciado. É o que demonstra a passagem seguinte de Internationalisme reproduzido na sua integralidade, incluindo assim as passagens que foram intencionalmente eliminados (assinalados em negrito) e que são os mais importantes em tamanho e pelo significado: "Para alguns de nossos camaradas, de fato, a perspectiva da guerra, que nunca deixaram de considerar como iminente, está chegando à sua realização. Nós vivemos num estado de guerra iminente e a questão que é colocada para analisar não é de estudar os fatores que empurrariam à conflagração mundial - esses fatores já estão presentes e atuando - mas, pelo contrário, examinar porque a guerra mundial ainda não foi deflagrada em escala mundial" Esta alteração do pensamento de Internationalisme tende a desprestigiar a posição defendida por Rosa Luxemburgo e Internationalisme, visto que a Terceira Guerra Mundial, que deveria ser a conseqüência da saturação dos mercados, não ocorreu.
Rosa Luxemburgo redigiu sua obra A Acumulação do Capital porque sua leitura de Marx não lhe havia permitido compreender nem "o problema da produção capitalista nas suas relações concretas" nem "seus limites objetivos históricos". Apoiando-se sobre o que ela considerava ser "as contradições do esquema de reprodução ampliada", tal como nos livros II e III de O Capital, ela desenvolveu outra análise da expansão capitalista, diferente daquela elaborada por Marx. [1] Uma leitura correta deste último mostra claramente os múltiplos erros de Rosa acerca da análise econômica de Marx. É o que tentaremos evidenciar, ainda que de maneira sucinta, no presente artigo.
Para Rosa, a esfera propriamente capitalista só pode assegurar de fato a reprodução simples, mas não a reprodução ampliada. O capitalismo puro não comporta a demanda social que lhe permitiria realizar o objetivo de sua acumulação ampliada: a capitalização da mais-valia adicional. Dito de outra forma, ele é confrontado com uma superprodução permanente em relação aos seus meios internos de realização. A resposta de Rosa é que essa demanda seria fornecida "de fora" por compradores. Na sua obra A Acumulação do Capital, Rosa prognostica:
Ora, os tais meios existiam em quantidade limitada e foram arruinados progressivamente. Isso engendra, ainda segundo Rosa, crises periódicas de superprodução que o capitalismo supera por meio de uma extensão do mercado mundial e de suas relações de produção dependentes da esfera extracapitalista. Entretanto, a certo momento, essa esfera torna-se relativamente insuficiente em ralação às necessidades da acumulação à escala mundial. Essa inflexão levaria à abertura da fase de decadência do capitalismo, inaugurada pelo primeiro conflito mundial. Rosa dizia que as tais zonas extracapitalistas, embora ainda fossem geograficamente abundantes no início do século XX, não representavam mais um mercado suficiente, em valor, para assegurar uma expansão normal do capitalismo tal como existira no século XIX. Era esse então, para Rosa, o fundamento econômico da entrada do capitalismo em decadência no momento da Primeira Guerra Mundial.
Na lógica econômica de Rosa, quanto mais o capitalismo substituísse os modos de produção anteriores mais se tornariam estreitos os limites do mercado e mais problemas causariam à necessidade de expansão das empresas capitalistas existentes. Expandir ou ampliar, portanto, era algo que o capitalismo só poderia fazer para fora de si mesmo, açambarcando mercados de "fora do capitalismo", ou, na sua terminologia, extracapitalistas. Só que à medida que fazia isso, estaria cavando o seu próprio fim, já que chegaria o momento em que as travas para o crescimento seriam maiores do que a sua capacidade de manter a expansão. Era esse freio no crescimento das forças produtivas o que caracterizaria a decadência do capitalismo. O desmoronamento catastrófico do sistema capitalista seria, dessa maneira, irreversível, já que seria impossível a continuidade da acumulação, sobretudo à medida que aumentasse o número de países capitalistas na disputa por territórios de acumulação. A situação ficaria cada vez mais grave à medida que ficassem restritos os territórios que ainda estavam disponíveis para a acumulação capitalista, o que levaria a lutas mais violentas e a catástrofes econômicas e políticas. [2]
Essa nova visão da dinâmica e das contradições do capitalismo constituiria, segundo Rosa, a solução das contradições existentes na obra de Marx. Mas o desenvolvimento do capitalismo na sua lógica econômica não se deu segundo os pressupostos teóricos da revolucionária alemã. Não apenas cada uma das teses de Rosa é contrária à análise desenvolvida pelos fundadores do marxismo, mas também elas não correspondem à realidade do desenvolvimento histórico do sistema capitalista. Teórica e empiricamente, a concepção de Rosa tem-se mostrado inadequada para compreender a dinâmica e as contradições do capitalismo. Jogar alguma luz sobre essa discussão é o que nos propomos a fazer daqui por diante neste artigo.
Em Rosa, como dissemos, apenas os mercados extracapitalistas ofereceriam a possibilidade de realizar a mais-valia necessária à ampliação do capitalismo. Essa é uma de suas mais caras teses acerca do desenvolvimento econômico:
Rosa ilustra aqui sua incompreensão das principais razões pelas quais Marx explicitamente retirou de sua análise as trocas com os setores não-capitalistas, tendo ele em sua argumentação lógica considerado esse sistema exclusivamente composto de operários e capitalistas. Isso não decorre de uma simples razão metodológica, mas, antes de tudo, porque ele demonstrou que essas trocas não são necessárias para compreender a acumulação ampliada; nem são verdadeiramente indispensáveis, senão na fase da acumulação primitiva, "da gênese do capital"; e que a crise, a "tendência à superprodução", não advém, de modo algum, da insuficiência dos mercados extracapitalistas, mas, antes de tudo, "da relação imediata do capital" no seio do capitalismo puro.
Efetivamente, para ampliar, o capitalismo tem a necessidade de encontrar à disposição sobre o seu próprio mercado todos os meios materiais modernos e eficientes necessários para a sua ampliação. Dito de outra forma, as vendas extracapitalistas correspondem a uma saída do circuito de acumulação, e as compras na esfera da pequena produção mercantil são incapazes de lhe fornecer todos os meios materiais novos e competitivos necessários ao seu crescimento ampliado. São essas as principais razões pelas quais Marx excluiu categoricamente os mercados extracapitalistas de sua análise.
Com efeito, se o capitalismo vende suas mercadorias fora de sua esfera vai dispor do dinheiro correspondente àquelas vendas, mas deixa de dispor dos meios materiais necessários para a sua expansão (bens de consumo, máquinas, meios de transporte, etc.). Esses não estariam mais disponíveis, pois seriam consumidos ou incorporados na esfera não capitalista. Eles seriam, de resto, de modo geral, bens baratos, máquinas cujas patentes já teriam caído no domínio público e, sobretudo, bens que respondem à demanda local e não às necessidades materiais de expansão do capitalismo, como reconhece a própria Rosa Luxemburgo.
O capitalismo não pode, por conseguinte, encontrar nessas mercadorias, já obsoletas e concebidas para responder à demanda dos pequenos produtores mercantis, os bens modernos e tecnologicamente avançados necessários à sua ampliação. Nenhum fato econômico, nenhum processo histórico, nenhuma passagem nem de Marx nem de Rosa atestam, de resto, qualquer movimento de retorno dessas mercadorias inicialmente vendidas na esfera extracapitalista de volta ao "capitalismo puro" a fim de lhe assegurar os meios materiais necessários ao seu desenvolvimento.
Seria então a produção localizada da esfera extracapitalista que poderia oferecer os meios materiais necessários à produção ampliada do capitalismo? Em outras palavras, o dinheiro proveniente da venda de mercadorias sobre esses mercados serviria então para comprar os meios materiais necessários para a ampliação do capitalismo puro. É o que Rosa tenta argumentar no capítulo 26 de sua obra. Sem dúvida é inegável que o capitalismo encontrou certos bens úteis à sua ampliação: matérias-primas, bens de consumo e, sobretudo, a mão-de-obra adicional. Entretanto, contrariamente ao que pensava Rosa, numerosos bens foram rapidamente produzidos localmente por empresas capitalistas empregando assalariados. A troca, por conseguinte, tornou-se rapidamente interna ao capitalismo puro. No entanto, mais importante ainda, para a particularidade da ampliação da acumulação, foi que passou também a se tratar de bens modernos e eficientes.
Certamente a esfera da pequena produção mercantil era incapaz de produzir tal proeza. Na verdade, é difícil ver artesãos e camponeses aprovisionarem linhas de montagem robotizadas, máquinas em grande número e os meios de transportes modernos que pudessem levar à ampliação da acumulação do capitalismo puro. Essa esfera do comércio se caracteriza por uma venda de bens de produção e compra de bens de consumo, ou seja, é o inverso do que postula a teoria de Rosa, como mostraremos mais adiante.
Uma primeira conclusão se impõe: Rosa Luxemburgo faz da demanda social externa ao capitalismo puro o motor de sua acumulação, e da produção local a fonte dos meios materiais da reprodução ampliada. Ora, Marx demonstra que essas vendas correspondem a uma saída do circuito de acumulação e que o capitalismo não pode encontrar no seio da pequena produção mercantil os meios materiais modernos e eficientes requeridos para a sua ampliação. Tais são os fundamentos teóricos da exclusão dessa esfera por Marx. A teoria de Rosa Luxemburgo, nesse aspecto, não oferece nenhuma análise coerente da acumulação ampliada, nem uma explicação satisfatória da origem de seus meios materiais.
Seguindo Rosa, os defensores da visão luxemburguista da acumulação apresentam a sua capacidade suposta de explicar a história do capitalismo de modo coerente: sua expansão, a destruição e integração das zonas extracapitalistas, o imperialismo, etc. Ela dizia que "o esquema de Marx da reprodução ampliada não conseguia nos explicar o processo da acumulação tal como existiu na realidade histórica". [5] Não apenas essa coerência prometida por Rosa é bastante peculiar, mas a história real do desenvolvimento capitalista traz um contundente desmentido das principais teses originadas por Rosa Luxemburgo em sua análise. Vejamos alguns desses desmentidos:
Conceber, como defende Marx, que as vendas extracapitalistas correspondem a uma saída do circuito de acumulação, permite compreender porque foram os países que dispunham de um vasto império colonial que conheceram as taxas de crescimento mais fracas, enquanto aqueles que vendiam nos mercados capitalistas tiveram taxas bem superiores. Com efeito, ao invés de estimular a acumulação, como pensava Rosa, e ainda pensam muitos dos seus seguidores, as vendas nos mercados extracapitalistas a freiam. Isso se verificou em toda a história do capitalismo e, em particular, nos momentos onde as colônias jogavam, ou deveriam jogar, o papel mais importante.
No século XIX, quando houve uma maior intervenção dos mercados coloniais, os países capitalistas não-coloniais conheceram crescimento quase duas vezes mais rápido que as potências coloniais. As cifras do crescimento do PIB por habitante entre 1870 e 1913 são: Países coloniais: Grã-Bretanha (1,01%), França (1,45%), Holanda (0,9%), Espanha (1,15%), Portugal (0,52%). Países não- coloniais: Estados Unidos (1,82%), Alemanha (1,63%), Suécia (1,46%), Suíça (1,55%), Dinamarca (1,57%).[6] A média das taxas de crescimento de cada um dos dois grupos mostra que os países coloniais conheceram um crescimento quase duas vezes mais fraco do que os outros. A realidade, então, corresponde à visão de Marx da acumulação e é contrária à teoria econômica de Rosa Luxemburgo.
Todo o raciocínio de Rosa conduz a um "déficit dos meios de produção" e a um "excedente invendável dos meios de consumo". Ela conclui, por conseguinte, que são estes últimos que devem ser escoados para os mercados extracapitalistas e por lá serem comprados. Ora, os países desenvolvidos exportam principalmente bens de produção ao Terceiro Mundo, bens manufaturados, e importam os bens de consumo. Em boa parte do século XX, as exportações de quase todos os países do Terceiro Mundo foram em absoluta maioria compostas por produtos primários, ou seja, exatamente o contrário do que previa a teoria de Rosa. Isso vem formalmente desmentir a sua tentativa de fundar no comércio com a esfera da pequena produção mercantil a origem dos meios materiais necessários para a ampliação do capitalismo puro. Mais uma vez o esquema teórico pensado pela revolucionária Rosa entrou em contraposição com o desenvolvimento histórico real.
Ao colocar a origem da dinâmica do capitalismo na demanda dos mercados extracapitalistas, Rosa seria levada a uma grave subestimação da importância da lei da baixa tendencial da taxa de lucro e a negar qualquer noção de ciclos econômicos. Assim, dizia ela, em Reforma Social ou Revolução, que "correria muita água debaixo da ponte antes que a baixa da taxa de lucro viesse provocar o desmoronamento do capitalismo" e que
Ora, nada mais equivocado, segundo o que nos apontaria o próprio Marx, que mostraria tudo isso de forma muito diferente. A lei da queda tendencial da taxa de lucro foi colocada por Marx como um elemento central para o entendimento da dinâmica em que se desenvolve o capitalismo. Com efeito, ele considerou a lei da baixa tendencial da taxa de lucro como
Na verdade, é o peso do capital fixo que está na base dos ciclos decenais e estes no seio de sua análise da acumulação e das crises:
Como vimos, os ciclos decenais, considerados e estudados por Marx, nada tinham de "fato puramente exterior", e muito menos de "acaso". Os 25 ciclos econômicos em dois séculos de capitalismo mostram formalmente a invalidação dessa tese de Rosa. Marx identificou e analisou sete ciclos decenais durante o seu período de vida. A essas evidências históricas mais elementares, o gráfico seguinte busca fazer a demonstração da plena operacionalidade da lei da baixa tendencial da taxa de lucro para compreender a dinâmica do capitalismo, suas contradições e suas crises cíclicas: [10]
US rate of profit and recessions 1948-2007 q3
Como Marx havia analisado, a vida do capitalismo é bem ritmada por uma sucessão de ciclos mais ou menos regulares; cada um deles é composto por uma fase de alta e depois de baixa da taxa de lucro, em meio à qual estoura uma nova crise. Isso também desmente de maneira formal a tese de Rosa que faz depender as crises e a evolução da taxa de lucro essencialmente da saturação dos mercados. Na realidade, como poderíamos explicar a retomada do crescimento da taxa de lucro desde 1982, quando os discípulos de Rosa sustentam que os mercados extracapitalistas estão saturados desde o fim dos anos 1960 e que hoje nós estaríamos perante um "esgotamento total dos mercados extracapitalistas"? [11] Tudo isso remonta, mais uma vez, a uma oposição radical entre as análises de Marx e a de Rosa, tal como temos demonstrado.
4) Análise econômica e decadência do capitalismo
Os discípulos de Rosa gostam de salientar que a sua análise guarda até hoje uma grande coerência para fundar toda uma série de posições políticas e, notadamente, a mais importante dentre elas: a decadência do capitalismo. Para Rosa, o socialismo deveria fundamentar-se não na "injustiça do mundo atual", mas justamente nessa decadência que seria uma espécie de "viga mestre" da necessidade histórica objetiva. O que ela buscava, naquele momento, era uma fundamentação econômica rigorosa para justificar o colapso inevitável do capitalismo. Apesar de querer fazer pender a balança em favor do núcleo revolucionário do marxismo, em contraposição às tendências reformistas da época, a realidade, outra vez, mostrou-se contrária às teses da revolucionária alemã.
Rosa Luxemburgo retomou a questão da entrada em decadência do capitalismo na sequência da fase imperialista para a partilha das "zonas do mundo ainda não capitalistas", durante o último terço da fase ascendente do capitalismo. Em consonância com essa análise, muitas correntes e frações políticas se sentiram inspiradas para anunciar o fim do sistema capitalista após a Primeira Guerra Mundial. Muitas inscreveram, infelizmente, o seu próprio fim adotando tal visão catastrofista; outros repetiram o mesmo erro estabelecendo um diagnóstico análogo ao momento da crise de 1929. Alguns chegaram a prever a eclosão da terceira guerra mundial, em 1952, a partir desse mesmo tipo de constatação:
Essa expressão do catastrofismo, que era filha da trajetória política e econômica de Rosa, foi enunciada no início do que se tornaria a fase mais dinâmica e próspera do capitalismo. Isso não é surpreendente, dado que, como vimos anteriormente, a visão luxemburguista tem engendrado frequentemente análises e previsões bastantes distantes do que se dá na realidade.
Hoje em dia, não apenas os herdeiros da Esquerda Comunista Francesa não hesitam em recuar um século na mesma constatação de "esgotamento total dos mercados extracapitalistas", mas fazem desses mercados repetidamente anunciados como saturados no passado uma das duas "causas do período de prosperidade consecutivo à Segunda Guerra Mundial".
Essa é, sem dúvida, uma bela confissão de que grande parte das previsões luxemburguistas anteriores se revelaram falsas. A citação acima é bastante singular se levarmos em consideração que os mercados já estavam saturados desde a Primeira Guerra Mundial. Com efeito, não é mais o período imperialista de antes de 1914 que assinala a saturação relativa dos mercados extracapitalistas, como defendia Rosa, mas a crise de 1929 que passou a ser esse marco. Mas então, por qual magia essa insuficiência de mercados extracapitalistas, na base da mais grave crise de superprodução de toda a história do capitalismo, de repente pôde transformar-se em uma potente causa da mais longa e intensa fase de crescimento? Totalmente insuficiente em 1929, a esfera extracapitalista tornou-se subitamente um dos dois fundamentos da prosperidade no curso dos Trinta Gloriosos! Como poderia ter-se dado isso?
A magia referida era tão potente que o contexto do entre guerras era de muito fraco crescimento, enquanto que o dos Trinta Gloriosos foi de muito forte crescimento. Portanto, como a insuficiência de mercados no contexto de fraco crescimento de 1929 transformou-se miraculosamente em um fator de prosperidade de crescimento muito forte? Em outras palavras, apesar da "crise permanente e da entrada no período de guerras e de catástrofes", o capitalismo havia sido bastante inteligente para se preparar para períodos como tais constituindo uma base, uma reserva trinta anos mais cedo.[14]
Todos os revolucionários do mundo devem um respeito muito grande a Rosa Luxemburgo, por sua coragem, seu valor, a denúncia do reformismo, sua capacidade política e revolucionária e sua incansável atitude militante. No que diz respeito à sua tentativa de dar contornos reais às suas abstrações teóricas no terreno da economia, entretanto, muitos equívocos foram cometidos. Essas quatro discordâncias maiores entre a história do desenvolvimento capitalista e as teses e previsões decorrentes da análise econômica luxemburguista, dentre outras aqui não citadas, mostram que Rosa Luxemburgo apresentou a maior parte do tempo uma imagem contrária de uma realidade que ela foi incapaz de compreender quando tratou das relações econômicas do capitalismo. A raiz dessa incompreensão está nos seus pressupostos teóricos, tema que será tratado e analisado num momento posterior.
[1] LUXEMBURG, Rosa. A Acumulação do Capital/Anticrítica, Nova Cultural, 1985. O presente artigo é produto de uma troca de ideias e opiniões com um militante de outro continente.
[2] Anticrítica, ensaio publicado como apêndice de edições posteriores de A Acumulação do Capital.
[3] _____. Anticrítica.
[4] _____. A Acumulação do Capital.
[5] _____ . A Acumulação do Capital
[6] MADDISON, Angus. L'économie mondiale, OCDE, 2001, p.284
[7] LUXEMBURG, Rosa. Reforma Social ou Revolução? 1990, Global.
[8] MARX, Karl. Grundrisse. Apud Roman Rosdolsky: Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx, Contraponto,
2001.
[9] _____. O Capital, Livro II, segunda sessão - A rotação do capital, capítulo IX A rotação total do capital avançado. Os ciclos de rotação.
[10] "Estados Unidos - Taxa de lucro e recessões 1948-2007 [46]". Esse gráfico, que mostra a relação entre a taxa de lucros e as recessões nos Estados Unidos entre 1948 e 2007, evidencia muito claramente que a taxa de lucro esteve alta e estável entre 1947 e 1966, que ela caiu entre 1966 e 1982, e que ela voltou a subir entre 1982 e 2007. É sempre o seu ciclo que determina as fases de retomadas e recessões econômicas: entre cada recessão (em vermelho) há uma retomada e depois uma queda da taxa de lucro, e as recessões chegam sempre depois de um período de queda da taxa de lucro. Data de acesso: 11 de abril de 2009
[11] Revue Internationale, n°133, da Corrente Comunista Internacional. Les causes de la prospérité
consécutive à la Seconde Guerre mondiale (debate interno da CCI). Disponível em: https://fr.internationalism.org/rint133/les_causes_de_la_periode_de_prosperite_consecutive_a_la_seconde_guerre_mondiale.html [47] Data de acesso: 11 de abril de 2009.
[12] Internacionalismo, nº 46, Revista da Esquerda Comunista da França (1942-1952). Disponível em: www.collectif-smolny.org/article.php3?id_article=523 [48] Data de acesso: 10 de abril de 2009.
[13] Revue Internationale, n°133, da Corrente Comunista Internacional
[14] Os leitores poderão apreciar alguns dos argumentos desenvolvidos pela análise luxemburguista a respeito da decadência do capitalismo, como o da "utilização de um fundo de guerra resultante de ciclos passados de acumulação". Disponível em: https://pt.internationalism.org/icconline/2006_reunioes_publicas-2-decadencia-do-capitalismo [49] Data de acesso: 10 de abril de 2009.
Existe um acordo profundo entre a Corrente Comunista Internacional (CCI) e a Oposição Operária (OPOP) [1] quanto à existência de uma crise irreversível que abre a perspectiva de um desenvolvimento dos combates de classes em escala mundial e coloca a alternativa Socialismo ou barbárie. Entretanto existe também uma série de questões, relativas a essa crise e essa perspectiva, que merecem ser discutidas e esclarecidas: Qual é o significado de Outubro de 17 no que se refere precisamente à perspectiva revolucionaria atual? Será que a destruição revolucionária do capitalismo pelo proletariado já estava naquela época na ordem do dia da história? Será que realmente a contradição central que se manifesta hoje na crise do capitalismo é a queda da taxa de lucro, a superprodução sendo somente uma conseqüência desta? Será que tal analise corresponde realmente ao que salienta na obra de Marx?E com esta finalidade de esclarecimento através do debate que publicamos nossas objeções (a certos aspetos da visão desenvolvida por OPOP, apoiadas por numerosos elementos relativos ao período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial e àquela que lhe sucedeu, muitas vezes desconhecidos, para evidenciar a ruptura que este evento constituiu em todos os aspetos da vida social. É obvio que a participação, além da OPOP e da CCI é desejada, notadamente sob a forma de contribuições escritas que publicaremos.
[1] Revista Germinal. http\\opopssa.info
Em um artigo publicado em Germinal n°2, intitulado Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual? OPOP analisa o curso da crise econômica aberta iniciada nos finais dos anos sessenta. Conclui com a existência de uma crise irreversível que abre a perspectiva de um desenvolvimento dos combates de classe e coloca a alternativa socialismo ou barbárie: "Afirmamos aqui, categoricamente, que existem situações nas quais as contradições acumuladas foram tão longe que o capital não encontrava mais meios com os quais pudesse reverter uma crise (...) que coloca a questão da decisão num outro plano: no do embate entre o socialismo e a barbárie".
Estamos plenamente de acordo com essa alternativa a qual deve enfrentar o proletariado, socialismo ou barbárie. Esta supõe uma perspectiva de desenvolvimento da luta de classes resultante do caráter irremediável do agravamento da crise atual, assim descrita no artigo: "dada uma situação de crise grave-numa reconhecida situação revolucionária-, a burguesia já não pôde ou já não pode estar com a iniciativa e essa esteve ou venha a estar com um proletariado consciente, mobilizado, organizado e bem dirigido com base num projeto de classe, como foi o caso da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, então, em tais circunstâncias, é a classe operária a que pode ultrapassar a crise do modo de produção, mas dessa vez não para reabrir mais um ciclo de reprodução do capital, mas para declarar e praticar a sua ruptura inaugurando, pela via revolucionária, um outro modo de produção e de existência social".
Contudo, o artigo não é explícito sobre o significado de Outubro de 17 no que se refere precisamente para ilustrar a perspectiva. Pode afirmar-se que a revolução na Rússia, ponto mais avançado da onda revolucionária mundial contra a barbárie da Primeira Guerra Mundial, colocou já pela primeira vez na história, essa alternativa de socialismo ou barbárie? Uma resposta afirmativa significa, como pensamos nós, que a destruição revolucionária do capitalismo pelo proletariado já estava naquele momento na ordem do dia e era a resposta necessária às contradições doravante insuperáveis, desse sistema. A pergunta não é insignificante, pois permite datar o momento em que tais contradições, ao plasmar-se na guerra e na luta de classes e posteriormente na crise, implicaram mudanças fundamentais na vida do capitalismo, caracterizando a sua entrada em decadência: desenvolvimento do capitalismo de Estado e da sua dominação sobre o conjunto da sociedade, integração dos sindicatos no seu aparato, que passam a alistar-se na defesa da ordem dominante, impossibilidade de obtenção de reformas duradouras pelo proletariado etc. A compreensão que temos da dinâmica do capitalismo nos leva, portanto, a datar sua entrada em decadência com o início da Primeira Guerra Mundial[1] e a analisar a crise aberta nos finais dos anos sessenta como um novo episódio das convulsões do capitalismo que pela segunda vez na história, poderá ser a base material para um novo assalto revolucionário do proletariado mundial.
O estudo da crise atual, no artigo publicado pela OPOP, baseia-se na contradição do capitalismo, assinalada por Marx, ou seja, a tendência decrescente da taxa de lucro. Porém ao mesmo tempo, no beco sem saída atual do capitalismo, nega todo papel fundamental a outra contradição do sistema, que também Marx colocou em evidência: o esgotamento dos mercados extracapitalistas: "Aqueles analistas - em especial os que seguem a teoria Luxemburguista da acumulação do capital - que colocam o mercado como a premissa mais decisiva da acumulação não conseguem dar uma explicação convincente de porque o capital consegue abrir caminhos para a retomada do crescimento num quadro no qual o mercado se encontra mais restringido (...)A história das crises capitalistas não deixa dúvidas a esse respeito: a retomada dos ciclos de acumulação do modo produção capitalista se dá não pelo mercado em si mesmo, mas, também aqui, por um movimento que tem sua gênese na produção."
Temos reservas em relação a esse método de análise da crise que consiste em descartar peremptoriamente contradições essenciais do sistema (a saturação dos mercados) diferentes da tendência decrescente da taxa de lucro. Embora a obra de Marx ofereça uma grande riqueza, às vezes contraditória, sobre o tema das crises do capitalismo, querer solucionar tais contradições pela eliminação pura e simples de algum dos seus termos nos isola de uma compreensão do problema na sua totalidade.
O objetivo desse texto é precisamente ampliar a reflexão desses aspectos teóricos e históricos não tomados em conta explicitamente pelo o artigo Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual? Por isso, colocará em relevo a ruptura profunda e irreversível nos aspectos econômico, social e imperialista, que significou o início do primeiro conflito mundial, quer dizer a entrada do capitalismo em sua fase de decadência.
Mencionam-se geralmente as contradições seguintes do modo de produção capitalista:
-A oposição entre valor de uso e valor mercantil que expressa a relação antagônica entre a produção para a satisfação das necessidades humanas e a que serve para o lucro;
Existem contradições do capitalismo mais fundamentais que outras? Existem duas que, segundo Marx, podem entorpecer o próprio desenvolvimento do capitalismo:
Assim, pois, por si mesma, cada uma dessas duas contradições é igualmente fundamental. A questão que se coloca não é então a de saber qual é mais fundamental e sim qual a que se manifesta antes, no tempo, como obstáculo decisivo para o desenvolvimento das forças produtivas.
Faz um século que existe um debate no movimento operário para definir a contradição determinante entre essas duas: "queda da taxa de lucro" "ou incapacidade do mercado para ampliar-se ao ritmo do aumento da produção". Nenhuma das duas teses conseguiu impor-se, pois há correntes autenticamente marxistas que defendem esta ou aquela. Embora a posição da CCI, defendida majoritariamente no seu seio, seja a da insuficiência do mercado, não pertence a nossa mentalidade o cultivo das diferenças entre essas duas teses na medida em que nenhuma delas é chave para delimitar o campo da burguesia e o campo do proletariado, contrariamente, por exemplo, a questão do internacionalismo.
Dito isso, responderemos algumas afirmações expressas contra a tese da insuficiência dos mercados, sem com isso pretender aportar aqui os argumentos decisivos em favor dela [2] e sim com o objetivo de recordar a maneira com a qual o marxismo colocou o problema na história.
O Capital inacabado
Marx não viveu o suficiente para terminar O Capital, o que é fácil constatar ao comparar o que realizou a respeito com o que tinha a intenção de escrever: "Examino o sistema da economia burguesa na seguinte ordem: Capital, Propriedade, Trabalho assalariado, Estado, Comércio exterior, Mercado Mundial. Sob os três primeiros títulos, estudo as condições de existência econômica das três grandes classes nas quais se divide a sociedade burguesa moderna; a relação dos três outros títulos salta aos olhos" (Prefácio a Contribuição à crítica da economia política - Ed.Flama 1946 p.29)
Por outra parte, O Capital foi escrito em um período histórico em que as relações sociais capitalistas ainda não haviam se convertido em um obstáculo definitivo ao desenvolvimento das forças produtivas. Por isso é evidente que há uma relação com o fato de que, quando define o elemento fundamental da crise capitalista, Max insiste algumas vezes no problema da superprodução, outras na tendência à queda da taxa de lucro, sem fazer nunca uma separação mecânica e rígida entre ambas. Por exemplo, no III volume, o capítulo dedicado às consequências da queda da taxa de lucro também contém uma das passagens mais claras sobre o problema do mercado.
Podem ser extraídos outros dois exemplos dessa insistência contraditória na obra de Marx:
As principais interpretações pelos epígonos
Por estar inacabado, O Capital favoreceu a controvérsia no movimento operário sobre os fundamentos econômicos da decadência do capitalismo.
Contudo, com o maior rigor e honradez científica, nenhuma das grandes tendências, nem as baseadas na tendência decrescente da taxa de lucro (que exclui em geral os problemas dos mercados solventes), nem, ao contrário, as baseadas nos limites intrínsecos do mercado podem reivindicar a continuidade formal com os trabalhos de Marx, precisamente pelas insistências contraditórias que estes contêm. Ambas as tendências requerem ao contrário um desenvolvimento às vezes crítico dos trabalhos de Marx.
É o que fez Rosa Luxemburgo, em A Acumulação do capital, quando se propõe fazer a crítica dos esquemas da reprodução ampliada feitos por Marx no Livro II do O Capital. Segundo essa crítica, a acumulação ampliada é impossível sem que se produza uma demanda exterior ao mundo das relações de produção capitalista [5].
Também foi o que fez Paul Mattick - defensor da queda da taxa de lucro - na sua obra Crise e teoria das crises, quando não duvidou em criticar ideias e formulações de Marx, em particular quando se apóiam no caráter necessariamente limitado do consumo na esfera das relações de produção capitalistas:
"É evidente que a crise não somente se origina na insuficiente produção da mais valia, tão pouco pode apresentar-se como um problema de realização da mais-valia e debilidade do poder aquisitivo da população trabalhadora. (...) A crise se apresenta no imediato como uma superprodução de mercadorias invendíveis e uma falta do poder aquisitivo. Poder-se-ia supor, portanto, que a razão última da crise está no subconsumo. E isso, sobretudo tendo em conta que, segundo Marx, "Há uma circulação continua ente capitais constantes (mesmo abstraindo a acumulação acelerada) que, em primeira instância, é independente do consumo individual, à medida que jamais entra nele; no entanto, é definitivamente limitada por ele, pois a produção de capital constante jamais ocorre por si mesma, porque mais dele é necessitado nas esferas da produção cujos produtos entram no consumo individual" (O Capital, Volume III Tomo 1 Ed. Abril Cultural 1984; Capítulo XVIII A rotação do capital comercial p 229). (...) Se só se trata verdadeiramente de subconsumo, e é o que Marx parece afirmar, seria impossível superar a crise ampliando a produção de mercadorias e o capital constante mais além do ponto em que a boa conjuntura desemboca na crise."
Pode ou não o capitalismo criar seu próprio mercado?
O desacordo entre ambas as teorias pode resumir-se, na realidade, na resposta a esta pergunta: Pode ou não o capitalismo criar seu próprio mercado? A resposta afirmativa a essa pergunta, pelos partidários da tese da queda da taxa de lucro, baseia-se em geral na passagem de Marx segundo a qual as dificuldades no processo de acumulação, resultantes da insuficiência da queda da taxa de lucro, conduzem a perturbações no processo de produção, jogando operários na rua e reduzindo assim a demanda de mercadorias, com a superprodução como consequência. Esta passagem também é citada em Crises e teoria das crises. de Paul Mattick:
"Superprodução de capital significa apenas superprodução de meios de produção - meios de trabalho e subsistência - que podem funcionar como capital, ou seja, que podem ser empregados para a exploração do trabalho em dado grau de exploração, e a queda desse grau de exploração abaixo de dado ponto provoca perturbações e paralisações do processo de produção de produção capitalista, crises, destruição de capital. Não há nenhuma contradição em ser essa superprodução de capital acompanhada por uma superpopulação relativa mais ou menos grande. As mesmas circunstâncias que elevaram a força produtiva do trabalho aumentaram a massa dos produtos-mercadorias, ampliaram os mercados, aceleraram a acumulação de capital, tanto em massa quanto em valor, e reduziram a taxa de lucro, essas mesmas circunstâncias geraram uma superpopulação relativa e a geram continuamente, uma superpopulação de trabalhadores que não é empregada pelo capital excedente por causa do baixo grau de exploração do trabalho, único grau em que ela poderia ser empregada, ao menos por causa da baixa taxa de lucro que ela, com grau dado de exploração, proporcionaria." (O Capital, Volume III Tomo 1 Ed. Abril Cultural; 1984).
A ideia resultante, típica dos partidários da queda da taxa de lucro, é que um tipo de lucro adequado deve permitir a existência de um mercado interior em relação com as necessidades da produção.
Sem contradizer a ideia que a queda da taxa de lucro, possa carrear a superprodução, outras passagens de Marx põem em relevo que o problema da superprodução não pode reduzir-se a isso. Com efeito, quando na conclusão do capítulo sobre a Lei da tendência a queda da taxa de lucro, resume o que considera ser sua compreensão global do movimento e as contradições do processo de produção capitalista, Marx fala de uma obra que se desenvolve em dois atos. O primeiro ato é o movimento de produção da mais valia que à medida que se desenvolve o processo de produção, plasma-se em queda da taxa de lucro e incremento da massa de mais valia, enquanto que o segundo ato corresponde à necessidade para "o conjunto da massa de mercadorias a ser vendido". E sublinha que: se não consegue vender-se ou só vende em parte "então o trabalhador é certamente explorado, mas sua exploração não se realiza enquanto tal para o capitalista". Marx esclarece inclusive as relações existentes entre esses dois atos que são a produção e a venda dizendo que teoricamente "as condições da exploração direta e das da sua realização não são idênticas". Emprestamos essa ideia (até com termos idênticos) de uma passagem do Volume III Tomo 1 de O Capital que citamos exaustivamente em nota de pé de página [6].
Diferentemente dos partidários da queda da taxa de lucro, os quais em nome de que a produção geraria por si mesma seu próprio mercado, excluem a questão do mercado como tal, Marx sublinha a independência do mercado em relação à produção. Insiste nisso, sobretudo contra os economistas burgueses como Ricardo, Mill e Say que, eles também, afirmam que a produção cria seu próprio mercado:
"Os economistas que, como Ricardo, consideram que a produção se identifica diretamente com a autovalorização do capital, e desdenham, portanto, dos limites do consumo ou da circulação, pois, para eles, a produção cria automaticamente uma equivalência entre consumo e circulação, não colocando problema algum entre oferta e demanda; só se interessam pois pelo desenvolvimento das forças produtivas (...) [Para] Mill (imitado pelo insonso Say) a oferta e a demanda seriam idênticas, teriam portanto que concordar. A oferta será pois uma demanda medida por sua própria quantidade. Grande confusão aqui..." (Marx, Elementos fundamentais para a crítica da economia política - Grundisse) (Tradução nossa) (Ed. La Pléyade II, p 261 y 262 ; Gründrisse, chapitre du Capital : 216 e 217, Ed. 10/18)
Qual é o fundamento da resposta dada por Marx a esta "grande confusão" da economia burguesa?
Em primeiro lugar, Marx está totalmente de acordo com esses economistas em constatar que: "A produção mesma, com efeito, cria uma demanda, ao empregar novos operários no mesmo ramo industrial e ao criar novos ramos nos quais os novos capitalistas empregam por sua vez novos operários e ao mesmo tempo, correlativamente, transforma-se em mercado para os velhos ramos produtivos..." Porém, acrescenta imediatamente depois da citação, aprovando que neste caso o que disse Malthus: "... a demanda criada pelo próprio trabalhador produtivo nunca pode ser uma demanda adequada, posto que não abarca a magnitude total do que produz. Se o fizesse não haveria benefício algum e portanto, nenhum motivo para empregá-lo. A própria existência de um lucro sobre uma mercadoria qualquer pressupõe uma demanda exterior a do trabalhador que produziu...". (Tradução nossa) (Gründrisse, chapitre du Capital : 225, Ed.10/18 ; Ed. La Pléyade II, p 268)
O que se infere disso é que, inclusive se existe uma contradição "queda da taxa de lucro" que atua como obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas, existe outra contradição também, a não ampliação dos mercados ao ritmo da produção e o caráter limitado no planeta de tais mercados: "Desde o ponto de vista geográfico, o mercado é limitado: o mercado interior é restrito com relação a um mercado interior e exterior, este último é restrito com relação ao mercado mundial, o qual, embora suscetível de extensão, é também limitado no tempo.!" (Tradução nossa) (Grundisse, La Pléyade, Economie II: 489)
São independentes as duas contradições (queda da taxa de lucro e limitações das possibilidades extensão dos mercados)?
Constatar com Marx que produção e realização de mercadorias são dois atos independentes não significa, entretanto que não exista uma correlação, ao menos indireta, entre queda da taxa de lucro e mercado. Com efeito, como constata Marx, "Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista cai, portanto, a taxa de lucro, enquanto sua massa sobe com a massa crescente do capital empregado. Dada taxa, a massa absoluta em que o capital cresce depende de sua grandeza existente. Mas por outro lado, dada essa grandeza, a proporção em que cresce a taxa de seu crescimento, depende da taxa de lucro" (O Capital, Volume III Tomo 1 Ed. Abril Cultural; 1984)
Por isso, a queda da taxa de lucro (que se avalia em cada mercadoria produzida) não poderá compensar-se - em nível da massa de mais valia extraída - exceto por um mercado em crescimento permanente, capaz de absorver uma produção cada vez mais volumosa. Assim é como a queda da taxa de lucro vem acelerar o esgotamento do mercado:
"Durante a reprodução e a acumulação, há constantemente pequenas melhoras que acabam modificando toda escala da produção: há um crescente desenvolvimento das forças produtivas. Dizer que essa produção crescente necessita um mercado cada vez mais amplo e que se desenvolva mais rapidamente que esse mercado, é expressar, na sua forma real e já não uma abstração, o fenômeno que há de explicar. O mercado cresce menos rapidamente que a produção; ou dito de outro modo, é no ciclo da sua reprodução - um ciclo em que não só há reprodução simples, mas ampliada -, o capital descreve não um círculo, mas uma espiral: chega um momento em que o mercado parece demasiado estreito para a produção. É o que ocorre ao final do ciclo. Porém isso não significa outra coisa que, simplesmente, o mercado está supersaturado (...). Com efeito, ao ser o mercado e a produção fatores independentes, a extensão de um não corresponde necessariamente ao crescimento do outro. Pode ocorrer que os limites do mercado não se ampliem tão rapidamente como o exige a produção ou que os novos mercados se saturem rapidamente, até o ponto em que o mercado ampliado se converta em outra barreira como havia sido antes o mercado estreito" (Tradução nossa) (Grundrisse, La Pléyade, Economie II: 489)
Dito de outra maneira, um mercado amplo capaz de absorver uma produção abundante pode permitir contrarrestar os efeitos da queda da taxa de lucro com respeito à massa de mais-valia realizada. Porém tal mercado não é ilimitado no espaço e, portanto, no tempo.
Pode-se muito bem pensar, como no artigo Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual?, que os mercados extracapitalistas não desempenharam nenhum papel no desenvolvimento do capitalismo como também na resolução das suas crises e que, nesse sentido, não são mais que "espelhismos": "É, portanto, dentro dos limites do modo de produção capitalista, sem que haja necessidade de apelar para artifícios situados fora dele, como "mercados pré-capitalistas" e outras miragens que se apresentam e são superadas as premissas de seus momentos de crise" (Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual?).
Pode-se também muito bem estar em desacordo com passagens de Marx que colocam em relevo que a realização de um lucro supõe a existência de um mercado que não esteja só composto de operários e capitalistas, ou seja, um mercado extracapitalista, como assim afirmam as seguintes citações:
Porém, para ser realmente convincente, é então necessário pelo menos refutar teoricamente os argumentos dos que como Marx, pensam que esses mercados tiveram um papel histórico no desenvolvimento do capitalismo e na resolução das suas crises.
Como supera o capitalismo sua tendência imanente em saturar seus mercados solventes? Como pode solucionar essa contradição "interna" ao seu método de funcionamento? A resposta de Marx fica muito clara: "O mercado precisa ser constantemente ampliado, de forma que suas conexões e as condições que as regulam assumam sempre mais a figura de uma lei natural independente dos produtores, tornando-se sempre mais incontroláveis. A contradição interna procura compensar-se pela expansão do campo externo da produção. Quanto mais, porém, se desenvolve a força produtiva, tanto mais ela entra em conflito com a estreita base sobre a qual repousam as relações de consumo" (O Capital, Volume III Tomo 1 Ed. Abril Cultural 1984; Capítulo XVIII A rotação do capital comercial p 229); "Essa demanda criada pela produção... tende a superar com excesso sua demanda (a dos assalariados), embora que, por outra parte, a demanda das classes não operárias desaparece ou se reduzem fortemente, é assim como se prepara para a queda" (Tradução nossa) (Grundrisse, capítulo de "O Capital") (Ed. La Pléyade II, p 268)
Esse raciocínio de Marx não é, nem mais nem menos que aquele que retomará Rosa Luxemburgo na sua obra A acumulação do capital. Até certo ponto, a grande revolucionária prolongará os estudos de Marx do seu capítulo relativo ao mercado mundial que este não pôde concluir. A totalidade da obra de Rosa está animada por essa ideia central de Marx segundo a qual "Essa demanda criada pela produção... tende a superar a demanda dos assalariados ao mesmo tempo em que por outro lado, a demanda das classes não proletárias desaparece ou se reduz fortemente, - é assim como se prepara a queda". Rosa precisará esta ideia colocando que, considerando que a totalidade da mais-valia do capital social global necessita, para realizar-se, uma ampliação constante dos mercados tanto interno como externo, o capitalismo é dependente das suas conquistas contínuas de mercados solventes, tanto a nível nacional como internacional "Acontece, porém que por meio desse processo o capital prepara a própria cova. Expandindo a expensas das demais formas de produção não capitalistas existentes, chega o momento em que qualquer expansão ou acumulação subsequente do capital torna-se impossível, uma vez que a humanidade toda veio a transformar-se em duas classes únicas - capitalistas e proletários assalariados. Por outro lado, na medida que se impõe essa tendência, o referido processo também acaba acentuando os contrastes entre as classes e a anarquia econômica e política internacionais de tal maneira que, muito antes mesmo de atingida a consequência última do desenvolvimento econômico - o domínio absoluto e indiviso da produção capitalista neste mundo -, o mesmo processo irá acarretar necessariamente a revolta do proletariado internacional contra a existência do domínio do capital. (...) O imperialismo hodierno (...) constitui a última fase de um processo histórico de desenvolvimento: é o período da concorrência geral e mundial mais acirrada dos Estados capitalistas, da luta pela conquista do que sobrou das regiões não capitalistas ainda existentes neste mundo" (Rosa Luxemburgo - A Acumulação do Capital - Anticrítica- Ed. Nova Cultura; 2ª Edição 1985) [7]
A partir deste ponto de nossos "comentários" ao artigo publicado pela OPOP, torna-se conveniente ilustrar de duas formas o papel dos mercados extracapitalistas na vida do sistema:
A maioria dos dados econômicos, sociais e históricos referidos nas duas partes seguintes foi extraída do livro de Fritz Sternberg [8] El conflicto del siglo (1950). Fritz Sternberg compreendeu perfeitamente e ilustrou o novo desenvolvimento do capitalismo mediante sua conquista do mundo e sua contradição insolúvel, a qual enfrenta o sistema após haver alcançado a fase avançada da sua extensão mundial. Se a compreensão da teoria de Rosa Luxemburgo que manifesta nos permite dispor de um material que senão teria ficado disperso, esse autor tem, no entanto, limites na sua coerência política e teórica que assinalaremos quando for necessário [9] e que se concentraram, por outra parte, na sua visão reformista em um momento da história do sistema em que a única perspectiva realista que desde aquela época era possível era sua derrubada.
Os mercados extracapitalistas se localizavam em dois tipos de regiões do mundo. Nos países industrializados, são setores da economia não integrados plenamente ainda no modo de produção capitalista como a agricultura (de subsistência) ou o artesanal. Alguns países industrializados como França ou Itália dispunham ainda, inclusive depois da Segunda Guerra Mundial, de tais setores. Fora desses países, os mercados extracapitalistas são essencialmente localizados no que se denomina de colônias.
Na metade do século XIX, o modo de produção capitalista que só estendia sua soberania à décima parte da população mundial, dispunha então de uma imensa reserva à qual direcionar seus ímpetos expansionistas em renovação constante.
A extensão não imperialista
Durante a primeira fase da sua industrialização, países como Alemanha, Áustria, Hungria, Rússia e Japão passam a ser os novos mercados para as indústrias de exportação dos estados industriais mais avançados. O crescimento desses países pôde realizar-se de uma maneira relativamente rápida, porque os mercados que constituem vêem sua evolução acelerada por importações de capitais que permitem desenvolver uma indústria moderna. A Alemanha, depois de ter sido um mercado importante para as indústrias de exportações britânicas, transforma-se, por sua vez, em um grande estado industrial e começa a dirigir suas exportações para além das suas fronteiras.
Toda Europa industrial podia participar dessa forma da expansão, sobretudo a Alemanha, cujas possessões coloniais próprias continuaram sendo pouco extensas. Durante os últimos anos do século XIX e princípios do século XX, desenvolveu sua extensão através de toda Europa do Leste e do Sudeste, acelerando mais ainda o ritmo da sua extensão industrial mediante a exportação de capitais (El conflicto del siglo, p. 72) Isso representava uma dupla vantagem:
O caso específico dos Estados Unidos
A Europa necessitava exportar e ampliar seus mercados internos. O impulso imperialista permitiu alcançar ambos objetivos graças à exploração de uma maior mão de obra nas suas indústrias de exportação. Nos Estados Unidos, este processo era naquele momento muito mais simples. Ali não havia necessidade de extensão além das suas fronteiras nacionais: o que ocorreu é que suas fronteiras foram deslocadas cada vez mais longe e cada vez mais ao oeste sem ter que penetrar em territórios de outros.[10] Na Europa, as indústrias de exportação puderam desenvolver-se graças à extensão exterior, embora nos Estados Unidos as exportações tenham sido efetuadas a partir de territórios já valorizados para as regiões que estavam nas primeiras fases do seu desenvolvimento (El conflicto del siglo).
O imperialismo, um meio para encontrar as saídas indispensáveis ao insuficiente mercado interno
Parte considerável das colônias já havia caído em mãos das metrópoles antes dos inícios do século XIX, antes que o capitalismo moderno começasse a desenvolver-se. Porém, só durante a segunda metade do século é que as colônias, novas ou antigas, assumiram plenamente sua função essencial de provedores das metrópoles em matérias-primas e produtos alimentícios, assim como de compradores dos produtos industriais metropolitanos (Idem).
Para os capitalistas, o motivo que impulsionava a extensão imperialista era a esperança de lucros superiores aos que podiam extrair normalmente na metrópole, e esta esperança se cumpriu frequentemente. Durante muito tempo, as matérias-primas de procedência colonial foram vendidas com lucros muito significativos. Sendo o nível de vida geral extremamente baixo nessas populações, a mão de obra colonial era explorada ao máximo. Nas colônias, os produtos industriais da metrópole não enfrentavam a concorrência de outras empresas capitalistas, mas somente a de pequenos artesãos com métodos e ferramentas atrasadas, o que tornava fácil vencer por meio de ofertas vantajosas para o comprador local, que ainda permitia ao revendedor realizar superlucros mais que consideráveis. Assim, pois, os motivos que incitavam as distintas camadas capitalistas a conquistar economicamente os territórios coloniais e semicoloniais eram basicamente os mesmos que os animavam sua atividade na metrópole: a busca de lucros máximos (Idem).
Devido a sua situação nos anos 1830-50, ante a ameaça de superprodução, foi a Grã-Bretanha que iniciou o movimento de extensão para as colônias. A indústria inglesa esteve então obrigada a conquistar novos mercados no marco de um mercado mundial que ainda não existia realmente, em uma época na qual prevaleciam ainda de forma mais ou menos exclusiva os modos de produção pré-capitalistas no continente europeu, no qual os estados europeus tentavam frequentemente proteger com altas barreiras protecionistas o desenvolvimento da sua própria indústria contra a concorrência da indústria britânica mais evoluída. Dito de outra forma, a indústria inglesa, que tinha dificuldades muito sérias no mercado interior, enfrentava nos mercados mundiais existentes uma situação que não correspondia em absoluto às suas grandes necessidades de extensão, já que o mercado mundial não progredia senão de uma forma muito irregular, com saltos e com mudanças bruscas (Idem)
Hobson [11] coloca muito bem em relevo porque a expansão imperialista é uma solução a superprodução. A busca frenética de colônias deriva-se precisamente das capacidades produtivas superdimensionadas nos países capitalistas avançados com respeito ao seu mercado interno:
Após a Inglaterra, as demais potências capitalistas europeias alcançaram o mercado mundial com certo atraso com respeito ao que na época era a primeira potência econômica mundial. Porém puderam recuperar o atraso porque o mercado mundial havia se ampliado e estava em um movimento continuo de extensão.
Mercados extracapitalistas em abundância são fatores de prosperidade
A expansão capitalista na sua totalidade, e em particular a expansão imperialista, desempenhou um papel decisivo no descobrimento e na abertura de novos mercados, traduzindo-se entre outras coisas nas cifras em alta permanente do comércio exterior (El conflicto del siglo).
O Aumento dos salários
Nesse marco, a melhoria das condições de existência da classe operária não só é objetivamente uma possibilidade real, como também, em certos casos, um estímulo ao desenvolvimento capitalista. Por exemplo, a obtenção pela classe operária inglesa em 1848 da redução da jornada de trabalho para dez horas, não só é uma conquista real da classe operária ("real", ou seja, que não desapareceu imediatamente depois da sua promulgação com a obrigação de fazer horas extras), mas também foi um estímulo para a economia britânica. Isso é o que Marx põe em evidência em Salário, preço e lucro, quando ilustra a necessidade e a possibilidade da luta por reformas econômicas:
Apesar de não relevar consideravelmente do fator luta de classes, Sternberg descreve corretamente o contexto econômico favorável à luta operária para conseguir reformas:
Na Europa graças ao trabalho crescente das indústrias de exportação puderam crescer por sua vez os salários e o número de operários; na América do Norte, o aumento dos salários repercutiu tanto nos territórios já valorizados como naqueles em que a industrialização e o assentamento da população estavam sendo levados a cabo (Idem).
A atenuação das crises
Não só o capitalismo jamais havia conhecido semelhante prosperidade, além disso, foi naquela época que as crises foram mais suaves. A extensão dos mercados, tanto internos como externos, fornece a explicação mais plausível da forma singular das crises em particular naquela época da evolução capitalista (entre 1850 e 1914), forma que não encontramos nem durante a fase anterior, nem durante as que vieram suceder 1914 (...) Por muito distintas que fossem em muitos aspectos, todas estas crises, no entanto, apresentaram um ponto comum: apareceram como interrupções relativamente breves de um gigantesco movimento ascendente que uma visão global poderia dar por contínua. (Idem).
Joseph A. Schumpeter escreve sobre a evolução da produção nessa época (na sua análise da curva e a produção dos Estados industriais mais importantes daquela época, Inglaterra, Alemanha, os Estados Unidos) avaliando o impacto das crises na referida produção:
Uma prosperidade capitalista geral que não podia ser ilimitada
Os efeitos da expansão mais além das fronteiras, considerada como um todo, não se limitavam em suavizar a saída da crise (uma vez esta ocorrida), por meio de novos investimentos, por exemplo. A expansão influía sobre toda evolução econômica, influindo nos mercados em todas as fases conjunturais, atuando por sua vez sobre as exportações, os lucros, os salários e os mercados interiores. (Idem)
Existe um vínculo entre o desenvolvimento das forças produtivas e a conquista de novos mercados ou a melhor exploração dos antigos, porém não é o proposto pelos partidários da tese segundo qual "a produção cria seu mercado". A exploração efetiva dos mercados potenciais depende, com efeito, dos progressos da indústria que determinam:
Um mercado que só é potencial em um determinado momento pode converter-se, por causa desses mesmos progressos, em um mercado efetivo posteriormente.
O Manifesto comunista descreve muito claramente as condições e as motivações da conquista do mercado mundial.
"Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte. (...) Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destroem todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança." (Marx e Engels, O Manifesto Comunista; www.moreira.pro.br/classcent.htm [50])
As restrições de acesso aos mercados extracapitalistas apareceram como consequência por sua vez:
Tal evolução foi acompanhada de convulsões econômicas que deixaram muito atrás a prosperidade do período 1850-1914.
"A extensão capitalista e o avanço imperialista, que é uma parte importante daquela, não são fatores que estariam à margem de um sistema que teria conseguido prescindir deles para seu funcionamento; pelo contrário, são eles precisamente os quais, ao consolidar o comércio exterior e os mercados internos, que permitiram ao sistema capitalista funcionar sem tropeçar durante todo aquele período. Uma estagnação da expansão capitalista e do movimento imperialista, ou uma decadência do imperialismo, teria trazido as conseqüências mais graves para todo o sistema capitalista. A estagnação que ia se produzir posteriormente entre as duas guerras é a prova mais eloqüente disso" (El conflicto del siglo).
Na época da grande guerra, cerca de 30% da população mundial se encontrava integrada no processo de produção capitalista. (Idem)
Alemanha tem necessidade de acessar livremente os mercados extracapitalistas
A fase mais rápida do desenvolvimento industrial da Alemanha capitalista se realiza em uma época na qual a divisão das riquezas do mundo estava praticamente terminada e na qual as possibilidades de novos avanços imperialistas eram cada vez mais raras. (Idem)
Com efeito, o coração da Europa estava ocupado por um país que, em algumas dezenas de anos, havia se convertido no estado mais industrializado do continente e cujo ritmo de desenvolvimento no âmbito industrial, assim como do comércio exterior, era muito mais rápido que o dos países industriais mais antigos. Além do mais, esse estado aparecia nos mercados mundiais em um momento em que os territórios, há pouco livres de toda soberania europeia, estavam quase todos repartidos e reduzidos a categoria de colônias ou semicolonias desses estados industriais mais antigos, ou seja, precisamente, os competidores mais temíveis da Alemanha (Idem)
O desenvolvimento das tensões entre grandes potências
Acreditar que a expansão imperialista só começou no final do século XIX ou no início do século XX é um erro fundamental. Data de muito antes como temos visto anteriormente. Em contrapartida, o início do século XX sim é que está marcado pelo incremento das tensões internacionais nascidas da expansão imperialista. (Idem)
As tentativas de conquista do imperialismo alemão e seu satélite Áustria-Hungria, assim como as medidas adotadas pela "Entente" (ou seja, a aliança entre França, Grã-Bretanha e Rússia) contra os impulsivos embates do jovem imperialismo alemão que queria proceder a uma redistribuição do mundo, coloca-se em primeiro plano entre as causas do grande conflito. (Idem)
Quando a Alemanha reforçava por sua vez o exército e a força naval, quando a Inglaterra replicava incrementando por sua vez as suas forças navais, quando a França impunha o serviço militar de três anos e ajudava a Rússia para organizar sua mobilização, é evidente que os pressupostos militares dos estados mais importantes iriam conhecer aumentos mais que consideráveis. (Idem)
O fraco impacto dos preparativos militares na sociedade e na classe operária
Esse aumento dos gastos militares ocorreu em plena prosperidade econômica, contrariamente à situação da época que precedeu a Segunda Guerra Mundial. A época anterior a 1914 não tinha nada a ver com o desemprego permanente e massivo típico do período 1929-1939; em nenhuma parte havia centros de produção com capacidade utilizada só nas suas duas terças ou três quartas partes. Pelo contrário, aqueles centros estavam plenamente ocupados na produção de bens civis e, à exceção da Inglaterra, o número de desocupados continuava sendo minúsculo.
Ou dito de outra maneira, os milhares de milhões gastos com o exército ou com a força naval não serviam para reativar uma economia estancada ou em recessão; ao contrário, cada milhão gasto com fins militares freava a extensão da produção civil. As centenas de milhares de homens, à época obrigados a servir o exército ou a marinha, correspondiam à idêntica redução nas forças de trabalho mais produtivas. (Idem)
No entanto, apesar do aumento do gasto militar, os trabalhadores ingleses, alemães ou franceses desfrutaram, durante o período imediatamente anterior a Primeira Guerra Mundial, de rendas sensivelmente mais elevadas que durante o período anterior, o que é uma nova prova, in loco, da boa saúde do capitalismo nessa época. (Idem)
E na medida em que, nesse artigo, nós temos proposto objetivos que não se limitam ao estritamente econômico, mas, além disso, a colocar em relevo as mudanças profundas na vida da sociedade devido à irrupção da guerra, é importante dar conta do estado de ânimo das amplas massas às vésperas desse acontecimento, assim como a orientação adotada pelos revolucionários.
A ameaça da guerra e o movimento operário
A aproximação do fim deste período próspero do desenvolvimento capitalista era previsível, porém poucos tinham consciência do cataclismo que se preparava.
Engels, 20 anos antes já havia mencionado como uma possibilidade trágica: "Se a guerra explode apesar de tudo, o único certo é que haverá entre quinze e vinte milhões de homens armados que acabarão liquidando-se mutuamente, devastando a Europa inteira como nunca antes havia ocorrido; esta guerra deve provocar ao instante a vitória do socialismo ou transtornará até tal ponto a antiga ordem das coisas que a antiga sociedade capitalista parecerá mais absurda que nunca. Nesse caso a revolução socialista será retardada quem sabe dez ou quinze anos, porém somente para triunfar com uma vitória mais rápida e mais radical" (O socialismo na Alemanha em Die neue Zeit, 1891-1892).
Foi sobretudo a ala esquerda da IIª Internacional a que levou o combate para armar a Internacional e o proletariado, na nova situação, contra a ala oportunista que abandonava progressivamente cada dia mais os princípios da luta proletária. Um dos momentos essenciais daquela batalha política foi o congresso internacional de Stuttgart em 1907, durante o qual Rosa Luxemburgo, tirando lições da experiência da greve de massas na Rússia de 1905, vincula a questão da guerra imperialista com a questão da greve de massas e a revolução proletária: "eu pedi para falar, disse Rosa Luxemburgo, em nome das delegações russa e polonesa para recordar a vocês que devemos extrair nesse ponto [a greve de massas na Rússia e a guerra, NDLR], a lição da grande Revolução russa... A Revolução russa não só surgiu como resultado da guerra [NLDR: a guerra russo-japonesa]; também serviu para colocar fim à guerra. Sem ela, o czarismo teria continuado com toda certeza..." (Citado por B.D. Wolfe, Lênin, Trotski, Stálin, Calmann-Levy, 1951 - .Tradução nossa)
A Esquerda fez aprovar uma emenda da maior importância à Resolução do congresso. Apresentada por Rosa Luxemburgo e Lênin: "No caso em que a guerra exploda apesar dos seus esforços, as classes trabalhadoras deverão lutar por um final rápido das hostilidades e tentar com todas as suas forças explorar a crise econômica e política causada pela guerra com a finalidade levantar o povo e acelerar assim a abolição do domínio da classe capitalista" Citado em El conflicto del siglo)
Em 1912, o congresso de Basiléia da IIª Internacional reafirma esta posição diante das ameaças cada vez mais fortes da guerra imperialista na Europa: "Que os governos burgueses não se esqueçam de que a guerra russo-japonesa colocou em movimento as forças revolucionárias da Rússia. Para os proletários, é criminoso matar-se uns aos outros pelos lucros capitalistas, as rivalidades dinásticas e os tratados diplomáticos." (Citado na "Resolução sobre a posição em direção das correntes socialistas e a conferência de Berna" Primeiro Congresso da Internacional Comunista, Pierre Broué, EDI, 1974 - Tradução nossa)
Uma nova época da história europeia e universal
O imperialismo se apresenta como um dos fatores mais importantes da evolução econômica e social dos estados capitalistas europeus e, depois, da sua decadência. Dada a grande intensidade das investidas imperialistas, os fatores que acabariam finalmente por fazer eclodir o conflito mundial continham também uma violência incomparável. Essa guerra iria marcar o início de uma nova época da história europeia e universal. O século anterior, o século da expansão capitalista entre Waterloo[12] e Sarajevo [13], não havia conhecido guerras capazes de obstaculizar o desenvolvimento do capitalismo, nem sequer de influenciá-lo seriamente. A maioria dos conflitos sangrentos daquele tempo só teve um caráter periférico, e se desenvolveu muito longe dos grandes centros capitalistas. Única exceção foi a guerra de 1870-71, que no final das contas foi relativamente breve e só constituiu uma interrupção momentânea da progressão capitalista. Desde 1914, essa situação vai sofrer uma modificação fundamental que, por sua vez, vai comprometer o caráter tradicional da guerra. A Primeira Guerra Mundial significou um corte importante na evolução do capitalismo. (p. 208) como foi sublinhado por Rosa Luxemburgo:
O entendimento de Rosa Luxemburgo no texto que acabamos de citar é semelhante ao de Lênin. Este escrevia em 10 de abril de 1917: "Depois de ter alcançado o capitalismo sua forma madura, o imperialismo originou necessariamente a guerra imperialista. Esta guerra tem conduzido toda humanidade à beira do abismo e ameaça assim arruinar toda civilização" (Lênin, obras completas, edição alemã, vol XX, p. 209 - tradução nossa). A Internacional comunista será ainda mais explícita. O primeiro ponto da "Carta Convite" (janeiro de 1919) ao seu congresso de fundação declara: "O período atual é o da decomposição e da queda de todo o sistema capitalista mundial, e será o da queda da civilização europeia em geral, se não for derrubado o capitalismo com suas contradições insuperáveis." Sua plataforma sublinha: "Nasceu uma nova época: a do desmoronamento do capitalismo, da sua queda interna. É a época da revolução comunista do proletariado." ("Plataforma da Internacional Comunista", P.Broué, Idem).
A guerra iria converter-se em uma guerra de fábricas e indústrias. Nessa fase de prosperidade triunfal do capitalismo, iria tomar uma forma cada vez mais "total", contrariamente às guerras da época napoleônica. (El conflicto del siglo)
O impacto da guerra no estado de ânimo das massas
A gigantesca expansão econômica dos anos precedentes havia consolidado ainda mais o sistema capitalista na Europa, conferindo-lhe uma estabilidade social cada dia maior. Porém, a guerra iria sacudir gravemente o dito sistema. (Idem)
O simples fato que ela tivesse ocorrido, estremeceu de cima abaixo o sistema capitalista, não somente para os trabalhadores socialistas que desde muito haviam se levantado contra ela por princípio, como também para a maioria da população europeia. Não era em absoluto necessário fazer sua a argumentação socialista, apontando como primeiro responsável pela guerra o antagonismo causado pela expansão capitalista e imperialista, para constatar que o capitalismo não tinha sido capaz de impedir uma guerra que acabava de opor uns contra os outros os países mais avançados na via do desenvolvimento capitalista. (Idem)
Centenas de milhões de europeus haviam despertado à vida consciente em uma época em que o capitalismo tinha prosseguido um desenvolvimento contínuo durante um período correspondente a várias gerações. Todo um estilo de vida havia se derivado dessa longa continuidade, que havia colocado a vida daqueles homens sob os signos do progresso e da paz a tal ponto que esses valores identificavam-se, conscientemente ou não, com o próprio sistema capitalista. (Idem)
As abomináveis devastações da guerra minaram assim os fundamentos da fé no sistema capitalista e na sua identificação com o progresso. (Idem)
A evolução consecutiva da Primeira Guerra Mundial provou que a decadência e o esgotamento do capitalismo podiam implicar a decadência de toda sociedade, incluída a classe operária. (Idem)
Essa guerra significou, pois, para toda Europa uma mudança decisiva, a grande fratura da história contemporânea. Toda a sociedade burguesa foi sacudida até seus alicerces quando essa identificação do capitalismo com o progresso, vista até então como algo natural e evidente, foi negada pelos próprios fatos de forma tão evidente que quase ficou ridículo pensar e falar de semelhantes ideias. Diante de semelhante espetáculo, a geração do pós-guerra se sentiu separada não somente por anos ou dezenas de anos, mas como por um abismo intransponível da geração precedente que havia crescido antes da guerra, na época em que o desenvolvimento indefinido do capitalismo parecia um movimento natural e irreversível. (Idem)
Para erradicar das lembranças a recordação da Primeira Guerra Mundial, foram necessárias várias gerações de paz e de progressos econômicos contínuos, porém o período de entre-guerras não aportou nem paz duradoura nem novo desenvolvimento econômico; pelo contrário, outras novas catástrofes acabaram caindo em cima de centenas de milhões de europeus que já haviam perdido sua antiga confiança na ordem estabelecida por causa da guerra.
A Primeira Guerra Mundial foi a manifestação mais violenta das contradições insuperáveis do capitalismo nunca vista até então
As potências europeias lutaram durante mais de quatro anos jogando na fogueira todas suas forças e até as últimas reservas. No final da guerra, sua produção sofre uma redução (mais de um terço), algo sem paralelo em toda história do capitalismo. (Idem) Na realidade, a redução da produção causada na Europa pela Primeira Guerra Mundial foi mais importante do que durante todas as crises do século anterior. (Idem) A Primeira Guerra Mundial, que se manifestou como um obstáculo brutal ao desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, é na realidade o produto do conflito entre essas forças produtivas e as relações de produção, o mundo sendo doravante demasiado estreito para garantir uma extensão das principais potências capitalistas.
Conservando ainda seus territórios coloniais, a Europa pôde, assim que terminou a guerra, retomar com eles suas antigas relações econômicas. Porém, seus esforços lhe permitiram apenas manter o que já possuía. Não podia tratar-se já de uma nova expansão ou de uma melhora das posições europeias ultramarinas. Entretanto, uma nova expansão colonial teria sido indispensável para garantir a posição internacional da Europa. (Idem) Apesar de terem ultrapassado a Europa ou ameaçado-a na sua posição mundial, nem os Estados Unidos nem o Japão tiveram a capacidade de impor ao mundo capitalista um crescimento duradouro comparável ao período 1850-1914.
Assim, pois, a Primeira Guerra Mundial abre brutalmente a fase de decadência do capitalismo caracterizada pela existência de um obstáculo permanente ao desenvolvimento das forças produtivas (e não a uma interrupção do seu desenvolvimento). As duas décadas de prosperidade que seguiram a Segunda Guerra Mundial, não foram, na realidade, mas que uma exceção sobre a qual haveremos de retomar brevemente neste artigo.
A Primeira Guerra Mundial, por si mesma, já significou um freio brusco ao desenvolvimento das forças produtivas, sem que por isso se tivesse manifestado na forma de uma crise econômica aberta. Inclusive explode em pleno auge da prosperidade capitalista, o que pôde fazer alguns pensar, contrariamente ao conjunto da vanguarda revolucionária da época, que não significava necessariamente a entrada nessa fase da vida do capitalismo, a da sua decadência, dominada pela permanência de contradições insuperáveis. Na realidade, para além da exacerbação das rivalidades entre as grandes potências, a Primeira Guerra Mundial tem sua origem em uma das contradições fundamentais do capitalismo, o caráter necessariamente limitado dos mercados extracapitalistas. Embora naquela época, não houvesse globalmente escassez de tais mercados, garantir o seu acesso era, no entanto, uma necessidade vital para todas as potências capitalistas, cujo preço devia ser pago através da guerra.
Não se produz, depois da guerra, uma expansão mais ampla do capitalismo mundial, nem sequer uma extensão igual a do período do pré-guerra, mas um estancamento do centro do capitalismo no seu conjunto, inclusive com certa regressão. (Idem)
O período de entre-guerras oferece a imagem de um duplo estancamento:
Durante o século anterior à Primeira Guerra Mundial, as tendências essenciais da evolução do capitalismo combinavam uma gigantesca extensão externa com um movimento crescente de concentração industrial. O circuito capitalista integrava sem cessar novos territórios, alguns quase desabitados, outros submetidos todavia a formas de vida econômicas pré-capitalistas, até fazer que a parte da população mundial que trabalhava e produzia segundo métodos capitalista passasse de 10% nos anos 1850 a 25 e 30% em 1914. (Idem) O cessar da expansão imperialista não afetou, no entanto, da mesma maneira todos os países capitalistas. Em nenhum momento da história do capitalismo a evolução havia seguido exatamente as mesmas direções e o mesmo ritmo em todos os países envolvidos, e não é de se estranhar que essas diferenças subsistissem no período entre-guerras. Com efeito, embora a expansão europeia se encontrasse paralisada, Japão e Estados Unidos continuaram ampliando suas zonas de influência econômica. (Idem)
Chega a crise de 1929, que se caracteriza por uma redução geral da produção, a mais forte jamais registrada em toda história do capitalismo, pela baixa catastrófica dos intercâmbios exteriores e por um desemprego muito elevado; e além do mais é uma crise marcada, por sua vez, pelo seu caráter industrial e agrário. É esse novo fenômeno específico da crise de 1929 que nunca havia se produzido durante as crises do século XIX. (Idem)
A extraordinária progressão capitalista continuou quase sem interrupções desde meados do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, durante o tempo todo que subsistiram as condições que a permitissem. Essas condições já não prevaleceram durante o período de entre-guerras, porém a guerra não foi a verdadeira causa do seu desaparecimento.
A opinião europeia considerou a Grande Guerra como a responsável principal de uma crise excepcionalmente grave que tanto afetou à época o velho continente. Com efeito, a Europa havia sofrido mais que qualquer outra parte do mundo as consequências desastrosas do conflito. Entretanto, era quase ridículo afirmar que a Primeira Guerra havia sido também a causa decisiva da amplitude da crise norte-americana. O cessar da expansão dos Estados Unidos através do seu próprio território nacional não tem nada a ver com a guerra. Com a guerra ou sem ela, a "fronteira" havia se alcançado. A guerra tampouco era responsável de que, pela primeira vez na história norte-americana, a população rural diminuiu, não só relativamente, como em números absolutos; nem do cessar, também da paragem sem comparação na história dos Estados Unidos do crescimento do proletariado industrial. A guerra tampouco foi a causa do atraso técnico que deixou para trás a produção industrial da Inglaterra em relação com a dos Estados Unidos e Alemanha; esta evolução já havia se esboçado muito antes de 1914. A guerra não foi a causa da paralisia industrial e comercial dos países coloniais explorados pelo imperialismo europeu; nesse âmbito, a responsabilidade incumbia à política imperialista tal como havia se praticado antes da Primeira Guerra Mundial, a qual conheceu mudanças apenas entre os dois conflitos.
Em outras palavras, ao haver cessado quase por completo sua expansão, o capitalismo europeu se viu obrigado a buscar novo equilíbrio. O capitalismo estadunidense, por seu lado, também tinha que encontrar novas válvulas de segurança, já que sua expansão através do seu próprio território havia terminado e a expansão mais além das suas fronteiras nacionais não bastava para fazer frente ao incremento de uma produção em pleno auge. Nos Estados Unidos como na Europa, o capitalismo já não estava em condições de solucionar tais problemas.
Stemberg analisa a crise dos anos trinta como a incapacidade do capitalismo para sincronizar, naquela época, o aumento da produção e do consumo: "A prova que consistia em sincronizar, sobre a base da economia do lucro capitalista e sem expansão externa importante, por um lado o aumento da produção e da produtividade, e, por outro lado, o aumento do consumo, fracassou. A crise foi o resultado desse fracasso" (El conflito del siglo). É essa uma expressão de Stemberg muito ambígua que faz pensar que tal sincronização seria possível sob o capitalismo, a qual é, por outra parte, contraditória com outras ideias do seu livro sobre o período histórico anterior à crise dos anos trinta. Tal consideração decorre de uma concessão ao Keynesianismo.
Após quase duas décadas de prosperidade durante os anos 60 e 70 [14], uma prosperidade em parte real, em parte aparente, a crise volta em 1967. Contrariamente ao que se produziu na crise de 29, a classe dominante desta vez não esperou quatro anos para reagir. Recorreu imediatamente ao crédito.
Logo depois da Segunda Guerra Mundial, a burguesia havia sistematizado o recurso ao crédito. Assim, após haver tocado o fundo em 1953-1954, a dívida total estadunidense volta a se incrementar lenta, porém firmemente a partir de meados dos anos cinqüenta. Esse endividamento, ao criar um mercado artificial, serve de substituição aos últimos mercados pré-capitalistas importantes ainda existentes, mas em processo de esgotamento. O endividamento e as sobras de mercados pré-capitalistas contribuíram, para dar as saídas necessárias à atividade econômica sustentada dos anos 1950-60.
