Publicado em Corrente Comunista Internacional (https://pt.internationalism.org)

Início > ICCOnline - 2007

ICConline - 2007

  • 6909 leituras
  

A teoria da decadência (II)

  • 3856 leituras

O movimento operário nos tempos de Marx

Marx e Engels sempre expressaram claramente que a perspectiva da revolução comunista dependia da evolução material, histórica e global do capitalismo. Ou seja a concepção segundo a qual um modo de produção não pode expirar antes que as relações de produção sobre as quais se apóia não tenham se convertido em travas ao desenvolvimento das forças produtivas, foi a base de toda a atividade política de Marx e Engels e a da elaboração do qualquer programa político proletário.

Apesar de que Marx e Engels, em duas ocasiões, acreditaram haver detectado o aparecimento da decadência do capitalismo[1], corrigiram, entretanto rapidamente sua apreciação e reconheceram que o capitalismo continuava sendo um sistema progressista. Sua visão, esboçada no Manifesto Comunista e aprofundada em todos os seus escritos daquela época, segundo a qual o proletariado que alcançasse o poder naquela época, teria como principal tarefa a de desenvolver o capitalismo da forma mais progressista possível, e não a de destruí-lo pura e simplesmente, expressava essa análise. Por isso a prática dos marxistas na Primeira Internacional se baseava com razão na análise de que, embora continuasse o capitalismo desempenhando um papel progressista, o movimento operário devia apoiar aqueles movimentos burgueses que preparavam o terreno histórico do socialismo:

"Já temos visto anteriormente que o primeiro passo da revolução operária constitui a elevação do proletariado em classe dominante, a conquista da democracia. O proletariado utilizará da sua hegemonia política para despojar paulatinamente a burguesia de todo o seu capital (...) Os comunistas lutam, pois, para alcançar os fins e interesses imediatos da classe operária porém no momento atual representam ao mesmo tempo o futuro do movimento. Na França os comunistas aderem ao Partido socialista democrático contra a burguesia conservadora e radical, sem por isso abandonar o direito de manter uma posição crítica frente as frases e as ilusões provenientes da tradição revolucionária. Entre os poloneses, os comunistas apóiam o partido que estabelece a revolução agrária como condição da libertação nacional, o mesmo que suscitou a insurreição da Cracóvia em 1846. Na Alemanha , na medida em que a burguesia atua revolucionariamente, o Partido Comunista atua conjuntamente com a burguesia contra a monarquia absoluta, a propriedade feudal da terra e a pequena-burguesia. Por último, os comunistas trabalham em todas as partes pela vinculação e o entendimento dos partidos democráticos de todos os países" (Manifesto Comunista)[2]. De forma paralela, era necessário que os operários continuassem lutando por reformas quando as possibilitou o desenvolvimento do capitalismo, e nessa luta, "as comunistas lutam pelos interesses e fins imediatos da classe operária... ", tal como dizia o Manifesto. Essas posições materialistas iam contra os chamamentos a-históricos dos anarquistas para a abolição imediata do capitalismo e sua oposição total a qualquer reforma.[3].

A Segunda Internacional, herdeira de Marx e Engels

A IIª Internacional explicitou ainda mais essa adaptação ao período da política do movimento operário, ao adotar um programa mínimo de reformas imediatas (reconhecimento dos sindicatos, diminuição da jornada de trabalho, etc.) assim como um programa máximo, o socialismo, cuja prática estaria na ordem do dia quando ocorresse a inevitável crise histórica do capitalismo. Aparece ainda muito claramente no Programa de Erfurt que concretizou a vitória do marxismo na social-democracia:

  • "A propriedade privada dos meios de produção tem mudado....tem se convertido pela força motriz do progresso, na causa da degradação e da ruína social... sua queda é segura, a única questão a que temos de responder é: O sistema da propriedade privada dos meios de produção arrastará a sociedade na sua queda ao abismo ou a sociedade se livrará desse fardo desembaraçando-se dele? (...) As forças produtivas que se geraram na sociedade capitalista se transformaram irreconciliáveis com o sistema mesmo que as fez surgir. A tentativa de manter esse sistema de propriedade faz impossível qualquer novo desenvolvimento social e condena a sociedade ao estancamento e a decadência (...) O sistema social capitalista tem chegado ao final da sua carreira, sua dissolução é desde agora uma questão de tempo . É um destino implacável, as forças econômicas empurram ao naufrágio a produção capitalista, a construção de uma nova ordem social que substitua ao que atualmente existe não é simplesmente algo desejável, tem se convertido em algo inevitável (...) Tal e como estão as coisas atualmente, a civilização não pode durar, devemos avançar para o socialismo ou cairemos na barbárie. (...) A história da humanidade não está determinada pelas idéias e sim pelo desenvolvimento econômico que progride irresistivelmente obedecendo a leis subjacentes precisas e não a qualquer desejo ou fantasia" (tradução nossa de extratos do Programa de Erfurt relido, corrigido e apoiado por Engels[4]; Kautsky 1965, O programa de Erfurt, Berlin, Dietz-Verlag).

Porém para a maioria dos principais lideres oficiais da Segunda Internacional, o programa mínimo se transformará cada dia mais no único e verdadeiro programa da social-democracia: "O objetivo seja qual for não é nada. O movimento é o todo", segundo as palavras de Bernstein. O socialismo e a revolução proletária acabaram se convertendo em um discurso repetido como sermões nas manifestações do Primeiro de Maio enquanto a energia do movimento oficial estava se concentrando cada dia mais na obtenção por parte da social-democracia, custe o que custar, de um lugar no sistema capitalista. Inevitavelmente, a ala oportunista da social-democracia começou a negar a necessidade da destruição do capitalismo para defender a possibilidade de uma transformação gradual do capitalismo em socialismo.

A Esquerda marxista na Segunda Internacional

Em resposta ao desenvolvimento do oportunismo na Segunda Internacional se desenvolveram frações de esquerda em vários países. Serão estas as que posteriormente permitirão que sejam fundados partidos comunistas após a traição ao internacionalismo proletário por parte da social-democracia quando estoura a Primeira Guerra Mundial. As frações de esquerda defenderam claramente a bandeira do marxismo ao assumir a herança da Segunda Internacional, desenvolvendo-o frente a novos desafios colocados pelo novo período do capitalismo iniciado de maneira patente pelo início da guerra, o período da sua decadência.

Essas correntes apareceram quando o sistema capitalista estava vivendo a ultima fase do seu ascenso, quando a expansão imperialista fazia vislumbrar a perspectiva de enfrentamento entre as grandes potências do capitalismo mundial e quando ia se radicalizando cada dia mais a luta de classes (desenvolvimento de greves gerais políticas e sobretudo de greves de massas em vários países). Contra o oportunismo de Bernstein e cia., a esquerda da social-democracia - os bolcheviques, o grupo dos Tribunistas holandeses, Rosa Luxemburgo e outros revolucionários - defenderam a análise marxista com todas as suas implicações: entender a dinâmica do fim da fase ascendente do capitalismo e a inelutabilidade da sua quebra[5], as causas das derivações oportunistas[6] e a reafirmação da necessidade da destruição violenta e definitiva do capitalismo[7]. Desgraçadamente, esse trabalho teórico por parte das frações de esquerda não foi realizado em escala internacional; se dará em ordem dispersa e com níveis de análises e de compreensão diferentes frente aos grandes transtornos sociais do início do século XX, caracterizado pelo início da Primeira Guerra Mundial e de desenvolvimento de movimentos insurrecionais em escala internacional. Não temos aqui a pretensão de fazer uma apresentação nem uma análise detalhada de todas aquelas contribuições das frações de esquerda sobre esses temas: nos limitaremos a algumas tomadas de posição do que serão as duas colunas vertebrais da nova internacional - o Partido Bolcheviques e o Partido Comunista Alemão-, através de seus dois mais eminentes representantes, Lênin e Rosa de Luxemburgo.

Se Lênin não utiliza os vocábulos de "ascendência" e de "decadência" e sim termos e expressões como "a época do capitalismo progressista", "antigo fator de progresso", "a época da burguesia progressista" quando trata do período ascendente do capitalismo e da "época da burguesia reacionária", "o capitalismo se tornou reacionário", "um capitalismo agonizante", "a época do capitalismo que alcançou seu amadurecimento" para caracterizar o período decadente do capitalismo, utiliza entretanto plenamente esses conceitos e as suas implicações essenciais para analisar corretamente o caráter da Primeira Guerra Mundial. Contra os social-traidores que pretendiam apoiarem-se nas analises de Marx durante a fase ascendente do capitalismo para preconizar um apoio condicional a certas frações burguesas e suas lutas de libertação nacional., Lênin identificará na Primeira Guerra Mundial a expressão de um sistema que havia esgotado sua missão histórica, colocando assim na ordem do dia a necessidade da sua superação mediante uma revolução em escala mundial. Por isso define a guerra imperialista como totalmente reacionária a qual havia de opor com o internacionalismo proletário e a revolução:

  • "De libertador das nações que foi o capitalismo na sua luta contra o regime feudal, o capitalismo imperialista se converteu no maior opressor das nações. O capitalismo antigo fator de progresso, tem se tornado reacionário; após desenvolvido as forças produtivas até tal ponto que a humanidade não lhe resta mais que passar ao socialismo ou sofrer durante anos, inclusive dezenas de anos, a luta armadas das "grandes" potências por manter artificialmente o capitalismo por meio das colônias, monopólios, privilégios e opressões nacionais de todo tipo" (Os princípios do socialismo e da guerra de 1914-1918; "A guerra atual é uma guerra imperialista"); "A época do imperialismo capitalista é a época de um capitalismo que já tem alcançado e ultrapassado seu período de amadurecimento, que se adentra na sua ruína, maduro para deixar seu espaço ao socialismo. O período de 1789 a 1871 havia sido a época do capitalismo progressista: sua tarefa era derrotar o feudalismo, o absolutismo, a libertação do jugo estrangeiro.... " (O oportunismo e a falência da IIª Internacional, janeiro de 1916); "De tudo que foi dito anteriormente sobre o imperialismo resulta que devemos caracteriza-lo como o capitalismo de transição, ou mais exatamente com um capitalismo agonizante. (...) a putefração e o parasitismo caracterizam o estágio histórico supremo do capitalismo, significa dizer, o imperialismo. (...) O imperialismo é o prelúdio da revolução social do proletariado. Isso se confirmou em escala mundial depois de 1917" (O imperialismo fase superior do capitalismo", Obras Escolhidas, Tomo I, Editorial Progresso).

As posições tomadas diante da guerra e da revolução sempre são linhas claras de demarcação no movimento operário. A capacidade de Lênin para definir a dinâmica histórica do capitalismo e captar o final da "época do capitalismo progressista" e que "o capitalismo se tornou reacionário" não só lhe permitiu caracterizar claramente a Primeira Guerra Mundial como também o caráter e a dimensão da revolução na Rússia. Com efeito, quando estava amadurecendo a situação revolucionária na Rússia, a compreensão que tinham os bolcheviques das tarefas impostas pelo novo período lhes permitiu lutar contra as concepções mecanicistas e nacionalistas dos mencheviques. Quando esses tentaram minimizar a importância da onda revolucionária com o pretexto de que "A Rússia não estava bastante desenvolvida para o socialismo", os bolcheviques afirmaram que o caráter mundial da guerra imperialista mostrava que o capitalismo mundial havia alcançado o nível de amadurecimento necessário para a revolução socialista. Em conseqüências lutavam pela tomada do poder pela classe operária, considerando-a como um prelúdio da revolução proletária mundial.

Dentre as primeiras e mais claras expressões desta defesa do marxismo está o folheto Reforma ou revolução escrito por Rosa Luxemburgo em 1899, que ainda reconhecendo que o capitalismo continuava em expansão graças a "bruscos sobressaltos expansionistas" (ou seja o imperialismo), insistia no fato que o capitalismo se dirigia correndo inevitavelmente para sua "crise de senilidade" e isso conduziria a necessidade imediata da tomada do poder revolucionária pelo proletariado. Com muita perspicácia política, Rosa Luxemburgo foi além do mais capaz de perceber as novas exigências colocadas pela mudança do período histórico considerando a luta e as posições políticas do proletariado, especialmente na questão sindical, a tática parlamentar, a questão nacional e os novos métodos de luta mediante a greve de massas[8].

Sobre os sindicatos: "Quando o desenvolvimento da indústria tiver alcançado seu ponto máximo e que no mercado mundial começar a fase de declínio capitalista, a luta sindical será então cada vez mais difícil (...) Nesta etapa a luta se limita necessariamente à defesa do já conseguido, e mesmo assim ele passa a ser cada vez mais difícil. Assim o curso dos acontecimentos, cuja contrapartida deve ser o desenvolvimento de uma luta de classes política e social" (Rosa Luxemburgo, Reforma ou Revolução).

Sobre o parlamentarismo: "Assembléia Nacional ou todo poder aos Conselhos de Operários e Soldados, abandono do socialismo ou luta de classes determinada e armada contra a burguesia: esse é o dilema!. Alcançar o socialismo o pela via parlamentar, por simples decisão da maioria, isso é um projeto idílico! (...) O parlamentarismo, é certo, foi um terreno da luta de classe do proletariado enquanto durou a vida tranqüila da sociedade burguesa. E foi então uma tribuna de onde podíamos reunir as massas em torno da bandeira do socialismo e educá-las para a luta. Porém hoje estamos no coração mesmo da revolução proletária e se trata, desde agora, de abater a árvore da exploração capitalista. O parlamentarismo burguês, com a dominação de classe burguesa que foi a sua razão de ser mais eminente, perdeu sua legitimidade. Desde o presente, a luta de classes apresenta a face descoberta, o capital e o trabalho não tem nada que dialogar, não lhe resta mais caminho que empunhar firmemente de um estreitamento e iniciar o desenlace dessa luta mortal" (Rosa Luxemburgo, Assembléia Nacional ou Conselhos Operários?, Obras Escolhidas).

Sobre a questão nacional: "A guerra mundial não serve nem para a defesa nacional, nem para os interesses econômicos ou políticos das massas populares sejam quais forem, é produto unicamente das rivalidades imperialistas entre as classes capitalistas de diferentes países pela supremacia mundial e pelo monopólio da exploração e opressão de regiões que ainda não estão submetidas ao Capital. Na época deste imperialismo desenfreado já não pode haver guerra nacional. Os interesses nacionais são só uma mistificação destinada a que as massas populares trabalhadoras se coloquem a serviço de seu inimigo mortal: o imperialismo" (A Crise da Social-democracia, 1915).

A decadência na medula da análise da Internacional Comunista

Alentada pelos movimentos revolucionários que acabaram com a Primeira Guerra Mundial, a constituição da Terceira Internacional (Internacional Comunista, ou IC) se apoiou na análise do final do papel historicamente progressista da burguesia que as esquerdas marxistas da Segunda Internacional haviam feito. Ante a tarefa de entender o giro que pos em evidência o início da Primeira Guerra Mundial e dos movimentos insurrecionais em escala internacional, tanto a IC como os grupos que a formavam trataram da "decadência" - a um nível ou outro - como a chave da compreensão do novo período histórico que acabava de iniciar-se. Assim na plataforma da nova internacional é afirmado que: "Nasceu uma nova época. Época de desintegração do capitalismo, do seu desmoronamento interno. Época da revolução comunista do proletariado" (Primeiro Congresso). E nesse marco de análises se basearam, mas ou menos, todas as suas tomadas de posição[9], como por exemplo nas teses sobre o parlamentarismo adotadas no Segundo Congresso: "O comunismo deve ter como ponto de partida o estudo teórico da nossa época (apogeu do capitalismo, tendências do imperialismo até sua própria negação e sua própria destruição)" (idem)

Esse marco de análise ainda será mais evidente no relatório sobre a situação internacional escrito por Trotsky e adotado pelo III° Congresso da IC: "As oscilações cíclicas, dizíamos no nosso relatório ao 3° Congresso da IC acompanham o desenvolvimento do capitalismo na sua juventude, sua maturidade e sua decadência como o pulsar do coração acompanha o homem inclusive até a sua agonia" (Trotski, A maré sobe, 1922) e também nas discussões que se desenvolveram em torno deste relatório: "Ontem vimos em detalhe como o camarada Trotsky - e todos os aqui presentes estamos, creio, de acordo com ele - estabeleceu a relação entre, de um lado, as pequenas crises e os pequenos períodos de desenvolvimento cíclicos e momentâneos e, de outro lado, o problema do desenvolvimento e do declínio do capitalismo analisado em escala de grandes períodos históricos. Estaremos todos de acordo em que a grande curva que antes indicava para cima hoje vai irreversivelmente para baixo, e que dentro dessa grande curva, tanto quando sobe como quando desce como hoje, se produzem oscilações" (Authier D., Dauvé D., Nem parlamentos nem sindicatos, Conselhos Operários!).[10] Por fim, a Resolução sobre a tática da IC do seu IV° Congresso, explicita ainda mais e reafirma a análise da decadência do capitalismo: "II.- O Período de decadência do capitalismo. Depois de ter analisado a situação econômica mundial, o III° Congresso pôde comprovar com absoluta precisão que o capitalismo, depois de haver realizado sua missão de desenvolver as forças produtivas, caiu na contradição mais irredutível com as necessidades não somente da evolução histórica atual como também com as condições mais elementares da existência humana. Esta contradição fundamental se refletiu particularmente na última guerra imperialista e foi agravada por esta guerra que comoveu, de modo mais profundo, o regime da produção e da circulação. O capitalismo, que desse modo sobreviveu a si mesmo, entrou em uma fase onde a ação destruidora de suas forças desencadeadas arruína e paralisa as conquista econômicas criadoras já realizadas pelo proletariado em meio as cadeias da escravidão capitalistas. (...) Atualmente o capitalismo está vivendo sua agonia." (Os quatro primeiros congressos da Internacional Comunista).

A análise do significado político da Primeira Guerra Mundial

O inicio da guerra imperialista em 1914 assinala um giro decisivo tanto na história do capitalismo como na do movimento operário. O problema da "crise de senilidade" do sistema deixou de ser um debate teórico entre as diversas frações do movimento operário. A compreensão de que a guerra abria um novo período para o capitalismo, como sistema histórico, exigia uma mudança na prática política cujos fundamentos se converteram em fronteira de classe: de um lado os oportunistas que mostraram claramente a sua face de agente do capitalismo "adiando" a revolução com seu chamamento pela "defesa nacional" em uma guerra imperialista e, do outro lado, a esquerda revolucionária - os bolcheviques ao redor de Lênin, o grupo Die Internationale, os Radicais de esquerda de Bremen, os Tribunos holandeses, etc. - que se reuniram em Zimmerwald e Kienthal para afirmar que a guerra marcava a abertura da época "das guerras e das revoluções" e que a única alternativa à barbárie capitalista era a insurreição revolucionária do proletariado contra a guerra imperialista. Entre todos os revolucionários que assistiram a essas conferências, os mais claros sobre a questão da guerra foram os bolcheviques. Essa clarividência emana diretamente da compreensão de que o capitalismo havia entrado na sua fase de decadência posto que "a época da burguesia progressista" havia dado lugar a "época da burguesia reacionária", como o afirma sem ambigüidade a citação seguinte de Lênin:

  • "Os social-democratas russos (Plekanov a testa) invocam a tática de Marx na guerra de 1870; os social-chauvinistas alemães (tipo Lensch, David e companhia ) invocam as declarações de Engels em 1891 sobre a necessidade, para os socialistas alemães, de defender a pátria em caso de uma guerra contra França e Rússia unidas... Todas essas referências deformam de modo indigno as concepções de Marx e de Engels sendo complacente com a burguesia e os oportunistas... Invocar hoje em dia a atitude que teve Marx a respeito da época progressista da burguesia e duvidar das palavras de Marx: "Os proletários não tem pátria", palavras que se relacionam diretamente com a época da burguesia reacionária cujo tempo havia ficado para trás, com a época da revolução socialista, é deformar cinicamente o pensamento de Marx e suplantar o ponto de vista socialista por outro ponto de vista da burguesia" (Lênin 1915, Obras Completas).

Esta análise política do significado histórico do início da Primeira Guerra Mundial determinou a posição do conjunto do movimento revolucionário, das frações de esquerda na Segunda Internacional[11] até os grupos da Esquerda Comunista, passando pela IIIª Internacional. É o que tinha previsto Engels nos finais do século XIX: "Frederich Engels disse um dia: "A sociedade burguesa está situada ente um dilema: ou passagem ao socialismo ou recaída à barbárie". Porém, que significa "uma recaída à barbárie" no grau de civilização que conhecemos na Europa de hoje? Até agora temos lido essas palavras sem refletir e as temos repetido sem pressentir a terrível gravidade. Se dermos uma olhada ao nosso redor neste momento e compreenderemos o que significa um desabamento da sociedade burguesa na barbárie. O triunfo do imperialismo leva a negação da civilização, esporadicamente enquanto durou a a guerra e definitivamente, si o período das guerras mundiais que começa agora tem continuidade sem obstáculos até as suas últimas conseqüências. É exatamente o que Fredrich Engels previu uma geração antes da nossa, fazem quarenta anos. Estamos situados hoje ante essa eleição: ou bem triunfa o imperialismo e decadência de toda civilização como em Roma antiga, o despovoamento, a desolação, a tendência a degeneração, um enorme cemitério; ou bem, vitória do socialismo, significa dizer, da luta consciente do proletariado internacional contra o imperialismo e contra o seu método de ação: a guerra. Esse é um dilema da história do mundo, ou bem, ou bem, todavia indeciso, cujo pendulo se move ante a decisão do proletariado consciente. O proletariado deve lançar resolutamente na balança a espada do seu combate revolucionário. O futuro da civilização e da humanidade depende dele" (Rosa Luxemburgo, A crise da Social-democracia, I). Isso mesmo o que haviam compreendido bem, com determinação, todas as forças revolucionária que participaram da criação da Internacional Comunista. Assim, seus estatutos recordam claramente que: "A IIIª Internacional se constituiu ao final da carnificina de 1914-1918, durante a qual a burguesia sacrificou 20 milhões de vidas em diferentes países. Recordemos da guerra imperialista! Esta é a primeira palavra que a Internacional comunista dirige a cada trabalhador, seja qual sua origem ou idioma que fale. Recordemos que por conta da existência do regime capitalista, um punhado de imperialistas tem conseguido, durante 4 longos anos, obrigar aos trabalhadores a ir mutuamente a degola! Recordemos que a guerra burguesa mergulhou a Europa e o mundo inteiro na fome e na indigência! Recordemos que sem a derrubada do capitalismo, será não só possível, como inevitável que se repitam esses crimes de guerras! (...) A Internacional Comunista considera a ditadura do proletariado como o único meio disponível para livrar a humanidade dos horrores do capitalismo" (Quatro primeiros congressos da IC).

Sim!! Mas que nunca temos de "recordar" a análise de nossos predecessores e devemos reafirmá-la com tão mais força que as camarilhas parasitas tentam apresentá-la como "humanismo e moralismo burguês", minimizando a guerra imperialista e os genocídios. Sob pretexto de criticar a teoria da decadência, dirigem um ataque constante contra as aquisições fundamentais do movimento operário: "Por exemplo para demonstrarmos que o modo de produção capitalista está em decadência, Sander afirma que sua característica é o genocídio e que mais de três quarta parte dos mortos na guerra dos últimos 500 anos se produziram no século XX. Esse tipo de argumentos também toma parte do pensamento milenarista. Para os testemunhas de Jeová, a Primeira Guerra Mundial, significaria um giro na história por causa da sua gravidade e sua intensidade. Segundo esses, a quantidade de mortos durante a Primeira Guerra Mundial teria sido "...sete vezes maior que as 901 principais guerras anteriores durante 2400 anos antes de 1914 (....)". Segundo a polemista Ruth Leger Sivard, em um livro editado em 1996, o século XX havia feito uns 110 milhões de mortos em 250 guerras. Se extrapolamos esse resultado se alcançam os 120 milhões de mortos, seis vezes mais que no século XIX. Relativamente à população média do século, esta quantidade ponderada de mortos passa de 6 a 2. (...) Inclusive assim, a conseqüência das guerras continua sendo inferior a das moscas e dos mosquitos. (...) Não se pode avançar no materialismo e menos ainda a compreensão da história do modo de produção capitalista adotando conceitos próprios do direito burguês moderno (com o e genocídio), confeccionados pela ideologia democrática e de direitos humanos sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial" (Robin Goodfelow, "Camarada, um esforço mais para deixar de ser um revolucionário").

Comparar os estragos das guerras imperialistas com algo que é "menos importante que os efeitos de moscas e mosquitos" é realmente cuspir na cara tanto dos milhões de proletários que foram assassinados nos campos de batalha como os milhares de revolucionários que sacrificaram sua vida tentando bloquear o braço da burguesia e estimular as lutas revolucionárias. É um escandaloso insulto a todos aqueles revolucionários que lutaram com todas as suas forças denunciando as guerras imperialistas. Comparar as análises deixadas por Marx, Engels e todos nossos ilustres antecessores da Internacional Comunista e da Esquerda Comunista com as das Testemunhas de Jeová e com o moralismo burguês é uma sórdida indecência. Diante de semelhantes "pensamentos", nos somamos a Rosa Luxemburgo quando dizia que a indignação do proletariado é uma força revolucionária!

Segundo esses parasitas, toda a terceira Internacional, Lênin Trotsky, Bordiga, etc., haviam extraviado em um lamentável mal entendido, acreditando estupidamente que a Primeira Guerra Mundial, era "o maior dos crimes" (Plataforma da IC, idem.), quando segundo esses parasitas, foi algo "menos importante que os efeitos de moscas e mosquitos". Todos aqueles revolucionários que pensaram que a guerra imperialista é a maior catástrofe para o proletariado e o movimento operário no seu conjunto, "A catástrofe da guerra imperialista tem varrido de cima abaixo todas as conquistas das batalhas sindicais e parlamentares" (Manifesto da IC)", haviam cometido, por tanto, o pior dos equívocos, o de haver teorizado que a Primeira Guerra Mundial abria o período de decadência do capitalismo: "O período de decadência do capitalismo (...) o capitalismo, depois de haver cumprido com as necessidades não só da evolução histórica atual como também com as condições da existência humana mais elementar. Essa contradição fundamental se plasmou sobre tudo na ultima guerra imperialista e esta guerra a tem agravado mais, todavia" (op.cit.). O desprezo presunçoso desses parasitos diante do adquirido pelo movimento operário, que nossos irmãos de classe escreveram com seu sangue, não se pode comparar senão com o desprezo que tem a burguesia diante da miséria dos operários com o cinismo deslavado das somas .brutas utilizadas por esta para cantar os méritos do capitalismo. Parafraseando a célebre fórmula de Marx quando trata sobre Proudhon e a miséria, esses parasitas não vêem que os números mais que números y não suspeitam o seu significado social e político revolucionário[12]. Todos os revolucionários de então, que entenderam perfeitamente o caráter qualitativamente diferente, todo o significado social e político daquela "matança massiva das melhores tropas do proletariado internacional": "Porém o desencadeamento atual da fera imperialista nos campos europeus produz além do mais outro resultado que deixa o "mundo civilizado" por completo indiferente [e a esses parasitas atuais, acrescentamos nós]: o desaparecimento massivo do proletariado europeu. Jamais uma guerra havia exterminado em tais proporções camadas inteiras da população (...) e é a população operária das cidades e dos campos que constitui os nove décimos desses milhões de vítimas (...) são as melhores forças, as mais inteligentes, as melhores adestradas do socialismo Internacional (...). O fruto de dezenas de anos de sacrifícios e esforços de várias gerações é aniquilado em algumas semanas; as melhores tropas do proletariado internacional são dizimadas (...) Aqui o capitalismo descobre seu próprio calvário; aqui confessa que seu direito a existência está caduca, que a continuação da sua dominação já não é compatível com o progresso da humanidade." (Rosa Luxemburgo, A crise da Social-democracia, 1915)[13]


[1] Para mais detalhes, leia o primeiro artigo desta série na Revista Internacional nº 118.

[2] Desgraçadamente, o que Marx expressou com razão que até então tinha se utilizado como confusão reacionária durante o período de decadência por parte de todos aqueles que invocavam aquelas medidas preconizadas no Manifesto Comunista como se pudessem adaptar a época atual.

[3] Essas posições dos anarquistas, aparentemente ultra-revolucionárias, não eram senão o desejo da pequena burguesia em acabar com o estado e o trabalho assalariado, não avançando até a superação histórica e sim voltando até um mundo de produtores independentes.

[4] O primeiro artigo desta série já demonstrou claramente, apoiando-se em numerosas citações extraídas do conjunto da sua obra, que o conceito de decadência assim como a palavra mesma "decadência" tem a sua origem em Marx e Engels e são a medula mesmo do materialismo histórico para compreender a sucessão dos modos de produção. Isto invalida claramente as asserções doidas da revista academicista Aufheben que pretende que "a teoria do declive do capitalismo apareceu pela primeira vez na Segunda Internacional" (serie de artigos intitulada "Sobre a decadência, teoria de declive ou declive da teoria", publicada nos nº. 2,3 e 4 de Aufheben). E ao reconhecer que a teoria da decadência está no centro mesmo do programa marxista da Segunda Internacional, nossa série desmente rotundamente a extravagante série de datas de nascimentos inventadas por uma gentalha de grupos parasitos: para a FICCI, por exemplo, a decadência apareceria no fim do século XIX. "Temos apresentado a origem da noção de decadência em torno dos debates sobre o imperialismo e a alternativa histórica de guerra ou revolução que se desenrola nos finais do século XIX ante as profundas transformações então vividas pelo capitalismo" (Bulletin Communiste nº 24, abril de 2004), embora que para RIMC apareça após a Primeira Guerra Mundial: "O objetivo deste trabalho é o de fazer uma crítica global e definitiva do conceito de "decadência" que está envenenando a teoria comunista como um dos maiores desvios nascidos no primeiro pós-guerra, que tem impedido todo trabalho científico de restauração da teoria comunista devido o seu caráter profundamente ideológico" (Revista internacional do movimento comunista", "Dialética das forças produtivas e das relações de produção na teoria comunista"). Para Perspectiva Internacionalista, seria Trotsky o inventor do conceito: "O conceito de decadência do capitalismo surgiu na Terceira Internacional na qual foi sobretudo Trotski quem desenvolveu" ("Nascia uma nova teoria da decadência do capitalismo"). O único que têm em comum essas camarilhas é sua critica a nossa organização e em particular a nossa teoria da decadência, sem saber que nenhuma realmente saiba do que estão falando.

[5] Veja, por exemplo, Lênin em Imperialismo, fase superior do capitalismo, ou Rosa Luxemburgo na Acumulação do Capital.

[6] Veja também Rosa Luxemburgo em Reforma ou revolução e mais tarde Lênin na Revolução Proletária e o Renegado Kautsky.

[7] Ler Lênin no Estado e a Revolução e Rosa Luxemburgo, Que quer a Liga Spartacus?

[8] Leia Greve de massas, partido e sindicatos.

[9] mais amplamente esta idéia na segunda parte deste artigo.

[10] Essa citação foi tirada da intervenção de Alexandre Schwab, delegado do KAPD, no III° Congresso da Internacional comunista, na discussão acerca do informe de Trotsky, sobre a situação econômica mundial, "Teses sobre a situação mundial e as tarefas da Internacional Comunista" Esta citação restitui corretamente o sentido e o conteúdo, e sobretudo o marco conceitual desse informe e da discussão na IC em torno da noção de "auge" e de "declive" do capitalismo na escala dos grandes períodos históricos.