Desde finais dos anos setenta, houve recessões declaradas oficialmente que afetaram os Estados Unidos em 1969, 1973, 1980, 1990 e 2001.[15] A solução à qual tem recorrido sempre a burguesia norte-americana para enfrentar essas dificuldades é ilustrada perfeitamente pela curva do endividamento que vai subindo fortemente a partir dos anos setenta e desmedidamente a partir dos anos noventa. E todas as burguesias do mundo têm atuado na realidade da mesma maneira.
Esses quarenta últimos anos se resumem a uma sucessão de recessões e a uma subida exponencial da dívida mundial. Cada novo endividamento serve para criar artificialmente as saídas mercantis necessárias para uma retomada da atividade econômica, para sair da recessão. De modo que a própria realidade das medidas adotadas pela burguesia diante das suas crises, desde quarenta anos, encarrega-se de responder à pergunta seguinte do artigo Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual? (que se dirige a nós e igualmente a todos aqueles que defendem a teoria Luxemburguista da acumulação): "Como é possível o modo de produção capitalista se reerguer de uma crise se a premissa mais fundamental [para quem adota a teoria Luxemburguista da acumulação] para a sustentação, no caso, o mercado, não existe como a premissa [tendo em conta de que, segundo esses mesmos analistas, está cada vez mais saturado]?" Repetimos, as premissas em questão existiram em abundância sob a forma de mercados extracapitalistas durante todo o período 1850-1914; quando se esgotaram, em finais dos anos cinqüenta, um mercado artificial baseado no endividamento os substituiu. Para a burguesia é hoje muito mais difícil continuar da mesma maneira e isso é o que explica que entramos em uma nova fase da crise aberta nos finais dos anos sessenta.
O endividamento não é uma solução mágica e sim é, ao contrário, um círculo vicioso: os capitalistas produzem mais mercadorias do que o mercado pode absorver; logo o crédito cria uma demanda artificial; os capitalistas vendem suas mercadorias e voltam a investir na produção o lucro assim obtido; é necessário, então, novos créditos para comprar as novas mercadorias.
Desse modo, não só se acumulam dívidas, como também, além do mais, em cada novo ciclo, as novas dívidas devem ser cada vez maiores para manter uma idêntica taxa de crescimento, por ter se ampliado a produção.
Desde 1966, o endividamento é cada vez menos eficaz para gerar crescimento, de modo que o volume da dívida mundial é cada vez mais desproporcional em relação à riqueza real da economia mundial. Isso é o que significa o fato de que o endividamento se constitui em um percentual cada vez maior do PIB, agora inclusive superior a 100% em alguns países. Esse percentual é, na realidade, ainda mais importante se compararmos o endividamento não com o PIB mundial, mas com a riqueza real mundial que exclui na coluna de ingressos das contas do PIB tudo relativo a gastos "improdutivos" (como a indústria de armamentos), quer dizer, tudo relacionado com uma produção que não pode incorporar, de uma forma ou de outra, um novo ciclo da produção.
Além disso, durante os últimos vinte anos, uma parte crescente das receitas da economia real, passou a inflar as bolhas especulativas (a bolha Internet, a das Telecomunicações, dos bens imóveis...). Isso se deve a que se apresenta como mais rentável e menos arriscado especular na bolsa do que investir na produção de mercadorias que têm maiores dificuldades para se vender.
Um endividamento massivo, que afeta o conjunto dos protagonistas econômicos, aumenta os riscos de quebra de um número crescente desses, do estouro de todas as bolhas especulativas e de recessão da economia. Em tais circunstâncias, características do período atual, torna-se muito mais difícil a obtenção de novos créditos em quantidade suficiente para manter a economia à tona e, mais ainda, para reativá-la. Por isso o endividamento, embora permitisse adiar o estouro de uma crise aberta nos finais dos anos sessenta, foi preparando, ao mesmo tempo, as condições de cataclismos econômicos futuros.
Quando nós sublinhamos a consequência da insuficiência dos mercados no surgimento das crises, o artigo Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual?, por sua parte, alega a insuficiência taxa de lucro desde meados dos anos sessenta: "fica muito claro que a manutenção das taxas de acumulação e do produto deixadas pela situação por volta do ano de 1966 só poderiam ser sustentadas com uma taxa de lucro no mínimo igual à que vigia nesses anos, e que, portanto, a taxa de lucro decaída não era adequada para arrastar a pletora de capital físico existente, alcançada por volta de 1966 e herdada da fase de boom da onda longa do pós-guerra." Por outro lado, o artigo toma em conta os dados estatísticos que indicam uma taxa de lucro em crescimento a partir dos anos oitenta (sem nunca conseguir igualar as taxas de lucro de meado dos anos sessenta). E explica essa situação pela política da burguesia destinada a atrasar a tendência decrescente da taxa de lucros mediante uma exploração acrescentada da classe operária e pela fuga dos capitais do setor produtivo para o da especulação onde os lucros são maiores: "Note-se que os lucros permanecem em elevação não obstante a produtividade estar em forte queda durante praticamente todo o período entre os anos 1960 a 2003 - sobretudo nos anos pós-1981 -, o que só pode significar que o crescimento dos lucros advindos no caso do processo produtivo deve ser creditado principalmente à coleta da mais-valia absoluta - de que resulta que os maiores componentes dos lucros elevados no período dos anos pós-1981 são provenientes da exploração da mais-valia absoluta e das operações especulativas com capital fictício - ainda que uma parcela dos lucros acumulados durante esse mesmo período de disjunção a que fizemos referência vão ser aplicados em efetiva acumulação nos anos de boom de parte da década de 1990, sendo que nesse caso os lucros realizados se devem, também, como é sabido, às tecnologias da informática."
Essa análise merece alguns comentários. Um aumento da taxa de lucro concomitantemente com uma diminuição da taxa de acumulação, como assim ocorre a partir dos anos 1980 é típico de uma insuficiência de saídas para a produção. Embora cada mercadoria vendida produza mais lucros, o estreitamento do mercado tem por consequência a obtenção de uma massa de lucros menor, em todo caso insuficiente para manter o nível da acumulação mediante novas inversões.
Essa evidente constatação invalida, ao nosso modo de ver, a tese do caráter determinante da taxa de lucro, sem por isso negar sua realidade e sua importância, em relação, precisamente, com a insuficiência do mercado. Com efeito, inclusive com uma taxa de lucro em baixa, como assim ocorreu depois dos meados dos anos sessenta, continua sendo determinante, em última instância, a questão do mercado, pois é a este que incumbe proporcionar saídas em maior quantidade para assim compensar uma taxa de lucro menor. Isso era possível na fase de prosperidade do capitalismo entre 1850 e 1914. Isso se tornou muito mais difícil mais tarde, na fase de decadência do capitalismo, mesmo mediante a criação de um mercado artificial. Em qualquer caso, a melhor taxa de lucro com a qual a burguesia poderia sonhar só produzirá um efeito reduzido diante de um mercado que, como hoje, depende inteiramente do fluxo de crédito, um crédito cada vez maior em relação com a riqueza real da economia, e cuja mobilização é, portanto, cada vez mais difícil.
Para o artigo Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual?, o que caracteriza plenamente a decadência do capitalismo é a existência de uma bolha de acumulação: "Como a mais-valia relativa deixou de ser a fonte principal e como se registra um descolamento acentuado entre a taxa de lucro e a acumulação, só resta uma explicação plausível para o movimento de capitais nesse período: a taxa de lucro volta a crescer em função da desqualificação da forca de trabalho e da acumulação financeira, e esta acumulação - acumulação-bolha -, é que vai caracterizar o período de decadência máxima de toda a ordem do capital."
Uma coisa é certa: quanto mais se afunda o capitalismo na decadência, tanto mais se enfrenta o sistema com contradições inextrincáveis. É por isso que, a nosso parecer, falar de "período de decadência máxima" não tem sentido, posto que a cada instante desde que se abriu esse período histórico, a decadência é mais avançada de que no momento anterior e menos de que no seguinte. Quanto a caracterizar a entrada de cheio na decadência pela existência de uma bolha de acumulação, se é essa a ideia do artigo, isso significa, no nosso entendimento, subestimar todas as consequências das mudanças que acarretaram o estouro da Primeira Guerra Mundial na vida da sociedade, e especialmente, o fato de que o período iniciado por essa guerra tornou possível e necessária a revolução para evitar a barbárie generalizada e o final da humanidade. Enquanto a queda da sociedade na sua decadência, até alcançar um "nível máximo" de contradições não é em nada sinônimo de fortalecimento das condições materiais favoráveis para a revolução, como demonstram as catástrofes de todo tipo que já estão colocando em perigo a sobrevivência da humanidade e são o produto de quase um século de decadência. Porém, isso é outro debate.
[1] Essa compreensão se baseia dentre outras coisas no fato de que a guerra, longe de constituir um fenômeno isolado da vida da sociedade, sempre foi considerada pelos marxistas como uma expressão perfeita das contradições do modo de produção capitalista, e em particular da sua base econômica.
[2] Consideramos já ter contribuído com esta explicação, em particular através da publicação do artigo, Respuesta a CWO, las contradicciones fundamentales del capitalismo en la Revista internacional n° 127. Vários extratos e citações desse artigo não traduzido para o Português foram recolhidas neste texto.
[3] Aqui não podemos mas que dar uma resenha muito parcial desses debates. Para uma informação mais exaustiva sobre o tema, aconselhamos a leitura do livro Crisis y teoría de las crisis (1974) de Paul Mattik. Membro da Esquerda comunista que militou no KAPD durante a revolução alemã, após ter emigrado para os Estados Unidos em 1926, militara no IWW e escrevera muitos textos políticos inclusive sobre as questões econômicas. A esse respeito, indicamos obras conhecidas: Marx e Keynes - os limites da economia mista publicado em 1969 e Crise e teorias das crises. Mattick faz basicamente resultar a crise do capitalismo da queda da taxa de lucro. Nesse sentido, diverge da interpretação Luxemburguista das crises, a qual, sem negar a queda da taxa de lucro, insiste essencialmente na necessidade de que uma parte dos lucros capitalistas se realize fora da esfera das relações de produção do sistema para que este possa desenvolver-se. É de se assinalar a capacidade de Mattick para resumir magistralmente em Crisis y teoría de las crisis as contribuições à teoria das crises dos sucessores de Marx, de Rosa Luxemburgo a Grossmann, passando por Tougan Baranowsky sem esquecer Pannekoek. Seus desacordos com Rosa Luxemburgo não o impediram em absoluto em dar conta de maneira totalmente objetiva e inteligível dos trabalhos da grande revolucionária.
[4] O livro IV foi compilado por Kautsky baseando-se nas notas deixadas por Marx. Exatamente como fez Engels com os livros II e III. No entanto, essa denominação de livro IV não significa necessariamente que os documentos que contém foram escritos por Marx posteriormente aos do livro III.
[5] Deve-se, entretanto, assinalar que passagens de Marx preparam alguns desenvolvimentos feitos ulteriormente por Rosa Luxemburgo. Encontram-se notadamente nos Gründrisse ou na parte do livro III de O Capital dedicada à analise da contradição da queda da taxa de lucro e são citados neste texto no séio do capítulo relativo ao papel dos mercados extracapitalistas no desenvolvimento do capitalismo.
[6] "Assim que o quantum de mais-trabalho extraível está objetivado em mercadorias, a mais valia está produzida. Mas com essa produção de mais-valia está concluído apenas o primeiro ato do processo de produção capitalista, o processo direto de produção. O capital absorveu tanto e tanto trabalho não-pago. Com o desenvolvimento do processo, que se expressa na queda da taxa de lucro, a massa de mais valia assim produzida se infla enormemente. Agora vem o segundo ato do processo. O conjunto da massa de mercadorias, o produto global, tanto a parte que substitui o capital constante e o variável, quanto a que representa a mais valia, precisa ser vendido. Se isso não acontece ou só acontece em parte ou só a preços que estão abaixo dos preços de produção, então o trabalhador é certamente explorado, mas sua exploração não se realiza enquanto tal para o capitalista, podendo estar ligada a uma realização nula ou parcial da mais-valia extorquida, e mesmo uma perda parcial ou total de seu capital. As condições de exploração direta e as de sua realização não são idênticas. Divergem não só no tempo e no espaço, mas também conceitualmente. Umas estão limitadas pela força produtiva da sociedade, outras pela proporcionalidade dos diferentes ramos da produção e pela capacidade de consumo da sociedade. Esta última não é, porém, determinada pela força absoluta de produção nem pela capacidade absoluta de consumo; mas pela capacidade de consumo com base nas relações antagônicas de distribuição, que reduzem o consumo da grande massa da sociedade a um mínimo só modificável dentro de limites mais ou menos estreitos. Além disso, ela está limitada pelo impulso à acumulação, pelo impulso à ampliação do capital e à produção de mais-valia em escala mais ampla. Isso é lei para a produção capitalista, dada pelas contínuas revoluções nos próprios métodos de produção, pela desvalorização sempre vinculadas a elas do capital disponível, pela luta concorrencial geral e pela necessidade de melhorar a produção e de ampliar sua escala, meramente como meio de manutenção e sob pena de ruína. Por isso, o mercado precisa ser constantemente ampliado, de forma que suas conexões e as condições que as regulam assumam sempre mais a figura de uma lei natural independente dos produtores, tornando-se sempre mais incontroláveis. A contradição interna procura compensar-se pela expansão do campo externo da produção. Quanto mais, porém, se desenvolve a força produtiva, tanto mais ela entra em conflito com a estreita base sobre a qual repousam as relações de consumo" (O Capital, Volume III Tomo 1 Ed. Abril Cultural; 1984; pg 185).
[7] O desenvolvido por Rosa não é senão o que Marx explicou sempre em todos os seus trabalhos econômicos, e isso desde o princípio. No seu opúsculo Trabalho assalariado e capital, por exemplo, dirá: "Essas (as crises) se fazem mais frequentes e mais violentas, e só pelo fato de que à medida que cresce a massa de produção e, portanto, a necessidade de mercados mais extensos, o mercado mundial vai reduzindo-se mais e mais e restam cada vez menos mercados novos a explorar, pois cada crise anterior submete o comércio mundial um mercado não conquistado ou um mercado que o comércio só explorava superficialmente" (Ed. La Pléiade, Économie I : 228:; Tradução nossa)
[8] Fritz Sternberg. Economista marxista e socialista alemão. Participou no Congresso contra o imperialismo de Bruxelas de 1929. Judeu, teve de fugir em 1933, encontra-se com Trotsky na França e se exila nos Estados Unidos em 1939. Obtém a cidadania Norte-americana em 1948. Seus livros, que desenvolvem as teses de R. Luxemburgo, são bem recebidos pelo trotskista Pablo. A partir de 1954, retorna à Europa como conselheiro do sindicalismo alemão.
[9] Para não sobrecarregar nosso texto, não fizemos distinção da nossa própria análise as muito numerosas contribuições de Stemberg, ou pela qualidade da exposição, ou para separarmos explicitamente desse autor criticando idéias que não compartilhamos.
As passagens relativas a outros autores citados na própria obra de Stemberg trazem a marca distintiva de uma citação.
[10] Não há de se esquecer, no entanto, que o território em questão foi também se expandindo mediante compras (Luisiania em 1803, Alaska em 1867) e guerras. A guerra contra o México (1846-1848) e o tratado de Guadalupe Hidalgo implicou na anexação do Texas e, mais tarde da Califórnia. O Tratado de Oregon (1846) estabeleceu a linha fronteiriça entre Estados Unidos e Canadá ao oeste das Rochosas. No final, em 1898 se produziu a anexação do Havaí e em 1912 o ingresso do Arizona na união. Além do mais, e sobretudo, o deslocamento da "fronteira" para o Oeste se fez à custa da usurpação das terras das tribos indígenas e da matança dos seus integrantes. (fonte Wikipedia)
[11] Esse testemunho tem um grande valor, pois ele é de um político pouco propenso em geral a dar por inevitáveis o impulso imperialista e, seu resultado, a Guerra Mundial. Embora a explicação do imperialismo como expressão da acumulação do capital fique mais clara em alguns marxistas que em outros (ler particularmente nosso artigo sobre o imperialismo, Revista Internacional no 19, 4o trimestre de 1979), todos refutavam a tese de Hobson, de Kautsky e demais que consideravam o imperialismo como uma simples "política" escolhida pelo capitalismo, ou melhor, por frações particulares do capitalismo. Essas teses vinham acompanhadas logicamente da ideia de que não era possível demonstrar que o imperialismo era uma má política, dispendiosa e de pouco alcance, e que se podia convencer os setores mais intelectualizados da burguesia de que seria mais proveitoso para eles uma política generosa, não imperialista. Tudo isso abria claramente as portas a todo tipo de receitas reformistas, pacifistas, destinadas a fazer acreditar na possibilidade de um capitalismo menos brutal e menos agressivo .
[12] A batalha de Waterloo teve lugar em 18 de junho de 1815. Terminou com a vitória decisiva dos exércitos dos aliados compostos principalmente por britânicos, alemães (tropas de Hannover, de Bismark, de Nassu) e holandeses, comandados pelo duque de Wellington, e o dos prussianos, comandado pelo marechal Blucher, opostos todos ao exército francês denominado "Exercito do Norte" comandado pelo imperador Napoleão Iº (fonte Wikipédia)
[13] Em 28 de junho de 1914, em Sarajevo, Gavrilo Princip, sérvio da Bósnia, nacionalista yugoslavo, membro do grupo Jovem Bósnia (Mlada Bosna), mata o arquiduque Francisco-Fernando, herdeiro do império austro-húngaro, e a sua esposa a princesa de Hohenberg, no momento em que a sua ascensão ao trono parecia iminente. O atentado de Sarajevo é considerado como o acontecimento desencadeante da Primeira Guerra Mundial.
[14] Entre 1950 e 1967, o capitalismo conhece uma fase de crescimento importante do PIB em alguns quantos países, a qual se denominou algumas vezes "As Trinta Gloriososas". O objetivo desse artigo não é analisar as causas desse tipo de parênteses no marasmo econômico do século XX. Na CCI está se desenvolvendo hoje um debate para entender melhor os fundamentos daquele período de prosperidade. Debate que começamos a publicar na nossa imprensa (ler "Debate interno en la CCI - Las causas del período de prosperidad consecutivo a la Segunda Guerra Mundial" na Revista internacional n° 133, 2o trimestre de 2008, e nos n° 135, 136, 137, 138 y 141 da referida Revista internacional).
[15] Fonte : https://www.nber.org/cycles.html [51]
Capitalista não gosta de crise; capitalista que se preza tem horror à crise; capitalista de verdade sonha com um desenvolvimento "sustentável" no qual a acumulação da riqueza não sofra nenhuma interrupção; capitalista para valer sonha com um sistema no qual a sua classe poderia dispor da energia vital de seus empregados num crescendo sem nenhum problema e sem qualquer interrupção; o mundo dos sonos de um bom capitalista seria aquele no qual ele pudesse acumular sem qualquer solução de continuidade e aborrecimento. Por que, então, as crises, contrariando as expectativas e sonhos dos senhores do capital ocorrem, se instalam, arrebentam massas de capital, levam bancos e empresas à falência, fazem entrar pelo ralo do sistema massas de lucro crescentes, enquanto governos, economistas e empresários, atônitos uns, verdadeiras baratas tontas, outros, não conseguem reverter uma crise, pelo menos nos prazos, nas condições e nas circunstâncias ditados pelos discursos oficiais?
De início, porque uma coisa é a decisão tomada individualmente por cada empresário capitalista, e outra muito diferente são as decisões tomadas pelo conjunto da classe capitalista. Numa unidade empresarial capitalista existe uma racionalidade tal que cada capitalista pode muito bem agir: 1) determinando que tipo de mercadoria (e em que quantidade) vai produzir e; 2) arregimentando os objetos e meios de trabalho necessários à produção de mercadorias. Para esclarecer, com um exemplo, vejamos o caso de produzir pneus para carros: os engenheiros desenham o modelo de pneu que a fábrica deve produzir; o conselho deliberativo da empresa, tomando por base sondagens de mercado ou acionando dispositivos políticos para assegurar as vendas de suas mercadorias, estipula o número de pneus a serem produzidos; o departamento de compras providencia a aquisição das matérias-primas, matérias auxiliares e meios de trabalho necessários para a produção dos pneus; o departamento de "recursos humanos" contrata o batalhão de trabalhadores que vai imprimir movimento à produção; o departamento de engenharia procede aos testes de resistência do tipo de pneu produzido, etc.; e, no dia estipulado, se as condições "atmosféricas" são favoráveis - ou então, se o mercado está de "bom humor"-, o departamento de vendas despacha a massa de mercadorias para os comerciantes autorizados venderem ao consumidor final. A operação total foi coberta de êxito - motivo de sobra para mais uma comemoração: bravos! Prêmios podem ser distribuídos, sem faltar a célebre plaquinha com a foto de um trabalhador - o mais "bem comportado" de todos - e com o velho e desbotado bordão nela gravado: "operário padrão".
Isso porque cada empresário capitalista, em "condições normais de temperatura e pressão", age segundo determinações de uma única vontade, a sua. O fato é que a produção de sua empresa integra centenas ou milhares de atos de trabalho de seus inúmeros trabalhadores, todos eles atos teleológicos de trabalho[1], sendo que a soma de atos teleológicos de trabalho de centenas ou milhares de trabalhadores no âmbito de sua fábrica funciona como um grande e conexo ato teleológico de trabalho do conjunto da empresa.
Já no conjunto da economia social, a teleologia desaparece para dar lugar à causalidade - o que equivale a dizer que as leis que regem o conjunto da economia já não são as simples leis que regem cada capital privado, porém leis que derivam da totalidade do sistema; leis que negam racionalidade ao sistema; leis que obrigam a que o resultado das inúmeras decisões planejadas dos milhares de capitalistas individuais não obedeçam, no conjunto da produção social - vale dizer, da produção enquanto modo de produção capitalista -, a nenhum objetivo ou plano previamente estipulado por uma ação coordenada; leis que imprimem um movimento cego - daí o caráter anárquico do modo de produção capitalista - e que constituem, em ultima instância, o espaço onde se batem todas as contradições inerentes à ordem do capital, de que resultam as crises capitalistas.
Eis, numa visão resumida, o motivo pelo qual nenhum capitalista individual pode escapar da crise e também porque nem a classe capitalista pode debelar uma crise num tempo qualquer e independentemente de um processo de maturação da própria crise enquanto processus. A crise traz consigo, portanto, uma disposição mais uma vez dialética, no sentido de que combina um certo grau de determinismo com um outro que dá lugar à intervenção consciente das classes nela envolvidas - tanto da burguesia, no sentido de superar a crise e arremeter a economia para um novo ciclo de crescimento, quanto do proletariado, no sentido oposto. O êxito na disputa entre essas duas classes vai depender de uma certa ordem de condições e circunstâncias, entre as quais a própria dimensão da crise e a capacidade de organização de uma classe diante da outra de arregimentar meios para impor o seu projeto de classe.
Estamos diante de um aparente paradoxo: dizíamos mais acima que não existe um movimento teleológico no conjunto do movimento do modo de produção capitalista, e agora dizemos que as duas classes podem conduzir o sistema social como um todo para objetivos e um projeto seu. Não existe paradoxo algum nesta afirmação, de vez que qualquer um dos dois projetos de classe, que venha a reunir as condições de êxito, só pode ser realizado - um, o da burguesia, pela contrarrevolução, outro, o do proletariado, pela revolução - a partir das possibilidades que emanam das contradições dadas pelo mesmo sistema em crise. Uma sociedade que se move por leis e pelo império da necessidade (causalidade) cega aponta tendências que, se bem compreendidas, e a depender de condições e circunstâncias dadas, podem ser potencializadas. Em poucas palavras, a sociedade capitalista que evolui à base de leis cegas, portanto sem obedecer, como totalidade, a nenhuma "intenção", a nenhum plano previamente traçado, dá lugar, por conta das imensas contradições sociais que armazena e que explode nas ocasiões de crise, a duas ordens de possibilidades antitéticas: a de uma reposição das premissas da reprodução do capital num outro patamar ou, ao contrário, a de uma ruptura que signifique a derrocada da (des)ordem do capital. Pelo menos era assim que o capitalismo vinha-se desenvolvendo até aqui.
Se a burguesia é a classe que reúne as condições de vantagens sobre o proletariado, ela pode, como na maioria das vezes pôde, reunir forças e meios, acionados e coordenados pelo (seu) Estado e (seus) governos, para, num tempo dado de maturação de tais esforços - que não é o tempo demagogicamente propalado pelas suas elites "bem pensantes" - disparar contratendências à crise (entre as quais o arrocho salarial, a queima do capital excedente desvalorizado, entre outras) e, tateando, sair dela inaugurando um outro ciclo de crescimento.[2] Se, do lado oposto, dada uma situação de crise grave - numa reconhecida situação revolucionária [3] -, a burguesia já não pôde ou já não pode estar com a iniciativa, e esta esteve ou venha a estar com um proletariado consciente, mobilizado, organizado e bem dirigido com base num projeto de classe, como foi o caso da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, então, em tais circunstâncias, é a classe operária a que pode ultrapassar a crise do modo de produção, mas dessa vez não para reabrir mais um ciclo de reprodução do capital, mas para declarar e praticar a sua ruptura inaugurando, pela via revolucionária, um outro modo de produção e de existência social.
Quando então, diante de uma crise de superprodução, a iniciativa está com a burguesia, quais as premissas sobre as quais dá-se início a uma superação que é - em se tratando de uma saída da crise do ponto de vista do capital - a inauguração de um novo ciclo de acumulação do capital? A situação, em tais estágios, tem sido aproximadamente esta: esgotadas as contratendências, que até então evitavam a precipitação da taxa de lucro, esta se encontra agora, num patamar crítico; ela caiu até um nível irrisório - um nível que não pode mais assegurar a mobilização do acervo de capital super-acumulado -, por conta, em primeira mão, de um movimento da produção, que paralisa a taxa de mais-valia e a taxa de lucro do conjunto da economia e, em segunda mão, como resultado ainda por efeito, em ultima instância, do movimento da mesma produção, da ausência do mercado no qual as mercadorias deveriam poder ser realizadas. Afinal de contas, super-acumulação é um estado no qual a plataforma da produção de mercadorias acumulou capital em excesso, para uma demanda social dada. As duas pontas, assim dispostas, fecham o cerco e dão passagem ao momento da crise de superprodução.
Sempre existiu no quadro pelo qual a burguesia tem conseguido dar início a um ciclo de crescimento, uma enorme massa de capital excedente sem função, ocioso, desvalorizado, sucateado combinado com o desemprego massivo de trabalhadores e, consequentemente, com um mercado consumidor tão enrugado que se coloca com um grave bloqueio à realização (venda) da massa de mercadorias disponíveis para troca. Partindo, portanto, do movimento autônomo da produção e completado pela contração do mercado (causada pelo desemprego e pelo rebaixamento dos salários), as mercadorias não podiam, como não podem, escoar, e, não sendo vendidas, portanto, sobrando nos estoques das empresas, determinam, no limite, uma queda da massa e da taxa de lucro (não realizados) que se tornam incapazes de sustentar a continuidade do processo de reprodução ampliada do capital. Aqueles analistas - em especial os que seguem a teoria luxemburguista da acumulação do capital - que colocam o mercado como a premissa mais decisiva da acumulação, não conseguem dar uma explicação convincente do porquê de o capital conseguir abrir caminhos para a retomada do crescimento num quadro no qual o mercado se encontra mais restringido. Como é possível o modo de produção capitalista se reerguer de uma crise se a premissa mais fundamental para a sustentação, no caso, o mercado, não existe como a premissa?
A história das crises capitalistas não deixa dúvidas a esse respeito: a retomada dos ciclos de acumulação do modo produção capitalista se dá não pelo mercado em si mesmo, mas, também aqui, por um movimento que tem sua gênese na produção. Sempre que foi possível um novo ciclo, esse se deu pela retomada da taxa de mais-valia [4] e, consequentemente, da taxa de lucro [5] em condições de máximo desemprego e de um mercado consumidor em baixa. Para tal, a burguesia teve de criar novos arranjos tecnológicos - nomeadamente do capital fixo [6] -, adquirir, por preço mínimo, as empresas que não conseguiam manter-se no jogo da concorrência, contratar trabalhadores pagando salários aviltados e, ocupando, num primeiro momento, o espaço de mercado deixado pelo capital que foi retirado da arena da concorrência à força. É, portanto, dentro dos limites do modo de produção capitalista, sem que haja necessidade de apelar para artifícios situados fora dele, como "mercados extra-capitalistas" e outras miragens, que se apresentam e são superadas as premissas de seus momentos de crise e de superação. Uma vez repostas as condições para uma retomada da taxa de lucro e, complementarmente, de um mercado inicial, o movimento de retomada da reprodução ampliada (que leva no seu bojo, pelo aumento da atividade econômica e da diferenciação da divisão social do trabalho, à ampliação e à diferenciação do mercado consumidor) se dá mediante investimentos novos em regime de reforço mútuo entre os Departamentos I e II da economia. Dessa maneira é posto em marcha um novo ciclo que, mais adiante, repetirá mais outra crise sob condições mais graves ainda.
Posto isso, podemos avançar um pouco mais em nossa investigação ao mesmo tempo teórica e empírica. Afirmamos aqui, categoricamente, que existem situações nas quais as contradições acumuladas foram tão longe que o capital não mais encontrava meios com os quais pudesse reverter uma crise - nestes casos, o momento da subjetividade "normal" era, como segue sendo, totalmente anulado pelo da ação imperativa da ruptura, que coloca a questão da decisão num outro plano: no do embate entre o socialismo e a barbárie. Com isso, o momento da subjetividade contrarrevolucionária pelos meios "pacíficos" avança para o terreno da luta de classe em estado de paroxismo. É exatamente o que está começando a acontecer nos dias atuais.
Desde os anos 1960-70 o capital deixou de ter na acumulação produtiva o ancoradouro privilegiado de seus investimentos; desde então, o capital reorienta os seus lucros para a esfera financeira, a qual acumula capital-dinheiro como nunca acumulou, tanto em volume como em duração, em toda a sua história. Já faz quatro décadas que essa situação, que noutros tempos era uma situação passageira, se prolonga até a derrocada presente; já faz quatro décadas que a acumulação produtiva se mantém numa linha de queda tendencial só, sendo que agora a linha de queda se precipita brusca e perigosamente para baixo apontando para uma depressão inusitada. Olhemos para as figuras 1, 2 e 3 mais abaixo.
Figura 1
Queda da taxa de crescimento
Tendência a longo prazo, 1970-99
Variação anual real do Produto Mundial Bruto (em %)
Elaborado com base em: FMI, 1997; Banco Mundial, 1998, 2000; IFRI-Ramses.
Figura 2
Taxas de crescimento do Pib real dos Estados Unidos
1961-2000* (em %)
*Crescimento real do PIB no ano 2000: estimativa da OCDE (OCDE, 1999).
Fontes: OCDE, 1998 e 1999; IFRI-Ramses 98; CPE, 1999
Figura3
Elas exibem a tendência de queda sistemática (a linha de queda está representada nos gráficos pela seta) das economias mundial e norte-americana desde os anos 1960, quando a crise atual teve inicio, até o ano 2007. Os gráficos revelam uma linha tendencial de queda do PIB em torno da qual ocorrem picos alternadamente para cima e para baixo - nos dois casos movimentos que não conseguem nivelar-se ao pico alcançado nos "anos dourados" - e as durações mínimas, contrariando as alcançadas nas crises anteriores. A ultima figura confirma a tendência de queda do produto bruto mundial registrada na figuras 1 e 2 nos anos recentes-até o ano de 2007. Acerca da tendência que ele evidencia, comenta Jorge Beinstein, que no-lo fornece:
O leitor pode observar, que, enquanto o produto bruto mundial cai sistemática e regularmente, os produtos financeiros derivados se movimentam no sentido oposto e com forte crescimento, fato que corrobora a tese central desse artigo de que os elevados níveis de produto, dos lucros e as taxas de lucro-que ainda confundem alguns analistas-não passam de bolhas sem a contrapartida de valor real, aspecto que será abordado mais adiante neste mesmo artigo. Vejamos agora a Figura 4, a seguir.
Figura 4:
Taxa bruta de lucro nos Estados Unidos
(Fonte dos Dados: OCDE, 2002).
Tomemos os dados da economia norte-americana, que é, pela sua condição de epicentro da acumulação e da crise, a mais representativa das tendências do conjunto da economia mundial. Observa-se que a evolução do PIB no mundo (Figura 1) tem a mesma estrutura do PIB dos EUA. A taxa bruta de lucro nos Estados Unidos declinou fortemente da segunda metade dos anos 1960 aos anos iniciais da década de 1980, quando recuou, no intervalo, em 70 pontos, ou seja, da referência 170 para 100 do mesmo referencial. Passou a crescer, a partir daí, até o ano de 1996, quando então ocorreu uma nova desaceleração, passando por uma nova subida, entre 2001 e 2005, voltando a experimentar a queda brusca que culminou com a avalanche depressiva de agora. Como o gráfico deixa meridianamente claro, o derradeiro pico para cima de peso da taxa de lucro aconteceu em torno dos anos que vão de 1966 a 1968, correspondendo ao ultimo pico para cima do embalo dos "anos de ouro", e que não mais será repetido. De fato, o segundo pico para cima, já situado no processo de crise atual, é muito mais baixo do que o pico dos anos 1960. Nos anos que vão de 2001 a 2005 um novo pico para cima ocorreu, porém, como o que o antecedeu, também não alcançou a performance anterior. Depois desse pico do ano de 2005, que não aparece no gráfico, já se sabe: a tendência à queda, assinalada pelas posições declinantes verificadas entre 1968 e 1996 e entre 1996 e agora, revela um movimento de desaceleração que inclina a linha de queda tendencial para patamares de uma depressão que certamente é muito mais larga e profunda do que a dos anos 1920-1930 - malgrado os escorchantes expedientes de expropriação da mais-valia (em parte da mais-valia relativa[8], com o emprego da informática e da robótica, em parte, da mais-valia absoluta, resultante do arrocho salarial e da super-exploração do trabalho pelo capital às expensas da reestruturação produtiva e das reformas neoliberais implantados, que ganham velocidade nomeadamente a partir dos anos 1990). A mesma tendência de queda da taxa de lucro se confirma se observarmos o aparecimento dos picos para baixo experimentados pela economia ianque: o pico para baixo, experimentado no ano de 1981, é mais forte do que o último deixado pelos anos 1960-1970 e o que está sendo experimentado agora é muito mais grave do que os que lhe antecedem. Recapitulando: tomando-se o índice 140 para representar a taxa de lucro no ano de 1960, a taxa de lucro atinge o seu máximo, 170, entre os anos de 1963 e 1966. O segundo pico para cima, de apenas 130 (40 pontos mais abaixo do que lhe antecede), ocorrerá em 1972, um terceiro, algo em torno de 120 (50 pontos abaixo), entre os anos de 1975 e 1978, outro dos mesmos 120, entre os anos 1987 e 1990, e um no entorno de 130 (40 pontos abaixo do pico de 170 dos "anos dourados"), entre os anos de 1996 e 1999.
Os movimentos de picos para cima da taxa de lucro média da economia americana, que ocorrem entre esses marcos definidores do processo geral de queda da taxa de lucro - como os que acontecem entre 1984 e 1996 e entre 2001 e 2005 - não conseguem, todavia, se igualar aos níveis alcançados nos anos 1960. Isso tem uma implicação muito importante, a saber: mantida constante a correlação entre a taxa de lucro e a taxa de acumulação - no caso em questão essa correlação se manteve aproximadamente constante durante um certo tempo (Figura 4), para um nível dado da pletora de capital acumulado num determinado momento, verbi gracia, o momento do último pico dos anos 1960, com a referência do índice máximo de 170, da escala da Fig. 3 -, a isso deve corresponder um nível determinado da taxa de lucro, e se essa taxa de lucro não consegue se nivelar, ex-post, à mais alta taxa de lucro anteriormente verificada, ou seja, à que correspondeu ao maior nível do PIB e da acumulação, então não restam dúvidas de que as taxas de lucro alcançadas pela economia americana pós-anos 1970 foram insuficientes para mobilizar a enorme massa de trabalho morto[9] acumulado do pós-guerra até os anos 1963-1966, sobretudo a parte fixa do mesmo, representada por uma quantidade de máquinas e instalações industriais jamais de longe imitada por qualquer época anterior em toda a história da humanidade.
Ademais, nos 20 anos, transcorridos entre 1961 e 1981, a capacidade instalada da economia permaneceu constante, porque, como se sabe, o capital fixo, o componente decisivo do capital constante, não se evapora e nem foi ampliado posteriormente em nenhum momento - ainda que possa padecer de uma certa e relativa "velhice". Por outro lado, a estreita correlação existente entre as taxas de lucro, da acumulação e do produto se mantém solidária na queda durante esses 14 ou 15 anos (os dados levam a supor que a mais-valia arrecadada era ainda convertida basicamente na acumulação produtiva). Ora, com base nesses pressupostos, fica muito claro que a manutenção das taxas de acumulação e do produto deixadas pela situação, por volta do ano de 1966, só poderiam ser sustentadas com uma taxa de lucro no mínimo igual à que vigia nesses anos, e que, portanto, a taxa de lucro decaída não era adequada para arrastar a pletora de capital físico existente, alcançada por volta de 1966 e herdada da fase de boom da onda longa do pós-guerra. O que ocorre é que esse tipo de análise tem de considerar a que níveis de produto e acumulação uma determinada taxa de lucro deve corresponder - e fica evidente que, depois de armazenar um máximo de capital fixo no ano 1966, ao que corresponderam as mais elevadas taxas de acumulação e do produto mantidas pela mais elevada taxa de lucro, os lucros realizados em todos os anos posteriores não se colocaram no nível necessário para assegurar a atividade dos "anos dourados".
Não é por outro motivo, lembrado seja, que em momento algum a economia americana e mundial deixou de operar com uma margem de capacidade ociosa nada desprezível. [10] A primeira façanha é muito mais fácil do que a segunda, porque pode ser alcançada com uma taxa de lucro menor, mas a segunda exige muito mais. É aqui que se percebe com maior nitidez o quão insuficiente tem sido a taxa de lucro para manter a reprodução ampliada do capital à escala. Ora, a bem da verdade, nem mesmo a proeza mais fácil foi realizada pela economia americana ou pela economia mundial - ou seja, nem para um crescimento que aproveitasse a cobertura da capacidade ociosa se obteve uma taxa de lucro adequada.
Tomemos, para análise, os dados da Figura 4, fornecidos pela OCDE.
Figura 5
Nela estão correlacionadas quatro tendências que cobrem as performances dos lucros, da acumulação, do PIB e da produtividade nas vastas conjunturas que ocorrem nos últimos 50 anos, incluindo o período de boom que antecede à crise dos finais dos anos 1960 e inícios da década de 1970. Duas tendências se manifestam de modo diferenciado: a primeira, já analisada nos parágrafos anteriores, acontece no início da fase recessiva do ciclo de onda longa do pós-guerra, que, como se pode ver pelos dados, ocorre numa estreita correlação entre as quedas nos quatro itens (a queda do produto está estreitamente relacionada com as quedas da produtividade, da acumulação e dos lucros); a segunda passa a acontecer a partir do ano de 1981, quando se verifica claramente uma crescente disjunção entre as performances em tela, principalmente entre os lucros e a acumulação. Analisemos com vagar os dados. Em todos os anos que vão de 1981 a 2001, o crescimento dos lucros se sobrepõe ao dos demais fatores[11]. Os lucros crescem inclusive nos intervalos de tempo de 1989 a 1991 e de 2000 a 2003, nos quais os elevados lucros obtidos não se traduzem em acumulação. Surgem as inarredáveis perguntas: Por que a taxa de lucro cai? Por que se dá tal disjunção? Para onde foram os lucros? Por que não foram convertidos numa acumulação regular e sistemática que fundamentasse um novo ciclo de acumulação duradouro, etc.?
A que se deveu a queda da taxa de lucro nos EUA, no período em questão? Considerando que, conforme explicou Mandel inúmeras vezes, o consumo matem-se em alta em todas as vésperas da detonação de uma crise, e que, por conseguinte, a baixa do consumo só acontece algum tempo depois, quando é grande o desemprego e o decréscimo dos salários, infere-se que não há porque buscar a causa da primeira queda da taxa de lucro numa suposta retração da demanda solvável, mas em outro campo. Considerando também que não é a queda do ritmo da acumulação e do produto-valor que causa a queda da taxa de lucro, mas, ao contrário, é a queda da taxa de lucro que acarreta a queda da taxa de acumulação e do produto-valor - termos nos quais a taxa de lucro é que é variável independente -, somos obrigados a buscar a causa da queda da taxa de lucro tanto fora do mercado como dos dois fenômenos logo acima analisados. Só existe uma única causa para explicar o declínio da taxa de lucro, e esta queda deve ser creditada à taxa de mais-valia - que cai exatamente quando a composição orgânica do capital[12] se encontra no nível máximo e em circunstâncias nas quais a produtividade está em baixa. De maneira que é na taxa de salário que se deve buscar a explicação dos fatos.
Figura 6: movimento dos salários nos EUA
Examinemos, portanto, o movimento dos salários na economia norte-americana no período em tela e conforme é apresentado na Figura 5. Note-se que os lucros permanecem em elevação, não obstante a produtividade estar em forte queda durante praticamente todo o período entre os anos 1960 a 2003 - sobretudo nos anos pós-1981 -, o que só pode significar que o crescimento dos lucros advindos no caso do processo produtivo deve ser creditado principalmente à coleta da mais-valia absoluta, além de operações especulativas com capital fictício - ainda que uma parcela dos lucros acumulados durante esse mesmo período de disjunção a que fizemos referência vão ser aplicados em efetiva acumulação nos anos de boom de parte da década de 1990, sendo que, neste caso, os lucros realizados se devem, também, como é sabido, às tecnologias da informática. Depois do ano de 2000, a disjunção aumenta bruscamente. Em suma, em todos esses anos os lucros cresceram mais do que os demais fatores e em todos eles foram logrados combinando mais-valia absoluta, em primeiro plano - o que não parece ser nenhuma blasfêmia, em se tratando de épocas de re-estruturação produtiva e neoliberalismo extremos -, com mais-valia relativa em segundo plano, e, muito provavelmente num plano maior, operações financeiras com capital fictício (lucros advindo das operações D - D').
Voltemos à Figura 5, que dá uma ideia da involução dos salários no período em tela. Comparando as figuras 4 e 5, pode-se observar algumas inferências que ilustram e corroboram nossos argumentos. Num primeiro plano estão as posições antitéticas dos movimentos dos salários e dos indicadores analisados nos parágrafos anteriores. Com efeito, a grande contração dos salários, encontrada entre os anos 1966 e 1971 - anos que estão situados na crise da década de 1970 -, está na base do boom verificado nos derradeiros anos da onda longa 1945-1975. Quando, a partir dos anos 1971-72, a fase recessiva toma impulso, os salários seguem uma tendência de alta, o que só pode ser explicada pela queda da taxa de mais-valia relativa em função da queda da produtividade, que é forte também, motivo de sobra para a aplicação de duas grandes contratendências: a reestruturação produtiva e o neoliberalismo .
O mais notável é que os salários sofrem enorme queda nos anos pós-1981, atingindo queda máxima no ano de 1996. Como a produtividade estava em queda - que atinge o maior grau nos anos 1990, 2000 e 2001 -, a coleta de mais-valia relativa também estava em declínio, e aí só existe uma inferência a ser tirada da análise dos fatos: a taxa de lucro se eleva, dos anos 1991 em diante, por intermédio da coleta da mais-valia absoluta e por conta dos lucros realizados na esfera da especulação. Não existe mistério algum nisso, de vez que é nesse período que entra em cena com o máximo vigor a dobradinha reestruturação produtiva/neoliberalismo, dando vazão à máxima desregulamentação dos mercados financeiros e das relações trabalho-capital. Os dados falam por si sós: é nos anos entre 1990 e 1996 que os salários sofrem a queda mais brusca de todos os anos cobertos pelos dados, como é também nesses anos que a acumulação atinge seu ponto máximo no período 1983-2003. Como a mais-valia relativa deixou de ser a fonte principal e como se registra um descolamento acentuado entre a taxa de lucro e a acumulação, só resta uma explicação plausível para o movimento de capitais nesse período: a taxa de lucro volta a crescer em função da desqualificação da força de trabalho e da acumulação financeira, e esta acumulação - acumulação-bolha -, é que vai caracterizar o período de decadência máxima de toda a ordem do capital.
Agora vem a outra pergunta: para onde foram essas massas de lucro, sobretudo depois dos anos 2001-2005, quando a disjunção entre lucros e acumulação produtiva atingiu o estado de paroxismo? Não é necessário ser nenhum Keynes para "adivinhar" o paradeiro dessa massa de lucros; basta consultar os anais da assim chamada "crise do subprime" para conhecer os endereços dos sorvedouros de tais lucros - os endereços dos hedge funds, dos bancos e instituições financeiras que praticaram uma monumental orgia napoleônica com trilhões de dólares que abandonaram a economia real na busca de lucro fácil.
Agora a última pergunta se impõe: por que esses lucros não foram investidos na economia real? É preciso convir que os trilhões de dólares circulados - que inflam os verdadeiros lucros constituídos de valor-trabalho - na ciranda financeira não só não existiram sempre como podem ter crescido a partir da transferência de uma massa inicial oriunda dos ramos produtivos nos quais os investimentos não compensavam mais e que cresceram a partir da dinâmica do próprio setor financeiro (cuja dinâmica obrigou a emissão de moeda em quantidades astronômicas) e que finalmente corresponderam, como se sabe, em bolhas de "valor" puramente fictício. Nada do que aconteceu - que é, como cremos, o que acabamos de descrever - nega, antes confirma, a tese de que tudo isso aconteceu por conta de uma crise que resulta da queda da taxa de lucro da economia produtiva mundial, que se deu por conta do brutal crescimento da composição orgânica do capital, pelo estiolamento das contratendências disparadas pelo capital, que tornou essas taxas de lucro incompatíveis alavancas da continuidade da reprodução ampliada do capital pós-anos 1970 - combinada com a retração do mercado de consumo resultante da extrema concentração da renda, das políticas neoliberais e do desemprego que a própria crise produz e reproduz como resultado e pressuposto.
Há, pois, em suma, quatro décadas que o capital, lançando mãos da reestruturação produtiva, vem tentando explorar mais-valia e, não obstante esse brutal empenho, não consegue arremeter sinalizando um ciclo de onda longa como o anterior (de 1945 a 1975). Durante essas décadas, o máximo que ele tem conseguido são ciclos de curta duração, cada vez menores, que logo se esgotam, deixando atrás de si problemas cada vez maiores para os quais não tem logrado nenhuma solução: desemprego estrutural, rebaixamento extremo dos salários em condições de trabalho precaríssimas, violência atingindo níveis e dimensões absolutamente sem paralelo em toda a história, etc., etc. Ou seja, aquela recuperação dos níveis de emprego, dos salários, de algumas modalidades de assistência social que, de certa forma, voltava a existir a cada novo ciclo de expansão, desde os anos 1970, não se vê mais.
O que está na base dessa manifesta incapacidade do capital de recuperar a economia? Podemos reiterar a linha de entendimento que desenvolvemos no presente escrito e que pode ser resumidamente apresentada nos seguintes termos: a) do lado da produção, o trabalho morto (capacidade física de produção) acumulado até a crise dos "anos dourados" atingiu tal ordem de grandeza e, em posição antitética, o trabalho vivo (o exército de trabalhadores ativos) tornou-se tão insuficiente para mobilizá-lo que, por um lado, já não pode mais oferecer massas e taxas de mais-valia compatíveis com uma robusta taxa de lucro compatível com a mobilização da força produtiva acumulada; b) do lado do mercado, já se coloca com um espaço de longe insuficiente para absorver a torrente de mercadorias que a economia mundial está fisicamente em condições de ofertar. Em função desse malogro, o capital transfere-se para a acumulação-bolha, que também não constitui uma saída e que, pelo contrário, coloca-o numa berlinda muito incômoda: a crise estrutural do capital. Esta contradição, prenunciada por Marx, não resulta de um condicionamento técnico, pois o que está na sua raiz é o grau a que levou uma produção que possui uma vasta dimensão social em confronto com o caráter privado que ostenta. Noutras palavras, o que está no centro desta, que se coloca como a contradição central da produção capitalista hoje, é a insuperável contradição entre as imensas forças produtivas e as relações de produção de um capitalismo que amarga seus piores momentos de decadência em curso.
É esse conflito que faz com que o capital não reencontre a saída que um bando de alegres literatos de quinta categoria vive a apregoar; que faz com que os bilhões de dólares lançados na conta de bancos e empresas falidas sejam vorazmente engolidos pelo dragão da crise, sem nem de longe apontar para "o fortalecimento do crédito ao consumidor e ao produtor", como é reiteradamente anunciado. Para esses resta um lembrete que ficaria muito bem se colocado no umbral da moradia que se situa na Avenida Pensilvânia, número 1600, Washington D.C.: acta est fabula.
[1] Um ato teleológico é exatamente um ato que comporta um objetivo traçado conscientemente e a escolha conexa de meios cuja disposição faculta a objetivação daquilo que se previu. Se, para esclarecer com um exemplo, um engenheiro da empresa em questão percebe que uma determinada máquina já está demodé, e que ele tem condições de desenhar uma nova máquina para substituí-la, ele pode retirar-se para o seu ateliê e, mediante um ato teleológico de trabalho, desenhar a máquina em apreço, construí-la e instalá-la no lugar da outra. Todavia, uma vez instalada, a nova máquina vai, agora com todo o aparato e toda a ação produtiva da fábrica, ser lançada na produção e na circulação de mercadorias do conjunto da economia - onde sua liberdade teleológica já perdeu sentido e se vê envolta num vendaval ditado por leis cegas num sistema onde impera a anarquia da produção.
[2] Um ciclo contém dois momentos que se opõem, um de boom, outro de recessão, o que equivale dizer que um ciclo tem início quando a crise anterior é vencida e se abre um processo de recuperação, e que o ciclo se conclui quando a economia atinge seu estado máximo de recessão e está novamente apta para inaugurar um outro ciclo.
[3] A descoberta conceitual de uma situação revolucionária pertence a Lênin (a teoria em apreço encontra-se principalmente no seu livro A Bancarrota da Internacional Comunista) e quer significar um momento no qual, esgotadas as contratendências aplicadas pelo capital no sentido de debelar a crise, advém uma situação de acentuada perda de controle econômico e social por parte do conjunto da burguesia, que passa a se encontrar relativamente paralisada, e por um amplo e profundo movimento das massas proletárias no sentido que aponta para uma insurreição. Uma situação revolucionária não é ainda uma insurreição e muito menos uma revolução, porque se, de um lado, o proletariado ainda não conseguiu armar-se de um projeto e de uma direção firme, então, a burguesia pode ainda repor-se e desmanchar uma situação revolucionária, na maioria das vezes pela repressão generalizada, e reconfigurar a sua dominação de classe.
[4] Taxa de mais-valia, ou taxa de exploração, é um índice que relaciona a massa de mais-valia (m) com as despesas com a força de trabalho (v), incluindo salários e outras despesas com o trabalhador. A massa de mais-valia é o montante do valor produzido pelo trabalhador, que não lhe é repassado, e que, permanecendo retido no cofre do patrão capitalista, vai formar a fonte de lucro da persona do capital. Aos gastos com o trabalho dá-se o nome de capital variável (v). A taxa de mais-valia é representada por m/v. Se uma taxa de mais-valia é de 100%, significa que m é igual a v ou que m/v é igual a 1/1, ou ainda que, para cada salário pago, o patrão fica com uma mais-valia que equivale a um salário pago.
[5] Taxa de lucro é outro indicador que relaciona a massa de mais-valia, ou seja, a massa de valor do trabalho não pago - aquele valor que o capitalista recebe de graça do trabalhador, que é por ele explorado - com a soma do capital total aplicado. A taxa de lucro é representada por uma fração que tem como numerador a massa de mais-valia (m) e como denominador a soma do capital constante (c) com o capital variável (v). Tl= m/(c+v). Se a Tl é de 20%, isso significa que para cada 100 unidades de valor que o capitalista investiu em compras de matérias-primas, máquinas, etc. e salários, ele recebeu 20 de graça. Como 20% equivale a 1/5, isso significa que, para cada 5 tostões aplicados na produção, ele recebeu um tostão de graça do trabalhador.
[6] A soma do capital-dinheiro gasta com meios de produção (matérias-primas, máquinas, instalações, etc) denomina-se capital constante. À parte dos componentes físicos, representada pelas matérias-primas, matérias auxiliares e insumos em geral, dá-se o nome de capital circulante, enquanto que àquela parcela representada pelas máquinas e instalações em geral designa-se capital fixo.
[7] Beinestein, JORGE - Rostos da crise: reflexões sobre o colpso da civilização burguesa - https://www.resistir.info/ [52]. 2009.
[8] Mais-valia, mais valia absoluta e mais-valia relativa. Já vimos o que é a mais-valia: aquela parcela do valor criado pelo trabalhador que é retida pelo capitalista e que será a fonte do lucro do capital. Quando o incremento da mais-valia é obtido pelo mero prolongamento da jornada de trabalho ou pela intensificação do ritmo do trabalho, tem-se a coleta da mais-valia absoluta. Quando esse incremento resulta do emprego de tecnologia, isto é, em função do aumento da produtividade do trabalho, tem-se a coleta da mais-valia relativa. O limite da coleta da mais-valia absoluta é de natureza física: num caso, porque a jornada de trabalho não pode ultrapassar do seu nível teórico, de 24 horas, no outro, porque a velocidade do ritmo de trabalho pode levar o trabalhador à mais completa exaustão. Já o limite da coleta da mais-valia relativa é dado pelo esgotamento do padrão tecnológico, que pode ser ultrapassado por um outro padrão tecnológico novo e superior.
[9] Trabalho morto e trabalho vivo. O trabalho com o qual o padeiro está produzindo pão é trabalho vivo, ao passo que as matérias-primas, o forno e as instalações industriais que esse mesmo trabalhador manipula para a produzir "o pão nosso de cada dia"- que foram produzidos fora da padaria e em outras ocasiões por outros trabalhadores -, é trabalho morto. No valor do pão estão computados os valores das matérias-primas, da depreciação das máquinas e instalações industriais da padaria (que representam trabalho morto), mais os que correspondem aos salários dos padeiros e da mais-valia (que representam trabalho vivo), sendo que o valor-soma do trabalho morto é valor que é transferido pelo padeiro ao valor do pão, enquanto que o trabalho vivo, com o qual o padeiro transforma aquelas matérias-primas , etc., em pão, é valor novo - que se divide em duas partes: valor-salário e valor-mais-valia.
[10] A exceção se faz basicamente no caso da China, que alargou todas as fronteiras de capital fixo implantadas, criando e reproduzindo uma capacidade instalada recorde a cada ano - mas que, não obstante influir em alguma medida, não o faz com a força de decisão dos EUA. Nem mesmo o Brasil, que é comumente citado, junto com a Índia e a mesma China, como a trinca de "super-emergentes" debutantes e candidatos a fazer parte da "Comissão de Frente" do "Bloco dos 20", logrou eliminar uma capacidade ociosa que está posta praticamente desde o "Milagre", o que não quer dizer que não tenha reposto parcelas desse volumoso capital fixo na base de tecnologias mais atuais (é perfeitamente possível "modernizar" uma parcela do capital instalado sem que se tenha absorvido a capacidade ociosa da totalidade desse capital, fato que apenas agrava a pressão da composição orgânica do capital sobre a taxa de lucro). Deixamos de mencionar a situação da Índia, a tal respeito, por não dispormos de dados. No que se refere à China, as previsões e os indícios apontam para a formação de algum nível de ociosidade no seu aparelho produtivo, a julgar pela desaceleração da atividade econômica desse país.
[11] Uma ressalva importantíssima: como a contabilidade nacional, elaborada pelas instituições estatísticas burguesas, incluem no PIB o "valor" - como dizem, o "produto" - das transações financeiras e, no cálculo dos lucros, os ganhos efetuados com os juros, segue que os lucros anunciados, que devem incluir também os juros ganhos com capital fictício, os lucros obtidos no processo de circulação do capital - D - M...P... M' - devem ser menores ainda. Tais lucros possuem uma bolha puramente especulativa, o que não passa de mais uma malandragem dos economistas burgueses. Em suma, os lucros que são formados de valor-trabalho devem ser muito menores, o que só faz dar mais consistência às nossas análises.
[12] Composição orgânica do capital. Ela se expressa por c/v, sendo c o conjunto de gastos efetuados com os componentes físicos do capital constante - ou seja, com matérias-primas, matérias auxiliares, máquinas, instalações (edifícios, etc.) - e v o conjunto de gastos efetuados com capital variável (salários e outras formas de pagamento feitas aos trabalhadores no âmbito da fábrica). Para ilustrar, uma c/v = 100%, ou de 1/1, significa que para cada tostão gasto com o trabalho, o capitalista gasta 1 tostão com máquinas, etc.; para uma c/v de 10.000%, ou 10.000/10 = 1000/1 significa que para cada 1 tostão gasto efetuado com salários, etc., o capitalista gasta 1.000 tostões com máquinas, equipamentos, etc. A tendência da c/v é se elevar, ou seja, é de que os capitalistas gastem crescentemente mais com máquinas, etc., do que com trabalhador; ou por outra, com a elevação da c/v opera-se a substituição de trabalho humano por máquinas, vale dizer, de trabalho vivo por trabalho morto. Elevando-se a c/v, eleva-se, portanto, a produtividade; porém, por motivos cuja explicação ultrapassaria o espaço disponível num artigo pequeno como o que o leitor tem em mãos (poderemos discutir a questão numa outra oportunidade), o crescimento da composição orgânica do capital, c/v, resulta numa queda tendencial da taxa de lucro - que constitui um dos movimentos mais importantes e decisivos para o funcionamento do capitalismo, sobretudo das crises do referido modo de produção. Basta observar a relação c/v para se concluir que uma proporção muito avantajada do c em relação ao v implica numa brutal capacidade produtiva no contraponto de um reduzido número de trabalhadores, ou, o que é a mesma coisa, que um pequeno número de trabalhadores pode representar, a um só tempo, uma massa de fornecedores de mais-valia e de consumidores de mercadorias muito menor do que seria necessário para alavancar o movimento da massa de trabalho morto acumulado - problema que está na raiz das crises de superprodução do sistema capitalista.
É nosso propósito expor através do artigo a seguir, A Revolução Russa: expressão mais avançada de uma onda revolucionária mundial, nossos comentários críticos sobre o texto intitulado As ambigüidades da Revolução Russa: Lênin e a revolução, publicado na Revista Germinal da OPOP [1] (que publicaremos mais adiante)
O interesse de discussões polêmicas acerca da Revolução Russa é óbvio desde que se reconheça que esta primeira tentativa revolucionária mundial constitui, para a classe operária, uma fonte considerável de ensinamentos e, por conta disso, um patrimônio inestimável com vistas à preparação para próximos enfrentamentos revolucionários. É nitidamente em tal perspectiva que se inscrevem o artigo da OPOP e nossas considerações críticas a propósito do mesmo.
Do nosso ponto de vista, o artigo faz uma abordagem do ponto de vista realmente proletário das questões essenciais colocadas pela Revolução Russa. Embora em nosso artigo formulemos observações e até criticas quanto à maneira de colocar certas questões e quanto às respostas feitas a estas, consideramos que este texto merece ser objeto de um debate para além das nossas duas organizações no seio do meio revolucionário. Mantemos este ponto de vista sobre este artigo apesar do mesmo conter uma conclusão inapropriada, em total contradição com seu método global. Com efeito, esta última convida o leitor, para entender melhor a degeneração da Revolução Russa, a estudar "processos similares (na China, em Cuba e na Nicarágua, em todo o Leste europeu, na Ásia e na África)" (destacado por nós) que, ao mesmo tempo, são justamente qualificados pelo artigo de "verdadeiras aberrações ditatoriais (...) em nome do "socialismo" e da "ditadura do proletariado"". O problema reside exatamente nisso, pois os exemplos dados nunca corresponderam a revoluções proletárias (nem sequer burguesas), mesmo que o discurso da propaganda burguesa e, em particular, de suas frações trotskistas e maoístas insistam em afirmar tal caráter. Portanto, não podem ser qualificados como similares à Revolução Russa.
[1] http\\opopssa.info
Só um ponto de vista resolutamente internacionalista, que exclua qualquer possibilidade de construção do socialismo num só país, pode fornecer um quadro que permita analisar a Revolução Russa e, em particular, sua tragédia, quando a revolução mundial - que não conseguia se expandir - a colocou num isolamento trágico, confrontada a contradições insuperáveis. A revolução avançava cada vez mais para um beco sem saída quando as medidas adotadas para poder "se manter" eram entendidas por Lênin (entre outros) e apresentadas como parte das premissas para a construção de uma sociedade socialista. É esta situação que o artigo da OPOP apresenta da seguinte maneira:
Voltaremos a falar, mais adiante, sobre a caracterização desta sociedade "não-socialista numa forma hoje difícil de imaginar", mas desde já entendemos necessário expor a visão do artigo da OPOP quanto ao laço que estabelece entre a degeneração da Revolução Russa e as especificidades da Rússia nessa época.
O artigo toma o contexto russo como ponto de partida de sua análise da Revolução Russa e o caracteriza da seguinte maneira:
O artigo não faz só considerar que o contexto russo é a causa do que ele chama de "as ambigüidades da Revolução Russa", mas também, de maneira totalmente contraditória com seu reconhecimento da impossibilidade do socialismo num só país, deduz que o contexto russo vai em grande medida determinar o destino da revolução neste país:
Trata-se aqui de um equívoco do artigo que não avalia exaustivamente que a ditadura do proletariado isolada num só país é levada necessariamente a degenerar. Será que existe atrás deste equívoco a ideia de que se a revolução tivesse acontecido num país avançado (como Alemanha, por exemplo) e tivesse permanecido isolada, então não teria conhecido um fim semelhante àquele da Revolução Russa?
Seria um erro, pois, isolada, a revolução tem que enfrentar as tentativas do capitalismo em esmagá-la, o que significa que na zona em que o proletariado conseguiu tomar o poder, mantém-se uma série de características da sociedade capitalista: produção de armas que afeta o poder de consumo da classe operária e as possibilidades de desenvolvimento das condições materiais do comunismo, além da existência de um exército que, mesmo sendo "vermelho", continua sendo uma instituição de idêntica natureza ao existente no capitalismo: uma máquina destinada a perpetuar de maneira organizada e sistemática a matança e a coerção. Pode-se facilmente entender a gravidade das ameaças que tais necessidades implicam para o poder proletário. E tudo isso vale tanto para um país avançado como para um país atrasado. Com efeito, um país fortemente industrializado é muito mais dependente do mercado capitalista mundial do que os menos desenvolvidos ou industrializados e não é absurdo pensar que, isolada num país como a Alemanha, a revolução teria sido derrotada ou teria degenerado de forma ainda mais rápida do que na Rússia. [1]
Na sua carta de despedida aos operários suíços em 8 de Abril de 1917, Lênin expõe sua visão do processo revolucionário que se desenvolve na Rússia:
Coube ao proletariado russo a grande honra de inaugurar a série das revoluções engendradas como uma necessidade objetiva colocada pela guerra imperialista. Mas a ideia de considerar o proletariado russo como um proletariado revolucionário eleito entre os operários dos demais países nos é absolutamente alheia... Não são qualidades particulares, mas unicamente condições históricas particulares que fizeram dele, talvez em um tempo muito rápido, a ponta de lança do proletariado revolucionário mundial". (Tradução nossa a partir do francês)
A Primeira Guerra Mundial é um acontecimento de alcance mundial e histórico, que colocou pela primeira vez na história a alternativa "socialismo ou barbárie", que conferiu à onda revolucionária seu caráter internacional. A Rússia foi a linha de frente desta. Lênin, para convencer da necessidade da insurreição, destaca a responsabilidade do proletariado russo em relação ao futuro da revolução mundial:
Quase um ano após a tomada do poder na Rússia, Lênin continua unido à perspectiva da revolução mundial:
Este entendimento do lugar da Revolução Russa na revolução mundial também constitui a base da corajosa determinação demonstrada posteriormente para defender a ditadura do proletariado na Rússia contra todas as tentativas da reação interna e internacional visando derrotá-la através das armas e sufocá-la economicamente. Resistir: isso era uma responsabilidade, um dever em relação ao futuro da revolução mundial. De fato, a queda da ditadura do proletariado na Rússia teria aberto a via à repressão de todos os focos revolucionários na Europa, antes deles tivessem tempo para amadurecer e desembocar em novas insurreições vitoriosas. Assim, a derrota da ditadura do proletariado na Rússia teria significado, com certeza, a derrota da onda revolucionária mundial.
Segundo nossa opinião, o artigo da OPOP não destaca suficientemente a importância dada pelos bolcheviques de labutar na perspectiva da revolução mundial. Podem existir várias explicações para isso sobre as quais não vamos especular visto que uma entre elas é óbvia.
O artigo é muito claro sobre o fato que a revolução na Rússia precisa da revolução mundial:
Mas, ao mesmo tempo, parece ignorar o movimento real da classe operária quando da Revolução Russa que se caracterizava por uma crescente simultaneidade, em particular entre os países europeus. Isso é demonstrado pela seguinte passagem do artigo da OPOP, para quem as condições de uma simultaneidade das lutas operárias só estão dadas agora, pela primeira vez, o que em outros termos significa que tal simultaneidade não se manifestava no momento da primeira onda revolucionária mundial.
Poder-se-ia ter a tentação de afirmar que o artigo da OPOP está "atrasado em uma revolução", pois o panorama que esboça para o agora corresponde exatamente a uma resolução do partido bolchevique adotada em abril de 1917:
Poderia nos opor que a análise atual da OPOP a propósito do período pós-Primeira Guerra é correta enquanto não era o caso da análise dos bolcheviques. Mas isso seria não levar em conta a própria realidade, assim como dos ajuizados comentários emitidos pelos homens políticos da burguesia dessa época que confirmam a visão dos bolcheviques:
Ou tambèm:
Seria incorreto dizer que o artigo da OPOP expressa desinteresse acerca da questão da expansão da revolução mundial no momento da Revolução Russa, pois menciona a criação da Terceira internacional. O problema é que esta última não é entendida como a consequência do movimento real da classe operária, mas sim como uma iniciativa desesperada de Lênin, com o objetivo reverter o curso desfavorável da dinâmica da luta de classe e afastar os operários da influência da social-democracia:
O artigo da OPOP não percebe que foram justamente as maiores expressões da luta de classe que permitiram a fundação da Terceira Internacional, as quais se colocaram em oposição radical às políticas nacionalistas e reformistas dos partidos da Segunda Internacional, mesmo que nem sempre com plena consciência disso.
A Revolução Russa cumpriu plenamente a tarefa que a história tinha especificamente lhe entregado, isto é, a derrubada da burguesia na Rússia. Ao mesmo tempo, lutou com toda energia para a extensão da revolução mundial, através do apoio material e político aos diferentes movimentos nos países europeus, na Alemanha em particular, através do apoio à IC, etc.
Iniciar a transição das relações capitalistas de produção para o socialismo dependia da vitória da revolução em escala internacional. Pela própria impossibilidade de construir na Rússia relações de produção livres das leis do capitalismo, o poder político da classe operária neste país se exercia necessariamente sobre uma sociedade em que as relações de produção eram claramente capitalistas. O artigo da OPOP aproxima-se de tal caracterização na medida em que, ao rejeitar claramente a ideia de uma sociedade em curso de transformação para o comunismo, fala como vimos de uma "sociedade não-socialista numa forma hoje difícil de imaginar".
Não é unicamente o atraso da Rússia que explica as medidas de natureza capitalista que foram adotadas nos primeiros anos do poder dos sovietes. A título de exemplo, podemos lembrar as medidas que teriam sido tomadas na Alemanha para expropriar a burguesia em caso de vitória proletária, isto é, aquelas do programa da Liga Spartakus e do KPD (Partido Comunista da Alemanha). São muito parecidas com as tomadas na Rússia e, entre elas, encontramos especificamente: o confisco de todas as fortunas e rendas dinásticas em benefício da coletividade; a anulação de todas as dívidas do Estado e demais dívidas públicas, assim como os empréstimos de guerra na exceção das subscrições inferiores a certo nível fixado pelo conselho central dos conselhos de operários e soldados; a expropriação da propriedade imobiliária, de todas as empresas agrícolas, grandes ou médias; a formação de cooperativas agrícolas socialistas com uma direção unificada e centralizada para o todo país, as pequenas empresas campesinas permanecendo nas mãos daqueles que as exploram até estes aderirem voluntariamente às cooperativas socialistas; a expropriação de todas as fortunas a partir de certo nível fixado pelo conselho central dos conselhos de operários e soldados.
Neste sentido, as medidas econômicas instauradas na Rússia para enfrentar uma situação desastrosa e a necessidade de manter a aliança com o pequeno campesinato eram inevitáveis e não se pode culpar os bolcheviques de tê-las praticado. Os efeitos de algumas dentre elas poderiam ter sido facilmente revertidos, numa perspectiva de desenvolvimento da revolução mundial (as medidas da NEP), mas dificilmente para outras (a distribuição da terra aos camponeses).
Limitar-nos-emos aqui, propositalmente, aos erros indicados pelo artigo da OPOP, com o intuito de discuti-los. [7]
A. O capitalismo de Estado
Não constitui em nada um passo adiante na edificação de uma sociedade socialista, como o demonstrou, depois, a realidade da URSS, tão capitalista como os países democráticos. Esses últimos também, aplicaram medidas de tipo capitalismo de Estado como, por exemplo, as nacionalizações na França e na Grã-Bretanha, notadamente depois da Secunda Guerra Mundial.
É absolutamente válido criticar os bolcheviques por terem apresentado o capitalismo de estado e as nacionalizações, como etapas necessárias à transição para o comunismo [8]; ou seja, por pretenderem que a "competição econômica com o oeste" comprovava a grandeza da produtividade socialista. Achamos este aspecto bem analisado no artigo da OPOP. Para ilustrar sua postura, este se apóia sobre citações de Lênin muito significativas e, na sua argumentação, encontramos, entre outras, a passagem seguinte:
O artigo da OPOP reconhece a inevitabilidade de recuos táticos no plano econômico, ao mesmo tempo em que lamenta que alguns entre eles tenham contribuído em "afastar o horizonte socialista":
Do nosso ponto de vista, as medidas de liberação do comércio interno da NEP, por exemplo, não entram nessa categoria. O grande erro dos bolchevique, segundo nosso juízo, vamos repeti-lo, foi ter pensado e feito acreditar que algumas medidas, tomadas no plano econômico como "o comunismo de guerra", tinham um caráter progressista, quando, na realidade, eram apenas medidas de capitalismo de estado. É também certo sublinhar, como faz o artigo da OPOP, que algumas entre estas medidas favoreceram o ascenso no Estado de figuras carreiristas do antigo regime.
Assim, o artigo da OPOP destaca também que o próprio Lênin descrevia a utilização de especialistas técnicos burgueses como um "passo para trás" em relação aos princípios da Comuna, pois, para ganhá-los para o poder soviético, deviam ser comprados através de um salário muito superior ao salário médio de um operário. Compartilhamos também a crítica das medidas enunciadas dentro do discurso de Lênin pronunciado em abril de 1918 no comitê central do partido bolchevique (publicado depois sob o título As tarefas imediatas do poder dos sovietes) com o objetivo de fazer aplicar uma disciplina no trabalho e desenvolver a produtividade para reconstruir uma economia arruinada. A propósito disso, Lênin proclama-se a favor da direção de um só homem nas fábricas onde o movimento dos comitês de fábrica era forte e disputava o poder das direções da fábrica, antiga ou nova. Aqui também a defesa por Lênin da "ditadura individual" dos diretores de fábrica não excluía absolutamente em nada o desenvolvimento amplo das discussões, concentrações de massa, sobre a política global; e segundo ele "Esta subordinação pode, com uma consciência e uma disciplina ideais dos participantes no trabalho comum, recordar mais a suave direção de maestro". (As tarefas imediatas do poder dos sovietes) [9]
B. Ditadura do proletariado ou do partido e do Estado?
O artigo da OPOP caracteriza claramente este problema da Revolução Russa onde a ditadura do proletariado é cada vez mais identificada, de maneira equivocada, àquela do partido e da burocracia no seio do Estado, tendo Lênin responsabilidade nesta confusão:
Logo a partir de 1918, aparece claramente, como a OPOP põe em evidência, que o poder político da classe operária estava sendo corroído e abafado pelo aparelho de Estado:
O artigo da OPOP vai mais além do que esta última explicação de Lênin para quem a incapacidade dos comunistas em dirigir o Estado na boa direção resulta do fato que estes são minoritários no seio desta instituição. Constata, com efeito, que o estado constitui o espaço privilegiado da formação de uma nova classe burguesa, processo em que o partido está implicado:
Para nós, e voltaremos mais adiante sobre este assunto, a crescente identificação do Partido Bolchevique com o Estado soviético teve como consequência, para o primeiro, a perda progressiva da capacidade em se auto-criticar assim como criticar o curso geral da revolução.
A. Quem devia tomar o poder na Russia?
Considerando esta questão, o artigo da OPOP destaca vários fatores na origem da tomada do poder pelo Partido Bolchevique:
Concordamos com o artigo da OPOP para constatar que a ditadura do partido e do Estado constituiu um fator da degeneração interna da ditadura do proletariado na Rússia.
Entretanto, quando se trata de explicar porque o partido chegou ao poder, discordamos globalmente com as causas evocadas pela OPOP, sendo todas circunstanciais, com exceção a seguinte que, segundo nossa opinião, aproxima-se mais da realidade: "os próprios bolcheviques não tinham uma ideia clara acerca do caráter da sociedade pós-Outubro". Efetivamente, isso é um fato pertinente ao conjunto do movimento operário nessa época e que, sobre a questão do poder, expressava-se através da ideia errada, decorrente do esquema burguês da revolução, de que a tomada do poder político pelo proletariado consistia de fato na tomada do poder pelo seu partido. Este tinha, então, como função trazer o socialismo à classe, o que constitui uma visão totalmente alheia a esta fundamentação do marxismo: "A emancipação da classe operária só pode ser a obra da própria classe operária". Tal erro era mais ou menos compartilhado pelo conjunto das correntes da Segunda Internacional, inclusive aquelas de esquerda, incluindo Rosa Luxemburgo. Está presente até nos escritos do KAPD em 1921.