[11] "Uma coisa é certa, é que a guerra mundial tinha significado uma volta para o mundo. É uma loucura insensata imaginar que só nos restaria esperar que acabasse a guerra, como a lebre que está esperando debaixo de um arbusto a que termine a tempestade e retornar alegremente sues afazeres diários. A guerra mundial tem mudado as condições da nossa luta, tem mudado a nós mesmo de maneira radical" (Rosa Luxemburgo, A Crise da Social-democracia)

[12] Inclusive nos números, nossos censores se vêem obrigados a reconhecer, depois de muito pensar, que a "relação relativa" da quantidade de mortos na decadência é o dobro dos da ascendência...., sem que isso lhes coloque maiores problemas.

[13] Se temos considerado necessário denunciar esses insultos, é não só para estigmatizá-los e defender as lições teóricas de gerações inteiras de proletários e revolucionários, senão também para denunciar firmemente essa corja de parasitos que propaga, cultiva e deixa desenvolver esse tipo de canalhice. É esse um dos múltiplos exemplos, ma das numerosas provas do seu caráter totalmente parasito: Seu papel é destruir os êxitos políticos da Esquerda comunista, é o fazer parasitos do meio político proletário e tentar desprestigiá-lo, sobre tudo a CCI.

Herança da Esquerda comunista: 

  • Decadência do capitalismo [1]

A teoria da decadência (III)

  • 3805 leituras

No primeiro artigo dessa série publicado no nº 118 desta Revista, colocamos em evidência como a teoria da decadência, em Marx e Engels, está na medula do materialismo histórico na análise da evolução dos modos de produção. De igual maneira, a encontraremos no centro dos textos programáticos das organizações da classe operária. No segundo artigo, publicado no nº.121 da Revista Internacional, vimos como as organizações operárias, tanto nos tempos de Marx como na Segunda Internacional, nas suas Esquerdas marxistas assim como na Terceira Internacional, a Internacional Comunista (IC), fizeram desta análise o eixo central de sua compreensão da evolução do capitalismo para serem capazes de determinar as prioridades do momento. Marx e Engels, efetivamente, sempre disseram claramente que a perspectiva da revolução comunista dependia da evolução material histórica e global do capitalismo. A Internacional comunista, em particular, fará dessa análise o eixo da compreensão do novo período aberto com o início da Primeira Guerra mundial. Todas as correntes políticas que a constituíram reconheceram o fato da entrada do capitalismo no seu período de decadência no primeiro conflito mundial. Continuamos aqui analisando as principais expressões políticas particulares da IC sobre as questões sindical, parlamentar e nacional, sobre as quais a entrada do sistema na sua fase de declínio teve conseqüências muito importantes.

O primeiro congresso da IC aconteceu de 2 a 6 de março de 1919, em plena culminação da efervescência revolucionária internacional que estava se desenvolvendo sobretudo nas principais concentrações operária da Europa. O jovem poder soviético na Rússia existia há apenas dois anos e meio. Um amplo movimento insurrecional havia iniciado em setembro de 1918 na Bulgária. A Alemanha estava em plena agitação social, havia se formado conselhos operários em todo o país e uma sublevação revolucionária acabava de ocorrer em Berlim entre novembro de 1918 e fevereiro de 1919. Chegou inclusive a formar-se uma República socialista de conselhos operários na Baviera, que desgraçadamente só viveria entre novembro de 1918 e abril de 1919. Uma revolução socialista vitoriosa iniciou na Hungria imediatamente depois do congresso e resistiu seis meses, de março a agosto de 1919, aos assaltos das forças contra-revolucionárias. Importantes movimentos sociais, conseqüência das atrocidades da guerra e das dificuldades do pós-guerra, agitavam todos os países europeus.

Ao mesmo tempo, por causa da traição da social-democracia ao haver tomado abertamente partido ao lado da burguesia ao iniciar a guerra em 1914, as forças revolucionárias estavam em plena reorganização. Começavam a iniciar novas formações mediante um difícil processo de decantação, com o objetivo de salvar os princípios proletários e as maiores forças possíveis dos antigos partidos operários. As Conferências de Zimmerwald (setembro de 1915) e de Kienthal (abril de 1916), que agruparam todos os opositores da guerra imperialista, contribuíram amplamente nessa decantação, permitindo colocar os primeiros tijolos para a edificação de uma nova Internacional.

Nas partes anteriores deste artigo, vimos como, após o início da Primeira Guerra mundial, essa nova Internacional fez da entrada do capitalismo em um novo período histórico seu marco de compreensão das tarefas do momento. Examinaremos agora como aparecerá esse marco, tanto explicita como implicitamente, na elaboração das suas posições programáticas; temos que colocar também em evidência que a rapidez do movimento, nas difíceis condições daqueles tempos, não permitiu aos revolucionários absorver todas as implicações políticas da entrada do capitalismo na sua fase de decadência no que se refere ao conteúdo e as formas de luta da classe operária

A questão sindical

No primeiro congresso da Terceira Internacional em março de 1919, as primeiras questões a que haveriam de defrontar-se as novas organizações comunistas correspondem a forma, conteúdo e perspectivas do movimento revolucionário que está se desenvolvendo em toda Europa. A tarefa do momento já não é a de conquistas progressivas nos marcos de um sistema capitalista ascendente: é a da conquista do poder contra um modo de produção que havia selado a sua quebra histórica com o início da Primeira Guerra mundial[1]. A forma de luta do proletariado deve então evoluir para corresponder como esse novo contexto histórico e com novo objetivo.

A organização em sindicatos - essencialmente órgãos de defesa dos interesses econômicos do proletariado, que agrupavam minorias da classe operária - era apropriada para os objetivos do movimento operário durante a fase ascendente do capitalismo, para a nova fase já não correspondiam à perspectiva de conquista do poder. Por isso a classe operária, nas greves de massas na Rússia de 1905[2], fez surgir os soviets (conselhos operários), órgãos que agrupam o conjunto dos operários em luta, com seu conteúdo ao mesmo tempo político e econômico[3], e cujo objetivo fundamental é a preparação da tomada do poder: "O fundamental era encontrar a via prática que permitisse ao proletariado exercer seu poder. Essa via é o sistema dos sovietes conjugados com a ditadura do proletariado. Ditadura do proletariado: Até pouco tempo essas palavras eram para as massas uma expressão abstrata, porém hoje, pela difusão que tem alcançado no mundo inteiro o sistema dos soviets, esta abstração tem sido traduzida em todos os idiomas contemporâneos; a forma prática da ditadura foi encontrada pelas massas populares. Ela se tornou compreensível para a grande massa dos operários graças ao poder soviético que hoje governa na Rússia, graças aos grupos espartaquistas da Alemanha e outros organismos similares de outros países (...)" ("Discurso de abertura do Primeiro Congresso da IC" pronunciado por Lênin, citado nos quatro primeiros congressos da IC - primeira parte).

Baseando-se na experiência da Revolução russa e no aparecimento massivo dos conselhos operários em todos os movimentos insurrecionais na Europa, a IC no seu Primeiro congresso era muito consciente de que o marco das lutas conseqüentes da classe operária já não eram as organizações sindicais e sim esses novos órgãos unitários: os soviets: "Com efeito, a vitória só poderá ser considerada como segura quando serão organizados não apenas os trabalhadores da cidade como também os proletários rurais, e organizados não como antes nos sindicatos e cooperativas sim nos soviets" ("Discurso de Lênin sobre as Teses sobre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado" no Primeiro Congresso da IC. Idem). É a principal lição que se destaca desse Primeiro congresso constitutivo da IC, que se dá como "tarefa mais essencial" a "propagação do sistema dos soviets", segundo as próprias palavras de Lênin: "Entretanto creio que após quase dois anos de revolução não devemos colocar o problema desse modo e sim adotar resoluções concretas dado que a propagação do sistema dos soviets é para nós, e particularmente para a maioria dos países da Europa ocidental, a mais essencial das tarefas (...) Desejo fazer uma proposta concreta com objetivo a adoção de uma resolução na qual devem ser assinalados particularmente três pontos: 1. Uma das tarefas mais importantes para os camaradas dos países da Europa ocidental consiste em explicar às massas o significado, a importância e a necessidade do sistema dos soviets(...) 3. Devemos dizer que a conquista da maioria comunista nos soviets é a principal tarefa em todos os países onde o poder soviético ainda não triunfou" (idem).

Não somente a classe operária fez surgir novos órgãos de luta - os conselhos operários - adaptados aos novos objetivos e conteúdos da sua luta no período de decadência do capitalismo, porém O primeiro congresso da IC também pôs em evidência diante os revolucionários, que o proletariado  deverá enfrentar os sindicatos que tem se passado para o campo da burguesia. É o que atestam os relatórios apresentados pelos delegados de vários países. Albert, delegado pela Alemanha, disse no seu informe: "É importante constatar que esses conselhos de fábricas põem entre a espada e a parede aos velhos sindicatos, inclusive tão potentes como os alemães, que haviam proibido aos operários fazer greve, que estavam contra qualquer movimento declarado por parte dos operários, e que haviam apunhalado através da espada a classe operária. Esses sindicatos estão totalmente fora de jogo após o golpe de 9 de novembro. Todas reivindicações salariais que foram lançadas sem os sindicatos, e inclusive contra eles, porque eles não tem defendido nenhuma reivindicação salarial" (citação em "O Primeiro Congresso da Internacional comunista"). O informe de Platten sobre a Suiça vai no mesmo sentido: "O movimento sindical na Suíça sofre do mesmo mal que na Alemanha (...) Os operários suíços compreendem muito bem que só poderão melhorar sua situação material se transgredirem os estatutos de seus sindicatos e partirem para a luta, não sob a direção da velha Confederação e sim sob uma direção eleita por eles. Se organizou um Congresso operário no qual se formou um conselho operário....(...) O Congresso operário se realizou apesar da resistência da direção sindical" (idem). Essa realidade de enfrentamento, varias vezes violento, entre movimento operário organizado em conselhos e sindicatos transformados em último baluarte para salvar o capitalismo, é uma experiência que aparece nos informes de todos os delegados, em um ou outro nível[4].

Esta realidade do papel contra-revolucionário dos sindicatos foi um descobrimento para o Partido bolchevique e, Zinoviev, no seu informe sobre a Rússia, diz: "O desenvolvimento histórico dos nossos sindicatos tem sido diferente ao da Alemanha. Em 1904 e 1905 desempenharam um grande papel revolucionário e, até agora, tem lutado a nosso lado pelo socialismo (...) A imensa maioria dos seus membros compartilham dos pontos de vista do nosso partido e tudo o que votam é a nosso favor" (Primeiro Congresso da IC). O próprio Bukarin, como relator da Plataforma que será votada, declara: "Camaradas, meu trabalho consiste em analisar a plataforma que se apresenta (...) Se houvéssemos escrito para os russos trataríamos do papel dos sindicatos no processo de transformação revolucionária. Porém após a experiência dos comunistas alemães, isso é impossível, já que os camaradas nos dizem que os sindicatos na Alemanha são o oposto aos nossos. No nosso caso, os sindicatos desempenham um papel positivo dentro do processo do trabalho. O poder soviético se apóia, precisamente, neles; na Alemanha ocorre tudo ao contrário" (Primeiro Congresso da IC). Isso não é uma surpresa quando se sabe que os sindicatos não apareceram na Rússia mais que em 1905, no período de efervescência revolucionária e eles são arrastados pelo movimento, constantemente sob a dependência dos soviets. Quando o movimento entra em declínio após o fracasso da revolução, os sindicatos também tem tendência a desaparecer, pois, contrariamente ao que ocorria nos países ocidentais, o absolutismo do Estado russo não lhes permitia integrar-se no sei seio. Com efeito, na maior parte dos países ocidentais desenvolvidos, como Alemanha, Grã-bretanha e França, os sindicatos tinham a tendência de implicar-se cada dia mias na gestão da sociedade através da sua participação em organismos vários e o que hoje se chama "comissões paritárias". A explosão da guerra confere a essa tendência seu caráter decisivo, colocando os sindicatos na obrigação de escolher explicitamente seu campo; e todos o fizeram nos países citados, traindo a classe operária, incluindo o sindicato anarco-sindicalista CGT na França)[5]. Na Rússia, entretanto, com o desenvolvimento da luta de classes em reação às privações e o horror da Primeira Guerra mundial, a existência dos sindicatos se reativa. E no melhor dos casos, seu papel é o de auxiliar dos soviets, como em 1905.

É preciso assinalar, entretanto, que apesar das condições desfavoráveis para sua integração no estado, certos sindicatos como o dos ferroviários já eram muito reacionários no período revolucionário de 1917.

Com o refluxo da onda revolucionária e o isolamento da Rússia, esta diferença na herança da experiência operária pesou sobre a capacidade da Internacional para tirar e tornar homogêneas todas as lições das experiências do proletariado em escala internacional. A força do movimento revolucionário, todavia ainda muito importante quando o Primeiro congresso, assim como a convergência das experiências sobre a questão sindical a que se referem todos os delegados dos países capitalistas mais desenvolvidos, fazem com que essa questão continue aberta. Assim, o camarada Albert, em nome da Mesa e como co-relator da Plataforma da IC, concluirá sobre a questão sindical: "Agora abordo uma questão capital que não se trata na Plataforma, significa dizer a do movimento sindical. Esta questão tem-se trabalhado amplamente. Temos escutado os delegados de diferentes paises falar do movimento sindical e devemos constatar que não podemos adotar hoje uma posição internacional sobre isso na Plataforma porque a situação do proletariado varia consideravelmente de um pais a outro. (...) As circunstancias são muito diferentes segundo os países, de forma que nos parece impossível dar algumas linhas diretrizes internacionais clara aos operários. Já que isso não é possível, não podemos resolver a questão, devemos deixar que sejam as diversas organizações nacionais as que definam sua posição" (Primeiro Congresso da IC)

Assim responderá Albert, delegado do Partido Comunista da Alemanha, à idéia proposta por Reinstein, antigo membro do Socialist Labor Party americano e considerado como o delegado dos Estados Unidos[6], de "revolucionar" os sindicatos: "Seriamos tentados em dizer que temos que "revolucionar", mudar os dirigentes amarelos por dirigentes revolucionários. Porém, na realidade, não é fácil pois todas as formas de organização dos sindicatos são adaptadas ao velho aparato do estado, e porque o sistema dos conselhos não se pode construir sobre a base dos sindicatos de categorias" (idem)."

O fim da guerra, uma certa euforia da "vitória" nos paises vencedores e a capacidade da burguesia, apoiada agora pela ajuda indefectível dos partidos social-democratas e pelos sindicatos, para mesclar a repressão feros dos movimentos sociais com concessões importantes no econômico e no político à classe operária - tal como o sufrágio universal e a jornada de oito horas - lhes permitiram estabilizar pouco a pouco, segundo cada país, a situação sócio-econômica. Esta situação favorecerá o descenso progressivo da intensidade da onda revolucionária que precisamente havia surgido contra as atrocidades da guerra e as suas conseqüências. Esse esgotamento do impulso revolucionário e a interrupção da degradação da situação econômica pesaram muito mais agora sobre a capacidade do movimento revolucionário para tirar todas as lições das experiências de luta em escala internacional e unificar sua compreensão de todas as implicações da mudança do período histórico sobre a forma e o conteúdo da luta proletária. O isolamento da Revolução russa favorecerá que a IC fique dominada pelas posições do Partido bolchevique, um partido ao que a pressão terrível dos acontecimentos obrigará a fazer cada vez mais concessões para tentar ganhar tempo e romper o bloqueio que sufocava a Rússia. Três fatos significativos dessa involução se materializarão entre o Primeiro e o Segundo congresso da IC (julho de l920). Por um lado, a IC instituirá em 1920, antes do seu Segundo congresso, uma Internacional Sindical Vermelha que se apresentará como concorrente da Internacional dos sindicatos "amarelos" de Amsterdã (ligada aos partidos traidores social-democratas). Por outro lado a Comissão executiva da IC dissolverá, em abril de 1920, seu comitê para Europa ocidental de Amsterdã, que polarizava as posições radicais dos partidos comunistas na Europa do oeste, em oposição a certas orientações defendidas pela dita Comissão, em particular sobre as questões sindical e parlamentar. E, para terminar, Lênin escreve, em abril-maio de 1920, um dos seus piores livros, A doença infantil do comunismo, em que faz uma crítica errônea dos que ele chamou naquela época "Esquerdistas"; esses últimos agrupavam na realidade todas as expressões de esquerda e expressavam as experiências dos estandartes mais concentrados e avançados do proletariado europeu[7]. Em lugar de prosseguir a discussão, a confrontação e a unificação das diferentes experiências internacionais das lutas do proletariado, essa mudança de perspectiva e de posição abria as portas para um temeroso retorno até as velhas posições social-democratas radicais. [8]

Apesar dos acontecimentos cada dia mais desfavoráveis, a IC mostra, em suas Teses sobre a questão sindical adotadas no seu segundo congresso, que continua sendo capaz de esclarecimentos teóricos posto que adquiriu a convicção, graças a confrontação das experiências de luta no conjunto dos países e da convergências de lições sobre o papel contra-revolucionário dos sindicatos, e apesar da experiência contrária na Rússia, que os sindicatos haviam passado para o lado da burguesia durante a Primeira Guerra Mundial: "As mesmas razões que com raras exceções, haviam feito da democracia socialista não uma arma da luta revolucionária do proletariado pela liquidação do capitalismo, mais uma organização que encabeçava o esforço do proletariado segundo os interesses da burguesia, fizeram que, durante a guerra, os sindicatos se apresentassem com freqüência como elementos do aparato militar da burguesia. Ajudaram esta a explorar a classe operária com maior intensidade e a levar adiante a guerra de modo mais enérgico, em nome dos interesses do capitalismo" (O movimento sindical, os comitês de fábrica e de empresas. (Segundo Congresso da IC, Idem). Também os bolcheviques estavam convencidos, apesar da sua experiência na Rússia, de que os sindicatos desempenhavam um papel essencialmente negativo e eram um poderoso freio ao desenvolvimento da luta de classes, e contaminados pelo vírus do reformismo, da mesma maneira que a social-democracia,.

Não obstante, devido a mudança de tendência na onda revolucionária, a estabilização socioeconômica do capitalismo e o isolamento da Revolução russa, a pressão tremenda dos acontecimentos conduzirá a IC, sob a influência dos bolcheviques, a permanecer com as antigas posições social-democratas radicais em vez de dar continuidade ao indispensável aprofundamento político para assim compreender as mudanças acontecidas na dinâmica, o conteúdo e a forma da luta de classes na fase da decadência do capitalismo. Não é estranho então que se produzisse alguns evidentes retrocessos também nas teses programáticas que foram votadas no Segundo congresso da IC, apesar da oposição de muitas organizações comunistas que representavam as frações mais avançadas do proletariado da Europa do Oeste. E foi assim, sem a menor argumentação e em total contradição com a orientação geral do Primeiro congresso e da realidade concreta das lutas, como defenderam os bolcheviques a idéia segundo a qual: "...Os sindicatos, que durante a guerra haviam se convertido em órgãos de submissão das massas operárias aos interesses da burguesia, representam agora os órgãos de destruição do capitalismo" (Idem). Certamente, essa afirmação, foi imediata e energicamente matizada[9], porém abriu a porta a todos subterfúgios táticos de "reconquista" dos sindicatos, de "colocá-los entre a espada e a parede" o desenvolver a tática de frente única, sob o pretexto de que os comunistas continuavam muito minoritários, que a situação era mais desfavorável cada dia, que havia de "ir às massas", etc.

A evolução rapidamente descrita aqui se refere à questão sindical porem será idêntica, salvo alguns detalhes, para as demais posições políticas desenvolvidas pala IC. Após haver realizado importantes avanços e clarificações teóricos, esta irá retrocedendo à medida que ia retrocedendo a onda revolucionária a nível internacional. Não se trata para nós de transformamos-nos em juízes da história e de atribuir boas ou más notas a uns e a outros, o único que queremos é entender um processo no qual cada componente conta, com suas forças e debilidades. Diante do isolamento crescente e submetido a pressão do retrocesso dos movimentos sociais, cada componente da IC terá inclinação para adotar uma atitude e algumas posições determinadas pela experiência específica da classe operária de cada país. A influência predominante dos bolcheviques na IC deixará progressivamente de ser o fator dinâmico que tinha sido no momento da sua formação para acabar se constituindo um freio à clarificação, cristalizando as posições da IC a partir da experiência da Revolução russa[10].

A questão parlamentar

Assim como para a questão sindical, a posição referente a política parlamentarista sofria uma evolução semelhante, passando de uma tendência à clarificação, expressa inclusive nas "Teses sobre o parlamentarismo" adotadas no Segundo congresso da IC, a uma tendência a fixação em posições de retrocesso a partir das mesmas Teses[11]. Porém, mais que sobre a questão sindical, e isso é o que mais nos interessa nesse artigo, a questão parlamentar será claramente analisada como algo próprio da evolução do capitalismo da sua fase ascendente a sua fase decadente. Se pode ler o seguinte nas Teses do Segundo Congresso: "O comunismo deve tomar como ponto de partida o estudo teórico da nossa época (apogeu do capitalismo, tendência do imperialismo à sua própria negação e à sua própria destruição, agudização continua da guerra civil, etc.) (...) A atitude da IIIª Internacional com respeito ao parlamentarismo não é determinada por uma nova doutrina porém pela modificação do papel do próprio parlamentarismo. Na época que antecedeu, o parlamentarismo, instrumento do capitalismo em via de desenvolvimento, trabalhou, num certo sentido, pelo progresso histórico. Nas condições atuais, caracterizadas pelo desencadeamento do imperialismo, o parlamento se converteu em um instrumento da mentira, da fraude, da violência, da destruição; dos atos de banditismo, obras do imperialismo, as reformas parlamentares, desprovidas do espírito de continuidade e de estabilidade e concebidas sem um planejamento de conjunto, perderam toda importância prática para as massas trabalhadoras (...) Para os comunistas, o parlamento não pode se atualmente, em nenhum caso, o teatro de uma luta por reformas e pela melhoria da situação da classe operária, como sucedeu em certos momentos da época anterior. O centro de gravidade da vida política atual está definitivamente fora do marco do parlamento. (...) É indispensável considerar sempre o caráter relativamente secundário deste problema (do "parlamentarismo revolucionário"). O centro de gravidade, ao situar-se na luta extra-parlamentar pelo poder político, é evidente que o problema geral da ditadura do proletariado e da luta das massas por essa ditadura não pode comparar-se com o problema particular da utilização do parlamentarismo" (O partido comunista e o parlamentarismo, Segundo Congresso da IC, idem, sublinhado nosso). Desgraçadamente, essas teses não serão conseqüentes com seus pressupostos teóricos posto que, apesar da nitidez dessas afirmações, a IC não extrairá delas todas as conseqüências, pois acaba exortando a todos Partidos comunistas a que tenham um trabalho de propaganda "revolucionária" desde a tribuna do Parlamento e durante as eleições.

A questão nacional

O manifesto votado no Primeiro congresso da IC era muito claro sobre a questão nacional, ao enunciar que o novo período aberto pela Primeira Guerra mundial: "O estado nacional,. Após ter dado um impulso vigoroso ao desenvolvimento capitalista, se tornou demasiado estreito para a expansão das forças produtivas" (Manifesto da Internacional comunista aos proletários de todo mundo, Idem). E, por conseguinte, deduz: "Este fenômeno tem tornado mais difícil a situação dos pequenos Estados situados no meio das grandes potencias européias e mundiais" (idem). Por isso, os pequenos Estados também estavam obrigados a desenvolver suas próprias políticas imperialistas: "Esses pequenos estados nascidos em diferentes épocas como fragmentação dos grandes, como moedas de cobre destinada a pagar diversos tributos, como tampões estratégicos, possuem suas dinastias, suas castas dirigentes, suas pretensões imperialistas, suas maquinações diplomáticas (...) Ao mesmo tempo o número de pequenos estados cresceu: da monarquia Austro-hungara, do império dos tzares se despenderam novos estados que apenas recém nascidos lutavam entre si por problemas de fronteiras" (idem). Levando em conta essas debilidades em um contexto demasiado estreito para a expansão das forças produtivas, a independência nacional é caracterizada de "ilusória" e não deixa outras possibilidades a essas pequenas nações do fazerem o jogo das grandes potencias vendendo-se a que mais lhe pague no conserto imperialista mundial: "Sua independência ilusória estava baseada, antes da guerra, do mesmo modo como estava baseado o equilíbrio europeu, no antagonismo dos grandes campos imperialistas. A guerra destruiu esse equilíbrio. Ao dar em primeiro lugar uma imensa vantagem a Alemanha, a guerra obrigou os pequenos estados a buscar sua salvação na magnanimidade do militarismo alemão. Ao ser derrotada a Alemanha, a burguesia dos pequenos estados, de acordo com seus "socialistas" patriotas, se voltou para saudar o imperialismo vencedor dos aliados, e nos hipócritas artigos do programa de Wilson, se dedicou em buscar as garantias da manutenção da sua independência (...)Os imperialistas aliados durante este tempo prepararam combinações de pequenas potências, velhas e novas, para acorrentá-las entre si mediante um ódio mutuo e um debilitamento geral" (Idem).

Essa clareza será desgraçadamente abandonada já no Segundo congresso com a adoção das "teses sobre a questão nacional e colonial" posto que todas as nações, por menores que sejam, já não serão consideradas como coagidas a levar uma política imperialista e incluir-se no jogo das grandes potências. Com efeito, as nações do planeta serão subdivididas em dois grupos, "a nítida e precisa divisão entre nações oprimidas, dependentes, protetoradas, e opressoras e exploradoras" (idem). O que implica que: "Todo partido pertencente a IIIª Internacional tem o dever de (...) apoiar, não com palavras e sim com feitos, todo movimento de emancipação nas colônias (...) Os aderentes ao partido que rechaçam as condições e as teses estabelecidas pela Internacional comunista devem ser excluídos do partido" (Condições de admissão dos Partidos na IC, Idem). Além do mais, contrariamente ao que se enunciava com razão no Manifesto do Primeiro congresso, o Estado nacional já não se considera como "demasiado estreito para a expansão das forças produtivas" pois "a dominação estrangeira trava o livre desenvolvimento das forças econômicas. Por isso sua destruição é o primeiro passo da revolução nas colônias" (Idem). Aqui novamente, podemos constatar até que ponto o abandono de todo o que implica em profundidade, a análise da entrada na decadência do sistema capitalista, acabará levando pouco a pouco a IC diretamente ao despenhadeiro do oportunismo.

Conclusões

Não pretendemos que a IC tivesse uma perfeita compreensão da decadência do modo de produção capitalista. Como veremos em um próximo artigo, do qual a IC e seus componentes eram plenamente conscientes, a um grau mais ou menos elevado, e que havia nascido uma nova época, que o capitalismo havia passado para a história, que a tarefa do movimento já não era a conquista de reformas e sim a conquista do poder, que a classe dominante, a burguesia, havia se tornado reacionária, pelo menos nos países centrais. Foi precisamente uma das principais debilidades da IC a de não ter extraído todas as lições do novo período aberto pela Primeira Guerra mundial sobre a forma e o conteúdo da luta proletária. Mais além das forças e insuficiências da IC e dos seus principais componentes, essa debilidade se devia antes de tudo às dificuldades gerais encaradas pelo movimento operário no seu conjunto:

  • o     a profunda divisão das forças revolucionárias no momento da traição da social-democracia e a necessidade de recompor-se nas condições difíceis da guerra e do imediato pós-guerra;

  • o     a separação entre países vencedores e países vencidos que não providencia condições propícias para a generalização do movimento revolucionário;

  • o     a rápida involução dos movimentos de lutas pela capacidade da burguesia, diferente segundo os países, de estabilizar a situação econômica e social imediatamente depois da guerra.

Esta debilidade ia necessariamente incrementar e iria incumbir as frações de esquerda que destacaram da IC continuarem o trabalho que não pode cumprir esta.

C.Mcl


[1] "A IIª Internacional fez um trabalho útil organizando as massas proletárias durante o"período pacífico" do pior escravismo capitalista durante o último terço do século XIX e princípios do século XX. A tarefa da IIIª Internacional é a de preparar o proletariado para a luta revolucionária contra os governos capitalistas, para a guerra civil contra a burguesia em todos os países, com objetivo a tomada dos poderes públicos e a vitória do socialismo" (Lênin, novembro de 1914, citado por M.Rakosi na sua Introdução aos textos dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista).

[2] Leia, e nos números 120, 122 e 123 da Revista Internacional, nossa série sobre a Revolução de 1905 na Rússia e o aparecimento dos soviets.

[3] "Na época em que o capitalismo cai em ruínas, a luta econômica do proletariado se transforma em luta política muito mais rapidamente que na época de desenvolvimento pacifico do regime capitalista. Todo conflito econômico importante pode colocar diante dos operários o problema da Revolução" ("O movimento sindical, os comitês de fábrica e de empresas", Segundo Congresso da IC). "A Luta dos operários pelo aumento dos salários, mesmo no caso de terem êxito, não resulta em melhorias esperadas das condições de existência, pois o aumento dos preços dos produtos invalida inevitavelmente esse êxito. A luta enérgica dos operários por aumentos de salários nos países cuja situação é evidentemente sem saída, impossibilita os progressos da produção capitalista devido o caráter impetuoso e apaixonado dessa luta e sua tendência a generalização. A melhoria da condição dos operários só poderá ser alcançada quando o próprio proletariado se apodere da produção" (Plataforma da IC. Adotada no Primeiro Congresso).

[4] Assim, o Informe de Feiberg pela Inglaterra assinala que:"Os sindicatos renunciam as conquistas arrancadas durante longos anos de luta, e a direção dos trade-unions fez a união sagrada com a burguesia. Porém a vida, o agravamento da exploração, a elevação do custo de vida forçaram os operários a voltarem contra os capitalistas que utilizavam a união sagrada para seus objetivos de exploração. Se vieram obrigados a pedir aumentos de salários e apoiar essas reivindicações mediante greves. A direção dos sindicatos e dos antigos lideres do movimento haviam prometido ao governo sujeitar os operários. Porém esses aumentos foram concedidos embora de forma"não oficial". (idem). Igualmente, no que respeita aos Estados Unidos, o Informe de Reinstein assinala: "Porém, tem que destacar aqui que a classe capitalista norte americana tem sido bastante pragmática e engenhosa ao dotar-se de um artifício prático e eficaz graças ao desenvolvimento de uma grande organização sindical anti-socialista sob a direção de Gompers. (...) Gompers é melhor dizendo um Zubatov americano (Zubatov foi quem organizou os"sindicatos amarelos" por conta da política Tzarista). Sempre tem sido,e é um decidido adversário da concepção e dos objetivos socialistas, porém representa uma grande organização operária, a Federação norte-americana do trabalho, fundada sobre os sonhos de harmonia entre o capital e o trabalho, que vela para que a força da classe operária se paralise e se coloque em ordem de combate vitoriosamente o capitalismo americano" (idem). O delegado pela Finlância, Kuusinen, irá no mesmo sentido na discussão sobre a plataforma da IC: "Temos que fazer uma observação no parágrafo "Democracia e ditadura" sobre a questão dos sindicatos revolucionários e as cooperativas. Na Finlândia não existem nem sindicatos revolucionários nem cooperativas revolucionárias e duvidamos que possam existir. A forma desses sindicatos e de tais organizações é tal no nosso caso que estamos convencidos de que o novo regime social após a revolução será mais sólido sem esses sindicatos que com eles" (idem).