O que a experiência russa evidenciou é que cabe ao proletariado, no seu conjunto, assumir sua ditadura, sem delegá-la a seu partido e preservando sua autonomia de classe em relação ao Estado que surge inevitavelmente dentro de uma sociedade ainda dividida em classes. Para mais explicações considerando nossa posição sobre "o Estado no período de transição", aconselhamos a leitura de alguns artigos publicados em nosso site em português [10].
Queremos agora examinar a ideia do artigo segundo a qual os bolcheviques teriam substituído a classe no exercício do poder por conta do fato que esta "não estava preparada para dirigir o Estado pós-revolucionário por via dos Sovietes". O artigo volta a desenvolver essa mesma ideia em outra passagem:
É óbvio que o período de dualidade de poder que antecede a revolução constitui uma oportunidade para a classe operária efetuar uma aprendizagem política considerando, por exemplo, vários aspectos: encarregar-se da gestão da sociedade; adquirir uma compreensão crescente dos meios a sua disposição como classe revolucionária (seu número, sua unidade e sua consciência) e das tarefas que lhe cabem para transformar o mundo, começando pela derrubada da burguesia; conseguir uma compreensão política maior para identificar as manobras que o inimigo de classe tem a capacidade de conceber e desenvolver para mistificar e enfraquecer o proletariado. Todos esses aspectos são importantes, mas, durante este período, o primeiro enunciado não é, de longe, o mais decisivo. Com efeito, pensamos que é um erro pensar, como no artigo da OPOP, que uma melhor preparação da classe operária para gerir a sociedade teria lhe permitido resistir melhor à pressão da burocracia. Adquirir a capacidade de limitar, o mais que for possível, a tendência da burocracia em corroer a ditadura do proletariado decorre de questões políticas da maior importância:
Apesar de ter sido muito importante, a experiência da Comuna de Paris foi insuficiente para permitir ao proletariado internacional, notadamente através de sua vanguarda, tirar as lições necessárias sobre as relações entre a ditadura do proletariado e todas as formas organizacionais que surgem durante o período de dualidade de poder e que se mantém depois dela: conselhos operários, dentro dos quais se organiza a classe operária, e sovietes territoriais, que reúnem o conjunto da população não exploradora convencida da necessidade da revolução, de quem o Estado será a emanação, depois da tomada do poder.
Todas essas questões novas e fundamentais poderiam ter sido resolvidas no calor de uma revolução triunfante se expandindo ao conjunto dos principais países industrializados (do mesmo modo que Lênin tinha sido capaz de escrever O Estado e a Revolução[11] na véspera da tomada do poder na Rússia). Não foi o que aconteceu. A imaturidade das condições subjetivas da revolução pesou de maneira determinante, não só na Rússia, mas no conjunto do proletariado como vamos constatar mais adiante.
B. A imaturidade das condições subjetivas da revolução
Para o artigo da OPOP, a perspectiva de uma revolução proletária na Rússia foi colocada demasiadamente tarde:
Apesar de compartilhar a ideia subjacente a esta passagem, a existência de um atraso nas condições subjetivas da revolução, não podemos nos contentar com a formulação do artigo da OPOP, segundo a qual nenhuma concepção indo mais além da revolução burguesa tinha se manifestado na Rússia antes de 1917. Com efeito, tal formulação não permite dar conta da dinâmica do desenvolvimento da consciência durante os 12 anos que antecederam 1917.
Os acontecimentos de 1905 na Rússia, com o surgimento dos sovietes, tinham constituído uma experiência considerável que permitiu o esclarecimento da questão das formas de organização da luta revolucionária, mas também impulsionaram uma reflexão sobre as etapas da revolução proletária na Rússia.[12] Num primeiro momento, o soviete de deputados era concebido por Lênin como a forma da "ditadura democrática dos operários e camponeses", devendo assumir as tarefas da revolução burguesa. A teoria de Lênin era, neste momento, no melhor dos casos, o produto de um período em que se torna cada vez mais óbvio que a burguesia russa não era uma força revolucionária, mas também em que não se tinha ainda clareza que havia chegado o período da revolução internacional. Quanto a Trotsky, concordava com os bolcheviques em dizer que a revolução tinha ainda tarefas burguesas a cumprir, as quais não podiam ser realizadas pela burguesia. Mas pensava que os interesses do proletariado o levariam não somente a tomar o poder para si próprio, mas também a tomar medidas econômicas e socialistas. Entretanto, para ele, tal esquema só tinha sentido no contexto de uma revolução socialista internacional. Em várias ocasiões, depois de 1905, Lênin aderiu à tese desenvolvida por Trotsky. As teses que escreve em abril de 1917 (conhecidas sob o nome de Teses de abril) concebem de maneira central a Revolução Russa como parte da revolução socialista mundial. Elas armam o partido contra a utilização pelos "leninistas ortodoxos" da fórmula sem substância de "ditadura democrática dos operários e camponeses", que utilizaram como pretexto a seu deslize para menchevismo puro.
De maneia geral, o artigo da OPOP não parece contextualizar o fato que, no momento em que se desenvolve a primeira onda revolucionária mundial, os revolucionários devem então enfrentar uma situação histórica totalmente inédita caracterizada em particular pelas seguintes necessidades:
Por não ter sido capaz de levar em conta a amplidão das dificuldades encontradas pelo proletariado mundial, o artigo não tem obviamente a possibilidade de poder avaliar os passos de gigante efetuados pelo mesmo para enfrentá-las. O proletariado mundial e suas vanguardas revolucionárias dispuseram, como vimos, de um tempo muito curto para entender, através da experiência prática e da teoria, todas as mudanças do novo período antes da revolução acontecer na Rússia. Depois desta, a aprendizagem continua na prática, na Europa em particular, visivelmente através da confrontação com a social-democracia e aos sindicatos. Sem esses avanços muito importantes, obtidos no fogo da luta, a fundação da Internacional Comunista não teria sido possível. E podemos dizer, sem risco de erro, que a continuação da dinâmica de extensão da revolução mundial teria fortalecido mais ainda no plano teórico tais avanços efetuados no plano prático. Em lugar disso, o retrocesso da onda revolucionária mundial implicou em um recuo importante da vanguarda sobre um conjunto de questões essenciais e impediu o esclarecimento das questões totalmente novas colocadas na Rússia relacionadas ao exercício da ditadura do proletariado. Nenhuma dentre essas questões podia ser resolvida na própria Rússia, como dizia Rosa Luxemburgo na sua brochura A Revolução Russa:
"Eis o que é essencial e duradouro na política dos bolcheviques. Nesse sentido, o que permanece seu mérito histórico imperecível é que conquistando o poder político e colocando o problema prático da realização do socialismo abriram o caminho ao proletariado internacional e fizeram progredir consideravelmente o conflito entre capita l e trabalho no mundo inteiro. Na Rússia, o problema só podia ser posto. Não podia ser resolvido na Rússia, ele só pode ser resolvido em escala internacional. E, nesse sentido, o futuro pertence em, toda parte, ao "bolchevismo"."[13]
As posturas adotadas pela IC quando do seu Congresso de fundação são o reflexo do enorme passo à frente dado pelo proletariado durante os anos antecedentes, como testemunha este slogan do seu manifesto: "Sob a bandeira dos Sovietes operários, da luta revolucionária pelo poder e da ditadura do proletariado, sob a bandeira da terceira internacional, operários do mundo, uni-vos!". [14]
Mas em 1920, no segundo congresso da mesma internacional, a direção do Partido Bolchevique tinha voltado para as "táticas" do passado. A esperança da revolução estava se enfraquecendo rapidamente e o Partido Bolchevique defendia então as 21 condições de admissão à Internacional, incluindo o reconhecimento das lutas de libertação nacional, da participação eleitoral, do entrismo nos sindicatos, quer dizer um retorno ao programa social-democrata que era totalmente inadaptado à nova situação. O partido russo passou a ser a direção preponderante da IC. E, sobretudo, a direção bolchevique conseguiu isolar os comunistas de esquerda: a esquerda italiana com Bordiga, os camaradas ingleses em torno de Sylvia Pankhurst, e Pannekoek, Gorter e o KAPD (que foi expulso no terceiro congresso). Os bolcheviques e as forças dominantes da Internacional trabalhavam a favor de uma aproximação com forças que eles mesmos denunciavam dois anos antes por traição; conseguiram efetivamente abortar todas as tentativas para criar as bases de princípio para a fundação de partidos comunistas na Inglaterra, na França ou em outros lugares, graças a suas manobras e calúnias contra a esquerda comunista. Estas ações abriram o caminho para a "Frente Única" (com a social-democracia) de 1922 até o 4° congresso e, enfim, da defesa da pátria soviética e do "socialismo num só país".
A questão da degeneração da Revolução Russa é, antes de tudo, uma questão da derrota internacional do proletariado. A contrarrevolução triunfou na Europa antes de se desenvolver totalmente no seio da Revolução Russa.
Como sublinha justamente o artigo da OPOP, "o poder de Estado dos conselhos operários (...) liquidado e já substituído pela burocracia" é um sinal claro da degeneração da revolução. O artigo assinala de maneira inequívoca um elemento importante dessa degeneração: a revolta de Kronstadt e seu esmagamento pelo exército vermelho[15].
Ao contrário da tese trotskista de uma burocracia cuja natureza de classe não seria burguesa, encabeçando um "Estado operário degenerado" que não seria capitalista, a burguesia retomou o poder na Rússia. Mas isso aconteceu não pela derrubada do poder dos sovietes e pela reintrodução dos métodos de produção capitalista (que na realidade nunca foram eliminados), notadamente a propriedade privada dos meios de produção, mas através da degeneração interna do poder soviético. Com efeito, como a Esquerda Comunista tinha evidenciado há muito tempo [16] e como também o artigo da OPOP menciona, não são as formas jurídicas de propriedade que determinam o caráter de uma classe, mas as relações sociais de propriedade. A burguesia na Rússia era coletivamente proprietária dos meios de produção.
O que na realidade degenerou na Rússia, foi a ditadura do proletariado e não o socialismo, pois não houve nenhum avanço em direção a este. A classe operária progressivamente perdeu o poder em favor de uma nova burguesia proveniente da burocracia, como o evidencia justamente o artigo da OPOP:
A propósito das tentativas de recuperação das grandes figuras revolucionárias, Lênin expressava-se nesses termos:
Assim os stalinistas não hesitaram em falar de um Lênin "nacional-russo". Os exemplos são muitos em que a burguesia, em particular suas frações de esquerda, foi rápida para transformar em verdades eternas erros do movimento operário, muitas vezes encarnados por grandes figuras deste. Ao contrário deste procedimento, há aquele dos revolucionários, para quem não existe revolucionários infalíveis. A responsabilidade de todas as gerações de revolucionários é de se apoiar sobre a herança das experiências e teorizações das gerações passadas, e de passar pelo crivo da crítica os erros passados para tirar deles um máximo de ensinamentos. A Revolução Russa, em particular, deve ser o objeto de tal método, pois a próxima tentativa revolucionária não poderá vencer se as lições essenciais das quais é portadora não forem assimiladas no seio das amplas camadas do proletariado mundial. Isso é fundamentalmente o procedimento adotado pelo artigo da OPOP:
É de maneira totalmente legítima que a OPOP coloca a questão de saber qual papel puderam desempenhar figuras como Lênin, Trotsky, no processo de degeneração:
Se erros dos revolucionários, entre os quais Lênin, efetivamente favoreceram o curso degenerescente da Revolução Russa, como desenvolve amplamente o artigo, este tem cuidado para fazer uma clara distinção entre erros ou recuos impostos pela situação e o procedimento do stalinismo fazendo destes erros a linha diretriz de sua política, de abandono do internacionalismo em benefício notadamente de alianças com potências imperialistas:
O fracasso da onda revolucionária mundial e a degeneração da Revolução Russa engendraram a pior contrarrevolução que o proletariado jamais tinha sofrido antes. Como já vimos, o artigo da OPOP compartilha altamente esta preocupação de tirar as lições do passado para preparar as vitórias do futuro. O problema é que o método que propõe é frágil quando apresenta como revoluções proletárias eventos em que a classe operária de maneira nenhuma se mobilizou para seu próprio projeto revolucionário, mas que constituíram oportunidades para a burguesia desacreditar a própria ideia de revolução de projeto comunista:
Não é inútil lembrar alguns critérios que permitem caracterizar uma revolução proletária e que, até agora, foram reunidos apenas durante a primeira onda revolucionária de 1917-23:
a) A onda revolucionária não pode ser limitada a um país, mas deve considerar, a diferentes graus, os países mais desenvolvidos. Isso é o ABC do marxismo tal como é exposto nos Princípios Básicos do Comunismo em que Engels explica porque a revolução comunista será necessariamente mundial:
b) A onda revolucionária resulta necessariamente de uma dinâmica da classe operária caracterizada pelo desenvolvimento de sua combatividade e sua consciência em escala internacional;
c) Ela é assinalada pela formação de um partido comunista internacional e pelo surgimento dos conselhos operários.
Nenhum destes critérios foi satisfeito, obviamente, nos exemplos de "revolução" apresentados pelo artigo da OPOP. Vamos examinar detidamente três entre esses exemplos de "revolução": na China, em Cuba e na Nicarágua, em que a única luta que houve foi entre frações rivais da burguesia.
A. A China
Segundo a história oficial, uma revolução popular teria triunfado na China em 1949[19]. Esta ideia, sustentada tanto pela democracia ocidental como pelo maoísmo, faz parte da monstruosa mistificação edificada quando da contrarrevolução stalinista considerando a pretendida criação de "Estados socialistas" no mundo depois da formação a URSS.
A China conheceu, durante o período de 1919 até 1927, um grandioso movimento da classe operária, parte integrante da onda revolucionária internacional que sacudiu o mundo capitalista nessa época; entretanto, este movimento terminou em um massacre do proletariado.
Enquanto os melhores elementos revolucionários do Partido Comunista Chinês eram perseguidos e executados, a fração mais stalinista deste partido, à qual pertencia Mao Tsé-Tung, especialmente encarregado das relações entre o Partido Comunista e o Kuomintang, apoiava o banho de sangue em nome da política de colaboração com a burguesia progressista chinesa que correspondia às necessidades do Estado russo.
Desde então privado de base proletária, enquanto continuava sua política antiproletária pregada pelo Comintern nos centros operários, o Partido Comunista começou a teorizar, notadamente através dos escritos de Mao, o "papel revolucionário" do campesinato, refletindo assim a transformação radical da sua própria natureza de classe. Ele se tornou, assim, o defensor dos camponeses, mas também das camadas da pequena burguesia e da burguesia hostis ao autoritarismo do novo dono da China, Chiang Kai-shek. Os novos quadros do partido eram seletivamente escolhidos por Stálin, que utilizava o Partido Comunista Chinês como ferramenta da expansão imperialista russa e como meio de pressão e negociação com o Kuomintang. A afluência massiva para o Partido Comunista Chinês de elementos contrarrevolucionários, de aventureiros de todo tipo, de pequeno burgueses e burgueses em ruptura com Chiang Kai-shek, conferiu-lhe a fisionomia de um verdadeiro escoadouro fétido de maquinações e manobras, onde diversos bandos se enfrentavam violentamente pelo controle do partido.
O episódio da Grande Caminhada, longe de constituir o episódio heróico de "resistência comunista" sob a direção do "grande timoneiro" Mao, teve como objetivo essencial a unificação dos inúmeros focos de guerrilha então existentes na China sob um comando único e centralizado, com a finalidade de constituir um exército burguês digno deste nome para crédito do grande irmão stalinista que controlava estritamente seus quadros. Para isso, as massas de camponeses pobres foram recrutadas e utilizadas como bucha de canhão: a gloriosa Grande Caminhada, que durou de outubro 1935 até outubro 1936, causou algumas centenas de milhares de mortos entre eles. E se foi a linha do grandioso comandante Mao que ganhou, foi, sobretudo, graças à sua capacidade de utilizar as brigas entre seus rivais que, às vezes, ele mesmo suscitava, para assentar seu poder no seio de um "Exército Vermelho" chinês.
Mas pelo menos uma coisa era certa: todos esses bandos, os do Partido Comunista Chinês ou os do Kuomintang, estavam unidos sobre o essencial, a defesa do capitalismo chinês. Assim, quando do conflito entre a China e o Japão em 1936, o Partido Comunista Chinês, novamente aliado com o Kuomintang, destacou-se mais uma vez como principal provedor de bucha de canhão da guerra imperialista. Em 1941, quando o exército alemão entrou na URSS, Stálin, ameaçado em duas frentes de guerra, assinou um pacto de não agressão com o Japão. A consequência imediata disso foi a ruptura do Partido Comunista Chinês com Moscou e a vitória da linha maoísta contra a linha pró-russa no seio deste partido. O Partido Comunista Chinês vai então colaborar numa aliança com o Kuomintang às ordens dos Estados Unidos quando estes últimos entraram em guerra contra o Japão em 1942. De 1943 a 1945, os grandes expurgos anti-stalinistas alcançaram o auge no seio deste partido e o maoísmo tornou-se, a partir deste momento, a doutrina oficial do mesmo.
Os historiadores e intelectuais burgueses alimentam um mito em torno do Maoísmo, "comunismo ao molho chinês", levado por Mao Tsé-Tung, apresentado mentirosamente como um entre dos fundadores do Partido Comunista Chinês, aquele que ia instaurar o "socialismo" neste grande país. Os ideólogos da burguesia apresentam a chegada do "grande timoneiro" ao poder na China como o produto de uma "revolução popular, camponesa e operária", mas a realidade é radicalmente diferente: o Partido Comunista Chinês chegou ao poder como consequência de sórdidas negociações imperialistas. Com efeito, ao empreender seu retorno ao colo de Moscou, contra os Estados Unidos e depois dos acordos de Yalta, o Partido Comunista Chinês irá conseguir eliminar definitivamente seu rival direto, o Kuomintang, em 1949 e fundar a "República Popular Chinesa".
B. Cuba
Guevara se uniu ao grupo cubano de Fidel Castro em 1955 no México, que estava refugiado nesse país depois de uma tentativa abortada de derrubada do ditador cubano, Batista, apoiado durante muito tempo pelos Estados Unidos. Depois de uma série de peripécias, o grupo se instala na Sierra Maestra de Cuba até a derrota de Batista, no início de 1959. Na realidade, o êxito da operação da derrubada de Batista por Castro e Guevara se beneficiou, de fato, do apoio dos EUA e da compreensão de uma parte da direita, que tinha começado a ficar incomodada seriamente com o nível de corrupção do regime.
O núcleo ideológico desse grupo era o nacionalismo. O "marxismo" não foi mais que um conjunto de circunstâncias a uma "resistência anti-ianque" exacerbada, por muito que alguns de seus elementos, o próprio Guevara entre eles, se considerassem "marxistas". O Partido Comunista cubano, que anteriormente tinha apoiado a Batista, mandou um de seus dirigentes, Carlos Rafael Rodríguez, ao encontro de Castro em 1958, alguns meses antes da vitória castrista.
Essa guerrilha não foi de maneira alguma a expressão de sabe-se lá que revolta camponesa e, menos ainda, da classe operária. Foi a expressão militar de uma fração da burguesia cubana que queria derrubar a fração no poder para ocupar seu posto. Não houve nenhum "levante popular" na tomada do poder pela guerrilha castrista. Aparece, como tantas vezes ocorreu na América Latina, como uma troca de uma camarilha militar por outra formação armada, no que as camadas exploradas e pobres da população da ilha, alistadas ou não pelos combatentes da guerrilha, não desempenharam nenhum papel relevante a não ser o de lançar saudações aos novos donos do poder. [20]
C. Nicarágua
A denominada "Revolução Nicaraguense" ou "Revolução Sandinista" é o resultado da confrontação entre frações da burguesia nicaraguense, que se identificavam, uma a favor e outras contra, a ditadura somozista, que governou o país por mais de 40 anos com apoio aberto dos Estados Unidos.
Durante a ditadura somozista, ocorre uma série de divisões nas fileiras dos liberais e conservadores; ambos terminam apoiando ou acomodando-se ao lado da ditadura. Os partidos e organizações de oposição que se constituíram durante o período da ditadura eram fundamentalmente antisomozistas e, na sua maioria, antiamericanos, devido ao apoio incondicional dos EUA à ditadura dos Somoza.
Durante os anos da década de 1950 tem início a formação de organizações de esquerda contra a ditadura, que se consideravam forças independentes de liberais e conservadores, várias delas no meio estudantil. No início dos anos 1960, inspirados pelo triunfo da "revolução cubana" e da Frente de Libertação da Argélia, formam o embrião do que logo viria ser a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). A FSLN retoma as bandeiras de luta de Sandino, baseadas na defesa da pátria, o nacionalismo e o imperialismo norteamericano, incorporando elementos "socialistas" da "revolução cubana". O "programa histórico da FSLN" de 1969 define da seguinte maneira os objetivos da Frente: "A FSLN é uma organização político-militar cujo objetivo é a tomada do poder político mediante a destruição do aparato militar e burocrático da ditadura e o estabelecimento de um governo revolucionário baseado na aliança operário-camponesa e o concurso de todas as forças patrióticas ainti-imperialistas e antioligárquicas do país". [21]
Com efeito, a FSLN se transformou no braço armado das forças burguesas e pequeno-burguesas que se opunham às forças do capital nicaraguense que apoiavam a ditadura. Na medida em que a ditadura somozista perdia força, mergulhava na corrupção e acentuava a repressão, crescia em popularidade a FSLN; desde a metade dos anos 1970, várias forças e personagens do capital nicaraguense (a exemplo de Joaquin Chamorro) começam a fazer uma oposição mais acentuada ao somozismo e dão um apoio mais aberto à FSLN, que derrota as forças somozistas em 1979.
Uma vez no poder, os sandinistas adotam uma série de medidas de expropriações e nacionalizações, e instauram um regime capitalista de Estado com o apoio da URSS e de Cuba. Assim, as novas elites sandinistas no poder passam a fazer parte da classe burguesa nicaraguense.
Como vimos ao longo deste artigo, a OPOP e a CCI compartilham de um quadro comum de análise da Revolução Russa, baseado antes de tudo no internacionalismo proletário, que nos permite discutir as lições a serem tiradas da maior experiência do proletariado mundial. Entretanto, esta ideia exposta rapidamente no final do artigo da OPOP e segundo a qual teriam acontecido revoluções outras proletárias além da Revolução Russa, aparece como um tipo de aberração emprestada de ideólogos da esquerda do capital, quer seja de origem stalinista, trotskista ou dos promotores do "Socialismo do Século 21". Tal ideia, que não percebe claramente o caráter único da Revolução Russa e da onda revolucionária mundial da qual é produto, resulta a nosso ver de uma reflexão insuficiente sobre a natureza particular da revolução proletária. Por conta disso, a OPOP tende em colocar sua análise da revolução na Rússia sobre o mesmo plano que qualquer conflito para o poder no seio da sociedade burguesa. O que está em jogo, se quisermos comparar essas situações, não é a procura de traços comuns entre movimentos genuinamente burgueses e a revolução proletária, mas ao contrário saber identificar as características diferentes que permitirão não só evitar confundi-los mas, sobretudo, ter a capacidade de distingui-los sem a menor ambiguidade. Estamos, obviamente, dispostos a continuar o debate sobre este tema.
[1] Para mais informação sobre esta questão ler em nossas páginas em espanhol o artigo Octubre de 1917, principio de la revolución proletária, nos números 12 [53] e 13 [54] da Revista internacional.
[2] A crise amadureceu (texto distribuído aos membros do comitê central, do comitê de Petersburgo, de Moscou e dos sovietes; Outubro de 1917). Fonte : https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/09/29-1.htm [55]
[3] /content/5/o-stalinismo-nao-e-crianca-da-revolucao-mas-encarnacao-da-contra-revolucao [56]
[4] E.H.Carr; História da Rússia Soviética - A revolução Bolchevique Vol. I; Ed. Afrontamento/Porto, 1977. Pg. 103.
[5] E.H. Carr - História da Rússia Soviética - A revolução Bolchevique Vol.III; Ed. Afrontamento / Porto, 1984. Pg. 145.
[6] Idem, pg 143.
[7] O que não significa que estimaríamos como secundários outros erros de Lênin sobre a questão da autodeterminação nacional em particular.
[8] Entretanto não se deve pensar que Lênin era tão cego que não pudesse diferenciar qualitativamente a simples expropriação da burguesia (em particular quando isso toma a forma da estatização) e a construção real de novas relações socialistas. Sobre esta questão, ele tem pontualmente razão quando, no seu livro Esquerdismo: doença infantil do comunismo, ele recusa críticas provenientes de certas posturas de Esquerdas pela fraqueza de sua argumentação, que leva, por exemplo, alguns (como foi o caso de Bukharin) a confundir a estatização quase completa da propriedade e até da distribuição, que aconteceu durante o período do comunismo de guerra, com o comunismo autêntico. Para nós, se compartilhamos esta precisão de Lênin, concordamos, entretanto, com as críticas das Esquerdas, sobretudo a seguinte proveniente do grupo de Ossinski: "Se o próprio proletariado não sabe criar os requisitos necessários da organização socialista do trabalho, ninguém pode fazer em seu lugar e ninguém pode obrigá-lo a fazer. O bastão, suspenso acima da cabeça dos operários, encontra-se-á nas mãos de uma força social que ou está sob a influência de outra classe social ou sob o poder dos sovietes; mas, naquele caso, o poder dos sovietes será obrigado a procurar o apoio de outra classe (por exemplo, o campesinato) e, agindo assim, destruiria ele mesmo a ditadura do proletariado. O socialismo ou a organização socialista do trabalho só pode ser estabelecido pelo próprio proletariado; do contrário, outra coisa totalmente diferente será colocada em seu lugar: o capitalismo de Estado" (Sobre a construção do comunismo, Kommunist n° 2, abril 1918). Para mais informações sobre este assunto, aconselhamos a leitura da nossa Revista internacional n° 99, "La comprensión de la derrota de la Revolución Rusa (1) [57]", na série El comunismo no es un bello ideal... e do nosso livro em russo, inglês e em breve em francês, A esquerda comunista russa.
[9] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/04/26.htm [58]
[10] O período de transição do capitalismo ao comunismo (https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/per%C3%ADodo_de_transi%C3%A7cao_do_capitalismo_ao_comunismo [40]) e, particularmente, O estado no período de transição (https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_per%C3%ADodo_de_transicao [41])
[11] Ler nosso artigo de La Revista Internacional n° 91 El comunismo no es un bello ideal...; "«El Estado y la revolución» (Lenin) - Una brillante confirmación del marxismo [59]"
[12] Ler nosso artigo de La Revista internacional n° 90, El comunismo no es un bello ideal...; "1905: la huelga de masas abre la puerta a la revolución proletaria [60]"
[13] Rosa Luxemburg, A revolução Russa. Ed. Vozes. Pág. 98.
[14] www.moreira.pro.br/docsocintercent.htm [61]
[15] Ler nosso artigo, da Revista Internacional n° 3, "Las enseñanzas de Kronstadt [62]".
[16] Ler nosso artigo de La Revista Internacional nº 131 [63] La experiencia rusa - Propiedad privada y propiedad colectiva [64].
[17] Lênin, O Estado e a Revolução. Cáp 1; seção 1.
[18] Obras Escolhidas em três tomos, Editorial Avante! https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/11/principios.htm [38]
[19] A este propósito, recomendamos a leitura da série de artigos, China 1928-1949: eslabón de la guerra imperialista nos números 81 [65] e 84 [66] da Revista internacional e o artigo El maoísmo: un engendro burgués no número n° 94.
[20] Leia nosso artigo Che Guevara: mito e realidade; https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/Che_Guevara_mito_e_realidade_uma_correspondencia [67]
Nenhum homem, mesmo ocupando lugar de destaque na galeria dos maiores e mais reconhecidos gênios da humanidade, foi, é, ou será infalível; mesmo que esteja, por merecimento inconteste, entre gente do calibre de Aristóteles, Newton, Darwin, Einstein, Engels e Marx; mesmo que esse homem se chame Vladimir Ilich Lênin! À primeira vista, a ressalva parece tola, porque a sua obviedade, que resulta da condição humana, soa, quando posta de manifesto, como uma aberração ou crime de lesarevolução inafiançável ao ouvido de muitos - referimo-nos aos espíritos de papagaios de pirata que pululam nas fileiras das mais diversas "escolas" do marxismo - para quem um "bom dogma" é, em se tratando da "defesa" dos "interesses da revolução", sempre preferível à verdade clara. Pois que, infelizmente, temos, nas nossas fileiras, muitos da nefanda espécie dos venerandos Jorges,[1] para quem a opção de uma "sublime recapitulação" ganha status de infalível alternativa na defesa de questionamentos que poderiam pôr em risco os sólidos alicerces do Credo.
A respeito da condição humana, não há muito o que dizer, salvo uma ligeira digressão, apenas para que a alusão ao termo não passe como um velho chavão tão ao gosto de uma literatura medíocre que, por absoluta falta de seriedade e de assunto, tece combinações do tipo "condição", "essência" ou "natureza" humanas para não dizer absolutamente nada acerca de coisa alguma. Aqui, ao contrário do padrão medíocre, o termo recebe conotação teórica precisa e contextualizada, para caracterizar o pensamento humano como um processo que se faz à base de acercamentos e sujeito a tensões de elevado e variado calibre - mais ainda em se tratando do trabalho intelectual de um Lênin durante toda a sua vida política. Tampouco existe, em se falando de Lênin, credo algum, e a maior prova de respeito que se possa ou que se deva dar a esse homem único é a que consiste em revelar seus acertos e erros, uns e outros grandes e generosos, uns e outros resultantes da tentativa, entre as mais honestas e dramáticas vistas na História, consistente em abrir espaço à inteligência dos desafios da revolução por entre ambiguidades que brotavam de um período e de um terreno social acentuadamente refratários a um processo que, não obstante, não podia comportar qualquer recusa; até porque, no caso em questão, o mundo dos revolucionários seria muito monótono, pobre e ausente de motivação, se a Comuna de Paris e a Revolução de 1917 não tivessem acontecido.
Se o que os revolucionários, que se colocam na perspectiva dos interesses históricos do proletariado - que são, sem medo de errar, os pressupostos da sobrevivência da própria humanidade -, desejam e necessitam é conhecer o curso completo e final do revés da Revolução Russa, devem deixar de lado a atitude pueril e sumamente amadorista, que consiste em afirmar - simplificando um pouco, para dar a ênfase devida - que tudo "ia bem" na Revolução Russa enquanto Lênin estava no leme e até que Stálin e sua troupe aparecessem implantando a ditadura da burocracia no lugar da ditadura do proletariado. Esses revolucionários devem aprender a encarar abertamente e com coragem as travas e ambiguidades da Revolução Russa, conhecer e reconhecer as ambiguidades dos grandes revolucionários que, pela posição que nela ocupavam, acabavam por incluir nas suas formulações políticas, nos seus desenhos estratégicos, táticos e organizativos essas ambiguidades, para poder aquilatar com justeza o que aconteceu e o que não deve acontecer no futuro - o que não quer dizer que os revolucionários do futuro estejam isentos de novas e também imensas ambiguidades.
Os fatores objetivos e subjetivos de uma revolução necessária
Para se ter uma visão ampla e segura de um processo tão complexo e difícil como a revolução russa, sobretudo no que diz respeito ao seu revés, é conveniente que o resumamos a alguns traços bem gerais, traços que, muito próximos de sua essência, possam revelar, da maneira mais nítida possível, os revezes de uma Revolução que se perdeu por uma combinação de erros políticos e processos sociais incontornáveis, uma revolução que, junto com a Comuna de Paris, foi, pelo propósito e significado que encerrava, a mais importante da História - mais importante que a própria Revolução Francesa.
A revolução russa contou com fatores objetivos e subjetivos, enunciado óbvio, mas que tem de ser colocado a título de método na abordagem ao tema. Como toda revolução, não nasceu do nada, mas de um processo geral que as massas viveram, sobre o qual aprenderam e ao qual reagiram com iniciativas que foram potencializadas pela direção revolucionária - a direção do POSDR e, particularmente, de Lênin, aquele que, entre os demais dirigentes bolcheviques, teve a visão mais penetrante sobre o estado de ânimo das massas, das suas possibilidades e de seus limites.
Entre os fatores objetivos estavam a crise do sistema feudal e de sua superestrutura, a opressão do Estado czarista, a crise econômica e a Primeira Guerra Mundial. A revolução russa foi, pois, em grande medida, decorrência da Primeira Guerra Mundial, na medida em que as massas, extenuadas ao limite, tiveram condições de avaliar as contradições e a crise do antigo regime com maior nitidez; e o partido bolchevique soube traduzir esse estado de ânimo em palavras de ordem que soavam fundo num front maciçamente camponês, com a bandeira da paz e da terra aos camponeses.
Pelo menos desde a emancipação dos servos, a economia feudal estava estagnada; pelo menos desde a década de 1860 tem início a ação de grupos terroristas, nomeadamente o Narodnik (Vontade do Povo), mais tarde Partido Social-Revolucionário. Eram organizações voltadas para a defesa dos camponeses.
Anos 1890Década de 1890: início e avanço da industrialização, embora ainda assente em poucas cidades da vasta Rússia camponesa e feudal. Dessa social e territorialmente reduzida industrialização capitalista nasceram uma burguesia e um proletariado urbano, envoltos numa ampla economia com traços feudais e de base camponesa. É em tal contexto que a sociedade russa assume uma tessitura social altamente desigual e combinada: uma Rússia feudal e camponesa de um lado e, de outro, uma Rússia com uma indústria, uma burguesia e um proletariado fabril nascentes. A década de 1890 trouxe também as greves operárias, o partido Kadet (Democrata Constitucional), da burguesia, a introdução das idéias marxistas e, em 1897, o Partido Marxista Russo dos Trabalhadores Socialdemocratas de Lênin, Martov e Plekhanov.
O contexto social e histórico da Rússia, que vai perdurar até depois da Revolução de 1917, inclusive em muito determinando, em última instância, seu caráter e seus desdobramentos, era, então, basicamente o seguinte: a) uma sociedade com fortes traços estruturais e culturais feudais; b) um predomínio quase absoluto do campesinato, no âmbito das classes oprimidas, que vai exercer influência fundamental sobre o caráter (ambíguo) e os desdobramentos da revolução; c) um proletariado combativo, mas reduzido e apenas concentrado em algumas poucas cidades. Já desses traços vai depender, numa grande medida, o destino da Revolução de outubro de 1917.
Em face do exposto - ainda que numa apresentação sumária -, uma primeira conclusão pode ser adiantada: uma vasta estrutura econômica ainda portadora de traços feudais; uma cultura camponesa atrasada, também encharcada dos mesmos traços feudais, e um campesinato, portanto, impossibilitado de uma concepção e de uma ação socialista. Isso era mais do que suficiente para travar o movimento da revolução em direção ao socialismo - o proletariado, em minoria e ainda jovem e inexperiente, não tinha acumulado forças, salvo em alguns reduzidos espaços, sobretudo Petrogrado e Moscou, para imprimir seu selo à Revolução. Essa era uma séria limitação da revolução, que só poderia ser superada na perspectiva de um processo revolucionário em cadeia e à escala, pelo menos nos principais países europeus, de cujo único âmbito - internacionalista - poderia retirar o oxigênio que sua maturação haveria de exigir para se completar. Na ausência de tal perspectiva, por ter sido forçada a uma busca estéril, isolada, do socialismo num só país, a revolução na Rússia não pôde oferecer aos dirigentes revolucionários mais do que um terreno apinhado de dificuldades abissais que se refletiam numa recorrente ambiguidade conceitual da política bolchevique pós-Revolução. Essa limitação está na base das muitas peripécias das formulações, iniciativas e propostas de Lênin, não só estratégicas (como saber qual o caráter da revolução e do Estado pós-revolucionário) como táticas - que se refletiram até mesmo, ou principalmente, no interior do Soviete de Petrogrado, o qual esteve nas mãos dos mencheviques e socialistas revolucionários até as vésperas de Outubro.
De 1905 a 1917O caráter dual da Revolução de 1905 deriva basicamente de uma ambiguidade, digamos, estrutural. Esse mesmo caráter vai estar presente também nas revoluções de fevereiro e de outubro de 1917: uma revolução burguesa incapaz de avançar como tal e uma revolução operário-camponesa que também não pôde avançar no sentido do socialismo. Uma tal revolução só teria êxito se houvesse acontecido um pressuposto: a revolução socialista, pelo menos na Europa ocidental, que a tirasse do isolamento e que a ajudasse a suprir grande parte de suas deficiências e contradições. Uma revolução que é travada nos termos aqui colocados e que vai dar lugar a uma formação que não será de um capitalismo privado nem do socialismo - e cujo caráter final, resgatado por uma nova maneira de reprodução do capital, vai ser reforçado com outros ingredientes mais adiante analisados.
A Revolução de Fevereiro não teve na burguesia russa uma classe à altura da tarefa que, por principio, era sua: a de imprimir uma solução radical burguesa que polarizasse trabalhadores e camponeses - até porque estava envolvida pelos trabalhadores dirigidos pelos bolcheviques e por uma guerra da qual as massas trabalhadoras estavam desgastadas ao extremo. A burguesia russa não tinha uma proposta de revolução burguesa radical capaz de oferecer liberdade política aos trabalhadores, terra aos camponeses e independência em relação aos capitais estrangeiros e à própria aristocracia czarista.
O Soviete de Petrogrado era a alma da revolução, porém, a rigor, não pôde sustentar uma saída socialista para ela. Esse soviete foi a plataforma sobre a qual agiam os líderes das organizações revolucionárias: socialistas-revolucionários, mencheviques e bolcheviques. Só muito tarde os bolcheviques lograram ser maioria nesse quartel-general da revolução; somente com atraso puderam assimilar uma concepção - incompleta, acima de tudo - socialista para a revolução dentro dos limites do Soviete de Petrogrado, com seu raio de ação curto para a escala de uma Rússia muito grande e atrasada e sua formação incompleta e tardia. Também os sovietes levavam o selo do atraso numérico e qualitativo da sociedade.
1917
Até abril de 1917 não se tinha avançado para uma concepção que fosse além de uma revolução burguesa - inclusive no POSDR. Lênin, também premido pelas mesmas limitações do caráter da sociedade russa, só avançou para uma proposta socialista - na verdade sempre eivada de ambiguidades, dentro das quais seu pensamento se movia - a partir de abril. Suas posições eram então e por muito tempo ambíguas; todas elas, na verdade, determinadas pelo caráter da sociedade e de sua estrutura de classes.
O atraso das formulações e do ensinamento aos operários organizados nos sovietes pode ser aquilatado pelo fato de que, no I Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, reunido em junho de 1917, a apenas quatro meses da Revolução de Outubro, os bolcheviques eram minoria. Destarte, os bolcheviques, que eram os únicos dirigentes capazes de passar à vanguarda da classe operária, acantonada nos principais sovietes da Rússia revolucionária, careciam de uma concepção que fosse (além da mera organização insurrecional) necessária para contemplar uma formação que os capacitasse à indeclinável tarefa do exercício do Poder, e não puderam preparar a vanguarda da classe nesse sentido - o que certamente explica porque o proletariado russo não se impôs às invectivas da burocracia na usurpação do Poder que deveria ser seu.
Não deixa de ser sintomático que Lênin, em pleno mês de outubro, ao lançar a proposta da tomada do poder com a palavra de ordem "todo o poder aos sovietes", encontrasse forte resistência na própria direção do Partido, fato que, por si só, já revelava uma ambiguidade na compreensão das tarefas da revolução, no centro mesmo daquilo que era a direção revolucionária do proletariado para a revolução socialista.
Ocorre, já depois da Revolução de Outubro, o II Congresso geral dos Sovietes. e os bolcheviques, agora em maioria, passam "o poder aos sovietes", coisa que não encontrava eco na realidade concreta, posto que os sovietes não tinham escala em número e nem em qualidade para exercer - como de qualquer maneira fizeram os comunnards em 1871 - o poder socialista.
1918
As mesmas ambiguidades permanecem e estão presentes na preparação da Assembleia Constituinte, que, na verdade, se opõe ao Soviete. Só em março de 1918 a Assembleia se reúne, mas, com ampla maioria de mencheviques, SRs e outras forças, põe em perigo a revolução e então se resolve, a partir do Soviete de Petrogrado, cassar a AC. Ou seja, essa anulação é feita pela força de um soviete, mas esse mesmo soviete não terá escala para arcar com todas as responsabilidades daí decorrentes - age sem escala qualitativa e quantitativa para dobrar o terreno muito amplo de ambiguidades da revolução vitoriosa.
A outra já mencionada necessidade para a vida do socialismo na URSS foi a revolução em escala mundial, internacional e internacionalista, que foi tentada, que manteve a expectativa, mas que terminou não vingando - e aqui, as causas são muitas, entre as quais a falta de uma IC e de partidos marxistas, sem as traições de grande parte de suas direções, que não prepararam os operários de seus países para intervirem numa conjuntura favorável. Essa lacuna vai colocar a Revolução de Outubro, isolada, numa relação de contradição consigo própria. Estava de certa forma em andamento aquela que era de fato a maior ambiguidade entre as muitas que pontilharam a saga da revolução russa: a tentativa frustrada de manter, em circunstâncias de isolamento, uma sociedade não-socialista numa forma hoje difícil de imaginar (qual?), ou tentar o impossível: construir o socialismo num só país. As difíceis circunstâncias da época levaram, passo a passo, ato a ato, a Revolução de Outubro - que se colocava como uma necessidade social - para a segunda alternativa.
O isolamento da revolução russa também levou, na falta de um apoio vindo dos trabalhadores da Alemanha e de outros países europeus, o Governo Bolchevique a se armar, sozinho, para defender-se das invasões. E aí temos em decorrência mais duas ambiguidades: o Poder deixa de ser da classe para ser do Partido e a Guarda Vermelha, com cerca de 10 mil homens, exército popular, cede lugar ao Exército Vermelho, um exército nos moldes burgueses com chefes trazidos do exército anterior e formado de 5 milhões de homens dirigidos por 30 mil oficiais do passado - um exército profissional e com disciplina centralizada e de ferro.
Como é fácil de ver, cada ambiguidade nova resulta de outras acumuladas e aumenta o volume de ambiguidades que afastam, cada vez mais, a URSS de uma ditadura do proletariado para tornar-se uma ditadura do partido e da burocracia sobre o proletariado. Poder Soviético passou a ser apenas um nome que encobria um enorme revés. O Partido Bolchevique toma o Poder porque: a) depois de tentar a aliança com os mencheviques e os socialistas revolucionários percebe que tais partidos estavam com a contrarrevolução; b) a classe operária também não estava preparada para dirigir o Estado pós-revolucionário por via dos Sovietes; c) os bolcheviques compreenderam que não tinham quadros, entre comunistas e operários, para ocupar cargos no Estado pós-revolucionário; d) os próprios bolcheviques não tinham uma ideia clara acerca do caráter da sociedade pós-Outubro;. e) a ajuda revolucionária esperada da Europa socialista-revolucionária não veio, porque a revolução mundial, esperada com convicção, não aconteceu. Assim, as difíceis circunstâncias - internas e externas - que cercaram a revolução, principalmente depois da tomada do Poder, jogaram o Poder nas mãos do Partido que teve de dividi-lo com a burocracia. Tudo isso já não era, na prática, uma tentativa malograda de salvar - e, na verdade, de construir - o "socialismo num só país"? Como se sabe, o Exército Vermelho, sob a direção de Trotsky, rechaçou inúmeras investidas tanto de fora para dentro como do interior da própria Rússia, mas aí certamente o que se tentava salvar não era mais o socialismo, mas uma outra coisa que precisa ser definida, até porque as tentativas de defini-la feitas, principalmente, por Lênin e Trotsky não contribuíram para elucidá-la; muito ao contrário reforçaram equívocos conceituais que, respaldados pela autoridade intelectual, moral e política desses seus formuladores, se mantêm até hoje na espera de uma solução convincente.
O acúmulo de ambiguidades, sob o peso das quais a revolução batia em retirada, funcionava como uma inexorável fonte de novas ambiguidades, numa espécie de efeito-cascata. Vejamos mais lances desse desesperado processo, em cujo centro debatia-se o próprio Lênin tentando atalhos, soluções provisórias, sempre com a perspectiva de ceder para aliviar tensões e pressões fatais para a revolução, com o firme propósito de reverter cada uma e todas as derrotas temporárias, num futuro que a cada passo ficava mais incerto e distante. Em 1919, ele tenta reverter o cenário comunista mundial dominado pela II IC, criando a III IC, com a qual pensava ganhar o proletariado para uma revolução à escala mundial, mas a III IC nasceu frágil e não conseguiu cumprir a tarefa - e acabou sendo, mais tarde, a chancelaria para o Poder burocrático. Nesse ínterim, os trabalhadores europeus estavam nas mãos das direções patrióticas, nacionalistas, e a onda do movimento operário estava, por volta de 1921, em refluxo. A invasão da Polônia, autorizada pelo próprio Lênin na esperança de um apoio dos trabalhadores poloneses para uma revolução ali, foi um fiasco e uma derrota.
A reação não tardou. A guerra civil foi posta em movimento. Partidos burgueses desalojados, mencheviques, SRs, anarquistas instigaram a reação. O ano era 1918. Tudo isso, produto da situação anterior, levou a economia à desorganização. A I Guerra Mundial, a formação de um exército profissional e a guerra civil desorganizaram a economia. Transportes em pane; as reservas de matérias-primas em baixa; fome e frio assolavam a população. Todo esse impasse levou o governo a tomar mais uma medida de adiamento -ou dissolução, talvez este seja o melhor termo - do "socialismo". Aí ocorreu o "comunismo de guerra" - um nome já de si muito estranho. A escassez de alimentos era o maior problema. Os camponeses não aderiram aos apelos do partido e os alimentos tiveram de ser confiscados. Problemas também com a indústria. Operários que ocupavam cargos não estavam habilitados: a recorrência aos "especialistas", com altos salários, não pôde ser evitada. Como se pode ver, a velha ordem se imiscuía nas entranhas da nova, e as velhas relações, recriadas com selo novo. Dizem-nos historiadores creditados que após três anos de revolução, a população de Moscou estava reduzida a 55% e a de Petrogrado, a cerca de 43%.
1921
A essa altura, o controle operário da produção foi trocado pela obediência e a repressão cegas. Foi implantada a "militarização do trabalho". Mais e mais ambivalências. O "comunismo de guerra" não podia mais continuar, e, no início de 1921, foi abandonado e substituído pela NEP. Mas, antes que isso acontecesse, o "comunismo de guerra" deixou seus "saldos": uma inusitada centralização da economia e do poder e a substituição da distribuição pelo mercado por mecanismos diretos para o consumo - uma espécie de "economia natural". A primeira, que já fora implantada antes, teve continuidade, a segunda, não deu certo. Ademais, a concentração, que foi aplicada na indústria, não deu certo no campo. No que tange à economia "natural", ela, que estava combinada com a política de requisições, não deu certo - e aí não se teve outra alternativa senão recorrer a mais uma ambiguidade: o incentivo capitalista, com comércio a dinheiro; o camponês rico, o kulak, para além do que lhe era requisitado, podia levar um excedente ao mercado - e o kulak tornou-se um pequeno capitalista. Recuperou-se o direito de contratar mão-de-obra e de arrendar a terra. A NEP era vista pelo próprio Lênin como mais uma parada forçada a ser revista num certo futuro, não estabelecido por antecipação.
Diante de tal quadro, era inevitável que surgissem movimentos de oposição, nascidos até mesmo dentro de espaços sociais emblemáticos da Revolução de Outubro, como foi o caso da revolta dos marinheiros do Kronstadt, amotinados, reclamando, entre outras coisas, eleições livres nos sovietes, mas que foram esmagados pelo próprio Exército Vermelho. Uma tal medida, drástica ao extremo, não podia ser vista com simpatia pelos trabalhadores que já se encontravam isolados de qualquer participação na estrutura do Poder... "Soviético". Essa medida, tomada com o assentimento do próprio Lênin, talvez seja a maior das ambiguidades de toda a Revolução.
1922
Um poder centralizado, que emergia do enfrentamento a todas as incursões e a todos os desafios, em continuação com o "comunismo de guerra" e a NEP, era agora corroborado pela necessidade de reconstrução da economia nacional. Essa centralização vai constar do novo texto constitucional da Rússia (o primeiro fora aprovado em julho de 1918, acompanhado da criação do Conselho dos Comissários do Povo): a República Soviética Federal Socialista Russa (RSFSR). Entre 1920 e 1922 foram incorporadas à RSFSR, com convênios e com a força, as repúblicas socialistas ou não-socialistas da Ucrânia, Bielo Rússia, Geórgia, Armênia e Azerbaijão. O poder desse conjunto estava concentrado em Moscou. Em 1922, congressos da RSFSR, Ucrânia, Bielo Rússia e Transcaucásia ratificaram a centralização e criaram a URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A aprovação de uma constituição para o conjunto foi estabelecida pelo Segundo Congresso dos Sovietes, em janeiro de 1924 - que seguia, em geral, as linhas da Constituição da RSFSR. Por sua vez, o Partido tornou-se uma máquina centralizadora com um Politburo de 5 membros, mais forte do que o próprio Comitê Central - e esse Politburo passou a ser, na prática, "o órgão supremo de elaboração da política da URSS". Contactos para abrir caminhos de acesso a trocas comerciais foram abertos com as Inglaterra e com a Alemanha e, à medida que a expectativa da revolução mundial caía, a diplomacia avançava. Acordos militares secretos, para benefício mútuo, que visavam a produção de material bélico, foram assinados - com, inclusive, treinamento militar por especialistas alemães ao Exército Vermelho.
A essa altura o comércio ressurgia, prostitutas podiam ser vistas nas ruas, a instituição da gorjeta reapareceu, o trabalho assalariado se alastrava. Tem início a era Stálin. Todavia, antes de tecer alguma considerações acerca das relações entre as duas eras, a "era Lênin" e a "era Stálin", faz sentido passar a vista no torturante esforço intelectual de Lênin tentando compreender e definir, por entre um denso e contraditório cipoal de ambiguidades - que se mostraram, depois, letais para a revolução e a ditadura do proletariado -, o caráter e as tarefas que a revolução em processo estavam a exigir.
1918
O regime saído da Revolução de Outubro não era ainda socialismo, mas uma fase de transição para o socialismo. Em 1918, eram essas as "estruturas socioeconômicas" existentes na Rússia, segundo Lênin: "1) Patriarcal, quer dizer, uma economia camponesa natural em grau considerável; 2) Pequena produção mercantil (compreende a maioria dos camponeses que vendem seu trigo); 3) Capitalismo privado; 4) Capitalismo de Estado; 5) Socialismo" (In, O Infantilismo de Esquerda e a Mentalidade Pequeno-Burguesa).Nelas, predominava "o elemento pequeno-burguês camponês".
Na fase do "comunismo de guerra", quando houve a "liquidação da burguesia privada" e a apropriação estatal dos meios de produção, o campesinato e os operários já haviam sido despojados dos seus órgãos de administração direta, quando, por meio de uma inusitada centralização das decisões, foram também eliminados os próprios conselhos de empresa, substituídos por via da nomeação direta dos diretores de fábrica pelo governo "socialista", Lênin afirmava que já se havia dado importantes passos na direção do comunismo e distinguia três formas básicas de "economia social": o capitalismo (com a burguesia), a pequena produção mercantil (basicamente os camponeses) e o comunismo (o proletariado). A ideia de uma aproximação do comunismo substituiu, temporariamente, a de um "capitalismo de Estado". Em 1920, o "comunismo de guerra" tinha-se tornado num fracasso contundente e Lênin titubeava entre ambiguidades. Como falar de avanço para o comunismo numa sociedade mal saída de uma revolução, sem a necessária transição - postulada por Marx (Critica ao Programa de Gotha) e pelo próprio Lênin (O Estado e a Revolução) - na qual o poder de Estado dos conselhos operários tinha sido liquidado e já estava substituído pela burocracia? Mesmo assim, Lênin considerava que aquela forma de poder inclinava-se para o comunismo e que a este faltavam apenas "condições materiais". Lênin estava a confundir aquela centralização burocrática com Poder socialista: confundia um Poder do partido e da burocracia com "ditadura do proletariado" (já beirando o comunismo) - de um proletariado que já não se encontrava no poder; uma "ditadura do proletariado, na qual as milícias operárias tinham sido desfeitas e substituídas por um Exército (Vermelho) regular; numa realidade sumamente problemática na qual ocorriam rebeliões camponesas, greves operárias em Petrogrado e a revolta dos marinheiros do Kronstadt. São suas estas palavras (1922): "Esta crise interna trouxe à luz o descontentamento de uma parte considerável dos camponeses e também dos operários. Foi a primeira vez, e espero que seja a última, que largas massas de camponeses estiveram contra nós, não de modo consciente, mas instintivo."
1920 - 1921- 1922
Lênin reconhece um erro na pretensão de passar diretamente para a produção e distribuição comunista e, por meio de um recuo, instaura a NEP. O erro de Lênin, que não é um erro qualquer, consiste em ter confundido traços forçados (logrados por via coercitiva) na produção e na circulação com comunismo, quando não se poderia falar de comunismo, muito menos com tais métodos ou com conquistas obtidas tão rapidamente e descoladas da questão do poder efetivo - sem transição socialista alguma. Há algo mais do que mero economicismo nisso tudo...
Lênin reconhece o fracasso do "comunismo de guerra"- "[...] Cometemos um erro ao decidir passar diretamente para a produção e a distribuição comunista [...]"- e reconhece a volta ao capitalismo numa extensão considerável. Não há como negar: Lênin estava em total desacordo com o que Marx escrevera em Crítica ao Programa de Gotha e consigo próprio em O Estado e a Revolução. Mas Lênin não pensava num capitalismo privado, mas num novo tipo de capitalismo de Estado. Como acontecia com muitos outros "recuos táticos"- tomados sob a pressão de fatos na verdade intransponíveis, e que mais na frente haveriam de ser revertidos -, pensava, novamente, num capitalismo de Estado, que se combinava com traços socialistas. Em 1921, no livro O Imposto em Espécie, ele retoma as ideias de 1918 - às mesmas "estruturas econômicas" que havia identificado na Rússia em 1918. O "elemento socialista" estava no setor estatal da economia - e isso independentemente da questão do Poder das comissões e dos conselhos operários dentro e fora das empresas. E o capitalismo de Estado? O capitalismo de Estado era, na versão de Lênin, um regime onde a primazia estava com a produção mercantil, no qual o setor estatal era minoritário, mas o Poder estava representado pela "ditadura do proletariado" - por um Estado que, nesse contexto, era "um Estado verdadeiramente revolucionário" e representava "inevitável e inexoravelmente a marcha para o socialismo". Parece óbvio que Lênin estava teórica e historicamente equivocado. Teórica e politicamente equivocado porque aquele já não era um Estado proletário, social e historicamente, porque as relações de produção capitalistas não tinham desaparecido nem mesmo no âmbito do setor estatal da economia (confusão entre relações sociais de produção e forma de propriedade).
Na obra O Imposto em Espécie, Lênin identifica os seguintes traços constitutivos do Capitalismo de Estado, que estava a existir na URSS: a concessão (a capitalistas privados, inclusive estrangeiros), a cooperativa, (a pequenos produtores, principalmente camponeses) a comissão (ao comerciante para vender a produção estatal e recolhimento dos produtos do pequeno produtor)) e o arrendamento (de empresas, terras etc. estatais a capitalistas privados). O Capitalismo de Estado era então uma sociedade na qual havia um pequeno setor estatal, a primazia da produção mercantil, a propriedade privada (inclusive arrendada), ou seja, uma sociedade majoritariamente capitalista, controlada por um "Estado proletário" revolucionário - um Estado, diga-se de passagem, que não era proletário e não representava, portanto, nenhuma ditadura do proletariado.
Nesse mesmo ano de 1922, Lênin considera que "o elemento pequeno-burguês (campesinato) é o principal inimigo e que o proletariado está impregnado dessa ideologia e também ‘desclassificado' (fora de sua base de classe), debilitado, disperso etc. Eis a que ficou reduzida a ‘ditadura do proletariado'"!!
Tentando apropriar-se do fato pelo conceito, Lênin tentava, no "Relatório Político ao Comitê Central ao XI Congresso", caracterizar esse capitalismo de Estado da seguinte maneira:
Mas, não são menores as ambivalências do grande Lênin ao tentar compreender a natureza do Estado que dirige. No texto citado mais atrás ele assim define aquele Estado: "Este capitalismo de Estado está conectado com o Estado. E o Estado é a classe operária, é a parte mais avançada dos trabalhadores, é a vanguarda. Nós somos o Estado". No mesmo texto, noutra passagem, encontramos uma surpreendente definição, hoje sabidamente falsa - como tem-na demonstrado Mészáros - que constitui um lamentável equívoco teórico e político, consistente em confundir-se supressão da propriedade privada com superação da relação-capital:
Em "Sobre o Programa do Partido, Informe ao VIII Congresso do PC(b)", de março de 1919, referindo-se aos sovietes, ele afirmara: "Sendo por seu programa órgão da administração exercida pelos trabalhadores, são na prática órgãos da administração para os trabalhadores, exercida pela camada do proletariado que constitui a vanguarda e não pelos trabalhadores em seu conjunto."
Numa outra passagem mais ambígua ainda, fazendo uma alusão ao Partido, no texto "Sobre o Sindicato", de 1920, ele chega a afirmar que
"A ditadura do proletariado [...] só pode ser exercida por uma vanguarda que tenha absorvido as energias revolucionárias da classe [..]) Tal é o mecanismo básico da ditadura do proletariado e a essência da transição do capitalismo para o comunismo.", mas, no Imposto em Espécie, já citado, ele, em alusão ao mesmo Partido, assume uma definição desconcertante: "[...] o contingente avançado do proletariado só representa uma pequena parte de todo o proletariado que, por sua vez, não representa mais do que uma pequena parte de toda a massa da população." Num escrito de 1922, "Condições para a Admissão de Novos Membros no Partido", ele escreve:
Ou seja, a política proletária não foi absorvida respectivamente pelo conjunto da classe, pelo conjunto do segmento mais avançado da classe - a vanguarda da classe -, também não pelo conjunto do Partido, erroneamente visto, em passagens anteriores, como a vanguarda de uma classe incapaz de reconhecê-la conscientemente como tal - resultando que tal política proletária só existia na cabeça de uma Velha Guarda que, se desfeita, perderia as condições de impor sua política. Num outro texto de 1921, se reportando a uma polêmica mantida com Bukharin, que o havia criticado, ele - como fazia sempre que era convencido de seus erros - escreve:
Tratando da burocracia que avançava em todas as instâncias do Estado e da sociedade inteira, algumas formulações feitas por Lênin podem fornecer mais e maiores lições. Porém, façamos um breve parêntesis para lembrar que a formulação "Estado Operário com deformações burocráticas" é um conceito que vai ser empregado por Trotsky para caracterizar o Estado parido da Revolução de Outubro durante todo o tempo em que viveu. Voltemos a Lênin. Numa passagem de um texto de novembro de 1922, "Cinco anos de Revolução Russa e as Perspectivas da Revolução Mundial. Relatório ao IV Congresso da IC", ele escreve:
Até aqui, para Lênin, a burocracia encontra-se arraigada no tecido estatal, mas não na cúpula. Porém, numa passagem de um outro texto, escrito apenas um mês depois do mesmo ano de 1922, nas angustiantes análises feitas por Lênin a tal respeito, ele, agressivo com os próprios camaradas do partido, dessa vez já vê a coisa muito pior:
Agora, Lênin começa a notar que a burocracia, que apenas um mês atrás tinha corroído apenas a larga esfera do funcionalismo do Estado, na verdade encontrava-se instalada em parte da cúpula, nada menos do que na alta esfera ministerial, a esfera do Comissariado do Povo, onde, como se vê, uma outra prática da democracia operária, que a Comuna de Paris implantou e fez valer nos seus dois meses de existência - a revogabilidade dos cargos - , também inexistia, anulada pela imunidade (fato e termo incompreensíveis nas circunstâncias reais e conceituais da ditadura do proletariado) da alta esfera do poder burocrático. São sintomáticas algumas colocações feitas por Lênin ainda nos finais do ano de 1922, tais como:
Ou este, no qual o aparelho de Estado era
Mas, se todos esses pareceres de Lênin preocupam, preocupam muito mais alguns outros que, nas mãos de Stálin e entourage, vão ser assumidos não só sem critica, mas apesar da critica e, sobretudo, contra toda crítica, que constituem uma justificativa para o afastamento dos operários do mecanismo do poder. Vejamos esta longa passagem de um texto escrito por Lênin ("Discurso no III Congresso Pan-Russo dos Trabalhadores de Transporte de Água", de março de 1920):
E desta ilação, constante de um texto de 1922, "Papel e Funções dos Sindicatos", sempre feita a contragosto e em função de pressões socialmente ambíguas, que vai, nas mãos de Stálin & Cia., receber o selo não de uma ação transitória e provisória, mas, ao contrário, um atestado de permanência definitiva:
Ou ainda: "[...] o trabalho deve ser organizado de um novo modo; novos meios de estimular as pessoas a trabalhar e a observar a disciplina no trabalho devem ser encontrados." (In, "Discurso no III Congresso Pan-Russo dos Sindicatos", 1920).
Ou mais nesta, de uma contundência a toda prova: "[...] Poderes ditatoriais e direção unipessoal não são contraditórios com a democracia socialista" (Ibidem).
Portanto, premido pelas ambiguidades do processo material da revolução russa, Lênin estava a justificar o injustificável, ou seja, colocar os interesses da produção na frente da legitimação dos operários no poder - uma postura teórica indefensável, uma postura política abominável, de todo modo uma herança a mais que vai ser assumida pela cúpula do capitalismo de Estado sem qualquer constrangimento depois de encerrada a era Lênin. Na sua obra O Estado e a Revolução, escrito dois meses antes da revolução, Lênin, no encalço de posições de Engels e Marx a respeito do Estado pós-revolucionário, como um exercício para compreender a constituição do Estado socialista, que haveria de ser montado na Rússia logo depois, afirmava, com convicção e brilhantismo, que o Estado Comuna, a ditadura da classe operária sobre a burguesia, teria de ser erguido sobre os escombros do Estado burguês quebrado, eliminado, liquidado pela violência revolucionária do proletariado, naquilo que define a essência do poder da burguesia, ou seja, a burocracia e o exército regular, profissional e aquartelado. Todavia, o que se nota, nas próprias palavras de um Lênin abafado pelos descaminhos do socialismo, é que esse par de instituições, com ele o essencial do poder político da burguesia permaneceram, por conta das inúmeras ambiguidades postas em relevo no nosso artigo. Adeus milícias, adeus Estado mínimo e em extinção, adeus revogabilidade dos cargos, adeus controle direto da produção pelos operários, adeus poder operário de Estado.
Até aqui está visto, portanto, ao contrário do que se diz nas fileiras da maioria dos assim chamados "partidos comunistas", que: a) ao desaparecerem as perspectivas da revolução simultânea em vários países, o que se tentava mesmo era salvar (= construir) o socialismo num só país, tentativa a que o próprio Lênin se jogou com todas as suas energias; b) dessa ausência maior - a única que poderia assegurar as condições de maturação de uma sociedade não-socialista, saída de um solo social imaturo para tal, até o ponto em que o socialismo pudesse ser implantado, de fato, na Rússia pós-revolucionaria -, portanto, dessa ambiguidade maior, combinada com outras tantas que se apresentavam paridas de uma realidade refratária ao socialismo, os bolcheviques foram atolados em concessões em série, tomadas como recuos táticos a serem revertidos em etapas posteriores, mas que, infelizmente, num conjunto no qual essas coisas se integravam cumulativamente, se tornaram irreversíveis, levando os bolcheviques, incluindo o maior deles, a caírem em formulações igualmente ambíguas que não só não davam mais soluções, mas, exatamente, só contribuíam com o afastamento do horizonte socialista; c) resulta que posturas atribuídas a Stálin, como a ideia do socialismo num só país, ou a fórmula tão utilizada por Trotsky de um "Estado operário com distorções burocráticas", entre outras, não eram em nada estranhas ao próprio Lênin; d) a supressão da propriedade privada era confundida com a morte da relação-capital, ao tempo em que velhas relações voltavam à ordem do dia e se combinavam com outras saídas da nova configuração social que recuperava, isto sim, a mesma relação-capital na forma de um Estado pós-capitalista; e) a Revolução Russa estava estiolada desde que saiu do casulo, por força de referidas ambiguidades, e, ao fim e ao cabo, resultou que no lugar do proletariado e seus conselhos estava mandando uma burocracia - que permeava o Estado, o Exército, as empresas -, para além dela um poder fortemente concentrado no Partido, ou então, como o próprio Lênin afirmou, no lugar do partido uma exígua Velha Guarda de veteranos bolcheviques, e assim por diante.
B/Diante de ambiguidades de tal escala, que obrigavam os dirigentes do Partido - Lênin em especial -, diante de inarredáveis pressões dos fatos, a abrirem mãos de conquistas a duras penas alcançadas, com o propósito de recuperá-las quando as tormentas sociais se transformassem em situações mais sólidas e favoráveis, o que diferenciava os dois estilos - a saber: o estilo Lênin e o estilo Stálin - que se fizeram hegemônicos no processo pós-revolucionário?
Colocando inicialmente o problema no plano dos estilos de direção, que estava posto no processo de construção da ditadura do proletariado, há, a nosso juízo, uma diferença que é essencial - uma diferença que revela, de um lado, um revolucionário autêntico e impar, que perseguia, com a máxima dureza, no terreno do debate aberto e leal, ideias e concepções adversárias e, de outro, um indivíduo grosseiro, que se cercou do que havia de pior nas fileiras do Partido, que perseguia, no lugar das ideias, as cabeças dos oposicionistas que as portavam. De fato, enquanto Lênin, de um lado, ao tentar escapulir de uma ambiguidade - por exemplo, lançar mão da NEP, com o claro revés, calculado, de fortalecer o capitalismo no campo, para resolver o desafio iminente do problema do abastecimento, ou de transformar a Guarda Vermelha num Exército regular e profissional, sujeito a uma disciplina burguesa, para dar conta da contrarrevolução nos dois planos, o interno e o externo -, agia na esperança de retomar o curso desviado da revolução, Stálin, do outro lado, tomava como um dado a tendência cumulativa dos desvios, que já configuravam uma sociedade não-socialista, jamais questionando o desencadear dos fatos e, para justificar uma ação política genuinamente revisionista, não titubeava em cometer as mais ousadas e grosseiras adulterações e falsificações, as mais hediondas perseguições aos adversários oposicionistas e celebrar os mais abjetos acordos internacionais com governos imperialistas - como o ato de dissolução da III IC (e de qualquer Internacional), desde que estivesse em questão a sua sagrada tarefa de "construção do socialismo num só pais", a Rússia. Nas mãos de Stálin e dirigentes seus, um marxismo coagulado e torpe figurou como a superestrutura ideológica do capitalismo de Estado que eles assumiram sem questionar e tentando, à base das mais grosseiras fraudes teóricas e políticas, justificar.
C/Mas uma análise que incida sobre os dois estilos básicos dos dirigentes que estavam à testa dos destinos da Revolução Russa tem, decerto, certa relevância, mas ela só pode ser verdadeiramente eficaz para uma concreta compreensão de referido processo se compreendida como parte de uma abordagem das determinações de classes que estavam no centro das ambiguidades atrás ressaltadas. E aqui é forçoso esclarecer em que planos a análise das determinações de classe pode e deve ser realizada. Num primeiro plano está a necessidade da identificação das classes sociais que estavam ativadas nos desdobramentos da própria Revolução; no outro, essas classes faziam suas intervenções na tessitura da sociedade , na mesma Revolução, procurando incliná-la para o âmbito de seus interesses.
De todo o exposto no curso da análise levada a efeito acerca das ambiguidades da revolução é possível concluir que a classe social - uma burguesia de Estado -, que acabou prevalecendo nos desdobramentos do processo da revolução russa, foi constituída de uma complexa combinação dos caracteres e dos respectivos interesses dos seguintes segmentos sociais: a) de um lado os camponeses ricos, aqueles que, no mínimo, se beneficiaram e que, por conseguinte, se desenvolveram com interesses específicos com a NEP; b) os militares, sobretudo os que, contados em torno de algumas dezenas de milhares, passaram a ocupar postos de comando no Exército Vermelho; c) todo um corpo de funcionários, originários do Estado czarista, que foram resgatados e cooptados para pôr em andamento o Estado pós-revolucionário; d) de suma importância, e não poucos, os membros do próprio Partido, que se tornaram parte da burocracia e no conjunto diluíram sua fisionomia comunista, trocando-a pela fisionomia de uma burguesia de Estado. São essencialmente esses segmentos que vão ser a um só tempo resultado e agentes do processo de transformação da ditadura do proletariado numa ditadura de uma burocracia que culminou com uma burguesia de Estado à testa da qual estavam Stálin e sua entourage.
Demais, torna-se necessário compreender como se deu o processo concreto da viragem em questão e, acima de tudo, como e porque o próprio Partido - nele incluindo os próprios Lênin, Trtosky e demais membros que, de alguma forma e em alguma medida compartilhavam, a tal altura do andamento do processo, da orientação geral de Lênin-tornou-se mediador da nova estrutura de Poder que tomava corpo a partir da insurreição de Outubro. Por tudo o quanto foi visto, é óbvio que seria um disparate supor que homens como Lênin, Trotsky, Bukharin ou Sverdlov pudessem ser responsabilizados por uma intervenção conscientemente deliberada no sentido da desmontagem da ditadura do proletariado em proveito da ditadura do partido e da burocracia sobre o proletariado. Mas também não se pode omitir que a intervenção, que se viram obrigados a levar a efeito, como homens de partido, diante das gigantescas ambiguidades paridas do próprio processo da revolução, terminou por se constituir como mediação do referido processo. As ambiguidades nasciam da combinação de problemas sociais objetivos que emergiam das entranhas de uma sociedade material que, política e ideologicamente resistia, nas circunstâncias dadas, ao desenvolvimento da ditadura do proletariado. Na medida em que cada intervenção posta em prática pelo Partido era acionada como um necessário recuo - embora apenas um recuo tático, para aqueles dirigentes - e produzia um reforço dos interesses e das respectivas posições de classes da amálgama vista mais atrás, esses segmentos ganhavam contornos adicionais de burguesia de Estado e, normalmente, a partir de cada nova posição assim alcançada, aumentavam seu poder de fogo na desmontagem em curso da ditadura do proletariado e no consequente reforço do capitalismo de Estado. Esses obstáculos que se colocavam como dados outros diante da ação geral do Partido - como as reações de certas esferas do campesinato - nasceram não como obstáculos, mas como fatores ativos da revolução, tornando-se obstáculos exatamente quando a própria revolução, em sua marcha progressiva, teve de colocar em questão certos interesses dessas esferas do campesinato. Entre alguns dos obstáculos gerais ao curso da revolução, que se constituíram como pressões objetivas - por exemplo, a crise de abastecimento, que levou ao "comunismo de guerra" e, depois, à NEP - e as posições crescentemente articuladas dos referidos segmentos de classe interessados na volta dos mecanismos de mercado e do Poder, havia uma relação dialética de simultaneidade, nunca um sistema de causa e efeito linear. Pois é exatamente no âmbito das contradições objetivas dessa dialética que a ação do Partido, operando a contragosto de Lênin e parceiros seus, funcionava como mediação. Diante da pressão dessas forças de resistência, o Partido mediava com um recuo tático provisório, que implicava num fortalecimento das posições de classes dos segmentos mais atrás relacionados; posições essas que, uma vez fortalecidas, agiam, no retorno, no fortalecimento dos referidos processos objetivos, cavando ainda mais o fosso existente entre a realidade pós-revolucionária e a perspectiva da ditadura do proletariado. Esses recuos, como foi visto, acumulavam-se num crescendo até que, no limite, resultaram na consolidação de um capitalismo de Estado que, já na década de 1920, era um sistema social completo, com uma classe social formada, com um Estado correspondente, à testa do qual o stalinismo, como direção e ideologia adequada, assumiu-o de ponta a ponta.
D/
Diante de tudo o que acaba de ser exposto, uma pergunta se impõe: haveria alguma alternativa? Positivamente, qual? É bom ter essas limitações claras em mente para não embarcarmos em formulações fáceis, como: a) o stalinismo pegou uma ditadura da classe e, traindo a revolução, deu início, após a morte de Lênin, ao capitalismo burocrático de Estado; b) Lênin, Trotsky, Bukharin teriam feito diferente. Para avaliarmos melhor, indaguemos: diante das circunstâncias de isolamento, interno e externo, do país, do partido e da própria revolução, qual a saída que poderia evitar a via stalinista de cristalização de uma ordem do capital pós-capitalista? Uma saída que colocasse a revolução russa num caminho que desse lugar ao socialismo, quando as condições da realidade mundial se fizessem presentes? Teria sido possível uma tal forma de sociedade de transição?Por quanto tempo?
Como todas as experiências de tentativas de revoluções socialistas em condições de imaturidade para tais, e nas condições de ausência de simultaneidade de socialismos em nações que os fizessem brotar de capitalismos desenvolvidos, não puderam evitar o malogro, tornando-se invariavelmente sociedades reprodutoras do capital. O avanço dessa compreensão necessária e impostergável para o destino da humanidade passa pelo estudo dos processos similares ao da Revolução Russa (na China, em Cuba e na Nicarágua, em todo o Leste europeu, na Ásia e na África) - para inclusive entender como tentativas não bem sucedidas puderam e ainda podem chegar a situações nas quais se configuram e podem-se configurar verdadeiras aberrações ditatoriais, a exemplo do que aconteceu, em nome do "socialismo" e da "ditadura do proletariado", na própria China, na Coreia do Norte, na Romênia, etc.
E/
Devemos levar em conta, no presente e no futuro, duas ordens de preocupações que podem evitar erros e marchas forçadas como os que aconteceram até aqui: de um lado, que a História oferece, pela primeira vez, no plano objetivo, a possibilidade de revoluções socialistas simultâneas, inclusive em países capitalistas desenvolvidos, fato novo que poderá combinar, na base de um internacionalismo proletário autêntico, a ajuda mútua de nações pós-revolucionárias, sobretudo a dos países desenvolvidos, onde o socialismo já pode florescer imediatamente às revoluções, aos países atrasados, em que as revoluções se coloquem como necessidades, mas em circunstâncias nas quais o socialismo ainda não possa ser construído de imediato. A outra coisa a ser levada em conta é o fato, reiteradamente posto em manifesto por Stivan Mészáros, baseado em Marx, de que o que tem de ser superado não é só o capitalismo mas toda a vida e a sobrevida do capital, o que deve compreender que não basta suprimir a propriedade privada dos meios de produção para que o socialismo possa se desenvolver como tal, mas o próprio capital como fator de exploração, dominação, controle e articulação de toda uma ordem de metabolismo social.
(Junho de 2009)
[1] Famoso personagem de O Nome da Rosa, de Umberto Ecco, que justificava de modo extremado a defesa dos postulados do pensamento agostiniano, portado pela Igreja, contra as invectivas de monges que, afirmando princípios aristotélicos, induziriam o "rebanho infectado a duvidar de Deus."
Na Grécia a revolta é imensa e a situação social explosiva. Neste exato momento, o Estado grego lança ataques terríveis contra o proletariado. Todas as gerações de trabalhadores e todos os setores são atingidos em cheio. Os trabalhadores do setor privado, os funcionários públicos, os desempregados, os aposentados, os estudantes precários... ninguém está a salvo. Toda classe trabalhadora está ameaçada de naufragar na miséria.
Diante desses ataques, o proletariado não tem deixado de reagir. Os trabalhadores estão saindo às ruas para lutar, mostrando assim que não estão dispostos a aceitar sem resistência os sacrifícios exigidos pelo capital.
Porém, até o momento esta luta não consegue desenvolver-se, tornar-se massiva. Os trabalhadores da Grécia vivem momentos difíceis. Que fazer quando todos os meios de comunicação e todos os políticos afirmam que não há mais remédio além de apertar o cinto para salvar o país da falência? Como resistir ao rolo compressor do Estado? Que métodos de luta empregar para construir uma relação de forças favorável aos explorados?
Todas estas questões não se referem unicamente aos trabalhadores que vivem na Grécia, mas aos de todo o mundo. Além do mais, não se deve ter nenhuma ilusão, a tragédia grega é uma antecipação do que espera os trabalhadores em todas as partes. De fato, já foram anunciadas oficialmente "medidas de austeridade à grega" em Portugal, na Romênia, no Japão e na Espanha (onde o governo acaba de rebaixar o salário dos funcionários em 5% em média, além de outras medidas!). Todos esses ataques simultâneos revelam uma vez mais que os trabalhadores, qualquer que seja a nacionalidade, fazem parte de uma mesma classe que tem em todas as partes os mesmos interesses e os mesmos inimigos. A burguesia faz com que o proletariado arque com os pesados grilhões do trabalho assalariado, porém seus laços unem a todos os trabalhadores, de pais em pais, acima das fronteiras.
Na Grécia, atualmente, são nossos irmãos de classe os que são atacados e têm buscado dolorosamente lutar. Sua luta também é nossa.
Solidariedade com os trabalhadores da Grécia!
Uma mesma classe um mesmo combate!
Rejeitemos todas as divisões que a burguesia tenta nos impor. Ao velho princípio das classes dominantes - "dividir para reinar melhor" - contraponhamos o chamamento de agrupamento do proletariado: Proletários de todos os países! Uni-vos!
Na Europa, a burguesia em cada país trata de fazer os trabalhadores acreditarem que vão ter de apertar o cinto por culpa da Grécia. A falta de escrúpulos dos governantes gregos, que haviam deixado que o país vivesse do crédito durante décadas e além do mais haviam manipulado as contas públicas, apontoa que a crise teria por causa principal de uma crise de confiança internacional no euro. Todos os diferentes governos utilizam esse pretexto enganador para justificar, um após outro, a necessidade de reduzir os déficits e a adoção de planos de rigor draconianos.
Na Grécia, todos os partidos oficiais, começando pelo Partido "Comunista", estimulam os sentimentos nacionalistas: "as potências estrangeiras são as responsáveis pelos ataques", "Abaixo o FMI e a União Européia", "Abaixo a Alemanha"; esses são os slogans lançados nas manifestações pela esquerda e extrema esquerda, que assim ignoram voluntariamente o capital grego.
Nos Estados Unidos, se as bolsas caem, seria por causa da instabilidade da União Européia; se as empresas fecham, seria por causa da debilidade do Euro, que afeta o dólar e as exportações.
Ou seja, cada burguesia nacional acusa o vizinho e exerce sobre o proletariado que explora esta chantagem infame: "aceitem os sacrifícios, senão o país se debilitará e os concorrentes se aproveitarão". A classe dominante tenta inocular o nacionalismo, verdadeiro veneno para as lutas, nas veias proletárias.
Esse mundo dividido em nações concorrentes não é o nosso. Os proletários não têm nada a ganhar atrelando-se ao capital do país onde vivem. Aceitar agora os sacrifícios em nome da "defesa da economia nacional", significa preparar outros sacrifícios mais difíceis ainda para o amanhã.
Se a Grécia está "a beira do abismo", se a Espanha, a Itália, a Irlanda e Portugal estão prontos para seguirem o mesmo caminho, se a Inglaterra, a França, a Alemanha ou os Estados Unidos estão em plena tormenta econômica, é porque o capitalismo é um sistema moribundo. Todos os países estão condenados a afundar irremediavelmente nesse marasmo. Há 40 anos a economia mundial está em crise. As recessões se sucedem uma às outras. Apenas uma fuga desesperada no endividamento tem permitido ao capitalismo obter, até agora, um pouco de crescimento. Resultado: hoje os estabelecimentos, as empresas, os bancos, os Estados, todos estão superendividados. A quebra da Grécia é a caricatura da quebra geral e histórica desse sistema de exploração.
A burguesia quer nos dividir, contrapomos com a nossa solidariedade!
A força da classe trabalhadora é sua unidade!
Os planos de austeridade anunciados constituem um ataque frontal e generalizado às nossas condições de vida. A única resposta possível é um movimento massivo dos trabalhadores. É impossível fazer frente a isso lutando a partir da empresa, da escola ou da administração isolados por grupos. Lutar massivamente é uma necessidade, sob pena de sermos todos derrotados e condenados à miséria.
E o que fazem os sindicatos, essas instituições rotuladas de "especialistas oficiais da luta"? Organizam greves em múltiplos locais de trabalho... sem buscar nunca que se unifiquem. Mantêm ativamente o corporativismo, opondo particularmente os trabalhadores do setor público e do privado. Levam os operários a passear em jornadas de "mobilização" estéreis. São de fato os "especialistas da divisão dos trabalhadores"! Inclusive se empenham a fundo em destilar o nacionalismo. Um só exemplo: o slogan mais proclamado nas manifestações da GSEE (Confederação Geral dos Trabalhadores da Grécia) desde meados de março tem sido... "Compre produtos gregos!"
Acompanhar os sindicatos significa sempre ir ao encontro da divisão e da derrota. Os trabalhadores têm que se encarregar de tomar suas lutas, organizando por si mesmos as assembléias gerais e decidindo coletivamente as palavras de ordem e as reivindicações, elegendo delegados revogáveis a qualquer momento e enviando delegações massivas para discutir com os trabalhadores dos centros mais próximos, das fábricas, das universidades, dos centros administrativos, dos hospitais..., para incentivá-los a aderir ao movimento.
Dispensar os sindicatos, atrever-se a tomar o controle das lutas, dar o passo de ir em busca dos nossos irmãos de classe..., tudo isso pode parecer enormemente difícil. E esse é um dos freios atuais ao desenvolvimento da luta. O proletariado tem uma falta de confiança em si mesmo: não tem ainda consciência da força que representam suas formidáveis capacidades. Até o momento, a violência dos ataques que são realizados pelo capital, a brutalidade da crise econômica, a falta de confiança do proletariado em si mesmo, atuam como fatores paralisantes. As respostas proletárias, inclusive na Grécia, estão ainda bem longe do que a gravidade da situação exige. No entanto, o futuro pertence à luta de classes. Diante dos ataques, a perspectiva é o desenvolvimento de movimentos cada vez mais massivos.
Alguns nos perguntam: "Por que empreender essas lutas? Aonde vai nos levar? Já que o capitalismo está falindo, realmente não é possível nenhuma reforma e, portanto, não há alternativa". E, de fato, dentro desse sistema de exploração, não há nenhuma saída. Mas negar-se a sermos tratados como cachorros e lutar coletivamente, significa lutarmos pela nossa dignidade, tomar consciência de que a solidariedade existe nesse mundo de exploração e que a classe trabalhadora é capaz de fazer viver esse sentimento humano inestimável. Então começa a aparecer a possibilidade de outro mundo, um mundo sem fronteiras nem pátria, sem exploração nem miséria, um mundo feito para a humanidade e não para o lucro. A classe trabalhadora pode e deve ter confiança em si mesmo. É a única capaz de construir esta nova sociedade e reconciliar a humanidade consigo mesma, passando "do reino da necessidade ao reino da liberdade" (Marx).
O capitalismo é um sistema em falência...
Porém outro mundo é possível: o comunismo!
Corrente Comunista Internacional (24 de maio de 2010)
Panfleto distribuído em escala internacional.
Este artigo antecipou o que ia acontecer nos dias 10 e 24 de fevereiro: jornadas de greve com a participação massiva da classe operária que não quer mais sofrer os ataques violentos por parte do estado, com sindicatos que manobram para dividir os operários e esterilizar o descontentamento que vai se desenvolvendo.
A situação na Grécia é importante, pois constitui uma espécie de teste para a burguesia européia e até mundial. Muitos Estados vão ter que assumir, como o Estado grego, os mesmos ataques frontais contra as condições de vida da classe operária. Se tais medidas drásticas de austeridade conseguissem ser tomada neste país, significaria um sinal positivo para uma série de ataques através do mundo. É a razão pela qual, as burguesias francesa e alemã em particular trazem sua esperteza em termos de enquadramento da classe operaria. Ajudam o governo de Papandreu para controlar o terreno da luta pela intervenção dos sindicatos. Estes, ao anteciparem e organizarem jornadas de ação, esperam chegar a canalizar o descontentamento que se desenvolve.
Há um ano, houve três semanas de lutas massivas nas ruas da Grécia depois da morte de um jovem anarquista, Alexandros Grigoropoulos. Mas o movimento nas ruas, nas escolas e universidades teve grandes dificuldades para coordenar-se com as lutas nos locais de trabalho. Só houve uma greve, a dos professores primários, que, por uma manhã, apoiou o movimento. Apesar de que houve um período de agitação massiva e inclusive uma greve geral, ficou muito difícil estabelecer uma autêntica coordenação.[1]
No entanto, após o fim do movimento, as ações dos trabalhadores na Grécia continuaram até os dias atuais. Assim, o Ministro do Trabalho Andreas Lomberdos viu-se obrigado a advertir a burguesia internacional. Disse que as medidas programadas dentro dos três próximos para se levantar da crise da dívida nacional, que está ameaçando a continuidade da Grécia na zona euro, poderiam levar ao derramamento de sangue. "Não podemos fazer muito para evitar isso", acrescentou. O governo Papandreu tem falado em abrir conversações com todos os partidos e formar um governo de emergência nacional, uma das tarefas seria suspender os artigos da Constituição que garante o direito de reunião pública, de manifestações e greve.
Antes que o governo tentasse por em prática as medidas brutais para reduzir o déficit orçamentário de 12,7% para 2,8% até 2012, houve uma onda de lutas. Durante os últimos meses, estiveram em greve os trabalhadores portuários, os trabalhadores da Telecom, os garis, os médicos, enfermeiras, os professores das creches e escolas primárias, os taxistas, os trabalhadores da siderurgia e os empregados municipais. Nos dias 4 e 5 de fevereiro, houve uma greve de 48 horas de funcionários das alfândegas e fiscais que fecharam os portos e fronteiras. Ao mesmo tempo que camponeses realizavam bloqueios em alguns locais. As motivações imediatas de cada uma dessas lutas parecem diferentes, porém na realidade são todas respostas aos ataques que o Estado e o capital estão obrigados desenvolver para tentar fazer com que a crise seja paga pelos trabalhadores.
Antes do programa de austeridade ter sido promovido (e aprovado pela União Europeu), o Primeiro Ministro Papandreu advertiu que suas medidas iriam ser "dolorosas". Isto não produziu nenhuma graça para os bombeiros e outros trabalhadores do setor público que em 29 de janeiro desfilaram por Atenas expressando ruidosamente sua ira contra "o programa de estabilidade".
O plano de governo prevê durante três anos congelamento total dos salários dos trabalhadores do setor público e a redução de 10% dos abonos salariais. Estima-se que isso equivale a uma redução salarial entre 5 e 15%. Os funcionários que se aposentarem não serão substituídos, há uma previsão de aumentar a idade de aposentadoria para reduzir os custos da Seguridade Social.
O fato de que o Estado se vê obrigado a realizar ataques ainda mais graves contra a classe trabalhadora que, como vemos, não está calada, revela a profundidade da crise na Grécia. O ministro Lomberdos tem dito muito claramente que essas medidas "só poderão ser aplicadas de forma violenta". No entanto, esses ataques contra todos os trabalhadores, ao mesmo tempo, podem fazer que esses comecem a lutar de forma comum por reivindicações comuns.
Ao examinar atentamente o que fazem os sindicatos na Grécia, dá para perceber que sua ação tem como objetivo manter as lutas divididas. Nos dias 4 e 5 de fevereiro, houve uma greve oficial de 48 horas dos funcionários da alfândega e dos impostos que fecharam os portos e pontos de passagem nas fronteiras, enquanto alguns camponeses mantiveram seu blocagem. Em uma manchete bastante exagerada, o jornal inglês, The Independent (5/02/2010) alerta "As greves colocam a Grécia de joelhos" e descreve-as como "a primeira expressão de uma esperada erupção de greves barulhentas".
Os encarregados de impedir que as greves "coloquem a Grécia de joelhos" são os Sindicatos. Se examinarmos cuidadosamente o que estão programando como "lutas", podemos ver que suas ações estão destinadas a manter a divisão mais extrema: uma convocatória de greve no setor público em 10 de fevereiro com caminhada ao parlamento sob a chancela do sindicato ADEDY, porém em 11 de fevereiro, a greve é convocada pelo sindicato estalinista PAME, finalmente para o dia 24 de fevereiro, o maior sindicato do país -GSEE- convocou uma greve, somente no setor privado!
Com esse labirinto de ações divididas e dispersas, a classe operária não colocará de joelhos o Estado grego! O Jornal Financial Times de 05/02/2010 sublinha que os "os sindicatos tem reagido moderadamente aos planos de austeridade do governo o que reflete uma atitude de boa disposição em fazer sacrifícios para superar a crise econômica", embora ao mesmo tempo identifique "uma reação violenta contra o programa de austeridade do governo por parte dos sindicatos". Essa dupla linguagem dos sindicatos revela sua inquietação diante da crescente indignação da classe operária. Na realidade os sindicatos não se esquecem de repente de apoiar o governo socialista mas sabem que, com o desenvolvimento da cólera na classe operária, se não programarem algumas ações "de força" existe a possibilidade de que os operários comecem a desmascarar a peça teatral que sempre interpretam: diante dos operários mostram-se bastante radicais porém nas audiências governamentais e patronais dobram o pescoço e dizem sim a tudo. Até agora, os sindicatos mostraram uma imagem radical deles, romperam o "diálogo" com o governo no tema das pensões e programaram greves de uma ou dois dias em datas diferentes.... Está claro que a vontade dos sindicatos, em sintonia com as necessidades do capital nacional, é acordar toda ordem de sacrifícios, porém têm de levar em conta a reação da classe operária.
Para desenvolver sua luta, os trabalhadores não somente têm que desconfiar das manobras sindicais, também tem de ter em conta outros falsos amigos. O KKE (Partido Comunista Grego), por exemplo, que tem alguma influência, difamou o movimento há um ano qualificando os manifestantes de "provocadores" e "agentes secretos das forças estrangeiras"! Mas agora, de repente, tem mudado o discurso e proclama que "os trabalhadores e os agricultores tem direito de recorrer a todos os meios de luta para defender seus direitos". Outras forças de esquerda como os trotskistas tentam desviar o ódio operário para setores particulares do capital: gritam muito contra os fascistas e contra a influência do imperialismo americano, para que os trabalhadores não vejam que seu inimigo é todo o capital nacional e todos os imperialismos.
Os operários só podem construir sua solidariedade de classe, tomar consciência da sua força e desenvolver a confiança neles mesmos a partir das suas próprias lutas, desenvolvendo suas próprias formas de organização, estendendo e unificando seus combates. Tem de estar nas ruas fazendo parte de uma luta e uma organização coletivas. Em contrapartida, individualmente diante de um televisor vendo o espetáculo provocado por alguma bomba não adquirem nenhuma força nem nenhuma consciência, apenas um sentimento de passividade e de impotência. O som de uma assembléia massiva de trabalhadores, através da qual estes controlam e estende sua luta, provoca mais medo à classe dominante que o ruído de algumas bombas.
[1] Para ter um conhecimento desse movimento e as lições que aportou ver na Revista Internacional nº 136 "Las revueltas de la juventud en Grecia confirman el desarrollo de la lucha de clases [69]". Ver também: Grécia : uma declaração de trabalhadores em luta (https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2008/Grecia_uma_declaracao_de_trabalhadores_em_luta [70]); e Solidariedade com o movimento dos estudantes na Grécia (https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2008/Solidariedade_com_o_movimento_dos_estudantes_na_Grécia [71])
Nosso camarada Jerry Grevin, militante há muitos anos da seção dos Estados Unidos (EUA) da CCI, faleceu repentinamente vítima de um infarto do miocárdio em 11 de fevereiro de 2010. Sua morte prematura é uma trágica perda para nossa organização e para todos aqueles que o conheceram: sua família perdeu um marido, pai e avô querido e carinhoso; seus companheiros de trabalho na universidade onde ensinava perderam um estimado colaborador; seus camaradas militantes da CCI, na sua seção e em todas as demais do mundo, perderam um camarada muito querido e totalmente dedicado à luta comunista.
Jerry Grevin nasceu em 1946, no Brooklyn, no seio de uma família operária da segunda geração de imigrantes judeus. Seus pais estavam imbuídos de um espírito crítico que os levaram primeiro a entrar e depois sair do Partido Comunista dos EUA. O pai de Jerry ficou profundamente impactado pela destruição de Hiroshima e Nagasaki, da qual foi testemunha como membro das forças de ocupação Americana ao final da IIª guerra mundial; embora nunca tivesse falado dessa experiência e seu filho somente soube dela muito tempo depois, Jerry estava convencido de que isso havia aprofundado o espírito antipatriótico e antibelicista que herdou dos seus pais.
Uma das melhores qualidades de Jerry, que nunca perdeu, era sua ardente e firme indignação diante de todas as formas de injustiça, opressão e exploração. Desde muito cedo tomou parte energicamente das grandes causas sociais da sua época. Participou nas grandes manifestações contra a segregação e a desigualdade racial organizadas pelo CORE (Congress of Racial Equality) no sul dos EUA. Isso implicava em grande coragem, considerando que os ativistas e os manifestantes eram habitualmente golpeados e inclusive assassinados; e Jerry, considerando que era judeu, não era só um lutador contra os preconceitos raciais, mas ele mesmo era objeto desses preconceitos [1].
Para sua geração, especialmente nos EUA, o outro assunto vital do momento era a oposição à guerra do Vietnã. Exilado em Montreal no Canadá, Jerry foi impulsor de um dos vários comitês que se organizaram como parte do Second "Underground Railroad" [2] que surgiu para ajudar aos desertores do exército americano para sair dos EUA e continuar uma nova vida no exterior. Empreendeu essa atividade, não como um pacifista, mas com a convicção de que a resistência à ordem militar podia e devia ser parte da luta de classes mais ampla contra o capitalismo; foi assim que participou durante pouco tempo de uma publicação militante: Worker and Soldier (Operário e Soldado). Muitos anos depois, Jerry teve oportunidade de acessar uma cópia cuidadosamente censurada do seu prontuário do FBI: seu tamanho e detalhes - o arquivo foi regularmente atualizado enquanto ele foi militante da CCI - deram-lhe muita satisfação e induziram da sua parte comentários cáusticos dirigidos aos que pensam que a polícia e os serviços de inteligência não "prestam atenção" aos pequenos e insignificantes grupos de militantes atuais.
Quando do seu retorno aos EUA nos anos 70, Jerry encontrou trabalho como técnico em telefonia em uma das maiores companhia do ramo. Eram tempos turbulentos de luta de classes, já que a crise começou a ser sentida, e Jerry participou nas lutas, as grandes e as pequenas, no seu local de trabalho, ao mesmo tempo que participava em uma publicação chamada Wildcat, que reivindicava da ação direta e que era a publicação de um grupo que tinha o mesmo nome. Apesar de ter se decepcionado com o imediatismo de Wildcat e sua falta de perspectivas mais amplas - foi a busca dessa perspectiva que o levou a juntar-se à CCI -, esta experiência direta, na base, associada com seus poderes de observação brilhante e uma atitude de compreensão para com as fraquezas e os preconceitos de seus colegas de trabalho, deu-lhe um profundo conhecimento sobre como a consciência se desenvolve concretamente na classe trabalhadora. Como militante da CCI, muitas vezes, exemplificou sua argumentação política, com imagens da sua própria experiência.
Uma delas descrevia um incidente no sul dos EUA, onde o grupo de companheiros telefônicos ao qual pertencia tinha sido deslocado para um trabalho. Um operário negro do grupo era perseguido pela direção por um suposto delito leve; os de Nova York tomaram sua defesa o que provocou uma grande surpresa dos seus companheiros do Sul: "Por que se preocupar?", perguntavam, "é só um negro". A isso, um dos operários de Nova York respondeu energicamente que a cor não importava, que os operários eram todos operários em conjunto, e que tinham que defender-se um ao outro contra os patrões. "Mas o realmente notável", dizia Jerry, "é que esse tio, que era o mais decidido na defesa do operário negro, era conhecido no grupo de companheiros como um racista, que havia se mudado para Long Island para evitar viver em um bairro negro. Isso mostra claramente como a luta de classes e a solidariedade de classes constituem o único antídoto real ao racismo".
Outra história que gostava de contar era a do seu primeiro encontro com a CCI. Citamos as palavras de tributo pessoal de um camarada: "Como o ouvi dizer um milhão de vezes, trata-se de quando encontrou pela primeira vez um militante da CCI numa época em que descrevia-se como "um jovem imediatista e individualista" (como definia a si mesmo), que escrevia artigos só e os distribuía, e se deu conta de que a paixão revolucionária sem organização só pode ser uma ardente chama efêmera da juventude. Foi então quando o militante da CCI lhe questionou: "ok, você escreve e é marxista; porém o que você faz pela revolução?". Jerry contava constantemente essa história depois da qual não pôde dormir a noite toda. Porém foi uma noite em claro que foi muito frutífera". Muitos teriam se desmotivado diante do comentário abrupto da CCI, porém não Jerry. Pelo contrário, esta história (que contava divertindo-se diante do seu próprio estado de espírito de então) revela outra faceta do caráter de Jerry: sua capacidade de aceitar a força dos argumentos e mudar de idéia quando se sentia convencido por posições divergentes - uma inestimável qualidade para o debate político, que é a sabedoria de uma verdadeira organização política proletária.
Assim também, a contribuição de Jerry à CCI é inestimável. Seu conhecimento do Movimento Operário na América era enciclopédico; sua pena ágil e seu verbo animado tornaram viva essa história para nossos leitores nos seus muitos artigos para nossa imprensa dos EUA (Internationalism) e para a Revista Internacional. Também tinha uma notável compreensão da vida política e da luta de classes atual nos EUA, e seus artigos da atualidade, tanto na nossa imprensa como em nossos boletins internos, têm constituído aportes importantes para nossa compreensão da política da maior potência imperialista mundial.
Igualmente importante foi sua contribuição a vida interna e à integridade organizacional da CCI. Durante muitos anos, foi um pilar da nossa seção norte-americana, um camarada com o qual se podia sempre contar, quando as coisas se colocavam difíceis, para afrontá-las.. Durante os desalentadores anos 90, quando o mundo inteiro -mas talvez especialmente EUA- estava atolado na propaganda sobre a "vitória do capitalismo", Jerry nunca perdeu sua convicção na necessidade e na possibilidade de uma revolução comunista, nunca deixou de comunicar com seus próximos ou os raros novos contatos da seção. Sua lealdade à organização e aos seus camaradas foi inquebrantável, tanto mais quanto que, como colocava ele mesmo, era a participação na vida internacional da CCI o que lhe dava coragem e lhe permitia "carregar as baterias".
Em um plano mais intimo, Jerry era também um homem extraordinariamente divertido e um conversador particularmente dotado. Podia manter - e freqüentemente o fazia- uma platéia de amigos ou camaradas rindo durante horas sem parar, geralmente com histórias tiradas da sua própria observação da vida. Embora suas anedotas às vezes fossem dirigidas para a classe patronal ou a classe dominante, nunca eram cruéis ou prejudiciais. Pelo contrário, revelavam sua afeição e simpatia pelo gênero humano e ao mesmo tempo a habilidade rara demais para rir das suas próprias debilidades. Esta abertura para os demais era sem dúvida uma das qualidades que faziam de Jerry um eficaz (e estimado) professor - uma profissão a qual chegou já tarde na vida, quando tinha mais de quarenta anos.
Nosso tributo a Jerry estaria incompleto se não mencionássemos sua paixão pela música Zydeco (um gênero musical cuja origem vem dos negros da Luisiana, que ainda o interpretam). O dançador de Brooklyn era conhecido nos festivais de interior de Louisiana e estava orgulhoso de poder ajudar as novas bandas desconhecidas a poder encontrar lugares e uma audiência para tocar em NYC. Isso era típico de Jerry: entusiasta e enérgico em tudo que empreendia, aberto e cálido para com os demais.
A perda de Jerry se faz ainda mais sentida, porque seus últimos anos foram os mais felizes para ele. Estava encantado por ser avô de um neto que adorava. Politicamente via o desenvolvimento de uma nova geração de contatos ao redor da seção nos EUA da CCI e havia se lançado ao trabalho de correspondência e discussão com sua energia de costume. Essa dedicação começou a dar seus frutos nos Days of Discussion (Jornadas de Discussão) que aconteceram em Nova York apenas algumas semanas antes da sua morte, e que reuniu jovens camaradas de todo os Estados Unidos, muitos dos quais se encontravam pela primeira vez. Jerry estava encantado e considerava essa reunião, com todas as esperanças que representava para o futuro, um dos momentos culminantes da sua atividade militante. Assim, é conveniente deixar a última intervenção sobre Jerry para dois jovens camaradas que participaram nos Days of Discussion: Para JK "Jerry era um camarada de toda confiança e um amigo próximo... Os conhecimentos de Jerry sobre a história do Movimento Operário nos Estados Unidos; a profundidade da sua experiência pessoal nas lutas dos anos 70 e 80 e seu compromisso para manter viva a chama da Esquerda Comunista nos Estados Unidos nos anos difíceis que seguiram a chamada "morte do comunismo" são incomparáveis". Para J "Jerry foi uma espécie de mentor político para meu último ano e meio. E era também um amigo muito querido (...) Sempre tinha vontade de falar e ajudar aos camaradas mais jovens a aprender como intervir e compreender as lições históricas do Movimento Operário. Sua memória viverá em todos nós, na CCI e no restante da classe operária".
CCI
[1] Em um caso famoso em 1964, aconteceu um evento de uma triste repercussão: três jovens ativistas pelos direitos civis (James Chaney, Andrew Goodman e Michael Schwernwr) foram assassinados por policiais e membros da Ku Klux Klan. Dois ativistas eram judeus de Nova York.
[2] O nome de "Underground Railroad" (trem clandestino) era uma referência à rede de esconderijos e ativistas anti-escravistas que ajudava os escravos que escapavam para ir para o norte dos EUA e para o Canadá.
Publicamos a seguir documentos relativos a essa luta massiva dos trabalhadores na França contra os planos de austeridade que a burguesia quer nos impor. O que a caracterizou foi a determinação crescente por parte do proletariado em não aceitar essa lógica do capital em crise, o que se expressou notadamente através do caráter massivo das manifestações de rua, e uma maior abertura à propaganda dos revolucionários. Mais uma vez, as manobras sindicais acabaram por derrotar a luta, mas é só uma batalha que foi perdida e não a guerra de classes. Muitas lições devem ser tiradas para que possamos ficar mais fortes na próxima vez.
O artigo Marchar atrás dos sindicatos é, simplesmente, caminhar para a derrota expõe a dinâmica do movimento, em ligação e comparação com outros movimentos de importância que o antecederam e explicita como os sindicatos, em cumplicidade com o governo, aturam para fazer com que a luta se esgote.O movimento contra as mudanças nas oposentadorias já dura oito meses. Milhões de operários e funcionários de todos os setores têm se manifestado constantemente nas ruas. Ao mesmo tempo, desde o início de setembro, aqui e acolá aconteceram greves mais ou menos radicais, expressando uma insatisfação crescente e profunda. Esta mobilização na França, a primeira grande batalha desde a crise que sacudiu o sistema financeiro mundial em 2007-2008, não é só uma resposta à reforma das aposentadorias, mas, por sua amplitude e profundidade, é também uma clara resposta à violência dos ataques sofridos nos últimos anos. Por trás dessa reforma e dos ataques simultâneos que a acompanham e de outros em preparação, o que há é a queda mais grave na pobreza, na insegurança e na miséria mais sombria de todos os proletários e outras camadas da população. E esses ataques não vão cessar já que a crise econômica é inevitável. Está claro que esta luta anuncia outras e que se situa na continuidade daquelas que se desenvolveram na Grécia e na Espanha contra as medidas drásticas de austeridade impostas.
Entretanto, apesar da massividade impressionante da resposta, o governo não tem cedido diante dela. Pelo contrário, tem se mantido firme; dizendo que apesar da implacável pressão das ruas, seu compromisso de impor esses ataques terá continuidade futuramente; argumentando cinicamente a "necessidade" dessas medidas em nome da "solidariedade" entre as gerações. O que todo mundo sabe é que o que Sarkozy nos conta é uma grande mentira no limite da provocação.
Todavia, no momento em que se escreve este artigo o movimento retrocede e é um fato que a burguesia vai levar adiante a reforma. Porque isso? Como é que esta reforma passou, enquanto atacou com tal dureza nossas condições de vida e trabalho, e contra a qual toda população tem se expressado com força toda sua indignação e sua oposição, vai ser aprovada?
Porque o governo tinha certeza que os sindicatos, que sempre aceitaram o princípio da "reforma necessária" das aposentadorias, poderiam controlar a situação [1].
Comparemos esta situação com o movimento de 2006 contra o Contrato do Primeiro Emprego. Este movimento, que os meios de comunicação trataram desde o seu início, com o maior desprezo, como uma "revolta estudantil" sem futuro, acabou fazendo recuar o governo, que não teve outro remédio senão retirar o CPE.
Em primeiro lugar, porque os estudantes haviam se organizado em assembleias gerais, abertas a todo mundo, sem distinção de categorias ou setores, público ou privado, para trabalhadores com emprego e desempregados, etc. Este impulso de confiança nas capacidades da classe operária e na sua força, de profunda solidariedade na luta, criou uma dinâmica de extensão do movimento e lhe proporcionou uma massividade na qual envolvia todas as gerações. Desta maneira, enquanto nas assembleias gerais se desenvolviam debates e discussões profundas que não se limitavam a tratar dos problemas dos estudantes, no curso das manifestações, os próprios trabalhadores se mobilizaram, cada vez em maior número, com os universitários e os estudantes do ensino médio.
Contudo, também por causa da determinação e do espírito de abertura dos estudantes, ao arrastar partes da classe operária à luta aberta, conseguiram que os sindicatos não os derrotassem com suas manobras. Pelo contrário, enquanto os sindicatos, concretamente a CGT, se empenhavam em colocar-se à frente das manifestações para ter controle, em muitas ocasiões os estudantes do ensino médio e os universitários passaram por cima dos estandartes sindicais para deixar totalmente claro que não estavam dispostos a permanecer em segundo plano de um movimento que eles mesmo tiveram a iniciativa. Mas acima de tudo afirmavam sua vontade de controlar a luta por si mesmos, junto à classe operária, e de não se deixar manipular pelas centrais sindicais.
Um dos aspectos que mais inquietava a burguesia é que as formas de organização adotadas pelos estudantes em luta, assembleias gerais soberanas que elegiam seus comitês de coordenação e estavam abertas a todos, se estenderam como uma mancha de óleo entre os assalariados, se esses decidiam entrar em combate; igualmente, os sindicatos de estudantes sempre ficaram muito discretos. Não é casual que, no processo deste movimento, Thibault (líder sindical da CGT) afirmasse em mais de uma ocasião que os assalariados não tinham que receber lições dos estudantes sobre como devem se organizar e que, se estes têm suas assembleias gerais e suas coordenações, os assalariados tem os sindicatos e confiam, acima de tudo, neles.
Em tal contexto de determinação, cada vez mais comprovada, e diante do perigo de transbordamento dos sindicatos, Villepin tinha de soltar as rédeas; era o único recurso defensivo da burguesia que corria o risco de ser ultrapassado.
Por outro lado, agora, no movimento contra a reforma das aposentadorias, os sindicatos apoiados ativamente pela policia e pela mídia, desenvolveram os esforços necessários para ficar na primeira fila diante do que ocorria, para se organizar e atuar em conformidade.
Foi visto, desde o primeiro momento, o truque de dividir os trabalhadores com FO (Force Ouvrière) convocando manifestações no seu reduto, enquanto a intersindical, que organizou a jornada de ação de 23 de março, preparava, após negociar com o governo, a "armação" para fazer a reforma passar, com duas outras jornadas de ação nos dias 26 de maio e 24 de junho, justamente nas vésperas das férias de verão. Sabe-se que, habitualmente, convocar um dia de luta nessa época do ano é dar o tiro de misericórdia na classe operária para passar imediatamente um ataque de maior importância. Infelizmente, para a burguesia e os sindicatos, nesta última jornada de luta houve uma mobilização que não esperavam: mais que o dobro do que esperavam de operários, desempregados e precarizados, nas ruas. E, diferentemente das jornadas de lutas anteriores, nas quais segundo a imprensa se via certo desânimo, a ira e a exasperação dominavam o sentimento dos assistentes no dia 24 de junho.
Pressionados pela insatisfação evidente e porque começava a se desenvolver entre os operários a consciência do que significava esta reforma para as nossas condições de vida, os sindicatos viram-se obrigados a organizar outra jornada de ação, no dia 17 de setembro, após essa sua ladainha da unidade sindical; desde então, nenhum tem deixado de chamar jornadas de ação que várias vezes chegaram a reunir nas manifestações em torno de três milhões de trabalhadores.
Entretanto, essa unidade da "intersindical" foi uma armadilha montada para fazer a classe operária acreditar que os sindicatos estavam decididos a organizar uma ampla ofensiva contra a reforma e que se dotaram dos instrumentos para isso: jornadas de ação uma após as outras, nas quais se poderá ver e escutar, até aborrecer, os seus líderes de braços dados, bombardeando com os seus discursos sobre a "continuidade" do movimento e outras mentiras. O que temiam acima de tudo era que os trabalhadores se liberassem do aparelho de enquadramento sindical e eles mesmos se organizassem. Assim o expressou Thibault, secretário geral da CGT, que enviou uma mensagem ao Governo em uma entrevista ao Diário Le Monde de 10 de setembro: "Pode-se chegar a um bloqueio, a uma crise social de envergadura; é possível, porém não fomos nós que assumimos este risco", e deu o seguinte exemplo para explicar melhor o que estava em jogo e que os sindicatos deviam enfrentar: "Vimos uma PME (Pequena Média Empresa) na qual 40 trabalhadores de 44 estão fazendo greve. É um sinal. Quanto mais a intransigência dominar, mais a idéia de fazer greves repetidas estará presente nas cabeças"
Em outros termos, se os sindicatos não estão presentes, os próprios operários não só se organizam por eles mesmos, como também decidem o que querem fazer e farão massivamente. E é precisamente contra isto que as centrais sindicais e particularmente a CGT se dedicam com zelo exemplar. Como o fazem? Ocupando o terreno no campo social e nos meios de comunicação, impedindo com determinação qualquer expressão de solidariedade operária. Em resumo, uma propaganda intensa por um lado e, por outro, uma hiperatividade destinada a esterilizar e encaminhar o movimento para falsas alternativas com a finalidade de dividir e encaminhá-lo com mais facilidade para a confusão e a derrota.
O bloqueio das refinarias de petróleo é um exemplo evidente de como os aparatos sindicais fazem seu trabalho. Quando entram em luta os operários deste setor, diretamente confrontados através de medidas drásticas de redução de pessoal, cuja combatividade já era muito forte e entre os quais crescia a vontade de manifestar sua solidariedade ao conjunto da classe contra a reforma das aposentadorias, a CGT intervém transformando este alento de solidariedade numa greve que repele os operários. O fato certo é que o bloqueio das refinarias nunca é decidido em verdadeiras assembleias gerais, onde os trabalhadores expressam realmente seus pontos de vista e os discutem, mas por trás de uma série de manobras -os líderes sindicais são especialistas nesse trabalho- que vão apodrecendo as discussões e vão acabando em ações estéreis. Apesar do estreito cerco sindical, alguns operários desse setor têm tentado entrar em contato e estabelecer laços com operários de outros setores. Porém, globalmente atrelados nas engrenagens do lema "bloqueio até as últimas consequências", a maioria dos operários das refinarias são mantidos presos nessa lógica sindical dos "encerramentos nas fábricas", autêntico veneno utilizado contra o desenvolvimento do combate. Apesar de que os operários das refinarias tivessem como objetivo reforçar o movimento, ser um dos braços armados para fazer o Governo retroceder, o bloqueio dos depósitos, tal e como se desenvolveu sob a batuta sindical, tem se revelado como o que foi concebido: uma arma da burguesia e seus sindicatos contra os operários. Ao mesmo tempo, a imprensa burguesa tem deixado claro a todo momento seus ressentimentos e vertido, por editoriais e artigos, seu fel em abundância, criando um ambiente de pânico e agitando a ameaça de uma escassez generalizada de combustíveis, não só para isolar os operários das refinarias como para fazer impopular a greve; acusando-os de "tomar como refém as pessoas para impedir que cheguem ao trabalho ou saíssem de férias". Os trabalhadores deste setor ficaram, assim, isolados, fisicamente, enquanto queriam contribuir com sua luta solidária na construção de uma relação de forças que favorecesse a retirada da reforma. Este bloqueio particular se voltou contra eles mesmos e contra o objetivo que haviam se proposto inicialmente.
Houve numerosas ações sindicais semelhantes em setores como os de transporte e especialmente concentradas em regiões com poucos operários; quer dizer, ali onde era imprescindível para os sindicatos acabar com qualquer risco que implicasse extensão e colocação em prática da solidariedade. Necessitavam deixar visível diante dos expectadores que eram eles quem orquestrava as lutas mais radicais e que "regiam a orquestra" nas manifestações, quando na realidade estavam deteriorando a situação.
Como se lê num panfleto que a Assembleia Geral Interprofissional difundiu, com data de 6 de novembro: "A força dos trabalhadores não consiste unicamente em bloquear, aqui ou ali, algum depósito de petróleo ou alguma fábrica. A força dos trabalhadores está em reunir-se nos seus locais de trabalho sem distinção de trabalho, empresa, categoria,... e decidir todos juntos".
Por todas as partes têm-se visto os sindicatos agrupados em alguma "intersindical" para promover melhor seus simulacros de unidade, celebrar simulacros de assembleias gerais sem verdadeiro debate, circunscritas nas preocupações mais corporativas, enquanto publicamente pretendiam ter a vontade de combater "por todos" e "todos juntos", mas,... cada um organizado no seu local, atrás do seu chefete sindicalista, tudo fazendo para impedir que se formassem delegações massivas para buscar a solidariedade dos trabalhadores das empresas mais próximas geograficamente.
Em contrapartida, não apareceram na mídia os numerosos Comitês ou Assembleias Gerais interprofissionais (AG inter-pros) [2] que se formaram neste período, onde os objetivos perseguidos foram e continuam sendo organizar-se fora dos sindicatos, desenvolverem discussões realmente abertas a todos os proletários e ações autônomas nas quais toda classe operária possa reconhecer-se e implicar-se massivamente.
Os sindicatos não tem sido os únicos a obstaculizar ou impedir a possibilidade de uma mobilização dessas características, pois a polícia de Sarkozy, famosa pela sua pretensa debilidade e seu caráter anti-esquerda, tem sabido ser o auxiliar indispensável dos sindicatos com suas provocações em mais de uma ocasião. Um exemplo: os incidentes na Plaza Bellacour de Lyon onde a presença de um punhado de "provocadores" (possivelmente manipulados pela polícia) serviu de pretexto para uma violenta repressão policial contra centenas de jovens estudantes cuja maioria só buscava ir, ao final de uma manifestação, para discutir com os trabalhadores.
Aqui se vê o que a burguesia teme particularmente que contatos se estabeleçam se desenvolvam e multipliquem o máximo possível nas filas da classe operária, jovens, ativos ou desempregados.
Hoje, o movimento está a caminho de se esgotar e é necessário tirar as lições deste fracasso.
A primeira constatação é que os aparatos sindicais são os que permitiram que passasse o ataque aos operários; o que não é algo conjuntural. Eles são os que fizeram o trabalho sujo. Por isso, todos os "especialistas em conflitos", os sociólogos, o governo e o próprio Sarkozy, lhes felicitam por seu "sentido da responsabilidade". Sem dúvida, a burguesia pode felicitar-se de ter sindicatos "responsáveis", capazes de quebrar um movimento tão amplo e ao mesmo tempo fazer crer que fizeram todo o possível para ajudá-lo e que se desenvolva. Ao mesmo tempo, são os mesmos aparatos sindicais que conseguiram asfixiar e marginalizar as autênticas expressões da luta autônoma da classe operária e de todos os trabalhadores.
No entanto, este fracasso tem dado numerosos frutos. Apesar de todos os esforços e meios empregados pelo conjunto das forças da burguesia para tampar as brechas por onde aflora a ira da classe trabalhadora, não conseguiram levar para a derrota um só setor, como ocorreu em 2003 [3] na luta contra as aposentadorias do setor público. Com efeito, essa terminou em um duro retrocesso dos trabalhadores do Ensino Público após numerosas semanas em greve.
Este movimento está em via de acabar, porém "o ataque só começou. Perdemos uma batalha, mas não perdemos a guerra. A burguesia nos declara a guerra de classes e ainda estamos em prontidão para combater" (Panfleto intitulado Ninguém pode lutar, decidir e ganhar em nosso lugar", assinado pelos trabalhadores fixos e precarizados da Assembleia Geral Interprofissional da Gare de l'Est e de Ille de France (Paris); citado aqui acima). Para defendermos, não temos outra opção senão a de estender e desenvolver massivamente nossas lutas, tomando-as em nossas próprias mãos.
"Tomar a confiança em nossas próprias forças" deverá ser a consigna de amanhã.
Ww (6 de novembro de 2010)
[1] Todos os partidos de esquerda, que se somaram à mobilização para não entrar em total descrédito, estavam também de acordo com a imperiosa necessidade atacar a classe operária neste ponto, visto que, assim, haviam votado uma lei neste sentido.
[2] Consideramos esses últimos como autênticas expressões das necessidades da luta operária. Não tem nada a ver com as Coordenadoras, criadas e dirigidas pelos sindicatos e as organizações esquerdistas, e que nós denunciamos em repetidas ocasiões quando do movimento dos ferroviários em 1986 ou do movimento no setor de saúde em 1988.
[3] Ver Révolution Internationale (RI) nº335, 336 e 337
Diante da determinação de Sarkozy, suas mídias e o estado policial em aniquilar a luta atual e em desacreditá-la através de provocações as mais infames, nós, desempregados, aposentados, trabalhadores efetivos e precarizados, estudantes:
Afirmemos nossa unidade e tomemos nossas lutas em nossas próprias mãos!
A mobilização e o entusiasmo nesta última terça feira foram gigantescos. Temos o número, precisamos agora desenvolver a consciência do que podemos realmente vencer e impor a vontade das grandes massas só ao tomar nossas lutas em mãos próprias, através da discussão mais ampla, a fusão de todos os setores, o apoio dos estudantes, dos precários, dos desempregados, que:
Realizemos sem mais espera Assembléias Gerais abertas à participação de todos, decidamos ações comuns para estender massivamente a luta e a solidariedade!
Compartamos a experiência dos últimos piquetes e bloqueios, enviemos delegações massivas em apoio, coordenemos nossos esforços. Não já é tempo de propagar a luta nos setores mais massivos? Thales, Airbus? Nossa única violência é de querer generalizar a greve. A verdadeira violência é o Estado que a produz ou provoca.
Solidariedade com todas as vitimas da repressão!
Outros compartilham esta luta que travamos: na Espanha ou na Grécia, por exemplo. Em todos os países, a classe operária sofre as exigências do capital e sua sede irrefreável de acumulação.
Os proletários de todos os países esperam nossa vitoria para suas lutas futuras!
Encontremo-nos para compartilhar informações e perspectivas de luta na AG ao final da manifestação, mas também todas as noites desta semana neste lugar: Bolsa do trabalho, Praça Saint-Sernin. 18h00.
Pamfleto redigido por aposentados, desempregados, trabalhadores e estudantrse reunidos diante da Bolsa do trabalho. O dia 20 de outubro 2010.
saint-sernin.internationalisme.fr
Por iniciativa de trabalhadores ferroviários da estação do Leste e professores do mesmo distrito em Paris, se reuniram em 28 de setembro e 5 de outubro uma centena de assalariados (ferroviários, da educação, dos correios, de pequenas empresas do setor agro alimentar, da informática,...) de aposentados, desempregados, estudantes, sindicalizados ou não, trabalhadores imigrantes legalizados ou não, para discutir sobre as aposentadorias e mais amplamente sobre os ataques que todos sofremos e das perspectivas para fazer este governo recuar.Já fomos milhões que manifestaram e fizeram greve durante as últimas jornadas de ação. O governo permanece em não querer recuar. Só um movimento de massa será capaz de obrigá-lo a fazer isso. Esta idéia está caminhando através das discussões em torno da greve ilimitada, geral, prolongável a cada dia, de bloqueio da economia,....A forma que tomará o movimento somos nós que decidiremos. Cabe a nós construí-lo nos nossos lugares de trabalho com comitês de greve, em nossos bairros através de assembléias gerais soberanas. Devem reunir mais largamente possível a população trabalhadora, coordenada em escala nacional com delegados eleitos e revogáveis. Cabe a nós decidir os meios de ação, as reivindicações.... E a ninguém mais.Deixar decidir em nosso lugar os Chérèque (secretário geral da CFDT, Confederação Francesa do Trabalho, sindicato de obediência social-democrata), Thibault (secretário geral da CGT, Confederação Geral do Trabalho, maior sindicato na França, ligado ao Partido Comunista antes do afundamento do stalinismo) e Cia, é preparar novas derrotas. Chérèque está a favor de “42 anuidades” (de trabalho antes de se aposentar em lugar das 40 com que a reforma quer acabar). Não se pode confiar mais em Thibault que não reivindica o cancelamento da lei, que também bebia champanhe com Sarkozy enquanto milhares entre nós estavam sendo demitidos, e não fazia nada para impedir que fossemos derrotados separadamente. Não temos mais confiança nos pretendidos “radicais”. O radicalismo de Mailly (Força operária, outro sindicato social-democrata) é de apertar a mão de Aubry (secretária geral do partido socialista) na manifestação enquanto o partido socialista vota a favor das “42 anuidades”. Quanto a Sud-Solidários (o sindicato mais radical), à CNT (Confederação Nacional do Trabalho, sindicato anarquista reformista) ou a extrema-esquerda (Luta Operária – organização trotskista mais a esquerda na França; o NPA – Novo Partido Anticapitalista) não oferecem outra perspectiva que a unidade sindical. Quer dizer a unidade com aqueles que querem negociar recuos.Se hoje eles apóiam a greve “prolongável a cada dia” é, sobretudo, para evitar em ser superados. O controle das nossas lutas serve de barganha para eles para ser admitidos na mesa de negociações... por quê? Como é escrito na carta assinada por sete organizações sindicais incluindo da CFTC (Confederação dos trabalhadores Cristãos) até Sud-Solidários, para “fazer ouvir o ponto de vista das organizações sindicais na perspectiva de definir um conjunto de medidas justas e eficazes para assegurar a perenidade do sistema de aposentaria atual por repartição”. Será que se pode acreditar só um instante que pode haver um entendimento com aqueles que quebram nossas aposentadorias desde 1993, aqueles mesmo que empreenderam a demolição metódica das nossas condições de vida e de trabalho?A única unidade capaz de fazer este governo e as classes dominantes recuarem é de unir-se, setor público / privado, assalariados e desempregados, aposentados e jovens, sindicalizados ou não, trabalhadores imigrantes legalizados ou não, na base nas assembléias comuns e ao controlar nossas lutas próprias.Pensamos que cancelar a lei sobre as aposentadorias é uma exigência mínima. Isso não basta. Centenas de milhares de trabalhadores idosos sobrevivem já com menos de 700 euros por mês, enquanto centenas de milhares de jovens sem trabalho conseguem sobreviver só com o RSA (pensão mínima que se pode receber quando acaba a indenização de desemprego) e isso quando têm direito a ele. Para milhões entre nós, o problema crucial já é de poder comer, alojar-se e cuidar de sua saúde. Disso não queremos.Sim, os ataques às aposentadorias são a árvore que esconde a floresta. Desde o início da crise, as classes dirigentes com ajuda do estado jogam para a rua centenas de milhares de trabalhadores, suprimem milhares de postos nos serviços públicos. E isso só é um começo. A crise continua e os ataques contra nós vão se tornar mais e mais violentos. Para poder enfrentar isso, sobretudo, não devemos confiar em nenhum instante nos partidos de esquerda (PS, PCF, Partido de Esquerda – situado à esquerda do partido socialista). Sempre geriram lealmente os negócios da burguesia sem nunca questionar a propriedade privada industrial e financeira assim como a grande propriedade fundiária. Em relação a isso, vemos que na Espanha como na Grécia é a esquerda no poder que organiza a ofensiva do capital contra os trabalhadores. Para nossas aposentadorias, a saúde, a educação, os transportes e para não morrer de fome, os trabalhadores deverão apoderar-se das riquezas produzidas. Nesta luta, devemos nos apresentar não como os defensores de interesses categoriais e sim como defensores de toda a população trabalhadora, inclusive os pequenos camponeses, marinheiros pescadores, pequenos artesãos, pequenos comerciantes, que é jogada na miséria com a crise do capitalismo. Devemos arrastá-los e nos colocar a cabeça de todas as lutas para melhor atacar o capital. Quer sejamos assalariados, desempregados, precários, trabalhadores imigrantes ilegais, e qualquer que seja a nossa nacionalidade, é toda a população trabalhadora que está no mesmo navio.
Marcamos a assembléia intercategorial geral para discutir isso.
Publicamos a seguir um conjunto de textos relativos ao período de transição do capitalismo ao comunismo.
Publicamos a seguir um conjunto de textos relativos ao período de transição do capitalismo ao comunismo, centrados sobre duas questões essenciais:
Problemas do período de transição
O tema do período detransição exige a maior prudência. A quantidade de questões que se coloca éenorme, porém sobretudo a novidade dos problemas que se colocam ao proletariadoimpede que se elabore antecipadamente os planos da sociedade futura. Marx já senegava "dar receitas para as encruzilhadas do futuro" e RosaLuxemburgo insistia que "só temos pontos indicativos, e são essencialmentenegativos"
É claro que aexperiência histórica da classe (a Comuna de Paris em 1871, 1905, 1917-1923) eda contrarrevolução nos oferece luzes acerca desses problemas no sentido deprecisá-los, porém essas precisões consideram o quadro geral e não é a maneiradetalhada de resolver os problemas. O que podemos fazer é ver o marco geral naqual se colocam.
A) A história do homem viu uma sucessão de sociedadesestáveis ligadas a modos de produção e, portanto, a relações sociais estáveis.Essas sociedades se baseiam em leis econômicas dominantes inerentes a elas, estavamcompostas por classes sociais fixas, e se fundavam nas superestruturasapropriadas. Conhecemos a sociedade escravista, a "asiática", afeudal e o capitalismo.
B) O que distingue os períodos de transição dessassociedades estáveis, é a decomposição das estruturas antigas e a formação denovas, ambas ligadas ao desenvolvimento das forças produtivas e que favoreceramo surgimento de novas classes, novas idéias e instituições que lhescorrespondem.
C) O período de transição não tem modo de produção próprio,é uma mescla, na qual se combinam elementos do antigo modo e do novo. É operíodo durante o qual se desenvolve lentamente os germes do novo modo deprodução em detrimento do antigo até produzir o seu desaparecimento e criar onovo modo dominante de produção.
D) Entre duas sociedades estáveis, e isso também valeráentre o capitalismo e o comunismo, é imprescindível um período de transição. Oesgotamento das condições do velho mundo não significa automaticamente que hajaamadurecido e se tenha alcançado as condições da nova sociedade. Ou seja, adeterioração da antiga sociedade não implica automaticamente a maturação danova, mas só é a condição dessa maturação.
E) Decadência e período de transição são então duasnoções distintas. Todo período de transição pressupõe a decomposição do velhomundo cujos modo e relações de produção chegaram ao limite extremo dedesenvolvimento. Porém, toda decadência não significa necessariamente que tenhaque existir um período de transição que constitui uma superação, para um modode produção mais avançado.
Por exemplo, oesgotamento do modo asiático não abriu o caminho para sua superação por outromodo de produção social. Igualmente, a Grécia antiga não tinha as condições históricaspara a superação do escravismo. Também foi o mesmo para o Egito antigo.
Para que possamosressaltar o caráter do período de transição do capitalismo para o comunismo e oque distingue este período de todos os que antecederam, temos de apoiarmos emuma idéia fundamental: um período de transição resulta do próprio caráter danova sociedade que vai surgir. Então é necessário por em evidência asdiferenças fundamentais que distinguem a sociedade comunista das demais.
A) Todas as sociedades anteriores (exceto o comunismoprimitivo) estavam divididas em classes.
B) Todas se baseavam na propriedade e na exploração dohomem pelo homem.
C) Todas as sociedades de classe se fundamentavam nainsuficiência do desenvolvimento das forças produtivas em relação às necessidadesdos homens. Por isso estão dominadas por forças naturais e sócio-econômicascegas. A humanidade está alienada à natureza e, consequentemente, às forçassociais às quais ela deu a luz.
D) Todas as sociedades passadas arrastaram vestígiosanacrônicos dos sistemas econômicos, das relações sociais, das idéias e preconceitosdas que as antecederam. Isso se deve a que todas elas se baseavam napropriedade privada e na exploração do trabalho. Por isso uma nova sociedade declasse podia nascer e desenvolver-se no marco da antiga.
Por isso a novasociedade pode, enquanto vencedora, conter no seu interior e acomodar-se comvestígios da antiga sociedade derrotada, das antigas classes dominantes, atépode associá-las ao poder político. Assim foi como puderam subsistir nocapitalismo relações escravistas ou feudais, e que a burguesia compartilhoudurante bastante tempo seu poder com a nobreza.
E) Todas as sociedades anteriores não só estavamdivididas em classe, como também se fundavam necessariamente em divisõesgeográficas regionais ou políticas nacionais. Isso se deve, sobretudo, às leisdo desenvolvimento desigual que permitem que a evolução da sociedade, mesmo se orientandoglobalmente numa mesma direção, seja realizada de forma relativamente independente e separada e nos seus diversos setores e com defasagens que podemalcançar séculos. Esse desenvolvimento desigual, por sua vez, é devido aopequeno desenvolvimento das forças produtivas: há uma relação direta entre essenível de desenvolvimento e a dimensão na qual se realiza. Só é mediante asforças produtivas desenvolvidas pelo capitalismo que pela primeira vez nahistória existe uma interdependência real no mundo inteiro.
F) Ao estar baseadas na propriedade privada, na divisãoem classes e zonas geográficas, a produção das sociedades anteriores vainecessariamente para a produção de mercadorias com tudo que isso implica nonível de concorrência e da anarquia da produção e do consumo, reguladosunicamente pela lei do valor através do mercado e do dinheiro.
G) Por ser sociedades divididas em classe e, por tanto,em interesses antagônicos as sociedades anteriores não podiam sobreviver senãocriando um órgão especial aparentemente por cima das classes, porémdeterminando pela sua própria conservação e a dos interesses da classedominante: o ESTADO.
Característicasdos períodos de transição
O período de transiçãopara o comunismo está impregnado constantemente pela sociedade da qual nasce(pré-história da humanidade), e também pela sociedade da qual o período detransição é portador (a nova história da sociedade humana). Isso é o quedistingue o período de transição para o comunismo de todos os períodos detransição anteriores.
A) Os períodos de transição anteriores
Até agora, os períodosde transição tiveram em comum o de ter se desenvolvido no próprio seio daantiga sociedade. O reconhecimento e a proclamação definitiva da novasociedade, sancionados (reconhecimento e proclamação são sancionados) pelosalto da revolução, vem ao cabo do processo transitório. Isso por duas razões:
B)O período de transição para o comunismo
a) Por ser uma ruptura total com a exploração e a divisão dasociedade em classes, a transição para o comunismo exige uma ruptura radicalcom a antiga sociedade e só pode desenvolver-se fora dela .
b) O comunismo nãotem um modo de produção submetido a leis econômicas cegas opostas aoshomens, mas está baseado na organização consciente da produção permitida pelaabundância de forças produtivas que não pode oferecer a antiga sociedadecapitalista.
C) O que distingue o período de transição para o comunismo
Em conseqüência do quedissemos podemos tirar algumas conclusões:
I) O período de transição para o comunismo não pode iniciar-se senãofora do capitalismo. A maturação das condições do socialismo exige previamentea destruição da dominação política, econômica e social da burguesia sobre asociedade.
II) O período de transição só pode ser aberto em escala mundial
III) Contrariamente aos períodos de transição precedentes, asinstituições essenciais do capitalismo, Estado, polícia, exército, diplomacia,não podem ser utilizados tal como são pelo proletariado.
IV) A abertura do período de transição caracteriza-se em conseqüênciaessencialmente pela derrota política do capitalismo e o triunfo da dominaçãopolítica do proletariado.
Osproblemas do período de transição
A) A generalização mundial da revolução é a condiçãoprévia à abertura do período de transição. Dessa generalização depende toda aquestão das medidas econômicas e sociais; a propósito destas devemosparticularmente nos acautelar de "socializações", isoladas em umpaís, uma região, uma fábrica ou qualquer grupo de homens. Ainda depois doprimeiro triunfo do proletariado, o capitalismo mantém sua resistência através daguerra civil. Durante esse período, tudo depende da destruição da força docapitalismo. Esse primeiro objetivo condiciona a evolução do futuro.
B) Uma única classe éportadora do comunismo: o proletariado. Outras podem ser arrastadas na luta queleva o proletariado contra o capitalismo, porém como classes não podem serprotagonistas ou portadoras do comunismo. É por isso que temos de destacar uma tarefaessencial: a necessidade que tem o proletariado de não confundir-se nemdissolver-se com as demais classes. Durante o período de transição, enquantoclasse revolucionária historicamente responsável pela tarefa de criar umasociedade sem classes, o proletariado só pode assumi-la se afirmando comoclasse autônoma e politicamente dominante da sociedade. Ele só tem um programado comunismo que tenta realizar e para isso haverá de conservar em suas mãostoda a força política e toda força armada: tem o monopólio das armas.
Para levar isso acabo ele tem estruturas organizadas, os Conselhos Operários, baseados nas fábricas,e o Partido revolucionário.
A ditadura do proletariado podedessa maneira ser resumido assim:
C) Quais são as relações do proletariado com as demaisclasses da sociedade?
I) Em relação à classe capitalista e aos antigos dirigentes da sociedadecapitalista (deputados, altos funcionários, exército, polícia, igreja...),supressão de qualquer direito cívico e exclusão de qualquer vida política;
II) Em relação aos camponeses e os artesãos, constituídos por produtoresindependentes e não assalariados e que são a maior parte da sociedade, oproletariado não poderá eliminá-los totalmente da vida política, como também davida econômica. Terá necessariamente que buscar um modus vivendi com essas classes, enquanto desenvolvaa seu respeito uma política de dissolução e de integração nas filasproletárias.
Embora a classetrabalhadora tenha a obrigação de tomar em conta essas classes na vidaeconômica e administrativa, não deverá dar-lhes possibilidade de umaorganização autônoma (imprensa, partido, etc.). Essas classes e camadas sociaisnumerosas terão que ser integradas em um sistema de administração soviéticoterritorial. Seus membros se integrarão na sociedade como cidadãos, não comoclasses.
III) Em relação às classes sociais que têm no capitalismo atual um lugarparticular como as profissões liberais, os técnicos, os funcionários públicos,os intelectuais (o que é chamado de "nova classe média") a atitude doproletariado será baseada sobre os critérios seguintes:
D) A sociedade transitória continua sendo uma sociedade dividida emclasses e, como tal, faz surgir necessariamente essa instituição própria atodas as sociedades divididas em classe: o Estado.
Com todas as amputaçõese medidas de precaução que se haverá de impor a essa instituição (funcionárioseleitos e revogáveis, salários iguais ao dos operários, unificação entre legislativoe executivo, etc.) e que reduzem esse Estado a um semi-Estado, nunca há de seperder de vista seu caráter histórico anticomunista e, portanto, antiproletário,essencialmente conservador. O Estado continua sendo o guardião do status quo.
Reconhecermos ainevitabilidade dessa instituição que o proletariado terá que utilizar como ummal necessário, tanto para acabar com a resistência da classe capitalistaderrubada, como para preservar um marco administrativo e político unido a umasociedade que continua dividida por interesses antagônicos.
Também temos querechaçar categoricamente a idéia de transformar esse estado em bandeira e motordo comunismo. Por conta do seu próprio caráter ("burguês por essência"segundo Marx), esse estado continua sendo essencialmente um órgão deconservação do status quo e um freio para o comunismo. Não pode então seridentificado com o comunismo nem a classe que o leva em si, o proletariado. Pordefinição, essa é a classe mais dinâmica da história visto que carrega odesaparecimento de todas as classes, inclusive ela mesma. Por isso, aindautilizando o Estado, o proletariado expressa sua ditadura não através dele, massobre ele. Por isso, igualmente, o proletariado não há de reconhecer o menordireito a essa instituição de intervir através da violência dentro da classetrabalhadora nem em arbitrar as discussões e a atividade dos organismos daclasse: conselhos e partido revolucionário.
Sem ter a pretensão de fazer umplano detalhado dessas medidas, podemos já prever as linhas gerais:
Esta parte contêm três textos. O primeiro evidencia os ensinamentos que se pode tirar da experiência da revolução rússa, notadamente: "A derrota da revolução russa foi, em última instância, produto da derrota da revolução mundial e não da ação do Estado. Entretanto, nesse combate contra a contrarrevolução, a experiência pôs em evidência que o aparato do Estado e sua burocracia não eram nem o proletariado nem também a ponta de lança da sua ditadura... menos ainda uma instituição à qual a classe operária em armas deveria se submeter em nome de uma suposta 'natureza proletária'."
Os dois textos posteriores constituem contribuições contraditórias dentro de um debate que ocorreu na CCI nos anos 70, a propósito da natureza do Estado de transição:
I - Introdução
Antes da experiência da Revolução na Rússia, os marxistas tinham uma concepção da relação entre proletariado e Estado durante o período de transição do capitalismo ao comunismo que era relativamente simples em sua essência.
Sabia-se que esta transição deveria começar com a destruição do poder político da burguesia e que essa fase não fazia mais que preceder à sociedade comunista, preparando-a, sociedade que, por sua vez, não teria nem classes, nem poder político, nem Estado. Sabia-se que no curso desse movimento, a classe operária teria que instaurar sua ditadura sobre o resto da sociedade. Sabia-se também que durante este período que contém ainda todos os estigmas do capitalismo, em particular pela subsistência da penúria material e das divisões da sociedade em classes, subsistiria inevitavelmente um aparato do tipo estatal. Sabia-se, por fim, sobretudo graças a experiência da Comuna de Paris de 1871, que este aparato não podia ser o Estado burguês "conquistado" pelos operários, mas que seria, na forma e conteúdo, uma instituição transitória, essencialmente diferente de todos os Estados que tinha existido até então. Porém, a respeito do problema da relação entre a ditadura do proletariado e este Estado, entre a classe operária e esta instituição produto das heranças do passado, acreditava-se que era possível resolver o problema com uma ideia simples: ditadura do proletariado e este Estado do período de transição são uma única e mesma coisa, classe operária e Estado são idênticos. De certo modo, acreditava-se que, durante o período de sua ditadura, o proletariado poderia fazer sua a célebre fórmula de Luís XV: "O Estado sou eu".
Dessa forma, no Manifesto Comunista se descreve este Estado como "o proletariado organizado em classe dominante": do mesmo modo, na crítica ao Programa de Gotha, Marx escrevia: "Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado." [1]
Mais tarde, às vésperas de outubro de 1917, Lênin, em pleno combate contra a social-democracia, que se comprazia na lama da primeira carnificina mundial ao participar dos governos dos Estados burgueses beligerantes, voltava a defender com força esta ideia no O Estado e a Revolução: "os marxistas proclamam a necessidade de o proletariado se apoderar do poder político, destruir totalmente a velha máquina do Estado e substituí-la por uma nova, consistindo na organização dos operários armados..." [2]
Ou também: "A revolução consiste em que o proletariado demole o "aparelho administrativo" e o aparelho do Estado inteiro, para substituí-lo por um novo, isto é, pelos operários armados" [3].
Dessa visão resultava naturalmente que o Estado do período de transição não podia ser outra coisa que a expressão mais acabada, mais eficaz, da classe operária e do seu poder. Tudo parecia bastante simples na relação entre Estado e proletariado visto que era uma única e mesma coisa. A burocracia estatal? Não existiria ou seria um problema sem maior importância visto que os próprios operários (até uma cozinheira, dizia Lênin) assumirão sua função. Imaginar seriamente a possibilidade de um antagonismo, de uma oposição, entre classe operária e Estado sobre o terreno econômico? Impossível!
Como poderia o proletariado fazer greve contra o Estado considerando que o Estado seria ele mesmo? Como poderia o Estado, por seu lado, tentar impor algo contrário aos interesses econômicos da classe operária visto que é sua emanação direta? Imaginar um antagonismo a nível político pareceria ainda mais improvável: Não devia o Estado ser o instrumento mais acabado da ditadura do proletariado? Como poderia expressar forças contrarrevolucionárias visto que, por definição, devia ser a ponta de lança do combate do proletariado contra a contra-revolução?
A Revolução Russa desmente categoricamente esta visão demasiada simples, mas que inevitavelmente predominava no movimento operário internacional que, com exceção da Comuna de Paris, não havia enfrentado nunca realmente os problemas do período de transição em toda sua complexidade.
Assim, logo após a tomada do poder em outubro de 1917, proclama-se o "Estado proletário"; os melhores operários, os combatentes mais experientes foram colocados à frente dos principais órgãos do Estado; se proibiram as greves; se prometeu aceitar todas as decisões dos órgãos do Estado como expressão das necessidades globais do combate revolucionário; finalmente, escreveu-se nas leis e na própria carne da revolução nascente a identidade tão proclamada entre Estado e classe operária.
No entanto, desde os primeiros momentos, os imperativos da subsistência social começaram a contradizer sistematicamente os fundamentos de tal identificação. Diante das dificuldades que tinha de enfrentar a revolução russa progressivamente sufocada pelo seu isolamento internacional, o aparato do Estado passou a ser não um corpo idêntico aos "operários armados" nem a encarnação mais global da ditadura do proletariado, mas, pelo contrário, um corpo de funcionários muito distinto do proletariado e uma força cujas tendências inatas não conduziam à revolução comunista e sim, ao contrário, ao conservadorismo. A burocratização dos funcionários encarregados da organização da produção, da distribuição, da manutenção da ordem, etc. se desenvolveram desde os primeiros meses sem que ninguém, nem mesmo os primeiros responsáveis do partido Bolchevique à frente do Estado - ainda que o combatessem - nada puderam fazer contra ela, e, sobretudo, sem que se pudesse reconhecer nessa burocracia estatal uma força contrarrevolucionária visto que era "o Estado proletário".
Tanto a nível econômico quanto político foi se criando progressivamente uma separação entre a classe operária e o que se supunha que era "seu" Estado. Já nos finais do ano de 1917, acontecem greves econômicas em Petrogrado; em 1919 correntes operárias comunistas de esquerda começam a denunciar a burocracia estatal e sua oposição aos interesses da classe operária; em 1920-21, no fim da guerra civil, esses antagonismos explodiram abertamente nas greves de Petrogrado de 1920 e na insurreição de Krondstadt de 1921, reprimida pelo Exército Vermelho. Resultado, no combate pela manutenção do seu poder, o proletariado na Rússia não encontrou no Estado o instrumento que esperava mas, ao contrário, uma força de resistência que se transformou rapidamente no principal protagonista da contrarrevolução.
A derrota da revolução russa foi, em última instância, produto da derrota da revolução mundial e não da ação do Estado. Entretanto, nesse combate contra a contra-revolução, a experiência pôs em evidência que o aparato do Estado e sua burocracia não eram nem o proletariado nem também a ponta de lança da sua ditadura... menos ainda uma instituição à qual a classe operária em armas deveria se submeter em nome de uma suposta "natureza proletária".
É certo que a experiência do proletariado na Rússia achou-se condenada à derrota a partir do momento em que não conseguiu estender-se mundialmente. É justo dizer que a potência do antagonismo Estado-proletariado foi uma manifestação da debilidade do proletariado mundial e da inexistência das condições materiais para um desenvolvimento verdadeiro da ditadura do proletariado. Porém, novamente seria criar ilusões ao acreditar que só a amplitude dessas dificuldades explica esse antagonismo e que, em melhores condições, a identificação entre ditadura do proletariado com o Estado do período de transição seria válida. O período de transição é uma fase em que o proletariado enfrenta uma dificuldade importante: estabelecer novas relações sociais enquanto, por definição, as condições materiais para o desenvolvimento daquelas estão somente instaurando sob a ação revolucionária dos operários em armas. Esta dificuldade desenvolveu-se na Rússia sob suas formas mais extremas, porém nem por isso deixa de ser essencialmente a mesma a que encontrará o proletariado amanhã. A importância das barreiras que encontrou a ditadura do proletariado na Rússia não faz dessa experiência uma exceção que confirmaria a regra da identidade proletariado-Estado do período de transição, mas, pelo contrário, um fator que permitiu colocar em evidência, sob suas formas mais agudas, a inevitabilidade e a natureza do antagonismo que opõe a força revolucionária proletária à instituição de manutenção da ordem durante o período de transição.
Desde sua constituição, a CCI, continuando os trabalhos da Esquerda Italiana ("Bilan") entre as duas guerras e os do grupo "Internationalisme" nos anos 40, tem empreendido a complexa e indispensável tarefa de retomar, revisar e completar a compreensão revolucionária da relação entre Estado e proletariado durante o período de transição, à luz da experiência russa (ver os números 1, 2, 3 e 6 da Revista Internacional).
Dentro do marco desse esforço, publicamos aqui, por uma parte, a carta de um companheiro que reage criticamente às teses desenvolvidas sobre este tema na resolução adotada pelo II Congresso de "Revolution Internationale", seção na França da CCI (ver a Revista Internacional nº 6) e, por outra parte, uma resposta às críticas da carta.
CCI
[1] Fonte: https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm#i1 [73]
[2] O Estado e a Revolução (Cáp. VI, 3)
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/index.htm [74]
[3] Idem. (Cáp. VI, 3)
O marxismo, na medida em que é conhecimento cientifico da sucessão dos modos de produção e das formas sociais de produção no passado, é também previsão das etapas e das características fundamentais e indissociáveis da última forma social - o comunismo - que sucederá a que hoje vivemos. As formas econômicas se transformam segundo um processo ininterrupto na história da sociedade humana. No entanto, este processo se traduz na forma de períodos de convulsões e de lutas, durante as quais o enfrentamento político e armado das classes rompe as barreiras que impedem o nascimento e o desenvolvimento acelerado da nova forma; é o período de luta pelo poder, cujo fim é uma ditadura da força de amanhã sobre a de ontem (ou o inverso, até uma nova crise). O revisionismo socialista da penúltima guerra pretendia apagar a teoria de Marx e Engels sobre a ditadura. Corresponde a Lênin o mérito de ter voltado a colocá-la no caminho em "Estado e a Revolução", onde ao restaurar completamente o marxismo, leva até as últimas conseqüências o dever teórico da destruição do Estado burguês. Lênin, em perfeita conformidade com a doutrina marxista, coloca, pois, o marco que permite distinguir as fases sucessivas na transição do capitalismo ao comunismo.