[5] Essa é também a razão pela qual a CNT espanhola, todavia não passará ao campo burguês em 1914. Ao não ter participado a Espanha na Primeira Guerra mundial, a CNT não se viu acuada entre a espada e a parede, obrigada a escolher seu campo como aconteceu com os sindicatos de outros paises.

[6] Leia as páginas do livro Os Quatro primeiros congressos da IC sobre o tema. Este mesmo delegado proporá uma emenda nesse sentido à Plataforma da IC, que não foi aprovada pelo Congresso.

[7] Assim Lênin chegará a escrever: "Daí a necessidade absoluta para a vanguarda do proletariado, para a sua parte consciente, para o Partido Comunista, de continuar com rodeios, de chegar a acordos, compromissos com os diversos grupos proletários, os diversos partidos operários e pequenos empresários (...)"

[8]"O segundo objetivo de atualidade e que consiste em saber levar as massas a esta nova posição (a ditadura do proletariado) capaz de assegurar a vitória da vanguarda na revolução, esse objetivo atual não poderá ser alcançado sem a liquidação do doutrinarismo de esquerda, sem o rechaço decisivo e a eliminação total dos seus erros" (Lênin, na Doença infantil do comunismo).

[9] As Teses continuam: "Porém a velha burocrática profissional e as antigas formas da organização sindical entorpecem qualquer transformação do caráter dos sindicatos".

[10] "O Segundo Congresso da IIIª Internacional considera não adequadas as concepções sobre as relações do partido com a classe operária e com as massas a respeito da participação facultativa dos Partidos comunistas na ação parlamentar e na ação nos sindicatos reacionários, que têm sido amplamente refutados nas resoluções especiais do presente Congresso, depois de ter sido defendidas sobre tudo, pelo Partido comunista operário alemão (KAPD, nota do redator), por outros quantos do Partido comunista suíço, pelo órgão do burô vienense da IC para a Europa Oriental, Kommunismus, por alguns camaradas holandeses, por certas organizações comunistas da Inglaterra, pela Federação Operária Socialista, etc, assim como pelas IWW dos Estados Unidos e pelos Shop Stewards Commitees da Inglaterra, etc." (Os quatro primeiros congressos da IC).

[11] Ao ter feito detalhadamente para a questão sindical, não podemos aqui, no marco deste artigo sobre a decadência repetir sobre a questão parlamentar. Recomendamos ao leitor a nossa seleção de artigos: Mobilização eleitoral, desmobilização da classe operária, que apresenta dois artigos sobre o tema, publicados respectivamente em Révolution internationale nº 2, fevereiro de 1973, As barricadas da burguesia e no nº 10, julho de 1974, As eleições contra a classe operária.

Herança da Esquerda comunista: 

  • Decadência do capitalismo [1]

Avalanche de ataques contra a classe operária, crise financeira...

  • 5470 leituras

Uma nova etapa na queda do capitalismo na sua crise 

Desde alguns meses, assistimos um dilúvio de ataques contra a classe operária em escala internacional.

Centenas de milhares de demissões foram anunciadas ou já estão acontecendo nas maiores empresas, em todos os países, em todos os setores: General Motors, Ford, Volkswagen, Fiat,  Airbus, Alcatel-Lucent, Nokia-Siemens, LP Displays (antiga LG Philips), Microsoft, Dell, Unilever.

Em todos os lugares, salários baixam. Baixam relativamente ao aumento dos preços em rápida ascensão. Mas os salários baixam também de maneira absoluta, em particular em certos setores submetidos à chantagem a deslocalização ou fechamento de empresas. O dito salário social também é atacado fortemente, notadamente considerando o acesso aos cuidados de saúde.

Em todos os lugares, constata-se a mesma tendência à pauperização do proletariado:

  • Em 2006, nos Estados Unidos, 36,5 milhões de pessoas viviam abaixo da linha de pobreza;
  • Em muitos outros países de América central ou do Sul, do leste europeu ou da Ásia esta limite é mais baixo ainda e abrange uma proporção maior da população;
  • Na Grã-bretanha, que bate recordes europeus em termos de rendimentos baixos, os aposentados podem cada vez menos conseguir o estrito necessário para viver;
  • Na China, país qualificado pelas mídias de nova "usina do mundo", em 2005 havia uma previsão de 8 milhões de futuros desempregados que iriam acrescentar os 12% da população já desempregada.

Além disso, 1 milhão de pessoas morrem anualmente neste país por conta da estafa no trabalho.

Em todos os lugares, a classe explorada é obrigada contribuir para pagar o agravamento da crise econômica mundial.

A recente crise financeira no setor imobiliário nos Estados-Unidos constituiu uma outra manifestação do agravamento da crise econômica mundial.

Um fator do crescimento da economia norte-americana nestes últimos anos foi constituído pela demanda interior, notadamente no setor imobiliário. A indústria da construção trabalhou sem parar estes últimos 5 anos, estimulada pelo baixo custo do crédito. Muita gente, apesar de um rendimento insuficiente, conseguiu créditos a perder de vista para comprar a casa própria. Créditos de risco ("subprimes") foram favorecidos e, aparentemente, tinham capacidade de sustentar uma prosperidade econômica neste setor que, na realidade, era construída sobre vácuo. Quando alguém em dificuldades não podia mais pagar, os organismos financeiros se ressarciam com a apropriação da casa. A situação passou a ser problemática quando estes casos de impossibilidade de pagamento se multiplicaram sob o efeito da queda do poder de compra dos proletários por conta do aumento do desemprego e do rebaixamento dos salários. Ao mesmo tempo, um fosso se criou entre o número crescente de habitações à venda no mercado e a capacidade decrescente de pagamento dos que precisavam moradia.

As conseqüências conhecidas desta situação são as seguintes:

  • Os preços no setor imobiliário caíram nos Estados-Unidos e, com eles, despencaram os fundos de investimentos e bancos comerciais, especializados no crédito de risco. Tanto nos Estados-Unidos, como também na Alemanha, na Grã-Bretanha e na França outros organismos financeiros tiveram que ser socorridos pelo tesouro do Estado. Bilhares de dólares foram assim gastos para tentar evitar que, a partir do setor imobiliário nos Estados-Unidos, o epicentro do abalo, se produzisse o efeito dominó que a burguesia tanto receia.
  • Já as demissões no setor bancário são milhares. No total, desde o começo de 2007, as demissões anunciadas neste setor chegam a quase 88000. São milhares de operários também, na industria da construção imobiliária nos Estados-Unidos, que perderam seu emprego.
  • Mais de três milhões de pessoas, proletárias essencialmente, por conta da sua incapacidade em pagar no prazo seu empréstimo imobiliário, deveriam ser atiradas imediatamente para à rua nos Estados-Unidos.

Os efeitos desta crise financeira foram aparentemente menos importantes de que os cracks precedentes, como o de 1987 ou daquele que marcou a "crise asiática" de 1997. Na realidade, este novo alerta suscitou uma inquietação muito maior por parte da burguesia mundial. Com razão, ela receiava uma desestabilização maior da economia mundial. Testemunho disso foi a quantidade colossal de dinheiro que se gastou, em pouco tempo, pelos bancos centrais para evitar o pior.

Vale a pena comparar as quantidades de dinheiro que a burguesia gastou em diversos momentos para evitar um crack maior:

  • em 1997, na crise asiática, foram cem bilhões de dólares;
  • em 2001, depois de um alerta do mesmo tipo que passou despercebida por conta do 11 de setembro 2001, que aconteceu simultaneamente, foram duzentos bilhões de dólares;
  • dessa vez, foram  quinhentos bilhões de dólares.

A mídia recordou da crise de 1929, mas para tentar conjurar o mal e se esforçou em nos convencer que o risco de uma catástrofe comparável era totalmente inexistente na situação atual. Rememorando, a crise de 29 constituiu o crack mais importante na história do capitalismo e marcou o início da fase de profunda recessão dos anos 1930.

Apesar do terremoto nas bolsas ter sido declarado "sob contôle", a situação permanece muito frágil.

Quais são as explicações oficiais dadas:

  • a estes problemas da economia mundial ?
  • à tendência sempre pior a degradação das condições de vida do proletariado desde o fim dos anos 1960 ?

Desde o fim dos anos 1960, frente a cada baixo desempenho econômico, já ouvimos todos os tipos de discursos lenitivos por parte dos experts da burguesia.

  • A recessão de 1967 tinha colocado um ponto final no período de prosperidade depois da Segunda Guerra mundial. Hoje, essa pode parecer muito insignificante em relação ao que sofremos desde anos. Diante dela e também diante da recessão de 1970, a burguesia tinha culpado "a rigidez do sistema monetária herdado da Segunda Guerra mundial"[1]. Essa dita rigidez foi corrigida.
  • Apesar das medidas tomadas, duas novas recessões, muito mais profundas, largas e extensas geograficamente voltaram a golpear o capitalismo mundial, em 1974-75 e em 1980-82. Os "experts" encontram aí uma nova explicação: a escassez de fonte de energia. Essas novas convulsões foram denominadas "choques petrolíferos".
  • Logo no início dos anos 80, as economias dos países do terceiro mundo se desmoronaram.
  • Na metade dos anos 80, a URSS e os países do Leste europeu tomaram uma via "liberal", tentando se destacar das formas mais rígidas do seu capitalismo ultra estatizado. E, no entanto, a década findou com um novo agravamento do desastre: o ex bloco soviético mergulhou num caos sem precedente.
  • Os ideólogos das democracias ocidentais tinham apresentado o desmoronamento da URSS como uma confirmação de seu evangelho: este país e os do leste europeu encontram estes problemas porque não conseguiram se tornar realmente capitalistas; os países do terceiro mundo porque administram mal o capitalismo. Ironia da história, no início de 1992, a crise econômica golpeou violentamente os países mais potentes do planeta: o coração do capitalismo "puro e rígido". Na vanguarda desta queda, encontrava-se justamente os Estados-Unidos e a Grã-Bretanha: os campeões do novo liberalismo, os países que supostamente serviam de exemplo, para mundo inteiro, dos milagres que pode realizar a "economia de mercado".
  • Em 1997 aconteceu a crise asiática. Num primeiro momento, a propósito desta, os experts ousaram dar a explicação de uma crise de desenvolvimento. Diante da evolução da situação que se transformou num desastre, foram obrigados a engolir suas tolices, e decidiram culpar a imoralidade dos empréstimos duvidosos, os quais constituíram efetivamente a base do desenvolvimento destes países. Mas, na realidade, de muitos países.

Alem da incapacidade dos discursos dos ideólogos burgueses a conjurar a crise, as manifestações desta que citamos acima ilustram também que a crise é mundial, como o capitalismo.

Frente à recém tormenta financeira, os experts foram muito discretos. Diante da evidência dos fatos, só puderam lamentar os excessos do endividamento, mas evidentemente sem nada dizer sobre a causa deste. Com efeito, é justamente a acumulação da dívida em escala mundial, desde o fim dos anos 60, que permitiu que a economia mundial não entrasse ainda numa recessão mais brutal, profunda e duradoura.

Todas estas explicações que invocam a rigidez, o choque petroleiro, a irresponsabilidade dos maus capitalistas, os excessos de endividamento... têm em comum a vontade (que seja consciente ou não) de poupar os próprios fundamentos econômicos do capitalismo. O que justifica a existência destes experts, sejam eles premiados Nobel ou jornalistas medíocres, é justamente de nos afastar da verdade: é o próprio capitalismo mundial que constitui o problema. Esta função ideológica de tais especialistas explica a incapacidade manifesta deles em esboçar qualquer perspectiva realista enquanto todas as promessas de um futuro melhor desvaneceram diante da realidade.

Ao lado dos discursos que apóiam abertamente o sistema atual, tem os que o criticam: Attac, os PCs, os trotskistas, etc. Ao observar mais atentamente estas críticas, mesmo quando têm uma fraseologia radical, se pode perceber que só consideram formas ou expressões particulares do capitalismo: o liberalismo e seus  "excessos", a mundialização ou a redistribuição injusta dos lucros capitalistas, etc.

Para essa gente, existem medidas apropriadas (fazer com que os ricos paguem; taxar a especulação; etc.) que permitiriam evitar as maiores calamidades do sistema.

Diante de todos estes discursos, opomos a tese marxista das contradições insuperáveis do capitalismo, da impossibilidade de reformá-lo e da necessidade de destruí-lo.

Como analisar a crise do capitalismo?

Pensamos como O Manifesto comunista, que "As relações burguesas tornaram-se estreitas demais para conterem a riqueza por elas gerada"; que a burguesia criou seu próprio coveiro, o proletariado.

Como se efetiva esta contradição entre as relações de produção e as forças produtivas criadas pelo capitalismo (graças à exploração do proletariado). Através de "crises comerciais que, na sua recorrência periódica, põem em questão, cada vez mais ameaçadoramente, a existência de toda a sociedade burguesa". A propósito destas, O Manifesto fala de "uma epidemia social que teria parecido um contra-senso a todas as épocas anteriores - a epidemia da sobreprodução".

E como o capitalismo supera suas crises? "Por um lado, pela aniquilação forçada de uma massa de forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais profunda de antigos mercados".

Qual é a causa principal da sobreprodução? Esta resulta do fato que "as limitas do mercado não se expendem tão rápido quanto a produção o exige".

Com efeito, ao contrario do que pretendem os adoradores do capital, a produção capitalista não cria automaticamente e a vontade os mercados necessários para seu crescimento. O capitalismo se desenvolveu num mundo não capitalista no qual encontra os mercados necessários a seu desenvolvimento. Assim, a existência de mercados sempre em aumento é uma condição essencial do desenvolvimento do capitalismo.

Esta contradição, esta incapacidade em criar seus próprios mercados comerciais, o capitalismo a carrega nele desde seu nascimento. No início, a superou pela venda aos setores feudais, e depois pela conquista dos marcados coloniais. É através da procura destes mercados que a burguesia "invadiu o planeta inteiro".

Quando o mercado mundial acabou sendo partilhado entre as principais potencias, no início do século XX, esta necessidade de mercados fora das relações capitalistas constituiu a causa da Primeira Guerra mundial. Com efeito, as potencias dotadas de poucas colônias (como Alemanha) não podiam ficar dependentes de seus rivais (como Inglaterra) para poder aceder às colônias. Para assegurar seu patamar mundial, tiveram que entrar em guerra por uma nova partilha do mundo.

A crise de sobreprodução, que é a manifestação característica das contradições do modo de produção capitalista, não reveste a mesma importância em cada instante da vida do sistema.

Com efeito, no seio do período que antecedeu a Primeira Guerra mundial e que constituiu sua fase de ascendência, a crise de sobreprodução era só um intervalo entre cada momento de expansão do mercado. Na decadência, a sobreprodução se torna um fenômeno crônico.

Como, na fase de decadência do capitalismo,
A burguesia compensa a insuficiência, e depois a ausência de mercados extra-capitalistas?

Reposta: através do endividamento.

Este constitui o meio para criar artificialmente a procura que não pode mais obter, em quantidade suficiente, dos mercados extra-capitalistas.

Entretanto, longe de constituir ume receita milagre para as contradições insuperáveis do capitalismo, o endividamento só faz adiar a manifestação delas. Com efeito, amanhã não será possível reembolsar a dívida e vai ter que se endividar ainda mais. Assim o endividamento só faz preparar uma irrupção destas contradições com uma violência maior ainda. Tal política constitui assim uma verdadeira fuga para a perspectiva anunciada de um futuro doloroso que se manifestará notadamente por recessões econômicas.

Hoje em dia, o endividamento mundial é fantástico.

Assim, a dívida dos Estados-Unidos, primeira potencia militar e econômica do mundo, passou de 630 bilhões de dólares em 1970 até 59 100 bilhões de dólares em 2007 (cifra que inclui todos os tipos de dívidas: federal, doméstica, dos estados, segurança social, etc.)[2]

A especulação jogou um papel de primeiro plano na crise imobiliária nos Estado-Unido, da qual falamos no início.

Na realidade, a especulação é um fenômeno que sempre acompanhou o desenvolvimento do capitalismo. Para os capitalistas, ela aparece como um meio, na verdade arriscado, que permite rentabilizar um investimento em pouco tempo e em proporções muito significante às vezes.

Na fase de decadência, durante os períodos de crise aberta, como aquela que conhecemos desde o fim dos anos 1960, a especulação não é mais uma escolha dos capitalistas, mas uma necessidade. Com efeito, uma proporção importante dos capitais não encontra meios de investimentos com um lucro suficiente nas empresas que se dedicam em produzir mercadorias e se orientam pura e simplesmente para a especulação. Nenhum ator capitalista escapa desta tendência, as empresas como os Estados.

De certa maneira, se pode dizer que a especulação se institucionalizou. Tudo se tornou objeto de especulação: o valor das empresas cotadas nas bolsas, as matérias-prima, o imobiliário, a produção agrícola e até as moedas como aconteceu no começo dos anos 1990. Estabelecimentos financeiros especializaram-se nos investimentos arriscados (os famosos hedje funds) que, também, são objetos de especulação.

Os meios da especulação estão cada vez mais sofisticados, notadamente através da criação de "produtos financeiros" baseados sobre mecanismos complexos cuja compreensão é privilégio de um número limitado de especialistas. Através de certos "produtos financeiros", uma invenção burguesa consiste em repartir os riscos inerentes à especulação. Resultado: torna-se cada vez mais difícil identificar os "atores arriscados". Ou, dito de outra maneira, todos os atores tornam-se arriscados. Doravante, a catástrofe pode proceder de "qualquer lugar" e expender-se como um rastilho em todas as direções.

Mais se acumulam as contradições, e mais a margem de manobra da burguesia se torna estreita:

  • A contradição mais característica da decadência é o desemprego massivo. Este resulta do fato que, para resistir ao agravamento da guerra comercial, todas as empresas, todos os Estados estão na obrigação de despedirem proletários. Ao reduzir o número dos operários, é a fonte dos lucros que é ameaçada, pois ela provém essencialmente da exploração do proletariado. Assim, quando a crise mundial, caracterizada pela insuficiência dos mercados solváveis, obriga cada capitalista a despedir uma porção da mão de obra, a burguesia está cerrando aos poucos o ramo sobre o qual ela e a acumulação capitalista são assentadas.
  • Já falamos da acumulação explosiva do endividamento mundial do qual pode resultar crack e recessões;
  • Diante do perigo da recessão, a burguesia deve reacionar pelo declínio das taxas do crédito com intento favorecer a retomada da atividade econômica. Mas, ao mesmo tempo, ela está na obrigação de impedir o desenvolvimento da inflação, notadamente pela elevação das mesmas taxas do crédito. Com efeito, tendências inflacionistas estão aparecendo de novo, não somente na China (5,6% por ano), mas também nos paises industrializados com uma menor taxa. Ora, a inflação é a inimiga juramentada da burguesia a ser combatida por ela, pois trava o comercio e, sobretudo, favorece a luta reivindicativa do conjunto da classe operária por salários.

Visto o conjunto das contradições do capitalismo, podemos afirmar que nós estamos atualmente diante de um agravamento considerável da crise econômica em escala mundial, ainda que não saibamos quando e com qual  ritmo isso vai se manifestar.

É fácil prever quais vão ser a conseqüências para proletariado mundial. Devemos ter consciência também que os ataques contra o proletariado vão constituir o fermento do desenvolvimento da luta de classe.

Como os revolucionários sempre o colocaram em evidência, a crise é o melhor aliado do proletariado

É a crise que vai acelerar o processo de tomada de consciência do impasse do mundo atual.

É a crise que, a prazo, vai precipitar na luta, de maneira cada vez mais massiva, vários setores do proletariado. Este vai assim multiplicar as experiências, fortalecer as tendências já em desenvolvimento no seu seio durante os últimos anos, em particular um sentimento crescente de solidariedade.

O que está em jogo nestas experiências futuras?

  • A capacidade do proletariado de tomar confiança na suas próprias forças, em se defender e se afirmar frente à sabotagem dos sindicatos.
  • A aquisição da consciência pelo proletariado que constitui a única classe na sociedade capaz de derrubar o capitalismo.

Obviamente, os revolucionários têm um papel insubstituível nesta situação para fornecer uma perspectiva ao movimento, denunciar as manobras e a propaganda da burguesia. Em particular, cabe aos mesmos não deixar a menor ilusão sobre o caráter irresolúvel da crise e sobre o caráter mistificador de todas as "políticas" que pretendem atenuar os efeitos desta crise no seio do capitalismo.


[1] Os famosos acordos de Bretton-Woods que se apoiavam sobre o dólar como padrão e um sistema de taxa de cambio fixo entre moedas. Assim foi criada uma nova moeda internacional, os diretos de tiragem especiais (DTS) do FMI e foi decidido que as taxas de cambio flutuariam livremente.

[2] Fonte Wikipedia

Recente e atual: 

  • Crise [2]

Consciência comunista, partido e conselhos operários

  • 7593 leituras

  Consciência e organização são as forças determinantes do proletariado

Desde o seu aparecimento, o proletariado se revoltou contra a exploração. Estas revoltas foram acompanhadas de um projeto de mudança da sociedade, de abolição das desigualdades, de comunização dos bens sociais. Nisto, o proletariado não se diferenciava fundamentalmente das classes exploradas que o antecederam, notadamente os servos quem, também, nas suas revoltas, podiam aderir a uma causa de transformação social[1].

Entretanto, ao contrario do projeto de transformação social das outras classes exploradas, o projeto do proletariado não é uma simples utopia irrealizável. O projeto comunista do proletariado é perfeitamente realista, pois o capitalismo criou as premissas materiais para uma abundancia permitindo a superação da exploração. Alem disso, é o único projeto que pode livrar a humanidade do marasmo no qual ela se afunda.

A fim de poder suprimir toda exploração, a nova classe revolucionária devia, ao contrario das que antecederam, ter esta característica de constituir uma classe explorada. Mas não qualquer classe explorada! Não uma classe explorada da sociedade atual representando um vestígio do passado (pequenos empresários agrícolas, artesões, profissões liberais, etc.), aspirando a voltar para o passado, e que subsiste somente porque o capitalismo, apesar de dominar totalmente a economia mundial, é incapaz de transformar todos os produtores em assalariados.

Ao contrario das outras classes exploradas existentes sob o capitalismo, é unicamente para frente que o proletariado pode se dirigir quando desenvolve sua luta histórica: não para um desmembramento da propriedade e da produção capitalista, mais para a conclusão do processo de sua socialização que o capitalismo fez avançar de maneira considerável, mas que não pode terminar por conta de sua natureza, mesmo quando a propriedade e a produção são concentradas nas mãos de um estado nacional (como era o caso nos regimes stalinistas).

Para cumprir esta tarefa, a força potencial do proletariado é considerável: concentrado no coração ou a proximidade de cidades cada vez mais povoadas, ele produz com seu trabalho o essencial da riqueza social.

Acima disso, o proletariado é a classe da consciência. Todas as classes, e particularmente as classes revolucionárias, se deram uma forma de consciência. Mas esta só podia ser mistificada, seja porque o projeto promovido não podia ter êxito (como foi a caso da Guerra dos camponeses na Alemanha em particular), seja porque a classe revolucionária estava na situação de necessitar mentir, de mascarar a realidade aos que queria arrastar na sua ação enquanto ela queria continuar os explorando (caso da revolução burguesa com seu slogan "Liberdade, Igualdade, Fraternidade"). Como classe explorada e portadora de um projeto revolucionário que abolirá toda exploração, o proletariado não tem de mascarar, para as outras classes nem para si mesmo, os objetivos e alvos últimos de seu projeto. Por conta disso, ele pode desenvolver uma consciência livre de toda mistificação que pode ultrapassar muito o nível de consciência que a classe inimiga chegou a alcançar. É precisamente esta capacidade de tomada de consciência que constitui, com sua organização em classe, a força determinante do proletariado.

A Concepção marxista da consciência comunista

Como classe explorada, o proletariado não possui uma base econômica para assegurar o progresso automático de sua luta. Em conseqüência, como dizia Marx em 0 18 de brumário de Luis Bonaparte, as revoluções proletárias "se criticam a si mesmas constantemente, interrompem a cada instante seu próprio curso, (...) recuam constantemente novamente diante da imensidão infinita de seus próprios alvos". Mas o inevitável movimento da luta de classe, com seus altos e baixos, seus avanços e refluxos, não é um circulo vicioso: é fundamentalmente o movimento histórico através do qual a classe proletária amadurece e avança para sua consciência própria.

Para Marx, é o ser social que determina a consciência e daí a consciência comunista emane do proletariado: "A concepção da história que acabamos de expor permite-nos ainda tirar as seguintes conclusões: 1. No desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um estádio em que surgem forças produtivas e meios de circulação que só podem ser nefastos no âmbito das relações existentes e já não são forças produtivas mas sim forças destrutivas (o maquinismo e o dinheiro), assim como, fato ligado ao precedente, nasce no decorrer desse processo do desenvolvimento uma classe que suporta todo o peso da sociedade sem desfrutar das suas vantagens, que é expulsa do seu seio e se encontra numa oposição mais radical do que todas as outras classes, uma classe que inclui a maioria dos membros da sociedade e da qual surge a consciência da necessidade de uma revolução, consciência essa que é a consciência comunista e que, bem entendido, se pode também formar nas outras classes quando se compreende a situação desta classe particular." (A ideologia alemã)

Elementos das outras classes são capazes de alcançar a consciência comunista mas somente ao romper com a ideologia herdada da classe de origem, para adotar o ponto de vista do proletariado. Este último ponto é particularmente destacado numa passagem do Manifesto comunista: "Por fim, em tempos em que a luta de classes se aproxima da decisão, o processo de dissolução no seio da classe dominante, no seio da velha sociedade toda, assume um caráter tão vivo, tão veemente, que uma pequena parte da classe dominante se desliga desta e se junta à classe revolucionária, à classe que traz nas mãos o futuro. Assim, tal como anteriormente uma parte da nobreza se passou para a burguesia, também agora uma parte da burguesia se passa para o proletariado, e nomeadamente uma parte dos ideólogos burgueses que conseguiram elevar-se a um entendimento teórico do movimento histórico todo." (O manifesto Comunista).

Assim, a contribuição teórica de Marx e Engels à teoria revolucionária do proletariado foi possível só porque estes tinham previamente "desligado se da classe dominante". Conseguiram "elevar-se a um entendimento teórico do movimento histórico todo" só ao examinar, de maneira crítica do ponto de vista da classe explorada, a filosofia e a economia política burguesas. Em outros termos, o movimento proletário, ao ganhar a sua causa elementos da categoria de Marx e Engels, fortaleceu sua capacidade de se apropriar da riqueza intelectual da burguesia com objetivo de utilizá-la a seus próprios fins.

O proletariado não teria sido capaz de integrar tais forças no seu combate histórico se não tivesse previamente iniciado o desenvolvimento da teoria comunista própria. Marx era totalmente explicito em relação a isso quando apresentava os operários Proudhon e Weitling como teóricos do proletariado. Pode-se dizer que o proletariado utilizou a filosofia e a economia política burguesas para criar uma arma sua indispensável que tem o nome de marxismo e que não é nada diferente de "a aquisição teórica fundamental da luta proletária (...)   a única concepção do mundo que se situa no ponto de vista desta classe" (Plataforma da CCI).

A chegada de homens como Marx e Engels nas fileiras do movimento operário expressou um passo qualitativo na clarificação de um movimento que se iniciou a partir de uma apalpadela intuitiva, especulativa, teoricamente insuficientemente formada, para a etapa da investigação e da compreensão científica. Em termos organizacionais, isto foi simbolizado pela transformação da Liga dos Justos, variedade de seita a metade conspiradora, para a Liga dos comunistas que adotou o Manifesto comunista como programa em 1848.

A evolução na historia da concepção do partido e do poder proletários

O programa e o partido da classe operária não são mais que produtos históricos da experiência desta classe. Assim, já partir de 1848, se Marx e Engels foram capazes ter uma visão geral clara da natureza da revolução proletária e das tarefas dos comunistas, era objetivamente impossível que eles tivessem uma compreensão precisa da maneira como o proletariado chegaria ao poder, da natureza do partido comunista e de seu papel na ditadura do proletariado. Suas ilusões sobre as possibilidades para a classe operária apoderar-se do Estado burguês, só poderiam ser dissipadas pela experiência prática da Comuna de Paris (ainda que somente de maneira incompleta).

Da mesma maneira, o marxismo surge num período em que o movimento proletário não tinha uma visão clara da concepção do que entendia pelo termo partido. Isso é a causa da imprecisão importante quando Marx utiliza um termo que servia para designar sem distinção alguns indivíduos unidos por um ponto de vista comum, ou o conjunto da classe atuando num combate político comum, ou ainda uma organização da vanguarda comunista, ou por fim uma associação de diferentes correntes e tendências. Assim a famosa frase do Manifesto comunista, "Esta organização dos proletários em classe, e deste modo em partido político..." constitui um julgamento profundo sobre a natureza política da luta de classes e a necessidade do partido político proletário e ao mesmo tempo expressa a imaturidade do movimento que não tinha chegado ainda a uma definição clara do partido como parte da classe. A mesma falta de clareza inevitavelmente obscureceu a compreensão marxista das tarefas do partido na revolução proletária.

Apesar de que os revolucionários, na época antes da Primeira Guerra mundial, tivessem retomado a palavra de ordem da Primeira Internacional, "A emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores", tinham ainda tendência em considerar a tomada do poder pelo proletariado como a tomada do poder pelo partido do proletariado. Os únicos exemplos de revolução que podiam analisar eram as revoluções burguesas, nas quais o poder podia ser delegado a partidos políticos. Antes de a classe operária ter feito sua própria experiência de luta para o poder, os revolucionários não podiam ser claros sobre esta questão.

A herança ideológica da revolução burguesa estava fortalecida pelo contexto no qual a luta de classes se desenvolvia na segunda metade do século XIX. Depois da derrota dos combates insurrecionais dos anos 1840 (que permitiram a Marx entender a natureza comunista da classe operária e o laço profundo entre suas lutas "econômicas" e "políticas"), o movimento operário entrou no longo período das lutas por reformas no seio do sistema capitalista. Este período institucionalizou a separação entre os aspectos econômicos e políticos da luta de classes. Em particular, na época da Segunda Internacional, esta separação foi codificada pelas diferentes organizações de massa da classe: os sindicatos eram definidos como órgãos da luta  econômica e o partido como órgão da luta política. Que esta luta fosse a curto prazo para a obtenção de direitos democráticos a favor da classe operária ou a longo prazo para a tomada  do poder político, se situava no âmbito parlamentar, o terreno da política burguesa por excelência. Os partidos operários que lutavam sobre este terreno eram por conta disso inevitavelmente impregnados de suas premissas e de seus métodos.

A democracia parlamentar significa a entrega da autoridade nas mãos de um corpo de especialistas na arte de governar, os partidos cuja razão de ser é de procurar o poder para eles mesmos. Na sociedade burguesa, a sociedade dos "homens egoístas", "dos homens separados dos outros homens e da comunidade" (Marx, Sobre a questão judaica), o poder político só pode tomar a forma de um poder acima e sobre o individuo e a comunidade, assim como "O Estado é o intermediário entre o Homem e sua liberdade" (Ibid.). No seio da sociedade, deve ter um intermediário entre "as pessoas" e seus próprios dirigentes. As massas atomizadas que vão juntas para o embuste das eleições burguesas, só podem encontrar uma aparência de interesse e de direção coletivos através um partido político que os representa. Precisamente porque estas massas não podem ser representadas por si mesmas.

A revolução proletária coloca um termo final a este tipo de delegação de poder que, na realidade, constitui uma forma de abdicação. A revolução de uma classe, que é unida organicamente por interesses de classe indivisíveis, oferece a possibilidade ao homem de reconhecer e organizar "suas forças próprias como forças sociais, desta maneira esta força não é mais separada dele sob a forma de uma força política" (Marx, Sobre a questão judaica). A práxis da luta proletária tende em se livrar da separação entre pensamento e ação, dirigente e executante, forças sociais e poder político. A revolução proletária, por conta disso, não precisa de uma elite especializada e permanente que "representa" as massas amorfas e cumpre suas tarefas no seu lugar. A Comuna de Paris, primeiro exemplo de uma ditadura proletária, começou em esclarecer este fato, tomando medidas práticas para eliminar a separação entre as massas e o poder político: abolição da separação parlamentar entre o legislativo e o executivo, exigência que todos os delegados fossem eleitos e revocáveis a cada instante, liquidação da polícia e do exercito permanentes, etc. Mas a experiência da Comuna foi prematura e breve demais para eliminar totalmente as concepções democráticas burguesas do Estado e do papel do partido, do programa do movimento operário. O que demonstrou a Comuna, no entanto, é que mesmo sem partido comunista na sua cabeça, a classe operária pode chegar até tomar o poder político. Mas, as hesitações dos partidos proletários e pequeno-burgueses que encabeçaram a sublevação confirmam também que, sem a presença ativa de um verdadeiro partido comunista na sua cabeça, a revolução proletária está fragilizada desde o início. Quanto à relação exata entre tal partido e o Estado-Comuna, esta experiência já não permitiu resolvê-la.

Talvez mais importante ainda é o fato que a experiência da Comuna não colocou um termo final às ilusões dos revolucionários sobre a república democrática. Em 1917, Lênin entendia que a Comuna era o resultado do esmagamento do velho Estado burguês pela revolução, de baixo para cima. Mas, na última parte do século XIX, e no começo do XX, os marxistas estavam inclinados a compreender a Comuna como um modelo para os operários na sua luta tomarem o controle da república democrática, para livrar se de seus piores aspectos e convertê-la num instrumento do poder proletário. Trotski incluído, apesar de ele ter sido entre os primeiros a entender a significação do surgimento dos soviets em 1905: "O socialismo internacional considera que a república democrática é a única forma possível da emancipação socialista, a condição que o proletariado a arranque das mãos da burguesia e a transforme de uma maquina para oprimir uma classe em uma arma para a emancipação socialista da humanidade" (Trotski, Trinta e cinco anos depois 1871 ; 1906).

Sob diversos aspectos, a Comuna, baseada sobre a representação territorial e o sufrágio universal, mantinha muitas fraquezas do Estado democrático burguês. Neste sentido, não permitiu realmente ao movimento operário ultrapassar a idéia segundo qual o poder proletário é assumido por um partido. Foi só com o surgimento dos conselhos operários, no fim da época de ascendência do capitalismo, que este problema começou a ser resolvido. Nos conselhos, a classe era organizada como classe; era capaz de unificar suas tarefas econômicas, políticas e militares, de decidir e atuar conscientemente, sem intermediário. A emergência dos conselhos permitiu aos revolucionários em romper definitivamente com a idéia que a república democrática é uma forma de Estado que poderia ser utilizada pelo proletariado. Na realidade, a república democrática era a última barreira, e a mais insidiosa, à revolução proletária. Mais, se em 1917, os revolucionários podiam se livrar de todas as ilusões parlamentares sobre a questão do Estado, a persistência de hábitos de antigos pensamentos pesava ainda muito sobre sua concepção do partido.

Vimos que, na visão social-democrata, as lutas econômicas da classe são assumidas pelos sindicatos e as lutas políticas, até a tomada do poder, pelo partido. Precisamente pelo fato de que se tratava da questão da conquista do poder de Estado burguês, a idéia de órgãos políticos de massa da classe não existia e o único órgão político do proletariado era partido. Nesta visão, o Estado adquiria uma função proletária pelo fato de ser controlado pelo partido proletário. Com tal lógica, era inevitável que a insurreição e a tomada do poder estivessem organizadas pelo partido; nenhum outro órgão tendo a capacidade de unificar a classe a nível político. Na teoria, o partido devia tornar-se um partido de massa, uma armada disciplinada e numerosa, a fim de cumprir suas tarefas revolucionárias. O modelo social-democrata da revolução nunca foi - e não podia ser - colocado em prática. Mas, sua importância reside na herança que legou aos revolucionários que passaram pela escola da social-democracia. E esta herança só podia ser o substitucionismo. Mesmo que a revolução fosse liderada por um partido de massa, era ainda uma concepção que atribuía aos partidos as tarefas que só podem ser assumidas pelo conjunto da classe.

Tais concepções não expressam uma fraqueza específica da social-democracia, pois a idéia de um partido atuando em nome da classe era o produto da prática do movimento operário no capitalismo ascendente, e estava profundamente enraizada no conjunto da classe. Neste período, as lutas cotidianas pelas reformas, a nível econômico e político, podiam em grande medida ser confiadas a representantes permanentes: negociadores sindicais e porta-vozes parlamentares especializados. Mais as práticas e concepções que eram possíveis durante o período de ascendência do capitalismo, se tornaram impossíveis e reacionárias no momento em que a decadência do capitalismo colocou um termo final ao período das lutas por reformas. As tarefas dos revolucionários, que o proletariado afrontava, implicavam métodos de luta muito diferentes.

Classe, partido e conselhos operários no processo de tomada de consciência do proletariado e no exercício de seu poder

No começo do século XX, revolucionários como Lênin, Trotski, Pannekoek e Luxemburgo tentaram de clarificar a relação entre partido e classe no contexto das novas condições históricas e das lutas de massa que estas condições provocavam, especialmente na Rússia. Os aspectos mais profundos das suas contribuições, ricas embora muitas vezes contraditórias, evidenciam uma tomada de consciência de que um partido social-democrata de massa só tinha validade considerando o período das lutas para reformas. Lênin foi o mais apto a entender que o partido revolucionário só podia ser uma vanguarda comunista, pouco numerosa e estritamente selecionada. Luxemburgo em particular, foi capaz de perceber que a tarefa do partido não era de organizar a luta de classe, como a experiência tinha mostrado visto que a luta surge espontaneamente e obriga a classe a passar das lutas parciais às lutas gerais. A organização da luta nasce da própria luta e implica a classe toda. O papel da vanguarda comunista nestas lutas de massas não era um papel de organização, no sentido de dotar a classe de uma estrutura pré-existente para organizar sua luta. Em outros termos, a tarefa do partido era de participar ativamente nesses movimentos espontâneos com objetivo de torná-los mais consciente e organizados que fosse possível, de destacar as tarefas que a classe no seu conjunto, organizada nos seus órgãos unitários, deveria assumir.

O processo de amadurecimento das condições e do desenvolvimento da luta de classes que desembocou na primeira onda revolucionária, assim como as lições desta experiência tiradas desde então, permitem colocar em evidência os ponto seguintes:

  • O partido não é um corpo externo à classe operária mas uma parte desta, a mas consciente e resoluta, segregada pelo esforço histórico da classe para tomar consciência de seus alvos. Com efeito, se o partido comunista é um produto da classe, tem de entender também que não é o produto da classe no seu aspecto imediato, como simples objeto da exploração capitalista, nem é o produto da luta defensiva quotidiana contra esta exploração. É o produto da classe na sua totalidade histórica. A incapacidade de tomar em conta o proletariado como realidade histórica e não somente contingente, constitui a base de todos os desvios, quer sejam de natureza economicista, espontaneista (a organização revolucionária como produto passivo da luta quotidiana) ou de natureza elitista substitucionista (a organização revolucionária vista como "exterior" ou "acima" da classe);
  • O partido tem como função homogeneizar e aprofundar o processo de tomada de consciência que existe no seio da classe operária. Isto subentende que, por si mesma, a classe operária já é capaz de uma tomada de consciência como o demonstrou tão claramente Rosa Luxemburgo a propósito da greve de massas, mas também como entendeu Lênin - apesar de seus erros iniciais em Que Fazer: "A cada etapa, os operários são confrontados a seu inimigo principal, a classe capitalista. No combate contra este inimigo, o operário se torna socialista, acaba percebendo a necessidade de uma reestruturação completa de toda a sociedade, a abolição total de toda pobreza ou opressão" (As lições da revolução - Rabotchaïa Gazeta, n°1; Outubro de 1910; Obras completas);
  • As experiências de luta aberta da classe operária constituem momentos privilegiados de desenvolvimento de sua consciência, em particular graças aos ensinamentos que são tirados delas. Mas não são os únicos fatores desta tomada de consciência, pois, fora deles, existe um processo de amadurecimento subterraneo da consciência no seio da classe operária: "Numa revolução, olhamos em primeiro lugar a interferência das massas no destino da sociedade. Procuramos descobrir atrás dos acontecimentos mudanças na consciência coletiva. Isto pode parecer initeligível só a quem considera a insurreição das massas como "espontânea", quer dizer como a revolta de um rebanho utilizada artificialmente por lideres. Na realidade, a simples privação não basta para provocar uma insurreição; se fosse o caso, as massas estariam sempre em revolta. As causas imediatas dos acontecimentos de uma revolução são mudanças no estado de espírito das classes em conflito. As mudanças na consciência coletiva têm naturalmente um caráter a metade invisível. É somente a partir de ter alcançado um certo grau de intensidade que o novo estado de espírito e as novas idéias emergem sob a forma da atividade das massas." (Trotski, Historia da revolução russa);
  • A tarefa do partido, depois da revolução, não é de assumir o poder em nome da classe operária, mas é a responsabilidade desta última no seu conjunto, organizada em conselhos operários, de assumir esta tarefa. Durante este período, a tarefa de direção política do partido continua sendo essencial e implica que este tente conseguir uma influencia decisiva nos conselhos. Mas esta influencia, este papel só pode ser político. O partido só pode intervir nas tomadas de decisões convencendo os conselhos da justeza de suas posições e não ao tomá-las no lugar da classe. Em lugar de se arrojar a responsabilidade do poder de decisão, o partido deve insistir sempre para que todas as decisões maiores que afetam o curso da revolução sejam discutidas, entendidas e colocadas em prática no seio dos conselhos. É a razão pela qual é profundamente incorreto falar de partido "tomando o poder", com ou sem a maioria formal nos conselhos.

Mas era impossível que esta clareza se impusesse imediatamente aos revolucionários desta época. E novamente é colocada a questão do substitucionismo. A persistência de concepções social-democratas, não somente no conjunto da classe, mas no espírito de seus melhores elementos revolucionários, a falta de uma experiência real do que significa o exercício do poder pela classe operária, muito pesaram sobre a classe quando se engajou no combate revolucionário de 1917-23, e se expressam ainda hoje no seio das minorias revolucionárias sob a forma de lições erradas de onda revolucionária.

As concepções erradas da tomada de consciência pelo proletariado

A falta de clareza no conjunto do proletariado e de sua vanguarda sobre a natureza da relação entre partido e classe foi expressa  de maneira caricatural na tese de Kautsky segundo qual a classe operária é espontaneamente por sí capaz de atingir só um instinto de classe, a consciência necessitando  ser aportada a ela, de fora, por intelectuais burgueses. Esta tese que Lênin retomou por sua  conta na sua polêmica com os economicistas[2] (para os quais a classe desenvolve sua consciência só a partir de suas lutas imediatas) está em contradição com os trabalhos de Marx na Ideologia alemã[3], segundo qual é o ser social que determina a consciência. Ela também é contraditória com as afirmações mais cruciais de Marx sobre a consciência, notadamente nas Teses sobre Fueurbach nas quais ataca o materialismo contemplativo da burguesia que considera o movimento da realidade como um objeto exterior. Para Marx, o materialismo contemplativo é incapaz de apreender a consciência e a prática consciente como elementos do movimento e como elementos ativos deste. A tese de Kautsky é a continuação do erro dos utopistas criticada por Marx nas teses sobre Fueurbach: "A doutrina materialista da transformação pelo meio e pela educação esquece que o meio é transformado pelos homens e que mesmo o educador deve também ser educado. Assim, ela [esta doutrina] precisa dividir a sociedade em duas partes, cuja uma fica acima da sociedade. A coincidência da transformação do meio e da atividade humana ou da transformação do homem por si mesmo só pode ser apreendida e entendida racionalmente como práxis revolucionária" (Teses sobre Fueurbach).

Este erro de Kautsky e de Lênin advém da concepção substitucionista que criticamos em cima e que implica a divisão da sociedade "em duas partes, cuja uma fica acima da sociedade" e esquece que "mesmo o educador deve também ser educado".

Em outros termos, a tese de Kautsky parte de um materialismo vulgar que concebe a classe operária eternamente condicionada pelas circunstancias de sua exploração, incapaz de devir consciente de sua situação real. Para romper este círculo fechado, o materialismo se transforma aí em puro idealismo, colocando a existência de uma consciência socialista que, por conta de uma causa obscura, seria inventada ... pela burguesia!

No início da onda revolucionária, estas questões não foram particularmente cruciais. Quando a classe está em movimento em grande escala, o problema do substitucionismo não é colocado. Em tais momentos, é impossível para o partido pretender "organizar" a luta. A luta está presente, as organizações unitárias da luta também. O problema do partido é de saber como estabelecer uma presença real no seio destas organizações e ter uma influencia direta sobre elas.

Em contrapartida, com o refluxo da onda revolucionária, tomaram uma acuidade maior e, ainda hoje, continuam obscurecendo a consciência. Na prática, os "importadores" de consciência acabam muitas vezes sobre o mesmo terreno de que os "espontaneistas". Assim, para retomar os termos de Trotski, tanto os conselhistas[4] como os substitucionistas tendem em conceber a insurreição das massas como "espontânea" quer dizer como a revolta de um rebanho utilizada artificialmente por lideres, a única diferança é que os conselhistas querem que os operários sejam um rebanho sem chefe quando os substitucionistas acham que são os guardas do rebanho. Nenhum entre eles consegue estabelecer a relação entre as explosões das massas e as "mudanças no estado de espírito das classes em conflito" preliminares. Porque estas mudanças têm um "um caráter a metade invisível", os empiristas destas duas alas do campo proletário, paralisadas pela aparência imediata da classe, não conseguem vê-las.

As concepções erradas do exercício do poder proletário

À diferencia da esquerda alemã, que começava em perceber que a forma sindical de luta era impossível na época da decadência, a Internacional Comunista (IC) ficava ainda presa à idéia do partido organizando as lutas defensivas da classe e os sindicatos eram considerados como a ponte entre o partido e a classe. Assim a IC não foi capaz de perceber o significado dos órgãos autônomos que as massas criavam no fogo da luta, por fora e contra os sindicatos.

Mais importante é, neste contexto, como os velhos esquemas de pensamento predominavam na IC considerando a relação entre partido e conselhos. Embora no primeiro congresso as Teses sobre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado tivessem, como O Estado e a revolução, destacado os soviets como órgãos do poder proletário direto, no segundo congresso, os efeitos das derrotas que a classe tinha sofrido em 1919 já enfraqueceram esta idéia. O destaque era dado ao partido e não sobre os soviets. As Teses sobre o papel do partido comunista na revolução proletária da IC estabeleciam claramente que "o poder político só podia ser tomado, organizado e dirigido por um partido político e não de qualquer outra maneira."

De uma ou da outra maneira, esta visão era partilhada por todas as correntes do movimento operário até 1920. Todos, incluída Rosa Luxemburgo que criticava "a ditadura do partido", guardavam uma visão semi-parlamentar dos soviets elegendo um partido no poder. Só a Esquerda alemã estava começando a romper com esta idéia, mas desenvolveu só uma crítica parcial que degenerou rapidamente em uma posição conselhista. Mas dizer que o poder político do proletariado só pode se expressar através de um partido é dizer que os próprios soviets não são capazes de constituir este poder. É substituir os soviets pelo partido nas suas tarefas essenciais e assim esvaziá-los de seu conteúdo real.

Será que houve substitucionismo na insurreição de Outubro? Será que o partido bolchevique substituiu a classe em 1917? Não! A insurreição não foi organizada e executada pelo partido bolchevique, mas pelo Comitê Militário Revolucionário do soviete de Petrograd. Os que pensam que se trata de uma distinção meramente formal deveriam referir-se à História da Revolução Russa de Trotski, onde ele sublinha a importância política que os bolcheviques davam ao fato da insurreição ser assumida em nome do soviete de Petrograd - órgão unitário da classe - e não em nome da vanguarda comunista. É que quando a classe vai adiante, as relações entre o partido e as organizações de massa tendem a ser estreitas e harmoniosas. Mas não é um motivo para esconder a distinção entre o partido e estes órgãos unitários. Na verdade, tal confusão dos papéis só pode ter conseqüências fatais, mais tarde, se o movimento entrar num período de refluxo temporário ou mais longo. Assim, na revolução russa, o problema do substitucionismo surgiu em toda sua amplitude, depois da tomada do poder, na organização do Estado, dos sovietes e por conta das dificuldades colocadas pela guerra civil e o isolamento da revolução. Mas, apesar de constituir uma explicação subjacente ao fato dos bolcheviques terem acabado por substituir os conselhos operários e terminarem ao lado da contra-revolução, as dificuldades objetivas que encontraram não constituem uma explicação suficiente. Se não fosse o caso, não teria lições a tirar da experiência russa, fora do fato óbvio que a contra-revolução é causada pela contra-revolução. Se os revolucionários quiserem evitar a repetição dos erros do passado, devem analisar como as incompreensões políticas do partido bolchevique aceleraram o processo de degenerescência da revolução e sua própria passagem para o campo do capital. Em particular, devemos mostrar em que as incompreensões dos bolcheviques sobre a relação entre partido e classe os levaram numa situação em que:

  • o partido bolchevique entrou em conflito com os órgãos unitários da classe quase imediatamente depois de ter se tornado um partido de governo e bem antes que a massa dos operários tenha sido exterminado pela guerra civil ou que a onda revolucionaria internacional tenha recuado;
  • foi o partido, a expressão mais avançada do proletariado russo que se tornou a vanguarda da contra-revolução; isto destruiu o partido a partir de dentro e causou o nascimento do monstro stalinista, uma traição histórica que contribuiu mais na desorientação do movimento proletário do que qualquer outra traição por parte de uma organização proletária.

Nosso objetivo aqui não é de fazer um catálogo dos erros dos bolcheviques sobre esta questão, mas de mostrar como suas posturas políticas, sua concepção do partido acelerou a tendência à subordinação dos órgãos unitários ao aparelho administrativo e repressivo do Estado. A "justificação" política deste processo é encontrada numa declaração de Trotski em 1920: "Hoje recebemos propostas de paz do governo polonês. Quem decide sobre esta questão? Temos um Sovnarkom mas deve ser o objeto de um certo controle. Que controle? O controle da classe operária como massa amorfa e caótica. Não, o comitê central do partido foi reunido para discutir da proposta e decidir se tinha a necessidade de responder. A mesma coisa vale para a questão agrária, a questão do aprovisionamento e todas as outras questões." (Discurso no segundo congresso da IC).

A idéia que subtende esta atitude é a da social-democracia para quem, depois do partido proletário ter tomado o poder, o Estado está automaticamente dirigido no interesse do proletariado. A classe "encarrega" o partido de seu poder, e a necessidade pelos soviets de tomar realmente as decisões deixa de existir com isso. Na realidade, isso significa a abdicação de suas responsabilidades pelos soviets, tornando os cada vez menos capazes de resistir à tendência a burocratização que se desenvolve de maneira crônica durante a guerra civil.



[1] Foi notadamente o caso na Guerra dos camponeses no século XVI, na qual os explorados se tinham dado como porta-voz Thomas Munzer que pregava uma forma de comunismo.

[2] Ler o artigo Lênin e as questões de organização, https://pt.internationalism.org/icconline/2007/leninismo-e-organizacao [3]

[3] Isso dito, estes escritos, que só foram publicados depois da morte de Marx, não eram ainda públicos nessa época mas somente a partir de 1932.

[4] Corrente caracterizada por uma subestimação importante do papel político do partido revolucionário, até negá-lo.

Debate: Princípios revolucionários e prática revolucionária

  • 6316 leituras

No Foro Comunistas Internacionais[1], uma pessoa que subscreve como Cleto e que se apresenta como "companheiro aderente às posições do BIPR"[2] dirigiu uma crítica a nosso artigo Aporte para uma história da Esquerda Comunista[3] que, amavelmente tinha sido publicada pelo moderador do Foro[4].

Neste artigo fazemos uma reflexão sobre a primeira época do Partido Comunista Internacional, na Itália, no período 1943-48 onde esta organização que se reivindica da Esquerda Comunista cometeu o que a nosso julgamento são dois graves enganos: por uma parte, travar relações com os grupos partisanos[5] e, por outro lado, participar das eleições de 1948 apresentando uma lista própria[6].

 

Mentiras e distorções ou uma análise política diferente?

Cleto começa nos acusando de "distorções e mentiras". Entretanto, ao ler seu texto comprovamos que confirma completamente tudo o que dizemos: reconhece que o PCI participou dos grupos partisanos, reconhece que uma parte da seção de Turim participou da insurreição que organizou o Comitê de Libertação Nacional onde se agrupavam todas as forças burguesas italianas exceto os fascistas que não tinham trocado a tempo de camisa; reconhece enfim que o PCI participou das eleições de 48.

Se quisermos levar um debate frutífero devemos começar distinguindo entre o que são os fatos e o que é a sua interpretação e análise política. Os fatos são claros e evidentes e Cleto não os pode negar. Outra coisa muito distinta é que ele tem uma análise e uma interpretação diferentes. Mas isso não lhe autoriza a nos lançar a acusação de "mentir e distorcer". Ou, que não estar de acordo com sua interpretação significa ser um mentiroso?

É idealismo defender de forma intransigente os princípios proletários?

Entremos na questão de fundo. Cleto afirma que estamos cegos por um "idealismo diletante"; que estaríamos encerrados em "fantasias" que nada teriam que ver com "a verdadeira luta de classes"; que viveríamos em um "castelo encantado" o que nos levaria a "não entender a dialética dos fatos históricos" e a "desacreditar a atividade de quem interpôs suas vidas em altares da militância comunista".

Estalinistas e trotskistas costumam justificar suas políticas em nome do "realismo" e do sacrossanto "estar com as massas", desqualificando toda posição revolucionária como "infantilismo teórico". Eles se apresentam como os mais comunistas do mundo para acrescentar a seguir que "se vêem obrigados" a apoiar todo tipo de guerras imperialistas, de movimentos de "libertação nacional", todo bando burguês, em suma, "devido a que terá que estar com as massas".

Agora bem, o que é surpreendente é que um argumento de lógica similar proceda de alguém que se reclama da Esquerda Comunista. Em tal caso é necessário pôr as coisas no seu lugar, porque o que diferencia radicalmente à Esquerda Comunista das correntes políticas antes mencionadas é precisamente a coerência entre os princípios que se proclamam e as práticas com os que se defendem.

Cleto se pergunta "Enquanto as massas estão derramando seu sangue guiadas por uma perspectiva política enganosa (a frente popular ou a Resistência), o que devem fazer os comunistas? Devem permanecer fechados em seu círculo e escrever escolasticamente meticulosas análise sobre os enganos das massas?".

Quando os operários tomam partido por um dos bandos em conflito dentro de uma guerra entre frações da burguesia, perdem com isso toda sua força, transformam-se em peões dirigidos ao bel prazer, dão seu sangue por quem lhes explora e oprimem. Ante semelhante situação, só os princípios revolucionários podem ajudar os operários a recuperar sua autonomia como classe e poder lutar com força contra o capitalismo. Em 1944-45, aceitar o terreno da luta partisana -um movimento nacionalista e imperialista- sob pretexto de "convencer às massas" era contribuir a que continuassem encerradas no círculo infernal da guerra e a exploração capitalista. Somente o "círculo fechado" das "meticulosas análises" podia ajudar aos operários a sair do "círculo vicioso" no que se achavam encerrados.

Em 1914, a Primeira Guerra mundial pôde ser desencadeada porque o capitalismo, com o concurso ativo da maioria da Social-democracia e os sindicatos, fez acreditar aos operários que deviam aceitar a morte no front e os sacrifícios na retaguarda para defender uma "causa "justa" de geometria variável. No bando alemão se tratava de acabar com a barbárie tzarista enquanto que no bando aliado -que contava em suas filas o sinistro regime do Czar- o objetivo era acabar com a ditadura germânica do Kaiser!.

O que fizeram os revolucionários? Aceitaram o terreno da defesa nacional sob pretexto de "ficar com as massas"? Rotundamente não! Sua batalha foi defender os princípios internacionalistas, declararam guerra à guerra imperialista, preconizaram a luta intransigente pela Revolução Proletária Mundial. A minoria internacionalista (Lênin, Rosa Luxemburgo, Trotski, Bordiga...) "separou-se das massas", "permaneceu encerrada em seu círculo" e escreveu "meticulosas análises" sobre os enganos das massas. Com essa atividade contribuiu a que estas pudessem sair de seu engano, ajudou a que fossem encontrando sua força, sua solidariedade, e, desta forma preparou as condições da quebra de onda revolucionária mundial que se iniciou em 1917.

Foi Lênin um idealista?

Em abril de 1917, quando Lênin voltou para a Rússia defendendo a necessidade de orientar a revolução iniciada em fevereiro para a tomada do poder e a luta pelo socialismo, encontra-se com uma forte oposição por parte do comitê central da Partido bolchevique -dirigido nesse momento por Stalin, Kamenev e Molotov- que apoiavam o Governo Provisório, cujos objetivos declarados era a continuação da guerra e encerrar a revolução na camisa de força da democracia burguesa. Na polêmica que se inicia no Partido contra as posições de Lênin, Kamenev acusa a este de "idealismo" e de "separar-se das massas". Lênin lhe responde: "O camarada Kamenev contrapõe "o partido das massas" a "um grupo de propagandistas". Porém as "massas" tem se deixado levar precisamente agora pela embriaguez do defensismo "revolucionário"[7]. Não será mais decoroso particularmente para os internacionalistas saber opor-se em um momento como este a embriaguez "massiva" em lugar de querer "ficar vinculado com as massas" ? Não se deve saber ficar em minoria durante um tempo para combater uma embriaguez "massiva"? Não é precisamente o trabalho dos propagandistas no momento atual o ponto central para libertar a linha proletária da embriaguez defensiva e pequeno-burguesa "massiva"? Cabalmente a união das massas proletárias e não proletárias, sem importar as diferenças de classe no seio das massas, tem sido uma das premissas da epidemia defensivista. Não acreditamos que seja bom falar com desprezo de "um grupo de propagandistas" da linha proletária"[8].

Em outro documento da mesma época[9], Lênin rebate a insistente acusação de idealismo contra sua posição argüindo que "aparentemente isto não é mais que um trabalho de mera propaganda. Mas, em realidade, é o trabalho revolucionário mais prático, pois impossível impulsionar uma revolução que se estancou, que se afoga entre frases e se dedica a marcar o passo sem mover do lugar".

Possivelmente Cleto pense que Lênin também foi um "idealista", que "desdenhava descender às massas porque não são eminentemente comunistas". Nós pensamos que essa contribuição de Lênin é essencial para inspirar a atividade dos revolucionários. Lênin, na resposta a Kamenev antes citada recorda que "a burguesia se mantém não só pelos meios de violência mas também graças à falta de consciência, a rotina, a ignorância e a falta de organização das massas".

A classe operária é a classe portadora do comunismo[10] mas é também uma classe explorada que permanece durante a maior parte do tempo submetida ao império da ideologia dominante. Sua natureza comunista se expressa, em particular, pela sua capacidade de segregar em seu seio minorias comunistas que tentam expressar seus princípios e metas assim como os meios para alcançá-los.

Estas minorias não têm como fim ir correndo atrás das massas as seguindo nas múltiplas e contraditórias situações que acontecem. Terá que estar com o proletariado como classe revolucionária e não ficar colado com o "proletariado sociológico" que pode passar por diferentes estados de consciência. No texto antes citado Lênin recordava que "Valia mais ficar sozinho, como Liebchneck - e ficar só assim significa ficar com o proletariado revolucionário - que abrigar nem por um minuto a idéia de uma união com o Comitê de Organização[11]"

A classe operária não é uma massa cega a que teria que insuflar, sem que se dê conta, as receitas comunistas. Esse tacticismo pragmático encerra no fundo uma visão manipuladora, um desprezo profundo da classe operária. Os operários não têm medo dos que criticam seus erros. Rosa Luxemburgo dizia do proletariado "tão gigantescos como seus erros são suas tarefas . Não tem esquema preestabelecido sempre válido, não tem guia par lhe mostrar o caminho a ser percorrido. Seu único guia é a experiência histórica. Sua via dolorosa para a liberdade está balizada não só de sofrimentos inenarráveis, mas também de incontáveis erros. A meta da viagem, a libertação definitiva, depende por inteiro do proletariado, de se este aprende de seus próprios erros. A autocrítica, a crítica cruel e implacável que vai até a raiz do mal, é vida e fôlego para o proletariado"[12].

Qual foi a postura de nossos "pais" políticos?

Cleto menciona a postura da Esquerda Comunista Italiana ante a Frente Popular e a guerra na Espanha de 1936 dizendo: " O problema que nossos pais políticos se colocaram - tanto que o que respeita a Espanha como à luta partisana - é o que sempre a CCI (e seus derivados) não se coloca nunca, porque é totalmente estranho a seu método (idealista) e a seu modo de entender a militância comunista: Como fazer para que encontrassem os princípios com as massas em movimento, dispostas a uma luta sem quartel e aos maiores sacrifícios?".

Esta passagem parece dar a entender que Bilan sustentou a mesma postura ante 1936 que a do PCI em 1944-48. Nada mais irreal!. Pode-se consultar nosso livro 1936: Franco e a República massacram aos trabalhadores[13] que tem como eixo os textos de Bilan onde pode comprovar-se que Bilan seguiu então uma política "idealista" de defesa intransigente dos princípios.

Alguns anos antes, Bilan tinha polemizado com a Oposição de Esquerdas[14] que também invocava - como desgraçadamente fizeram em 1948 os "pais políticos" do Cleto- a necessidade de "não isolar-se das massas". O artigo se intitulava significativamente "As Principais armas da Revolução" e denunciava que "o militante que expõe uma posição de princípio em uma situação dada, e apressa-se a acrescentar que esta posição seria válida se todos os operários fossem comunistas, que seria muito feliz de podê-la aplicar, mas que se vê forçado a tomar em conta as situações concretas e sobre tudo a mentalidade dos operários"[15]. Põe a nu os "argumentos" com o que se avaliza semelhante capitulação: "Em cada ocasião, o problema se exporá de forma interrogativa: há em jogo uma questão de princípio? Ao responder pela negativa terá que deixar-se levar pelas sugestões da situação, livrar-se a conjeturas sobre as vantagens que se poderia tirar da luta pois, em definitivo, tanto Marx como Lênin, por muito intransigentes que tenham sido sobre as questões de princípio, não duvidavam em jogar-se na luta para realizar o maior número possível de aliados, sem ter em conta sua natureza, sem estabelecer previamente se sua natureza social lhes permitiria contribuir num verdadeiro apoio à luta revolucionária?".