O proletariado conquistou o poder político e, como todas as demais classes no passado, impõe sua própria ditadura. Ao não poder abolir de uma vez só as demais classes, o proletariado as põe fora da lei. O que quer dizer que o Estado proletário controla a economia que contém, ainda que em constante declínio, não só uma distribuição mercantil como também formas de apropriações privadas dos produtos e dos meios de produção tanto individuais como associados. Ao mesmo tempo, com suas intervenções despóticas, abre o caminho que leva à fase inferior do comunismo. Pode-se, portanto, comprovar que, contrariamente ao que dizia R. sobre uma pretendida complexidade da concepção do Estado e do seu papel na teoria de Lênin, a essência dessa concepção é muito simples: o proletariado, ao alçar-se em classe dominante, cria seu próprio órgão de Estado, diferente dos precedentes pela forma, porém que conserva essencialmente a mesma função: opressão das demais classes, violência concentrada contra elas para que triunfem seus interesses históricos enquanto classe dominante, embora estes coincidam a longo prazo com os da humanidade.
Nesta fase, a sociedade dispõe já de produtos em geral repartindo-os entre seus membros segundo um plano estabelecido de repartição oficialmente determinada. Para isto, já não se necessita intercâmbio mercantil nem de moeda: a distribuição é feita centralmente sem intercâmbio de equivalentes. Nesta fase, o trabalho não só é obrigatório, tem que contabilizar também o tempo efetivamente realizado com certificados que o comprove: os conhecidos "bônus de trabalho" tão discutidos que têm a característica de não poder ser acumulados, de maneira que qualquer tentativa de acumulação só pudesse ser uma perda, com uma parte do trabalho efetuado que não recebe nenhum equivalente. A lei do valor deixa de existir porque "a sociedade não lhe atribui nenhum valor aos produtos" (Engels). A este segundo estágio sucede o comunismo superior, sobre o qual não vamos nos estender.
Com já vimos, o marxismo coloca, no início da fase de transição e como premissa necessária, a revolução política violenta da qual surge inevitavelmente a ditadura de classe. Será pelo exercício desta ditadura que, com intervenções despóticas apoiadas pelo monopólio das forças armadas, o proletariado atualizará as profundas "reformas" que destruirão até o último vestígio da forma capitalista.
Até aqui, parece que não há nenhuma divergência. As dificuldades começam quando se afirma que "o Estado tem uma natureza histórica anticomunista e antiproletária" e "essencialmente conservadora" e que, portanto, sua "ditadura (a do proletariado) não pode encontrar em uma instituição conservadora por excelência sua própria expressão autêntica e total" (RI nº.17 p.33). Aqui o anarquismo (e perdoem-me a brutalidade das palavras), depois de ter sido expulso pela porta, entra pela janela. De fato, aceita-se a ditadura do proletariado, porém se esquece que o Estado e ditadura, ou poder exclusivo de uma classe, são sinônimos.
Antes de criticar mais especificamente algumas afirmações do texto a que nos referimos, quero recordar as linhas fundamentais da teoria marxista sobre o Estado. Cada Estado se define, segundo Engels, por um território preciso e pela natureza da classe dominante. Define-se, pois, por um lugar, a capital onde se reúne o governo, que para o marxismo, é o "comitê de administração dos interesses da classe dominante". Na fase que vai do poder feudal ao poder burguês, se forma a teoria política - típica da mistificação burguesa - que em todas as revoluções históricas, tem dissimulado a natureza da passagem do feudalismo e capitalismo. A burguesia na sua consciência mistificada afirma que destrói o poder de uma classe não para substituí-la por outra classe, mas para construir um Estado que funda seu próprio poder sobre a ordem e a harmonia entre as exigências de "todo um povo". Porém em todas as revoluções, uma série de fatos evidenciaram a robustez e a dinâmica revolucionária marxista baseada nas classes, visto que a ditadura de uma classe vem sempre acompanhada da violação da liberdade das demais e também de violências exacerbadas contra seus partidos, até chegar ao terror, fato que também é inseparável das revoluções puramente burguesas.
Um dos primeiros atos que tem de cumprir é a demolição do antigo aparato de Estado que a classe que tomou o poder deve empreender sem vacilações. São essas lições que tirou Marx da Comuna de Paris, a qual, ao instalar-se no "Hotel de Ville", opôs o Estado ao Estado armado, afogou no terror (antes que fosse afogada por sua vez)- para os indivíduos da classe inimiga. E "se houve erro não foi o de ter sido demasiado ferozes, foi o de não haver sido o suficiente".
Dessa importante experiência do proletariado, Marx tirou o ensinamento fundamental, o qual não podemos renunciar, de que as classes exploradoras necessitam da dominação política para manter a exploração: e que o proletariado necessita dela para suprimi-la por completo. A destruição da burguesia não é realizável senão através da transformação do proletariado em classe dominante. Isto quer dizer que a emancipação da classe trabalhadora é impossível dentro dos limites do Estado burguês. Este tem que ser derrotado na guerra civil, e seu funcionamento destruído. Após a vitória revolucionária, tem que surgir outra forma histórica, a ditadura do proletariado, que abrirá o caminho para o período histórico em que surge a sociedade socialista e se extingue o estado.
Depois dessa breve afirmação das que são para mim as bases da doutrina marxista do Estado e da passagem de um sistema social a outro e, mais especificamente, do capitalismo ao comunismo, vou deter-me no texto da resolução relativo ao período de transição. O que salta aos olhos de tal documento é antes de tudo o caráter contraditório de certas afirmações.
Se de um lado se afirma (§ 2) "que a tomada o poder político geral na sociedade por parte do proletariado precede, condiciona e garante a continuidade da transformação econômica e social", não se toma em conta o fato de que tomar o poder político significa instaurar uma ditadura sobre as demais classes e que o Estado é e foi sempre o órgão (com diferenças nas suas características: funcionamento, divisão dos poderes, representação, segundo o modo de produção e as classes cujo domínio representa) da ditadura de uma classe sobre as demais.
Além disso, quando afirma (§ 7) que "toda esta organização estatal exclui categoricamente qualquer participação das classes e camadas sociais exploradoras que se verão privadas de todo direito político e civil", não dá conta de que todas as características justas deste Estado, expressas nos demais pontos do mesmo parágrafo, e, sobretudo, as características já citadas sobre a representação política de uma só classe, não são simples diferenças formais, mas que destroem todas as afirmações que servem para identificar o Estado da burguesia e, por isso, dão uma base à identidade "que tanto se trata de combater" entre Estado e ditadura do proletariado.
Porém, sobre que bases se chega a afirmar a necessidade absoluta para o proletariado de não identificar sua própria ditadura e o Estado do período de transição? Principalmente porque se afirma (§ 8) que o Estado é uma instituição conservadora por excelência. Isto beira o anti-historicismo do anarquismo e sua oposição de princípio ao Estado. Os anarquistas tiram sua conclusão da necessidade de libertar-se de sua Senhoria "a Autoridade". "Revolution Internationale" claro que não chega a esse ponto, porém, exatamente como os anarquistas, julga o Estado conservador e reacionário em qualquer época social, em qualquer área geográfica, qualquer que seja a direção para a qual se orienta, e, portanto, qualquer que seja a dominação de classe, de que é expressão, independentemente do período histórico durante o qual essa dominação se exerce.
Nada tem a ver isso com o marxismo. Para o marxismo, o estado é antes de tudo uma instituição diferente segundo as épocas históricas, tanto por suas características formais como por suas funções próprias. De fato, o materialismo do marxismo nos ensina, se nos referimos à história, que no passado e nas fases revolucionárias, era só uma classe conquistar o poder, esta estabiliza o tipo de organização estatal que melhor corresponde à defesa dos seus interesses de classe. O Estado assumia então a função revolucionária que tinha a classe - então revolucionária - que o havia instituído. Quer dizer: facilitar, com suas intervenções despóticas -depois de haver destruído pelo terror a resistência das velhas classes- o desenvolvimento das forças produtivas, varrendo os obstáculos que entorpecem seu caminho, estabilizando e impondo com o monopólio das forças armadas um marco de leis e de relações de produção que favoreçam esse desenvolvimento e respondendo aos interesses da nova classe no poder. Por exemplo, para citar só um, o Estado francês de 1793 assumiu uma função eminentemente revolucionária.
Expressa-se outro raciocínio no mesmo parágrafo do ponto C: "o Estado do período de transição conserva ainda todos os estigmas de uma sociedade dividida em classes". Esse é um raciocínio muito estranho, visto que tudo que emana da sociedade capitalista conserva seus estigmas. Não somente o Estado, como também o proletariado organizado nos Sovietes, pois foi desenvolvido e foi educado sob a forte influência da ideologia conservadora do sistema capitalista. Só o partido, embora não constitua uma ilha de comunismo dentro do capitalismo, está menos marcado por esses estigmas visto que nele se fundem "Vontade e consciência que se convertem em premissas da ação, como resultado de uma colaboração geral histórica" (Bordiga). (Essas afirmações podem parecer sumárias, porém as esclarecerei em outra ocasião).
Para concluir quero me deter sobre a profunda contradição a que conduz essa visão. Na realidade, afirma (§8 ponto C): "sua dominação (do proletariado) sobre a sociedade é também dominação sobre o Estado e só pode assumi-la através sua ditadura de classe". Quero responder com as palavras clássicas de Lênin que, em "O Estado e a Revolução", sublinha mais uma vez a essência da doutrina marxista do estado: "O fundo da doutrina de Marx sobre o Estado só foi assimilado pelos que compreenderam que a ditadura de uma classe é necessária, não só a toda sociedade dividida em classes, em geral, não só ao proletariado vitorioso sobre a burguesia, mas ainda em todo o período histórico que separa o capitalismo da "sociedade sem classes", do comunismo. As formas dos Estados burgueses são as mais variadas; mas a sua natureza fundamental é invariável: todos esses Estados se reduzem, de um modo ou de outro, mas obrigatoriamente, afinal de contas, à ditadura da burguesia. A passagem do capitalismo para o comunismo não pode deixar, naturalmente, de suscitar um grande número de formas políticas variadas, cuja natureza fundamental, porém, será igualmente inevitável: a ditadura do proletariado" [1]
Portanto, do ponto de vista marxista, o Estado se define como um órgão (diferente na forma e nas estruturas segundo os períodos históricos, as sociedades de classes e a direção de classe em que atua) por meio do qual se exerce a ditadura do proletariado, dispondo do monopólio da força armada.
Por isso, não faz sentido falar de um Estado que esteja submetido a uma ditadura que vem de seu exterior e que não pode intervir de maneira despótica na realidade econômica e social para orientá-la rumo a certa direção de classe.
E.
A crítica formulada pelo companheiro E. está apoiada essencialmente sobre duas idéias .: a primeira consiste no rechaço da afirmação de que "o Estado é uma instituição conservadora por excelência"; a segunda, na reafirmação da identidade Estado e ditadura do proletariado durante o período de transição, posto que o Estado é sempre Estado da classe dominante. Vejamos, assim, de mais perto o conteúdo desses argumentos.
E. escreve: "...se afirma (na resolução de RI) que o Estado é uma instituição conservadora por excelência. Isto beira o anti-historicismo do anarquismo e sua oposição de princípio ao Estado. Os anarquistas tiram sua conclusão da necessidade de libertar-se de sua Senhoria "a Autoridade". Revolution Internationale claro que não chega a esse ponto, porém, exatamente como os anarquistas, julga o Estado conservador e reacionário em qualquer época social, em qualquer área geográfica, qualquer que seja a direção para a qual se orienta, e, portanto, qualquer que seja a dominação de classe, de que é expressão, independentemente do período histórico durante o qual essa dominação se exerce".
Antes de ver porque o Estado é efetivamente "uma instituição conservadora por excelência" responderemos ao argumento polêmico que consiste em identificar nossa posição com a dos anarquistas.
Nossa concepção sofreria de um "anti-historicismo anarquista" porque destaca uma característica da instituição estatal (seu caráter conservador) independentemente da "área geográfica", "da dominação de classe da qual é a expressão", e "do período histórico durante o qual esta dominação é exercida". Porém, em que destacar as características gerais de uma instituição ou de um fenômeno através da história, independente das formas específicas que esta possa conhecer segundo o período, seria típica de um "anti-historicismo"? Então, o que é saber utilizar a história para compreender a realidade se não é antes de mais nada saber destacar as leis gerais que se verificam através de diferentes períodos e condições específicas? O marxismo é, por acaso, "anti-histórico" quando diz que desde qua a sociedade está dividida em classes "a luta de classes é o motor da história", qualquer que seja o período histórico e quaisquer que sejam as classes?
Pode-se ressaltar a necessidade de distinguir em cada Estado da história (Estado Feudal, Estado burguês, Estado do período de transição, etc.) o que é particular, específico. No entanto, como é possível compreender essas particularidades se não se sabe em relação a quais generalidades elas se definem? O fato de destacar as características gerais de um fenômeno no curso da história, através de todas as formas particulares - por diferentes que sejam - que tenha tomado segundo os períodos, é não só o próprio fundamento de uma análise histórica como também a condição principal para poder compreender em que consiste as especificidades de cada expressão particular do fenômeno.
A partir de um ponto de vista marxista, pode-se ter a tentação de colocar em causa a veracidade da lei geral que destacamos sobre a natureza conservadora do Estado, porém de nenhum modo atacar o fato em si de querer reconhecer a característica histórica geral de uma instituição. Do contrário se nega a possibilidade de toda análise histórica.
Depois nos diz que nossa posição se assemelha à do anarquismo pelo fato de constituir uma "oposição de princípio ao Estado". Recordemos em que consiste esta oposição de princípio dos anarquistas ao Estado: rechaçando a análise da história em termos de classe e do determinismo econômico, os anarquistas não compreenderam nunca o Estado como produto das necessidades de uma sociedade dividida em classes, mas como um mal em si que, igual à religião e ao autoritarismo, está na base de todos os males da sociedade ("Estou contra o Estado porque o estado é maldito", dizia Louise Michel). Pelas mesmas razões, consideram que, entre o capitalismo e o comunismo, não há nenhuma necessidade do período de transição e, menos ainda, de Estado: o Estado poderá e deverá ser "abolido", "proibido" por decreto no dia seguinte à insurreição geral.
O que há de comum entre esta visão e a que afirma que o Estado, produto da divisão da sociedade em classes, tem uma essência conservadora visto que tem como função de frear e manter o conflito entre as classes dentro da ordem e da estabilidade social? Se sublinhamos o caráter conservador dessa instituição não é para preconizar uma indiferença "apolítica" do proletariado com relação a ele ou para propagar ilusões sobre a possibilidade de fazer desaparecer a instituição estatal com um decreto de proibição embora a divisão de classes subsista, mas para ressaltar porque o proletariado, longe de se submeter incondicionalmente à autoridade desse Estado durante o período de transição - como o preconiza a idéia que no Estado se veja a encarnação da ditadura do proletariado -, deve, ao contrário, submeter esse aparato, em uma relação de força permanente, à sua própria ditadura de classe. O que há de comum entre essa visão e a dos anarquistas que rechaçam em bloco o Estado, período de transição e, sobretudo, a necessidade da ditadura do proletariado?
Assimilar essa análise à visão anarquista é falar por falar com argumentos de polêmica irrelevantes.
Entretanto, chegamos ao problema de fundo: Por que o Estado é uma instituição conservadora por excelência?
A palavra conservador significa por definição o que - ou aquele que - se opõe a toda inovação, o que - ou aquele que - é resistente a toda mudança ou transtorno do estado de coisas existente. Pois bem, o Estado, qualquer que seja, é uma instituição cuja função essencial não é mais do que a manutenção da ordem, a manutenção da ordem existente. Ele é o resultado da necessidade em toda sociedade dividida em classes de se dotar de um órgão capaz de manter pela força uma ordem que não é capaz de existir de maneira espontânea, harmoniosa, pelo fato da sua própria divisão em grupos sociais, com interesses econômicos antagônicos. Por isso, constitui a força à qual tem de opor-se toda ação que tende a transtornar a ordem social e, portanto, toda ação revolucionária.
Na famosa formulação de Engels em A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, explicando a necessidade à qual corresponde o Estado e a função decorrente, encontra-se claramente afirmado este aspecto essencial do papel dessa instituição: amortecer o choque entre classes, mantendo nos limites da ordem. E, algumas páginas mais adiante: "o Estado nasceu da necessidade de frear os antagonismos de classe".
Quando se sabe que a força que cria os transtornos revolucionários não é outra senão a luta de classes, quer dizer, esse "conflito", essa "oposição" que o Estado tem como função "amortecer", é fácil compreender porque o Estado é uma instituição essencialmente conservadora.
Nas sociedades de exploração onde o Estado é abertamente o guardião dos interesses da classe economicamente dominante, o papel conservador do Estado frente a todo movimento que tende ameaçar a ordem econômica existente, da qual o Estado é sempre, junto com a classe dominante, beneficiário, fica muito evidente. No entanto, esta característica conservadora não está menos presente no Estado do período de transição ao comunismo.
A cada passo dado pela revolução comunista (destruição do poder político da burguesia em um ou vários países, logo no mundo inteiro, coletivização de novos setores da produção, desenvolvimento da coletivização da distribuição nos centros industriais e logo em regiões agrícolas avançadas, em seguida nas atrasadas etc.), a cada uma dessas etapas e enquanto o desenvolvimento das forças produtivas não haja alcançado um grau de desenvolvimento suficiente capaz de permitir que cada ser humano possa participar realmente em uma produção coletivizada em escala mundial e receber da sociedade "segundo suas necessidades", até que a humanidade não tenha alcançado esse estágio de riqueza que poderá permitir desfazer-se por fim de todos os sistemas de racionamento da distribuição dos produtos e unificar-se em uma comunidade humana sem divisões, a cada passo a sociedade deverá dotar-se de regras de vida, de leis sociais estáveis e uniformes que lhe permitam viver de acordo com as condições de produção existentes, sem ver-se por isso desgarrada por conflitos internos entre as classes que subsistem, enquanto se espera o passo seguinte para frente.
Pelo fato de que se trata de leis que expressam ainda um estado de penúria, isto é, um estado no qual o bem estar de uns tende a fazer-se em detrimento dos demais, trata-se de leis que - mesmo instaurando "a igualdade na penúria" - exigem, para ser aplicadas, um aparato de coerção e de administração que as impunha e que faça ser respeitadas pelo conjunto da sociedade. Este aparato é o Estado.
Se durante o período de transição, fosse decidido, por exemplo, distribuir gratuitamente os bens de consumo no que seriam os centros de distribuição, enquanto a penúria continua ainda atormentando a sociedade, haveria quem sabe alguns milhares de pessoas que poderiam, no primeiro dia, servir-se segundo as suas necessidades - os primeiros que chegarem aos centros - mas, pelo menos, outras tantas pessoas estariam sujeitas a passar fome. No período de escassez, distribuir, embora seja de maneira igualitária, impõe a instauração de regras de racionamento e, com elas, o "funcionário": O estado de "vigilantes e de contadores" de que falava Lênin.
A função deste Estado não é uma função revolucionária embora a ordem política existente seja a da ditadura do proletariado. Sua função intrínseca é, no melhor dos casos, a de estabilizar, regularizar, institucionalizar as relações sociais existentes. A mentalidade do burocrata do período de transição (pois não há Estado sem burocratas) não se caracteriza pela sua audácia revolucionária, longe disso. Sua mentalidade tende inevitavelmente a ser a de todos os funcionários: a manutenção da ordem, a estabilidade das leis que se encarrega de fazer aplicar... e, na medida do possível, a defesa dos seus interesses de privilegiado. Quanto mais dura a penúria que faz indispensável a existência desse Estado, , mais aumenta a força conservadora desse aparato e, com isso, a tendência para um ressurgimento de todas as características da velha sociedade.
Em A Ideologia Alemã, Marx escrevia: "esse desenvolvimento das forças produtivas (...) é um pressuposto prático absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos gêneros necessários recomeçariam e toda velha imundície acabaria por restabelecer" (A Ideologia Alemã - Primeira Parte - Artigos, rascunhos, textos prontos para impressão e anotações referentes aos capítulos "I. Feuerbach" e "II. São Bruno" Ed. Boitempo.1ª Edição. Pag.38 nota C)
A revolução russa onde o poder do proletariado ficou isolado, condenado à pior penúria, foi a trágica demonstração através da prática, desta visão. Porém ao mesmo tempo mostrou que a " velha imundície" ressuscitava primeiro e antes de tudo no mesmo lugar onde se acreditava que se encontrava a encarnação da ditadura do proletariado: no Estado e sua burocracia.
Citemos um testemunho dos mais significativos, visto que foi um dos principais defensores da identidade entre ditadura revolucionária do proletariado e Estado do período de transição, Leon Trotsky:
(A Revolução Traída; Tradução nossa)
Claro, o próximo movimento revolucionário não conhecerá seguramente condições materiais tão desastrosas como foram as da Rússia. Entretanto, a necessidade de um período de transição, um período de luta contra a indigência e a penúria em escala mundial não será menos inevitável que a subsistência de uma estrutura estatal. O fato de dispor de um maior potencial de forças produtivas para empreender a criação das condições materiais da sociedade comunista constitui um elemento fundamental para o definhamento do Estado e, portanto, da sua força conservadora sob a ditadura do proletariado. Mas nem por isso esta característica é eliminada. Assim, continua sendo de primordial importância que o proletariado consiga assimilar as lições da experiência russa e saiba ver no Estado deste período não a encarnação suprema da sua ditadura mas um órgão que deverá ser submetido pela sua ditadura e a respeito do qual deverá manter a sua autonomia organizativa.
Mas, diz a nós, a história mostra que o Estado tem uma função revolucionária quando a classe que o estabelece é também revolucionária:
Não se trata aqui de brincar com as palavras. "Assumir uma função revolucionária" por um lado e "estabilizar um marco de leis e de relações que respondam aos interesses da nova classe no poder" pelo outro, não descreve a mesma coisa. A partir do momento em que a luta de uma classe revolucionária consegue estabelecer uma relação de força na sociedade a seu favor, é evidente que o marco jurídico, a instituição que tem como função a de estabilizar as relações de forças existentes na sociedade, traduz obrigatoriamente este novo estado de fato em leis e em intervenções do executivo para fazê-las aplicar. Toda ação política de envergadura em uma sociedade dividida em classes tem, pois, como corolário uma estrutura estatal e só pode atingir sua meta se, cedo ou tarde, consegue concretizar-se ao nível de leis e da ação do Estado. Por exemplo, foi assim que o Estado de 1793 na França legalizou medidas revolucionárias impostas de fato pelas forças revolucionárias: execução do rei, lei sobre os suspeitos e instauração do Terror contra os elementos reacionários, requisições e racionamentos, confisco e venda dos bens dos imigrantes, imposto sobre os ricos, "descristianização" e fechamento das igrejas, etc.... Da mesma forma, o Estado dos sovietes na Rússia tomou medidas revolucionárias tais como a instauração do poder dos sovietes e da destruição do poder político da velha classe, organização da guerra civil contra os exércitos brancos, etc.
Mas, pode-se dizer por isto que o Estado assumiu a função revolucionária das classes que o instauraram?
O problema que se coloca é o de saber se esses fatos demonstram que o Estado é conservador apenas na medida em que quando a classe dominante também é conservadora, e ao contrário, revolucionário quando esta última é revolucionária. Em outras palavras, o Estado não teria nenhuma tendência conservadora ou revolucionária intrínseca. Seria simplesmente a encarnação institucional da vontade da classe dominante politicamente ou, para repetir uma fórmula de Bukárin sobre o Estado e o proletariado, durante o período de transição:
Vejamos, pois, esses acontecimentos mais de perto. Iniciamos por: "O Estado francês de 1793, é o mais radical por suas medidas, de todos os Estados burgueses da história" (carta de E.) (Trataremos da Revolução Russa no ponto seguinte).
O Estado de 93 é o da Convenção Nacional, instaurada nos finais de 92 depois da destruição da Monarquia pela Comuna Insurrecional de Paris e o terror imposto por esta: a Convenção sucedia o Estado da Assembléia Legislativa que havia "organizado" as guerras revolucionárias, mas cuja existência se viu ameaçada pela queda do trono e pelo poder real da Comuna Insurrecional que o Estado tentou em vão dissolver (em 1º de setembro, a Assembléia Legislativa proclamou a dissolução da Comuna, mas teve que rever sua decisão nessa mesma noite).
A Assembléia Legislativa, por sua vez, sucedia a Constituinte que, depois de ter declarado abolidos os direitos senhoriais e adotado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, havia se negado a proclamar a deposição do rei.
Antes de ver como foram tomadas as famosas medidas radicais de 93, observamos já que os acontecimentos que vão desde a conquista do poder pela burguesia em 89 ao advento da Convenção três anos depois (setembro de 92) não tem nada a ver com a descrição simplista que nos oferece o camarada E.
"No passado e nas fases revolucionárias, era só uma classe conquistar o poder, esta estabiliza (sic) o tipo de organização estatal que melhor corresponde à defesa dos seus interesses de classe". (Alterei a Carta de E. em consequëncia) OK
Na realidade, foi só a burguesia conquistar o poder político em 1789, começa um processo longo e complexo no qual a classe revolucionária longe de "estabilizar" o Estado que acabava de instaurar, vê-se obrigada a colocá-lo sistematicamente em questão para poder levar a cabo sua missão revolucionária.
Foi só o Estado ter consagrado uma nova relação de força instaurada pelas forças vivas da sociedade (por exemplo, a abolição dos direitos feudais pela Constituinte depois dos acontecimentos de julho de 89 em Paris) que logo o marco institucional, que se encontra estabilizado por esse ato, revela-se insuficiente e se transforma em freio para os novos desenvolvimentos da mudança revolucionária (negação da Constituinte em pronunciar a deposição do rei e repressão por esta dos movimentos populares nesse sentido).
Se de 89 a 93, a Revolução necessitou de três formas estatais (tendo conhecido, cada uma, diferentes governos), é precisamente porque nenhum desses Estados conseguiu "assumir a função revolucionária da classe que os instituiu". Cada novo passo adiante da Revolução toma, assim, a forma de uma luta, não só contra as classes do velho regime, como também contra o Estado "Revolucionário" e sua inércia legalista e conservadora.
Nem mesmo o ano de 1793 marcou uma "estabilização do tipo de organização estatal que melhor respondesse a defesa dos interesses da burguesia". Corresponde, ao contrário, ao apogeu da desestabilização da instituição estatal. Teve que esperar Napoleão, os seus códigos jurídicos, a sua reorganização da administração e seus "Cidadãos! A revolução é ligada aos princípios que a iniciaram, e acabou", para que verdadeiramente possa começar a se falar de estabilização [1].
E como poderia ser de outro modo? Como uma classe verdadeiramente revolucionária poderia tratar, no próprio momento do combate, o representante da "manutenção da ordem" (embora seja a sua) senão a chutes para tirá-lo das suas preocupações administrativas e suas formalidades jurídicas com que tenta, segundo a expressão de Engels, "amortizar o choque (entre classes), mantê-lo dentro dos limites da ordem"?
Acreditar que a instituição estatal pode ser "a encarnação material" da vontade revolucionária de uma classe é tão absurdo como imaginar que uma revolução posa desenvolver-se de maneira ordenada. É pedir a um órgão cuja função essencial é a de assumir a estabilidade da vida social, que encarne o espírito de subversão ao qual tem precisamente como tarefa afogar as forças vivas da sociedade; é pedir a um corpo de burocratas que tenham o espírito de uma classe revolucionária. Uma revolução é a explosão formidável das forças vivas da sociedade que tomam diretamente em suas mãos o destino do corpo social, transtornando sem respeito nem titubeios toda instituição (mesmo criada por ela) que entrave seu movimento. A potência de uma revolução se mede assim, em primeiro lugar, pela capacidade da classe revolucionária não se deixar aprisionar no pelourinho legal das suas primeiras conquistas, em saber ser tão impiedosa com as insuficiências dos seus primeiros passos como com as forças do velho regime. A superioridade política da revolução burguesa na França em relação à da burguesia inglesa residiu precisamente na sua capacidade de não se deixar paralisar pelo fetichismo do Estado e ter conseguido transtornar incessantemente e sem piedade sua própria instituição estatal até suas últimas conseqüências.
Porém, chegamos ao famoso Estado francês de 1793 e às suas medidas, considerando que constitui precisamente, por um lado, o exemplo proposto pelo camarada E. para demonstrar as supostas capacidades revolucionárias da instituição estatal e, por outro, uma das mais evidentes ilustrações da impotência desta instituição nesse terreno.
Na realidade, as grandes medidas revolucionárias do período de 1793 não foram tomadas por iniciativa do Estado, mas contra ele. Sua realização se deve à ação direta das frações mais radicais da burguesia parisiense, apoiadas e muitas vezes arrastadas pela enorme pressão do proletariado dos subúrbios da capital.
A Comuna Insurrecional de Paris, o organismo constituído durante os acontecimentos de 9-10 de agosto de 1792 pelos elementos mais radicais da burguesia que dispunham da força de burgueses armados dos subúrbios, da Guarda Nacional e dos Sectionnaires armados do subúrbio e que se apoiavam, sobretudo, no impulso das massas populares, é, portanto, expressão direta do movimento revolucionário que impôs primeiro à Assembléia Legislativa e depois à Convenção (que provocou a instauração das eleições pelo sufrágio universal indireto e 90% de abstenções por parte de eleitores aterrorizados) as medidas mais radicais da revolução. Foi ela que provocou a queda do Rei em 10 de Agosto de 1792, quem prendeu a família real no templo no dia 13, foi ela que impediu sua própria dissolução pelo Estado da Assembléia Legislativa, ela quem instaurou diretamente os tribunais revolucionários e o terror dos dias de Setembro de 1792; foi ela que, em 1793, impõe à Convenção a execução do rei, a lei sobre os suspeitos, a proscrição dos Girondinos, o fechamento das igrejas, a instauração oficial do Terror, etc. E, para colocar em evidência seu caráter de força viva distinta do Estado, impôs ainda à Convenção a prevalência de Paris como "guia da Nação e tutor da Assembléia", o direito de intervenção direta do "povo", se fosse necessário, contra "seus representantes" e, por fim, "o direito a insurreição"!
O exemplo de Cromwell na Inglaterra que dissolve pela força a Assembléia e manda colocar um cartaz na porta da entrada: "Aluga-se", traduz a mesma necessidade.
Se os acontecimentos de 92-93 demonstram algo, não é, portanto, que a instituição estatal é tão revolucionária como o é a classe que o domina, mas ao contrário que:
Como foi dito no início desse ponto: "assumir uma função revolucionária" e "estabilizar um marco de leis e de relações que respondem aos interesses da nova classe no poder" não quer dizer a mesma coisa. A diferença entre as duas, nas fases revolucionárias, a história resolve com uma relação de forças entre a verdadeira força revolucionária, a verdadeira classe em si e sua expressão jurídica, o Estado.
Até agora temos tratado a natureza conservadora do Estado permanecendo sobre o terreno histórico geral. Voltando para o domínio do período de transição ao comunismo, veremos até que ponto este antagonismo entre revolução e instituição estatal, oculto ou episódico nas revoluções do passado, toma na revolução comunista um caráter muito mais profundo e irreconciliável.
O companheiro E. nos diz:
Deixemos de lado o argumento polêmico que consiste em tratar nossa posição como anarquista: já falamos disso. E vejamos porque o proletariado não pode encontrar em uma instituição conservadora sua "expressão autêntica e total".
Vimos como durante o curso da revolução burguesa há momentos em que, pela tendência conservadora que se expressava nas primeiras formas do seu próprio Estado, a burguesia viu-se obrigada, através das suas frações mais radicais, a tomar uma distância real com respeito a esta instituição e impor sua ditadura "despótica" não só sobre as outras classes da sociedade, como também sobre o Estado que acabava de instaurar.
No entanto, esta oposição entre burguesia e Estado não podia ser mais do que momentânea. A meta das revoluções burguesas, por muito radicais e populares que fossem, não pode jamais ser outra coisa que o reforço e a estabilização de uma ordem social da qual ela é a beneficiária. Por maior que possa ser sua oposição à velha classe dominante, não desestabiliza a sociedade e a instituição estatal senão para estabelecê-la melhor mais tarde, uma vez afirmado o seu poder político em uma nova ordem estável na qual possa sem freios desenvolver sua força de classe exploradora.
Deste modo o furacão revolucionário de 1793 foi sucedido pela submissão da Comuna Insurrecional de Paris ao governo do Comitê de Saúde Pública de Robespierre, mais tarde pela execução do mesmo Robespierre pela "reação de Thermidor" para acabar com o Estado forte de Napoleão, no qual Estado e burguesia voltaram a se encontrar fraternalmente entrelaçados em um desejo absoluto de ordem e estabilidade.
Na verdade, quanto mais se consolida e se desenvolve o sistema da burguesia, mais esta última se reconhece inteiramente no seu Estado, garantia absoluta e conservador de seus privilégios. Quanto mais conservadora se torna a burguesia, mais se identifica com sua polícia e administrador.
Muito diferente acontece com o proletariado. A meta da classe operária no poder não é nem manter a sua existência como classe nem conservar o Estado, produto da divisão da sociedade em classes. Seu objetivo declarado é o desaparecimento das classes e, por conseguinte, do Estado. O período de transição ao comunismo não é um movimento para a estabilização do poder proletário, mas, pelo contrário, para o seu desaparecimento. Disso resulta não que o proletariado não deva firmar sua ditadura sobre o conjunto da sociedade, mas que utiliza esta ditadura para transtornar permanentemente o estado de coisas existente. Esse movimento de transtorno é permanente até o comunismo: toda estabilização da revolução proletária constitui para ela um retrocesso e uma ameaça de morte. A famosa sentença de Saint-just: "os que fazem uma revolução pela metade, cavam sua própria sepultura" se aplica ao proletariado pelo fato da sua natureza de classe explorada, mais que toda classe revolucionária da história.
Contrariamente à idéia de Trotsky que, incapaz de reconhecer no desenvolvimento da burocracia depois de 1917 a força da contrarrevolução, falava de um "Thermidor proletário", não há "Thermidor" para a revolução proletária. Thermidor foi para a burguesia uma necessidade que correspondia à busca de uma estabilização do seu poder. Para o proletariado, toda estabilização constitui não uma meta, um êxito, mas uma debilidade, e a médio prazo, um retrocesso da sua obra revolucionária.
O único momento no qual a estabilização das relações sociais poderia corresponder com os interesses do proletariado, seria na sociedade sem classes, o comunismo. Porém, nesse momento já não haverá nem proletários, nem ditadura do proletariado, nem Estado. É por isso que o proletariado não poderá encontrar jamais nesta instituição, cuja função é a de "amortecer o conflito entre as classes" e estabilizar o estado de coisas existentes, "sua expressão autêntica e total".
Ao contrário do que acontecia para a burguesia, o desenvolvimento da revolução proletária se mede não com o reforço da instituição estatal, mas com a dissolução desta na sociedade civil, a sociedade dos produtores.
No entanto, a atitude do proletariado no curso da sua ditadura em relação ao Estado - não identificação, organização autônoma em relação a ele e o exercício da sua ditadura sobre ele - se distingue da burguesia instalada não só porque para o proletariado a dissolução do aparato estatal é uma necessidade como também - e de outro modo esta necessidade não seria mais que um desejo irrealizável - porque é uma possibilidade.
Dividida pela propriedade privada e pela concorrência, sobre as quais se funda sua dominação econômica, a burguesia não pode engendrar por muito tempo corpos organizados que encarnem seus interesses de classe fora do Estado. O Estado é, para a burguesia, não só o defensor da sua dominação com relação às demais classes, como também o único laço de unificação dos seus interesses. Na divisão de milhares de interesses privados e antagônicos da burguesia, só o Estado constitui uma força capaz de expressar os interesses do conjunto da classe. É por isso que, como não podia evitar em certos momentos, a ação autônoma das suas frações mais radicais contra o Estado - tanto na França como na Inglaterra -, não podia também prolongar muito tempo este estado de coisas, sem correr o risco de perder toda a unidade política e, por conseguinte, toda a força (ver o destino reservado à Comuna Insurrecional de Paris e os seus dirigentes logo após terminarem sua brilhante ação revolucionária).
O proletariado não conhece esta impotência. Como não tem interesses antagônicos no seu seio e como encontra na sua unidade autônoma a principal força da sua ação, o proletariado pode existir unificado e potente sem ter de recorrer a um árbitro armado por cima dele. Sua representação como classe se encontra em si mesmo, nos seus próprios órgãos unitários: os Conselhos Operários.
São esses conselhos os que devem e podem constituir o único e verdadeiro órgão da ditadura do proletariado. É neles e só neles que a classe operária encontra "sua expressão autentica e total"
O companheiro E. faz suas as posições de Lênin em O Estado e a Revolução, baseado, por sua vez, nos escritos e na experiência prática passada do movimento proletário. Mas o faz simplificando ao extremo esta posição, esquecendo o contexto político no qual foi definida e, evidentemente, deixando de lado a experiência mais importante da ditadura do proletariado: a Revolução Russa.
Segundo E., o maior e mais rico momento da história do combate proletário não teria alterado absolutamente em nada as formulações dos revolucionários antes de Outubro. O resultado é uma simplificação grosseira das inevitáveis insuficiências da teoria revolucionária antes de 1917, em um terreno onde a única experiência existente até então tinha sido a da Comuna de Paris.
E. escribe:
É certo que a essência da função do Estado sempre foi a manutenção da opressão das classes exploradas pela classe exploradora. No entanto, quando se trata de transpor esta idéia para a análise do período de transição ao comunismo, esta simplicidade é mais que insuficiente. E isto por duas razões principais:
Em O Estado e a Revolução, Lênin colocou em primeiro plano esta concepção simples do Estado por causa da polêmica que tinha com a social-democracia. Esta última, para justificar sua participação no governo do Estado burguês, pretendia ver no Estado (no Estado burguês em particular) somente um órgão de conciliação entre as classes: disso deduzia que ao participar e ao desenvolver a influência eleitoral dos partidos operários, poderia converter-se em ferramenta do proletariado para o advento do socialismo. Lênin recordou com força que o Estado em uma sociedade dividida em classes tinha sido sempre o Estado da classe dominante, o aparato de manutenção do poder desta última, sua força armada contra as demais classes.
O pensamento de uma classe revolucionária e, com mais razão, a de uma classe revolucionária explorada, não pode desenvolver-se jamais em um ambiente de investigação científica pacífica. Como é a arma de um combate global, só pode expressar-se em oposição violenta à ideologia dominante que trata de demonstrar permanentemente a sua falsidade. É a razão pela qual não se encontrará nunca um texto revolucionário que não tenha, de uma ou outra maneira, a forma de uma crítica ou de uma polêmica. Até mesmo as passagens mais "científicas" do Capital estão redigidas com ânimo de combate crítico contra as teorias econômicas da classe dominante. Por isso, tem que saber, quando se remete aos escritos revolucionários, situá-los permanentemente dentro do combate em que se integram. Se for viva, a polêmica conduz inevitavelmente a polarizar o pensamento sobre aspectos mais importantes da realidade, pois são os mais importantes em tal combate em particular. Porém o que é essencial em uma discussão não o é automaticamente em outra. Repetir de maneira idêntica as fórmulas e as preocupações expressas em textos que tratam de um problema particular para aplicá-las assim como estão, sem voltar a colocá-las dentro do seu contexto, a outros problemas fundamentalmente diferentes, conduz, na maioria das vezes, a cometer aberrações em que o que podia ser uma simplificação necessária em uma polêmica, se transforma, transportada para outro contexto, em um absurdo teórico. Por isso, a exegese é sempre um freio para a teoria revolucionária.
Transportar assim como estão as lições tiradas do combate contra a participação da social-democracia no Estado burguês e seu rechaço da ditadura do proletariado, aos problemas colocados pela relação entre a classe operária e o Estado do período de transição para o comunismo, é um exemplo desse tipo de erro. Erro constantemente cometido tanto por Marx e Engels como por Lênin e todos os revolucionários que forjaram sua união no fogo do combate contra a traição da socialdemocracia durante a Primeira Guerra Mundial. Se este erro era compreensível antes de outubro de 1917, hoje já não é mais.
A experiência da revolução russa pôs em evidência até que ponto a relação entre o proletariado no poder e o Estado é diferente da relação que existia entre o Estado e as classes exploradoras.
Ao exercer sua ditadura, o proletariado se afirma como classe dominante na sociedade. Porém, aqui "dominante" não tem nada a ver com o conteúdo que tinha esse termo nas sociedades do passado. O proletariado é classe dominante politicamente, porém não economicamente. Não só a classe operária não pode explorar nenhuma outra classe da sociedade, mas continua sendo até certo ponto, classe explorada.
Explorar economicamente uma classe é levar uma vantagem do seu trabalho, em detrimento da sua própria satisfação. É amputar de uma classe uma parte do fruto do seu trabalho, privando-a assim da possibilidade de gozar deste. Pois bem, depois da tomada do poder pelo proletariado, a situação econômica da sociedade conhece as duas características seguintes:
Nessas condições, a marcha para o comunismo implica um esforço de produção enorme, de maneira que se permita, por um lado, a maior satisfação possível das necessidades humanas, e por outro lado (e em relação com a primeira necessidade) a integração no processo produtivo (ao seu nível de tecnicidade mais elevados) da imensa massa da população que é improdutiva, seja (nos países desenvolvidos) porque ocupava funções improdutivas sob o capitalismo, seja (e é o caso da grande maioria no terceiro mundo) porque o capitalismo não havia conseguido integrá-las na produção social. Ora, quer seja agir para aumentar a produção de bens de consumo ou para produzir meios de produção que permitam integrar as massas improdutivas (o campesinato indigente do Terceiro Mundo não será integrado à produção socializada com arados de madeira ou de aço mas com os meios industriais mais avançados... que terá de criar), este esforço, portanto, recai essencialmente sobre o proletariado.
Enquanto subsistir a penúria no mundo e enquanto o proletariado continuar sendo uma fração da sociedade (isto é, enquanto sua condição não tenha se estendido a toda população do planeta), o proletariado produzirá um excedente de bens (de consumo e de produção) do qual só será beneficiado a longo prazo. A partir desse ponto de vista, portanto, o proletariado não só não é classe exploradora, como continua sendo classe explorada.
Nas sociedades passadas, o Estado tendia a identificar-se com a classe dominante e a defesa dos seus privilégios na medida em que esta classe era economicamente dominante, ou seja, se beneficiava da manutenção das relações de produção existentes. A tarefa do Estado de manutenção da ordem é, em uma sociedade de exploração, inevitavelmente a manutenção da exploração e, portanto, dos privilégios do explorador.
Entretanto, durante o período de transição ao comunismo, a manutenção das relações econômicas existentes, pode se constituir, em certos aspectos e a curto prazo, um meio para impedir um retrocesso em relação aos passos já dados pelo proletariado (e é nesse aspecto que o Estado é inevitável durante o período de transição), representa ao mesmo tempo a manutenção de uma situação econômica na qual o proletariado suporta o peso da subsistência e do desenvolvimento do conjunto da sociedade. Ao contrário do que acontecia nas sociedades nas quais a classe politicamente dominante era uma classe que se beneficiava diretamente da ordem econômica existente, no curso da ditadura do proletariado, a convergência entre Estado e classe politicamente dominante perde todo fundamento econômico. Além disso, como um órgão que expressa as necessidades de coerência da sociedade e da necessidade de impedir que os antagonismos entre as classes se desenvolvam, o Estado tende inevitavelmente a opor-se, a nível econômico, aos interesses imediatos da classe operária. A experiência russa na qual se viu o Estado exigir do proletariado um esforço de produção sempre maior em nome da necessidade de satisfazer as exigências de troca com os camponeses ou com as potências estrangeiras, pôs em evidência, através da repressão das greves operárias (desde os primeiros meses da revolução), até que ponto esse antagonismo podia ser determinante nas relações entre proletariado e Estado.
É por isso também que o proletariado no poder não pode reconhecer no Estado, como afirmava Bukhárin, "a encarnação material da sua razão coletiva", mas um instrumento da sociedade que não se submeterá ao seu poder "automaticamente" - como era o caso para as classes exploradoras logo após ter assegurado sua dominação política definitivamente - mas que terá ao contrário que submeter sem trégua ao seu controle e a sua ditadura, se não quiser vê-lo voltar-se contra ele, como na Rússia.
Mas, no último argumento do camarada E., é-nos dito que um Estado submetido a uma ditadura que é exterior a ele não pode ter os meios de cumprir seu papel. Esqueceríamos que, se Estado e ditadura de uma classe não são idênticos, não há ditadura real.
É verdade que não pode ter a ditadura de uma classe, qualquer que seja esta, sem que exista na sociedade uma instituição de tipo estatal: por um lado, porque a divisão da sociedade em classes implica a existência de um Estado e, por outro lado, qualquer poder de classe precisa da existência de um aparelho, que expressa, através de um conjunto de leis e meios de constrição, seu poder na sociedade: o Estado. É verdade que um Estado que não dispõe de um poder real não seria um Estado. Mas é errado que a ditadura de classe é idêntica ao Estado e que "um Estado que esteja submetido a uma ditadura que lhe é exterior não faz sentido".
A situação de dualidade de poder (o de uma classe, por um lado, e do Estado, por outro - o primeiro exercendo sobre o segundo) já se produziu - como o temos visto - na história, em particular durante as grandes revoluções burguesas. E, por todas as razões que já vimos, ela se imporá como uma necessidade durante o período da ditadura do proletariado.
O certo é que tal dualidade não pode eternizar-se sem arrastar a sociedade dentro de uma contradição inextrincável na qual consumiria a si mesma. Constitui uma contradição viva que deve inevitavelmente ser resolvida. Mas a maneira como se resolve difere fundamentalmente conforme se trata da revolução burguesa ou da revolução proletária.
No primeiro caso, esta dualidade de poder se resolve rapidamente com uma identificação do poder da classe dominante com o poder do Estado que surge do processo revolucionário, reforçao e investido do poder supremo sobre o conjunto da sociedade, inclusive sobre a classe dominante. No caso da revolução proletária, entretanto, resolve-se na dissolução do Estado e na apropriação de todos os destinos da vida social pela própria sociedade.
Esta é uma oposição fundamental que se traduz por características na relação entre classe dominante e Estado na revolução proletária, diferentes das da revolução burguesa, não só pela forma como também pelo conteúdo.
Para entender melhor essas diferenças, é necessário tratar de apresentar as linhas gerais das formas do poder do proletariado durante o período de transição que podem ser esboçadas a partir da experiência histórica do proletariado. Sem querer empenhar-se em definir os detalhes institucionais de tal período, porque uma das maiores características dos períodos revolucionário é que todas as formas institucionais tendem a apresentarem-se como formas vazias que as forças vivas da sociedade preenchem e transbordam segundo a necessidade dos seus enfrentamentos, embora seja possível destacar os seguintes eixos mais gerais:
Como emanação dessas instituições, ergue-se todo o aparato de Estado com, por um lado, os que se encarregam de manter a ordem: "vigilantes" e exército durante a guerra civil e, por outro, o corpo de funcionários encarregados da administração e da gestão da produção e da distribuição.
Este aparato de guardas e de funcionários poderá ser mais ou menos importante, mais ou menos fundido com a própria população à medida que avança o processo revolucionário, porém seria ilusório ignorar a inevitabilidade da sua existência em uma sociedade que conhece ainda as classes e a penúria.
A ditadura do proletariado sobre o Estado do período de transição é a capacidade da classe operária em manter o armamento e a autonomia dos seus Conselhos em relação ao Estado e em impor a este (aos seus órgãos centrais e a seus funcionários) sua vontade.
A dualidade de poder que resulta tende a se resolver à medida que o conjunto da população seja integrada ao proletariado e seus conselhos e que a abundância se desenvolva, a função dos guardas e outros funcionários desaparecerá, "a administração dos homens irá cedendo lugar a administração das coisas" pelos próprios produtores. O poder do proletariado vai se desenvolvendo no mesmo movimento que a diminuição do poder dos funcionários do Estado e a absorção pelo proletariado do conjunto da humanidade transforma seu poder de classe em ação consciente da comunidade humana.
Contudo, para que este processo seja levado a cabo, é necessário não só que as condições materiais do seu desenvolvimento se encontrem reunidas (em particular a extensão mundial da revolução, o desenvolvimento das forças produtivas), mas também que o proletariado, força motriz essencial desse processo, saiba conservar e desenvolver a autonomia e a força do seu poder sobre o Estado.
Longe de ser um absurdo, esta ditadura dos conselhos operários, à qual está submetido o Estado e que "é exterior a ele", representa, de fato, o próprio movimento de definhamento do Estado.
A Revolução Russa não conheceu as condições materiais de tal desenvolvimento, porém pelas dificuldades enormes com as quais tropeçou, ela colocou em evidência o conteúdo das tendências intrínsecas do aparato estatal, visto que o papel desse último foi se ampliando até seus limites máximos por causa dessas mesmas dificuldades.
Justamente depois de Outubro de 1917, existiam na Rússia tanto os Conselhos Operários, protagonistas de Outubro, como os conselhos de Estado, os Soviets e seu aparato estatal em desenvolvimento. Entretanto, convencidos de que o Estado não podia ser distinto da ditadura do proletariado, os Conselhos Operários se transformaram em instituições estatais integrando-se no aparato do Estado. Com o desenvolvimento do poder da burocracia, provocado pela ausência de todas as condições materiais para o desenvolvimento da revolução, a oposição entre Estado e proletariado não demorou a aparecer à luz do dia. Acreditou-se poder resolver o antagonismo colocando no aparato do Estado, no lugar de funcionários, o maior número de operários mais determinados e mais experimentados, os membros do partido. O resultado não foi uma proletarização do Estado, mas uma burocratização dos revolucionários. Ao final da guerra civil, o desenvolvimento do antagonismo entre a classe operária e o Estado desembocou na repressão pelo Estado das greves de Petrogrado em 1920, em seguida da repressão à insurreição de Kronstadt que reivindicava, dentre outras coisas, medidas contra a burocracia e a revogação dos delegados aos Soviets.
Não se trata de deduzir aqui que se o proletariado tivesse conservado a autonomia dos seus Conselhos em relação ao Estado e soubesse impor sua ditadura ao Estado em vez de ver neste sua "encarnação material", a revolução teria triunfado definitivamente na Rússia.
Não foi a incapacidade de resolver os problemas das suas relações com o Estado o que provocou o fracasso da revolução na Rússia, mas a derrota da revolução nos outros países que a condenou ao isolamento. No entanto, sua experiência com relação a este problema crucial não foi nem inútil nem "um caso particular" sem significado para o conjunto do movimento histórico. A experiência russa foi fundamental para aclarar este problema complexo que permanecia particularmente confuso na teoria revolucionária. Não só trouxe com os Conselhos Operários e a organização soviética uma resposta prática ao problema das formas do poder proletário, como também permitiu resolver o que tinha revelado contraditório na experiência da Comuna de Paris: desde Marx e Engels até Lênin que, por um lado, afirmava que o Estado era a encarnação da ditadura do proletariado e, por outro lado, tirava, da experiência da Comuna de Paris a lição de que o proletariado tinha que tomar precauções contra os "efeitos nocivos" (Engels) desse Estado, submetendo todos seus funcionários ao controle do proletariado: redução dos seus rendimentos ao nível de um operário e revogabilidade a qualquer momento dos funcionários do Estado pelo proletariado. Se o Estado é idêntico a ditadura do proletariado, por que este teria que desconfiar de seus efeitos nocivos? Como poderia ter a ditadura de uma classe efeitos contrários aos seus próprios interesses?
De fato, a necessidade de distinguir claramente entre ditadura do proletariado e Estado, como também poder ditatorial da primeira sobre o segundo, encontra-se já em germe (se não como intuição pelo menos como necessidade teórica) nos textos dos revolucionários antes de 1917. Como, por exemplo, em O Estado e a Revolução, Lênin chega a falar de uma distinção entre algo que seria "o Estado de funcionários" e outra coisa que seria "o Estado dos operários armados": "Enquanto não se tenha chegado a fase "superior" do Comunismo, os socialistas exigem que a sociedade e o Estado exerçam o mais rigoroso controle sobre a medida do trabalho e a medida do consumo; porém este controle, tem de começar pela apropriação dos capitalistas, e deve ser exercido não pelo Estado de funcionários, mas pelo Estado de operários armados" (Tradução nossa; O sublinhado é nosso)E em outra passagem da mesma obra, na qual Lênin compara a economia do período de transição e a organização dos correios no capitalismo, afirma a necessidade de que o órgão de funcionários seja controlado pelo de operários armados: "Toda a economia nacional organizada como Correios, de maneira que os técnicos, os vigilantes, os contadores recebam, como todos os demais funcionários, um salário que não exceda os "salários dos operários", sob o controle e a direção do proletariado armado: esta é nossa meta imediata." (Tradução nossa; O sublinhado é nosso).
A Revolução Russa mostra tragicamente até que ponto o que parecia uma contradição teórica no pensamento revolucionário expressava na realidade uma contradição real entre a ditadura do proletariado e o Estado do período de transição; fez aparecer à luz do dia até que ponto "o controle e a direção do proletariado armado" sobre o Estado é uma condição sine qua non da ditadura do proletariado.
O companheiro E. acredita, sem dúvida, que se mantém fiel ao esforço teórico do proletariado tal e como se concretiza antes de Outubro de 1917 e, em particular em O Estado e a Revolução de Lênin, a quem defende de maneira intransigente. Mas é trair o espírito desse esforço defender uma posição que quase por princípio se nega a colocar em julgamento as lições teóricas à luz da experiência mais importante da ditadura do proletariado.. Para concluir, não podemos mais do que recordar o que Lênin escrevia precisamente em O Estado e a Revolução acerca do que deve ser a atitude dos revolucionários neste terreno:
R. V.
[1] E ainda: o Estado francês conhecerá os fortes abalos contra a Restauração que seguiu o Império de Napoleon e aqueles de 1848.
A Revista Internacional da CCI já abordou várias vezes a questão do período de transição do capitalismo ao comunismo. Tem publicado mais de dez textos nos quais se evoca particularmente o problema colocado pelas relações entre a ditadura do proletariado e o Estado durante o período de transição. A idéia de uma não identidade entre essas duas noções, tal como aparece nos textos seguintes: "Problemas do período de transição" e "A Revolução Proletária" (nº1), "O Período de Transição" e "Contribuição ao Estudo da questão do Estado" (nº6), "Apresentação dos projetos de Resolução do 2º Congresso da CCI de RI" e "A Esquerda Comunista na Rússia" (nº8), "As confusões políticas da CWO" (nº10), "Projeto de Resolução sobre o Período de Transição do 2º Congresso da CCI" e "Estado e Ditadura do Proletariado" (nº11), idéia que tem sido constantemente considerada como escandalosa e "absolutamente alheia ao marxismo" por uma quantidade de elementos revolucionários que em seguida nos apresentam a célebre citação de Marx, extraída da sua Crítica do Programa de Gotha, segundo a qual, durante o Período de Transição, "o Estado não pode ser outra coisa que a ditadura revolucionária do proletariado".
O texto que publicamos aqui é uma contribuição a mais sobre este tema. Propõe-se particularmente estabelecer que a não identidade entre Estado e Ditadura do proletariado não é nada "anti-marxista" mas pelo contrário, para além da refutação de certas fórmulas de Marx e Engels, inscreve-se perfeitamente dentro do método marxista.
No centro da teoria do Estado de Marx, encontra-se a noção da extinção do Estado.
Na sua crítica da filosofia do Estado de Hegel, com a qual começa sua vida de pensador e de militante revolucionário, Marx combate não só o idealismo de Hegel segundo o qual o ponto de partida de todo o movimento seria a idéia (convertendo sempre "a idéia em sujeito e o sujeito real propriamente dito em predicado") [1]; denuncia também veementemente as conclusões dessa filosofia, que faz do Estado um mediador entre o homem social e o homem universal político, o conciliador da divisão entre o homem privado e o homem universal. Ao constatar a oposição crescentemente conflituosa entre a sociedade civil e o Estado, Hegel quer que a solução dessa contradição se encontre na autolimitação da sociedade civil e na sua integração voluntária no Estado, posto que, segundo ele, "é somente no Estado que o homem tem uma existência conforme a razão" [2] e "tudo o que é o homem se deve ao Estado, e é nele onde reside seu ser. Todo seu valor, toda sua realidade espiritual, é devida ao Estado" [3] A essa delirante valorização do Estado que faz de Hegel seu maior apologista, Marx opõe: "somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas "forces propres" como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana" [4], ou seja, do Estado.
Na obra de elaboração política e teórica de Marx se encontrará presente desde o princípio a finalidade, ou seja, a tomada de posição frontal e contra o Estado, produto, manifestação e fator ativo da alienação da humanidade. Ao fortalecimento do Estado e a absorção por este da sociedade civil de Hegel, Marx opõe resolutamente a extinção do Estado como sinônimo da marcha para a emancipação da humanidade, e essa noção fundamental será desenvolvida e enriquecida ao longo da sua vida e da sua obra.
Essa oposição radical ao Estado e o anúncio da sua extinção possível e inevitável não são produto do gênio pessoal de Marx, embora seja nele que essas idéias encontram uma análise rigorosa e uma demonstração coerente. Foram na realidade da época que essas problemáticas se apresentaram e é nessa mesma realidade que os primeiros germes da resposta começam a aparecer com o nascimento e a luta de uma nova classe histórica: o proletariado. Por maiores que tenham sido sua contribuição e o seu mérito, Marx não fazia nada além de tornar teoricamente compreensível o movimento do proletariado que estava se desenvolvendo na realidade.
Ao mesmo tempo que combatia o idealismo e a apologia do Estado de Hegel, Marx rechaçava igualmente todas as teorias "racionalistas" que tratavam de fundar o Estado sobre a "razão crítica" ou aquelas que de Stirner a Bakunin, condenavam-no em nome de um princípio moral.
Produto histórico do desenvolvimento das forças produtivas e da divisão do trabalho - que fazem explodir a antiga sociedade comunista primitiva -, a nova sociedade, que se funda sobre a propriedade privada e sua divisão em classes antagônicas, faz surgir necessariamente essa instituição superestrutural que é o Estado.
Manifestação de uma situação histórica na qual a sociedade entrou em um estado de contradições e de antagonismos irredutíveis [5], o Estado é ao mesmo tempo a instituição indispensável para manter certa coesão, uma ordem social, para impedir que a sociedade se destruía completamente em lutas estéreis e para impor pela força às classes exploradas à submissão a dita ordem. Essa ordem é a dominação econômica de uma classe exploradora na sociedade cujo guardião é o Estado, e é através dele que a classe exploradora, economicamente dominante, chega à dominação política da sociedade. O Estado é, portanto, sempre a emanação das classes exploradoras e, em regra geral, da classe econômica e imediatamente predominante; é dessa classe que o Estado é originário e da qual uma fração se especializa na função estatal.
Do que acabamos de dizer depreende-se que a função fundamental do Estado é a de ser guardião da ordem econômica estabelecida.
Quando surgem novas classes exploradoras que representam as novas forças produtivas que vão se desenvolvendo no seio da sociedade até chegar ao ponto de entrar em contradição com as relações de produção existentes e exigir que essas mudem totalmente, é o Estado que elas enfrentam, o Estado que representa a última fortaleza de proteção da velha sociedade. A dinâmica revolucionária encontra-se sempre na sociedade civil, nas novas classes que surgiram, porém nunca no Estado como tal. É, portanto, principalmente um instrumento de conservação social. Dizer que o Estado é às vezes conservador e outras vezes revolucionário segundo a situação da classe que o domina, colocar em um mesmo nível esses dois momentos, dizer que são paralelos, é escamotear o problema do que constitui o caráter fundamental do Estado, sua função essencial. Mesmo quando a classe revolucionária conquista pela força o Estado, e, ao reconstruí-lo, o adapta às suas necessidades e interesses, isto não altera a natureza essencialmente conservadora do Estado, nem lhe dá uma nova natureza revolucionária. E isto, por duas razões:
Alguns, ao referir-se a tal ou qual ato ou acontecimento esporádico, geralmente advindo durante momentos de crises sociais e de revoluções, acreditam poder afirmar que o Estado goza de uma natureza dupla: conservadora e revolucionária simultaneamente. Assim foram citados como exemplo os atos da Convenção e do Terror dirigidos contra a aristocracia feudal, a guerra interna e externa durante os anos da Revolução Francesa, o apoio que deu em certos momentos a monarquia à burguesia na França e também a política de Pedro o Grande, na Rússia, etc. A essas objeções, podemos opor várias observações:
I. "As exceções confirmam a regra".
II. Não se pode ver e compreender o curso da história e suas leis fundamentais referindo-se a acontecimentos isolados da mesma maneira que não se pode medir as distâncias entre as galáxias com um centímetro.
III. Não é nosso objetivo estudar e dar uma explicação detalhada de cada acontecimento um por um (isso seria fenomenologia), mas explicar como se encandeiam globalmente, destacar as leis e o sentido geral de tais acontecimentos.
IV. O que estudamos aqui é o Estado na história e não a história do Estado. Não estudamos cada momento, cada dia da sua própria existência que corresponde a uma era histórica bem determinada e limitada: a era da sociedade dividida em classes. Durante toda essa era histórica, o Estado tem como função fundamental manter a ordem social existente. Manter, entreter, guardar, são todas expressões que significam dizer conservar em oposição a criar. É o sentido passivo oposto ao sentido ativo; o estático oposto ao dinâmico.
V. Contra quem o Estado tem que defender a ordem existente? Quem, que forças ameaçam a ordem social? [6] Resposta possível: as antigas classes dominantes.
Essas antigas classes foram derrotadas e vencidas antes de tudo no terreno econômico. A revolução não faz mais que consagrar e não determinar sua queda. É por isso que os marxistas podiam falar das revoluções políticas dessa era, como "revoluções palacianas" visto que a verdadeira transformação já havia se operado nas entranhas da sociedade, na sua realidade profunda e na sua estrutura econômica.
Outra constatação importante: não é nunca a partir do Estado existente que se desencadeia o movimento da revolução; embora seja política, a revolução parte da sociedade civil contra o Estado. E isso porque não é o Estado que revoluciona a sociedade, mas a sociedade revolucionada quem modifica e adapta o Estado.
O novo Estado que surge depois do acontecimento que é a revolução, pode dedicar-se a atos espetaculares contra os membros da antiga classe dominante, porém esses atos não chegam nunca muito adiante, nem duram muito tempo. A antiga classe dominante continua subsistindo e seus membros continuam ocupando, durante muito tempo, um lugar importante no aparato do Estado e, frequentemente, um lugar preponderante. Isto prova que a antiga classe dominante não representa essa ameaça pretendidamente decisiva e contra a qual se operaria o fortalecimento do novo Estado - que o converteria em revolucionário. Isso é uma superestimação enorme, amplamente desmentida pela história.
A ameaça fundamental da ordem existente não vem das classes derrotadas mas das classes oprimidas e das novas classes históricas ascendentes. São elas que (as primeiras de maneira constante, as segundas potencialmente) representam essa ameaça mortal contra a qual a ordem existente necessita do Estado, essa força concentrada de coerção e de repressão para sua defesa.
O Estado não é tanto uma barreira contra o passado quanto contra o futuro. Isso é o que converte sua defesa do presente (conservadorismo) em algo mais próximo do passado (reacionário) que do futuro (revolucionário) Nesse sentido, pode-se dizer que se as classes são as representantes das forças produtivas em desenvolvimento, o Estado, por sua parte, é o defensor das relações de produção. A dinâmica histórica vem sempre das primeiras, as travas, das segundas.
VI. Enquanto aos exemplos do papel supostamente progressivo - e até "revolucionário"- da monarquia francesa, ou o de Pedro, o Grande, na Rússia etc. , é evidente que o Estado se vê obrigado a efetuar atos progressistas, não porque isto seja inerente a sua natureza progressista, mas apesar da sua natureza conservadora, sob a pressão das novas forças progressistas, porque não pode ignorar completamente as pressões que vêem da sociedade civil.
Foi um fato que a supressão da vassalagem e o desenvolvimento da industrialização capitalista na Rússia fizeram-se sob o regime dos czares, assim como a industrialização na Alemanha sob o dos Junkers da Prússia, e na França sob o bonapartismo. Isso não converte esses regimes e Estados em forças revolucionárias; os dois últimos -o da Alemanha e o da França- provinham diretamente da contrarrevolução de 1848-52.
VII. Com relação ao argumento sobre a dupla natureza do Estado - contrarrevolucionária e revolucionário simultaneamente - não apresenta mais seriedade do que aquele avançado para defender os sindicatos: teriam ao lado da sua natureza burguesa, também uma natureza operária pelo fato de que em tal ou qual ocasião adotam a defesa de tal ou qual operário. Com esse raciocínio, poderia se falar também da dupla natureza dos policiais considerando que, de vez em quando salvam alguém que está na iminência de se afogar. Tem que se acreditar que cada vez que se trate de raciocinar e que não se sabe raciocinar, recorre-se naturalmente ao argumento da "dupla natureza".
Essas tantas observações não acrescentam nada de substancial, mas se impõem para demonstrar a futilidade das objeções e fazem quem sabe um pouco mais preciso nosso pensamento sobre a natureza e a função conservadora do Estado.
É importante aqui ter cuidado em não se comprazer na confusão e no ecletismo: "o Estado é tão conservador como revolucionário". isso pode conduzir a inverter os elementos e abrir a porta que conduz diretamente ao erro de Hegel que faz do Estado o sujeito do movimento da sociedade.
A tese da natureza conservadora do Estado e antes de tudo da sua própria conservação, relaciona-se dialética e estreitamente com a outra tese que lhe é oposta, a que diz que a emancipação da humanidade se identifica com a extensão do Estado. Uma esclarece a outra. Se escamotearmos ou se deixarmos em um segundo plano a primeira tese, ofusca-se e escamoteia-se igualmente a teoria e a realização da necessária extinção do Estado.
A não compreensão da noção da natureza conservadora do Estado tem como corolário inevitavelmente a não insistência na noção marxista fundamental da extinção do Estado. As implicações não poderão deixar de ser ainda mais perigosas.
O que é, no entanto mais importante e que nos interessa aqui em primeiro lugar é o de fazer ressaltar que o Estado - tanto o novo quanto o antigo - não é nem pode chegar a ser por definição o portador do movimento de extinção do Estado. Pois bem, vimos que a teoria do Estado de Marx identifica o movimento de extinção do Estado com o da emancipação da humanidade e, considerando que o Estado não é portador da sua própria extinção, disso deriva que, pela natureza mesma, o Estado não pode nunca ser o motor nem tampouco o instrumento da emancipação humana.
A teoria do Estado de Marx coloca também em evidência a tendência inerente do Estado e "da fração da classe dominante que agrupa e que se constitui em corpo separado, de "libertar-se" da sociedade civil, de separar-se dela e de alçar-se por cima da sociedade" (Engels). Embora nunca consiga realizar-se completamente e embora continue sempre defendendo os interesses gerais da classe dominante, essa tendência é sem dúvida uma realidade e abre o caminho para novas contradições, antagonismos e alienações que Hegel já havia percebido e destacado e que Marx afirma igualmente: sobretudo, a oposição crescente entre o Estado e a sociedade civil com todas as suas implicações. Esta tendência explica cada vez mais as múltiplas perturbações sociais, as convulsões na própria classe dominante, as diferentes variedades de forma do Estado que existem em uma mesma sociedade e suas relações particulares com o conjunto da sociedade. Esta tendência a tornar-se independente da sociedade faz da autoconservação uma preocupação maior do Estado e reforça ainda mais sua natureza conservadora.
Com o desenvolvimento, através da sucessão de sociedades, da divisão da sociedade em classes, reforça-se e desenvolve-se o Estado cujos tentáculos vão abraçando todas as esferas da vida social. Sua massa numérica cresce proporcionalmente. A manutenção dessa enorme massa parasitária se faz extraindo uma parte cada vez maior da produção social. Através de impostos diretos e indiretos - arrecadados não somente dos ingressos das massas trabalhadoras, mas também dos lucros dos capitalistas - o Estado entra em conflito de interesses até com sua própria classe, que exige que o Estado seja forte... porém também barato. Para os homens do aparato do Estado, essa hostilidade exterior e seus próprios interesses , provocam um reflexo de defesa e solidariedade, um espírito de corpo que os une em uma verdadeira casta separada.
De todos os campos de atividade do Estado, a coerção e a opressão pertencem especificamente a ele. Dispõe para isso, de maneira exclusiva, das forças armadas. A coerção e a opressão são a razão de ser do Estado, de seu próprio ser. É um produto específico dessas e as reproduz sem cessar, ampliando-nas e aperfeiçoando-nas. A cumplicidade nos massacres e no terror constitui assim o cimento mais forte da sua unidade.
Com o capitalismo chegou-se ao ponto culminante de toda longa história das sociedades divididas em classes. Se esse longo período histórico, impregnado de sangue e sofrimentos foi o tributo inevitável que a humanidade teve que pagar para desenvolver suas forças produtivas, essas últimas já alcançaram hoje um desenvolvimento tal que este tipo de sociedade ficou caduco; a própria sobrevivência da sociedade dividida em classes se converteu na maior trava ao desenvolvimento das forças produtivas e chega a colocar em perigo a existência da própria humanidade.
Com o capitalismo, a exploração e a opressão alcançaram o paroxismo porque o capitalismo é o resumo condensado de todas as sociedades de exploração do homem pelo homem que tem se sucedido. O Estado, no capitalismo, concluiu seu destino ao converter-se nesse monstro horroroso e sangrento que conhecemos hoje. Com o Capitalismo de Estado, realizou a absorção da sociedade civil, converteu-se no gerente da economia, o patrão da produção, o amo absoluto e indiscutível de todos os membros da sociedade, da sua vida e de suas atividades, desencadeando terror, semeando a morte e dirigindo a barbárie generalizada.
A Revolução Proletária difere radicalmente de todas as revoluções anteriores na história. Se todas as revoluções tiveram em comum que foram determinadas e que exprimiram a rebelião das forças produtivas contra as relações de produção da ordem existente, aquelas que fundamentam a revolução proletária expressam não só a necessidade de um desenvolvimento quantitativo como colocam a necessidade de uma mudança qualitativa fundamental do curso na história. Todas as antigas modificações que intervieram no desenvolvimento das forças produtivas ficam contidas na era histórica da penúria, que exige a inevitável exploração da força de trabalho. As mudanças que essas modificações operam não conduzem para uma diminuição da exploração, mas, ao contrário, para um aumento da exploração, para uma exploração mais racional, mais eficaz das massas, cada vez mais numerosas, da população. Acarretam uma expropriação maior dessas com relação aos instrumentos de trabalho e do produto do seu trabalho.
No movimento dialético da história humana, essas modificações pertencem todas a um único e mesmo período: o da negação da comunidade humana, o da antítese. Essa unidade fundamental faz com que as diferentes sociedades que se sucederam nessa era aparecem - por diferentes que sejam - como uma progressão na continuidade. Sem essa continuidade, não se pode compreender nem explicar acontecimentos tão contraditórios como incompreensíveis à primeira vista, tais como:
Assim se explica que as revoluções nesta era aparecem como uma simples transmissão da máquina do Estado de uma classe exploradora a outra classe exploradora e que, muito freqüentemente, as transformações sociais se fizeram sem revolução política.
A questão é muito diferente com a revolução proletária. Com efeito, a revolução proletária não se situa em continuidade com as soluções aos problemas colocados pela penúria, mas com o fim da penúria das forças produtivas; o problema que se coloca não é "como explorar mais eficazmente?", mas "como suprimir a exploração?". Não é "como assumir o fortalecimento da opressão?", mas "como destruí-la para sempre?". Não é a continuidade da negação, mas a negação da negação e a restauração da comunidade humana a um nível mais elevado. A revolução proletária não pode reproduzir as características das revoluções anteriores como as que acabamos de mencionar porque se situa em ruptura total, em oposição radical com elas e isso tanto no seu conteúdo como nas suas formas e meios.
Uma das características fundamentais da revolução proletária é - em oposição às revoluções anteriores e levando em conta o grau alcançado pelo desenvolvimento das forças produtivas - que as transformações necessárias não poderão realizar-se com muita defasagem temporal entre os diferentes países; exigem, como teatro de operações, o mundo inteiro. A revolução proletária é internacional ou não é; Uma vez que tenha começado em um país tem que estender a todos os países ou sucumbirá mais ou menos a curto prazo. As outras revoluções eram a obra de classes minoritárias e exploradoras contra a maioria das classes trabalhadoras; a revolução proletária é a da imensa maioria dos explorados contra uma minoria. Ao ser a emancipação da imensa maioria para o interesse da imensa maioria, não pode realizar-se sem a participação ativa e constante da imensa maioria. Não pode de nenhuma maneira tomar as revoluções passadas como modelo, visto que, desde qualquer ponto de vista, é seu oposto.
A revolução proletária está chamada a transformar de cima abaixo todas as estruturas, todas as relações existentes começando com a destruição total das superestruturas do Estado. Contrariamente às revoluções anteriores que não fazem mais que arrematar a dominação econômica da nova classe, a revolução do proletariado - uma classe que não tem nenhum sustentáculo econômico - é o primeiro ato político que abre e assume, pela violência revolucionária, o processo da transformação total da sociedade.
Como está colocado em evidência em O Manifesto Comunista, a burguesia não só criou as condições materiais da revolução, como engendrou a classe que será seu coveiro, o sujeito da revolução: o proletariado. O proletariado é o portador dessa revolução radical porque constitui "uma classe com raízes radicais", uma classe que é "a negação da sociedade", que segundo os termos de Marx, encarna todos os sofrimentos da sociedade, classe que não foi afetada de modo particular, mas em "si mesma" como tal, uma classe que não tem nada a perder salvo suas cadeias e que não pode emancipar sem emancipar toda humanidade. É a classe produtiva e do trabalho associado por excelência. É por isso que o proletariado é a única classe portadora da solução das contradições insuperáveis e insuportáveis das sociedades divididas em classes. A solução de que é portador o proletariado é o comunismo. A profundidade dessa transformação histórica e a impossibilidade de toda medida que vá nessa direção dentro do capitalismo, que fazem da revolução sua condição primeira, tornam igualmente indispensáveis a substituição da dominação da classe capitalista pela do proletariado para assumir a marcha para o comunismo. A ditadura está incontestavelmente ligada ao fato da dominação, mas é muito mais que isso. "A ditadura -escreve Lênin- significa um poder ilimitado que se apóia não na lei, mas na força" [7]. A idéia da força relacionada à ditadura não é nova; o que nos parece aqui interessante é a primeira parte dessa frase que contém a idéia de um poder "ilimitado". Lênin insistirá bastante "... esse poder não reconhece nenhum outro poder, nenhuma lei, nenhuma norma, venha de onde vier" [8]. Particularmente interessante é esta outra passagem onde faz ressaltar a idéia da ditadura do proletariado, em um sentido mais amplo que a mera força; "esta pergunta é habitualmente colocada por aqueles que encontram pela primeira vez a palavra ditadura em uma acepção nova para eles. As pessoas estão acostumadas a ver somente o poder policial e a ditadura policial. Parece-lhes estranho que possa existir uma ditadura que não seja policial" [9]. É o poder dos sovietes tão exaltado por Lênin e que criou "...novos órgãos de poder revolucionário; sovietes de operários, de soldados, de ferroviários, de camponeses; novas autoridades nas cidades e no campo, " e que não se apoiavam nem na "força das baionetas" nem na do "comissariado da polícia" e não tinha nada a ver como os velhos instrumentos de força" [10]. Não se baseava essa ditadura na força e na coerção? Claro que sim, porém o importante é saber distinguir sua nova qualidade. Embora a ditadura das antigas classes se dirigia essencialmente contra o futuro, contra a emancipação humana, a ditadura do proletariado é "a do povo no que diz respeito à opressão que exercem os órgãos policiais e de todo tipo do antigo poder". É por isso que pode e deve apoiar-se sobre outra coisa que a mera força:
Temos aqui, não a descrição da sociedade comunista, na qual já não existe mais nenhum problema de poder, sim do período revolucionário onde a questão do poder ocupa um lugar central. É desse poder da ditadura do proletariado do que se trata. Encontramos aqui, na pena de Lênin, o que é e o que deve ser a ditadura do proletariado e voltamos a encontrar a própria essência da noção marxista da extinção do Estado. É nesse sentido que Engels podia escrever: "Querem saber, senhores, o que é a ditadura do proletariado? Vejam a comuna".
A ditadura do proletariado é o poder ilimitado da classe para exercer livre e plenamente suas atividades criativas, é tomar a responsabilidade "sem intermediário" seu destino e o de toda sociedade, arrastando atrás de si as outras classes e camadas trabalhadoras. Esse poder, o proletariado não pode delegar a nenhuma formação particular sem se autosabotar, sem renunciar a sua emancipação porque "a emancipação do proletariado só poderá ser obra do próprio proletariado".
A classe capitalista assim como as outras classes exploradoras na história, unidas pela exploração, se dividem em frações hostis umas as outras, com interesses divergentes, e não podem encontrar sua unidade senão no comando de uma fração particular, a que assume a função do Estado. O proletariado não conhece no seu seio interesses divergentes e hostis. Sua unidade é encontrada na sua meta: o comunismo e na sua organização unitária de classe: os conselhos operários. É de si mesmo e em si mesmo onde obtém sua unidade e sua força. Sua consciência lhe é ditada pela sua existência. Não há nenhuma mediação entre o seu ser e sua consciência. O processo de tomada de consciência se manifesta com o aparecimento no seu seio, de correntes de pensamentos e organizações políticas. Essas podem ser às vezes portadoras de ideologias de classes alheias a ele ou ao contrário manifestações importantes e fundamentais de uma verdadeira tomada de consciência dos seus interesses históricos. O Partido Comunista representa, é certo, a fração mais consciente da classe, porém não pode nunca pretender ser a própria classe, nem substituí-la no cumprimento das suas tarefas históricas. Nenhum partido, nenhum Partido Comunista, pode reclamar algum "direito" de direção, nem algum poder particular de decisão na classe. O poder de decisão é atributo exclusivo da organização unitária da classe e dos seus órgãos eleitos e revogáveis, um poder que não se pode nunca alienar a nenhum outro organismo, sem correr o risco de alterar gravemente o funcionamento da organização da classe e o cumprimento das suas tarefas. É por isso que é inconcebível que os órgãos de direção sejam confiados, ainda que sejam por voto, a tal ou qual grupo particular. Isso será reproduzir no seio do proletariado o modo de funcionamento e da própria prática das classes não proletária.
Todas as formações políticas que se situam dentro do marco do reconhecimento da autonomia da classe com relação às demais classes e seu poder ilimitado a hegemonia na sociedade, devem ter plena liberdade de ação e de propaganda dentro da classe e da sociedade, porque "uma das condições da tomada de consciência da classe e a livre circulação é confrontação de idéias no seu seio" (Marx).
Para alguns essa concepção da ditadura do proletariado contém ares de "democratismo". Da mesma maneira que adotam a revolução burguesa como modelo da revolução proletária, adotam a ditadura da burguesia como modelo da ditadura do proletariado. Porque a ditadura da burguesia é o Estado e nada mais que o Estado, acreditam que o Estado que surge inevitavelmente durante o Período de Transição, depois da vitória da revolução proletária, é a ditadura do proletariado, e não fazem nenhuma distinção entre uma e outra. Sua atenção não se detém nunca sobre o simples fato seguinte: enquanto a burguesia não tem outra organização unitária da sua classe além do Estado, o proletariado, por sua vez, cria essa organização unitária que congrega o conjunto da sua classe: os conselhos, para fazer sua revolução e para mantê-la depois, sem dissolvê-la no Estado. O poder ilimitado desses conselhos, ou seja, a ditadura do proletariado que se exerce sobre toda a vida da sociedade; inclusive sobre o semi-Estado do período de transição. Não entendem absolutamente nada à noção marxista de semi-Estado ou Estado-Comuna e, da ditadura do proletariado, só levam em conta a palavra genérica "ditadura", que identificam com um Estado forte, com o Estado-terrorista. Por outro lado, identificam a ditadura da classe com a ditadura do Partido, ao ser esse último quem dita sua lei, pela força, à classe. Essa visão pode ser resumida assim: um partido único se apodera do Estado, exerce o terror para submeter a organização unitária do proletariado, os conselhos e todo o sistema soviético da sociedade do período de transição. Esse tipo de ditadura do proletariado se parece como duas gotas d'água ao tipo perfeito de Estado capitalista totalitário: o Estado stalinista e o Estado fascista.
Os supostos argumentos sobre o rechaço de toda referência a maioria-minoria, convertidos em uma questão ridícula de 49% e 51%, são puro malabarismos sofistas, fraseologia oca, um radicalismo de exibição que esconde o verdadeiro problema. O problema não é que a maioria tenha obrigatoriamente razão por conta de ser maioria, mas compreender que a revolução proletária não pode ser a obra de uma minoria da classe. Isto não é uma questão de formalismo, mas da essência, do próprio conteúdo da revolução, isto é, que a classe "organiza suas próprias forças como força social" (Marx) e já não as separa como força exterior, independente dela. Levar a cabo a revolução é, portanto, inseparável da participação efetiva e ilimitada das imensas massas da classe, da sua atividade e organização. É nisso que consiste antes de tudo a ditadura do proletariado. Isso não tem, portanto, nada a ver com o fortalecimento de um Estado onipotente, mas com sua debilitação, um Estado amputado desde o seu nascimento pela vontade e o poder ilimitado do proletariado.
A ditadura do proletariado é correlativa com o conceito da extinção do Estado, tal e qual o marxismo, de Marx a Lênin no Estado e a Revolução o defenderam sempre. Não é o Estado que faz e exerce a ditadura, mas é a ditadura do proletariado quem suporta a existência ainda inevitável de um semi-Estado e se encarrega do processo da sua extinção.
A diferença entre os marxistas e os anarquistas não reside em que os primeiros conceberiam um socialismo com um Estado e os segundos uma sociedade sem Estado. Sobre esse ponto, existe um acordo total. É mais com os pseudo-marxistas da social-democracia, herdeiros de Lassalle, que conjugavam o socialismo com o Estado, com os quais existe essa diferença, e é fundamental (cf. A crítica do Programa de Gotha" de Marx e O Estado e a Revolução" de Lênin. O debate com os anarquistas era sobre seu não reconhecimento de um período de transição inevitável e sobre o fato de que, como bons ideólogos, ditavam à história um salto imediato e direto, do capitalismo à sociedade comunista [12].
É absolutamente impossível abordar o problema do Estado depois da revolução se não tiver compreendido antes que entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista está situado o período de transformação revolucionária da primeira para a segunda [13], se não tiver compreendido porque esse período está situado não antes, mas depois da revolução vitoriosa, nem no que consiste seu caráter radical com relação aos períodos análogos no passado, nem ao fato que depois de ter destruído a dominação da classe capitalista, subsistem na sociedade classes com imensas massas trabalhadoras que são profundamente anticapitalistas sem ser por isso pró-comunistas e que é impossível mantê-las apartadas da vida política e da participação ativa na organização da sociedade.
É só partindo desses dados objetivos das exigências da realidade histórica e não partindo do Estado em si, que pode se compreender:
Examinemos esses pontos mais de perto:
I. Seu surgimento inevitável
a) Mais que em outras revoluções, o proletariado terá que lutar contra a resistência mais feroz e rebelde por parte da classe capitalista vencida. Tem que se sublinhar que para o ato da revolução, isto é, desalojar a classe capitalista da sua posição dominante e destruir o aparato de Estado, o proletariado não o alcança apoiando-se estritamente sobre seu poder de classe, quer dizer suas organizações, sem necessidade de nenhum tipo de Estado. A força ardente da revolução desmoraliza e desorganiza o exército permanente composto na sua maioria de operários e camponeses, dos quais uma grande parte passa para o lado da revolução. Porém uma vez vencida, a burguesia na sua cólera desenfreada de revanche, centuplica sua resistência, reagrupa suas forças, reconstitui um exército selecionado de voluntários raivosos e de mercenários e, no seu terror, desata uma guerra contrarrevolucionária sem piedade. Diante de tal tipo de guerra campal, conduzida segundo as leis da arte militar, o proletariado não pode contentar-se em opor suas massas em armas; vê-se obrigado a construir um exército regular, com a incorporação não só dos operários, mas do conjunto da população. Guerra, represálias, coerção sistemática contra as maquinações da contrarrevolução, essas são as primeiras determinações do surgimento da instituição estatal.
Por mais importantes que sejam as razões da luta militar e as necessidade da coerção contra os manejos contrarrevolucionários da classe capitalista, embora cheguem a ocupar durante a guerra civil um lugar de primeira ordem, seria, no entanto, um erro simplista acreditar que são essas as razões essenciais, menos ainda a razão única, do surgimento do Estado. O simples fato de que o Estado se mantenha e dure muito depois da guerra civil é uma prova suficiente.
No mesmo sentido, é importante recordar a diferença que existe entre os outros Estados do passado, para os quais a coerção estava essencialmente dirigida contra as classes ascendentes -e, portanto, duradouras- enquanto elas se arranjassem com as antigas classes dominantes, e o Estado do período de transição para o qual é exatamente o contrário, nenhuma coerção se impõe contra classes ascendentes que não existem, mas unicamente contra as antigas classes com as quais não pode haver nenhuma colaboração.
b) A sociedade no período de transição é ainda uma sociedade dividida em classes. O marxismo e a história ensinam que nenhuma sociedade dividida em classes pode subsistir sem um Estado, não como mediador, mas como instituição indispensável para manter a coesão necessária, para impedir que a sociedade sucumba e se destrua.
Além do mais, é indispensável e possível que o proletariado retire todo poder político dos membros da velha classe - classe muito minoritária; seria um disparate e do mais prejudicial - e, de todas maneiras, impossível-, excluir as grandes massas das classes não proletárias, porém não exploradoras, da vida política e social. Todos os problemas econômicos, políticos, culturais, da vida imediata da sociedade interessam e concernem essas massas. O proletariado não pode, nas suas transformações revolucionárias, ignorar sua existência nem exercer sobre elas uma coerção sistemática. Com relação a essas massas, o proletariado não pode ter mais que uma política de reformas, de propaganda e de incorporação à vida social, sem por isso dissolver a si mesmo nem abdicar diante de sua missão e com relação a sua hegemonia que é a ditadura do proletariado.
Essa incorporação necessária dessas massas adquire a forma de uma instituição particular que é o Estado-comuna e que ainda é um Estado. É essencialmente a existência dessas classes, sua lenta dissolução e a necessidade imperiosa de incorporá-las o que torna inevitável o surgimento do Estado no período de transição ao socialismo.
c) Tem que se acrescentar às duas razões mencionadas acima as necessidades de centralização e de organização da produção, da distribuição, das relações com o mundo exterior, etc, em resumo, toda a administração das coisas e da vida pública, completamente transtornada pela revolução e que a sociedade não aprendeu nem é capaz ainda de separar do governo dos homens.
Essas três razões se conjugam para atuar com força como fatores determinantes para o ressurgimento do Estado depois da revolução
II. A diferença fundamental desse Estado com os demais tipos de Estado
Engels escrevia, ao analisar a Comuna de Paris, que não era propriamente um Estado. Desejando por em evidência as diferenças profundas com o Estado clássico, Marx, Engels, Lênin, atribuíram nomes diferentes: Estado-Comuna, semi-Estado, Estado popular, ditadura democrática, ditadura revolucionária, etc. Todos esses nomes se referem, e destacam, às características específicas que o diferencia com o Estado no passado.
a) Este estado distingue-se antes de tudo pelo fato de que, pela primeira vez, é o Estado das classes exploradas e não das classes exploradoras. É o Estado de uma maioria com os interesses da maioria contra uma minoria. Existe, não para a defesa de novos privilégios, mas para destruir os privilégios. Exerce a violência não para oprimir, mas para impedir a opressão. Não é um corpo que se eleva acima da sociedade, mas que está ao seu serviço. Seus membros e seus funcionários não são nomeados, mas eleitos e revogáveis, seu exército permanente é substituído pelo armamento geral do povo; substitui a opressão por um máximo de democracia, isto é, de liberdades de opinião e de expressão e, acima de tudo, é um Estado em extinção. Mas continua sendo um Estado, ou seja, continua governando os homens, porque é a instituição de uma sociedade ainda dividida em classes, embora seja a sua última forma.
b) Este Estado do período de transição não será, segundo Lênin, um Estado como outro "tal e como o criou em todas as partes a burguesia, desde as monarquias constitucionais até as Repúblicas mais democráticas" mas conforme os "ensinamentos da Comuna de Paris" e a análise que dela fizeram Marx e Engels". "Eis aqui o tipo de Estado que necessitamos. Eis aqui o caminho que temos de seguir para que seja impossível que se restabeleçam uma polícia ou um exército separados do povo".
Lênin não confunde esse Estado com a ditadura do proletariado porque esse Estado é somente "a ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses pobres". "Claro, dizia Lênin, a democracia é também uma forma de Estado que terá que desaparecer quando este desapareça também, porém isso não sucederá senão quando se passe ao socialismo definitivamente vitorioso e consolidado, ao comunismo integral".
E Lênin precisa o papel do proletariado depois de haver "destruído" o Estado burguês: "o proletariado deve organizar todos os elementos explorados da população para que eles mesmos tomem diretamente em mãos os órgãos do poder do Estado, formando eles mesmos as instituições desse poder".
Essas linhas foram escritas em Março de 1917, apenas um mês depois da revolução de Fevereiro. Esse tema da tomada do poder do Estado "em mãos de todos os elementos explorados da população", encontraremos desenvolvidos em dezenas de artigos de Lênin, e particularmente no Estado e a Revolução. E podemos repetir com ele: "esse é o tipo de Estado que necessitamos" e que a revolução faz surgir.
III. A necessidade de uma atitude ativa por parte do proletariado para a limitação progressiva das funções e com vistas a extinção do Estado
Acabamos de ver a enorme distância que separa o Estado do período de transição - que deixou de ser, segundo Engels, um Estado propriamente dito - de todos os demais. E, no entanto, segundo o mesmo Engels, "é uma praga" que herda o proletariado e contra o qual Engels se encarrega de colocar o proletariado em guarda. Como podemos entender isso?
Marx e Engels colocaram em evidência as medidas que a Comuna de Paris sentiu necessidade de tomar contra esse semi-Estado, particularmente ao tornar revogável em todo momento qualquer eleição e ao limitar a remuneração dos eleitos e funcionários ao salário médio de um operário, para limitar suas tendências nocivas. Lênin não parava de recordar e de se referir a essas medidas, mostrando assim a importância que dava aos graves perigos de burocratização que corria esse tipo de Estado-Comuna.
A Comuna de Paris, que se limitou somente a uma cidade, e durou só dois meses, teve apenas tempo de manifestar os aspectos perigosos desse semi-Estado. Não se pode senão admirar ainda mais a perspicácia política de Engels, que logrou, nessas condições, descobrir e advertir sobre os perigos, sobre o caráter de praga do Estado pós-revolucionário.
A Revolução de outubro em um país imenso, com uma população de mais de cem milhões de habitantes e com uma duração de vários anos, acabará sendo o terreno para uma experiência muito distinta. A experiência confirmou tragicamente, mais além do que tivesse conseguido imaginar até no pesadelo mais horrível, as advertências de Engels contra essa praga.
Quando enumerávamos, segundo Marx, Engels e Lênin, as caracteríticas distintivas desse Estado, era bem mais o que tinha de ser em vez do que é por si mesmo. Por si mesmo, o Estado do período de transição contém todos os defeitos herdados de todos os Estados que o precederam. Cabe ao proletariado ser o mais vigilante com relação a ele. O proletariado não pode evitar o surgimento, nem evitar a obrigação de utilizá-lo, porém, para isso, terá que amputar seus aspectos mais nocivos para que possa lhe ser útil para seus próprios fins; e isso terá de fazer desde o momento em que surge esse estado.
O Estado não é portador nem agente ativo do comunismo. Nada mais é que uma trava. Reflete o estado presente da sociedade e, como todo Estado, tende a manter, conservar o status quo. O proletariado, portador do movimento de transformação social, obriga o Estado a atuar nessa direção. Não pode obrigá-lo a fazê-lo mais que controlando-o a partir de fora, dispensando-o, despojando-o, tanto quanto as condições permitirem, de suas funções para garantir assim o processo de extinção.
O Estado tende sempre a crescer de maneira descomunal. Por isso oferece um terreno de predileção para toda escória de oportunistas e arrivistas e a toda classe de parasitas e recruta facilmente seus personagens de alto escalão entre os resíduos e vestígios da antiga classe dominante em decomposição. É isso o que comprova Lênin quando fala do Estado como reconstituição do antigo aparato de Estado czarista. Essa máquina de Estado, como constatava Lênin, "tende a escapar de nosso controle e gira no sentido contrário do que queremos". É também Lênin que, indignado, não encontrava palavras suficientemente fortes para estigmatizar os enormes abusos e os vexames de todos os tipos que os representantes do Estado faziam a população sofrer . E não dizia respeito somente à antiga canalha czarista que infestava o aparato do Estado como também o pessoal recrutado entre os comunistas para quem Lênin criou o nome "Komtchvanstva" (patifes comunistas).
Tais manifestações não podem ser combatidas se as considerarmos simplesmente como acidentais. Para combatê-las eficazmente, é necessário ir até o fundo das coisas, reconhecer que se originam nessa praga que é a sobrevivência inevitável dessa superestrutura que é o Estado. Não se trata de lamentar, de erguer os braços ao céu e de inclinar-se, impotente diante de tal "fatalidade". O determinismo não é uma filosofia do fatalismo; não se trata tampouco de pretender que, por simples vontade, a sociedade pode escapar da necessidade do surgimento do Estado. Isso seria cair no idealismo. Porém se temos que reconhecer que o Estado se impõe a nós como uma "exigência da situação" (Lênin), como uma necessidade, é importante não converter essa necessidade em virtude, não se colocar a fazer a apologia do Estado e vangloriá-lo. O marxismo reconhece o Estado como uma necessidade, porém também como uma praga e coloca diante do proletariado o problema das medidas que há de se tomar para assegurar sua extinção.
De nada serve acoplar de mil maneiras as palavras "Estado" e "Proletariado" e "operário". Os problemas não se resolvem em mudar o nome, o que se faz é se iludir e agravar ainda mais a confusão. O Estado proletário é um mito. Lênin o rechaçava, recordando que era um "governo de operários e de camponeses com uma deformação burocrática". É uma contradição em termos e uma contradição na realidade. A grande experiência da Revolução Russa o atesta. Cada momento de cansaço, cada debilidade, cada erro do proletariado tem imediatamente como conseqüência o reforço do Estado e, inversamente, cada vitória, cada reforço do Estado, se faz suplantando um pouco mais o proletariado. O Estado se alimenta com a debilitação do proletariado e sua ditadura de classe. A vitória do primeiro é a derrota do segundo.
De nada serve querer converter a organização unitária do proletariado - os conselhos operários - em Estado. Proclamar que o Comitê Central dos conselhos operários é o Estado, provém tanto da astúcia dos promotores de tal idéia, como da sua ignorância dos verdadeiros problemas que se colocam na realidade. De que serve dar ao conselho o nome de Estado se segundo essa idéia são sinônimos e são a mesma coisa? Por amor ao belo nome de "Estado"? Esses astutos com fraseologia radical já ouviram alguma vez falar que os conselhos operários são uma praga ou da necessidade da sua extinção? Ao proclamar que o conselho é o Estado, excluem e proíbem toda participação das classes trabalhadoras não proletárias que é, como vimos, a razão principal do surgimento do Estado; essa posição é impossível e absurda ao mesmo tempo [14]. E se, para se salvar desse absurdo, quer fazer participar essas classes e camadas nos conselhos operários, são então esses últimos os que serão alterados e que perdem sua natureza de organização unitária autônoma do proletariado.
Deve-se igualmente rechaçar uma estruturação do Estado sobre a base de uma composição dos diferentes corpos sociais (operários, camponeses, profissionais liberais, artesãos, etc.) organizados separadamente. Isto seria institucionalizar sua existência e tomar como modelo o Estado corporativista de Mussolini. É perder de vista que não estamos diante de uma sociedade com um modo de existência fixo, mas em um período de transição. São como membros da sociedade que toda população não exploradora participa da vida social e nos sovietes territoriais e é somente o proletariado - porque é ele portador do futuro comunista - quem, ademais, participa de maneira hegemônica na vida social e a dirige, organizado como classe nos seus conselhos operários.
Sem entrar em detalhes de modalidade, podemos reter como princípios a estrutura seguinte da sociedade do período de transição:
Resta-nos ainda afirmar que o Partido político não é um órgão de Estado. Durante muito tempo, os revolucionários viveram com essa ótica, o que evidenciava a imaturidade da situação objetiva e sua própria falta de experiência. A experiência da Revolução Russa mostrou a caducidade dessa visão. A estrutura do Estado baseada nos partidos políticos é própria do Estado Burguês e, mais especificamente, da democracia burguesa. A sociedade do período de transição não delega seu poder a partidos, ou seja, a corpos especializados. O semi-Estado desse período tem como estrutura o sistema dos sovietes, isto é, uma participaqção constante e direta das massas na vida e no funcionamento da sociedade. É com essa condição que as massas podem, a todo momento, revogar seus representantes, substituí-los e exercer um controle permanente sobre eles. A delegação de poder a partidos - quaisquer que sejam - é voltar a introduzir a divisão entre o poder e a sociedade e, por conseguinte, resulta em uma trava tremenda a sua emancipação.
Além do mais, como demonstrou a experiência da revolução de Outubro, a obra ou a participação do Partido do proletariado no Estado altera profundamente suas funções. Sem entrar na discussão sobre a função do partido e suas relações com a classe -essa é outra discussão-, basta aqui mencionar que simplesmente que as razões contingentes e as razões de Estado terminam sempre por prevalecer para o partido, identificando-o ao Estado e separando-o da classe, até que chegue a opor-se a ela.
Conclusão: uma coisa deve ficar clara de uma vez por todas. Quando falamos de autonomia, trata-se da autonomia da classe com relação ao Estado. O Estado por sua parte, tem que estar subordinado à classe. A tarefa do proletariado é a de garantir a extinção do Estado. A primeira condição para isso é a não identificação da classe com o Estado.
M.C (1978)
[1] Marx, Crítica da Filosofia do Estado de Hegel.
[2] "Essa essência é a própria união da vontade subjetiva e da razão: isto é, o todo moral, o Estado" (Hegel, Georg Wilhelm Friedrich - Filosofia da história; pg. 29 Ed. Universidade de Brasília)
[3] "É preciso saber que tal estado é a realização da liberdade, isto é, da finalidade absoluta, que ele existe por si mesmo; além disso, deve-se saber que todo valor que o homem possui, toda realidade espiritual, ele só tem mediante o Estado" (Idem)
[4] Marx, A questão Judaica. https://www.marxists.org/portugues/marx/1843/questaojudaica.htm [75]
[5] "... o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil" (Karl Marx, A Miséria da Filosofia - Global Editora, coleção Bases. Vol 46; 1985)
[6] Excluímos aqui voluntariamente as ameaças externas, ou seja, de país para país, que é um problema que existe, porém que, nesse caso, não faria mais que estorvar e ofuscar a clareza do texto e o que queremos colocar claro aqui: o papel do Estado na evolução das sociedades.
[7] Lênin, A vitória dos Cadetes e as Tarefas do Partido Operário. (28/03/1906)
[8] Idem
[9] Idem
[10] Idem
[11] Idem
[12] Como acontece muitas vezes com o idealismo, é radical em especulações abstratas só para cair mais facilmente na prática concreta nos piores oportunismos, o que não deixou de suceder com os anarquistas. Seu "anti-estatismo" feroz pós-revolucionário, fundamentado sobre uma ignorância voluntária das exigências da situação histórica, os conduziu diretamente a integrar-se e em defender ainda mais ferozmente o Estado burguês "republicano" na guerra da Espanha de 1936-1939.
[13] "Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado" Marx, Crítica do Programa de Gotha
[14] Em um erro desse tipo caiu a Oposição Operária quando reivindicava que se pusesse o Estado nas mãos dos sindicatos, e foi com razão que Lênin a qualificava de anarco-sindicalista
Em 2 de março de 1919, na sessão inaugural do Primeiro Congresso da Internacional Comunista, Lênin assinalava que o "sistema de sovietes" (Conselhos Operários em russo) havia deixado de ser algo completamente desconhecido para as grandes massas e tornou-se um termo enormemente popular e, sobretudo, havia se convertido em uma prática cada vez mais generalizada; assim, por exemplo, citava um telegrama recém chegado da Inglaterra que dizia "o governo inglês recebeu o soviete de delegados operários de Birmingham e prometeu-lhe reconhecer os Sovietes como organizações econômicas." [1]
Hoje, 90 anos depois, companheiros de diferentes países nos escrevem perguntando o que são os conselhos operários, reconhecendo que é um tema que apenas conhecem e sobre o qual gostariam de possuir elementos de juízo. O peso da mais forte contrarrevolução da história, as dificuldades de politização da sua luta que vem arrastando a classe operária desde 1968, a falsificação ou, mais, o silêncio sepulcral que os meios de comunicação e de cultura impõem sobre as experiências históricas do proletariado, fazem que termos como soviete ou conselho operário que tão familiares eram para as gerações operárias de 1917-23, sejam considerados pelas gerações atuais como algo estranho ou mencionado com um significado radicalmente diferente do que tiveram em sua origem [2].
Nesse sentido, o objetivo dessa série de artigos é contribuir em responder a perguntas muito simples: O que são os conselhos operários? Por que surgiram? Responderam a quais necessidades históricas? Continuam sendo válidos em nossa época atual? Que lições podemos tirar deles? Para responder essas perguntas, nos apoiaremos na experiência histórica de nossa classe, considerando-a tanto nas revoluções de 1905 e 1917 como em debates e contribuições teóricas de militantes
[1] Os 4 primeiros congressos da Internacioal Comunista, tomo I. Fonte: https://www.moreira.pro.br/docsocintercent.htm [76]
[2] A palavra "soviete" se vincula hoje ao feroz regime de capitalismo de Estado que imperou na antiga URSS e "soviético" aparece como sinônimo do imperialismo russo durante o grande período da Guerra Fria (1945-1949).
[3] Ler o artigo em espanhol: https://es.internationalism.org/rint141-consejos [77]
Por que os Conselhos Operários surgem em 1905 e não em 1871 com a Comuna revolucionária de Paris? [1]
O surgimento dos Conselhos Operários na Revolução Russa de 1905 só pode ser compreendido se se analisar conjuntamente 3 fatores: as condições históricas do período, as experiências de luta que o proletariado estava desenvolvendo e a intervenção das organizações revolucionárias.
Quanto ao primeiro fator, o capitalismo estava no auge de sua evolução, mas, ao mesmo tempo, mostrava sinais cada vez mais evidentes do início do seu declínio, especialmente no campo imperialista. Trotsky, em seu livro 1905 Balance e Perspectivas [2], em cujo estudo vamos nos apoiar, assinala que: "O capitalismo, ao impor a todos os países seu modo de economia e de comércio, havia convertido o mundo inteiro em um único organismo econômico e político" [3], porém isso precisamente: "desde o início dos acontecimentos, dá um caráter internacional e abre uma grande perspectiva: a tarefa de emancipação política que dirige a classe operária russa elevará a si mesma a um patamar até hoje desconhecido na história, colocará em suas mãos forças e meios colossais e lhe possibilitará, pela primeira vez, a começar com a destruição internacional do capitalismo, para o qual a história criou todas as condições objetivas prévias" [4]. Produtos desse novo período, já se tinha produzido movimentos massivos e greves gerais nos diferentes lugares do mundo antes de 1905: greve geral na Espanha em 1902, na Bélgica em1903 e na própria Rússia em diferentes momentos.
O segundo fator: Os conselhos operários não surgem do nada, não são o produto de uma tempestade repentina em um céu imaculadamente azul. Nos anos anteriores, acontecem numerosas greves na Rússia a partir de 1896: greve geral dos operários têxteis de São Petersburgo em 1896 e 1897; as grandes greves que, em 1903 e 1904, sacudiram todo o sul da Rússia etc. Todas elas são outras tantas experiências nas quais apontavam novas tendências de mobilizações espontâneas, de criação de organizações de luta completamente novas que já não correspondiam às formas tradicionais de luta sindical, preparando assim o terreno para as lutas de 1905:
"Mas se conhecermos um pouco da evolução política interna do proletariado russo, até ao estágio atual da sua consciência de classe e da sua energia revolucionária, não deixaremos de relacionar a história do presente período de luta de massas com as greves gerais [de 1896 e 1897] de São Petersburgo. Estas são importantes no problema da greve de massas, visto que já contêm em germe todos os princípios elementares das greves posteriores". [5]
Quanto ao terceiro fator, os partidos proletários (os bolcheviques e outras tendências) não haviam feito, evidentemente, nenhuma propaganda prévia sobre o tema dos sovietes, pois, de fato, seu aparecimento os surpreendeu; muito menos haviam criado estruturas organizadas "intermediárias" que os fossem preparando. Entretanto, seu trabalho incansável de propaganda contribuiu em grande medida para o surgimento dos sovietes. É o que Rosa Luxemburgo põe em relevo quando escreve sobre movimentos espontâneos como o da greve dos têxteis de São Petersburgo em 1896 e 1897: "Vemos já se delinearem todas as características de uma futura greve de massas: em primeiro lugar, o fato que desencadeou o movimento foi fortuito, e mesmo acessório, a explosão foi espontânea. Mas no modo como o movimento foi desencadeado manifestaram-se os frutos da propaganda conduzida em vários anos pela social-democracia." [6] E, com relação a isso, Rosa esclarece de maneira rigorosa qual é o papel dos revolucionários: "A social-democracia não tem poder para determinar a priori a ocasião e momento em que poderão desencadear-se as greves de massas na Alemanha porque está fora do seu poder fazer gerar situações históricas por meio de simples resolução de Congresso. Mas está no seu poder, e é seu dever precisar a orientação política dessas lutas, quando se produzem, e traduzi-las numa tática resoluta e conseqüente." [7]
Esta análise global permite compreender a natureza do grande movimento que sacudiu a Rússia durante 1905 e que entra em sua etapa decisiva nos últimos 3 meses do referido ano, de outubro a dezembro, durante os quais se generaliza o desenvolvimento dos conselhos operários.
O movimento revolucionário de 1905 tem sua origem imediata no memorável "Domingo Sangrento" de 22 de janeiro de 1905 [8]. O movimento tem um primeiro refluxo em março de 1905 para ressurgir por distintas vias em maio e julho [9]. No entanto, durante este período, toma forma de uma sucessão de explosões espontâneas com um nível muito débil de organização. Porém, a partir de setembro, a questão da organização geral da classe operária passa para o primeiro plano: entramos em um estágio de crescente politização das massas em cujo seio se percebem os limites da luta imediata reivindicativa, mas também a exasperação da situação política causada tanto pela atitude brutal do czarismo como pelas vacilações da burguesia liberal [10].
Vimos o solo histórico no qual nascem os primeiros sovietes. Porém, qual é sua origem concreta? É o resultado da ação deliberada de uma minoria audaz? Ou, pelo contrário, surgiram mecanicamente das condições objetivas?
Como havíamos dito, a propaganda revolucionária realizada desde alguns anos contribuiu no surgimento dos sovietes e Trotsky desempenhou um papel de primeira importância no soviete de São Petersburgo, porém o nascimento dos sovietes não foi, entretanto, o resultado direto nem da agitação nem das propostas organizativas dos partidos marxistas (divididos, naquela ocasião, em bolcheviques e mencheviques), menos ainda nasceram da iniciativa de grupos anarquistas como é apresentado por Volin [11] no seu livro A Revolução Desconhecida[12]. Volin situa a origem deste primeiro soviete entre meados ou final de fevereiro de 1905. Sem duvidar da verossimilhança dos fatos é importante assinalar que esta reunião -que ele próprio qualifica de "privada" - pode ser um elemento a mais que contribuiu com o processo que levaria ao surgimento dos sovietes porém não constituiu seu ato fundacional.
Costuma-se considerar o soviete de Ivanovo-Vosnesenk o primeiro ou um dos primeiros [13]. No total foram identificados entre 40 e 50 sovietes e também outros tantos de soldados e camponeses. Anweiler insiste nas suas origens heterogêneas: "Seu nascimento se fez através de outros organismos anteriores (comitês de greve ou assembléias de deputados, por exemplo), e sem mediação alguma de organizações locais do Partido Social-Democrata. As fronteiras entre o puro e simples comitê de greve e o conselho de deputados operários, verdadeiramente digno desse nome, eram frequentemente imprecisas; só foi nos centros principais da revolução e da classe trabalhadora (exceto São Petersburgo) como Moscou, Odessa, Novorossisk e na bacia do Donets, onde os conselhos possuíam uma forma de organização claramente definida" [14].
Assim, a paternidade dos sovietes não pertence a um personagem ou minoria específicos, porém isso não significa que nasceram do nada, por geração espontânea. Foram, fundamentalmente, a obra coletiva da classe operária: múltiplas iniciativas, inumeráveis discussões, propostas que surgiam aqui e acolá, tudo nas linhas da evolução dos acontecimentos e com a intervenção ativa dos revolucionários, acabou dando lugar aos sovietes. Afinando mais nesse processo podemos identificar dois fatores determinantes: o debate de massas e a radicalização crescente das lutas.
O amadurecimento da consciência das massas que se observa desde setembro de 1905 cristaliza-se no desenvolvimento de uma gigantesca vontade de debater. A propagação de discussões palpitantes nas fábricas, universidades, bairros, acaba por ser um fenômeno "novo" que aparece significamente durante o mês de setembro. Trotsky recolhe alguns testemunhos: "Um dos paradoxos políticos mais espantosos dos meses de outono de 1905 era o fato de que dentro dos muros das universidades ocorriam reuniões populares perfeitamente livres enquanto o ilimitado terror de Trepov [15] reinava nas ruas" [16]. Estas reuniões são freqüentadas cada vez mais massivamente por operários, "‘o povo' enchia os corredores, as salas de aula e os salões. Os operários iam diretamente das fábricas para a universidade", assinala Trotsky, que em seguida, acrescenta: "A agência telegráfica oficial, horrorizada com o aspecto do público concentrado no salão de reuniões da Universidade Vladimir, informou que, além dos estudantes, a multidão consistia em ‘uma profusão de pessoas estranhas de ambos os sexos, estudante de escolas secundárias, adolescentes das escolas privadas da cidade, operários e um populacho diverso'" [17].
Porém não se trata de um "populacho diverso" como afirma com desprezo a agência de notícias, mas de um coletivo que discute e reflete de maneira metódica, ordenada, observando uma grande disciplina e uma maturidade reconhecidas inclusive pelo cronista do jornal burguês Russ (Rússia), como é citado por Trotsky: "Sabem o que mais me espantou numa das reuniões da universidade? Uma ordem extraordinária exemplar. Imediatamente depois de eu ter chegado, anunciou-se uma pausa no salão de reuniões e fui passear pelos corredores. Um corredor universitário é parecido a uma rua. Todas as salas de aula que davam para o corredor estavam cheias de gente e em seu interior estavam ocorrendo reuniões independentes. O próprio corredor estava lotado: inúmeras pessoas caminhavam de um lado para o outro. (...) Poderia pensar-se que se tratava de uma recepção, só que um pouco mais séria do que costumam ser. No entanto, este era o povo: o povo real, autêntico, com as mãos enrijecidas pelo árduo trabalho manual, com essa cor terrosa que se obtém quando se passam os dias em lugares insalubres e mal arejados. [18].
Esse mesmo espírito é observado desde maio na cidade industrial citada anteriormente de Ivanovo-Vosnesensk: "as assembleias plenárias se celebravam todas as manhãs às nove horas. Uma vez terminada a sessão (do Soviete) começava a assembleia geral dos operários, que examinava todas as questões relacionadas com a greve. Prestava-se conta da marcha dessa última, das negociações com os patrões e as autoridades. Depois da discussão, eram submetidas à assembleia geral as proposições preparadas pelo Soviete. Imediatamente, os militantes dos partidos pronunciavam discursos de agitação sobre a situação da classe operária e o comício continuava até que o público se cansasse. Então, a multidão entoava hinos revolucionários e a assembleia se dissolvia. Assim se repetia todos os dias" [19].
Uma pequena greve na gráfica Sitin de Moscou que havia se iniciado em 19 de setembro ia acender a mecha da greve geral massiva de outubro em cujo seio se generalizaria os Sovietes. A solidariedade com os impressores de Sitin levou a greve a mais de 50 gráficas moscovitas e a celebração em 26 de setembro de uma reunião geral de tipógrafos que adotou o nome de Conselho. A greve se estende a outros setores: padarias, metalúrgicas e têxteis. A agitação ganhou as estradas de ferro, por um lado, e os impressores de Petersburgo, de outro, que se solidarizaram com os companheiros de Moscou.
Inesperadamente, outra frente de organização aparece: uma Conferência de representantes ferroviários sobre as Caixas de Assistência se inicia em Petersburgo em 20 de setembro. A Conferência lança um chamamento a todos os setores operários e não se limita a essa questão, mas coloca a necessidade de se reunirem operários dos distintos ramos e de propor reivindicações econômicas e políticas. Animada pelos telegramas de apoio recebidos de todo o país, a Conferência convoca uma nova reunião para o dia 9 de outubro.
Pouco depois, em 3 de outubro, "uma reunião dos deputados operários dos setores das gráficas, mecânica, marcenaria, fumo e outros, adotou a decisão de formar um conselho geral (soviete) de todos os trabalhadores de Moscou" [20].
A greve dos ferroviários que se iniciou espontaneamente em algumas linhas se generaliza a partir do dia 7 de outubro. Nesse marco, a reunião convocada para o dia 9 se transforma em "congresso de delegados de São Petersburgo do pessoal ferroviário, formularam-se as palavras de ordem da greve ferroviária e imediatamente foram despachados por telégrafo a todas as linhas. Essas palavras de ordem eram: jornada de oito horas, liberdades civis, anistia, assembléia constituinte". [21]
As reuniões massivas na universidade tinham produzido um intenso debate sobre a situação, as experiências vividas, as alternativas para o futuro, mas em outubro a situação se modifica: esses debates, sem desaparecer, amadurecem na luta aberta e esta, por sua vez, começa a dotar-se de uma organização geral que não somente dirige a luta como também integra e multiplica o debate massivo. A necessidade de se agrupar e se reunir, de unificar os diferentes focos grevistas tinha sido colocado de maneira especialmente aguda pelos operários de Moscou. Adotar um programa de reivindicações econômicas e políticas, de acordo com a situação histórica e com as possibilidades reais da classe operária, tinha sido o aporte do congresso ferroviário. Debate, organização unificada, programa de luta, esses foram os três pilares sobre os quais vão se levantar os sovietes. É, portanto, a convergência das iniciativas e propostas dos diferentes setores da classe operária o que lhe dá origem e de maneira alguma o "plano" de uma minoria. Nos sovietes se personifica o que 60 anos antes, no Manifesto Comunista, parecia uma elaboração utópica: "Todos os movimentos tem sido até agora realizado por minorias ou em proveito de minorias. O movimento proletário é um movimento independente da imensa maioria em proveito da imensa maioria".
Este Soviete fazia o seguinte chamamento: "A classe trabalhadora teve de recorrer à última e poderosa arma do movimento operário mundial: a greve geral. [...] Dentro dos próximos dias ocorrerão na Rússia acontecimentos decisivos. Esses acontecimentos determinarão por muitos anos o destino da classe operária; diante desses acontecimentos devemos encontrar-nos em plena disponibilidade, unidos por nosso soviete comum [...]" [24].
Essa passagem manifesta a visão global, a ampla perspectiva, que tem o órgão recém nascido da luta. De forma simples expressa uma visão claramente política e, em coerência com o ser profundo da classe operária, se vincula com o movimento operário mundial. Esta consciência é por sua vez expressão e fator ativo da extensão da greve para todos setores e para todo o país, praticamente generalizada desde 12 de outubro. A greve paralisa a economia e a vida social, porém o Soviete cuida para que isso não conduza a uma paralisia da própria luta operária como assinala Trotsky: "quando eram necessários boletins da revolução abria-se uma gráfica; utilizava-se o telégrafo para enviar instruções sobre a greve. Era permitida a passagem de trens que transportavam delegados grevistas." [25]. A greve "demonstrou, onde foi possível fazê-lo, que não se tratava simplesmente de interrupção temporária de trabalho, de um protesto passivo de braços cruzados. A greve se defendeu e, na sua defesa, passou à ofensiva. Em algumas cidades do Sul ergueram-se barricadas, tomaram-se lojas de armas e se ofereceu uma resistência, senão vitoriosa, ao menos heróica." [26]
O Soviete é o teatro ativo de um debate em torno de 3 eixos:
Nas condições de 1905 estão questões que podiam ser somente colocadas mas não podiam ser resolvidas. Será a revolução de 1917 a que vai dar a resposta. Porém a capacidade desenvolvida em 1917 é impensável sem os grandes combates de 1905.
Geralmente, imagina-se que perguntas como aquelas colocadas acima só podem ser o monopólio de pequenas mesas de "estrategistas da revolução". No entanto, no marco dos Sovietes são objeto de um debate massivo com a participação e contribuições de milhares de operários. Estes pedantes que consideram os operários incapazes de se ocupar de tais assuntos encontrariam provas de como eles falam desses temas com a maior naturalidade, transformam-se em especialistas apaixonados e comprometidos que derramam, no cadinho de organização coletiva, suas intuições, sentimentos, conhecimentos, construídos durante longos anos. Como o evocava Rosa Luxemburgo em sentido figurado: "Nas condições da greve de massas, o honrado pai de família se transforma em revolucionário romântico".
Se no dia 13 havia apenas 40 delegados na reunião do Soviete, nos dias seguintes o número de assistentes se multiplicou. O primeiro ato de toda fábrica que se declara em greve é eleger um delegado ao qual se dota de uma credencial conscientemente adotada pela assembléia. Há setores que vacilam, os trabalhadores têxteis de São Petersburgo, ao contrário dos seus colegas moscovitas, somente se unem a luta no dia 16. no dia 15, o Soviete... "O soviete tinha elaborado todos os tipos de métodos, desde as reivindicações verbais até a coerção violenta, para introduzir na greve os não-grevistas. Mas não foi necessário recorrer a métodos extremos. Quando uma solicitação verbal não tinha efeito, era suficiente que aparecesse em cena um grupo de grevistas - às vezes só uns poucos homens - e o trabalho era interrompido imediatamente" [27].
As reuniões do soviete eram uma antítese do que é um parlamento burguês ou uma reunião acadêmica universitária. "Não houve gestos de grandiloquência, essa úlcera das instituições representativas. As questões a debater - a expansão da greve e as exigências que se apresentariam à Duma - eram de natureza puramente prática e se discutiram brevemente, com energia e como se fossem questões comerciais. A gente sentia que cada átomo de tempo tinha razão de ser. A mínima tendência para a retórica era firmemente refreada pelo presidente, com a severa aprovação dos assistentes." [28].
Este debate vivo e prático, profundo e concreto, de uma só vez, expresava uma transformação da consciência e psicologia social dos operários porém, ao mesmo tempo, constituía um poderoso fator no desenvolvimento daquelas. Consciência como compreensão coletiva da situação social e de suas perspectivas, da força concreta das massas em ação e dos objetivos que deviam adotar, como percepção de quem são os amigos e quem são os inimigos, como esboço de uma visão do mundo e de seu futuro. Mas, ao mesmo tempo, psicologia social como fator distinto, embora concomitante com o anterior, que se expressa na atitude moral e vital dos operários que manifestam uma solidariedade contagiosa, uma empatia para com os demais, uma capacidade de abertura e aprendizagem, uma entrega desinteressada à causa comum.
Esta transformação espiritual parece utópica e impossível aos que unicamente vêem os operários sob a ótica da normalidade cotidiana onde aparecem como robôs atomizados, sem iniciativa nem sentimento coletivo, deslocados pelo peso da concorrência e da rivalidade, porém a experiência da luta massiva e no seio da formação dos conselhos operários mostra como isso constitui o motor de tal transformação, como disse Trotsky: "o socialismo não se propõe a tarefa de desenvolver uma psicologia socialista como condição prévia do socialismo, mas criar condições de vida socialistas como condição prévia de uma psicologia socialista" [29].
As Assembleias Gerais e os Conselhos eleitos por elas e responsáveis diante delas se transformaram no cérebro e no coração da luta por sua vez. Cérebro porque milhares e milhares de seres humanos pensam em voz alta e decidem após um silêncio de reflexão. Coração porque esses seres deixam de se ver como gotas perdidas em um oceano de pessoas desconhecidas e potencialmente hostis para se converter em parte ativa de uma vasta comunidade que integra a todos e a todos faz sentir fortes e respaldados.
Partindo desse sólido cimento, o Soviete situa o proletariado como um poder alternativo frente ao Estado burguês. Converte-se em uma autoridade socialmente cada vez mais reconhecida. "Na mesma medida em que se estendia a greve de outubro, o soviete se colocava cada vez mais na frente política. Sua importância crescia, literalmente, de hora em hora. O proletariado industrial foi o primeiro a unir-se à sua volta. [...] A União dos Sindicatos, que aderiu à greve desde 14 de outubro, viu-se obrigada a colocar-se sob a autoridade do soviete quase desde o início. Numerosos comitês de greves [...] adaptaram suas ações às decisões do soviete". [30]
Muitos autores anarquistas e conselhistas tem apresentado os Sovietes como os portadores de uma ideologia federalista consistente na autonomia local e corporativa que se oporia ao centralismo supostamente "autoritário e castrador" próprio do marxismo. Uma reflexão de Trotsky responde a estas objeções: "O papel de São Petersburgo na revolução russa não pode ser comparado de forma nenhuma ao de Paris na Revolução Francesa. A natureza econômica primitiva da França (e, em particular, dos meios de comunicação) e a centralização administrativa permitiram que Revolução Francesa se localizasse - na realidade - dentro dos limites de Paris. A situação era totalmente diferente na Rússia. O desenvolvimento capitalista criou na Rússia tantos centro independentes de revolução quantos centros industriais haviam; estes, sem perder a independência e a espontaneidade de seus movimentos, estavam estreitamente ligados entre si". [31]
Aqui vemos de maneira prática o significado da centralização proletária que está situada na antítese do centralismo burocrático e castrador próprio do Estado e, em geral, das classes exploradoras que existiram na história. A centralização proletária não parte da negação da iniciativa e da espontaneidade criadora de seus diferentes componentes mas, ao contrário, contribui com todas as suas forças para o seu desenvolvimento. Como acrescenta Trotsky: "As estradas de ferro e o telégrafo descentralizavam a revolução apesar do caráter centralizado do Estado, mas, ao mesmo tempo, levaram a unidade a todas as suas manifestações dispersas. Se como resultado de tudo isso reconhecemos que São Petersburgo deu as palavras de ordem na revolução, isto não significa que a revolução estivesse concentrada na Perspectiva Nevsky ou em frente do Palácio de Inverno, mas só que as palavras de ordem e métodos de luta de São Petersburgo encontraram um poderoso eco revolucionário em todo o país." [32].
O Soviete era a coluna vertebral dessa centralização massiva: "devemos reconhecer o Conselho (Soviete) dos Deputados Operários como a pedra angular de todos esse acontecimentos. - prossegue Trotsky - Não só porque foi a maior organização de trabalhadores que se viu na Rússia até esse momento; não só porque o Soviete de São Petersburgo serviu como modelo para Moscou, Odessa e outras cidades; mas, acima de tudo, porque essa organização proletária de base exclusivamente classista foi a organização da revolução como tal. O soviete foi o eixo de todos os acontecimentos, todas as linhas se dirigiam na sua direção, todo apelo para a ação emanava dele." [33]
Até o fim de outubro de 1905, via-se claramente que o movimento tinha chegado a uma encruzilhada: ou a insurreição ou o esmagamento.
Não é o objetivo desse artigo analisar os fatores que conduziram ao segundo dilema [34], é certo que o movimento acabou em uma derrota e que o regime czarista - dono novamente da situação - empreendeu uma repressão sem misericórdia. Porém a maneira como o proletariado travou a batalha de forma feroz e heróica mas plenamente consciente, foi exitosa em preparar o futuro. A dolorosa derrota de dezembro de 1905 preparou o futuro revolucionário de 1917.
Nesse desenlace, teve um papel decisivo o Soviete de São Petersburgo que fez todo o possível para preparar em melhores condições o enfrentamento inevitável. Formou patrulhas operárias de caráter inicialmente defensivo - contra as expedições punitivas das Centúrias Negras organizadas pelo Czar mobilizando o lixo da sociedade -, constituiu depósito de armas e organizou milícias, às quais deu treinamento.
Mas, ao mesmo tempo, e tirando lições das insurreições operárias do século XIX [35], o Soviete de São Petersburgo colocou que a questão chave estava na atitude da tropa, pela qual o grosso dos seus esforços se concentrou em ganhar os soldados para sua causa
Assim, os chamamentos e panfletos dirigidos ao exército, os convites à tropa para que assistissem às sessões do Soviete, não caiam no vazio. Respondiam a certo grau de amadurecimento do descontentamento dos soldados que desembocou no motim do encouraçado Potemkin - imortalizado pelo famoso filme - ou na sublevação da guarnição de Kronstadt em outubro.
Em novembro de 1905, o Soviete convocou uma greve massivamente acompanhada cujos objetivos eram diretamente políticos: a retirada da lei marcial na Polônia e a abolição do Tribunal Militar especial encarregado de julgar os marinheiros e soldados de Kronstadt. Esta greve que incorporou setores operários que até então nunca haviam lutado provocou uma induvidável simpatia entre os soldados. No entanto, simultaneamente, mostrou o esgotamento das forças operárias e a atitude majoritariamente passiva de soldados e camponeses, especialmente nas províncias, o que acarretou no fracasso da greve.
Outra contribuição do Soviete à preparação do enfrentamento foram duas medidas aparentemente paradoxais que tomou em outubro e novembro.
Quando perceberam que a greve de outubro entrara em descenso, o Soviete propôs às assembleias operárias que todos os operários retornassem ao trabalho na mesma hora. Esse fato constituiu uma impressionante demonstração de força que colocava em evidência a determinação e a disciplina consciente dos operários. A operação voltou a se repetir diante do declínio da greve de novembro. Era uma maneira de preservar as energias para o enfrentamento geral demonstrando ao inimigo a firmeza e unidade inquebrantável dos combatentes.
A burguesia liberal russa ao perceber a ameaça proletária cerrou fileiras com o regime czarista com o que este se sentiu fortalecido e empreendeu uma perseguição sistemática aos sovietes. Logo se pode comprovar que o movimento operário nas províncias estava em refluxo. Ainda assim o proletariado de Moscou lançou a insurreição que durou 14 dias de violentos combates.
O esmagamento da insurreição de Moscou constituiu o último ato de 300 dias de liberdade, fraternidade, organização, comunidade, protagonizados pelos "simples operários" como gostavam de lhes chamar os intelectuais liberais. Durante os dois meses esses "simples operários" levantaram um edifício simples, de funcionamento ágil e rápido, que alcançou em pouco tempo um poder imenso, os Sovietes. Mas com o final da revolução, pareciam ter desaparecido sem deixar rastro, pareciam sepultados para sempre... À exceção das minorias revolucionárias e grupos de operários avançados ninguém falava qualquer coisa sobre isto. No entanto, em 1917 reapareceram na cena social de maneira universal e com força irressistível. Veremos tudo isso no próximo artigo.
C. Mir 05/11/09
[1] Apesar de Marx reconhecer na Comuna "a forma enfim encontrada da ditadura do proletariado" e que apresenta notáveis elementos anunciadores do que logo serão os Sovietes, a comuna parisiense se vincula mais com as formas organizativas de democracia radical próprias de massas urbanas durante a revolução francesa: "A iniciativa para a proclamação da Comuna partiu do Comitê Central da Guarda Nacional, que ocupava o primeiro posto no sistema de conselhos de delegados militares e que havia se formado nas distintas unidades. O órgão de base, clube dos batalhões, elegia um conselho da legião, que enviava 3 representantes ao comitê central de 60 membros. Além do mais estava prevista uma assembleia geral dos representantes das companhias, que se reuniam uma vez ao mês" (do livro Los Soviets en Rusia, Oskar Anweiler, p. 19 ed. espanhola Editorial Zero. 1975)
[2] A edição em português da Global Editora difere da edição espanhola, pois esta última inclui dois livros: o livro 1905 e o livro Balance y Perspectivas. Enquanto a edição em português tem apenas o livro 1905, que foi lançado aqui com o título de A Revolução de 1905. Desta edição foram retiradas as citações deste artigo e traduzimos diretamente do espanhol as que se referem ao livro Balance y Perspectivas. Em algumas citações da edição em português, que consideramos alterar o sentido do texto, fizemos adaptações para melhor passar o que o autor queria passar com base nas edições espanhola e francesa.
[3] Trotsky, 1905 Balance e Perspectivas, p. 211, t. II Ed.espanhola Editorial Ruedo Ibérico - tradução nossa
[4] Idem.
[5] Rosa Luxemburgo: Greve de massas, partido e sindicatos. Ed. Kairós; p. 23
[6] Rosa Luxemburgo: Greve de massas, partido e sindicatos. Ed. Kairós; p. 24.
[7] Rosa Luxemburgo: Greve de massas, partido e sindicatos. Ed. Kairós; p. 65.
[8] Não podemos desenvolver uma crônica do que se passou. Ver "I - Hace 100 años, la revolución de 1905 en Rusia [78]".
[9] O livro Greve de massas, partido e sindicatos, de Rosa Luxemburgo, descreve e analisa de forma muito clara a dinâmica do movimento, com seus altos e baixos, momentos de pico e bruscos refluxos.
[10] Dentro da situação mundial de apogeu e começo do declínio capitalista, a situação russa se encontrava aprisionada pela contradição entre o freio que o czarismo feudal representava ao desenvolvimento capitalista e a necessidade da burguesia liberal de se apoiar nele, não só como aparato burocrático de seu desenvolvimento, mas como baluarte repressivo contra a emergência impetuosa do proletariado. Ver o livro de Trotsky anteriormente citado.
[11] Volin, militante anarquista que sempre foi fiel ao proletariado e denunciou a Segunda Guerra Mundial através de uma postura internacionalista.
[12] "uma tarde, em minha casa, onde Nossar falava [Nossar foi o primeiro presidente do Soviete de São Petersburgo em outubro de 1905] e, como sempre, muitos operários, apareceu entre nós a idéia de criar um organismo operário permanente, espécie de comitê, ou melhor, de conselho que acompanhasse o desenvolvimento dos acontecimentos, serviria de vínculo entre todos os operários, lhes informaria a situação e, se fosse o caso, poderia reunir em torno dele as forças operárias revolucionárias" (La Revolución desconocida - Libro primero, p. 63. Ed. Espanhola).
[13] Surgiu em 13 de maio de 1905 nessa cidade industrial de Ivanovo-Vosnesensk, no centro da Rússia. Para maiores detalhes ler o artigo da Revista Internacional nº 122 sobre 1905 (2ª parte).
[14] Oskar Anweiler, Los soviets en Rusia.
[15] General czarista famoso pela sua brutal repressão das lutas operárias.
[16] Trotsky, A Revolução de 1905. Ed. Global; p. 97.
[17] Idem, p. 98.
[18] Idem, p. 98.
[19] Andrés Nin, Los Soviets en Rusia, p. 17. Tradução nossa
[20] Trotsky, op. cit., p. 101.
[21] Idem, p. 102.
[22] O sentido da palavra deputados aqui não é o mesmo dos deputados que o parlamento burguês elege a cada 2, 4, 6 ou 8 anos, período que depende de país para país. O sentido da palavra deputado no presente texto refere-se ao deputado ou delegado operário eleito por uma base de operários. Estes deputados ou delegados operários eram responsáveis perante a base que o elegeu e podiam ser destituídos a qualquer momento por ela.
[23] Idem, p. 118.
[24] Citado por Trotsky, p. 118.
[25] Idem, p. 103.
[26] Idem, p. 108
[27] Idem, p. 120.
[28] Idem, p. 121.
[29] Trotsky, 1905 Balance e Perspectivas,, p. 207, t. II. Edição espanhola - tradução nossa
[30] Idem, p. 123.
[31] Idem, p. 116. Há uma modificação feita por nós para ficar mais fiel aotexto original. A última frase da citação da edição em português era: "estes, embora independentes, estavam intimamente ligados entre si". Comparando com as traduções espanhola e francesa, adaptamos para: "estes, sem perder a independência e a espontaneidade de seus movimentos, estavam estreitamente ligados entre si".
[32] Idem, p. 116. Há uma modificação feita por nós. Na edição em português usa-se "fora do Palácio de Inverno". Comparando com as traduções espanhola e francesa, adaptamos para: "em frente do Palácio de Inverno".
[33] Idem, p. 117.
[34] Consultar especificamente o artigo da Revista Internacional nº123 sobre "1905 e o papel dos Sovietes (3ª parte) [79]".
[35] Sobretudo os combates de barricadas cujo esgotamento soube ver Engels na famosa "Introdução" a A Luta de classes na França de Marx. Esta "Introdução", escrita em 1895, se tornou famosa porque a crítica que Engels fazia aos combates de barricada foi utilizada pelos oportunistas na Social-Democracia para aprovar o rechaço da violência e o emprego exclusivo de métodos parlamentaristas e sindicalistas.
O propósito desta série é responder a uma pergunta que é feita por muitos companheiros (leitores e simpatizantes), sobretudo entre os jovens: O que são os conselhos operários? No artigo anterior desta Série [1] vimos como nasceram pela primeira vez na história ao calor da Revolução de 1905 na Rússia e como a derrota desta levou ao seu desaparecimento. Neste segundo artigo, veremos como reapareceram com a Revolução de fevereiro de 1917, e de que maneira, cederam o poder à burguesia graças à traição de antigos partidos revolucionários -mencheviques e socialistas revolucionários (SR) - que os estavam sabotando a partir de dentro, como se foram distanciando da vontade e da consciência crescente das massas operárias até o extremo de converter-se em julho de 1917 em ponto de apoio da contrarevolução [2].
Oskar Anweiler na sua obra Os sovietes na Rússia [3] destaca como entre dezembro de 1905, momento da derrota da revolução, até 1907, houve numerosas tentativas de fazer reviver os sovietes. Em Petrogrado, na primavera de 1906, se constituiu um Conselho de desempregados que enviou delegados às fábricas agitando pela reconstituição do Soviete de tal maneira que, no verão de 1906, houve uma reunião que aglutinou 300 delegados, mas que não chegou a nenhuma conclusão dada a dificuldade para retomar a luta. O Conselho foi se descompondo ao enfraquecer cada vez mais a mobilização até seu desaparecimento total no verão (2º trimestre) de 1907. Em Moscou, Jarkov, Kiev, Poltava, Ekaterinoslav, Baku, Batum, Rostov e Kronstadt surgiram igualmente conselhos de desempregados que tiveram uma existência mais ou menos efêmera ao longo de 1906.
Em 1906-07 apareceram esporadicamente sovietes em cidades industriais do Ural. Mas foi em Moscou onde, no verão de 1906, se realizou uma tentativa mais séria de constituir sovietes. Uma greve iniciada em julho se estendeu rapidamente a numerosos centros de trabalho e imediatamente os operários elegeram delegados que em número de 150 lograram reunir-se constituindo um Comitê executivo que fez chamamento a extensão da greve e à formação de sovietes de bairros. No entanto, as condições não eram as de 1905, o governo, ao constatar que a mobilização em Moscou não encontrava eco, desatou uma forte repressão que acabou com a greve e com o recém reconstituído soviete.
Os sovietes desapareceram do cenário social até 1917. Este desaparecimento surpreende muitos companheiros que se perguntam: como é possível que os mesmos operários, que em 1905 haviam participado de forma tão entusiasta dos sovietes, os abandonaram no esquecimento? Como entender que a "forma" Conselho que havia demonstrado tanta eficácia e força em 1905 desaparecesse como um passo de mágica durante 12 anos?
Para responder a essa pergunta temos de evitar fazê-la a partir do ponto de vista da democracia burguesa que considera a sociedade como uma soma de indivíduos "livres e soberanos", tão "livres" para formar conselhos como para participar das eleições. Então. Como é possível que milhões de cidadãos que em 1905 "escolheram" constituir-se em sovietes, "escolham" renunciar a eles durante longos anos?
Semelhante ponto de vista, não pode entender que a classe operária não é uma soma de indivíduos "livres e autodeterminados", mas uma classe que somente consegue se expressar, atuar e se organizar quando, mediante a luta, impõe sua ação coletiva. Esta não é o resultado de uma soma de "decisões individuais", mas da concatenação de fatores objetivos (a degradação das condições de vida e a evolução geral da sociedade, a preocupação diante do futuro que esta depara) e subjetivos (a indignação provocada pela inquietude pelo futuro, as experiências de luta e o desenvolvimento da consciência de classe animada pela intervenção dos revolucionários). A ação e a organização da classe operária constituem um processo social, coletivo e histórico que traduz uma evolução das relações de força entre as classes.
Além do mais, esta dinâmica da luta de classes deve, por sua vez, situar-se no contexto histórico que permitiu o surgimento dos sovietes. Enquanto que no período histórico de apogeu do sistema -especialmente, durante essa "idade do ouro" que se estende entre 1873 e 1914- o proletariado pode constituir grandes organizações de massas (os sindicatos, em particular) que tinham uma existência permanente e que constituíam o requisito para levar lutas à vitória, no período histórico que se abre com a Primeira Guerra Mundial, a decadência do capitalismo, a organização geral da classe operária se constitui na luta e para a luta e desaparece com ela se não for capaz de ir até o final: até o combate revolucionário pela destruição do Estado burguês.
Em tais condições, o "ganho" que podem obter as lutas não pode refletir-se como em um livro de contabilidade, através de resultados ativos e passivos que se pode consolidar ano após ano, nem pode se refletir em uma organização de massas permanente. Pelo contrário, os "ganhos" se plasmam em fatores abstratos (consciência adquirida, enriquecimento do programa histórico proletário com as lições da luta, perspectiva para o futuro...), que se conquistam em grandes momentos de agitação para acabar desaparecendo do conhecimento imediato das amplas massas até se recuar no pequeno universo de minúsculas minorias, de maneira que pode se criara ilusão de ótica de que nunca tenha existido.
Assim ocorreu com os sovietes: entre 1905 e 1917 terminaram reduzidos a uma "idéia" que orientava a reflexão e os combates políticos de um punhado de militantes. Mas, ao contrário do que pensam os pragmáticos que só valorizam aquilo que se pode tocar e ver, essa "idéia" tinha uma poderosa força material. Em 1907, Trotsky escrevia: "Está fora de dúvida que a nova próxima investida da revolução trará consigo em todos os lados a criação de conselhos operários" [4]. De fato, os grandes protagonistas da Revolução de fevereiro foram os sovietes.
As minorias revolucionárias, especialmente os bolcheviques depois de 1905, defenderam e propagaram a ideia de constituir sovietes. Estas minorias mantiveram a chama da memória coletiva da classe operária. Por esta razão, quando eclodiram as greves de fevereiro que rapidamente tomaram uma grande amplitude, houve numerosas iniciativas e chamamentos para constituir sovietes. Anweiler sublinha que: "este pensamento nasceu tanto nas fábricas em greve como também nos círculos intelectuais revolucionários. Testemunhos presenciais informam que em algumas fábricas desde 24 de fevereiro eram eleitos homens de confiança para um soviete que estava se organizando" [5].
Quer dizer, a ideia que durante longo tempo esteve reduzida a pequenas minorias foi amplamente assumida na prática pelas massas em luta.
Por outro lado, o Partido bolchevique contribuiu significativamente para o surgimento dos sovietes. Esta contribuição não se baseou em um esquema organizativo prévio ou em impor uma cadeia de organizações intermediárias que ao fim desembocaria na formação de sovietes, mas em algo muito diferente, como veremos, vinculado a um ferrenho embate político.
No inverno de 1915, quando começaram a surgir algumas greves, sobretudo em Petrogrado, a burguesia liberal havia concebido um meio de atrelar os operários à produção de guerra mediante a proposta de eleições nas empresas para formar um "Grupo Operário" dentro dos Comitês industriais de guerra. Os mencheviques propuseram a participação e obtiveram uma ampla maioria, trataram de utilizar o "Grupo Operário" como um canal para apresentar reivindicações. Ou seja: reivindicavam uma "organização operária" totalmente vendida ao esforço de guerra, como já estavam os sindicatos em outros países europeus.
Os bolcheviques se opuseram a essas propostas. Lênin, em outubro de 1915, disse: "estamos contra a participação nos comitês industriais de guerra que ajudam a levar a guerra imperialista reacionária" [6]. Os bolcheviques chamavam à eleição de comitês de greve e o comitê do partido de Petrogrado propôs que: "os representantes das fábricas, eleitos baseados no sistema representativo proporcional em todas cidades, devem formar o Soviete de Deputados de toda Rússia" [7].
Em um primeiro momento, os mencheviques com sua política de eleições ao Grupo Operário controlaram ferrenhamente a situação. As greves que aconteceram no inverno de 1915 e as muito mais numerosas que eclodiram na segunda metade de 1916 permaneceram sob a égide do Grupo Operário menchevique, embora aqui ou acolá se formassem efêmeros comitês de greve. Todavia, a semente acabou frutificando em fevereiro de 1917.
A primeira tentativa de constituir um Soviete se realizou em Petrogrado em uma reunião improvisada celebrada no palácio Táuride em 27 de fevereiro. Os participantes não eram representativos; havia membros do partido menchevique e do Grupo Operário junto com alguns representantes bolcheviques e elementos independentes. Ali surgiu um debate muito significativo que colocava em jogo duas opções totalmente opostas: os mencheviques pretendiam que a reunião se autoproclamasse "Comitê provisório do Soviete", o bolchevique Chliapnikov... "(...) se opôs fazendo notar que isso não podia ser feito na ausência de representantes eleitos pelos operários. Pediu que os convocassem urgentemente e a assembléia lhe deu razão. Decidiu-se acabar a sessão e lançar convocatórias aos principais centros operários e os regimentos que se levantaram" [8].
A proposta teve efeitos fulminantes. Na mesma noite de 27, começou a circular por numerosos bairros, fábricas e quartéis. Operários e soldados estavam em alerta acompanhando muito de perto o desenrolar dos acontecimentos. No dia seguinte ocorreram numerosas assembléias nas fábricas e nos quartéis, uma após outra a decisão era a mesma: constituir um soviete e eleger um delegado. Pela tarde, o palácio Táuride estava lotado de delegados de operários e soldados. Sukhanov, nas suas Memórias [9], descreve a reunião que ia tomar a decisão histórica de constituir o Soviete: "no momento de iniciar a sessão havia uns 250 deputados, porém novos grupos entravam sem cessar no salão" [10], fala da eleição da presidência da reunião e de como ao eleger a ordem do dia, a sessão foi interrompida por diferentes delegados dos soldados que queriam transmitir as mensagens das suas respectivas assembléias de regimento. Resume uma delas: "Os oficiais desapareceram. Não queremos servir mais contra o povo, nos associaremos a nossos irmãos os operários, todos unidos para defender a causa do povo. Daremos nossas vidas por isso. Nossa assembléia geral pediu-nos que os saudemos". Ao que acrescenta Sukhanov: "e com uma voz sufocada pela emoção, entre as ovações da assembléia estremecida, o delegado acrescentou: Viva a Revolução!" [11]. A reunião constantemente interrompida pela chegada de novos delegados que queriam transmitir a posição dos seus representados, foi abordando sucessivamente as questões: a constituição de milícias nas fábricas, a proteção contra saques e contra ações das forças czaristas. Um delegado propôs a criação de uma "Comissão literária" que redigisse um chamamento dirigido a todo o país, a qual foi aprovada por unanimidade [12]. A chegada de um delegado do regimento de Semionofsky - famoso por sua fidelidade ao Czar e seu papel repressivo em 1905 - provocou uma nova interrupção. O delegado proclamou: "Camaradas e irmãos, vos trago a saudação de todos os homens do regimento Semionofsky. Todos até o último decidimos unirmos ao povo". Isso criou.. "... uma corrente de entusiasmo romântico que envolveu toda a assembléia" [13]. A assembléia organizou um "estado maior da insurreição" ocupando todos os pontos estratégicos de Petrogrado.
A assembléia do soviete não aconteceu no vazio. As massas estavam mobilizadas. Sukhanov assinala o ambiente que rodeava a sessão: "A multidão era muito compacta, dezenas de milhares de homens vieram saudar a revolução. Os salões do palácio não tinha sido capaz de conter mais pessoas e, nas portas, os cordões da Comissão Militar conseguiam conter a uma multidão mais numerosa ainda" [14].
Em 24 horas o Soviete era dono da situação. O triunfo da insurreição em Petrogrado provocou a extensão da revolução a todo país. "A rede de Conselhos operários e de soldados em toda Rússia formava a coluna vertebral da revolução. Com sua ajuda a revolução havia se estendido como uma trepadeira por todo o país" [15].
Como ganhou forma essa enorme "trepadeira" que imediatamente ocupou todo o território russo? Existem diferenças entre a formação dos Sovietes em 1905 e em 1917. Em 1905, a greve eclodiu em janeiro e as sucessivas ondas de greve não deram lugar a nenhuma organização massiva salvo algumas exceções. Os sovietes começaram a constituir-se tardiamente, em outubro. Em contrapartida, em 1917, a luta mesma criou os sovietes desde o próprio início. Os chamamentos de 28 de fevereiro do Soviete de Petrogrado caíram em solo fértil. A espantosa rapidez com que se formou em menos de 24 horas já revela de per si que a vontade de amplas camadas de operários e soldados era a constituição do Soviete.
As assembléias eram cotidianas. E não se limitavam a eleger o delegado para o Soviete. Frequentemente o acompanhavam ao local da reunião geral em comitiva massiva. Por outro lado, formavam-se paralelamente sovietes de bairro. O próprio soviete havia lançado um chamamento a constituí-los, porém nesse mesmo dia os operários do combativo bairro de Vyborg, uma concentração proletária nos arredores de Petersburgo, haviam se adiantado formando um soviete de distrito e lançando um combativo chamamento a constituí-los por todo o país. Seu exemplo foi imitado nos dias seguintes por outros bairros populares.
Do mesmo modo, as assembléias nas fábricas formaram imediatamente conselhos de fábrica. Estes, embora surgidos para necessidades reivindicativas e de organização interna do trabalho, não se restringiam a isso e estavam fortemente politizados. Anweiler reconhece que: "Os conselhos de fábrica adquiriram no transcurso do tempo uma sólida organização em São Petersburgo o que em certa medida representava uma concorrência a respeito ao Conselho de deputados operários. Associaram-se aos conselhos de rayon (bairros), cujos representantes elegiam um Conselho central com um comitê executivo à frente. Dado que abarcavam aos trabalhadores diretamente no seu local de trabalho, cresceu seu papel revolucionário na mesma medida em que o Soviete [de São Petersburgo] se convertia em uma instituição duradoura e começava a perder seu estreito contato com as massas"[16].
A formação de Sovietes se extendeu como um rastro de pólvora por toda Rússia. Em Moscou, "em 10 de março tiveram lugar as votações para a eleição de delegados nas fábricas e o Soviete celebrou sua primeira sessão elegendo um Comitê Executivo de 30 membros. No dia seguinte, formou-se o Conselho definitivamente; foram fixadas normas de representatividade, votaram-se em delegados para o Soviete de Petrogrado e se aprovou a formação do novo governo provisório (...) A marcha triunfal da revolução que se propagou de São Petersburgo a toda Rússia estava acompanhada de uma onda revolucionária de atividade organizativa em todas as camadas sociais que encontrou sua mais forte expressão na formação de Sovietes em todas as cidades do Império, desde a Finlândia até o oceano Pacífico" [17].