Frente a estas posturas, Bilan defende que: "O partido deve permanecer escrupulosamente fiel às teses políticas que elaborou, pois se não proceder assim se proibirá avançar na luta revolucionária", concluindo categoricamente que "para preparar a vitória proletária atuam de uma vez os antagonismos sociais e a obra consciente das frações de esquerda: o proletariado retomará sua luta unicamente sobre a base de seus princípios e de seu programa".

1948: a regressão do PCI na questão eleitoral e parlamentar

Foi a predecessora da Esquerda Comunista Italiana, a Fração Comunista Abstencionista, constituída em outubro 1919, a que denunciou a mistificação eleitoral e parlamentar. Foi um de seus militantes mais destacados - Bordiga - quem fez contribuições muito claras sobre esta questão[16] e levou a efeito uma batalha tenaz contra a degeneração da Internacional Comunista combatendo um de seus mais graves enganos: o "parlamentarismo revolucionário".

Por isso, constituiu uma regressão que em 1948, o fato do Partido Comunista Internacional jogar pela janela esse patrimônio e preconizar a participação na farsa eleitoral destinada a avalizar a configuração política do Estado democrático italiano ao redor de um governo apoiado na Democracia Cristã e uma oposição constituída pelo partido estalinista.

Cleto defende esta participação com argumentos muito pouco convincentes: "O que dizer sobre as eleições de 1948? Simplesmente que foi um intento de inserir-se na grande excitação política na qual tinha enredado o proletariado, para dar a conhecer melhor nossas posições, aproveitando a visibilidade que oferecia a propaganda eleitoral; mas ninguém se iludia em fazer ressuscitar o parlamentarismo revolucionário: quem diz o contrário mente ou não sabe o que diz. O partido, em seus manifestos, em sua imprensa, convidava à abstenção, motivando-a politicamente e acrescentava "se não puderem fazer nada mais que votar, então votem por nós"".

Propor às massas abster-se e votar ao mesmo tempo não contribui minimamente em esclarecê-la e que a única demonstração é a própria confusão do Partido. Dar como tarefa ao Partido "inserir-se na grande excitação política que tinha aprisionado o proletariado" (uma "excitação" criada pela burguesia para que todo mundo avalizasse seu Estado democrático) confirma tudo o que continuamos dizendo: uma organização revolucionária não pode ir a reboque dessa "excitação" e deve contribuir para desenvolver a consciência das massas para as ajuda-las a liberar-se dela.

Do mesmo modo, Cleto argumenta que teria de "aproveitar a visibilidade que oferecia a propaganda eleitoral" e proclama arrogantemente que "isso não é parlamentarismo revolucionário" tachando quem diz o contrário de mentiroso e ignorante. Parece que nosso censor não conhece bem a Resolução sobre "O Partido Comunista e o Parlamento" que adotou o 2º Congresso da Internacional Comunista em março de 1920 onde se proclamou o "parlamentarismo revolucionário". Nela se diz que "a participação nas campanhas eleitorais e a propaganda revolucionária na tribuna parlamentar têm um significado particular para a conquista política dos meios operários que, igualmente às massas trabalhadoras rurais, permaneceram até agora à margem do movimento revolucionário e da política"[17]. Que diferença há entre esta postura e a que invoca Cleto? Que diferença há entre a postura de Cleto e a que defendem os trotskistas para justificar sua participação na mistificação eleitoral? Sinceramente nenhuma.

O argumento sentimental

"Nossos companheiros entraram em contato com bandas partisanas, correndo perigos mortais, por tratar de lhes fazer compreender o erro político no qual tinham enredado; organizaram e participaram das greves contra a guerra - em plena guerra! - e não poucos pagaram com sua vida de militância revolucionária, posto que foram deportados para campos de extermínio nazista ou foram fuzilados. Como se permite a CCI externar semelhantes aberrações sobre a dificílima experiência de nossos companheiros?".

O alvo da nossa crítica não é, obviamente, a organização e participação nas greves. O que rechaçamos com ênfase é a política denominada com pudor por Cleto de "entrar em contato com os grupos "partisanos" que consiste em praticar o "entrismo" no seio de uma organização militar contra-revolucionaria desprezível constituída direitamente sob o controle dos Aliados e, no lugar, do PC e do PS. Uma organização burguesa baseada sobre o voluntarianismo (que, a este título, não oferece nenhum terreno propício a divulgação dos princípios e da tática revolucionária, pelo contrario, do exército oficial no qual operários são mobilizados sob a força. É a razão pela qual, o heroismo dos militantes que foram enviados para infiltrar nas fileiras dos "partisanos", como também as perseguições que sofreram não constituem nenhum argumento a favor de tal política. Esta deve ser analisada unicamente a partir do critério de se responder à situação existente e de ser coerente ou não com os princípios e os meios de luta do proletariado. Mesclar as coisas só serve para introduzir confusão.

Cleto deveria refletir sobre o fato de que os grupos de extrema esquerda do Capital avalizam suas políticas de anti-fascismo, de libertação nacional, de sustentação a um campo imperialista, invocando os mortos, torturados, os presos destas causas burguesas. A oposição chilena a Pinochet falou longamente e à exaustão de seus mortos e encarcerados. O mesmo fizeram peronistas, montoneros, trotskistas com os desaparecidos e torturados pela ditadura argentina. Aproveitam-se desse sangue derramado como capital do qual hoje estão sacando dividendos para impor uma política de miséria e repressão aos operários e explorados como pode ver-se com o Bachelet e com o casal Kirchner. O partido estalinista francês se apresentava depois do pós-guerra de 1945 como "o partido dos 100 mil fuzilados". Com essa chantagem emocional, pôde sabotar a greve da Renault em 1947 proclamando que a "greve é uma arma dos trust", os 100.000 fuzilados foram utilizados por seu chefe de então, Maurice Thorez, para pedir aos operários franceses "que se desdobrassem para levar adiante a economia nacional".

Os princípios, armas da revolução

A burguesia estigmatiza uma atitude de defesa intransigente dos princípios como fanatismo e fundamentalismo. Ela pelo contrário é a classe do pragmatismo, os arremedos e a manobra maquiavélica. A política burguesa se converteu num espetáculo degradante de alianças contra a natureza, onde a vantagem e as contorções ideológicas mais delirantes abundam em qualquer parte. Isso provocou o alheamento geral da "política".

O proletariado pelo contrário não tem nenhuma necessidade de ocultar - nem de ocultar-se a si mesmo - seus princípios e os meios de luta. Para ele não há contradição entre seus interesses históricos e seus interesses imediatos, entre os princípios e a luta cotidiana. A contribuição dos revolucionários é uma política clara onde princípios e prática são coerentes e não se contradigam a cada passo. Para o proletariado, o prático é a defesa intransigente de seus princípios de classe, pois são eles os que lhe dão uma perspectiva para sair do atoleiro em que o capitalismo submete à humanidade, são eles o guia que orienta suas lutas imediatas para a perspectiva revolucionária. Como diziam nossos antepassados de Bilan os princípios são armas da revolução.

CCI 28-10-07

 

 

ANEXO: TEXTO DO CLETO

Saudações a todos.

 

Os companheiros aderentes às posições políticas do Birô Internacional pelo Partido Revolucionário (BIPR https://authority-solutionsr-austin.jimdosite.com/ [4]) estão, de muito tempo, habituados às distorções, por não dizer as mentiras, difundidas pela CCI. Entretanto, nesta ocasião decidi que não se pode deixar acontecer impunemente os comentários vertidos pela CCI ao final da sua resenha "Aporte para uma história da Esquerda Comunista", publicada nesta lista de discussão no dia 26 de setembro. Naturalmente, espero a contra-réplica da CCI, mas me desculpo com os membros desta lista por não ter respondido com antecedência, dado que não tenho muito tempo disponível e o pouco que tenho prefiro dedicá-lo à luta de classes verdadeira e não às fantasias da CCI. A CCI projeta para o passado seu idealismo diletante, distorcendo a história, justificando seu idealismo característico e, o pior de tudo, desacreditando a atividade de quem interpôs suas vidas em altar da militância comunista.

Cega por seu idealismo, a CCI não é nem sequer capaz de ler o que está escrito claramente e muito menos de entender a dialética dos fatos históricos. Como pode dizer que nossos companheiros em 1943-45 tinham a mesma posição da minoria que foi a Espanha? Nossos companheiros procuravam pôr em prática um marxismo vivo e não um marxismo tipo receita de cozinha, tentando levar aos partisanos (em grande parte proletários, convencidos - ilusoriamente - convencidos de combater ao nazista-fascismo para preparar a via da revolução proletária) para posições de classe. Por isso não derramaram seu sangue por uma causa burguesa. Por outro lado, isto o fizeram em condições dificílimas, protegendo-se dos fascistas e dos estalinistas. O problema colocado a nossos pais políticos -tanto que no que respeita a Espanha como à luta partisana - é o que nunca se coloca a CCI (e seus derivados) porque lhe é totalmente estranho ao seu método (idealista) e a seu modo de entender a militância comunista: como fazer para com que os princípios se encontrassem com as massas em movimento, dispostas a uma luta sem quartel e aos maiores sacrifícios? Enquanto as massas estão derramando seu sangue, guiadas por uma perspectiva política enganosa (a frente popular ou a Resistência), o que devem fazer os comunistas? Devem permanecer fechados em seu círculo e escrever escolasticamente meticulosas análises sobre os enganos das massas, desdenhando o descender à luta porque as massas não são... comunistas puras (e se já fossem comunistas, que necessidade haveria do partido e/ou da simples propaganda... cciísta), ou devem procurar traduzir os princípios em ação, a fim de que sejam entendidos e assumidos como próprios pelas próprias massas?

Naturalmente, isto pode comportar enganos, mas são os enganos de quem vive na verdadeira vida, não na livresca própria do castelo encantado onde tudo é justo porque, portanto, nunca seria verificado pela realidade.

Nossos companheiros entraram em contato com bandos partisanos, correndo perigos mortais, por tratar de lhes fazer entender o erro político no qual tinham se aprisionado; organizaram e participaram das greves contra a guerra -em plena guerra!- e não poucos pagaram com sua vida de militância revolucionária, posto que foram deportados aos campos de extermínio nazista ou foram fuzilados. Como se permite a CCI externar semelhantes aberrações sobre a dificilíssima experiência de nossos companheiros?

Quanto a Turím, em abril de 1945, o proletariado participou da insurreição, e uma parte da seção de Turím participou da mesma, mas em total independência do CLN (Comitato dava Liberazione Nazionale), sem nenhuma intenção de frentismo ou ilusão de condicionar a luta partisana, além de que a guerra se aproximava do seu fim com os aliados tocando as portas do Turín. Foi um engano? Possivelmente o tipo de engano que comete quem vive na luta de classes, quer dizer, o tipo de enganos que a CCI não cometerá nenhuma vez!

O que dizer sobre as eleições de 1948? Simplesmente que foi um intento de inserir-se na grande excitação política na qual tinha feito preso o proletariado, para dar a conhecer melhor nossas posições, aproveitando a visibilidade que oferecia a propaganda eleitoral; mas nenhum se iludia em fazer ressuscitar o parlamentarismo revolucionário: quem diz o contrário mente ou não sabe o que diz. O Partido, nos seus manifestos, na sua imprensa, convidava à abstenção, motivando-a politicamente e adicionava "se não poderem fazer nada mais que votar, então votem por nós".


[1] Pode-se acessar através de: www.yahoo.com [5].

[2] Birô Internacional da Partido Revolucionário: www.leftcom.org [6]. Sobre a origem do BIPR e o de nossa organização e sobre como concebe cada grupo a continuidade com a Esquerda Comunista Italiana pode ser consultado: Polêmica sobre as origens da CCI e do BIPR na Revista Internacional números 90 [7] e 91 [8].

[3] Ver "Apuntes para una historia de la Izquierda Comunista [9]".

[4] Ver no Anexo o texto de crítica de Cleto ao nosso artigo

[5] Que eram organizações guerrilheiras impulsionadas pelo partido estalinista para perseguir os exércitos nazi-fascistas para favorecer o bando rival, o estalinista-democrático

[6] Na Revista Internacional nº 36-37 publicamos a análise do 2º Congresso do PCI (1948) que fez Internationalisme, órgão da Esquerda Comunista da França, nosso grupo predecessor.

[7] Elucidação por nossa parte: o "defensivo revolucionário" preconizado abertamente por mencheviques e social revolucionários - e sustentado indiretamente pelo Comitê Central bolchevique - consistiu em continuar a participação da Rússia na guerra imperialista em nome de que "agora a situação tinha mudado e a Rússia tinha uma democracia"

[8] Lênin: Cartas sobre a tática.

[9] As tarefas do proletariado na presente revolução (mais conhecido como Tese de Abril). Em Obras Escolhidas tomo 2, página 50, da edição em espanhol

[10] O que não quer dizer que todos os operários tenham que declarar-se "comunistas puros" e que para fazer possível a revolução cada um deles tenha que doutrinar-se no "comunismo"

[11] Centro organizador da partido menchevique

[12] Rosa Luxemburgo Obra Escolhidas tomo II página 62 edição espanhola

[13] editamos uma quarta edição. pode-se encontrar em formato eletrônico em "España 1936, Franco y la República masacran al proletariado [10]".

[14] Que daria finalmente lugar em sua degeneração ao que se chamou a corrente "trotskista"

[15] Ver Bilan nº 5: As principais armas da revolução

[16] Ver, por exemplo, O Princípio Democrático

[17] Ver o livro Os Quatro Primeiros Congressos da Internacional Comunista tomo I página 178 edição espanhola

Diante dos embates do capital, os controladores aéreos respondem com a luta

  • 3944 leituras

"Chegamos ao limite da condição humana, não temos condições de continuar prestando este serviço, que é de grande valia ao País, da forma como estamos sendo geridos e como somos tratados. Não confiamos nos nossos equipamentos e não confiamos nos nossos comandos! Estamos trabalhando com os fuzis apontados para nós...". Dessa maneira dramática os controladores aéreos[1] de Brasília, Curitiba, Manaus e Salvador, se expressaram através de um manifesto,[2] antes de paralisar o serviço ao meio dia de sexta-feira 30 de março, declarando-se em greve de fome e auto-aquartelamento, como medidas de pressão contra as autoridades do Comando da Aeronáutica, órgão militar responsável pelo controle do tráfego aéreo no Brasil, subordinado a Força Aérea Brasileira. Ás 14 horas, ao finalizar seu trabalho os controladores do turno matutino do CINDACTA-I (Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo) em Brasília, que controla 80% do tráfego aéreo do país e concentra 120 controladores, decidiram permanecer nas instalações para continuar com o movimento. Diante das medidas repressivas do comando da aeronáutica, que ordenou a prisão de 16 controladores e ameaçou "utilizar o regulamento" que penaliza com cárcere os amotinados, os controladores decidiram ampliar o movimento a outros centros de controles às 18:50 horas de sexta-feira, o que ocasionou a paralisação de 49 dos 67 aeroportos do país. A ação dos controladores rompeu com a desinformação sobre a greve, que pretendiam abafar tanto o governo como os sindicatos e associações do setor.

Aos 00h30 min minutos do sábado 31/03 a greve é suspensa, depois que o governo revogou as ordens de prisão contra os grevistas e se comprometeu em cumprir as reivindicações exigidas por estes; principalmente a desmilitarização do serviço de controle aéreo.

Este triunfo dos controladores aéreos é um triunfo do proletariado, que nos deixa uma série de ensinamentos para as lutas de maior envergadura que se anunciam no horizonte.

A solidariedade, a força do conflito.

Desde a colisão do Boeing da empresa aérea Gol e o avião Legacy em Mato Grosso no centro-oeste do Brasil, em 29 de setembro, que deixou um saldo de 154 mortos, os controladores realizaram várias ações de "braços cruzados", já que eles tinham sido o centro das acusações do governo e das autoridades militares e civis, não só daquele acidente, como também do caos reinante no serviço aéreo do país.

No seu manifesto, os trabalhadores se defendem dessas calunias e enumeram as falhas no sistema de tráfego aéreo, denunciadas e registradas por eles nos livros operacionais: desde a queda nos sistemas de Curitiba, Brasília e Congonhas (São Paulo), até a falta de aeronaves e a venda em excesso de passagens aéreas (overbooking) pelas companhias, passando pela insuficiência de controladores aéreos.

Com todos os argumentos em seu favor, os trabalhadores denunciam "Passados seis meses da crise (referindo-se a colisão de 29 de setembro), não há sinais positivos para as dificuldades enfrentadas pelos controladores de tráfego aéreo. A situação pelo contrário se agravou.

Com se não fossem suficientes as dificuldades, somos também acusados de sabotadores, no intento de encobrir as falhas de gestão do sistema... Nunca houve sabotagem por parte desse profissional que trabalha para prover a segurança e não o terrorismo".

A greve expressa a indignação dos controladores aéreos diante da resposta do governo e o alto comando militar: "A represália do alto comando militar contra os sargentos controladores tem gerado tal insatisfação que não suportaremos calados em meio a tanta injustiça e impunidade dos verdadeiros responsáveis pelo caos".

Porém também esta greve deixa a nu toda a hipocrisia do conjunto da burguesia brasileira e sua cumplicidade na crise do transporte aéreo, tanto a esquerda agora no governo como a direita.

Esta última, que se aproveita da situação para denunciar a incapacidade do governo Lula, tenta ocultar que a deterioração do sistema de controle aéreo é de longa data, muito antes da chegada de Lula ao poder; e que o aumento desenfreado da concorrência entre as empresas aéreas, a política de redução de gastos, a venda de passagens em excesso e o incremento de vôos, leva o sistema de controle aéreo a operar em condições extremas.

Por sua vez, o governo Lula tem uma grande parcela de responsabilidade, já que é fato conhecido que este ao invés de atender as necessidades operacionais que beneficiam o conjunto do sistema (e a população), tem dado prioridade aos investimentos do Grupo de Transportes Especiais (GTE), que atende ao Airbus presidencial e os vôos da alta hierarquia do governo, civis e militares.

A ação dos trabalhadores pôs o dedo na ferida. Tornou pública uma situação que permanecia oculta ou era tergiversada para o conjunto dos trabalhadores do setor aéreo, os passageiros e a população em geral. Neste sentido, esta greve, curta, porém de amplo impacto, é uma manifestação de solidariedade dos controladores aéreos, com os outros trabalhadores do setor e com a população que pode ser afetada pelos acidentes aéreos. É uma expressão, de que o proletariado, com sua luta consciente, politizada e organizada, tem a capacidade de realizar ações efetivas contra o capital a favor do trabalho e o conjunto da sociedade; que ele tem meios para superar a impotência e frustração a que nos submete a burguesia, devido a sua incapacidade expressa no abandono dos serviços públicos e de qualquer outro tipo.

Governo e sindicatos foram surpreendidos por esta ação dos trabalhadores

Tanto o governo como os sindicatos foram surpreendidos e atropelados pelos acontecimentos. As autoridades da Aeronáutica pensaram que os controladores retrocederiam diante das ameaças de prisão e da aplicação da disciplina militar. Tais medidas só que fizeram radicalizar o movimento: os controladores tomaram a decisão de paralisar a quase totalidade do serviço as 18h50min do dia 30/03, pressionando o governo a negociar. Diante da radicalização de um movimento que poderia trazer conseqüências imprevisíveis, teve de intervir o próprio Lula (que se encontrava voando no seu confortável Air bus, para encontrar-se com o seu colega Bush), fazendo uso da sua velha experiência de "bombeiro" das lutas operárias, que aprendeu quando emergia como líder sindical na região do ABC de São Paulo. Não foi por "democratismo", nem por ser um "presidente operário" que Lula forçou as altas cúpulas da Força Aérea Brasileira a negociar com os grevistas junto com representantes do executivo, e sim devido ao seu passado de sindicalista, agente do estado capitalista no meio operário. Compreendeu que os trabalhadores estavam decididos em levar o conflito até as suas ultimas conseqüências; é sabido que quando se manifesta a revolta dos trabalhadores, esta pode expandir-se como um rastro de pólvora. A intervenção do executivo se deveu fundamentalmente a pressão dos próprios trabalhadores.

Por outro lado, tanto Lula como a alta cúpula militar, estão conscientes do mal estar reinante nas próprias Forças Armadas, onde tanto oficiais como sargentos percebem salários de fome. Os controladores aéreos que tem uma alta qualificação técnica, e salários importantes em outras partes do mundo, apenas chegam a perceber aproximadamente R$1.400,00 (por volta de US$700), equivalente a 4 salários mínimos oficiais. Assim mesmo, esses altos ocupantes da hierarquia do estado burguês, estavam conscientes que a Força Aérea não tem a capacidade imediata de substituir aos controladores aéreos.

Nas declarações dos sindicatos se pode perceber claramente sua forte intenção de condenar o movimento. Se não o fizeram abertamente, foi só para não ficarem desacreditados diante da classe operária que apoiava totalmente os controladores. O Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Proteção ao Vôo (SNTPV), que agrupa os controladores civis, se viu forçado a publicar o manifesto no seu site na internet, sem dar apoio ao movimento, embora o seu presidente Jorge Botelho, como uma forma de tentar dividir aos controladores, declarava que o "manifesto tinha sido assinado só pelos controladores militares", quando os controladores civis também tinham aderido a greve, apesar da oposição do sindicato. Por sua vez, a Associação Brasileira dos Controladores de Tréfego Aéreo (ABCTA), teve a desfaçatez de publicar uma nota onde declarava que devido a falta de atenção do governo, já não ia mais "atuar para reprimir qualquer mobilização do setor". Por sua vez, os sindicatos de outros setores do serviço aéreo, controlados pelo PT, cuidaram de não fazer qualquer pronunciamento para não molestar seu chefe maior em viagem a Washington. Sabemos que no fundo, os outros trabalhadores do setor estão com os controladores, apesar da sobrecarga de trabalho que lhes causou a greve.

Quais ensinamentos dessas lutas?

O explosivo movimento dos controladores nos mostra que nem as baionetas nem os sindicatos, estejam controlados por partidos e governos de direita ou de esquerda, vão impedir a luta do proletariado. Esta luta mostra que a esquerda do capital, comandada por Lula, tem logrado adiar as lutas operárias, porém estas não desapareceram. Pese a ação anti-operária do PT e da CUT, o proletariado brasileiro continua vivo.

Neste sentido, as reformas trabalhistas patrocinadas pelo governo Lula, é possível que causem algumas reações no proletariado brasileiro.[3]

Um grande ensinamento que deixa esta luta é que a nível dos trabalhadores, não existem setores privilegiados ou "aristocratas" que possam escapar aos efeitos da crise capitalista; a classe operária no seu conjunto se vê submetida aos embates da crise. Os controladores aéreos, apesar de ser um setor altamente qualificado e de ser ou não militarizado na maioria dos países, estão sujeitos a condições de trabalho extremas e de risco, como estão muitos operários e técnicos qualificados em outras áreas da produção e dos serviços. Outro ensinamento dessa luta, é que setores chaves do proletariado estão conscientes que têm os meios para fazer frente a repressão do estado, tanto militar como sindical.

Entretanto, há muitas ilusões e armadilhas ao redor desse movimento:

  • Por um lado, pode semear a ilusão que a situação dos controladores aéreos do Brasil vai mudar pelo fato de não estar militirarizado. A burguesia está consciente da importância estratégica desse serviço. Por isso, embora não esteja militarizado na maioria dos países, está sujeito a um regime quase militarizado e a grandes medidas de controle por parte do estado.
  • O manifesto expressa certas ilusões dos trabalhadores em que a "abertura democrática" do governo e da sua "transparência": "Brasil vive momentos inéditos de democracia e transparência com o resgate dos valores da ética, do respeito, com os assuntos públicos". Os trabalhadores não devem deixar se deslumbrar pelas palavras bonitas da esquerda. Esta é a esquerda do capital e como tal faz uso da hipocrisia da classe burguesa. Tanto uns como outros sustentam a democracia burguesa, mecanismo político-ideológico mediante o qual a burguesia mantém a ditadura do capital contra o trabalho.
  • A não militarização do setor abre portas à sindicalização. A greve dos controladores coloca de maneira mais clara a necessidade dos sindicatos para a burguesia, como órgãos de controle diante dos conflitos dos trabalhadores. Devido a estar sob a disciplina militar, os controladores não têm encontrado outro caminho que o de opor-se de maneira direta e aberta ao estado. A burguesia precisa dos sindicatos para enfrentar os trabalhadores, já que são as forças que por mais de um século têm servido para amortizar, desviar enfrentar as lutas. Nesse sentido, diante do desprestígio da CUT, virão jogar seu papel de "bombeiros" das lutas operárias os "novos" sindicatos controlados pelas forças "anti-Lula" mais à esquerda.

Perspectivas

As lições desse movimento se colocam em uma perspectiva mais ampla que não só abarca os controladores aéreos, como também o proletariado no seu conjunto.

Em primeiro lugar, a luta dos controladores expressa o descontentamento reinante no seio do proletariado brasileiro diante dos encargos da crise descarregada sobre os seus ombros, antes pelos governos de direita, agora pelo da esquerda de Lula. Nesse sentido, não há diferença desde o ponto de vista dos interesses do proletariado, entre ter um governo de esquerda (ou seja de corte radical como o trotskismo) e o de direita do capital. Porém o mais significativo desta luta é a capacidade de resposta do proletariado diante dos embates do capital Os controladores demonstraram que há saída.

Também na luta dos controladores, mostraram que a força do proletariado não é só quantitativa, como também qualitativa. Os controladores apesar de não passar de 3 mil, devido ao seu alto nível de solidariedade, a sua organização e politização, e porque tinham o apoio implícito de setores importantes da classe operária, lograram "enfrentar" o maior estado da América do Sul.

04-04-07

 


 

[1] Os controladores aéreos no Brasil, na sua grande maioria, são funcionários militares com grau de sargento. De um total de 2.289 controladores, só 154 são civis.

[2] O texto completo do manifesto dos controladores pode ser lido no site do Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Proteção ao Vôo (SNTPV), www.sntpv.com.br/principal.php [11], que agrupa só os controladores aéreos civis. O sindicato, apesar de não dar apoio a greve, se viu forçado a publicar o manifesto devido a contundência do movimento.

[3] O governo promove uma reforma legislativa em matéria sindical e trabalhista, supostamente como uma forma de "gerar empregos". Na realidade as reformas que "flexibilizam" a relação trabalhista, excetuarão a precarização do proletariado brasileiro em a favor do capital nacional.

Recente e atual: 

  • Luta de classe [12]

Em todo o mundo os governos descarregam a crise sobre os trabalhadores. O governo de Lula não é diferente!

  • 3681 leituras

O segundo mandato de Lula : a serviço capital como o primeiro

Após seis meses da segunda gestão de Lula à frente do estado no Brasil, esse mandato em nada se diferencia dos quatro anos anteriores. A burguesia conseguiu ampliar a sua coesão, ao incorporar outros setores, principalmente de grande parcela dos empresários  vinculados à  FIESP - Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, representante mais influente do capital industrial, que no primeiro mandato ainda demonstravam algum receio e desconfianças em relação de como se comportariam os partidos e organizações que integraram a frente Brasil Popular  (PT,PL, PTB, PPS, PSB, PCdoB)  que o apoiaram Lula na eleição de 2002. Essa desconfiança logo dissipou ao perceberem que não restava mais nenhuma dúvida que a gestão que o governo Lula desenvolve é do ponto de vista capitalista a mais apropriada para gerir a crise do sistema e que ninguém melhor encontraria na atualidade para cumprir esse papel, principalmente do ponto de vista ideológico contra a classe operária graças ao seu passado operário.

Continua mantendo uma política de natureza populista através de programas "sociais" denominados "fome zero", como: Renda Mínima, Bolsa Escola, financiados através da ampliação da exploração do resto da classe operária que ainda tem um emprego. Destinada a manter a ilusão segundo qual Lula seria mais social de que os governos de direita que o antecederam, esta política consiste em distribuir migalhas do estado (0,33% do PIB) para as famílias que vivem no mais completo estado de pauperização, em que recursos dessa natureza constituem a sua única fonte de renda. Tais programas muito mais que solução para a grave situação de miséria vivida, serviram e dentre outras coisas para conseguir mais apoio eleitoral junto a essa massa completamente destituída de quaisquer meios, para conseguir um segundo mandato mais comodamente à frente do estado. Por outro lado, tais programas evidenciam a incapacidade do capital em incorporar o imenso contingente populacional de desempregados acrescidos de igual contingente formado pelos que nunca tiveram e não terão a oportunidade de ingressar no mercado de trabalho.

A propósito da sustentação eleitoral que obteve para se eleger num segundo mandato, cabe acrescentar que Lula contou ainda com o apoio de um grande contingente do proletariado influenciado pelo PT, pela CUT, e todos os demais partidos e organizações ainda que mesmo em oposição, como no caso as organizações trotskistas apresentando ou não candidaturas, desempenharam o seu papel de coadjuvantes no fortalecimento da mistificação do que representam as eleições burguesas.

Os malabarismos da burguesia para administrar a Crise

A crise mundial do capitalismo não poupa nenhum país. Para escapar às contradições insuperaveis de falta de mercados solvaveis, todos acresentam seu nivel de endividamento e, para enfrentar uma guerra comercial acirrada, todos tomam medidas de ataques às condições da classe operária.

O Brasil não faz exceção. Para enfrentar esta situação, a burguesia brasileira adota uma política permanente de empréstimos subsidiados e incentivos fiscais, concedidos a empresas que sem isso desapareceriam de cena imediatamente porque não bastantes competitivas. Isso ocorre de maneira generalizada em muitos setores ao mesmo tempo independente de qual cadeia produtiva estejam inseridos, sejam elas a: agroindustrial, a indústria de manufatura ou de máquinas e equipamentos industriais, diretamente ameaçados pela competição da indústria chinesa em quase todos os seguimentos, ou pelas medidas protecionistas à agricultura nos EEUU e na Comunidade Européia, como principais compradores da produção agrícola do país. Fatores adicionais contribuam dos problemas da burguesia brasileira como a desvalorização do dólar perante as moedas de praticamente todos os países, inclusive o Real, que favorece as importações e desvaloriza as exportações.

Se tais medidas adotadas pela burguesia por lado conseguem salvar momentaneamente da falência algumas empresas e grupos capitalistas, de outro lado, os subsídios e incentivos fiscais concedidos, só fazem aumentar o déficit público obrigando o governo buscar o financiamento deste no mercado financeiro com taxas de remuneração que estão situadas entre as mais elevadas do planeta.

 Nesse cenário de agravamento cada vez maior da crise contribui de forma decisiva o desempenho da Balança Comercial, que sofre pesadamente com o aumento no volume das importações. Assim se impossibilita a manutenção de superávits comerciais indispensáveis para aliviar o peso do serviço da dívida externa hoje em US$182,8 bilhões, algo estimado em 7% do PIB, e uma a dívida interna de US$ 601,5 bilhões;  num contexto em que não conseguem obter taxas de crescimento capazes de impulsionar o PIB hoje estimado em US$967 bilhões para 2006, e com previsão de alcançar uma taxa ao redor de 5% em 2007. Para tentar impedir o crescimento da sua dívida (determinada em dólares) hoje em patamares astronômicos, o governo se encontra na necessidade de manter uma valorização acentuada da sua moeda  frente ao dólar, o que tem como implicação uma pressão permanente de redução dos gastos em particular quando consideram os servicios à população (saude, educação, etc ).