Embora se ocupassem de assuntos locais, sua principal preocupação eram problemas gerais: a guerra mundial, o caos econômico, a extensão da revolução a outros países e tomaram medidas para concretizá-la. Há de se destacar que o esforço de centralizar os sovietes veio fundamentalmente "de baixo" e não a partir de cima. Citamos anteriormente como o Soviete de Moscou decidiu enviar delegados ao Soviete de São Petersburgo, considerado de maneira natural como o centro de todo o movimento. Anweiler assinala que: "os conselhos de operários e soldados de outras cidades mandavam os seus delegados a São Petersburgo ou mantinham observadores constantes no soviete"[18]. Desde meados de março surgiram iniciativas de congressos regionais de sovietes. Em Moscou aconteceu uma conferência dessa índole entre 25-27 de março com participação de 70 conselhos operários e 38 de soldados. Na bacia do Donets em uma conferência similar se juntaram 48 sovietes. Tudo isso culminou com a celebração de uma primeira tentativa de Congresso de sovietes de toda Rússia que ocorreu de 29 de março a 3 de abril e que reuniu delegados de 480 sovietes.
O "vírus organizativo" contagiou os soldados que, fartos da guerra, desertavam dos campos de batalha, se amotinavam, expulsavam os oficiais e decidiam voltar para casa. Diferente de 1905 onde apenas houve sovietes de soldados, agora esses proliferavam em regimentos, encouraçados, bases navais, arsenais... Os soldados constituíam um conglomerado de classes sociais sendo principalmente camponeses e em menor medida operários. No entanto, apesar da heterogeneidade reinante, uniram-se majoritariamente ao proletariado. Como assinala um historiador e economista burguês Tugan-Baranovski: "Não foi o exército quem desencadeou a insurreição, foram os operários. Não foram os generais, mas soldados que se dirigiram à Duma [19] do Império. E os soldados apoiaram os operários não por obtemperar docilmente às ordens dos seus oficiais, mas... porque eles sentiam-se aparentados pelo sangue aos operários, como classe trabalhadora, como eles próprios." [20] .
A organização soviética ganhou lentamente o campo até se fazer mais ampla a partir de maio de 1917, onde a formação de Sovietes Camponeses começou a agitar as massas habituadas a serem tratadas como bestas durante séculos. Era também uma diferença fundamental a respeito de 1905 onde se havia dado alguns levantes camponeses totalmente desorganizados;
Que toda Rússia se visse coberta por uma gigantesca rede de Conselhos é um fato histórico de enorme transcendência. Como assinala Trotsky: "Se olharmos para os séculos passados, a passagem do poder para as mãos da burguesia parece seguir uma regra definida: em todas as revoluções precedentes, nas barricadas lutavam operários, pequenos camponeses, pequenos artesãos, certo número de estudantes; os soldados tomavam partido; a seguir, a burguesia bem abastecida, que tinha prudentemente observado os combates de barricadas pela janela, recolhia o poder." [21] ,porém desta vez não foi assim, as massas deixaram de "trabalhar para os outros" e se dispuseram trabalhar para si mesma através dos conselhos. Seu trabalho ocupava todos os assuntos da vida econômica, política, social e cultural.
As massas operárias estavam mobilizadas. A expressão dessa mobilização era os sovietes e, ao redor deles, uma imensa rede de organizações do tipo soviético (conselhos de bairros e conselhos de fábrica), rede que se nutria, ao mesmo tempo que impulsionava, de uma impressionante multiplicação de assembléias, reuniões, debates, atividades culturais... Operários, soldados, mulheres, jovens, se entregavam a uma atividade fervorosa. Viviam em uma espécie de assembléia permanente. Interrompia-se o trabalho para assistir a assembléia da fábrica, ao soviete da cidade ou de bairro, a concentrações, comícios, manifestações. É significativo que após a greve de fevereiro apenas houve greves em momentos muito determinados ou em situações pontuais ou locais. Contrariamente a uma visão restritiva, a ausência de greves não significava desmobilização. Os operários estavam em luta permanente, mas a luta de classes, como dizia Engels, constitui a unidade que forma a luta econômica, a luta política e a luta ideológica. E as massas operárias estavam entregues simultaneamente a essas três dimensões do seu combate. Ações massivas, manifestações, concentrações, debates, circulação de livros e jornais, as massas operárias russas, haviam tomado em suas mãos seu próprio destino e encontravam no seu interior reservas inesgotáveis de pensamento, iniciativas, investigação, tudo era abordado sem descanso em amplos fóruns profundamente coletivos.
O Governo provisório, camuflado por trás dos sovietes, continuava sua política de guerra e não se preocupava em resolver os graves problemas que afligiam os operários e camponeses. Isto conduzia os sovietes à inoperância e ao desaparecimento, como pode se constatar através das declarações de dirigentes social-revolucionários: "Os sovietes não representam nenhum governo frente à Assembléia constituinte nem muito menos estão ao mesmo nível que o Governo provisório. São conselheiros do povo na sua luta e são conscientes que representam somente uma parte do país e só gozam da confiança daquelas massas populares por cujos interesses lutam. Por isso os sovietes têm evitado sempre tomar o poder nas suas próprias mãos e constituir um governo" [25].
Um setor da classe operária começou a tomar consciência desta armadilha já desde os primeiros dias de março. Houve acalorados debates em alguns sovietes, conselhos de bairro e comitês de fábrica sobre a "questão do poder". Porém nesse momento a vanguarda bolchevique recuava, pois seu Comitê Central [26] havia adotado uma resolução de apoio crítico ao Governo provisório apesar da forte oposição que provocou em diferentes secções do partido [27].
O debate se intensificou em março. "O comité de Vyborg juntou numa reunião política milhares de operários e de soldados que, quase unanimemente, adoptaram uma resolução sobre a necessidade da tomada do poder pelo Soviete. O comité de Vyborg celebrava comícios com milhares de operários e soldados, nos quais se votava, quase por unanimidade, resoluções que faziam ressaltar a necessidade de que o Soviete tomasse o poder. [...] A resolução de Vyborg, por causa do seu sucesso, foi imprimida e colada em cartazes. Mas o comitê de Petrogrado proibiu essa resolução " [28].
A chegada de Lênin em abril transformou radicalmente a situação. Lênin, que desde seu exílio suíço via com inquietude as notícias que chegavam fragmentadas da vergonhosa conduta do Comitê Central do Partido bolchevique, havia chegado às mesmas conclusões que o Comitê de Vyborg. Nas suas Teses de Abril formulou claramente que: "A peculiaridade do momento atual na Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau necessário de consciência e organização, para a sua segunda etapa, que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato." [29] . [Fonte: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm] [80]
Muitos autores não enxergam esta intervenção decisiva de Lênin como uma manifestação clara do papel de vanguarda do partido revolucionário e de seus militantes mais destacados, mas que, pelo contrário, a consideram um ato de oportunismo político. Segundo eles, Lênin aproveitou a ocasião de utilizar os sovietes como plataforma para conquistar "o poder absoluto" e trocou a jaqueta de "ferrenho jacobino" pela roupagem anarquista do "poder direto das massas". De fato, um antigo membro do partido lhe alfinetou: "Durante muitos anos, o lugar de Bakunine na revolução russa ficou livre: agora, ele foi tomado por Lênin." [30].
Esta lenda é radicalmente falsa. A confiança de Lênin no papel dos Sovietes vinha de longe, extraía das lições que havia tirado da Revolução de 1905, em um projeto de resolução que propôs ao IVº Congresso do Partido (abril 1906) escreveu que: "À medida que os conselhos operários representam núcleos do poder revolucionário, sua força e significado dependem totalmente da força e da vitória do levante", para acrescentar em seguida que: "este tipo de organizações está condenada ao fracasso, se não se apóiam no exército revolucionário e derrotem os poderes estatais (quer dizer, se convertem em um governo provisório revolucionário)" [31].
Em 1915 voltava a insistir na mesma idéia: "Conselhos de delegados operários e instituições parecidas devem ser considerados como órgãos de insurreição, como órgãos de poder revolucionário. Estas instituições somente podem ser de interesse seguro em relação ao surgimento da greve massiva política" [32].
Lênin, no entanto, era consciente de que o combate não tinha feito mais do que começar: "Somente lutando contra esta inconsciência confiante (e pode-se e deve-se lutar contra ela apenas ideologicamente, pela persuasão fraternal, apontando para a experiência da vida) podemos libertar-nos do desencadeamento de frases revolucionárias reinantes e impulsionar verdadeiramente tanto a consciência do proletariado como a consciência das massas, como a sua iniciativa audaz e resoluta à escala local" [33]. Isso se comprovou amargamente no primeiro Congresso dos sovietes de toda Rússia. Convocado para unificar e centralizar a rede dos diferentes tipos de sovietes espalhados por todo o território, adotou resoluções que não só iam contra a revolução, mas presumia-se um golpe moral nos próprios sovietes. Nos meses de junho e julho salta à plena luz um grave problema político: a crise dos sovietes, seu afastamento da revolução e das massas.
A situação geral era de completo desajuste: fechamento de indústrias e aumento considerável do desemprego, paralisia dos transportes, perda de colheitas no campo, racionamento geral. E no exército se multiplicavam as deserções e as tentativas de confraternização com os soldados da frente inimiga. O bando imperialista da Entente (França, Inglaterra e agora Estados Unidos) pressionava o Governo provisório para que empreendesse uma ofensiva geral contra as frentes alemãs. Complacentes com essas pressões, os delegados mencheviques e social-revolucionários fizeram o Congresso dos sovietes adotar uma resolução em apoio à ofensiva militar embora uma importante minoria -não só bolcheviques- estivesse contra. O Congresso rechaçou uma proposta de aprovação da jornada de trabalho de 8 horas e jogou abaixo propostas favoráveis aos camponeses. Em lugar de ser expressão da luta revolucionária se convertia em porta voz do combate da burguesia contra o ascenso da revolução.
O conhecimento das sucessivas resoluções do Congresso -especialmente a que aprovava a ofensiva guerreira- provocou uma profunda decepção nas massas. Percebiam que seu órgão escapava-lhes das mãos, porém começaram a reagir. Sovietes de bairro de São Peterburgo, o Soviet da vizinha cidade marítima de Kronstadt e diversos conselhos de fábrica e comitês de vários regimentos propuseram uma grande manifestação em 10 de junho cujo objetivo era pressionar o Congresso para que mudasse sua política e se orientasse para a tomada completa do poder expulsando os ministros capitalistas.
A resposta do Congresso foi proibir temporariamente as manifestações argüindo o "perigo" de um "complô monárquico". Os delegados do Congresso foram mobilizados para se dirigirem às fábricas e regimentos para "convencer" os operários e soldados. O depoimento de um delegado menchevique publicado em Izvestia, órgão do Soviete de Moscou, é eloqüente: "Durante toda a noite, a maioria do Congresso, mais de quinhentos dos seus membros, sem pregar olho, por equipas de dez, percorreram as fábricas, as oficinas e os quartéis de Petrogrado, exortando os homens a absterem-se de manifestar. O Congresso, num bom número de fábricas e de oficinas e também numa certa parte da guarnição, não gozou de qualquer autoridade ... Os membros do Congresso foram acolhidos muitas vezes de maneira pouco amistosa, por vezes mesmo com hostilidade, e frequentemente foram repelidos colericamente." [34].
A frente burguesa compreendeu a necessidade de salvar seu trunfo principal -o sequestro dos sovietes- contra a primeira tentativa séria das massas por recuperá-los. Mas o fez - com seu maquiavelismo congênito - utilizando como bode expiatório os bolcheviques, contra os quais lançou uma furiosa campanha. No congresso de cossacos que se celebrava ao mesmo tempo que o Congresso dos sovietes, Miliukov designava: "os bolcheviques como os piores inimigos da revolução russa." (...) "É tempo de acabar com esses senhores.". [35] O Congresso cossaco decidiu: "apoiar os sovietes ameaçados. Nós cossacos jamais nos separaremos dos sovietes". A principal força repressiva do czarismo cerrava fileiras com os sovietes! Como disse Trotsky: "Contra os bolcheviques, os reaccionários estavam prontos a marchar mesmo com o Soviete para melhor o abafar a seguir" [36]. O menchevique Liber traçou claramente o objetivo quando disse no Congresso: "se queres que a massa que está com os bolcheviques os siga, rompam com o bolchevismo".
A violenta contraofensiva burguesa aconteceu numa situação em que as massas, no seu conjunto, eram ainda politicamente débeis. Os bolcheviques compreenderam e propuseram o cancelamento da manifestação de 10 de junho, o qual foi aceito com relutância em alguns regimentos e nas fábricas mais combativas.
Ao chegar a notícia ao Congresso dos sovietes, um delegado propôs que se realizasse a manifestação "verdadeiramente soviética" para o 18 de junho. Miliukov analisa assim essa convocatória: "Depois de pronunciar no Congresso dos sovietes discursos de tom liberal, depois de ter impedido a manifestação armada de 10 de junho, os ministros socialistas tiveram a sensação de que tinham, ido demasiado longe na sua aproximação ao nosso campo. Se assustaram e deram uma viragem para os bolcheviques". Trotsky o corrige justamente: "Não era precisamente uma viragem para os bolcheviques, mas algo muito distinto: uma tentativa de viragem para as massas contra o bolchevismo" [37].
Porém o tiro saiu pela culatra. Os operários participaram massivamente na manifestação de 18 de junho, com cartazes que exigiam todo poder aos sovietes, reclamando a saída de todos os ministros capitalistas, o fim da guerra, chamamento à solidariedade internacional... Os manifestantes seguiam massivamente as orientações bolcheviques e reivindicavam tudo ao contrário do que foi pedido pelo Congresso
A situação continuou se agravando. A burguesia russa, assessorado por seus aliados da Entente, encontrava-se metida em um beco sem saída. A famosa ofensiva militar estava se tornando um fiasco. Os operários e os soldados queriam uma mudança radical da política dos sovietes. Mas nas províncias a situação não estava tão clara e no campo, apesar da progressiva radicalização, a grande maioria estava com os socialistas revolucionários e com o Governo provisório.
Era o momento para a burguesia de perpetrar uma emboscada para as massas de São Petersburgo para levá-las a um enfrentamento prematuro que permitisse assentar um duro golpe na vanguarda do movimento e desta forma abrir as portas a contrarrevolução.
As forças burguesas estavam se reorganizando. Tinha se formado um "soviete de oficiais" cuja missão era organizar forças de elite para abater militarmente a revolução. Alentada pelas democracias ocidentais, as centúrias negras czaristas voltavam a levantar a cabeça. A velha Duma funcionava - segundo palavras de Lênin - como uma fábrica contrarrevolucionária sem que os líderes social-traidores dos sovietes lhe pusessem nenhum obstáculo.
Uma série de hábeis provocações foi tecida para jogar os operários de São Petersburgo na armadilha de uma insurreição prematura. Por um lado, o partido cadete retirou seus ministros do Governo provisório de tal forma que este ficou unicamente composto por "socialistas". Era uma forma de convidar aos operários que reivindicassem a tomada imediata do poder e se lançassem, portanto, à insurreição. A Entente colocou um claro ultimato ao Governo provisório no sentido de "eleger": os sovietes ou um governo constitucional. No entanto, a mais violenta provocação foi a ameaça de deslocar os regimentos mais combativos da capital para as regiões fronteiriças.
Quantidades numerosas de trabalhadores e soldados de Petersburgo morderam o anzol. A partir de vários sovietes de bairro, de fábrica e de regimento convocaram uma manifestação armada para o dia 4 de julho. O eixo da manifestação era a tomada do poder pelos sovietes. Isso mostrava como os operários compreendiam que não havia mais saída a não ser a revolução. Porém, ao mesmo tempo, pretendiam que os encarregados de exercer o poder fossem os sovietes tal e como estavam constituídos na ocasião: com a maioria de mencheviques e socialistas revolucionários cuja única preocupação era mantê-los submetido à burguesia. Produziu-se um cenário muito conhecido: um velho operário desafiando a um membro menchevique do Soviete: "por que não tomais o poder de uma vez?", uma cena significativa das ilusões persistentes no seio da classe operária. Era como pedir à raposa que cuidasse do galinheiro, tudo isso mostrava a insuficiência na consciência das massas e as ilusões que ainda as debilitava. Os bolcheviques não morderam a isca e alertaram da armadilha em curso. Entretanto, não o fizeram desde uma posição de suficiência, colocados em um pedestal a partir do qual dizer às massas o quanto estavam equivocadas. O que fizeram foi colocarem-se à frente da manifestação, estar com os operários e soldados, contribuir com todas suas forças para que a resposta massiva fosse firme, mas não se dirigisse para um confronto decisivo onde a derrota estava mais que garantida [38].
A manifestação se recolheu ordenadamente e não se lançou ao assalto revolucionário. O massacre foi evitado resultando em um triunfo das massas frente ao futuro. Porém a nível imediato, a burguesia não podia retroceder, tinha que apostar fortemente na via da contraofensiva. O Governo provisório, inteiramente constituído por ministros "operários", desencadeou uma brutal repressão ocupando-se especialmente dos bolcheviques. O partido foi declarado fora da lei, numerosos militantes aprisionados, toda sua imprensa fechada, Lênin teve de passar para a clandestinidade.
Graças a um esforço difícil e heróico, o Partido bolchevique contribuiu decisivamente para evitar a derrota das massas, da sua dispersão e da ameaça de debandada por causa da sua desorganização. O Soviete de São Petersburgo, em contrapartida, apoiado pelo Comitê executivo eleito no recente congresso soviético, se colocou claramente ao lado do Governo provisório. Avalizou a repressão e a perseguição de operários combativos. Adotou, uma após outra, resoluções repressivas. O Soviete havia chegado ao máximo da sua ignomínia.
A organização das massas em conselhos operários desde fevereiro de 1917 significou, para elas, a possibilidade de desenvolver sua força, sua organização e sua consciência para o assalto final contra o poder da burguesia. O período seguinte, chamado o período de dualidade de poder entre o proletariado e burguesia, foi uma fase crítica para as duas classes antagônicas que podia ter desembocado, tanto para uma como para outra, em uma vitória política e militar sobre a classe inimiga.
Durante todo esse período, o nível de consciência das massas, débil ainda em comparação com as necessidades de uma revolução proletária, era uma brecha que a burguesia tentaria utilizar para fazer abortar o processo revolucionário em gestação. Para isso dispunha de uma arma tão perigosa quanto prejudicial. A da sabotagem a partir de dentro, realizado por forças burguesas com cara "operária" e "radical". Esse cavalo de Tróia da contrarrevolução era formado naquele tempo, na Rússia, pelos partidos "socialistas" Menchevique e o SR.
No início, muitos operários alimentavam ilusões com relação ao Governo provisório, vendo-o como uma emanação dos sovietes, quando era, na realidade, seu pior inimigo. Quanto aos mencheviques e socialistas revolucionários, dispuseram de uma grande confiança entre as grandes massas, as quais conseguiram enganar com seus discursos radicais, sua fraseologia revolucionária. Isso lhes permitiu dominar politicamente a grande maioria dos sovietes. Graças a essa posição de força se dedicaram a esvaziá-los da sua substância revolucionária para colocá-los a serviço da burguesia. E se não lograram êxito foi porque as massas mobilizadas permanentemente, faziam sua própria experiência, o que as levou, com o apoio do Partido bolchevique, a derrubarem a máscara dos mencheviques e socialistas revolucionários na medida em que esses iam assumindo cada dia mais as orientações do Governo provisório sobre questões tão fundamentais como a guerra e as condições de vida.
No próximo artigo veremos como desde o fim de agosto de 1917, os sovietes conseguiram renovar-se e converter-se realmente em plataforma para a tomada do poder, o que culminou no triunfo da Revolução de outubro.
C.Mir 08-03-10
[1] Ver: https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_que_sao_os-Conselhos_Oper [81]ários
[2] Tanto para conhecer em detalhes de como se desenvolveu a revolução russa como para ver o papel decisivo desempenhado pelo partido bolchevique existe muito material. Destacamos: A História da Revolução Russa de Trotsky (2 volumes), Dez dias que abalaram o mundo de John Reed, nosso folheto sobre a Revolução Russa (Outubro de 1917) e diferentes artigos da nossa Revista Internacional, nºs 71, 72, 89, 90 e 91
[3] Este autor é altamente anti-bolchevique, mas narra de maneira fidedigna os fatos e reconhece com equanimidade os aportes bolcheviques, o que contrasta com os juízos sectários e dogmáticos que, de vez em quando, ele aplica.
[4] Citado por Oskar Anweiler, Los sovietes en Rusia, p. 96. Tradução nossa.
[5] Ibidem, p. 110.
[6] Ibid., p. 105.
[7] Ibid., p. 106.
[8] Gerald Walter, Vision d'ensemble de la Révolution russe (Visão do conjunto da Revolução Russa), p. 83, edição francesa, tradução nossa.
[9] Publicadas em 1922 em 7 volumes, dão o ponto de vista de um socialista independente, colaborador de Gorki e dos mencheviques internacionalistas de Martov. Embora esteve em discordância com os bolcheviques apoiou a Revolução de Outubro. Esta citação e as seguintes correspondem ao compêndio das Memórias publicadas em espanhol. Tradução nossa.
[10] Segundo Anweiler, op. cit., havia uns mil delegados no final de sessão e, nas sessões seguintes, chegou a ter 3000.
[11] Ibid., p. 54.
[12] Esta comissão proporia a edição permanente de um periódico do Soviete, Izvestia (Notícias) que apareceria regularmente a partir de então.
[13] Citado por Anweiler, op. cit.
[14] Ibid., p. 56.
[15] Ibid., p. 124
[16] Ibid., p. 133.
[17] Ibid., p. 121.
[18] Ibid., p. 129
[19] Duma: Câmara de Deputados na Rússia.
[20] Citado por Trotsky na História da Revolução Russa. Fonte:: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap08.htm [82]
[21] Trotsky, op. cit..Fonte: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap09.htm [83].
[22] Partido Constitucional Democrata (KD), ou Cadete, era o partido da grande burguesia constituído apressadamente em 1905. Seu chefe foi Miliukov, eminência parda da burguesia russa à época.
[23] Trotsky relata como a burguesia estava atada à paralisia e como os chefes mencheviques utilizaram seu controle sobre os sovietes para lhe entregar o poder incondicionalmente de tal maneira que Miliukov "não se preocupava em dissimular sua satisfação e sua agradável surpresa"(Memórias de Sukhanov),).
[24] Este advogado, muito popular nos círculos operários de antes da Revolução, terminou sendo nomeado chefe do Governo Provisório, dirigindo as diferentes tentativas para acabar com os operários. Suas intenções são reveladas pelas memórias do embaixador inglês da época: "Kerenski me pediu paciência assegurando-me que os sovietes acabariam morrendo de morte natural. Pouco a pouco iriam cedendo suas funções aos órgãos democráticos de administração autônoma".
[25] Citado por Anweiler, op. cit., p. 151.
[26] Era constituído por Stálin, Kamenev e Molotov. Lênin continuava exilado na Suíça e só tinha meios de contatar com o partido.
[27] Em uma reunião do Comitê do Partido de São Petersburgo, celebrada em 5 de março, o seguinte projeto de Resolução apresentado por Chliapnikov foi derrotado: "A tarefa do momento é formar um Governo provisório revolucionário que nasça da união dos conselhos de operários, soldados e camponeses. Como preparação para a completa conquista do poder central é imprescindível consolidar o poder dos conselhos de operários e soldados;" (Citado por Anweiler, op Cit., P. 156)
[28] Trotsky, op. cit., Fonte: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap15.htm [84]
[29] Nesse artigo não podemos abordar o conteúdo dessas Teses que são muito interessantes. Para tanto veja: "As teses de abril, farol da revolução proletária" (Fonte: https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/revolucao_mundial_teses_ab... [85])
[30] Trotsky, op. cit. Fonte: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap15.htm [84]
[31] Citado por Anweiler, op. cit., p. 88.
[32] Ibid., p. 92.
[33] Lênin, As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução (Projecto de Plataforma do Partido Proletário. Fonte: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/23.htm [86]
[34] Citado por Trotsky em História da Revolução Russa.Fonte: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap22.htm [87]
[35] É prova do cinismo típico da burguesia que seu chefe de então na Rússia fale em nome da "Revolução Russa"!
[36] Trotsky, op. cit. Fonte: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap22.htm [87]
[37] Ambas citações estão na página 412 do volumem I da História da Revolução Russa.
[38] Para uma análise mais detalhada deste episódio, remetemos ao leitor ao capítulo "As jornadas de Julho - O partido faz abortar uma provocação da burguesia" da nossa brochura Outubro de 1917: https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/revolucao_russe_partitdo.htm [88] .
A série O que são os conselhos operários? se propõe a responder a pergunta analisando a experiência histórica do proletariado. Não se trata de elevar os sovietes a um modelo infalível que simplesmente deveria ser copiado, mas que buscamos compreendê-los tanto nos seus erros como nos seus acertos para armar com a luz dessas lições as gerações atuais e futuras.
No primeiro artigo, vimos como nasceram com a Revolução de 1905 na Rússia [1], e no segundo como constituíram a peça vital da Revolução de fevereiro de 1917 e como entraram em uma profunda crise em junho-julho de 1917 até tornar-se reféns da contrarrevolução burguesa. [2]
Nesse terceiro artigo, veremos como foram recuperados pela massa de trabalhadores e soldados, que conseguiram, assim, tomar o poder em outubro de 1917.
Tanto nos processos naturais como nos processos sociais, a evolução nunca se faz em linha reta, mas através de contradições, convulsões, contratempos dramáticos, passos atrás e saltos adiante. Tudo isso se acentua muito mais com o proletariado, classe que por definição está privada da propriedade dos meios de produção e que não dispõe de nenhum poder econômico. Sua luta segue uma marcha convulsiva e contraditória, com passos atrás, com aparentes perdas do que parecia adquirido para sempre, com grandes momentos de apatia e desmoralizações.
Após a revolução de fevereiro, os operários e soldados pareciam ir de êxito em êxito, a influência do bolchevismo crescia sem cessar, as massas – sobretudo as da região de Petrogrado – se orientavam para a revolução. Esta parecia amadurecer como uma fruta.
Contudo, o mês de julho colocou em destaque esses momentos de crises e encruzilhada tão típicos da luta proletária. "Os operários e os soldados de Petrogrado, que no próprio impulso para a frente,esbarraram de um lado, com a falta de clareza e com as contradições dos próprios objetivos e, de outro lado, com o atraso das províncias e do front, sofreram uma derrota direta". [3]
A burguesia se aproveitou para empreender uma furiosa ofensiva: os bolcheviques foram caluniados como "agentes da Alemanha" [4], foram aprisionados em massa, organizou bandos paramilitares que os agrediam nas ruas, boicotavam seus comícios, assaltavam seus locais e imprensas. Fizeram-se presentes as terríveis Centúrias Negras czaristas, os círculos monárquicos, as associações de oficiais. A burguesia – com aval da diplomacia inglesa e francesa – aspirava à destruição dos sovietes e à implantação de uma ditadura feroz. [5]
A revolução iniciada em fevereiro estava em um ponto onde o espectro da derrota aproximava perigosamente: "Muita gente acreditou que, naquele momento, a Revolução houvesse chegado a um ponto morto, em verdade, porém, era a própria Revolução de Fevereiro que dera tudo se si, até o fundo. Semelhante crise interior da consciência das massas, combinada com a repressão e com a calúnia, conduziu às perturbações e aos recuos e, em alguns casos, mesmo, ao pânico. Os adversários tornaram-se atrevidos. Na massa a crise fez subir à superfície tudo o que existia de atrasado, de inerte e de descontente, em conseqüência das comoções e das privações". [6]
Contudo, nesse momento difícil, os bolcheviques constituíram uma fortaleza essencial das forças proletárias. Perseguidos, caluniados, não cederam nem empreenderam uma debandada, embora tenha havido duros debates nas suas fileiras e um bom número de militantes se tenha afastado do partido. Seus esforços se centraram em tirar lições da derrota e, sobretudo, a principal delas: porque os Sovietes estavam seqüestrados pela burguesia e corriam perigo de desaparecer?
De fevereiro a julho, tinha se mantido uma situação de dualidade de poder: por um lado, os Sovietes, porém diante dele, o poder do Estado burguês não tinha sido derrubado e tinha ativos suficientes para restabelecer-se plenamente. Os acontecimentos de julho tinham feito saltar pelos ares o equilíbrio impossível entre ambos, os sovietes e o poder do Estado: "O Estado-Maior General e os altos comandos do exército, com a ajuda consciente ou semiconsciente de Kérenski, que até os socialistas-revolucionários mais destacados chamaram agora Cavaignac [7], tomaram de facto o poder estatal nas mãos, passando a metralhar as unidades revolucionárias das tropas na frente, a desarmar as tropas e os operários revolucionários em Petrogrado e em Moscovo, a sufocar e esmagar Níjni-Nóvgorod, a prender os bolcheviques e a fechar os seus jornais não só sem julgamento mas mesmo sem decreto do governo. (...) a verdadeira essência da política da ditadura militar, que hoje domina na Rússia e é apoiada pelos democratas-constitucionalistas e os monárquicos, consiste em preparar a dispersão dos Sovietes". [8]
Lênin demonstrava igualmente como os mencheviques e os socialistas-revolucionários, "traíram definitivamente a causa da revolução ao pô-la nas mãos dos contra-revolucionários e ao converterem-se a si próprios e aos seus partidos e aos Sovietes em folha de parreira da contra-revolução". [9]
Em tais condições, "todas as esperanças de um desenvolvimento pacífico da revolução russa se desvaneceram definitivamente. A situação objetiva é esta: ou a vitória da ditadura militar até ao fim ou a vitória da insurreição armada dos operários, (...) A palavra de ordem da passagem de todo o poder aos Sovietes foi a palavra de ordem do desenvolvimento pacífico da revolução possível em Abril, em Maio, em Junho e até 5-9 de Julho". [10]
No seu livro Os sovietes na Rússia, Oskar Anweiler, utiliza essas análises para demonstrar que: "com isso se proclamou pela primeira vez, em uma formulação apenas camuflada, o objetivo da conquista do poder único pelos bolcheviques, o qual, até agora, sempre tinha aparecido oculto atrás do lema de "Todo poder aos sovietes"". [11]
Aparece aí a famosa e reiterada acusação da "utilização tática dos bolcheviques para conquistar o poder absoluto". No entanto, uma análise do artigo que Lênin escreveu em seguida demonstra que suas preocupações eram radicalmente diferentes das que Anweiler lhe atribui: buscava como tirar os sovietes da crise na qual se debatiam, como poderiam sair do poço que os levava ao seu desaparecimento.
No artigo A Propósito das Palavras de Ordem, Lênin se pronunciava de forma inequívoca: "É precisamente o proletariado revolucionário que, depois da experiência de Julho de 1917, tem de tomar ele próprio nas suas mãos o poder de Estado — sem isso é impossível a vitória da revolução. (...) Nesta nova revolução poderão e deverão surgir os Sovietes, mas não os Sovietes atuais, não os órgãos de um espírito de conciliação com a burguesia, mas os órgãos de uma luta revolucionária contra ela. É certo que também então seremos pela construção de todo o Estado segundo o tipo dos Sovietes. Não se trata da questão dos Sovietes em geral, mas da questão da luta contra a contra-revolução atual e contra a traição dos Sovietes atuais". [12] De maneira ainda mais precisa afirma que "começa um novo ciclo, no qual entram não as velhas classes, não os velhos partidos, não os velhos Sovietes, mas classes, partidos e Sovietes renovados pelo fogo da luta, temperados, instruídos, reconstituídos pelo curso da luta". [13]
Esses escritos de Lênin participavam de um tempestuoso debate nas fileiras do Partido bolchevique que se cristalizou no VI Congresso do Partido celebrado entre 26 de julho a 3 de agosto na mais rigorosa clandestinidade e com Lênin e Trotsky ausentes pois eram particularmente procurados pela polícia. No mencionado Congresso se expressaram três posições: uma, desorientada pela derrota de julho e pela deriva dos sovietes, que preconizava abertamente "deixá-los de lado" (Stálin, Molotov, Sokolnikov); outra que advogava por manter sem mais nada o velho lema "Todo poder aos sovietes"; uma terceira que propugnava apoiar-se em organizações "de base" (conselhos de fábricas, sovietes locais, sovietes de bairros) para reconstituir o poder coletivo dos operários.
Esta última provou ser a posição correta. Desde meados de julho as organizações soviéticas "de base" iniciaram um combate pela renovação dos sovietes.
No segundo artigo da série vimos que ao redor dos sovietes, as massas se organizaram em uma gigantesca rede de organizações soviéticas de todo tipo que expressavam sua unidade e sua força. [14] A cúpula da rede soviética – os sovietes de cidade – não flutuava sobre um oceano de passividade das massas, pelo contrário, estas tinham uma intensa vida coletiva concretizada em milhares de assembleias, conselhos de fábricas, sovietes de bairro, assembleias interdistritais, conferências, encontros, comícios... Sukhanov [15] nos dá uma ideia do ambiente reinante na Conferência de Conselhos de Fábrica de Petrogrado: "Em 30 de maio se iniciou no Salão Branco uma Conferência dos comitês de fábrica e de outros estabelecimentos da capital e arredores. Aquela conferência foi preparada "na base"; seu plano tinha sido aperfeiçoado em locais de trabalho sem nenhuma participação dos organismos governamentais encarregados das questões do trabalho, nem sequer dos órgãos do soviete (...) A Conferência era realmente representativa: operários vindos dos locais de trabalho participaram em grande número e ativamente das suas tarefas. Durante dois dias, aquele parlamento operário discutiu sobre a crise econômica e o desastre do país". [16]
Inclusive nos piores momentos após as jornadas de Julho, as massas lograram conservar essas organizações, as quais não se viram tão afetadas pela crise como "os grandes órgãos soviéticos": O Soviete de Petrogrado, o Congresso dos sovietes e seu Comitê Executivo Central, o CEC.
Duas razões concomitantes explicam essa diferença: em primeiro lugar, as organizações soviéticas de "baixo" eram convocadas sob o impulso das massas que, intuindo problemas ou perigos, propunham uma assembleia e em poucas horas conseguiam realizar. Muito diferente era a situação dos órgãos soviéticos de "cima": "Na mesma medida que o trabalho do Soviete começou a funcionar bem, perdeu em grande parte o contato com as massas. As sessões plenárias que eram celebradas quase que diariamente nas primeiras semanas, foram poucas e a assistência dos deputados era cada vez menos assídua. O comitê executivo do Soviete visivelmente ia ficando fora do controle dos deputados". [17]
Em segundo lugar, mencheviques e socialistas-revolucionários se concentraram no corpo burocrático dos grandes órgãos soviéticos. Sukhanov descreve o ambiente de intrigas e manobras que dominava o Soviete de Petrogrado: "O Presidium do Soviete que tinha sido na sua origem um órgão de procedimento interno, passou a substituir o Comitê Executivo nas suas funções, a suplantá-lo. Além disso, se reforçou como um organismo permanente e bastante oculto que recebeu o nome de "Câmara das Estrelas". Ali se encontravam os membros do Presidium e uma espécie de camarilha composta de amigos de Tchkheidzé e Tsereteli. [18] Esse último se converteu em um dos responsáveis do ditatorialismo no seio do Soviete". [19]
Em contrapartida, os bolcheviques faziam uma intervenção ativa e cotidiana nos órgãos soviéticos de base. Sua presença era muito dinâmica, e com frequência eram os primeiros a propor assembleias e debates, para a adoção de resoluções capazes de dar expressão à vontade e ao avanço das massas.
Em 15 de julho, uma manifestação de operários das grandes fábricas de Petrogrado se concentrava diante do edifício do Soviete de Petrogrado denunciando as calúnias contra os bolcheviques e exigindo a libertação dos presos. Em 20 de julho, a assembleia da fábrica de armas de Sestroretsk pedia o pagamento dos salários que não foram pagos em decorrência da sua participação nas jornadas de julho e, atendida a reivindicação, dedicava esse dinheiro para financiar a imprensa contra a guerra. Trostky afirma como, em 24 de julho, "uma assembleia dos operários de 27 empresas do bairro de Peterhoff votaria uma resolução de protesto contra o Governo irresponsável e contra a política dele,contra-revolucionária". [20]
Trotsky destaca outro fato: em 21 de julho chegaram a Petrogrado delegações de soldados do front. Estavam fartos dos sofrimentos que ali viviam e da repressão que os oficiais haviam colocado em prática contra os mais destacados. Dirigiram-se ao Comitê Executivo do Soviete, que não lhes deram a menor atenção. Vários militantes bolcheviques os aconselharem a entrar em contato com fábricas e regimentos de soldados e marinheiros. A acolhida foi radicalmente distinta: lhes receberam como algo próprios, os escutaram, lhes proporcionaram comida e local para dormir.
Trotsky assinala que "em uma conferência que não fora convocada pelos dirigentes, mas organizada pela base, participaram delegados de 29 regimentos do front, de 90 fábricas de Petrogrado, marinheiros de Kronstadt e guarnições dos arredores. No centro da conferencia encontravam-se delegados vindos das trincheiras; entre eles estavam também alguns jovens oficiais. Os operários ouviam os homens do front avidamente, procurando não perder uma palavra sequer daquilo que diziam. Aqueles narrava de que modo a ofensiva e as conseqüências dela devoravam a Revolução. Obscuros soldados, que não eram absolutamente agitadores, descreviam em conversas simples, o ramerrão cotidiano da vida do front. Esses detalhes era perturbadores, porquanto demonstravam claramente, a subida à tona de tudo o que havia de mais detestável no antigo regime", e acrescenta em seguida: "Se bem que, dentre os delegados do front, os socialistas-revolucionários estivessem, inegavelmente, em maioria, foi adotada, quase unanimemente, uma violenta resolução bolchevique: houve apenas 4 abstenções. A resolução adotada não permaneceria letra morta: uma vez separados, os delegados contariam a verdade, diriam de que modo foram afastados pelos líderes conciliadores e de que maneira foram recebidos pelos operários". [21]
O Soviete de Kronstadt – uma dos locais de vanguarda da revolução – também se fez ouvir: "A 20 de julho, um meeting realizado na praça da Ancora, exigiu a entrega do poder aos sovietes, o envio dos Cossacos, dos guardas-civis e dos policiais para o front, a abolição da pena de morte, a admissão em Tsarskoe Selo, de delegados de Kronstadt para verificarem se Nicolau II, na prisão, estava sendo suficientemente e rigorosamente fiscalizado, o deslocamento dos “batalhões da morte”, a confiscação dos jornais burgueses, etc...". [22] Em Moscou, os conselhos de fábrica tinham decidido celebrar sessões comuns com os comitês de regimentos e no final de julho uma Conferência de conselhos de fábricas com assistência de delegados dos soldados adotou uma resolução de denúncia do Governo e de petição de "novos sovietes para substituir o Governo". Na Eleição em primeiro de agosto, 6 dos 10 conselhos de bairro de Moscou passaram a ter maioria bolchevique.
Diante dos aumentos dos preços praticados pelo Governo e os contínuos fechamentos de fábricas pelos patrões, as greves e manifestações massivas começaram a proliferar. Delas participavam setores operários até então considerados como "atrasados" (papeleiros, coureiros, borracheiros e porteiros).
Na secção operária do Soviete de Petrogrado, Sukhanov relata um fato significativo "decidiu criar um Presidium que antes não tinha e aquele Presidium terminou composto por bolcheviques". [23]
Em agosto se celebrou em Moscou uma Conferência Nacional cuja pretensão era, como denuncia Sukhanov: "obrigar os Sovietes a desaparecer diante da vontade de todo o resto da população, reivindicando uma política de união nacional (...) liberar o governo da tutela de toda uma série de organizações operárias, camponesas, zimmerwalianas, semi-alemãs, semi-judias e outros grupos de bandidos". [24]
Os operários perceberam o perigo e numerosas assembleias votaram moções propondo a greve geral. O Soviete de Moscou, rejeitou, no entanto, por 364 votos contra 304, mas os sovietes de bairro protestaram conta essa decisão, "as fábricas reclamaram, imediatamente, a realização de novas eleições ao Soviete de Moscou que, não somente se deixava distanciar das massas, como também caira em grave antagonismo com elas. No Soviete de bairro de Zamoskvoretsky, subúrbio de Moscou, de acordo com os Comitês de fábrica, exigiu-se que os deputados que marchariam "contra a vontade da classe operária", fossem substituídos, e isto se decidiu por 175 votos contra 4 e com 19!". [25] Mais de 400.000 operários foram à greve, a qual se estendeu para outras cidades como Kiev, Kostrava e Tsatarin.
O que relatamos não são só alguns fatos significativos, pontas do iceberg de um processo muito amplo que mostra uma viragem a respeito das atitudes predominantes de fevereiro a junho, ainda marcadas por muitas ilusões e uma mobilização mais limitada aos centros de trabalho, bairros ou cidades:
A burguesia sente que os dividendos obtidos em julho correm perigo de virar fumaça. O fracasso da Conferência Nacional de Moscou foi um duro revés. As embaixadas inglesa e francesa apressam em tomar medidas "decisivas". Nesse contexto surge o "plano" do golpe militar do general Kornilov [26]. Sukhanov destaca que: "Miliukov, Rodzianko [27] e Kornilov,todos eles, compreenderam! Cheios de estupor colocaram-se a preparar com toda urgência, mas em segredo, sua ação. No entanto, para enganar, arregimentaram a opinião contra uma próxima empresa dos bolcheviques". [28]
Não podemos fazer, aqui, uma análise de todos os pormenores da operação .[29] O importante é que a mobilização gigantesca das massas de operários e soldados consegue paralisar a máquina militar desencadeada. E o que se tem que destacar é que esta resposta se faz desenvolvendo um esforço de organização que dará um impulso definitivo à regeneração dos sovietes e seu encaminhamento para a tomada do poder.
Na noite de 27 de agosto, o Soviete de Petrogrado propôs a formação de um comitê militar revolucionário para organizar a defesa da capital. A minoria bolchevique aceitou a proposição, porém acrescentaram que tal órgão "devia se apoiar nas massas de operários e soldados". [30] Na sessão seguinte, os bolcheviques fizeram uma nova proposição que foi aceita relutantemente pela maioria menchevique, "a distribuição de armas nas fábricas e bairros operários" [31], coisa que mal fora anunciada aconteceu que "nos bairros, segundo a imprensa operária, formaram-se imediatamente "filas impressionantes de homens desejosos de participarem do contingente da Guarda Vermelha". Abriram-se cursos de instrução para o manejo do fuzil e para o tiro. Soldados treinados foram chamados para desempenharem o papel de monitores. A partir do dia 29, formaram-se companhias em quase todos os bairros. A Guarda Vermelha declarou-se pronta a lançar em ação, imediatamente, um efetivo de 40.000 fuzis (...) A gigantesca empresa de Putilov tornou-se centro da resistência no bairro de Peterhof. Foram criados, apressadamente, companhias de combate. O trabalho na fábrica prosseguia, ininterrupto noite e dia: ocupavam-se na montagem de novos canhões destinados a formarem divisões proletárias de artilharia". [32]
Em Petrogrado, "os sovietes do bairro uniram-se estreitamente e decidiram declarar a conferência intercantonal aberta em sessão permanente; tomaram a iniciativa de introduzir os respectivos representantes no estado-maior formado pelo Comitê-Executivo; resolveram criar uma milícia operária; decidiram estabelecer o controle do soviete de bairro sobre os comissários do Governo, e organizar equipes volantes destinadas à detenção dos agitadores contra-revolucionários". [33]
Essas medidas "significavam que aqueles sovietes atribuíam a eles próprios, não somente consideráveis funções do Soviete de Petrogrado. (...) A entrada dos bairros de Petrogrado na arena da luta modificou, instantaneamente, a direção e a amplitude desta última. A experiência permitiu que se descobrisse de novo a inesgotável vitalidade da organização soviética: paralisada de cima pela direção dos conciliadores, reanimava-se ela, no momento crítico, na base, sob impulso das massas". [34]
Essa generalização da auto-organização das massas se estendeu por todo o país. Trotsky recolhe o caso de Helsingfors, onde "a assembleia geral de todas as organizações soviéticas, criou um comitê revolucionário que enviou comissários à casa do general-governador, à kommandantur [comando], à contra-espionagem e a outras instituições muito importantes. E desde então ordem alguma era digna de crédito sem que estivesse assinada pelos comissários.Os telégrafos e os telefones foram colocados sob controle" [35], mas ali aconteceu algo muito significativo: "no dia seguinte, cossacos da tropa apresentaram-se ao Comitê e declararam que todo o regimento era contrário a Kornilov. E pela primeira vez, representantes dos cossacos foram introduzidos no Soviet". [36]
O esmagamento do golpe de Kornilov produziu um salto espetacular na correlação de forças entre as classes: O Governo Provisório de Kerensky tinha sido um zero à esquerda. Os únicos protagonistas foram as massas e, sobretudo, o reforçamento e revitalização geral dos seus órgãos coletivos. A resposta a Kornilov "era o ponto de partida de uma transformação radical de toda a conjuntura, a revanche sobre as jornadas de julho. O Soviete poderia renascer!". [37]
O jornal do Partido Cadete [38], Retch, não se equivocava quando assinalava: "Nas ruas já apareceram multidões de operários armados que aterrorizam os pacíficos habitantes. Nos Sovietes, os bolcheviques exigem energicamente a liberdade dos seus camaradas prisioneiros. Todo o mundo está convencido de que uma vez terminado o movimento do general Kornilov, os bolcheviques, rechaçados pela maioria do Soviete, empregarão toda sua energia para obrigar o Soviete a seguir o caminho, embora seja parcialmente, de seu programa". Retch, contudo, equivocava-se em uma coisa: não foram os bolcheviques os que obrigaram o Soviete a seguir seu programa mas que foram as massas que obrigaram os sovietes a adotar o programa bolchevique.
Os operários tinham ganho uma enorme confiança em si mesmos e queriam aplicar na renovação total dos sovietes. Cidade após cidade, soviete após soviete, em um processo vertiginoso, as velhas maiorias social-traidoras foram excluídas e novos sovietes com maioria de bolcheviques e de outros agrupamentos revolucionários (socialistas revolucionários de esquerda, mencheviques internacionalistas, anarquistas) emergiam após debates e votações massivas.
Sukhanov descreve assim o estado de ânimo de operários e soldados: "impulsionados pelo instinto de classe e, em certa medida, pela consciência de classe, pela influência ideológica organizada dos bolcheviques; cansados da guerra e do peso que dela originava; desapontados pela esterilidade da revolução que não lhes havia dado em nada ainda; irritados contra os proprietários e os governantes que gozavam, eles sim, de todos os lucros; desejosos, enfim, de fazer uso do poder conquistado, ansiavam engajar na batalha decisiva". [39]
Os episódios dessa reconquista e renovação dos sovietes são intermináveis. "Na noite de 31 de agosto para 1 de setembro, ainda sob a presidência do próprio Cheidze, o Soviete [de Petrogrado] votou a favor da concessão do poder aos operários e aos camponeses. Os membros da base das frações conciliadoras apoiaram, quase que unanimemente, a resolução dos bolcheviques. A moção de Tseretelli, que concorria com a dos bolchevique, obteve apenas uns 15 votos. O presidium conciliador não podia acreditar no que via. A direita exigiu votação nominal que se prolongou até 3 horas da madrugada. Afim de não votar, abertamente, contra os próprios partidos, muitos delegados retiraram-se. E, entretanto, apesar de todos os meios de pressão, a resolução dos bolcheviques obteve, na contagem final 279 votos contra 115. Era de fato de grande importância. Era o começo do fim. Atordoado, o presidium declarou que renunciava ao cargo". [40]
Em 2 de setembro, uma conferência de todos os sovietes da Finlândia adotou uma resolução a favor da entrega do poder aos sovietes por 700 votos contra 13 que se opuseram e 36 abstenções. A Conferência Regional de Sovietes de toda Sibéria aprovou uma resolução no mesmo sentido. O Soviete de Moscou também o fez em uma dramática sessão em 5 de setembro, onde se aprovou uma moção que mostrava sua desconfiança para com o Governo Provisório e para com o Comitê Executivo Central. "A 8 de setembro,a resolução dos bolcheviques foi adotada pelo soviete dos deputados operários de Kiev, pela maioria de 130 votos contra 66, se bem que a fração bolchevique oficial não contasse com mais de 95 membros" .[41] Pela primeira vez, o Soviete de deputados camponeses da província de Petrogrado elegia como delegado um bolchevique.
O momento culminante desse processo foi a histórica sessão do Soviete de Petrogrado de 9 de setembro. Inumeráveis reuniões em fábricas, bairros e regimentos tinham preparado esta. Cerca de 1000 delegados participaram de uma reunião onde a mesa propôs revogar a votação de 31 de agosto. Finalmente a votação alcançou um resultado que supunha o rechaço definitivo da política dos social-traidores: 519 votos contra a revogação e pela tomada do poder pelos sovietes, 414 a favor da mesa e 67 abstenções.
Poderia se pensar, enfocando as coisas de maneira superficial, que a renovação dos Sovietes consistiu em uma simples mudança de maiorias de social-traidores para bolcheviques.
É certo – e trataremos detidamente no próximo artigo dessa série – que na classe operária e, portanto, nos seus partidos, pesava ainda fortemente uma visão contaminada pelo parlamentarismo, segundo a qual a classe operária elegia "representantes que trabalhavam em seu nome", porém é importante compreender que o dominante na renovação dos sovietes não foi isso, mas:
1) A renovação surgiu da enorme rede de reuniões dos sovietes de base (conselhos de fábrica, conselhos de bairro, comitês de regimento, reuniões conjuntas). Após o golpe de Kornilov, essas reuniões se multiplicaram infinitamente. Cada sessão do soviete unificava e dava expressão resolutiva a um sem fim de reuniões preparatórias.
2) Esta auto-organização das massas foi impulsionada de maneira consciente e ativa pelos sovietes renovados. Enquanto os sovietes anteriores se autonomizavam e só realizavam raras sessões massivas, os novos realizavam sessões abertas diariamente. Enquanto os anteriores temiam e inclusive desautorizavam as assembleias em fábricas e bairros, os novos as convocavam continuamente. Ao redor de cada debate significativo, cada decisão importante, o soviete chamava a realizar reuniões "na base" para adotar uma posição. Diante da 4ª coalizão do Governo Provisório (25 de setembro), "além da resolução do Soviete de Petrogrado negando-se a sustentar a nova coalizão, uma onda de concentrações se estendeu através das duas capitais e no interior. Centenas de milhares de operários e de soldados, protestando contra a formação do novo Governo burguês, se comprometeram a desatar contra ele uma luta decidida exigindo o poder para os sovietes". [42]
3) Foi espetacular a multiplicação de congressos regionais de sovietes, que desde meados de setembro percorre como um rastro de pólvora todos os territórios russos. "Durante essas semanas se realizaram numerosos congressos de sovietes locais e regionais, cuja composição e transcurso refletiam o ambiente político das massas. Característica da rápida bolchevização foi o desenvolvimento do Congresso de Conselhos de deputados operários, soldados e camponeses de Moscou nos primeiros dias de outubro. No início das deliberações, a resolução apresentada pelos social-revolucionários contra a passagem do poder aos sovietes levou 159 votos contra 132. Mas, em outra votação, três dias depois, a fração bolchevique ganhou 116 votos, com 97 contra. Em outros congressos de conselhos foram aceitas, também, as resoluções bolcheviques, que exigiam a tomada do poder pelos sovietes e a destituição do Governo provisório. Em Ekaterinburgo reuniram-se em 13 de outubro 120 delegados de 56 conselhos do Ural, dentre eles 86 bolcheviques. Em Saratov, O Congresso Territorial da zona do Volga rechaçou uma resolução dos mencheviques e social revolucionários e adotou no seu lugar uma bolchevique". [43]
Porém é importante precisar dois elementos que nos parecem fundamentais.
O primeiro é que a maioria bolchevique respondia a algo mais que uma mera delegação de voto em um partido. O partido bolchevique era o único partido claramente partidário não só da tomada do poder como também da forma concreta de fazê-lo: uma insurreição conscientemente preparada que derrubaria o Governo Provisório e desmontaria o poder do Estado. Enquanto os partidos sociais-traidores anunciavam que queriam obrigar que os sovietes cometessem o harakiri [suicídio], enquanto outros partidos revolucionários faziam propostas irrealistas ou vagas, somente os bolcheviques tinham claro que "Os sovietes são reais unicamente "como órgãos de insurreição, como órgãos do poder revolucionário". Fora disso, os sovietes não são mais que um mero joguete que só pode produzir apatia, indiferença e decepção entre as massas, que estão legitimamente fartas da interminável repetição de resoluções e protestos". [44]
Portanto, era natural que as massas operárias depositassem sua confiança nos bolcheviques não tanto para lhes dar um cheque em branco, mas como instrumento do seu próprio combate que estava chegando no momento culminante; a insurreição e a tomada do poder.
"O campo da burguesia se alarmou no final com razão. O movimento das massas transbordava visivelmente; a efervescência nos bairros operários de Petrogrado era evidente. Não se escutava mais que os bolcheviques. Diante do famoso Circo Moderno, onde iam falar Trotsky, Volodarsky, Lunatcharsky, eram vistas filas intermináveis e multidões sem fim que o amplo edifício não podia conter. Os agitadores convidavam a passar dos discursos para os atos e prometiam o poder ao soviete no mais breve futuro". [45] Assim refletia Sukhanov, embora adversário dos bolcheviques, o ambiente reinante em meados de outubro.
Em segundo lugar, os fatos que se acumulam em setembro e outubro revelam uma mudança importante na mentalidade das massas. Como vimos no artigo anterior da série, a palavra de ordem "Todo poder aos Sovietes" enunciada timidamente em março, argumentada teoricamente por Lênin em abril, massivamente proclamada nas manifestações de junho e julho, tinha sido, até então, mais uma aspiração do que um programa de ação conscientemente assumido.
Uma das razões do fracasso do movimento de julho era que a maioria reivindicava que os sovietes "obrigassem" o Governo Provisório a ter "ministros socialistas".
Esta divisão entre soviete e Governo revelava ainda uma evidente incompreensão da tarefa da revolução proletária que não é a de "eleger um governo próprio" e, portanto, conservar a estrutura do velho Estado, mas a de derrubar o Estado e exercer o poder diretamente. E na consciência das massas – embora, como veremos em um próximo artigo, as confusões e a quantidade de problemas novos ainda eram consideráveis – se vislumbrava uma compreensão muito mais concreta e precisa da palavra de ordem de "Todo poder aos Sovietes".
Trotsky destaca como ao ter perdido o controle do Soviete de Petrogrado, os sociais-traidores empreenderam todos os meios que estavam a sua disposição, concentrando-se no seu último reduto: o CEC. "O Comitê-Executivo-Central suprimira, em tempo desejado, os dois jornais que o Soviete de Petrogrado tinha criado, todos os serviços de direção, todos os recursos financeiros e técnicos compreendendo as máquinas de escrever e os tinteiros. Grande número de automóveis que, desde as jornadas de Fevereiro, tinham sido colocadas à disposição do Soviete foram sem exceção, entregues ao Olimpo conciliador. Os novos dirigentes não tinham mais nem caixa, nem jornal, nem objetos de secretaria, nem meios de transporte, nem canetas , nem lápis. Nada além das paredes nuas e a ardente confiança dos soldados e dos operários. E isso era perfeitamente suficiente." [46]
Desde os primeiros dias de outubro uma avalanche de resoluções de sovietes de todo o país reivindica a realização do Congresso dos Sovietes, adiada constantemente pelos social-traidores, com objetivo de materializar a tomada do poder.
Esta orientação é uma resposta tanto à situação na Rússia como à situação internacional. Na Rússia as revoltas camponesas se estendem a quase todas as regiões, a tomada de terras é generalizada; nos quartéis os soldados desertam e retornam às suas aldeias mostrando um crescente cansaço diante de uma situação de guerra que não oferece nenhuma solução; nas fábricas os operários têm de fazer frente à sabotagem da produção por parte de empresários e quadros superiores; em toda sociedade se impõe a ameaça da fome pelo total desabastecimento e um custo de vida que aumenta sem parar. E na frente de guerra internacional crescem as deserções, a insubordinação das tropas, as confraternizações entre soldados de ambos os lados; na Alemanha uma onda de greves varre o país, na Espanha em agosto de 1917 eclode uma greve geral. O proletariado russo necessita tomar o poder não só diante dos problemas insolúveis do país, mas para abrir uma fenda por onde possa se desenvolver a revolução mundial contra os sofrimentos terríveis causados por três anos de guerra.
A burguesia vira suas armas contra a ascensão revolucionária das massas. Em setembro, tentou-se a realização de uma Conferência Democrática que fracassa novamente como a de Moscou. Por sua vez, os social-traidores retardam tudo quanto for possível o Congresso dos Sovietes com objetivo de manter dispersos e desorganizados os sovietes de todo país e evitar que se unifiquem na tomada do poder.
Mas a arma mais terrível, e que se torna explicita cada vez mais, é a tentativa de sabotar a defesa de Petrogrado, para que o exército alemão esmague o ponto mais avançado da revolução. Era algo que já tinha ensaiado o "patriota" Kornilov em agosto quando deixou Riga [47] revolucionária abandonada para a invasão das tropas alemãs que "restauraram a ordem" sangrentamente. A burguesia que faz da defesa nacional seu santo e seu pior veneno contra o proletariado, quando vê seu poder ameaçado pelo inimigo de classe não hesita nenhum segundo em se aliar com seus piores rivais imperialistas.
Ao redor dessa questão da defesa de Petrogrado as discussões do Soviete conduziram para a formação de um Comitê Militar Revolucionário com delegados eleitos do Soviete de Petrogrado, da Secção de soldados do referido soviete, do Soviete de Delegados da Esquadra Báltica, da Guarda Vermelha, do Comitê Regional de Sovietes da Finlândia, da Conferência de Conselhos de Fábrica, do Sindicato ferroviário e da organização militar do Partido bolchevique. À frente desse Comitê foi eleito Lasimir, um jovem e combativo membro dos socialistas-revolucionários de esquerda. Os objetivos desse comitê uniam a defesa de Petrogrado com a preparação do levante armado, dois objetivos que: "até então se excluíam reciprocamente, agora se aproximavam na realidade; ao tomar o poder nas suas mãos, o Soviete tomava para si a defesa de Petrogrado". [48]
A isso, se somou, no dia seguinte, a convocatória de uma Conferência Permanente de toda guarnição de Petrogrado e da região. Com esses dois organismos, o proletariado criava os meios para a insurreição, passo necessário e imprescindível para a tomada do poder.
Em um capítulo da nossa brochura Outubro de 1917, colocamos em evidência como – ao contrário das lendas negras tecidas pela burguesia que apresenta Outubro como um "golpe de estado bolchevique" – a insurreição foi obra dos sovietes e mais concretamente do de Petrogrado [49]. Foram o Comitê Militar Revolucionário (CMR) e a Conferência Permanente de guarnições, os órgãos que prepararam passo a passo e minuciosamente a derrubada armada do Governo Provisório, última cabeça do Estado Burguês. O CMR obrigou o Quartel General do Exército a submeter à sua assinatura qualquer ordem ou decisão por menor que fosse, com o que o paralisou totalmente. Em 22 de outubro, em uma dramática assembleia, o último regimento recalcitrante – o da Fortaleza Pedro e Paulo – aceitou se submeter ao CMR. Em 23 de outubro, em uma emocionante jornada, milhares de assembleias de operários e soldados se comprometiam definitivamente com a tomada do poder. O xeque-mate foi executado pela insurreição de 25 de outubro, a qual ocupou os centros de comunicação, e dessa maneira, colocou as condições para que no dia seguinte o Congresso dos Sovietes de toda Rússia assumisse a tomada do poder. [50]
No próximo artigo dessa série, veremos os enormes problemas que os sovietes tiveram que enfrentar após a tomada do poder.
[1]Ver Por que os conselhos operários nascem em 1905?. Em: < https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/Por_que_os_conselhos_operarios_nascem_em_1905 [89]>
[2]Ver A revolução de outubro (de fevereiro a julho de 1917): renascimento e crise dos sovietes. Em:< https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/A_revolucao_de_outubro_fevereiro_julho_1917 [90]>
[3]Trotsky, Leon. História da Revolução Russa. Ed. Paz e Terra; 3ª ed. 3v. Cap. XI – As massas expostas aos golpes. Vol 2. p. 620.
[4]Ver uma refutação muito documentada em Trotsky, op. cit., no Capítulo IV – O mês da grande calúnia. Vol 2. p. 489.
[5] O General Knox, chefe da missão inglesa, dizia: "Não sinto interesse algum pelo governo de Kerenski, é demasiado débil; o que faz falta é uma ditadura militar, se necessita dos cossacos, esse povo tem necessidade do chicote". Assim se expressava o representante do governo da "mais antiga democracia" (Trotsky, op.cit., Cap.IX – A sublevação de Kornilov. Vol 2. p. 592).
[6]Trotsky, op.cit., Cap XI – As massas expostas aos golpes. Vol 2. p 627.
[7]Cavaignac: general francês (1802-1857) que foi o verdugo da insurreição dos operários parisienses em junho de 1848.
[8] Lênin, A Situação Política (Quatro Teses) [91], 23 de julho de 1917. Fonte:www.marxist.org [92].
[9] Ibidem.
[10] Ibid.
[11] Anweiler, Os Soviets na Rússia, p. 180. Tradução nossa. Ver referência a este autor e livro na nota 3 do artigo anterior da série.
[12] Lênin, A Propósito das Palavras de Ordem. Tradução nossa.
[13] Ibid.
[14] Ver no artigo anterior desta série: Março 1917: toda Rússia ocupada por uma enorme rede de sovietes <https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/A_revolucao_de_outubro_fevereiro_julho_1917 [90]>.
[15] Nicolas Sukhanov, menchevique internacionalista, cisão de esquerda do menchevismo onde militava Martov. Ele publicou suas Memorias em 7 volumes. Há uma versão condensada que foi publicada em francês, inglês e espanhol. As citações que utilizamos provém da edição francesa: La Révolution russe, Editions Stock, 1965.
[16]Sukhanov, op. cit.. p. 210. Tradução nossa.
[17] Anweiler, op. cit., p. 115. Tradução nossa.
[18] Proeminentes membros do Partido menchevique.
[19] Sukhanov, op. cit., p. 210. Tradução nossa.
[20] Trotsky, op.cit., Cap. XI – As massas expostas aos golpes. p. Vol 2. 629.
[21] Ibid., p. 630.
[22] Ibid., p. 631.
[23] Sukhanov, op. cit.., p. 306. Tradução nossa.
[24] Ibid., p. 310.
[25]Trotsky, op.cit., Cap. VI – Kerensky e Kornilov. Vol 2. p. 538-539.
[26] Kornilov: militar muito incompetente que tinha se destacado pelas suas constantes derrotas na frente de guerra, foi elevado a "herói patriótico" após as Jornadas de Julho e exaltado por todos os partidos burgueses.
[27] Rodzianko e Miliukov foram os principias dirigentes dos partidos burgueses.
[28] Sukhanov, op. cit.., p. 312. Tradução nossa.
[29] Trotsky, op.cit.. Pode ser consultado, no volume 2 desta obra, os capítulos 5, "A contra-revolução levanta a cabeça", cap. 6 "Kerensky e Kornilov", cap. 8, "O complô de Kerensky" e cap. 9, "A sublevação de Kornilov".
[30] Sukhanov, op. cit.., p. 317. Tradução nossa.
[31] Ibid..
[32]Trotsky, op. cit., Cap. X – A burguesia mede-se com a democracia. Vol 2. p. 602-603.
[33] Ibid.. p. 601.
[34] Ibid., p. 601. Sublinhado nosso.
[35] Ibid., p. 604.
[36] Ibid., p. 604.
[37] Sukhanov, op. cit., p. 314. Tradução nossa.
[38] Cadete: Partido Constitucional-Democrata, principal partido burguês da época.
[39] Sukhanov, op. cit., p. 330. Tradução nossa.
[40] Trotsky, op.cit. Cap. XII – Maré montante. Vol 2. p. 659-660.
[41] Ibid., p. 660.
[42] Sukhanov, op. cit., p. 351. Tradução nossa.
[43] Oskar Anweiler, op. cit., página 192. Tradução nossa. Nas páginas seguintes faz uma recordação dos numerosos congresos regionais que cobriam praticamente todo o império e decidiram na sua maioria a tomada do poder.
[44] Lênin, Teses para o Relatório para a Conferência de 8 de outubro da Organização de Petrogrado. 8 de outubro de 1917. Fonte: < https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1917/oct/04.htm [93] > Tradução nossa.
[45] Sukhanov, op. cit., p. 364. Tradução nossa.
[46] Trotsky, op.cit. Cap. XII – Maré montante. Vol 2. p. 662.
[47] Capital da Estônia, na época parte do império russo.
[48] Trotsky, op.cit. Cap. IV - O Comitê Militar Revolucionário. Vol 3. p. 784.
[49] Veja o capítulo “A conquista dos sovietes pelo proletariado” da nossa brochura Outubro de 17, o começo da revolução mundial. Link: <https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/revolucao_russe_outubro_17_soviete [94]>.
[50] No capítulo “A insurreição de Outubro, uma vitória das massas operárias” desenvolvemos uma análise detalhada de como é a insurreição do proletariado que não tem nada a ver com uma revolta ou uma conspiração, quais são suas regras e o papel indispensável que o Partido do proletariado tem nela. Veja: <https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2007/revolucao_russa_outubro_1917.htm [95]>.
É surpreendente a defasagem que existe na situação atual entre, por um lado, a indignação que tem origem no dilúvio de ataques aos trabalhadores e, por outro lado, o interesse ainda muito pequeno para a questão da revolução. Na realidade, como já evidenciamos, atualmente a classe operária não acredita na possibilidade da revolução, ao contrário do que prevalecia no período posterior a 1968. Vamos colocar em evidência nesta apresentação que a revolução é possível e necessária, rememorando o que ela é, segundo o marxismo, e também respondendo às objeções mais frequentes colocadas contra a ideia de revolução.
Em que consiste esta nova sociedade?
Será uma sociedade isenta de penúria, de miséria, fronteiras, e guerra; uma sociedade em que as necessidades humanas serão atendidas. Será a associação livre dos produtores, isto é, daqueles que, através de seu trabalho, produzem as riquezas. Isto será o comunismo, onde o desenvolvimento de cada um será a condição do desenvolvimento de todos. O trabalho deixará de constituir um sofrimento e uma fonte inesgotável de aborrecimento para se tornar um fator de desenvolvimento dos seres humanos. Findo o sacrifício de uma vida presa pela especialização excessiva dentro da mesma atividade, pois, como dizia Marx: "na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de atividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico" (A Ideologia Alemã; Feuerbach. Oposição das Concepções Materialista e Idealista). Obviamente, deve-se reter disso a ideia básica, e não o fato que terá caçadores na sociedade comunista. Se houver, será nos museus.
Qual será base material desta nova sociedade?
A abundância, quando o reino da necessidade constituiu até o momento o fundamento das sociedades de classe e de exploração.
Como tal abundância será possível?
Desde quando os homens não produziram mais segundo os métodos das comunidades primitivas, a produtividade do trabalho ampliou-se consideravelmente com as sociedades de classes. Particularmente, sob o capitalismo. Este desenvolveu, muito mais que todas as sociedades que o antecederam, tudo que contribui na produção dos meios de produção e de consumo: as máquinas, a tecnologia, as ciências, etc. De fato, o nível atual de produtividade do trabalho pode ser medido pelo fato de que o trabalho de uma porcentagem bastante reduzida da população mundial pode ser suficiente para alimentar o conjunto desta população.
Hoje, está evidente que, se as capacidades produtivas fossem orientadas diferentemente, a fome no mundo seria erradicada e se necessitaria trabalhar muito menos para satisfazer nossas necessidades. Uma exemplificação disso: em 2008, 100 000 pessoas morriam de fome diariamente, num contexto em que a agricultura estava em condição de alimentar o dobro dos 6 bilhões de seres humanos do planeta (segundo um relatório da ONU - feito por Jean Ziegler, relator geral). Mas querer realizar tudo isso sob o capitalismo é utópico.
O que pode permitir que o capitalismo seja substituído por outra sociedade?
Certamente não será obra da burguesia. Não haverá uma transição harmoniosa do capitalismo para o comunismo. A classe dominante da sociedade capitalista, aquela que extrai suas riquezas através da exploração do proletariado nunca se decidirá abandonar o sistema de exploração que garante sua posição privilegiada na sociedade. Individualmente, elementos burgueses poderão apoiar ou se juntar ao combate por outra sociedade. Mas isso nunca será o caso da classe burguesa como um todo.
O motor da transformação social é uma classe que, além de não ter nenhum interesse próprio a defender neste sistema, é:
E para derrubar o capitalismo e levar a cabo seu projeto de classe revolucionária, esta classe dispõe da força necessária que lhe conferem o seu número, sua concentração e o fato de produzir o essencial das riquezas da sociedade.
Assim, o capitalismo desenvolveu as forças produtivas que podem permitir a abundância e também criou a classe revolucionária que será seu coveiro, a classe operária.
O que poderia fazer com que a humanidade queira transitar do capitalismo para o comunismo?
Tal transformação não será empreendida pela humanidade como um todo, apesar dela ser vítima do sistema atual e de ter interesse na sua derrubada. É a classe revolucionária que é o motor da revolução.
Na realidade, é a necessidade que constitui a base da mudança revolucionária. Como todas as sociedades de exploração que antecederam o capitalismo, este será levado a padecer de suas contradições insuperáveis se não for substituído por outro sistema que seja resultado da superação das ditas contradições. Para sintetizar isso, podemos dizer que este sistema produz, não pela satisfação das necessidades humanas, mas pelo lucro. As riquezas que ele acumula em um pólo da sociedade fundamentam a possibilidade da abundância para todos. O problema é que, ao mesmo tempo, tal fenômeno é acompanhado por um empobrecimento incessante, imposto a uma maioria cada vez mais numerosa. Desse modo, o proletariado é levado a se insurgir contra a sua condição, tendo em vista a perspectiva da transformação da sociedade.
Desse modo, a revolução não é produto de um imperativo moral, e sim da necessidade, embora não sejam poucas as razões morais e humanas para acabar com este sistema.
A etapa atual da crise iniciada no final dos anos 60 constitui a concretização gritante do caráter insuperável das contradições capitalistas.
Porque a revolução proletária é indispensável para a instauração de uma nova sociedade?
Neste plano, existe diferenças importantes com a revolução burguesa. Enquanto os métodos de produção capitalistas conseguiram emergir sob o feudalismo, não pode existir "ilhotas" de comunismo no seio do capitalismo, qualquer que seja o tamanho delas. Há várias causas para isso:
Será que a transformação comunista é possível num país só, ou num conjunto de países, onde a classe operária conseguiu tomar o poder?
Ao contrário do capitalismo, o socialismo não pode se desenvolver progressivamente de um país a outro. Só pode existir em escala mundial ao acionar o conjunto das forças produtivas e das redes de circulação dos bens criados pelo capitalismo. É por isso que a revolução deve intervir nessa escala para permitir a transformação socialista. O poder do proletariado isolado dentro de um país, ou até um conjunto de países, continua sendo dominado pelas leis do capitalismo, quaisquer que sejam as medidas adotadas.
Porque esta classe revolucionária, depois de ter cumprido sua revolução, não faria como as antigas classes dominantes que, depois de ter estabelecido seu poder, se tornaram exploradoras?
As outras classes revolucionárias do passado não se tornaram exploradoras depois de ter tomado o poder. Antes disso já existiam enquanto classes exploradoras.
Cabe à classe revolucionária derrubar a velha sociedade, cabe a ela também liderar a transformação revolucionária com o objetivo da edificação da nova sociedade. Esta classe revolucionária apresenta uma diferença infinita com relação às demais classes revolucionárias do passado: ela é, pela primeira vez na história, a classe explorada. Ao abolir sua exploração, extingue toda exploração. Por isso que sua vocação não pode ser emancipar-se sozinha, e sim emancipar o conjunto da humanidade.
Será que não existe o risco de ver a próxima revolução seguir o mesmo curso que a Revolução Russa, ou seja, a degeneração?
Não existe nenhuma fatalidade assegurando que a revolução possa acontecer, que seja vitoriosa e, depois, que a transformação das relações sociais rumo o comunismo seja levada a cabo.
Se a revolução na Rússia degenerou, não é, sobretudo, por conta de seus erros, mas do isolamento internacional no qual se encontrou com o refluxo da onda revolucionária mundial da qual foi o produto. Não é somente a construção do socialismo que é impossível num único país, mas até o poder do proletariado não pode ser assegurado por muito tempo ao ficar isolado só em um país. Em tais circunstâncias, só pode tender à degeneração. Com efeito, o poder proletário existe unicamente para assumir uma função bem definida: estender a revolução em escala mundial e iniciar a transformação das relações sociais de produção. Se não existe a possibilidade de realizar estes objetivos, por conta de uma correlação de forças desfavorável em escala internacional, então este poder é submetido à pressão crescente do capitalismo mundial: ofensivas militares e diplomáticas para asfixiá-lo; concorrência econômica mundial; etc. Foi o que aconteceu com a Rússia dos sovietes.
Será que o fato de tomar o poder já não seria corruptor por si só, constituindo-se, assim, num grande fator de degeneração?
O poder político do proletariado é exercido em escala mundial através da sua organização em Conselhos Operários. Esta forma de organização, que surgiu espontaneamente pela primeira vez na Rússia em 1905, é a única forma de organização que permite à classe operária pensar e atuar como um todo unido, e isso apesar da imensurável heterogeneidade que pode existir no seu seio. Sua força é baseada em duas características essenciais:
É a única forma de organização capaz de levar em conta a evolução acelerada da consciência no seio da classe operária que caracteriza as fases revolucionárias ou pré-revolucionárias.
Isso é a ditadura do proletariado, depois da tomada do poder.
Além disso, o poder proletário cria as bases do seu próprio desaparecimento, pois seu alvo é dirigir a transformação revolucionária paraa construção de uma sociedade sem classes sociais, sem Estado, sem poder político sobre a sociedade. É, portanto, o único poder político na história que não tem como objetivo sua própria perpetuação.
Entretanto, nada do que dissemos constitui uma garantia contra a degeneração, esta tendo origem enquanto resultado obrigatório de um retrocesso duradouro da revolução em escala mundial.