No Brasil, como em todos os países, a crise do capitalismo cria as condições para o desenvolvimento da luta de classes

Embora tenha se constituído em um dos principais temas das duas campanhas eleitorais de Lula: "A volta do crescimento e o e a criação de postos de trabalho", com as promessas  do "milagre do crescimento econômico e do emprego" vê-se que o "Santo é de barro" já que a economia está imersa na crise e não existe a possibilidade do crescimento tão alardeado. Assim ao contrário das promessas, a situação de desemprego foi mantida e a precarização acentuada.

Considerando as principais regiões metropolitanas do país a taxa de desemprego é 16,4% segundo dados pesquisados pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estudos Econômicos e Sociais), organização mantida pelos sindicatos e subsidiada pelo governo, aponta que a taxa de desemprego está situada entre as maiores do mundo. Além desse número há de se considerar o expressivo número de trabalhadores não computados nas pesquisas, e ainda os que exercem atividades na economia informal de forma temporária ou não, como os ambulantes, os sem registros na carteira profissional e também os milhares a serviço das organizações do tráfico, na indústria de pirataria (calçados, software, CDS e DVD's) e mesmo em regime de escravidão a serviço de propriedades agrícolas, os que trabalham em indústria "clandestinas" de confecções têxteis etc. que não contam com quaisquer direitos trabalhistas ou sociais. Há ainda que considerar os milhares que trabalham no serviço público com contratações temporárias, ou sob a forma de cooperativas para exercerem funções nos chamados projetos de assistência social, na esfera do governo federal, estados e municípios que em nada se diferenciam dos informais ou subempregados.

Seria totalmente igenuo pensar que a burguesia fica passiva e impotente diante das potencialidades de desenvolvimento de luta de classes que amadurecem na situação. Por conta da sua experiência de enquadramento da luta de classes que têm as formações políticas que apóiam o governo Lula, estas são capazes de tomar as iniciativas para de sufocar momentaneamente as manifestações de combatividade demonstradas pelos movimentos do proletariado especialmente nos últimos meses. Naturalmente, neste trabalho, a burguesia plenamente pode contar com o auxilio da esquerda e extrema esquerda do capital que, apesar do discurso falsamente radical, implusionam e popularizam reivindicações com a finalidade de enredar ainda mais o proletariado às amarras do estado. Dizendo a esse que medidas como as da reestatização das empresas privatizadas nos governos anteriores representam uma solução para os seus problemas, ao tempo que tomam iniciativas para neutralizar as manifestações e formas de lutas com um caráter  mais combativo. Conduzem as reações às medidas de precarização do trabalho já implementadas e em implementação pelo governo para as instâncias do estado burguês. Mesmo em relação às lutas salariais toda uma prática de aceitação da legalidade burguesa é incentivada através de ações perante a "justiça do estado". Ou mesmo quando diante da possibilidade de quebra ou fechamento das empresas como os exemplos da Varig, Volkswagen e recentemente a LG/Philips se defende que o estado conceda financiamentos, incentivos ou até mesmo a estatização, como forma de evitar o fechamento das mesmas enquanto na realidade só a luta mais massiva e unida sobre um terreno de luta de classes pode fazer retroceder a burguesia.

A resposta do proletariado aos ataques

Mais do que nunca o momento atual sinaliza para o proletariado brasileiro a necessidade de apropriar-se das experiências das suas lutas, e das lutas do proletariado a nível mundial. Para isso é fundamental cortar as amarras que lhe aprisionaram desde pelo menos do início da década de 20 do século passado, onde as suas lutas, apesar de grande combatividade, sempre foram canalizadas para o atendimento dos interesses do capital, com a ajuda significativa dos seus melhores aliados representados pelas suas frações da esquerda  que se passaram para o lado do inimigo de classe, e daí em diante, foram avalistas e co-gestores das crises, influenciando o proletariado e confundindo os interesses desses com os do capital, a cada acirramento da crise nos seus momentos críticos. Dentre  eles há de se destacar alguns em particular do PCB desde a década de 1930, bastante influente no movimento operário, e dos sindicatos à época no apoio ao ditador de 1935, Getúlio Vargas, na constituinte de 1946; no apoio ao nacional desenvolvimentismo da década de 1960, à ditadura dos anos 70 pela via da transição negociada, ao pacto social de Tancredo Neves na década de 1980, momento em que entra em cena o PT e sua proposta de um sindicalismo reciclado e "moderno" credenciando-se enquanto alternativa eleitoral da burguesia pós ditadura militar. Embora derrotado eleitoralmente numa primeira tentativa, o PT foi uma das peças chaves junto com outras forças de esquerda para determinar o afastamento do presidente Fernando Collor nos anos 1990, e garantir a posse do vice-presidente Itamar Franco; e em continuidade o apoio ao neoliberalismo de Fernando Henrique Cardoso, através da defesa das "conquistas" do Plano Real e por último a Lula entre 2002 e o momento atual.

É inegável que o proletariado embora tenha sofrido uma sucessão de derrotas inclusive os  operarios mais combativos, quando num passado recente com a retomada das lutas no final da década de 1970, acreditaram no projeto do sindicalismo combativo de Lula e do PT,  não significa que estejam desarmados por completo. A prova disso tem sido a partir dos meses  de maio e junho deste ano, a capacidade mesmo de forma tímida e bem menos massiva que as verificadas anteriormente, tem respondido com uma série de greves diante dos ataques do capital que tenta intensificar cada vez mais a  precarização. Os exemplos dos controladores de vôo, dos diversos segmentos do setor público, nas ocupações e paralisações contra o corte dos postos de trabalho na WW, na LG/Philips que já nos referimos acima, dentre outras, são uma demonstração evidente que permanece viva a capacidade do proletariado assumir os seus embates futuros. No momento de retomada das lutas pelo proletariado, os Sindicatos e as Centrais sindicas investem pesadamente para continuar sabotando as lutas e mantê-las  sob controle, o que conseguiram com algum êxito desempenhar na defesa dos interesses da burguesia, da qual fazem parte. E como se isso não fosse suficiente, apropriam-se de parcela significativa dos salários através da Contribuição Sindical e Assistencial compulsórias retirada dos trabalhadores. Atualmente por conta apenas da Contribuição Sindical, serão aproximadamente R$3,5 bilhões, a serem  divididos entre o governo, sindicatos e Centrais Sindicais.

Os meses de agosto e setembro se apresentarão como um momento importante para o proletariado na retomada das suas lutas de resistência contra a precarização e os baixos salários. Numerosas categorias em todo o país, dentre elas os operários metalúrgicos que estarão confrontados aos sindicatos, que desde já tentam a todo custo minar a disposição de luta existente por parte da classe operária, buscando o convencimento para  a realização de acordos em separados dos diversos setores das cadeias produtivas envolvidas.

Há de se ressaltar ainda o fato de que no seio do proletariado brasileiro, da mesma maneira que no restante do mundo, este tem feito surgir no seu seio elementos e grupos mais conscientes das necessidades da luta (solidariedade, procura do controle do movimento pelos próprios operários, procura da extensão fora do setor) e da alternativa possível e necessária à exploração e barbárie capitalistas.

Ju.

Espanha 1936: Franco e a República massacram o proletariado

  • 5083 leituras

Para a maioria dos historiadores oficiais, fora os da extrema-direita, a guerra civil na Espanha, iniciada em julho de 1936, se resume à defesa heróica de um governo eleito democraticamente contra a ameaça do fascismo. Os trotskistas concordam com a necessidade de lutar a favor da república contra Franco, colocando que isso era compatível com a luta pela derrubada do capitalismo e a instauração de uma verdadeira "república" dos trabalhadores. Quanto aos anarquistas, a maioria deles chega até dizer que a coletivização das fábricas e fazendas sob o controle do sindicato anarquista, a CNT, constituiu o ponto mais alto alcançado na luta para uma sociedade comunista.

A Esquerda comunista, que publicava a revista Bilan nos anos 1930, tinha uma visão muito diferente. Para ela, democracia e fascismo eram duas asas do capitalismo, ambas contra-revolucionarias e anti-operárias.

Reunimos sob este título, Franco e a República massacram o proletariado, um conjunto de documentos que dão a conhecer a postura da CCI sobre estes acontecimentos trágicos para nossa classe:

  • Apresentação da Esquerda comunista e de sua atuação nessa época,

  • Textos oferecendo ao leitor os elementos do contexto histórico,

  • Artigos da Revista Bilan e panfleto da Esquerda comunista.

Informamos a nossos leitores que todos estes documentos, e muitos outros, se encontram em nosso livro em Espanhol "España 1936, Franco y la República masacran al proletariado [10]".

A voz revolucionária de Bilan diante da guerra da Espanha

  • 3077 leituras

A guerra de 36 na Espanha foi o prelúdio da Segunda Guerra Mundial. As grandes potências da época participaram diretamente no conflito perfilando-se nele os dois bandos imperialistas que se enfrentaram de 1939 a 1945: o bando franquista é apoiado pela Alemanha e Itália e o bando da Frente Popular pela Rússia de Stalin e pelas democracias (Grã-Bretanha e França).

As posturas internacionalistas da fração italiana da Esquerda Comunista

Diante da matança que durante 3 anos alagou de sangue as terras espanholas, as organizações que diziam reclamar-se da classe operária, começando pelos "socialistas", seguidos pelos "comunistas" e acabando com os trotskistas e os anarquistas, propunham aos operários e aos camponeses espanhóis participar plenamente na guerra, escolhendo o campo republicano contra o bando fascista e unindo-se à burguesia "democrática" e às potências mundiais "fiadores da liberdade". Só uma pequena minoria, com Bilan à cabeça, teve a coragem de manter a posição dos revolucionários de 1914: a luta contra os dois bandos burgueses, a chamada dos operários e camponeses das duas frontes a desertar da guerra militar e voltar para suas casas para, unindo-se com os operários da retaguarda, levar a luta contra todo o Estado Capitalista, tanto em sua versão franquista como na republicana. Era retomar e levar mais longe o impulso inicial dos operários espanhóis que lutando em seu terreno de classe nos dias posteriores a 18 de julho do 36 foram capazes de parar a intentona golpista de Franco (que dito seja de passagem o governo da Frente Popular deixou com premeditação e traição que os generais fascistas preparassem impunemente) da qual houve uma nova manifestação, desta vez em condições muito diferentes, em maio de 1937, quando os operários de Barcelona depois de uma valente luta são massacrados pelas forças de assalto governamentais e traídos pelo POUM e pelos anarquistas que, além disso, participam descaradamente dos governos da Generalitat e da República.

Nós nos reivindicamos do trabalho político de Bilan que nessa época difícil para o proletariado - de derrota e contra-revolução, os tempos de Hitler e dos processos de Moscou - manteve-se fiel a seu combate histórico e foi capaz de enriquecê-lo com toda uma série de contribuições tirando lição dos intensos acontecimentos que de forma rápida e concentrada se deram entre 1914 e 1939: a guerra imperialista de 1914, a tentativa de revolução proletária de 1915-23, a contra-revolução na Rússia e à escala mundial, a tremenda depressão de 1929 e a barbárie a uma escala ainda mais selvagem da 2ª Guerra Mundial. (...)

Bilan (Balanço), publicação da Fração Italiana da Esquerda Comunista[1], sobreviveu durante o período mais sinistro da história do movimento operário, que vai do triunfo de Hitler na Alemanha até a 2ª. Guerra Mundial. (...) A revista Bilan possui 46 números publicados (1 478 páginas) desde novembro de 1933 a janeiro de 1938. Começou como "Boletim teórico da Fração de Esquerda do Partido Comunista da Itália". Em fevereiro de 1938, Outubro substituiu Bilan com o subtítulo de "órgão mensal da Esquerda Comunista". Apareceram 5 números de Outubro, o último em agosto de 1939, um mês mais tarde começava a 2ª. Guerra Mundial.

Constituição e desenvolvimento da fração italiana da Esquerda Comunista

A fração italiana tinha sido excluída do PCI (Partido Comunista de Itália) e da IC (Internacional Comunista) no Congresso do Lyon de 1926. A Fração, no difícil exílio francês perseguida tanto pelo fascismo como pelo estalinismo, volta a constituir-se em 1929 e publica a revista Prometeo em língua italiana e um boletim de informação em francês que acabou tornando-se uma publicação teórica.

Comprometida a fundo no movimento comunista internacional, a Fração na emigração tomará parte muito ativa no dito movimento, sobretudo na França e na Bélgica, participando com todas suas forças na luta contra a degeneração da III. Internacional e de seus partidos, definitivamente dominados pelo estalinismo. Por isso manterá contatos estreitos com todas as correntes e grupos de esquerda expulsos, um após o outro, do que tinha sido a Internacional Comunista, mantendo a luta em meio a uma terrível desolação e uma imensa confusão devido à amplitude da derrota da primeira grande onda revolucionária mundial e sua conseguinte desmoralização.

A tentativa de aproximação com a Oposição de Esquerda de Trotski não deu nenhum resultado; o que pôs em evidência foi o caráter fundamentalmente divergente das orientações de ambas as correntes. Se o trotskismo concebia a Oposição como grupos que simplesmente lutavam pela "regeneração" dos PC e que estavam dispostos a todo momento em reintegrar-se a eles, renunciando a existência como órgãos autônomos, a Esquerda Italiana partia das diferenças programáticas cruciais que só poderiam se resolver com a constituição de organismos comunistas independentes, as Frações, que estavam lutando pela destruição da corrente contra-revolucionària estalinista.

A discussão em 1933 sobre a análise da situação na Alemanha, sua perspectiva e a posição a ser tomada pelos revolucionários acabaram por tornar definitivamente incompatível qualquer trabalho em comum. Frente à ameaça hitlerista, Trotski preconizava uma ampla "Frente Única Operária" entre o PC estalinista e a social-democracia. Era nessa frente única entre os contra-revolucionários de 1914 e os de então onde Trotski via a força capaz de apertar o cerco ao fascismo, evitando assim o problema essencial da natureza de classe das forças presentes e o fato de que a luta contra o fascismo não tem nenhum sentido para a classe operária se estiver separada da luta geral contra a burguesia e o sistema capitalista.

Trotski, fazendo jogos com imagens brilhantes, dizia que a Frente Única poderia fazer-se até "com o diabo e sua avó" com o que demonstrava não menos brilhantemente que estava perdendo a noção mesma do terreno de classe do proletariado. Em plena verborragia, Trotski, sob o pseudônimo do Gurov, chegou a afirmar que a revolução comunista poderia triunfar "sob a direção de Thaelman[2]". Desde então resultava evidente que o caminho tomado por Trotski acabaria por levá-lo a abandonar, uma após a outra, as posições comunistas até a participação na II. Guerra Imperialista, em nome, claro está, da "defesa da URSS".

O aporte de Bilan à defesa do princípios comunistas

Diametralmente oposto foi o caminho tomado pela Fração Italiana da Esquerda Comunista. O desastre que representava para o proletariado o triunfo do fascismo, triunfo que se tornou possível e inevitável diante das catastróficas e sucessivas derrotas que lhe infligiram a social-democracia primeiro, e o estalinismo depois, deixava plenamente aberta a "solução" capitalista à crise histórica de seu sistema: uma nova guerra imperialista mundial. Os revolucionários só podiam frear esta perspectiva caso se esforçassem para agrupar o proletariado em um terreno de classe, mantendo-se firmes nos princípios programáticos do comunismo. Para isso, o mais urgente era submeter a um exame crítico toda a experiência do período transcorrido da quebra da grande onda revolucionária que interrompeu a Primeira Guerra Imperialista, abrindo um horizonte de esperanças à classe operária para sua emancipação definitiva. Compreender as razões de sua derrota posterior, fazer um balanço da experiência adquirida e dos enganos, tirar lições e, com estas bases, elaborar novas posições programáticas, tudo isto era indispensável para que a classe pudesse voltar, melhor armada e portanto mais capaz, a encarar sua tarefa histórica da revolução comunista. E foi esta impressionante tarefa a que se propôs empreender Bilan (Balanço, nome apropriado), e para levá-la a cabo Bilan convidou a todas as forças comunistas que tinham sobrevivido ao desastre da contra-revolução.

Poucos grupos responderam à chamada, mas também é verdade que poucos grupos puderam resistir ao terrível rolo compressor daquele período de reação e de preparação para a II. carnificina mundial. Cada ano que passava eram menos os grupos, entretanto, Bilan, que resistiu graças à dedicação de algumas dezenas de membros e simpatizantes, manteve sempre as portas abertas para que se expressassem, dentro do marco estrito das fronteiras de classe, outros pensamentos divergentes dos seus. Nada foi mais estranho que o espírito de seita ou a busca de um êxito "fogo de palha". Por isso, encontramos em Bilan artigos de discussão e reflexão que provêm de companheiros da Esquerda Alemã, Holandesa ou da Liga de Comunistas Internacionalistas da Bélgica. Bilan não tinha a estúpida pretensão de contribuir com respostas definitivas a todos os problemas da revolução. Tinha consciência de que freqüentemente balbuciava, precisava submeter suas teses a verificação, pois sabia que as respostas definitivas só podiam ser resultado da experiência viva da luta de classes, da confrontação e da discussão no interior mesmo do movimento. Sobre muitos problemas a resposta da Bilan foi insuficiente, mas ninguém pode pôr em dúvida a seriedade, a sinceridade, a profundidade do esforço e, acima de tudo, a validade de seu método, a justeza de sua orientação e a firmeza de seus princípios revolucionários. Não se trata unicamente de render graças a este pequeno grupo que soube manter firme a bandeira da revolução em meio de uma tempestade contra-revolucionària, mas também e, sobretudo, trata-se de assimilar o que nos legou e prosseguir o esforço com uma continuidade que não é estancamento mas sim superação.

Não é, como já dissemos, por gosto de erudito que escolhemos, para esta primeira recopilação de textos de Bilan, uma série de artigos que se referem aos acontecimentos da Espanha entre 1934 e 37. A análise dos acontecimentos tinha um alcance global que superava o marco espanhol e dava a base para entender a evolução da situação mundial, das forças da classe operária, de suas formações políticas, e, acima de tudo, ofereciam uma imagem crua da imensa tragédia em que se afundava o proletariado internacional e o espanhol em primeiro lugar.



[1] Ler nosso artigo A esquerda comunista e a continuidade do marxismo https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista [13]

[2] Thaelman: dirigente do PC alemão completamente avassalado ao stalinismo

Contexto histórico dos acontecimentos (a partir de julho de 36) na Espanha

  • 11526 leituras

Os anos 1930 até 39 são os de preparativos para a guerra que se realiza sobre as cinzas da onda revolucionaria que surgiu em reação à Primeira Guerra mundial. Em todos os lugares do mundo, o proletariado foi vencido, esgotado, massacrado, preso na falsa alternativa capitalista que o arranca de seu terreno de classe, "fascismo ou democracia", e submetido à histeria nacionalista que o leva inexoravelmente para a Guerra.

Ao mesmo tempo, em seguida após a morte da Internacional Comunista ratificada pela proclamação do socialismo num só país, quase a totalidade das organizações operárias em plena degenerescência são absorvidas no campo da burguesia ou tendem a se desagregar totalmente. Os "partidos comunistas" se tornam verdadeiras correias de transmissão da "defesa da pátria socialista" às ordens da contra-revolução stalinista. As únicas vozes que se expressam à contracorrente mantendo-se firmemente sobre posturas de classe como Bilan (órgão da Esquerda comunista de Itália entre 1933 e 38 no estrangeiro) são o produto de um punhado de revolucionários.

A esquerda desvia o proletariado da sua perspectiva própria e o submete ao Estado burguês

Na Espanha subsistia uma fração do proletariado mundial que ainda não tinha sido esmagada por conta da não participação deste país na Primeira Guerra mundial. Teve de enfrentar as tentativas da burguesia para que ele abandone seu terreno de classe para o terreno capitalista de uma batalha exclusivamente militar e imperialista.

Por conta da sua situação geográfica de porto da Europa, nos confins do mar mediterrâneo, do oceano atlântico e da África, a Espanha constituía o terreno ideal de materialização das tensões imperialistas exacerbadas pela crise, notadamente por parte dos imperialismos alemão e italiano que procuravam estabelecer um braço forte na bacia do mediterrâneo e acelerar o curso para a guerra.

Ademais, as estruturas arcaicas deste país, profundamente sacudidas pelo arrebentamento da crise econômica mundial do capitalismo nos anos 1930, constituíam um contexto favorável à adoutrinação do proletariado. O mito de uma "revolução democrática burguesa" a ser realizada pelos operários foi incutido para envolvê-los atrás da alternativa "república contra monarquia" preparando o caminho para a luta "anti-fascismo contra fascismo".

Depois da ditadura de Primo de Rivera, instaurada em 1923 e que se beneficia da colaboração ativa do sindicato socialista UGT (União Geral dos Trabalhadores), a burguesia espanhola elaborou o pacto de San Sebastian, no qual são associados os dois grandes sindicatos, a UGT e a CNT (Confederação Nacional dos Trabalhadores), esta última dominada pelos anarquistas. O pacto estabelece preventivamente as bases de uma "alternativa republicana" ao poder monarquista. A 14 de Abril de 1931, a burguesia obriga o rei Alphonse XIII a abdicar diante da ameaça de uma greve dos ferroviários e proclama a república. De imediato, nas eleições, uma coalizão social-republicana ascende ao poder. O novo governo "republicano e socialista" não demora em expressar sua real natureza anti-operária. A repressão é violentamente desencadeada contra os movimentos de greve que surgem diante do incremento rápido do desemprego e do aumento dos preços, com centenas de mortos e feridos entre os operários, notadamente em Janeiro de 1933 em Casas Viejas, na Andaluzia. Durante esta onda de repressão, o "socialista" Azana manda a tropa: "Nem feridos, nem presos, atirem na barriga!".

Esta repressão sangrenta das lutas operárias, realizada em nome da democracia e que vai continuar dois anos, de um lado vai possibilitar às forças de direita organizar-se e, de outro, vai levar ao enfraquecimento da coalizão governamental. Em 1933, as eleições vão dar uma maioria a direita. Uma parte do partido socialista bastante desacreditado pela repressão da qual foi o responsável, vai se aproveitar desta mudança eleitoral para efetuar um giro para a esquerda.

As organizações políticas de esquerda tratam aí de desviar o proletariado da luta de classes quando as greves se desenvolvem. Em abril-maio 1934, as greves tomam a maior amplitude. Os operários da metalurgia de Barcelona, os ferroviários e, sobretudo, os operários da construção civil em Madrid, empreendem lutas muito duras. Frente a estas lutas, toda propaganda, da esquerda e da extrema-esquerda, toma como eixo o anti-fascismo, para arrastar os operários a uma política de "frente única de todos os democratas", verdadeira camisa de força sobre o proletariado.

De 1934 até 1935, os operários são submetidos a um verdadeiro bombardeio ideológico em preparação das eleições, com objetivo a instauração de um programa de Frente popular e para "encarar o perigo fascista".

Em outubro de 1934, estimulados pelas forças de esquerda, os operários das Astúrias caem na armadilha de um confronto suicida contra o estado burguês que vai infligi-los uma derrota sangrenta. Sua insurreição e depois sua resistência heróica nas zonas mineiras e na zona industrial de Oviedo e Gijon foram totalmente isoladas pelo PSOE e pela UGT que impediram, por todos os meios, que a luta se estendesse para resto da Espanha, em particular a Madrid. O governo dispôs então uma força de 30 000 soldados com tanques e aviões de combate, nas Astúrias para esmagar sem piedade os operários, abrindo assim um período de repressão violenta no país inteiro.

A "Frente Popular" entrega os operários para o massacre

A 15 de janeiro 1935, a aliança eleitoral da Frente Popular é assinada pelo conjunto das organizações de esquerda, assim como pelos esquerdistas de tendência trotskista do P.O.U.M. Os dirigentes anarquistas da CNT e da FAI derrogou seus "princípios anti-eleitorais" para camuflar este acordo sob um silêncio cúmplice que equivale um apoio Em fevereiro de 1936, o primeiro governo de Frente Popular é eleito. Enquanto uma nova onda de greves se desenvolve, o governo lança apelos à tranqüilidade, pede aos operários para parar com as greves, dizendo que estas fazem o jogo do fascismo; O PCE (Partido Comunista Espanhol) irá até dizer que "patrões provocam e estimulam as greves por razões políticas de sabotagem". Em Madri, onde uma greve geral estoura a primeiro de Junho, a CNT impede toda confrontação direita com o estado, lançando suas célebres palavras de ordem de autogestão. Esta autogestão vai servir para encerrar os operários nas "suas" fábricas, seu "campo" ou sua aldeia, notadamente na Catalunha e Aragão.

Sentindo-se bastante fortes, as forças militares se lançam em Julho numa sublevação ("pronunciamento") iniciado no Marrocos e dirigido por Franco que tinha assumido sua primeira função de general sob as ordens da república dominada pelos socialistas.

A resposta operária é imediata: A 19 de Julho 1936, os operários declaram greve contra a sublevação de Franco e vão massivamente para as casernas para desarmar esta tentativa, sem tomar conta das consignas contrárias da Frente Popular e do governo republicano. Unindo a luta reivindicativa à luta política, os operários bloqueiam por meio desta ação a mão assassina de Franco. Mas, simultaneamente, os chamamentos à tranquilidade da Frente popular são respeitados em outros lugares. Em Sevilha, por exemplo, onde os operários obedeceram às consignas da Frente Popular para esperar, eles são massacrados num horrível banho de sangue pelos militares.

As forças de esquerda do capital então desenvolvem plenamente suas manobras de arregimentação

Em 24 horas, o governo que negociava com as tropas franquistas e organizava conjuntamente com elas o massacre dos operários, deixa lugar ao governo Giral, mais "a esquerda" e mais "antifascista", que encabeça a sublevação operária para orientá-la para o confronto exclusivo com Franco e sobre um terreno exclusivamente militar! Os operários só são armados para o envio ao front contra as tropas de Franco, fora de seu terreno de classe. Pior ainda. A burguesia faz acreditar na mentira do"desaparecimento do Estado capitalista republicano", enquanto este último se esconde atrás um pseudo "governo operário" que desvia os operários numa união sagrada contra Franco através de organismos como o Comité Central das Milícias Antifascistas e o Conselho Central da Economia. A ilusão de um "duplo poder" é criada, uma verdadeira armadilha contra a classe operária, que entrega definitivamente os operários nas mãos de seus verdugos. Os massacres sangrentos que tiveram lugar depois em Aragão, Oviedo, Madri são o resultado criminoso da manobra da burguesia republicana e de esquerda que fez abortar as reações operárias do 19 de Julho 1936. A partir daí, centenas de milhares de operários são diretamente alistados nas milícias antifascistas dos anarquistas e do POUM e são enviados a morte no front imperialista "anti-franquista" pelo governo da Frente Popular.

Depois de ter abandonado seu terreno de classe, o proletariado sofreu a matança da guerra e uma selvagem exploração, promovida pela Frente Popular, em nome da economia de guerra "antifascista": redução dos salários, inflação, racionamento, militarização do trabalho, aumento da jornada de trabalho, ....

Herança da Esquerda comunista: 

  • Organização revolucionaria [14]

A lição dos acontecimentos na Espanha (Bilan n°36 , novembro 1936)

  • 5309 leituras

A sublevação operaria em Madri e em Catalunha do 19 de julho 1936

Importa-nos em primeiro lugar evidenciar algumas realidades. Quando o movimento de 17 de julho no Marrocos[2] foi conhecido em Madri e Barcelona, a primeira preocupação do capitalismo foi escutar as reações do proletariado para orientar-se em uma ou outra direção. Antes de tudo, como já apontávamos no penúltimo número de Bilan, o Governo de Casares Quiroga[3] foi substituído pelo de Martinez Barrio[4], com a finalidade de tentar completar a conversação pacífica da esquerda para a direita.

Porém diante da amplitude do levantamento operário na Cataluña e Madri, a dita tentativa fracassa lamentavelmente e Giral[5] ascende ao poder enquanto Martinez Barrio parte para Valência de onde tentará em nome do governo, legalizar a revolta operária.

O desenrolar dos acontecimentos a partir de 17 de Julho confirma nossa apreciação: em 17 de julho, o Sindicato dos Transportes Marítimos de Barcelona havia se apoderado das armas achadas nos navios "Manuel Amús", "Argentina", "Uruguay" e "Marques de Comillas" (150 fuzis e munições), e as havia transportado para o seu local. Em 18, vésperas do levantamento militar, a polícia leva consigo uma parte das armas.

Quando depois de 17, os chefes dos diversos partidos operários foram pedir armas a Companys[6], já que era públicamente notório que os militares desceriam a rua no domingo ao amanhecer, o presidente da Generalitat lhes tranquilizou explicando que a Guarda Civil e a Guarda de Assalto bastariam e que, em todo caso, se estas recuassem, os operários não teriam mais que pegar os fuzis dos mortos para intervir. Segundo Companys, o melhor que poderiam fazer os operários ao sábado pela tarde e no domingo era ficar em casa e esperar que acabasse a batalha.

Porém a efervescência do proletariado se encontrava em pleno auge.

No domingo pela manhã o proletariado, munido com toda sorte de meios e na sua maioria sem armas, está nas ruas. Às cinco se inicia a batalha. Rodeadas pelos operários, a Guarda de Assalto e uma parte da Guarda Civil estão obrigadas em marchar contra os militares. De imediato, a coragem e o heroísmo dos operários, dentre os que particularmente se distinguiam os militantes da CNT e da FAI, tomam o controle dos pontos de vista essenciais da sublevação, já que em alguns lugares os soldados confraternizavam com os proletários, como ocorre no cuartel de Tarragona. Nessa mesma tarde os militares são derrotados e o General Poded capitula. A partir desse momento, o armamento do proletariado é geral.

Enquanto a Genaralitat, se oculta medrosa diante do impulso dos operários, porém, não teme que aqueles que lhe haviam pedido as armas, agora que as conseguiram pela força, os voltem contra ela.

Na segunda, dia 20, a CNT e depois dela a UGT, lançaram a consigna de greve geral em toda Espanha. Não obstante, em todos os lugares, os operários se encontravam na rua. Carregam as armas e colocam ao mesmo tempo, suas reivindicações de classe. O antigo antagonismo entre a CNT e a UGT, quanto à semana de 36 ou 40 horas, o problema dos salários, tudo isso vai surgindo no transcurso da luta já que os operários começam a ocupar numerosas empresas. No mesmo dia 20, aparecem e se constituem as milícias que limpam Barcelona. No dia 21, se publica um decreto da Generalitat afirmando: "Primeiro: Foram criadas milícias cidadãs para a defesa da República e a luta contra o fascismo e a reação". O Comitê Central das milícias incluirá um delegado do Conselho da Governança, um delegado do Comissário Geral da Ordem Pública e uma representação de todas as forças operárias ou políticas que se encontram lutando contra o fascismo.

É assim que a Generalitat tenta, desde o dia 21, não só imprimir o seu selo nas iniciativas dos operários armados, como também inseri-las no quadro da legalidade burguesa.

No dia 21, continuava a greve geral e o POUM (Partido Operário de Unificação Marxista) propõe a continuidade até que o fascismo seja completamente sufocado.