Será que não existe o risco da revolução provocar um banho de sangue?
Se a revolução não acontecer ou não for vencedora, não é um simples banho de sangue que vamos conhecer, mas milhares de banhos de sangue. Na realidade, a incapacidade do proletariado derrubar este sistema fará com que a situação atual de crise histórica do capitalismo se expressará através de guerras ainda mais mortíferas, de uma deterioração agravada do meio ambiente e pela explosão e generalização da miséria sob todas suas formas. Tudo isso tornará a vida na terra um verdadeiro inferno, até uma impossibilidade.
Ao estar destinada a abolir a ditadura de classe da burguesia, a revolução será necessariamente violenta, mas será uma violência libertadora, tendo em vista permitir o advento de um mundo livre da barbárie. Se tomarmos o caso da Revolução Russa, o número de vítimas resultado da insurreição de 1917 foi irrisório em comparação ao número de mortos diários na Primeira Guerra Mundial, da reação branca organizada pelo capitalismo mundial contra a Revolução Russa ou ainda a contrarrevolução stalinista. Além disso, foi a primeira onda revolucionária mundial e, particularmente, a revolução na Alemanha que obrigou a burguesia a colocar um ponto final à primeira matança mundial, na medida em que a continuidade da guerra constituía um solo fértil à radicalização das massas e, portanto, à revolução.
Por outro lado, para fabricar uma imagem diabólica da revolução, a burguesia utiliza situações que não têm nada ver com esta, mas que, pelo contrário, são diretamente expressões da ação de frações da burguesia: a contrarrevolução stalinista, a pretendida revolução maoísta, o terror de Pol Pot no Camboja, etc.
Realmente, será que é possível a revolução?
Sim. Não é a derrota da primeira tentativa revolucionária mundial que pode afirmar o contrário.
De fato, a ditadura do proletariado na Rússia era a expressão mais avançada de uma onda revolucionária mundial. Esta última envolveu nada menos que o proletariado alemão, a fração mais avançada do proletariado mundial, e que durante mais de três anos desenvolveu uma luta sem tréguas contra a burguesia.
Infelizmente, foi derrotado e sua derrota significou, consequentemente, a derrota da onda revolucionária mundial e a degeneração da Revolução Russa. Por outro lado, uma vitória da revolução na Alemanha teria aberto a possibilidade da extensão da revolução na Europa central e, depois, na Europa ocidental e no mundo.
Para concluir, a revolução proletária é possível, existem as condições para ela ter êxito, mas não existe nenhuma certeza quanto a este resultado. A única coisa da qual podemos ter certeza é que a manutenção da ordem social atual, sem que haja uma revolução mundial, só pode desembocar, a longo prazo, na impossibilidade de sobreviver neste mundo; em outros termos: significa o fim da humanidade. É essa alternativa que traduz a palavra de ordem histórica, colocada pelo movimento operário quando da primeira onda revolucionária mundial de 1917-23: "Socialismo ou Barbárie".
Recebemos em 3 de Março de 2010, em nosso site espanhol, um comentário relativo à situação dos moradores dos bairros operários e populares da aglomeração de Concepción, depois do terremoto de fim de fevereiro. Ao contrário da propaganda da mídia em escala internacional que desacreditou o comportamento da população local, acusando-a de ter cometido "escandalosos saques", este texto restabelece a realidade dos fatos colocando em relevo o espírito autenticamente proletário de solidariedade e ajuda mútua que animou os operários na redistribuição dos bens, opondo-a à ação predadora dos bandos armados contra os quais a população tentou se encarregar e de organizar sua própria defesa.
* * *
(Por um camarada anônimo)
Seria muito bom que, possuindo vocês este meio de difusão, pudessem dar conta do que está passando em Concepción e seus arredores, assim como em outras zonas afetadas pelo terremoto. Já se sabe que desde o primeiro momento muita gente aplicou o maior senso comum e dirigiram aos centros onde se armazenam as provisões, apropriando-se não mais do que o que necessitavam. Isso é lógico, racional, necessário e inevitável, tanto que até parece algo absurdo colocar ao menos em discussão. Houve uma organização espontânea (especialmente em Concepción) das pessoas que repartiu leite, pães e água de acordo com as necessidades de cada um, considerando o número de filhos de cada família especialmente. A necessidade de pegar os produtos disponíveis era tão óbvia, tão poderosa a determinação do povo em exercer o seu direito à sobrevivência, que até os policiais terminaram ajudando as pessoas pegar os alimentos do Supermercado Líder de Concepción, por exemplo. E quando tentaram impedir que as pessoas fizessem a única coisa que podiam fazer, as instalações em questão simplesmente foram incendiadas, pois é igualmente lógico que se toneladas de alimentos irão apodrecer em lugar de ser devidamente consumidos, é melhor que esses alimentos queimem, evitando assim perigosos focos de infecção. Estes "saques" permitiram milhares de pessoas subsistir durante algumas horas, na escuridão, sem água potável e sem a menor esperança de que alguém mais venha em sua ajuda.
Pois bem, no decorrer de algumas horas a situação mudou drasticamente. Por toda área urbana começou a atuação de bandos bem armados e dirigindo bons carros, que se dedicaram a saquear não só pequenos estabelecimentos, mas moradias particulares e grupos de casas. Seu objetivo era roubar os escassos bens que as pessoas tinham conseguido recuperar dos supermercados, assim como seus utensílios domésticos, o dinheiro ou o que havia. Em algumas áreas de Concepción, esses bandos saquearam as casas, depois incediaram-nas e fugiram. Os vizinhos, que de início se encontravam sem a menor defesa, começaram a organizar-se para poder se defender, fazendo rondas de vigilância, levantando barricadas para proteger suas passagens, e em alguns bairros coletivizando os mantimentos para assegurar a alimentação de todos moradores.
Com esse breve relato dos fatos ocorridos nas horas recentes não pretendo "completar" o quadro informativo proporcionado por outros meios. Quero chamar atenção sobre o conteúdo que encerra essa situação crítica e o sentido que contém a partir de um ponto de vista anticapitalista. O impulso espontâneo das pessoas para apropriar-se do necessário para sua subsistência, sua tendência a dialogar, compartilhar, procurar colocar-se de acordo e atuar juntos, a tendência comunitária atuando de uma forma ou de outra em nosso entorno. Todos nós podemos ver ao nosso redor esta tendência comunitária natural. Em meio ao horror vivido por milhões de trabalhadores e suas famílias, este impulso para viver em comunidade tem emergido como uma luz no meio das trevas, relembrado-nos que nunca é tarde para voltar a nós mesmos. Diante dessa tendência orgânica, natural, comunista, que tem animado o povo durante essas horas de perplexidade, o Estado tornou-se pálido revelando-se o que de fato é: um monstro frio e impotente. Assim, a brusca interrupção do ciclo insano de produção e consumo, deixou o patronato a mercê dos acontecimentos, obrigado a aguardar agachado o restabelecimento da ordem. Em suma, uma verdadeira lacuna na sociedade, da qual poderia emergir as fontes do mundo novo que habita no coração da gente comum. Era necessário então, urgentemente, restabelecer a todo custo a velha ordem de rapina, do abuso e da apropriação. Porém foi feito não a partir das mais altas esferas, mas do próprio solo da sociedade de classes: os encarregados de fazer voltar as coisas ao seu estado, isto é, de impor pelas forças das relações de terror que permitem a apropriação privada capitalista, foram as máfias do narcotráfico entrincheiradas nas cidades, os mais arrivistas dentre os arrivistas, filhos da classe trabalhadora aliados com elementos burgueses para ascender às custas do envenenamento dos seus irmãos, do comércio sexual das suas irmãs, da avidez consumista de seus próprios filhos. Mafiosos: significa dizer, capitalistas em estado puro, predadores do povo montados em caminhonetes 4x4 e armados com pistolas automáticas, dispostos a intimidar e despojar os seus próprios vizinhos ou os habitantes de outros bairros, com a finalidade de monopolizar o mercado negro e ganhar dinheiro fácil, ou seja, poder. O fato de que seus crimes vergonhosos estão sendo usados pela mídia para colocar em pânico a já desmoralizada população, justificando assim a militarização do país, demonstra que esses elementos mafiosos são aliados naturais do Estado e da classe capitalista. Que outro cenário poderia ser mais propício para nossos amos políticos e empresariais, que veem nessa crise catastrófica nada mais que outra boa oportunidade para fazer bons negócios extraindo lucros mais elevados de uma força de trabalho submetida pelo medo e o desespero.
Da parte dos adversários dessa ordem social, não tem nenhum sentido cantar as loas ao saque sem precisar o conteúdo social de tais ações. Não é o mesmo de uma massa de pessoas em alguma medida organizada, ou pelo menos com um propósito comum, pegando e repartindo os produtos que necessitam para subsistir... que alguns bandos armados saqueando a população com objetivo de lucrar em benefício próprio. O certo é que o terremoto de Sábado 27/02 não só golpeou terrivelmente a classe trabalhadora e destruiu as infraestruturas existentes. Também transtornou seriamente as relações sociais nesse país. Em questão de horas, a luta de classes emergiu em toda sua crueza diante dos nossos olhos, quem sabe demasiado acostumados às imagens televisivas para poder captar a essência dos fatos em curso. A luta de classes está aqui, nos bairros reduzidos a escombros na sombra, crepitando e rangendo no próprio chão da sociedade, em que estão enfrentando-se em um choque mortal duas classes de seres humanos que no final se encontram frente a frente; de um lado os homens e mulheres sociais que se buscam entre si para ajudarem-se e para compartilhar; e de outro os antissociais que os saqueiam e atiram neles para iniciar sua própria acumulação primitiva de capital. Cá estamos nós, os seres opacos e anônimos de sempre presos em nossas vidas cinzentas de explorados, de vizinhos e parentes, porém dispostos a estreitar laços com quem compartilhamos a mesma desapropriação. Lá estão eles, poucos, porém dispostos a despojar-nos pela força do pouco ou nada que podemos compartilhar. De um lado o proletariado do outro o capital. Assim tão simples. Em muitos bairros dessa terra devastada, a essas horas da madrugada as pessoas começam organizar sua autodefesa diante dos bandos armados. A essa hora começa a tomar forma material a consciência de classe daqueles que são obrigados, brutalmente e num abrir e fechar de olhos, compreender que suas vidas lhes pertence, e que ninguém virá em sua ajuda.
Nunca anteriormente tinha sido tão evidente a falência desse sistema. Como também nunca antes tinha se planejado tal quantidade de planos de ataques massivos contra a classe trabalhadora. Mas, que desenvolvimento pode-se esperar da luta de classes?
A crise das "subprimes" de 2008 desembocou em uma crise de dimensão mundial que levou a uma queda da atividade econômica como não tinha acontecido desde 1929.
Não foram novas as medidas tomadas pela burguesia para evitar que esse colapso fosse ainda mais brutal e profundo. Não diferiram das que sucessivamente foram aplicadas desde o início dos anos 1970, recorrendo cada vez mais ao crédito. Mais uma vez, todos os recordes de um monstruoso endividamento mundial foram alcançados. Mas hoje a magnitude da divida é tão ampla que se torna comum falar da fase atual da crise econômica como "a crise da dívida".
A burguesia tem provavelmente escapado momentaneamente do pior. Não é menos verdade que não aconteceu nenhuma recuperação, e além disso, vários países correm o risco sério de insolvência, com taxas de endividamento superiores a 100% do PIB. Dentre esses países figuram a Grécia, a Espanha (a 4ª economia da zona do euro), Islândia. E se a Inglaterra não apresenta as cifras de endividamento dos citados acima, os especialistas não deixam de advertir a existência de sinais muito inquietantes em relação a este país. Quanto aos demais (EUA, França...) não estão muito atrás.
Em tal situação, a insolvência de um país que se torna incapaz de cumprir os prazos de pagamento da sua dívida pode desencadear uma reação em cascata que conduz à insolvência de outros muitos agentes econômicos (bancos, empresas, outros países,...).
Assim, por exemplo, o não pagamento da dívida grega deixaria em uma posição muito comprometedora vários bancos na França.
Diante do grau de gravidade alcançado pela crise de superprodução, a burguesia não dispõe mais do que uma única solução: endividar-se ainda mais. Isto não só faz atrasar a deflagração dos problemas, como também é uma política cada vez mais difícil de colocar em prática e que comporta riscos crescentes de se transformar em uma repetição, muito mais devastadora, da crise dos "subprimes".
Tudo isso torna ainda mais evidente os fundamentos históricos da crise econômica. Para sustentar a demanda, a burguesia tinha incitado o endividamento doméstico e muitos entre eles foram totalmente arruinados. Isso implicou pelos bancos perdas financeiras muito importantes que resultaram em numerosas falências bancárias. Os estados tiveram que socorrer o sistema bancário. E quem vai socorrer os Estados agora ameaçados de insolvência? Ninguém. Eles constituem o último baluarte financeiro do mundo capitalista.
Diferentemente do que acontecia no passado, a burguesia não pode ocultar atualmente a realidade da sua crise. Tudo o que consegue, e nem sequer plenamente, é desviar a responsabilidade do sistema pelos problemas econômicos, focalizando a atenção no "comportamento antissocial" dos especuladores. E é certo que alguns desses aparecem como repugnantes abutres. Mas isso não é a raiz do problema.
A loucura financeira, ou seja, o endividamento ilimitado e a especulação a todo custo tem sido promovida pelo capitalismo como meio para adiar o momento da recessão. Resultado: o endividamento e a especulação hoje estão profunda e inseparavelmente acoplados à existência do sistema. O verdadeiro problema tem sua origem no próprio seio do capitalismo que é incapaz de sobreviver se não conseguir novas e cada vez mais massivas injeções de crédito.
E quais remédios prepara hoje a burguesia diante da crise do endividamento? Os planos de austeridade. Na Grécia, a burguesia está tentando aplicar um desses. Outro está em preparação na Espanha. Na França são anunciados ataques relacionados às aposentadorias, etc.
Vão trazer uma nova recuperação econômica? Vão trazer uma recuperação, mesmo momentânea, do nível de vida que tanto se deteriorou nos últimos dois anos da crise?
A burguesia mundial não pode deixar "afundar" um país como a Grécia sem que os credores deste tenham que enfrentar um risco análogo. Por outro lado, a única ajuda que pode trazer para este país constitui num novo lote de créditos com taxa de juros "aceitáveis". Exige para isso, em retorno, garantias de rigor orçamentário. O "socorrido" deve demonstrar que não vai representar um saco sem fundo que venha tragar a ajuda internacional. Assim, exige-se da Grécia que "reduza seu ritmo vida" para que diminua o ritmo de aumento tanto do déficit como do endividamento. Assim, a condição para que o mercado de capitais volte a confiar novamente na Grécia é que se ataquem ao extremo as condições de vida da classe trabalhadora.
Não é o menor paradoxo que a confiança que a comunidade internacional está disposta a outorgar a Grécia dependa da capacidade deste país para reduzir o ritmo de crescimento do seu endividamento e não de rebaixá-lo a zero, o que, por outro lado, seria impossível. Isto significa que a solvência de um país diante do mercado mundial de capitais depende de que o aumento do seu endividamento não seja "elevado demais". Em outras palavras um país declarado insolvente por causa do seu endividamento, pode converter-se em solvente mesmo quando esse endividamento continue crescendo. Moral da história: no mundo atual "hiperendividado", a solvência não se estabelece partindo essencialmente de uma realidade objetiva, mas baseando-se em uma confiança,... sem fundamento real.
Porém os capitalistas se vêem obrigados a acreditar nisso, pois se não acreditarem também não poderiam acreditar na sustentabilidade do seu sistema de exploração. Não é simples ser capitalista nos tempos atuais!
Para manter a confiança cega no sistema, é necessário uma drástica redução do custo da força de trabalho. E vai ser aplicada em todos os países, uma vez que todos eles, embora em intensidade diferentes, enfrentam o grave problema da dívida e do déficit.
Esta política que, no marco do capitalismo, não tem alternativa real, pode evitar um pânico generalizado, e inclusive favorecer posteriormente uma pequena retomada, sustentada em pés de barro. Mas o que não conseguirá de maneira alguma é consertar o sistema financeiro mundial.
O fato de que os capitalistas devam depositar toda sua confiança nas curas pela austeridade para sair da crise, não significa que os trabalhadores devam acreditar nessas virtudes nem sequer aceitá-las.
O discurso dos exploradores de "abrir mão hoje para que o amanhã possa ser melhor" faz tempo já que deixou de iludir a maioria dos trabalhadores. Sobretudo a partir de 2000, embora possa aparecer diferenças de um país para outro.
No entanto, pode-se constatar que o recente agravamento da crise não tem se traduzido, por enquanto, em uma ampliação das mobilizações da classe operária. E mais, faz pouco mais de um ano, assistimos a uma tendência inversa. Diretamente chocada pela avalanche de ataques, a classe operária tem permanecido desamparada e reagindo apenas em certas ocasiões apenas pontuais. Mas isso não significa que esteja conformada com o destino que o capitalismo lhe reserva.
A característica de alguns ataques, sobretudo as demissões em massa, tem feito ainda mais difícil a réplica. Com efeito, diante disso, os patrões e o governo têm a seu favor o seguinte argumento decisivo: "Nós não temos nada a ver com o aumento do desemprego ou que tenha que demitir. É culpa da crise!". Além do mais, nessas condições a arma da greve se converte em algo inoperante, o que acentua ainda mais o sentimento de impotência dos trabalhadores.
Mas se é inegável que essas dificuldades têm ainda um grande peso sobre os trabalhadores, a situação não está bloqueada. Isso é demonstrado por uma evolução do estado de ânimo da classe operária e um estremecimento da luta de classes.
1) A exasperação e a raiva vão se estendendo e generalizando nas filas operárias.
São alimentadas por uma indignação profunda e intensa diante de uma situação escandalosa, cada vez mais intolerável: a própria sobrevivência do capitalismo. Esta carrega uma acentuação dos contrastes no seio de uma mesma sociedade na qual se opõem "dois mundos diferentes". Em um deles reside uma imensa maioria que sofre todas as injustiças e a miséria. No outro, habita a classe dominante com a indecente exibição do seu poder e da sua riqueza, e cujos comportamentos recordam cada vez mais os sórdidos costumes da classe dominante da decadência romana.
2) Mais diretamente existe a ideia, bastante disseminada, de que "os bancos nos jogaram em um atoleiro sem solução do qual não podemos sair".
E embora essa opinião não reflete evidentemente o fundo do problema, catalisa a raiva contra o sistema. O dito "escândalo dos bancos" enlameia o conjunto do sistema que inspira um sentimento de rechaço cada vez maior entre os trabalhadores. Os partidos da esquerda, que cumprem a função de enquadrar ideologicamente o proletariado, devem tentar se adaptar a esse rechaço do capitalismo. Assim verificamos como o PC francês não tem encontrado melhor conclamação do que "Saiamos do capitalismo". Isso sem nos dizer como fazê-lo nem aonde ir depois.
3) O reaparecimento de lutas de maior amplitude, como as que temos visto recentemente na Argélia e Turquia;
a) Na Argélia, no mês de janeiro passado ocorreu toda uma série de importantes mobilizações que, no entanto sofreu o "blackout" (a ocultação) por parte da mídia, que tem impedido a circulação de informações sobre:
b) Na Turquia, a luta dos trabalhadores da Tekel durante os meses de dezembro e janeiro passados, representou um autêntico farol para a luta dos trabalhadores daquele país, embora infelizmente, e de novo graças ao blackout midiático, foi pouco divulgada no exterior. Algumas características daquele movimento foram:
4) No coração do próprio capitalismo, enquanto o enquadramento sindical mais potente e sofisticado permite ainda evitar explosões de lutas tão importantes como as que ocorreram na Argélia e Turquia, também assistimos apesar disso a um reativação da combatividade. Na França, por exemplo, desde o início do ano tem acontecido manifestações e greves tanto no setor público como no setor privado: na educação, nos hospitais, nas refinarias, entre os controladores aéreos, nas lojas Ikea, na Philips (eletro-domésticos).
5) Agitação nas universidades nos Estados Unidos que começou na Califórnia. Houve uma série de movimentos de ocupação que agora vai além da Califórnia.
6) Vemos também como reaparecem certas características fundamentais da luta de classes que caracterizaram algumas mobilizações a partir do ano de 2003. E ressurgem de forma mais explícita. É o caso em particular, da solidariedade operária, que tende novamente a impor-se como uma virtude da luta, depois de ter sido tanto desnaturalizada e depreciada nas lutas dos anos 1990. Esta solidariedade se expressa hoje através de iniciativas - ainda muito minoritárias - que buscam unir em uma só luta, trabalhadores de distintas empresas, setores, etnias ou nacionalidades.
A solidariedade desemboca no internacionalismo na prática, Como vimos nas lutas dos operários da Tekel na Turquia, mas também em Vigo (Espanha), onde:
7) A manutenção durante duas semanas de um autêntico blackout sobre as lutas sociais na Grécia contra as medidas contidas no plano de austeridade. Isso diz muito do terror da burguesia diante da propagação em escala internacional da determinação operária em não se deixar ser esmagado e em desenvolver um combate apesar de todas as dificuldades. Através da imprensa fomos inteirados de que em fevereiro aconteceram movimentos de greves com uma participação estimada em 90%. Por outras fontes sabe-se que existe uma desconfiança muito grande para com os sindicatos. Por outro lado, vimos também mobilizações importantes em outros países como Espanha (onde a seção da CCI interveio com um panfleto), e mais recentemente em Portugal.
Entramos já em uma situação em que, além das demissões nas empresas em dificuldades, vamos ver como os Estados vão ter de assumir um ataque frontal contra a classe trabalhadora para fazer pagar o custo da dívida. O responsável direto desses ataques, o Estado nesse caso, é muito mais facilmente identificável de que no caso das demissões. Isso é um fator que favorece o desenvolvimento da luta de classes, sua unidade e sua politização visto que é o guardião supremo dos interesses do capital, o Estado, que aparece claramente como o primeiro defensor dos interesses do conjunto da classe capitalista contra toda classe trabalhadora.
Todos os elementos, presentes e potenciais, da situação atual, constituem os ingredientes para a explosão de futuras lutas massivas. A aplicação por parte da burguesia dos planos de austeridade previstos nos diferentes países será uma fonte de experiências de lutas e de lições para toda classe operária. O que vai fazer com que a explosão seja possível vai ser a acumulação da exasperação e da indignação entre os trabalhadores. Aí qualquer evento poderá servir de detonante, qualquer "pretexto" poderá acender o pavio.
A exploração ideológica da queda do stalinismo, que se apoiou sobre a maior mentira do século: a identificação dos regimes stalinistas com o socialismo, deixou seqüelas que ainda estão marcadas nos trabalhadores.
A burguesia colocou sobre a mesa uma esmagadora "evidência": "O comunismo não funciona. Veja como os povos que o experimentaram, abandonaram-no, correram para os braços do capitalismo". E isso conduziu uma grande maioria dos trabalhadores a se afastar de um projeto de sociedade alternativa ao capitalismo.
A situação que resultou disso é, a partir desse ponto de vista, muito diferente da qual vivemos no fim dos anos 1960. Nessa época, o caráter massivo das lutas operárias, sobretudo experiências como a imensa greve de maio de 1968 na França ou o "outono quente" na Itália, evidenciava que a classe operária podia representar uma força de primeira magnitude na sociedade. A idéia de que poderia chegar a derrubar a capitalismo não constituía uma utopia, diferentemente do que acontece hoje.
A dificuldade para desenvolver lutas massivas que já demonstrou o proletariado desde o fim dos anos 1980, é o resultado de uma perda de confiança em si mesmo que a nova retomada da luta de classes a partir do ano de 2003 não conseguiu dissipar.
Só o desenvolvimento de lutas massivas pode permitir ao proletariado recuperar a confiança nas suas próprias forças e poder colocar de novo sua própria perspectiva de classe.
Mas, por mais importante que possa ser essa etapa futura da luta de classes, não significará também o desaparecimento de todas as vacilações no proletariado para se engajar decididamente no caminho para a revolução.
Na realidade, Marx já tinha assinalado, no início de 1852, que a revolução proletária segue um curso difícil e tortuoso, muito diferente do característico das revoluções burguesas que "como as do século XVIII se precipitam vertiginosamente de êxito em êxito" [i].
Essa disparidade, entre a burguesia revolucionária e o proletariado, no tocante à dinâmica da luta de classes, deriva das diferenças entre as condições da revolução burguesa e as da revolução proletária.
A tomada do poder político por parte da classe capitalista constituiu o ponto de chegada de todo um processo de transformação econômica que tinha ocorrido no seio da sociedade feudal. É assim que as antigas relações de produção feudais tinham sido progressivamente suplantadas pelas relações de produção capitalista. E foram essas, precisamente, as que permitiram à burguesia uma potente alavanca para sua conquista do poder político.
O processo da revolução proletária é completamente diferente. As relações de produção comunista, dado que não são relações mercantis, não podem desenvolver no seio da sociedade capitalista, dominada por relações mercantis e dirigida pela burguesia.
Uma vez que é a classe explorada do modo de exploração capitalista e que é, por definição, privada de todo meio de produção, a classe operária não dispõe nem pode dispor, na sociedade capitalista, de alavancas econômicas nas quais possa se apoiar para a conquista do poder político.
Contrariamente ao capitalismo que podia ir suplantando o feudalismo, o primeiro ato da transformação comunista da sociedade deve consistir em um ato consciente e deliberado: a tomada do poder político em escala mundial pelo conjunto da classe operária organizada em conselhos operários.
É evidente que a imensidão dessa tarefa provoca vacilações e dúvidas.
Essa é a razão pela qual os revolucionários têm a responsabilidade de comprometer-se plenamente favorecendo a capacidade da classe operária para dar a seus combates sua dimensão histórica, ou seja, concebê-los como um momento do grande combate histórico do proletariado contra a exploração e pela sua abolição.
[i] Essa idéia de "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", foi retomada por sua vez por Rosa Luxemburgo quando escreveu que "a revolução [proletária] é a única forma de "guerra" (...) na qual a vitória final se obtém através de uma série de "derrotas", (...) até agora as revoluções,... só nos deram derrotas, porém esses fracassos inevitáveis, são precisamente, a pré-condição reiterada da vitória final."
Assassinos! Capitalismo, seus estados, a burguesia, são todos assassinos. Milhares e milhares de pessoas acabam de morrer apenas por causa desse sistema desumano.
Terça-feira, 16h53, hora local, um terremoto de magnitude 7 na escala de Richter devastou o Haiti. A capital, Porto Príncipe, cidade miserável com cerca de dois milhões de habitantes, foi simplesmente exterminada. O saldo é terrível. E aumenta a cada hora que passa. Quatro dias depois do desastre, hoje, sexta-feira 15 de janeiro, a Cruz Vermelha estima entre 40000 e 50000 mortes e "uma enorme quantidade de feridos graves". Segundo essa associação, pelo menos três milhões de pessoas foram diretamente afetadas pelo terremoto [1]. Em poucos segundos, 200 000 famílias perderam suas "casas", construídas na maior parte com restos de todos os tipos de material. Também desmoronaram como um castelo de cartas grandes edifícios. As estradas, já em mau estado, o aeroporto, e os velhos trilhos de trem,... não sobrou nada.
A causa deste desastre é indignante. O Haiti é um dos países mais pobres do mundo onde 75% das pessoas sobrevivem com menos de US $ 2 por dia e 56% com menos de um dólar! Nesse pedaço de ilha assolado pela pobreza, obviamente, nunca se construiu nada para suportar terremotos. Entretanto, é bastante conhecido que o Haiti é uma zona sísmica. Agora todos aqueles que afirmam que este terremoto tenha sido de uma violência excepcional estão mentindo. O professor Eric Calais, em um curso de geologia no país em 2002, explicou que a ilha é atravessada por "falhas que podem alcançar magnitudes entre 7,5 e 8 graus" [2]. Autoridades políticas do Haiti também foram oficialmente informadas desse risco, tal como evidenciado por este trecho retirado do Ministério de Minas e Energia (no âmbito do Ministério das Obras Públicas): "Todos os séculos passados foram marcados por, pelo menos, um grande terremoto em Hispaniola (nome espanhol da ilha, agora separada em dois países, o Haiti e a República Dominicana. nota da redação): destruição de Porto Príncipe em 1751 e 1771, destruindo Cap Haïtien 1842, 1887 e 1904, terremoto no norte do país, com grandes estragos em Port de Paix e Cap Haïtien, terremoto de 1946 no nordeste da República Dominicana, ao qual se somou um tsunami na região de Nagua. Aconteceram grandes terremotos no Haiti, e, no futuro continuará acontecendo à escala de dezenas ou centenas de anos: é uma evidência científica." [3] (sublinhado nosso). E, diante de semelhante "evidência científica", que medidas foram tomadas? Nenhuma! Em março de 2008, para não ir muito longe, um grupo de geólogos alertou para o risco elevado de terremotos de grande escala nos próximos dois anos e inclusive alguns cientistas se reuniram várias vezes em maio desse ano com o governo haitiano [4]. Nem o Estado do Haiti, nem qualquer dos Estados que hoje derramam lágrimas de crocodilo e agora se dedicam a conclamar a "solidariedade internacional" com os Estados Unidos e a França na liderança, nunca tomaram a menor precaução para evitar esse drama previsível. Edifícios construídos no Haiti são tão frágeis que não é preciso nem mesmo um terremoto para desintegrar-se: "Já em 2008, em uma escola em Petionville foram enterrados, sem qualquer explicação geológica, cerca de 90 crianças" [5].
Já que é tarde demais, Obama e Sarkozy podem anunciar uma "grande conferência internacional" para "a reconstrução e desenvolvimento", como podem os Estados chinês, inglês, alemão ou espanhol enviar seus pacotes e suas ONGs que querem, mas eles vão continuar sendo criminosos com as mãos sujas de sangue.
Se hoje o Haiti é tão pobre, se a sua população tem carência de tudo, se falta infra-estrutura, é porque, há mais de 200 anos, a burguesia local e as grandes burguesias espanhola, francesa e americana estão em competição por recursos e pelo controle do pequeno pedaço de terra. Através de seu jornal The Guardian, a burguesia britânica usa a ocasião para sublinhar a responsabilidade flagrante dos seus rivais imperialistas: "Esta ‘nobre comunidade internacional' que vemos hoje, se atropelando para acudir ao Haiti com a sua "ajuda humanitária" é em grande medida responsável pelos erros terríveis que hoje tenta atenuar. Desde o dia em que, em 1915, os Estados Unidos invadiram e ocuparam o país, todos os esforços [...] foram sabotados deliberadamente e pela violência do governo dos Estados Unidos e seus aliados. O próprio governo de Aristide [...] foi a última vítima, derrubado em 2004 por um golpe de Estado com o apoio internacional durante o qual milhares de pessoas perderam a vida [...] Na realidade, desde o golpe de 2004, quem governa no Haiti é a comunidade internacional. Esses países que agora correm para a sua cabeceira votaram sistematicamente ao longo dos últimos cinco anos contra qualquer ampliação do mandato da ONU, além de sua finalidade essencialmente militar. Os projetos que previam usar parte desse ‘investimento' para reduzir a miséria e promover o desenvolvimento da agricultura foram bloqueados, segundo as tendências a longo prazo a que continuam dominando a distribuição de ‘ajuda' internacional". [6]
E isso é apenas parte da verdade. Estados Unidos e França, há décadas, estão lutando pelo controle da ilha com base em golpes, manobras e corrupção da burguesia local, que contribuem para o aumento da pobreza, e da violência, e das milícias armadas que aterrorizam incessantemente os homens, mulheres e crianças.
Por tudo isso, o circo da mídia atual com a "solidariedade internacional" é intolerável e repugnante. É uma competição para ver qual estado vai fazer mais publicidade sobre as "suas" ONGs e as "suas" remessas. Vamos assistir qual vai oferecer a melhor imagem de vidas que "suas" equipes de socorro conseguirão resgatar dos escombros! Pior ainda, sobre os escombros e cadáveres, a França e os Estados Unidos continuam a travar uma guerra implacável de influência. Com a justificativa da ajuda humanitária, enviam suas frotas para a área tentando tomar o controle das operações, sob o pretexto de "a necessária coordenação da ajuda por um maestro."
Como ocorre em todos os desastres, todas as declarações de apoio a longo prazo, todas aquelas promessas de reconstrução e desenvolvimento continuam a ser letra morta. Durante dez anos, na seqüência de uma série de terremotos, foram:
E, a cada vez, a "comunidade internacional" se comove e envia um auxílio miserável; mas nunca fez investimento efetivo para melhorar a situação, a construção de edifícios a prova de abalos sísmicos, por exemplo. A ajuda humanitária, o socorro real às vítimas, as atividades de prevenção não são rentáveis para o capitalismo. A ajuda humanitária, quando disponível, só serve para fazer uma cortina de fumaça ideológica, dando a impressão de que este sistema pode ser humano, quando isso é apenas uma desculpa para justificar o envio de tropas e ganharem influência em uma região do mundo.
Basta um único exemplo para destacar a hipocrisia burguesa de ajuda humanitária e solidariedade internacional dos Estados: o ministro francês da imigração, Eric Besson, acaba decretar a suspensão "temporária" das expulsões de imigrantes haitianos que vivem sem documentos.
O horror que atinge as pessoas que vivem no Haiti cria um imenso sentimento de tristeza. A classe trabalhadora vai, como em cada tragédia, reagir positivamente ao apelo de ajuda. E demonstrará mais uma vez que tem um coração que bate pela humanidade, que a sua solidariedade não conhece fronteiras.
Acima de tudo, no entanto, um horror semelhante deve reforçar a raiva e a combatividade da classe trabalhadora. Os verdadeiros culpados dos 50 000 mortos no Haiti, não são nem a natureza ou nem o destino, mas o capitalismo e os seus estados, ou o que é o mesmo, os abutres imperialistas.
Publicado por Révolution Internationale, 15 de janeiro de 2010
[1] Página WEB de Libération (diário francês), https://www.liberation.fr/monde/0101613901-pres-de-50-000-morts-en-haiti... [96].
[2] No blog "sciences" (ciências ) de Libération (https://sciences.blogs.liberation.fr/home/2010/01/s%C3%A9isme-en-ha%C3%A... [97]).
[3] https://www.bme.gouv.ht/alea%20sismique/Al%E9a%20et%20risque%20sismique%... [98]
[4] Ver o artigo "Cientistas alertaram em 2008 sobre o perigo de terremoto no Haiti" em: Yahoo Mexico (Assiociated Press de 15/01/2010)
[5] Página Web de Courrier International (https://www.courrierinternational.com/article/2010/01/14/requiem-pour-po... [99]).
[6] Página Web de PressEurop (https://www.presseurop.eu/fr/content/article/169931-bien-plus-quune-cata... [100])
Em 14 de dezembro de 2009, milhares de trabalhadores nas empresas Tekel [1] de dezenas de cidades na Turquia, deixaram as suas casas e famílias para viajar para Ancara. Trabalhadores da Tekel fizeram essa viagem, a fim de combater as terríveis condições a que os obriga a ordem capitalista. Esta luta honrosa dos trabalhadores da Tekel que se arrasta há mais de um mês levou a ideia de uma greve em que todos os funcionários participassem. Ao fazer isso, os trabalhadores da Tekel começaram a liderar o movimento em todo o país. O que vamos tentar dar conhecimento aqui é a história do que aconteceu na luta da Tekel. Não se deve esquecer que o que relatamos, não diz respeito apenas aos trabalhadores da Tekel, mas aos trabalhadores em todo o mundo. Nós apresentamos os nossos sinceros agradecimentos aos trabalhadores da Tekel, por ter nos proporcionado escrever este artigo impulsionando as lutas da nossa classe para frente, por sua luta decidida e explicar o que aconteceu, as suas experiências e pensamentos.
Nós pensamos que seria útil conveniente explicar o que provocou os trabalhadores da Tekel a se lançarem nesta luta. Os trabalhadores da Tekel estão lutando contra a política do "4-C" do Estado turco. O Estado já o tem aplicado a dezenas de milhares de trabalhadores, que não estão sob as condições da Tekel, as condições do "4-C". Estas condições estão se estendendo rapidamente para dezenas de milhares de trabalhadores, incluindo os trabalhadores da fábrica de açúcar que serão as próximas vítimas. Além disso, muitos setores da classe trabalhadora sofreram ataques similares, sob diferentes nomes e outros ataques são esperados por aqueles que ainda não foram atacados. Então o que é o "4-C"? Trata-se de uma prática de "proteção" promovida pelo Estado turco, quando aumentou o número de trabalhadores que perderam os seus empregos devido às privatizações. Inclui, além de uma forte redução no salário, que os funcionários públicos sejam transferidos para diferentes setores do Estado sob condições terríveis. O pior das condições introduzidas pela política do "4-C" é a que dá aos chefes de empresas estatais poder absoluto sobre os trabalhadores. Assim, o salário, que é determinado pelo estado e que já significa um corte de salário enorme para os trabalhadores, é apenas o limite máximo a pagar. Ele pode ser reduzido pelos gestores de empresas estatais de forma arbitrária. Além disso, a fixação do horário de trabalho é completamente abolida para aqueles que vão trabalhar em condições introduzidas pela política do "4-C" que dá aos chefes das empresas estatais o poder de obrigar os trabalhadores a permanecer no trabalho pelo tempo que decidirem, quando eles quiserem, arbitrariamente, até o trabalhador completar a tarefa atribuída. Os trabalhadores não recebem qualquer pagamento em troca por este tempo "extra" de trabalho após o horário regular ou durante as férias. Sob esta política, os chefes têm o poder de demitir os trabalhadores de forma arbitrária, sem serem obrigados a pagar indenização. Além disso, o período em que os trabalhadores possam ser empregados em um ano é somente entre três e dez meses, e não é pago nada nos meses que são colocados em disponibilidade e a duração do seu trabalho também é determinada arbitrariamente pelos patrões. Apesar disso, os trabalhadores são proibidos de procurar um segundo emprego, mesmo que eles não estejam trabalhando nesse período. Também não é paga a previdência social dos trabalhadores no âmbito da política de "4-C" e os planos de assistência à saúde estão sendo extintos. Privatizações e, igualmente, a política do "4-C" começaram há muito tempo. Nas empresas da Tekel, inicialmente, só os ramos de cigarros e de álcool eram privatizadas, e esse processo levou ao fechamento de fábricas de tabaco. Acreditamos que está claro que o problema não é só as privatização. Pensamos evidentemente que o capital privado, que está tomando os postos de trabalho e o Estado, que é capital estatal, ao querer explorar os trabalhadores, submetendo-os às mais inimagináveis condições de exploração, estão unidos nesse ataque. Nesse sentido, podemos dizer que a luta dos trabalhadores da Tekel nasce dos interesses de classe de todos os trabalhadores e representa uma luta contra a ordem capitalista como um todo.
Parece também que temos de explicar a situação do movimento da classe trabalhadora na Turquia, no período em que os trabalhadores da Tekel lançaram sua luta. Em 25 de Novembro de 2009, tinha ocorrido um dia de greve organizada pelo KESK, o DISK e o Kamu-Sen [2]. Como dissemos, os trabalhadores da Tekel viajaram a Ancara, em 14 de dezembro, várias semanas após esta greve de um dia. Na mesma semana em que os trabalhadores da Tekel chegaram a Ancara, ocorriam outras duas lutas de trabalhadores. A primeira foi as manifestações dos bombeiros que iam ser demitidos do trabalho no início de 2010 e a segunda foi a greve de um dia dos trabalhadores ferroviários em protesto contra a demissão de alguns de seus companheiros pela participação na greve de 25 de novembro. A polícia de choque, vendo que as lutas de classes estavam aumentando, atacou brutalmente bombeiros e trabalhadores ferroviários. Os trabalhadores da Tekel não foram tratados de forma diferente. Além disso, o número de trabalhadores ferroviários que perderam o emprego por ter participado na greve foram quase cinquenta. Vários trabalhadores foram presos. Demorou algum tempo para que os bombeiros se recuperassem de tais ataques. Quanto aos trabalhadores ferroviários, infelizmente eles não conseguiram se recuperar até agora. O que põe os trabalhadores da Tekel na vanguarda em dezembro foi o fato de que eles conseguiram lutar contra as medidas repressivas do Estado e souberam manter a sua luta viva e ativa.
Como começou a luta de Tekel? Existia já uma forte minoria que queria lutar desde o 5 de dezembro, em uma cerimônia de abertura presidida pelo primeiro-ministro Tayyip Erdoğan[3]. Trabalhadores da Tekel, com seus familiares, se postaram inesperadamente na frente de Erdoğan, durante a cerimônia, para perguntá-lo o que iria acontecer com eles. Interromperam seu discurso dizendo que "os trabalhadores da Tekel estamos esperando para que nos dê uma boa notícia." Erdoğan disse em resposta: "Infelizmente, elementos como estes estão aparecendo na Turquia há algum tempo. Estes elementos querem ganhar dinheiro sem trabalhar, deitados. Acabou a época de ganhar dinheiro sem fazer nada (...) Acham que o estado é uma mina inesgotável e quem não aproveita dela são porcos. Isto é como eles vêem este problema. Não é a nossa forma de ver. Aqui está a sua compensação senhorial. Se vocês quiserem, podemos usá-los no âmbito do "4-C", caso contrário saiam e estabeleçam as suas próprias empresas. Nós também dissemos o seguinte: temos um acordo com o seu sindicato. Falei com eles e lhes disse "Vocês tem tempo, mas façam o que for preciso". Embora tivessem um acordo, o processo veio ao fim e passaram um ano ou dois. Eles ainda estão aqui dizendo coisas como "queremos manter os nossos empregos e continuar da mesma forma, queremos manter os mesmos direitos em outros lugares." Não!, já conversamos sobre isso. Dez mil trabalhadores da Tekel nos custam quarenta trilhões em um mês." [4]. Erdoğannão tinha idéia do tipo de problema que estava se metendo. Os trabalhadores, a maioria dos quais já havia apoiado o governo antes, agora estavam furiosos. Eles discutiram como iniciar uma luta dos trabalhadores nos locais de trabalho. Um trabalhador de Adıyaman [5] explica um processo como este em um artigo que ele escreveu e que foi publicado em um jornal esquerdista: "Esse processo estimulou os colegas que não estavam envolvidos na luta por menor que fosse (...). Eles começaram a ver a verdadeira face do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), através das palavras do primeiro-ministro. A primeira coisa que fizeram foi desistir de continuarem sendo membros do seu partido. Nas discussões que começaram em nossos locais de trabalho, decidimos proteger os nossos postos de trabalho todos juntos" [6]. O sindicato [7] com o qual Erdoğan disse que tinha feito acordos e que não tinha tomado medidas sérias para defender os empregos, convocou uma reunião em Ancara. Como resultado, os trabalhadores viajaram para a capital.
As forças do Estado organizaram um ataque astuto contra os trabalhadores desde o início. A tropa de choque parou os ônibus que transportavam os trabalhadores, e declarou que não iria permitir a passagem dos trabalhadores das cidades curdas, onde as fábricas Tekel estão concentradas, mas só os trabalhadores do Ocidente e das regiões do Mediterrâneo, Anatólia Central e do Mar Negro. O objetivo foi colocar os trabalhadores curdos e demais trabalhadores uns contra os outros e, assim, dividir o movimento da classe em linhas étnicas. Esta manobra na realidade derrubou duas máscaras do governo: o da unidade e harmonia e o da Reforma curda [8]. Os trabalhadores da Tekel não caíram nessa armadilha da polícia. Com os trabalhadores de Tokat [9] dirigindo-lhes, os trabalhadores de fora das cidades curdas protestaram contra esta posição da polícia e insistiram com determinação que todos os trabalhadores entrassem juntos na cidade e que ninguém seria deixado para trás. A polícia de choque, incapaz de calcular a posição que o governo iria adotar, teve que permitir que os trabalhadores entrassem juntos na cidade. Este incidente fez com que trabalhadores provenientes de diferentes cidades, regiões e etnias estabelecessem laços profundos no terreno da classe. Em seguida a este incidente, os trabalhadores do Ocidente, do Mediterrâneo, Anatólia Central e regiões do Mar Negro expressaram a força e a inspiração que tomaram da resistência, da determinação e da consciência dos trabalhadores curdos contribuíram em grande medida para a sua participação na luta e aprenderam muito desses trabalhadores. Os trabalhadores da Tekel tinham obtido a sua primeira vitória ao entrar na cidade.
Em 15 de dezembro, os trabalhadores da Tekel começaram seu protesto contra a sede nacional do Partido da Justiça e Desenvolvimento, em Ancara. Um trabalhador que chegou nesse dia, explica o que aconteceu: "Nós marchamos para a sede nacional do Partido da Justiça e Desenvolvimento. Acendemos uma fogueira no meio da noite em frente do edifício e esperamos até as dez horas da noite. Quando fazia frio demais, fomos para o Ginásio Atatürk. Havia cinco mil de nós. Utilizamos nossos tapetes e papelões e passamos a noite lá. Pela manhã, a polícia nos empurrou para o Parque Abdi İpekçi e nos cercou. Alguns dos nossos companheiros marcharam até a sede do Partido novamente. Quando estávamos à espera no parque, quisemos ir reunir com nossos companheiros e os que esperavam em frente da sede do partido queriam vir com a gente: a polícia nos atacou com gás lacrimogêneo. Às 7 horas da noite conseguimos reunir com os nossos companheiros no parque. Tínhamos caminhado durante quatro horas. Passamos a noite no parque, na chuva." [10]. Além disso, o ataque brutal por parte da polícia ocorreu em 17 de Dezembro. A polícia de choque, obviamente, agindo sob ordens e talvez para compensar a impossibilidade que tiveram de impedir que trabalhadores curdos entrassem na cidade, quando chegaram, atacaram os trabalhadores no parque com grande violência e ódio. O objetivo era dispersar os trabalhadores. No entanto, havia algo de que as forças estatais não foram capazes de calcular: a capacidade dos trabalhadores para a auto-organização. Os trabalhadores, dispersados pela polícia, conseguiram organizar sem o auxílio de qualquer burocrata sindical e realizaram uma manifestação massiva em frente à sede do sindicato Türk-Iş [11] na parte da tarde. No mesmo dia, os trabalhadores, sem ter qualquer local para permanecer, ocuparam dois andares do edifício Türk-Iş. Nos dias seguintes ao 17 de dezembro, as manifestações dos trabalhadores da Tekel ocorreram na pequena rua em frente à sede do sindicato Türk-Iş no centro de Ancara.
A luta entre os trabalhadores da Tekel e a Administração da Türk-Iş marcou os dias seguintes a essa data até o Ano Novo. Na verdade, mesmo no início da luta, os trabalhadores não confiavam nos líderes sindicais. Eles tinham enviado dois trabalhadores de todas as cidades com sindicalistas em todas as negociações. O objetivo disso era de que todos os trabalhadores fossem informados sobre o que realmente estava acontecendo. Ambos os sindicatos Tek Gıda e o Türk-Iş e o governo esperavam que os trabalhadores da Tekel fossem desistir dentro de poucos dias diante do frio congelante do inverno em Ancara, da repressão policial e das dificuldades materiais. As portas do edifício Türk-Iş foram fechadas, como era esperado, em um curto espaço de tempo para impedir os trabalhadores de entrarem no edifício. Contra isso, os trabalhadores iniciaram uma luta com a finalidade de utilizar os banheiros do prédio e que as mulheres trabalhadoras pudessem descansar no prédio. Essa luta resultou em uma vitória para os trabalhadores. Os trabalhadores não tinham intenção de retornar. Um apoio significativo da classe trabalhadora em Ancara e, acima de tudo, de estudantes com base proletária foi dado aos trabalhadores da Tekel no que diz respeito às dificuldades materiais de encontrar lugares para alojar: talvez uma pequena parte da classe trabalhadora em Ancara, mas mesmo assim importante, se mobilizou para hospedar os trabalhadores da Tekel em suas casas Ao invés de desistir e voltar, os trabalhadores da Tekel reunidos diariamente na pequena rua em frente ao edifício Türk-Iş, começaram a discutir como fazer avançar a sua luta. Não demorou muito para que os trabalhadores percebessem que a única solução para superar o seu isolamento era estender a sua luta para o resto da classe trabalhadora.
Neste contexto, os trabalhadores militantes de todas as cidades que viram que os sindicatos Gıda Tek e Türk-Iş não iam fazer qualquer coisa por eles, trataram de construir um comitê de greve, com o objetivo principal de transmitir as suas exigências para a organização sindical. Dentre essas exigências foram a criação de uma barraca de campanha de greve e que o Ano Novo seria comemorado coletivamente pelos trabalhadores com uma manifestação em frente ao prédio do Türk-Iş. Os líderes do sindicato se opuseram à iniciativa tomada pelos trabalhadores. Depois de tudo para que necessitavam do sindicato se os trabalhadores passaram à frente para assumir o controle de sua luta em suas próprias mãos! Esta atitude foi uma ameaça velada: os trabalhadores que foram isolados temiam a possibilidade ficarem sozinhos se o sindicato retirasse o seu apoio. Deste modo, o comitê de greve foi abolido. No entanto, a vontade dos trabalhadores para assumir o controle de sua luta em suas próprias mãos permaneceu. Rapidamente, os trabalhadores fizeram esforços para estabelecer ligação com os trabalhadores da fábrica de açúcar que em breve serão confrontados com as mesmas condições do "4-C". Eles foram para os bairros dos trabalhadores e nas universidades onde foram convidados para explicar a sua luta. Enquanto isso, os trabalhadores continuaram a sua luta contra a administração do Türk-Iş que não apoiava os trabalhadores de nenhuma maneira. O dia em que se reuniu a Comissão Executiva do Türk-Iş, os trabalhadores forçaram as portas da sede do sindicato. Os policiais foram mobilizados para proteger Mustafa Kumlu, presidente do sindicato dos filiados ao Türk-Iş. Os trabalhadores começaram a gritar slogans como "Venderemos a quem nos vende", " Türk-Iş a seu dever, a greve geral", "Kumlu, demita-se". Kumlu não ousou enfrentar os trabalhadores até ter anunciado uma série de ações, incluindo greves que aconteceriam a cada semana, começando por uma greve de uma hora e duplicando o tempo a cada semana e uma manifestação em frente a Türk-Iş realizada todas as semanas. Temia por sua vida. Inclusive depois da declaração de Kumlu de uma série de ações, os trabalhadores continuaram a não confiar no sindicato Türk-Iş. Quando um trabalhador da Tekel de Diyarbakır[12] disse em uma entrevista que ele deu: "Não acataremos qualquer decisão tomada pela administração do sindicato para por fim a luta e recuar. E se houver uma decisão do sindicato de terminar a luta sem que haja um ganho como fizeram no ano passado, estamos pensando em esvaziar o prédio de Türk-Iş e, em seguida, queimá-lo", expressou [13]. Expressou os sentimentos de muitos outros trabalhadores da Tekel.
Türk-Iş voltou de novo sobre o seu plano de ação quando a primeira greve de uma hora contou com a participação de 30% de todos os sindicatos. Os líderes sindicais ficaram aterrorizados, como o próprio governo, de ver a luta generalizada. Depois da calorosa manifestação do Ano Novo em frente ao prédio do Türk-Iş, organizou-se uma votação secreta entre os trabalhadores para decidir se continuavam ou regressavam para casa. 99% votaram a favor da continuação da greve. Ao mesmo tempo, um novo plano de ação, sugerido pelo sindicato, começou a ser discutido: depois de 15 de Janeiro, haveria um protesto de três dias, seguido de uma greve de fome de três dias e três dias de jejum completo. Uma manifestação com a participação massiva também devia ocorrer, como a administração do Türk-Iş prometeu. Os trabalhadores inicialmente pensaram que uma greve de fome fosse uma boa idéia. Como já estavam isolados, não queriam serem esquecidos e ignorados e pensavam que uma greve de fome poderia evitar isso. Também acreditavam que estavam atolados na frente da sede da Türk-Iş e sentiram a necessidade de fazer alguma coisa. A greve de fome poderia atuar como intimidação para o sindicato, eles pensavam.
Um dos textos mais significativos escritos por trabalhadores da Tekel foi publicado nesses dias. Trata-se de uma carta escrita por um trabalhador de Batman [14] para os trabalhadores das fábricas de açúcar: "A nossos honrados irmãos e irmãs trabalhadores e da fábrica de açúcar. Hoje, a notável luta desenvolvida pelos trabalhadores da Tekel é uma oportunidade histórica para aqueles cujos direitos foram retirados. Para não perder esta oportunidade, a sua participação na nossa luta nos faria mais felizes e mais fortes. Meus amigos, gostaria de avisar especialmente que de longa data os sindicalistas prometem a vocês a esperança de que "vão ocupar-se deste assunto". No entanto, como já passamos por este mesmo processo, sabemos que estas são pessoas que não têm nenhum interesse vital a defender. Pelo contrário, são de vocês que serão retirados os direitos e o direito ao trabalho. Se você não participarem na luta, hoje, amanhã será tarde demais. Essa luta só terá êxito se estiverem nela e não temos qualquer dúvida ou falta de confiança a este respeito. Porque estamos certos de que se os trabalhadores estão unidos e agirem como um só corpo, não há nada que eles não possam alcançar. Neste sentido, eu saúdo vocês com a minha profunda confiança e meu mais profundo respeito, em nome de todos os trabalhadores da Tekel." [15]. Essa carta não só pediu aos trabalhadores do açúcar que aderissem à luta, também expressa muito claramente o que tinha acontecido aos trabalhadores da Tekel. Ao mesmo tempo, expressa a consciência compartilhada por vários deles que eles não estavam lutando só por eles mesmos, mas por toda a classe trabalhadora.
Em 15 de janeiro, os trabalhadores da Tekel vieram a Ancara para participar de um protesto. Foram quase 10 000 na Praça de Sakarya. Alguns membros de suas famílias tinham vindo com eles. Os trabalhadores tiveram de pedir licença para tratamento de saúde e saída de férias para vir a Ancara e a maioria deles deviam voltar várias vezes para renovar suas licenças de férias. Quase todos os trabalhadores da Tekel estavam presentes [16]. Planejamos um evento com uma grande afluência para o sábado 16 de Janeiro. A polícia temia este evento, pois poderia dar à luz a generalização e extensão massiva da luta. A possibilidade de que os trabalhadores chegassem no sábado para a manifestação passando a noite e todo o domingo com os trabalhadores da Tekel poderia levar à formação de laços fortes e massivos. Portanto, a polícia insistiu que a manifestação começasse no domingo e Türk-Iş, em uma típica manobra, debilita um pouco mais a manifestação prevenindo que os trabalhadores das cidades curdas não viessem. Tinham também calculado que passar duas noites no inverno congelado em Ancara, sentados imóveis na rua, romperia a resistência e força dos trabalhadores. Vimos na manifestação de 17 de janeiro que este cálculo foi um erro grave.
Ela começou calmamente. Os trabalhadores que se reuniram em Ancara e vários grupos políticos começaram a marchar às 10 horas da estação para Praça Sihhiye. Na manifestação, assistida por dezenas de milhares de trabalhadores, em primeiro lugar, um trabalhador da Tekel, em seguida, um bombeiro e um trabalhador do açúcar tomaram a palavra sobre um palco. A explosão de raiva ocorreu depois. Depois dos operários, Mustafa Kumlu se instalou na tribuna. Kumlu, que nunca se preocupou com as lutas ou as condições de vida dos trabalhadores da Tekel, fez um discurso completamente moderado, conciliador e vazio. Türk-Iş tinha feito um esforço especial para manter os trabalhadores fora do palco e colocado os metalúrgicos na frente, que não estavam cientes do que estava acontecendo com eles. Porém os da Tekel, pedindo-lhes para deixá-los passar, conseguiram ir direto para a tribuna. Durante todo o discurso de Kumlu, fizeram todo o possível para interrompê-lo com suas palavras de ordem. O insulto final aos trabalhadores foi o anúncio de que após o discurso de Kumlu, Alişan, um cantor pop, que tinha nada a ver com o movimento, ia fazer um show Os trabalhadores tomaram a palavra e começaram a gritar suas palavras de ordem e, apesar dos dirigentes sindicais mandarem baixar o som, os trabalhadores que tinham vindo para a manifestação pegaram o microfone. A esta altura, o sindicato perdeu o controle completamente. Eram os trabalhadores que controlavam. Os dirigentes sindicais, no palco, por um lado, começaram a fazer discursos radicais e, por outro, tentavam expulsar os trabalhadores. Como eles não conseguiram, eles tentaram confrontar uns contra os outros e atacaram os estudantes e trabalhadores que vieram a apoiá-los. O sindicato também tentou dividir os trabalhadores que estavam em Ancara desde o início da luta daqueles que tinham chegado recentemente e tentou abordar aqueles que vieram para oferecer ajuda. No final, os dirigentes sindicais tentaram fazer descer aqueles que ocuparam o palanque, e convenceram o grupo a voltar rapidamente para frente do prédio de Türk-Iş. O fato de que os discursos sobre greves de fome e jejuns foram colocados na frente para derrubar os slogans sobre a greve geral é, a nosso ver, interessante. Em qualquer caso retornar para o edifício do Türk-Iş foi suficiente para extinguir a ira dos trabalhadores. Slogans como "greve geral, resistência geral", "Türk-Iş não deve abusar da nossa paciência" e "liquidaremos quem nos trai" era gritado agora diante do edifício. Poucas horas depois, um grupo de cerca de 150 trabalhadores começaram a derrubar a barricada feita por burocratas diante das portas do prédio e o ocuparam. Os trabalhadores da Tekel que procuravam Mustafa Kumlu no edifício começaram a gritar "Inimigo dos trabalhadores, lacaio do AKP", quando chegaram à porta da sala de Kumlu. Após a manifestação em 17 de janeiro, os esforços para estabelecer um comitê de greve reapareceram entre os trabalhadores. Este comitê foi composto por trabalhadores que não pensavam que uma greve de fome era uma maneira adaptada para fazer avançar a luta e que era necessário, ao contrário, estender esta. O esforço para formá-lo era conhecido por todos os trabalhadores e apoiado por uma ampla maioria. Aqueles que não sustentavam ativamente, tampouco estavam contra. Entre as tarefas atribuídas ao Comitê, em vez de transmitir suas reivindicações aos sindicatos, o objetivo era o de fazer a comunicação e a auto-organização nas fileiras dos trabalhadores. Como o anterior Comitê de greve, este era composto inteiramente por trabalhadores e completamente independente dos sindicatos. A mesma determinação de auto-organização dos trabalhadores da Tekel permitiu que centenas pudessem ser incorporadas à manifestação de trabalhadores do setor da saúde que estavam em greve em 19 de Janeiro. No mesmo dia, quando tinha sido permitido apenas uma centena de trabalhadores participarem de uma greve de fome de três dias, 3 000 trabalhadores se juntaram a eles, apesar do sentimento geral entre os trabalhadores que esta greve de fome não era apropriada para fazer avançar a luta. A razão apresentada foi que eles não queriam deixar seus companheiros fazer esta greve de fome sozinhos, que queriam, por solidariedade, comprometer-se com eles e compartilhar o que iam atravessar.
Embora os trabalhadores da Tekel tenham feito reuniões periódicas com eles nas cidades de onde eles vinham, uma assembléia geral com todos os trabalhadores participantes não tinha sido possível. Dito isto, desde 17 de Dezembro, a rua em frente ao edifício do Türk-Iş tinha tomado o caráter de uma assembléia geral, informal, mas regular. A Praça Sakkarya nesses dias estava cheia com centenas de trabalhadores de diferentes cidades, discutindo a forma de desenvolver a luta, como estendê-la, o que fazer. Outra característica importante da luta foi como os trabalhadores de diferentes regiões étnicas conseguiram se unificar contra a ordem capitalista, apesar das provocações do regime. O slogan "Trabalhadores curdos e turcos unidos", lançado a partir do início da luta, exprimiu isso muito claramente. Na luta da Tekel, muitos trabalhadores da região do Mar Negro dançaram o Şemame, e muitos curdos fizeram a dança do Horon pela primeira vez em sua vida. [17]. Outro aspecto importante da abordagem dos trabalhadores da Tekel foi a importância que deram à extensão da luta e da solidariedade dos trabalhadores, e isso apoiado não sobre a estreita base do nacionalismo, mas sobre a qual inclui o apoio mútuo e a solidariedade dos trabalhadores em todo o mundo. Por isso, os trabalhadores da Tekel evitaram que facções da oposição da classe dominante se servissem da luta para seus próprios objetivos, pois não tinham confiança nelas. Estiveram atentos a forma como o Partido Republicano do Povo. [18] (CHP Cumhuriyet Halk Partisi) atacava os trabalhadores despedidos de Kent AS [19], como o Partido do Movimento Nacionalista [20] (MHP Milliyetçi Hareket Partisi) desempenhou seu papel no agravamento da política oficial e antioperária. Um trabalhador expressa essa consciência muito claramente: "Nós entendemos o que todos nós somos. Os que votaram a favor da lei de privatização nos dizem como compreendem hoje a nossa situação. Até agora, eu sempre votei a favor do Partido do Movimento Nacionalista. É só nessa luta que eu tenho encontrado revolucionários. Eu estou nesta luta porque eu sou um trabalhador. Os revolucionários estão conosco. O Partido do Movimento Nacionalista e o Partido Republicano do Povo fazem cinco minutos de discurso aqui e depois saem. Tinham alguns entre nós que os amavam quando eles vinham aqui. Agora, a situação já não é a mesma." [21]. O exemplo mais surpreendente dessa consciência se viu quando os operários da Tekel impediram de falar os fascistas de Alperen Ockları [22], a mesma organização que havia atacado os operários de Kent AS que se manifestavam no parque Abdi İpekçi porque eram curdos. A luta da Tekel se constituiu também em um importante apoio aos bombeiros que haviam sido atacados brutalmente depois da sua primeira manifestação, dando-lhes ânimo para retomar a luta. De maneira geral, os operários da Tekel deram a esperança não somente aos bombeiros como também a todos os setores da classe operária na Turquia. Permitiram aos operários da Turquia sair do sono em que estavam depois de anos, para unir suas lutas às lutas operárias do mundo inteiro. Representam as sementes da greve de massas, como as que se tem visto sacudir o mundo nesses últimos anos, do Egito a Grécia, Bangladesh a Espanha, Inglaterra a China.
Esta luta está em curso, e pensamos que ainda não é tempo de tirar todas as lições. É difícil prever o que esperar desta luta, aonde irá. Que resultados obterão com duas opções contrárias: De um lado, a idéia de uma greve de fome e de um jejum total colocada pela frente, por outro, a idéia de um Comitê de greve colocado em marcha pelos operários que não acham adaptada a greve de fome para a luta e querem ao contrário ampliá-la; de um lado, os burocratas de Türk-Iş que fazem parte do Estado e, por outro lado, os operários que querem uma greve geral. Dito isso, devemos firmar o pé no fato de que, qualquer que seja a saída, a atitude notável dos operários da Tekel deixará lições inestimáveis para toda classe operária.
Gerdûn (20 de Janeiro de 2010)
[1] Tekel é a companhia que teve o monopólio de Estado de todas as empresas de produção de álcool e tabaco.
[2] Respectivamente, a Confederação de Esquerda dos Sindicatos de Operários do Setor Público, a Confederação de Sindicatos de Trabalhadores Revolucionários e, mais importante, a Confederação de Sindicatos de Empregados Públicos, conhecida pelas suas simpatias pró-fascistas.
[3] Primeiro Ministro, também dirigente do Partido da Justiça e do desenvolvimento, o AKP (Adalet ve Kalkınma Partisi).
[4] https://www.cnnturk.com/2009/turkiye/12/05/erdogana.tekel.iscilerinden.p... [101]
[5] Cidade do Curdistão turco.
[6] https://www.evrensel.net/haber.php?haber_id=63999 [102]
[7] Teca Gıda-İş, Sindicato de Operários da Alimentação, do Álcool e do Tabaco, membro da central sindical Türk-İş.
[8] A "Reforma curda""reforma Curda" é uma tentativa do Estado turco para encontrar uma solução para o problema colocado pela guerrilha Curda no leste do país, flexibilizando as leis anticurdas (por exemplo: suprimindo as proibições contra a utilização da língua Curda). Esta "reforma" recentemente foi desconsiderada pela proibição em dezembro de 2009 do Partido Curdo DTP (Veja também o artigo no nosso site em inglês "Turkey: Debates on the Kurdish Reform in the Wolf’s Lair [103]").
[9] Região conhecida tradicionalmente pelo seu nacionalismo e seu apoio ao partido no poder.
[10] https://www.evrensel.net/haber.php?haber_id=63999 [102]
[11] Confederação dos sindicatos turcos, a mais antiga e a maior confederação de sindicatos na Turquia que tem uma história totalmente infame. Foi constituída sob a influência dos Estados Unidos nos anos 50 segundo o modelo da AFL-CIO e, posteriormente, se caracterizou pela sabotagem das lutas operárias
[12] Conhecida por ser a capital não oficial do Curdistão. Diyarbakır é uma metrópole do Curdistão turco.
[13] https://www.kizilbayrak.net/sinifhareketi/haber/arsiv/2009/12/30/select/... [104]
[14] Cidade do Curdistão turco.
[15] https://tr.internationalism.org/ekaonline-2000s/ekaonline-2009/tekel-isc... [105]
[16] Aproximadamente 9 000 dos 10 000 da empresa.
[17] O Şemame é uma dança curda muito conhecida, e o Horon é outra dança também muito conhecida da região do Mar Negro da Turquia.
[18] O partido nacionalista de esquerda, Kemalista, tranquilizador, membro da Internacional Socialista, extremamente chauvinista.
[19] Os operários do município de Esmirna (İzmir), uma metrópole da costa do Mar Egeu. Esses operários foram despedidos pelo Partido Republicano do Povo que controlava o município onde trabalhavam e depois foram brutalmente atacados pela polícia quando manifestaram contra o dirigente do partido.
[20] O principal partido fascista.
[21] https://www.kizilbayrak.net/sinif-hareketi/haber/arsiv/2009/12/30/select... [106]
[22] Bando de assassinos vinculado ao Grande Partido da União (BBP, Büyük Birlik Partisi), uma dissidência fascista radical do Partido do Movimento Nacionalista.
Ligações
[1] https://webgsl.wordpress.com/;
[2] https://proyectoanarquistametropolitano.blogspot.com
[3] https://fr.internationalism.org/node/4256]
[4] https://es.internationalism.org/ap2000s/2009/208_anarguerra]
[5] https://es.internationalism.org/ap2000s/2009/209%3Aanar2]
[6] https://es.internationalism.org/ap/2009/210_anartres]
[7] https://es.internationalism.org/node/2715
[8] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2007/A_licao_dos_acontecimentos_na_Espanha_Bilan_36.htm]
[9] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/As-rupturas_em_reacao_a_degeneracao_do_Trotskismo]
[10] https://es.internationalism.org/rint129cnt]
[11] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/Sobre_as_nossas_dificuldades_para_debater_e_os_meios_de_supera_las
[12] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200602/773/anarquismo-y-comunismo-carta-abierta-a-los-militantes-del-comunismo
[13] https://es.internationalism.org/node/771
[14] https://fr.internationalism.org/ri321/anarchisme.htm
[15] https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap2.htm
[16] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200711/2088/la-cultura-del-debate-un-arma-de-la-lucha-de-la-clase
[17] https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Sera-que_o_trotskismo_pertence_ao_campo_do_proletariado
[18] https://www.revolutas.net
[19] https://www.marxists.org/francais/4int/urss/natalia.htm
[20] https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/outubro_1917
[21] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199307/1964/quien-podra-cambiar-el-mundo-i-el-proletariado-es-la-clase-revoluc
[22] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199309/1949/quien-podra-cambiar-el-mundo-ii-el-proletariado-sigue-siendo-la-cl
[23] https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/critica/introducao.htm
[24] https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap04.htm
[25] https://pt.internationalism.org/ICCOline/2008/degeneracao_da_Revolucao_Russa.html]
[26] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/decadencia_do_capitalismo_Que_m%C3%A9todo_cient%C3%ADfico
[27] https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Decadencia_dos_modos_de_producao
[28] https://es.internationalism.org/revista-internacional/197510/2059/la-conciencia-de-clase-y-el-papel-de-los-revolucionarios
[29] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm
[30] https://pt.internationalism.org/icconline/2007/leninismo-e-organizacao
[31] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/01/22.htm
[32] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200604/892/el-partido-y-sus-lazos-con-la-clase
[33] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199303/1991/v-1848-el-comunismo-como-programa-politico
[34] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199407/1852/viii-1871-la-primera-dictadura-del-proletariado
[35] https://www.bookess.com/read/1920-a-guerra-civil-na-franca/
[36] https://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/gotha.pdf
[37] https://pt.internationalism.org/icconline/2006/debate_guerras_e_das_revolucaoes_CCI
[38] https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/11/principios.htm
[39] https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista
[40] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/per%C3%ADodo_de_transi%C3%A7cao_do_capitalismo_ao_comunismo
[41] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_per%C3%ADodo_de_transicao
[42] http://www.socialismo.org.br/portal/images/stories/documentos/revista2/A_Revoluo_Russa.pdf
[43] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/Debate_sobre_os_erros_da_Revolucao_Russa
[44] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200904/2536/iv-1918-1919-la-guerra-civil-en-alemania
[45] https://es.internationalism.org/node/2566
[46] https://fr.internationalism.org/files/fr/images/rint135_graph1.jpg
[47] https://fr.internationalism.org/rint133/les_causes_de_la_periode_de_prosperite_consecutive_a_la_seconde_guerre_mondiale.html
[48] http://www.collectif-smolny.org/article.php3?id_article=523
[49] https://pt.internationalism.org/icconline/2006_reunioes_publicas-2-decadencia-do-capitalismo
[50] http://www.moreira.pro.br/classcent.htm
[51] https://www.nber.org/cycles.html
[52] https://www.resistir.info/
[53] https://es.internationalism.org/revista-internacional/197801/1066/octubre-de-1917-principio-de-la-revolucion-proletaria-i
[54] https://es.internationalism.org/node/2362
[55] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/09/29-1.htm
[56] https://pt.internationalism.org/content/5/o-stalinismo-nao-e-crianca-da-revolucao-mas-encarnacao-da-contra-revolucao
[57] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199912/1153/viii-la-comprension-de-la-derrota-de-la-revolucion-rusa-1-1918-la-
[58] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/04/26.htm
[59] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199712/1217/ii-el-estado-y-la-revolucion-lenin-una-brillante-confirmacion-del-
[60] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199201/1225/i-1905-la-huelga-de-masas-abre-la-puerta-a-la-revolucion-proletari
[61] http://www.moreira.pro.br/docsocintercent.htm
[62] https://es.internationalism.org/revista-internacional/197507/940/las-ensenanzas-de-kronstadt
[63] https://es.internationalism.org/node/2113
[64] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200711/2089/la-experiencia-rusa-propiedad-privada-y-propiedad-colectiva
[65] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200704/1823/china-1928-1949-i-eslabon-de-la-guerra-imperialista
[66] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200703/1779/china-1928-1949-ii-un-eslabon-de-la-guerra-imperialista
[67] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/Che_Guevara_mito_e_realidade_uma_correspondencia
[68] https://cedema.org/digital_items/3400
[69] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200904/2483/las-revueltas-de-la-juventud-en-grecia-confirman-el-desarrollo-de-
[70] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2008/Grecia_uma_declaracao_de_trabalhadores_em_luta
[71] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2008/Solidariedade_com_o_movimento_dos_estudantes_na_Grécia
[72] https://pt.internationalism.org/tag/1/6/Organiza%C3%A7%C3%A3o-revolucionaria
[73] https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm#i1
[74] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/index.htm
[75] https://www.marxists.org/portugues/marx/1843/questaojudaica.htm
[76] https://www.moreira.pro.br/docsocintercent.htm
[77] https://es.internationalism.org/rint141-consejos
[78] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200501/204/i-hace-100-anos-la-revolucion-de-1905-en-rusia
[79] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200510/358/iii-el-surgimiento-de-los-soviets-abre-un-periodo-historico-nuevo-p
[80] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm]
[81] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_que_sao_os-Conselhos_Oper
[82] https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap08.htm
[83] https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap09.htm
[84] https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap15.htm
[85] https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/revolucao_mundial_teses_abril.htm
[86] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/23.htm
[87] https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap22.htm
[88] https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/revolucao_russe_partitdo.htm
[89] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/Por_que_os_conselhos_operarios_nascem_em_1905
[90] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/A_revolucao_de_outubro_fevereiro_julho_1917
[91] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/07/23.htm
[92] http://www.marxist.org
[93] https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1917/oct/04.htm
[94] https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/revolucao_russe_outubro_17_soviete
[95] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2007/revolucao_russa_outubro_1917.htm
[96] https://www.liberation.fr/monde/0101613901-pres-de-50-000-morts-en-haiti-selon-la-croix-rouge
[97] https://sciences.blogs.liberation.fr/home/2010/01/s%C3%A9isme-en-ha%C3%AFti-les-causes.html
[98] https://www.bme.gouv.ht/alea%20sismique/Al%E9a%20et%20risque%20sismique%20en%20Ha%EFti%20VF.pdf
[99] https://www.courrierinternational.com/article/2010/01/14/requiem-pour-port-au-prince
[100] https://www.presseurop.eu/fr/content/article/169931-bien-plus-quune-catastrophe-naturelle
[101] https://www.cnnturk.com/2009/turkiye/12/05/erdogana.tekel.iscilerinden.protesto/554272.0/
[102] https://www.evrensel.net/haber.php?haber_id=63999
[103] https://en.internationalism.org/icconline/2009/10/turkey
[104] https://www.kizilbayrak.net/sinifhareketi/haber/arsiv/2009/12/30/select/roeportaj/artikel/136/direnisteki-tek.html
[105] https://tr.internationalism.org/ekaonline-2000s/ekaonline-2009/tekel-iscisinden-seker-iscisine-mektup
[106] https://www.kizilbayrak.net/sinif-hareketi/haber/arsiv/2009/12/30/select/roeportaj/artikel/136/direnisteki-tek.html