Todas as organizações de esquerda, até o POUM e a CNT travam o movimento

Porém a CNT, que controla Barcelona, lança nesse mesmo dia a consigna de volta ao trabalho nas indústrias de alimentação e serviços públicos. O POUM publica o aviso sem fazer críticas. Entretanto se continua falando de reivindicações de classe. Os operários expropriam a Companhia de Tranvias, o Metrô, e todos os meios de transporte incluindo as ferrovias. Também a Generalitar intervém e legaliza a situação tomando a expropriação por sua conta. Mais tarde tomará a dianteira em algumas empresas e as expropriará antes dos operários.

No mesmo dia, o Front d'Esquerres, que agrupa os partidos burgueses de esquerda, recebe uma carta do POUM em que aceita o convite de Companys em colaborar com todos os partidos contra o fascismo porém recusa, depois deliberação de sua C.E, em colaborar com um Governo de Frente Popular.

Parece pois que a partir do dia 24, sob a pressão da Generalitat, a maior parte das organizações operárias tentam frear o movimento reivindicativo. Os Socialistas e centristas (Bilan denominava assim os stalinistas) de Barcelona estão contra a continuidade da greve, a CNT tinha dado a ordem de volta ao trabalho, o POUM se esforça para manter seu programa reivindicativo, porém não diz uma palavra se aprova ou não a volta ao trabalho.

A partir do dia 24 se organiza a partida de colunas milicianas para Zaragoza. É necessário que os operários partam com a sensação de haver conseguido algum atendimento no que considera as suas reivindicações. A Generalitat lança um decreto: os dias de greve serão pagos. Não obstante, na maioria das fábricas os operários já haviam obtido, com armas em mãos, o atendimento de reivindicações particulares. Posto que graças aos partidos e organizações sindicais que se reivindicam do proletariado a burguesia tem conseguido parar a greve geral e que nas empresas ocupadas pelos operários a chamada jornada de 36 horas foi instituída imediatamente, em 26 de julho a Generalitat promulga um decreto instaurando a semana de 40 horas com um aumento de salários de 15%.

Assim enquanto a Generalitat se esforça para controlar o espocar das contradições sociais, chegamos a 28 de julho, que marca já uma mudança importante na situação. O POUM, que controlava através da P.O.U.S o "sindicato mercantil"[7] e algumas pequenas empresas, lança a ordem de retomada do trabalho aos operários que não estão nas milícias. É necessário criar a mística da marcha sobre Zaragoza. Tomemos Zaragoza! Dir-se-á aos operários, depois imediatamente acertaremos as contas com a Genetalitat e Madri.

O POUM expressará claramente com esta consigna de volta para trabalho, a mudança da situação e o acerto da manobra burguesa dirigida para terminar com a greve geral, lançando depois decretos para evitar as reações dos operários e colocando finalmente os proletários fora das cidades, encaminhados para o cerco de Zaragoza.

Porém em Zaragoza continua a greve geral com suas fases de retrocesso e retomada, e só mais tarde que os operários cederão diante do ultimato de Cabanellas[8] de eleger entre voltar ao trabalho ou o massacre total.

A partir de então seu esperança não ficará centrado em uma retomada das batalhas grevistas e sim na vitória das forças governamentais, e Cabanellas poderá organizar sua feroz e sanguinária repressão.

  • "La Batalla", órgão do POUM, na sua edição de 29 de agosto destaca que os operários de Zaragoza tenham mantido a greve geral durante 15 dias. Eis aqui o que diz este periódico: "O domingo pela manhã, em 19 de Julho (quando os militares saíram às ruas) os operários organizaram imediatamente a resistência e a luta durou numerosos dias. A greve foi absolutamente geral até 15 dias mais tarde, e os tiros nas barricadas operárias duraram muito mais tempo". Sempre havia "alguns heróis irredutíveis que preferiam perder a vida do que aceitar a dominação fascista".

A partir de 28 de julho se transforma o aspecto do movimento na Catalunha. É dada continuidade a expropriação das empresas, criando conselhos operários, porém tudo isso já é feito de acordo com os delegados da Generalitat que, evidentemente, não manifestavam nenhuma resistência aos operários armados, porém sabem que por necessidades da guerra na qual está envolvido o grosso do proletariado, obterão o que querem.

Delineiam-se já os contornos precisos do ataque do capitalismo espanhol. Nas regiões agrícolas, onde a repressão da Frente Popular se exerceu e nas quais não existe um proletariado forte, o problema agrário se resolverá pelo esmagamento feroz e sanguinário de Franco, no que a isto diz respeito não terá nada a invejar a Mussolini ou Hitler. Nos centros industriais, sobretudo em Cataluña, onde não existe o problema agrário, se faz preciso não enfrentar o proletariado de frente, lançá-lo em uma emboscada militar, debilitar seu front interior, para assim chegar a todo preço a aniquilá-lo. Em Madri será a Frente Popular quem se encarregará disso. Em Catalunha, a Generalitat chegará até em troca de concessões formais e não substanciais no terreno da gestão econômica e da direção política, a envolver a CNT e o POUM, partido oportunista do Burô de Londres, e nele que hoje um dos seus chefes, o ex-trotsquista Nin[9], é Ministro da Justiça.

Em Madri, depois do 19 de julho a greve geral não será senão uma prolongação da grande greve da construção, que durava desde junho, e só terminará alguns dias depois que tinha acabado na Catalunha.

Nesta cidade, os operários saem à rua unicamente na segunda-feira enquanto em Barcelona os militares já tinham sido esmagados. O Governo de Martinez Barrio durou algumas horas, e Giral que o sucede promete tudo o que lhe pedem exceto as armas que reclamam as organizações operárias. Sem armas os proletários madrilenos se dirigem na segunda feira para o Quartel da Montana e o assaltam vitoriosamente. A partir de então os quartéis de Madri confraternizam com os operários e uma breve luta se empreende nos arredores de Madri, de onde os militares queriam marchar sobre a cidade. Na terça feira os operários que estão em greve geral buscam os seus inimigos e, posto que todo mundo desde a CNT aos Socialistas haviam proclamado que o Governo de Frente Popular é um aliado, o braço vingador do proletariado armado, os trabalhadores se dispersam na província de Madri e encontram os militares em Guadarrama onde, depois de uma luta sangrenta e confusa, de uma parte e outra cada um retorna às suas posições enquanto o grosso dos operários retornem à Madri onde nesse momento será lançada o chamamento para acabar tanto com a greve como com a organização das colunas.

Tanto em Barcelona como no resto da Espanha, os operários que, desde fevereiro de 1936 haviam sido induzidos a considerar a Frente Popular como um aliado seguro, quando se lançaram à rua em 19 de julho, não puderam dirigir suas armas na direção que lhe haveria permitido acabar com o Estado capitalista e eliminar Franco. Deixaram os Giral em Madri e os Companys em Barcelona na cabeça do aparato do Estado, limitando-se em queimar igrejas, "limpar" instituições capitalistas como a Direção Geral de Seguridade, polícia, Guarda Civil e Guarda de Assalto. Os operários expropriaram na Catalunha os ramos fundamentais da produção, mas o aparelho bancário ficou intacto com o mesmo funcionamento capitalista de antes.

De todos os modos, esses elementos serão examinados posteriormente de forma minuciosa sobre uma base documentada.

Do dia 19 ao 28 de julho, a situação teria permitido aos operários armados, ao menos em Barcelona, tomar integralmente o poder, embora certamente de forma confusa porém teria representado entretanto uma experiência histórica formidável. A ida para Zaragoza salvou a burguesia. "La Batalla" órgão do autodenominado partido "marxista" (O POUM, nota da redação), proclamava que Zaragoza concentrava a atenção mundial revolucionária. Porém já a partir de 27 de julho, a burguesia examina prudentemente o terreno. Em Figueras, militantes da CNT, depois de vencerem os fascistas, são desarmados por Guardas Civis e milicianos da Frente Popular. A CNT publica então um chamamento às massas no qual recomenda responder com tiros contra os que tentarem desarmá-las. A Generalitat está informada. Se acertará por outros meios

O proletariado arrastado sobre um terreno abertamente burguês

Em 2 de agosto, a Generalitat, após uma nova tentativa de legalizar organizadamente a situação, decide mobilizar para a guerra pessoas de diversas faixas etárias. Os soldados não querem ser mobilizados se não for nas milícias. A CNT toma partido imediatamente: "Milicianos sim!, Soldados Não". O POUM pede a dissolução, não a eliminação, do exercito.

Evidentemente, a Generalitat não insistirá, limitando-se em conectar o CC das milícias anti-fascistas com o departamento de Defesa da Generalitat.

A composição do CC das Milícias Antifascistas será o seguinte: 3 delegados da CNT, 3 delegados da UGT, 1 delegado da Esquerda Republicana, 2 Socialistas Unificados, 1 da Liga dos Rabassaires (pequenos camponeses sob a influência da esquerda catalã), 1 delegado da coalizão de partidos republicanos, 1 do POUM e 4 representantes da Generalitat (o Conselheiro de Defesa, Coronel Sandino, o Comissário Geral da Ordem Pública, Governador de Barcelona e dois delegados da Generalitat sem cargo fixo).

Do ponto de vista da evolução política, o proletariado de Madri se coloca rapidamente empuxado sob uma plataforma abertamente burguesa, enquanto em Barcelona serão necessárias algumas semanas de guerra e manobras para chegar a isto.

Em Madri, a Passionária declara, desde o dia 30 de julho, que se trata de defender a revolução que deve ser cumprida totalmente. O dia primeiro de Agosto, a policia ficará ativa e Mondo Obrero (órgão de imprensa dos centristas - denominação dada por Bilan aos stalinistas), frente à tentativa de Giral em tirar o direito de arresto das milícias, falará da "confusão" que é preciso dissipar, convencendo a Frente Popular da ação que têm as milícias para manter a ordem.

Em 3 de Agosto, "Mondo Obrero" proclama que defende a propriedade privada dos amigos da República, e acrescentará: "Não às greves na Espanha democrática! Nenhum operário ocioso na retaguarda!". Todo seu programa se resume em: "primeiro acabar com o fascismo e depois de ter acabado com ele, a esquerda republicana terá aprendido a lição e a situação anterior ao 19 de julho não voltará a repetir-se".

Em 8 de agosto, Jesús Hernández[10] aplaudia em um discurso de grande ressonância a luta dos operários pela República democrática burguesa e só por ela, e em 18 de agosto, os centristas podiam dizer que a luta, na Espanha, havia se convertido em uma guerra nacional, em uma guerra pela independência da Espanha. Para isto será necessário criar um novo exército do povo com os velhos oficiais e as milícias, e a partir daí se converterão em partidários de uma severa disciplina.

Desde a constituição do gabinete Giral, os Largo Caballero[11] e os Prieto pedirão a constituição de uma comissão da Frente Popular adjunta ao Ministério da Guerra, onde eles mesmos participarão. Desse modo serão Ministros "oficiosos".

Quanto a Barcelona, depois de ter iniciado a nova fase de guerra para tomar Zaragoza, condição primordial para "resolver" o problema social, a "Solidariedade Obrera" do primeiro de agosto saudará a nova era e o começo da fase em direção ao comunismo libertário.

Quando da constituição do Governo de Casanovas (depois da saída do Governo dos delegados do PSUC[12]) a CNT, embora afirmando que o dito Governo não concretizava na realidade que os operários haviam conquistado, lhe concede, entretanto, seu total apoio.

Durante a primeira semana de agosto, a CNT mobilizará as armas em torno da partida para o front de Aragon, insistindo que não se tratava de um exército regular e sim de batalhões de milicianos voluntários onde cada oficial do antigo exército deveria ser vigiado por um miliciano. Por fim a CNT põe em evidência uma noção totalmente desconhecida até então pelos anarquistas: a disciplina militar.

Porém a CNT está então absorvida pela necessidade de controlar as iniciativas dos operários no terreno econômico com a finalidade de manté-los dentro de uma linha que obtenha maiores rendimentos para a guerra.

Em 14 de agosto, a "Solidariedade Operária" escreverá abertamente que também no terreno econômico existem relações de guerra.

Porém, esse aspecto do problema, o examinaremos separadamente quando analisarmos as relações econômicas dos novos órgãos surgidos no terreno social e político na Catalunha.

Nos falta ainda assinalar a situação do POUM que, longe de ser um partido com a possibilidade de evoluir para posturas revolucionárias, representa um amálgama de tendências oportunistas (socialistas de esquerda, comunistas de exterma direita, trotskistas) que é um obstáculo a mais para a clarificação revolucionária.

O esquema no qual interviu o POUM nos acontecimentos foi mias ou menos este: os bolcheviques lutaram primeiramente contra o tzarismo, depois contra a burguesia e seus agentes mencheviques. Sem a Tcheka e o exército vermelho não teria conseguido vencer os inimigos, tanto exteriores como interiores, (La Batalla", 4 de agosto)... Assim pois, o POUM lutará primeiramente contra o fascismo e depois contra a burguesia esquecendo que Lênin, ao contrário de Stalin e Kamenev, apresentou em abril de 1917 um programa de luta contra todas as formas de dominação da burguesia. Como se fosse possível lutar contra o fascismo sem lutar contra o conjunto do sistema capitalista!

As novas instituições e seu significado

Antes de tudo queríamos colocar em evidência o elemento central sobre o qual os acontecimentos projetam a sua luz. No momento em que o ataque capitalista se desencadeia com o golpe de Franco, nem o POUM nem a CNT sonham em chamar os operários para ocuparem as rua, e sim organizam delegações em volta de Companys para obter armas. Em 19 de julho, os operários saem espontaneamente a rua, e quando a CNT e a UGT lançam a consigna de greve geral não fazem mais que consagrar uma situação de fato.

Visto que os Companys e Giral são considerados de imediato como aliados do proletariado, como pessoas que deviam facilitar as chaves para abrir as portas dos depósitos de armas, é natural que, quando os operários tomaram as armas depois de ter aplastado os militares, nada sonhou nem por um instante em colocar o problema da destruição do Estado que, com companys à sua frente, ficou intacto. Tratou-se então de fazer crer na utopia que afirma que é possível fazer a revolução expropriando as empresas e tomando as terras sem mudar o aparato do estado capitalista nem o seu sistema bancário.

A constituição de um Comitê Central das milícias devia dar a impressão do início de uma fase de poder proletário e a constituição do Conselho Central de Economia a ilusão de que se entrava em uma fase de gestão de uma economia proletária.

Entretanto, longe de ser organismo de dualidade de poder, se tratava de organismos com uma natureza e função capitalistas já que, em lugar de constituir-se sobre a base do impulso do proletariado buscando formas de unidade da luta para colocar-se o problema do poder, foram desde seu começo órgãos de colaboração com o estado capitalista.

O CC das Milícias de Barcelona será por outro lado parte de um conglomerado de partidos operários e burgueses, e de sindicatos, e não um organismo do tipo dos Soviets que surge de uma iniciativa de classe, espontaneamente e onde se pode verificar a evolução da consciência dos operários. Este organismo se unirá a Generalitar para logo desaparecer por simples decreto quando se constituiu, em outubro, o novo Governo da Catalunha.

O CC de milícias representará a arma inspiradora pelo capitalismo para arrastar os proletários, por meio da organização das milícias, fora das cidades e dos seus lugares para os fronts de guerra territoriais onde foram sem piedade massacrados. Representará também o órgão que restabeleceu a ordem na Catalunha, não com os operários que haviam dispersados nos fronts e sim contra eles. É certo que o exército regular foi praticamente dissolvido, porém será reconstruído gradualmente com as colunas de milicianos onde o Estado Maior se conserva nitidamente burguês com os Sandino, os Villalba e consortes. As colunas foram voluntárias e puderam conservar-se assim até o momento em que desapareceu a embriaguez e a ilusão da revolução e reapareceu a realidade capitalista. Então se caminhará a passos largos para o restabelecimento oficial do exército regular e o serviço obrigatório.

Longe de poder ser um embrião do Exército Vermelho, as colunas se constituíram em um território e uma direção não pertencente ao proletariado. Para que isto tivesse acontecido faltou tomar o poder destruindo o estado capitalista, ou pelo menos que os operários voltassem às suas armas contra o Estado. E as colunas de milicianos não se constituíram nesse sentido, em troca se tratava de marchar sobre Zaragoza e Heusca pelo que diz respeito a Catalunha, e para Toledo e Guadarrama em relação a Madrid. Os operários armados foram lançados ao antifascismo e não a uma luta contra o conjunto das formas de capitalismo. Nestas condições, todas as formas democráticas que em um primeiro momento se manifestaram no seio das colunas não tiveram mais que uma importância insignificante. O que importava era a direção seguida pelas milícias e esta era francamente, a da Frente Popular: a luta antifascista respeitando os órgãos de dominação capitalista, e ainda reforçando-os, por meio do apoio que lhes deram os anarquistas e o POUM participando nos ministérios.

Em Madri, as milícias estarão praticamente sob o controle do Departamento de Guerra de Largo Caballero, que providencia os oficiais subalternos às diferentes organizações chegando para formar as colunas.

Definitivamente, assim como o grosso do exército regular passou a Franco, a Frente Popular e seus aliados tentaram trasladar os operários, por meio da organização das milícias, do território social ao terreno da formação de um novo exército regular. Isto explica porque os operários, apesar da sua bravura foram vencidos. E, no terreno militar, Franco trabalha com certeza, enquanto os Companys, Largo Caballero e companhia desenvolveram uma estratégia mais social que militar, consistindo em favorecer o massacre dos operários que, pela sua incorporação ao novo exército, não tiveram a força de reencontrar o caminho mediante o qual venceram os militares em Barcelona e em Madri no 19 de Julho.

Passemos agora ao exame dos outros instrumentos da dominação capitalista. A Guarda Civil, célebre pelos massacres de operários na época da Monarquia, foi transformada em Guarda Nacional Republicana. Certo que em Barcelona a CNT procedeu uma limpeza desta última, porém a instituição ficou em pé, embelezada pela entrada de militantes anarquistas no seu seio.

Em Madri a Guarda Civil, ficou intacta guardando zelosamente ao caixas fortes do capitalismo: os bancos.

Só em Valência desapareceu a Guarda Civil onde os operários da Coluna de Ferro (CNT), indo mais alem do acordo concluído pela sua organização, pediu à Guarda Civil a devolução dos seus fuzis; voltaram do front para, com a ameaça das suas metralhadoras, desarmar completamente os guardas civis e ir queimando os arquivos da policia. Madri compreendeu por outro lado que neste ponto era melhor retirar a Guarda Civil e a Guarda de Assalto e deixar que se constituíssem, sob a direção do Comitê Executivo Popular (uma espécie de Frente Popular), uma G.P.A (Guarda Popular Antifascista) que mantivera firmemente a ordem na retaguarda. A guarda de Assalto que os operários enfrentaram sob a República, permaneceu intacta e até fortemente armada em Barcelona.

Pelo que considera à Direção geral de Segurança Pública se procedeu a uma simples limpeza da instituição que continuou intacta. Na França, Blum[13] substitui os funcionários por decretos e democratiza o Estado; na Espanha tem se renovado os funcionários com fuzis para "proletarizar" as instituições capitalistas. Os anarquistas tomaram a Direção Geral da Seguridade em Barcelona, primeiramente sob a forma da Secção de investigação do C.C. de Milícias, hoje sob a forma de Departamento de Segurança onde o militante da CNT, Fernandez, é Secretário geral.

Em Madri, no início de outubro, depois da promulgação do decreto sobre a militarização, todas as secções de vigilância das organizações políticas ou sindicais estiveram submetidas ao Departamento da Direção Geral da Seguridade. Nem em Barcelona nem em Madri se publicaram as listas dos confidentes empregados pela polícia política nas organizações operárias e isto é significativo.

Os tribunais foram restabelecidos rapidamente no seu funcionamento com a ajuda da antiga magistratura e a participação das "organizações antifascistas". Os tribunais populares da Catalunha, na sua a primeira versão "extremista" (decreto do Ministro do POUM, Nin) partem sempre da colaboração com os magistrados profissionais e os representantes de todos os partidos, mas Nin havia inovado suprimindo o júri popular.

Em Madri, a porcentagem de magistrados profissionais será mais alto que em Barcelona porém, desde Outubro, Largo Caballero disporá de decretos para simplificar o procedimento durante o curso dos julgamentos de fascistas, colocando desta forma a altura de Nin.

Só uma instituição foi varrida seriamente na Catalunha: a igreja e, posto que não se trata de um elemento essencial da dominação capitalista, dará as massas a impressão de uma mudança geral embora seja mais fácil reconstruir igrejas e povoá-las de novos padres quando o regime capitalista subsiste nos seus fundamentos.

Por outra parte, se tomamos outro fato, se entenderá imediatamente que a igreja não é centro do problema. Todo sistema bancário e o Banco da Espanha ficaram intactos, e por todas as maneiras medidas de precaução foram tomadas para impedir (até com a força das armas) o embargo das massas sobre a riqueza nacional. Como do dito acerca da demolição de igrejas e a passividade diante dos bancos, se encontra o trilho dos acontecimentos em curso dos quais as massas se viram impelidas a demolir aquilo que estivesse a margem do sistema capitalista porém não o próprio sistema.

Examinemos agora dois gêneros de organismos que foram constituídos em oposição uns aos outros. Os Conselhos de Fábricas e o Conselho de Economia da Catalunha.

Quando os operários retornaram ao trabalho, ali onde os patrões haviam fugido ou foram fuzilados pelas massas, se constituíram Conselhos de Fábrica que foram a expressão da expropriação das ditas empresas pelos trabalhadores. Aqui intervieram rapidamente os sindicatos para estabelecer normas com a finalidade de constituir uma representação proporcional dos membros da CNT e da UGT. Por fim, embora se efetuasse a volta ao trabalho com a reivindicação dos operários que seja aplicada a semana de 36 horas e o aumento de salários, os sindicatos intervieram para defender a necessidade de trabalhar a pleno vapor para a organização da guerra sem respeitar demasiado uma regulamentação do trabalho e do salário.

Sufocados de imediato, os comitês de fábrica e os comitês de controle das empresas onde a expropriação não se realizou (em consideração ao capital estrangeiro ou por outras considerações) se transformaram em órgãos cuja função era de acelerar a produção e, por isso mesmo, foram desfigurados enquanto o seu significado de classe. Não se tratava de organismos criados durante uma greve insurrecional para derrubar o Estado porem orientados para a organização da guerra, condição essencial para permitir a sobrevivência e fortalecimento do dito Estado.

Controlados em seguida pelos sindicatos e mobilizados para a guerra antifascista desde 11 de agosto, os comitês de fábrica foram anexados ao Conselho de Economia que, depois do decreto oficial foi o organismo deliberativo para estabelecer acordos em matéria econômica entre as diversas organizações representadas (3 Estado Republicano Catalão, 3 Partido Socialista Unificado, 3 CNT, 2 FAI, 1 POUM, 3 UGT, 1 Ação Catalã, 1 União Republicana) e "o Governo da Generalitat, que executará acordos que resultam de suas deliberações."

Doravante, os operários no interior das fábricas que haviam acreditado na conquista sem destruir o estado capitalista, se converteram nos prisioneiros deste último e logo, em outubro sob o pretexto de trabalhar para uma nova era e ganhar a guerra, se militarizará os operários das fábricas. O Conselho de Economia, desde a sua constituição, se proporá em trabalhar para o socialismo de acordo como os partidos republicanos e a Generalitat. Nem mais, nem menos! Quem realizará - sobre o papel - este "primeiro passo do capitalismo ao socialismo" será o Sr. Nin que elaborará os 11 pontos do Conselho. Em setembro, o novo ministro "operário" da Generalitat será o encarregado de realizar esse "primeiro passo", porém nesse caso o engano e a mistificação serão mais evidentes.

O fato mais interessante nesse aspecto é o seguinte: à expropriação das empresas na Catalunha, e sua coordenação efetuada pelo Conselho de Economia em agôsto, por decreto do Governo em outubro fixando as normas para implementar a "coletivização", sucederam cada vez mais novas medidas para submeter os proletários a uma disciplina nas fábricas, disciplina que nunca teria sido tolerada vinda dos antigos patrões. Em outubro, a CNT lançará suas consignas sindicais por meio das quais proibirá as lutas reivindicativas de qualquer tipo e fará do aumento da produção o dever mais sagrado do proletariado. Afora o fato que já temos rechaçado o engano que consiste em assassinar fisicamente os proletários em nome da "construção de um socialismo", do que ninguém ainda está consciente, declaramos abertamente que, no nosso entendimento, a luta nas empresas não cesse um momento enquanto subsiste a dominação do Estado Capitalista! É verdade que os operários deverão fazer sacrifícios depois da revolução proletária, porém um revolucionário nunca poderá pregar o fim da luta reivindicativa para chegar ao socialismo. Da mesma forma, não confiscaremos aos operários a arma da greve depois da revolução e é obvio que, quando o proletariado não tem o poder - e este é o caso na Espanha - a militarização das fábricas equivale a militarização da fábricas em qualquer estado capitalista em guerra.

Para que possam chegar a ser armas revolucionárias, os Conselhos de Fábrica teriam que permitir aos operários expandir sua luta contra o Estado, porém dado que suas organizações se alinharam de imediato com a generalitat, isto era impossível, sob pena de dirigir-se contra a CNT, UGT, etc. É inútil falar pois a respeito de dualidade de poder frente ao Estado na Catalunha. É evidente que nem em Valencia nem, com maior razão ainda em Madri, encontramos estas formas de intervenção operária. Porém nos falta espaço para examinar mais detidamente as iniciativas operárias nestas cidades.

Antes de retornar as análises dos acontecimentos, queríamos dizer algumas palavras sobre o problema agrário. É verdade que neste terreno se produziram numerosas inovações. Na Catalunha, foi decretada a "sindicalização" obrigatória de diversas atividades agrícolas (venda de produtos, compra de material agrícola, seguros,....). Por outro lado, é evidente que desde 19 de Julho os pequenos proprietários se livraram de uma série de rendas e foros, enquanto quando as terras pertenciam a proprietários suspeitos de simpatias pelo fascismo, se iniciou a divisão das mesmas sob a égide dos comitês antifascista. Porém em seguida, primeiro o Conselho de Economia e depois o Conselho da Generalitat de outubro, puseram mãos à obra para enquadrar estas iniciativas e direcioná-las para as necessidades da economia de guerra que se colocava em marcha.

O ponto 11 do programa do Conselho de Economia dizia já no mês de agosto: "Coletivização da grande propriedade agrária que será explorada pelos sindicatos campesinos com a ajuda da Generalitat...".

Em continuidade, e mais particularmente em setembro e outubro, a consigna da CNT e de outras organizações foi a seguinte: "Nós respeitaremos a pequena propriedade campesina". Camponeses, coloquemo-nos a trabalhar!". Por fim, se colocará contra a coletivização forçada e o Conselho de Agricultura zelará para tranqüilizar os camponeses que simplesmente serão enquadrados por medidas gerais concernentes a venda de produtos e a compra de material, enquanto se colocará em evidência que "a coletivização da terra devia limitar-se as grandes propriedades agrícolas confiscadas". Pelo que concerne a província de Valencia também, lá, com o refluxo dos acontecimentos, se tenderá a construir comitês de exportação de laranjas, arroz, cebolas, etc., enquanto as terras pertencentes a proprietários fascistas serão confiscadas pelos campesinos que manterão um caráter coletivo nas explorações por conta das próprias necessidades do cultivo ( problemas de irrigação).

Em Madri, Uribe, Ministro comunista da Agricultura promulgará um decreto no mês de outubro onde se especificará "que se autoriza a expropriação sem indenização pelo estado das propriedades agrícolas qualquer que seja a sua extensão e tipo pertencentes, em 18 de julho de 1936, a pessoas naturais ou jurídicas que intervieram de forma direta ou indireta no movimento insurrecional contra a república".

No fundamental não se trata mais que de medidas de guerra em qualquer estado burguês se toma "contra os inimigos". A única diferencia é que os Uribe e consortes deviam levar em conta a intervenção das massas camponesas que, depois de 19 de Julho, foram muito mais longe que os seus decretos.

Porém, ainda admitindo que uma "revolução agrária" havia acontecido na Espanha, havia que provar que isso foi o eixo da situação e não o reforçamento do estado capitalista nas cidades, que precisamente torna-se ilusório toda mudança profunda e duradoura nas relações econômicas e das bases da agricultura num sentido revolucionário. Não pensamos terminar com todos estes problemas no breve enunciado que devemos limitar em efetuar aqui. Em outro estudo aprofundaremos com a documentação precisa.

O Massacre dos operários

Durante o mês de agosto, a precipitação para os fronts prossegue, em meio ao entusiasmo dos proletários. "Ameacemos Huesca, marchemos triunfalmente sobre Zaragoza, o cerco a Terulel se completa". Tais serão as consignas que os operários ouviram durante meses repetidas por todas organizações. Porém paralelamente cada organização intervirá para substituir as iniciativas dos operários na retaguarda pelas iniciativas e decisões tomadas em comum.

Em 19 de agosto, o POUM intervirá com um editoria cujo sentido central é o seguinte: "os órgãos regulares criados pela revolução são os únicos órgãos encarregados de administrar a justiça revolucionária".

Pouco mais ou menos ao mesmo tempo A Espanha antifascista, edição de Barcelona, publicará uma entrevista de Companys onde esta porá em evidência que a CNT e a FAI são hoje representantes da ordem e que a burguesia catalã não é uma burguesia capitalista (sic), e sim humanitária e progressista[14].

Em 22, sob a consigna de "Até o final" se organizará a expedição a Mallorca onde serão lançados milhares de operários catalães, dos quais uma grande parte deverão ser evacuados em seguidas para Barcelona ante o silêncio mais completo de todas frentes antifascistas. Esta experiência, que comprova claramente a vontade da burguesia "humanitária" catalã de lançar os operários aos massacres militares, terá sua repercussão em uma maior coordenação entre o comitê de guerra do Comitê Central de Milícias e o departamento de guerra da Generalitat.

Em 25, o agravamento da situação militar repercutirá nas relações entre as diversas organizações. O POUM fará eco disso pedindo que a cordialidade dos milicianos no front se manifeste também na retaguarda. A respeito a CNT, o POUM dirá que a convergência é total entre o esforço revolucionário daquela e o seu, e que a unidade de ação das massas se deve manter a qualquer preço.

Porém, desde o dia 25, Solidariedade Obrera escreverá que na sua última plenária a CNT tem adotado acordos concluindo a respeito do desarmamento de 60% dos milicianos pertencentes aos diferentes partidos. Estes aplicarão por si mesmo essas medidas que no caso de não levar adiante será a CNT quem se encarregará de fazer aplicar por seus próprios meios. A consigna centra da plenária era: todas as armas ao front.

Deste modo, a CNT dava a entender que, para ela, a luta violenta na retaguarda - nas cidades - havia terminado e não restava mais que uma frente na qual os operários deviam bater-se: o front militar.

Todos os partidos compartilham esta opinião e em 29 é publicado um decreto do CC de Milícias: os que possuem armas devem entregá-las imediatamente ou ir para o front. A partir de então Companys pode esfregar as mãos com satisfação.

Ao mesmo tempo ficará clara a comédia da não intervenção. Todos os estados capitalistas e a Rússia se colocarão de acordo para facilitar o crescente envio de armas pesadas a Franco e a expedição de colunas de operários estrangeiros a Companys e Largo Caballero. Todos os Estados zelarão por intervir na Espanha para ativar o massacre dos proletários segundo o acordo de "não intervenção". Itália e Alemanha fornecerão armas a Franco. Blum facilitará a formação de "legiões estrangeiras proletárias" (segundo "Solidaridad Obrera" vigiando ao mesmo tempo o envio de armas.

Desde então, o POUM e a CNT conceberão a ajuda do proletariado internacional como uma pressão sobre os respectivos governos para obter "aviões para Espanha". Aviões vindo da Rússia uma vez que a militarização havia sido aplicada e os operários espanhóis se encontram na impossibilidade de escapar ao massacre de Franco. Porém isso examinaremos mais adiante.

Em 1º de setembro, o Sr. Nin, em um comício do POUM, defenderá a tese de que "nossa revolução é mais profunda que a efetuada na Rússia em 1917".... Será esta a razão porque na Espanha se incitará as massas a fazer a revolução sem jogar por terra o estado capitalista?. Para Nin, a originalidade da revolução espanhola consistirá em que a ditadura do proletariado será exercida por todos os partidos e organizações sindicais (incluídos os partidos da esquerda burguesa do SR. Companys). Porém o 1º de setembro, quando se iniciava a fase de queda de Irun, os periódicos de Barcelona, e La Batalla em primeiro lugar, lançavam o grito de jubilo: "a queda de Huesca é eminente", e no dia seguinte se bradará "estamos nas primeiras ruas de Huesca", porém os dias e as semanas passarão sem resultados e finalmente se escutará que o comandante em chefe das forças governamentais, Villalba, é um traidor e é por sua culpa que... O dia 2, o POUM "aprofundará" a revolução liquidando sua organização sindical dentro da UGT (sindicato reformista) sob o pretexto de injetar a esta uma vacina revolucionária.

Porém a derrota de Irun chegará a ser conhecida com a traição de elementos da Frente Popular. Na La batalla e na Soli se desencadeará uma campanha contra os que, como Priéto, desejariam realizar um compromisso com os fascistas.

O que aconteceu em Badajoz? O que está acontecendo em São Sebastián? Perguntará o POUM. E ele mesmo responde dizendo: Faz falta um Governo Operário.

A CNT e os sociais-centristas de Barcelona reagiram frente a aventura de Mallorca, à traição de Badajoz e de Irun dando início a uma campanha forte para o comando único das milícias e a centralização destas. Porém nesse momento a atenção das massas se voltará para Huesca e por todas as partes se dirá "está completado o último cerco a Huesca e sua queda é iminente".

Então é quando debuta o Governo de Largo Caballero que se apresentará com um "programa constitucional" e proporá como tarefa o comando único da guerra "até o fim". Bandajoz e Irun serão rapidamente esquecidos e, quando os nacionalistas bascos entregam San Sebastián às tropas de Franco, se constituirá um departamento basco no Governo de Largo Caballero que elaborará um estatuto jurídico para o estado livre do país basco.

Largo Caballero, que havia tentado arrastar a CNT para o seu ministério, se contenta com o suporte técnico da mesma e passará à organização da derrota de Toledo e da queda de Madri.

Antes disso o POUM havia saudado ( La Ba­talla do 11 de setembro) o governo de Largo Caballero como um governo progressista em relação a Giral, porém havia declarado que para ser verdadeiramente operário deveria ter incorporado todos os partidos operários e, em primeiro lugar, a CNT e a FAI (e, provavelmente, também o POUM). Por essas razões mantinha a sua consigna de um governo operário apoiado em uma Assembléia Constituinte de operários e soldados. Mundo Operário, o órgão dos centristas madrilenos, com vários ministros no governo lançará a consigna de "tudo para o governo e pelo governo".

O dia 12 está ainda "diante das primeiras casas de Huesca".

Porém o 13, ainda não haviam tomado Huesca e terá de tentar normalizar a situação na Cataluña na perspectiva de uma guerra longa. A CNT se dirigirá aos camponeses para afirmar que ela, não queria coletivizar mais que as grandes propriedades, pois respeitava a pequena propriedade: "ao trabalho camponeses!" será sua consigna. O POUM expressará pudicamente seu acordo e continuará arrastando-se de forma lamentável atrás da CNT, a qual oferecerá flores regularmente embora essa se dedique a deprecia-lo públicamente.

No dia 20 iniciará em Madri uma campanha em favor do restabelecimento de um exército regular, sendo os centristas que a iniciam. O POUM aceitará o princípio de um exército vermelho. A CNT, se calará desdenhosamente e passará à organização de uma plenária nacional das suas regionais em Madri.

As decisões desta ultima foram as seguintes: começar a campanha para obter a criação de um Conselho Nacional de Defesa, apoiado por Conselhos Regionais, cuja finalidade será a luta contra o fascismo e a construção de novas bases econômicas. A composição do Conselho Nacional de Madri deverá ser: 5 representantes da UGT, 5 da CNT e 4 dos partidos republicanos. A presidência do Conselho seria para Largo Caballero quando que Azaña ficaria a cabeça da República. Seu programa comportaria o mando único e a supressão das milícias voluntárias, etc.

Em torno dessas posições se desencadearam imediatamente vivas polêmicas. Porém havia dois fatos essenciais estavam certos: os anarquistas participariam nos ministérios na condição de que eles mudassem seus nomes: o que não é muito difícil, dirá "Claridad" órgão de Largo Caballero. Em definitivo, os mesmos que no dia 2 de agosto recomendavam aos operários de Barcelona que recusassem a ser soldados senão milicianos do povo, aceitavam agora o princípio da militarização.

Entretanto a situação militar se agravava. Toledo está a ponto de cair e, em contrapartida, continuamos "nas primeiras ruas de Huesca". A ameaça já avança sobre Madri.

 Em 26 aparece aberta a crise do Governo da Generalitat. No dia seguinte se constitui um novo Governo em que participam a CNT, o POUM e os sociais-centristas. O programa desse "Governo operário", no qual os partidos da esquerda burguesa participam como expressão da pequena burguesia, comporta o comando único, a disciplina, a supressão dos voluntários, etc.

Alguns dias depois Largo Caballero estima que havia chegado o momento para promulgar o famoso decreto sobre a militarização das milícias e a aplicação do código militar neste novo exército regular. Em Madri, o decreto será aplicado a partir de 10 de outubro; e nas regiões periféricas, onde será necessário durante um tempo manobrar diante do proletariado, se aplicará só a partir do dia 20. A constituição do novo Conselho da Generalitat e o decreto de Caballero, chegarão a tempo para impedir que o proletariado coloque essas duas questões: Que tem passado em Toledo? Por que estamos sempre "nas primeiras casas de Huesca"? Porque Oviedo, que havia sido tomada pelos mineiros, pode ser ganha tão facilmente pelas tropas fascistas? Porque e para quem nos deixamos massacrar? Los Largo Caballero, Sandino, Companys, Villalba, o grande Estado Maior republicano, aos quais se uniram os Grossi, Durruti[15], Acaso, não são os mesmos que em 1931, 1932, 1934 fizeram com os cadáveres de operários um tapete para o avento das direitas? Podemos conhecer outra coisa que não sejam derrotas e massacres colocando traidores na direção das operações militares?

Os operários não tinham tempo para colocarem-se esses problemas que significariam o abandono dos fronts e o desencadeamento da luta armada tanto contra Largo Caballero como contra Franco. Os proletários não tinham tempo de entrever este caminho, que seria o único onde poderiam encontrar uma possibilidade de acabar com o fascismo, pois teriam acabado também com o capitalismo. O novo Conselho da Generalitat os detêm na Catalunha e o decreto sobre a militarização de Madri intervém nas demais regiões com a ameaça de graves sanções.

Os acontecimentos se sucedem agora com rapidez. Na Catalunha um simples decreto dissolve o Comitê Central de Milícias (que conferia um aspecto "revolucionário" às manobras do capitalismo) porque, dirá Garcia Oliver, delegado da CNT, "Todos já estamos representados no Conselho da Generalitat". Todos os comitês antifascistas foram dissolvidos e substituídos pelos territórios municipais. Nenhuma instituição do 19 de julho sobreviverá, e um segundo decreto precisará que toda tentativa de reconstruir organismos a margem dos ajuntamentos será considerado como um ato de insubordinação.

Em 11 de outubro aparecerão as consignas sindicais da CNT: decreto de mobilização e militarização na Catalunha. Nesse mesmo dia, o navio soviético "Zanianine" fará escala no porto de Barcelona para marcar pomposamente que a URSS havia rompido a política de "não intervenção" e corria finalmente em ajuda aos operários espanhóis.

As consignas da CNT tendiam proibir absolutamente "enquanto estamos em guerra" as reivindicações sobre as novas bases do trabalho, sobretudo se viessem agravar a situação econômica. Essas consignas afirmavam que nas produções que tinham uma relação direta ou indireta com a luta contra o fascismo não se poderá exigir que sejam respeitadas as bases do trabalho, nem em salários nem em jornada. Por fim, os trabalhadores não poderiam pedir remunerações pelas horas extras efetuadas nas produções úteis para a guerra antifascista e deveriam aumentar a produção com relação ao período anterior a 19 de julho.

Os sindicatos, os comitês e delegados de transportes e obras, serão os encarregados de aplicar essas consignas com "ajuda dos homens revolucionários".

A militarização das milícias substituirá o cooptação de proletários e camponeses, para deixá-los no front em nome da guerra pelo "socialismo", pelo chamamento às classes e logo toda a população com a finalidade de opor ao fascismo a "nação armada" em "luta pela liberdade".

O POUM e a CNT terão que manobrar para cegar as massas e disfarçar a militarização como uma "necessidade vital" que sua "constante vigilância de classe" impedirá que se transforme em um instrumento de estrangulamento dos operários. Porém o caso é que a militarização se aplicará estritamente. E no fundo mostrará como o capitalismo chega a crucificar o proletariado nos fronts, onde Largo Caballero e seus aliados "revolucionários" preparam minuciosamente as catástrofes militares. Doravante, o massacre dos operários na Espanha tomará a forma de uma guerra principalmente burguesa na qual, com dois exércitos regulares: o democrático e o fascista serão massacrados os operários.

Foi no mesmo dia em que se aplicou o decreto em Barcelona que atracou o navio russo Zanianine que marcou simbolicamente a volta da Rússia para Espanha. A URSS intervirá aportando armas e técnicos, só depois que a constituição do exército regular de Largo Caballero assinalará abertamente que se tratava de uma guerra burguesa. Não esqueçamos que no começo dos acontecimentos, a Rússia assassinava Zinoviev-Kamenev e a tantos outros. Agora, pode passar diretamente ao assassinato dos operários espanhóis, para os quais seus aviões e seus tanques serão um argumento de peso para sua aceitação ou para aceitação da sua incorporação em um exército burguês dirigido por pessoas hábeis no massacre de proletários.

Em Madri até o momento da constituição do novo Ministério (ou Conselho, como o chamavam os anarquistas) a CNT, se oponha bastante à militarização. Ainda na "Frente Libertária" (órgão das milícias confederadas da CNT em Madri) de 27 de outubro, encontramos essa posição: "Milícias ou Exército nacional? Para nós, milícias populares!". Porém, também aqui da posição da CNT se resulta de um vergonhoso oportunismo. Enquanto não tem atividade no seio do governo e não pode controlar as operações militares, mantém uma oposição ardente.

Como se sabe, Largo Caballero mata dois pássaros com um só tiro, reformulando seu gabinete 8 dias antes da sua ida a Valência. Os anarquistas entram no "Conselho" não somente dando visto ao passaporte a militarização e a criação de um exército regular, como também a toda manobra de Largo Caballero que, depois da queda de Toledo, havia permitido ou facilitado o caminho dos fascistas para Madri. A burguesia dará por cada derramamento de sangue proletário um passo a extrema esquerda. De Giral a Largo Caballero em Madri, de Casanovas a Fábregas-Nin em Barcelona; hoje Garcia Oliver é ministro e os representantes das juventudes socialistas e libertárias estão na Junta de Defesa madrilena.

Nesse ritmo sucederão os acontecimentos. Na Catalunha, sob a bandeira do Conselho "revolucionário" da Generalitat, é a aliança dos anarquistas com os sociais-centristas para impedir que os operários lutem pelas suas reivindicações de classe e de mantê-los sob a chuva mortífera de balas e bombas "até o fim". Em Madri, Largo Caballero parte para Valência, porém até o último dos proletários haverá de se ser massacrado pagando assim o preço da trágica aberração que fizeram confiar sua sorte aos agentes do capitalismo e aos traidores. Ah! o General Mola[16] tinha razão quando dizia: "Tenho 5 colunas que vão tomar Madri, 4 em volta e uma na própria cidade". A quinta coluna, a de Largo Caballero e seus consortes, está acabando a sua obra, e se dispõe a continuar unida fraternalmente com a CNT e o POUM nas outras regiões. Depois de Madri, será o proletariado de Barcelona e Valência aos que o capitalismo atacará com fúria.

Aos proletários de todos os países

Devemos concluir aqui nossa análise dos acontecimentos na Espanha, embora sejamos conscientes da insuficiência da nossa análise do período qualificado por nós de "massacre de proletários". Voltaremos sobre esse período no próximo numero de Bilan. Agora nos interessa sobretudo acabar com uma breve enunciação das posições que a nossa Fração opõe à mistificação do antifascismo.

Nos dirigimos com veemência aos proletários de todos os países para que não acreditem, com o sacrifício da sua vida, o massacre dos operários na Espanha. Para que se neguem a ir a Espanha nas Colunas Internacionais, e em troca comprometam sua luta de classe contra sua própria burguesia. O proletariado espanhol não deve ser mantido no front pela presença de operários estrangeiros que dêem a impressão de que lutam por uma causa internacional.

Enquanto aos operários da península Ibérica, não tem agora mais que uma saída, a mesma que no 19 de julho: greve em todas as empresas, estejam em guerra ou não, tanto do lado de Companys como do lado de Franco; contra as ordens arbitrarias das suas organizações sindicais e da Frente Popular, e pela destruição do regime capitalista.

Que os operários não se espantem de que lhes digam que atuando dessa maneira estão fazendo o jogo do fascismo. Só os charlatões e os traidores poderão pretender que lutando contra o capitalismo, que se encontra tanto em Sevilla como em Barcelona, se faz o jogo do fascismo. O proletariado revolucionário deve permanecer fiel a seu ideal de classe, as suas armas de classe, e todo sacrifício que hoje jogar nessa direção será frutífera para as batalhas revolucionárias de amanhã.



[1] Títulos foram acrescentados no texto original para facilitar a leitura.

[2] A sublevação de Franco.

[3] Casares Quiroga. Foi varias vezes ministro e presidente do governo (do 13 de maio até o 19 de julho 1936) na Segunda República espanhola. Demitiu-se do governo o dia depois do golpe de Franco. Diego Martínez Barrio o substituiu durante algumas horas e foi ele mesmo substituido por José Giral.

[4] Martinez Barrio liderava a União republicana, componente da Frente popular.

[5] Giral. Foi presidente do governo do 19 de Julho até o 4 de setembro de 1936. Depois foi ministro dos governos de Largo Caballero e de Negrín.

[6] Companys Luís Companys. Avocato e homem político espanhol, nacionalista catalão que foi presidente da Generalitat de Catalunha de 1934 até sua morte, executado pelo regime franquista.

[7] Nota original do texto. Sindicatos de empregados.

[8] Cabanellas. General do exercito espanhol e um dos líderes do golpe que resultou na Guerra da Espanha. Mas, se opôs à nominação de Franco como generalíssimo e foi descartado por este último.

[9] Andrés Nin Pérez. Rompeu com Trotsky por não aceitar a sua tática de entrismo no PSOE. Seu grupo fusionou em 1935 com o Bloco Operário e Camponese do qual foi nomeado membro do comitê executivo e diretor de sua publicação, A Nova Era. Foi assassinado pelo general Orlov que atuava em nome de Stalin.

[10] Jesús Hernández. É eleito membro do comitê central do PCE em 1930. A partir deste momento, permaneceu em Moscou para completar sua formação política até 1933. A partir de 1936, foi responsável do órgão do partido, Mundo Obrero. Nas eleições generais de 1936, foi eleito deputado da Frente popular da província de Córdoba. Durante a guerra civil, foi um dos dois ministros comunistas dos governos de Francisco Largo Caballero e em seguida de Juan Negrín.

[11] Francisco Largo Caballero. Depois da queda do governo Giral, o 4 de setembro 1936, é nomeado chefe do governo e ministro da guerra. Em maio de 37, demite-se do governo sob a pressão dos stalinistas e é substituído à frente do governo pelo Dr. Juan Negrín, também socialista, embora mais próximo às teses do Partido Comunista.

[12] PSUC: Partido Socialista Unificado de Catalunha.

[13] Blum. Homem político socialista francês. Foi chefe do governo francês em 1936 (presidente do conselho de Frente popular), 1938 e 1946.

[14] Nota original do texto.
Pergunta : O papel cotidiano preponderante da CNT na Catalunha , não será nocivo para o Governo democrático? Não será nocivo para o governo democrático?
Resposta de Companys: Não a CNT tem tomado para si os deveres abandonados pela burguesia e pelos fascistas que têm fugido: estabelece a ordem e defende a sociedade..., a CNT é agora a força, a legalidade, e a ordem.
Pregunta: Não acredita você , que uma vez exterminado o fascismo o proletariado revolucionário exterminará a burguesia?.
Resposta de Companys: Não esqueça que a burguesia catalã difere da burguesia de certos países democráticos da Europa. O levantamento fascista tem sido o seu suicídio. Nosso governo, embora burguês não defende interesses financeiros de nenhum tipo, defende as classes médias. Hoje caminhamos para uma ordem proletária. É possível que nossos interesses se ressintam de algo porém temos o dever de ser úteis ainda no processo de transformação social. Não queremos dar privilégios exclusivos às classes médias. Queremos criar um direito democrático individual sem coações sociais ou econômicas.

[15] Buenaventura Durruti Dumange. Militante da CNT. O 20 de julho, os principais dirigentes da CNT tiveram uma entrevista com o presidente geral da Generalitat, Lluis Companys. O dia seguinte houve uma outra entrevista da qual participaram os principais dirigentes da CNT e na qual propuseram nomear um Comitê Central das Milícias Antifascistas de Catalunha. Depois Durruti decidiu se juntar ao front com os republicanos e formou a famosa Coluna Durruti.

[16] General Mola Emilio Mola Vidal. Militar que foi um dos líderes do golpe de julho 36.

Herança da Esquerda comunista: 

  • Organização revolucionaria [14]

Maio de 1937 - A frente popular contra os operários de Barcelona

  • 3365 leituras

A maioria dos historiadores oficiais, fora os da extrema-direita, apresentam a guerra civil como uma defesa heróica de um governo eleito democraticamente contra a ameaça do fascismo. Os trotskistas defendem uma versão mais crítica, dizendo que na realidade a guerra civil não era nada menos que a revolução espanhola.  Enquanto concordavam com a necessidade de lutar a favor da república contra Franco (Trotski dizia para seus seguidores "serem os melhores soldados da república"), colocam que isso era compatível com a luta pela derrubada do capitalismo e a instauração de uma verdadeira "república" dos trabalhadores. Quanto aos anarquistas, a maioria deles, chegou até dizer que a coletivização das fábricas e fazendas sob o controle do sindicato anarquista, a CNT, constituiu o ponto mais alto alcançado na luta para uma sociedade comunista.

A Esquerda comunista, que publicava a revista Bilan nos anos 1930, tinha uma visão muito diferente. Para ela, democracia e fascismo eram duas asas do capitalismo, ambas contra-revolucionarias e anti-operárias. Analisava o período dos anos trinta como de profunda derrota da classe operária, abrindo a porta para uma segunda guerra imperialista mundial. Ambas ideologias fascista e democrática assumiram seu papel de mobilizar os operários para a guerra que estava se aproximando e a matança na Espanha era uma preparação dos massacres mais amplos em perspectiva.

Isso não significa que Bilan não tinha a percepção da existência de uma real luta de classes na Espanha. Saudou o movimento espontâneo de greves e o surgimento do proletariado de Barcelona contra o golpe de Franco de Julho 36, o que ilustra a capacidade da classe operária em se defender quando luta com seus próprios métodos de luta. Mas percebeu também que este movimento de classe inicial quase que imediatamente tinha se desviado para uma guerra inter-imperialista; uma guerra em que se envolveram as grandes potências, a Alemanha e a Rússia soviética, em cada um dos dois campos imperialistas. E as forças políticas, que se envolveram mais e tiveram uma influencia decisiva em desviarem a classe operária da luta em defesa de seus interesses de classe para um terreno burguês, foram as forças de "esquerda", incluindo a CNT anarquista, que transformou as milícias operárias de Julho de 36 em núcleo da armada republicana, e a ocupação das empresas para a autogestão das empresas cuja economia de guerra dependia.

Deve-se destacar que essa transformação aconteceu sem que houvesse nenhuma resistência por parte da classe operária. E em maio de 1937, o real conflito no seio do campo "antifascista" veio à tona, quando as forças policias stalinistas tentaram tomar o controle da central telefônica de Barcelona e "extirpar" tudo que era considerado como obstáculo à máquina de guerra republicana. Esta ação provocou barricadas e novamente uma greve geral, dessa vez opondo não os operários e Franco, mas os operários e o aparelho repressivo da república. Isso abriu uma divisão de classes entre os anarquistas que tinham se convertido em parte do aparelho de estado (na realidade, a CNT oficial) e os que ficaram do lado proletário das barricadas, como Camillo Berneri ou o grupo dos Amigos de Durruti, como também alguns elementos do movimento trotskista.

A Fração da esquerda italiana e a recém Fração belga, escreveram conjuntamente o manifesto sobre os acontecimentos de maio-junho de 1937 que publicamos com o texto seguinte. Mais de setenta anos depois, ele constitui uma referência quanto a sua clareza política e sua fidelidade inabalável ao internacionalismo proletário. Mesmo se dentre algumas das suas formulações não sejam mais nossas hoje (por exemplo, a idéia de que o partido seria o "cérebro" da classe), a insistência do manifesto sobre a necessidade da organização política comunista como a melhor defesa da independência da classe operária é tão válida hoje como era naquela época.

Herança da Esquerda comunista: 

  • Organização revolucionaria [14]
  • Esquerda do capital [15]

Panfleto da Fração Belga e Italiana da Esquerda Comunista Internacional (maio de 1937)

  • 2984 leituras

Chumbo, metralha, prisão...:Essa é a resposta da frente popular para os operários de Barcelona que ousaram resistir ao ataque capitalista.

PROLETÁRIOS!

Em 19 de Julho os proletários de Barcelona, apenas com suas mãos vazias, esmagaram o ataque dos batalhões de Franco, armados até os dentes. Agora, nas jornadas de Maio de 1937, quando sobre as calçadas caíram vítimas bem mais numerosas que em Julho, quando rechaçaram a Franco, foi o governo antifascista - que inclui os anarquistas e os militantes do POUM, que foi indiretamente solidário - quem atiçou a turba das forças repressivas contra os trabalhadores.

Em 19 de Julho, os proletários de Barcelona foram uma força invencível. Sua luta de classe, liberada das amarras do Estado burguês, encontra eco nos regimentos de Franco, desagrega-os e desperta o instinto de classe dos soldados: é a greve que trava os fuzis e canhões de Franco e rompe a sua ofensiva.

A história só registra intervalos fugazes durante os quais o proletariado pode adquirir sua total autonomia em relação ao Estado capitalista. Poucos dias depois de 19 de Julho, o proletariado catalão chega à encruzilhada: ou decide entrar na fase superior de sua luta com o propósito de destruir o Estado burguês, ou permite que o capitalismo reconstitua as teias de seu aparelho de dominação. Nesse preciso momento da luta, quando o instinto de classe já não é suficiente e no qual a consciência se transforma em fator decisivo, o proletariado não pode vencer se não dispuser do capital teórico, paciente e intensamente acumulado por suas frações de esquerda, transformadas em partidos por força dos acontecimentos. Se hoje em dia o proletariado espanhol vive submerso em tal tragédia, é por causa de sua falta de maturidade para forjar seu partido de classe: o único cérebro que pode dar-lhe a força para viver.

Na Catalunha, desde o 19 de Julho, os operários criaram de modo espontâneo seu próprio terreno de classe, os órgãos autônomos de sua luta, mas, imediatamente, surge o angustiante dilema: comprometer-se profundamente com a batalha política para a destruição do Estado capitalista e, desse modo, completar os êxitos econômicos e militares, ou deixar de pé a máquina opressora do inimigo e permitir-lhe, então, poder descaracterizar e liquidar as conquistas operárias.

As classes lutam com os meios que vem sendo impostos pelas situações e grau de tensão social. Diante de uma explosão da classe, o capitalismo não pode sequer pensar em recorrer aos meios clássicos da legalidade. O que o ameaça é a independência da luta proletária que direciona a outra fase revolucionária para a abolição da dominação burguesa. Por conseguinte, o capitalismo deve refazer a teia de seu controle sobre os explorados. Os fios dessa teia que antes eram a magistratura, a polícia, as prisões, transformam-se, na situação extrema de Barcelona, nos Comitês de Milícias, as indústrias socializadas, os sindicatos operários gerentes dos setores essenciais da economia, etc.

Assim, na Espanha, a História esboça novamente o problema que na Itália e na Alemanha havia sido resolvido mediante o esmagamento do proletariado: os operários conservam para sua classe os instrumentos que foram criados no calor da luta, desde que os orientem contra o Estado burguês. Os operários estão armando os seus futuros executores se, faltando-lhes força para destruir o inimigo, deixam-se cair novamente em sua rede de dominação.

A milícia operária de 19 de Julho é um organismo proletário. A "milícia proletária" da semana seguinte é um organismo capitalista adaptado à situação do momento. E para realizar seu plano contra-revolucionário, a burguesia pode contar com os Centristas, os Socialistas, a CNT, a FAI, o POUM, já que todos querem fazer crer aos operários que o Estado muda de natureza quando o pessoal que o dirige muda de cor. Escondido nas pregas da bandeira vermelha, o capitalismo afia pacientemente a espada da repressão que, em 4 de Maio já está preparada com todas as forças que, em 19 de Julho, haviam rompido a espinha de classe do proletariado espanhol.

O filho de Noske e da Constituição de Weimar é Hitler, Mussolini é o filho de Giolitti e do "controle da produção"; o filho da frente antifascista espanhola, das "socializações", das "milícias proletárias", é a matança de Barcelona de Maio de 1937.

E, sozinho, o proletariado russo só respondeu à queda do czarismo com Outubro de 1917 porque sozinho pôde construir seu partido de classe através do trabalho das frações de esquerda.

PROLETÁRIOS!

Foi à sombra de um governo de Frente Popular que Franco pôde preparar seu ataque. Foi através do caminho da conciliação que Barrios tentou formar em 19 de Julho um ministério que pudesse realizar o programa conjunto do capitalismo espanhol, sob a direção de Franco ou sob a direção mista de direita e esquerda fraternalmente unidas. Mas a revolta operária de Barcelona, de Madri, das Astúrias, obrigou o capitalismo a desdobrar seu Ministério, a distinguir claramente as funções unidas por indissociável solidariedade de classe, entre o agente republicano e o agente militar.

Ali onde Franco não conseguiu impor sua vitória imediata, o capitalismo chama aos operários para que o sigam na "luta contra o fascismo". Sangrenta emboscada que os operários pagaram com milhares de vidas ao crer que, sob a direção do governo republicano, poderiam esmagar o filho legítimo do capitalismo: o fascismo. Partiram para as colinas de Aragão, as montanhas de Guadarrama e das Astúrias para lutar a favor da vitória da guerra antifascista.

Ainda uma vez mais, como em 1914, o sacrifício de grande número de proletários é o caminho pelo qual a História sublinha em caracteres sangrentos a oposição irredutível entre Burguesia e Proletariado.

As frentes militares foram uma necessidade imposta pelas circunstâncias? Não! Foram uma necessidade para o capitalismo com o propósito de sitiar e destruir os operários! O 4 de Maio de 1937 é a prova evidente que, depois de 19 de Julho, o proletariado tinha que combater contra Companys e Giral, tal qual contra Franco. As frentes militares não podiam senão cavar a cova dos trabalhadores porque representaram as frentes de guerra do capitalismo contra o proletariado. Contra essa guerra, os proletários espanhóis, assim como seus irmãos russos que lhes deram o exemplo de 1917, somente podiam responder desenvolvendo o derrotismo revolucionário nos dois campos da burguesia, o republicano e o "fascista". Transformando a guerra imperialista em guerra civil com o propósito de alcançar a destruição total do Estado burguês.

A fração italiana de esquerda foi apoiada, em seu trágico isolamento, unicamente pela solidariedade da Liga dos Comunistas Internacionalistas da Bélgica, que acabara de fundar a fração belga da esquerda comunista internacional. Somente essas duas correntes fizeram soar o alarme enquanto se proclamava, por todos os lugares, a necessidade de salvaguardar as conquistas da Revolução, de vencer Franco para melhor derrotar a Largo Caballero numa segunda etapa.

Os últimos eventos de Barcelona confirmam tragicamente nossa tese inicial e demonstram a crueldade, somente comparável à de Franco, com que a Frente Popular, ladeada pelos anarquistas e pelo POUM, caiu sobre os operários insurgentes do 4 de Maio.

As vicissitudes das batalhas militares constituíram-se em outras tantas oportunidades para o governo reforçar seu domínio sobre a classe oprimida. Não havendo uma política proletária de derrotismo revolucionário, tanto os êxitos como as derrotas militares do exército republicano foram unicamente as etapas da sangrenta derrota de classe dos operários. Em Badajoz, em Irún, em San Sebastián,... a República de Frente Popular oferece sua contribuição à matança articulada do proletariado, ao mesmo tempo que integra as fileiras da União Sagrada, já que é necessário um exército disciplinado e centralizado para ganhar a guerra antifascista. A resistência de Madri facilita, ao contrário, a ofensiva da Frente Popular capaz agora de desfazer-se de seu criado de ontem, o POUM, para melhor preparar o ataque de 4 de Maio.

Paralelamente, em todos os países, a guerra de extermínio levada a cabo pelo capitalismo espanhol, alimenta a repressão burguesa internacional, e os assassinatos fascistas e "antifascistas" da Espanha acompanham os assassinatos de Moscou e de Clichy. Também os traidores reúnem os operários de Bruxelas ao redor do capitalismo democrático, sobre o altar sangrento do antifascismo, por ocasião das eleições de 11 de Abril de 1937.

"Armas para a Espanha": esse foi o principal slogan que ressoou nos ouvidos dos proletários. Armas que dispararam contra seus irmãos de Barcelona. A Rússia Soviética, ao colaborar com o suprimento de armas para a guerra antifascista, também serviu à estrutura capitalista para a recente carnificina. Sob as ordens de Stálin, o qual propaga revela sua raiva anticomunista em 3 de Março, o PSUC da Catalunha toma a iniciativa da matança.

Outra vez mais, como em 1914, os operários utilizam as armas para matarem-se uns aos outros, em vez de utilizá-las para a destruição do regime de opressão capitalista.

PROLETÁRIOS!

Os operários de Barcelona tomaram novamente, em 4 de Maio de 1937, o caminho que tinham iniciado em 19 de Julho, e do qual o capitalismo os havia separado apoiando-se nas múltiplas forças da Frente Popular. Provocando a greve por todos os lados, inclusive nos setores apresentados como "conquistas da revolução", enfrentaram o bloco republicano-fascista do capitalismo. E o governo republicano respondeu com a mesma selvageria com que atuou Franco em Badajoz e Irún. Se o Governo de Salamanca não explorou esta comoção da frente de Aragão para impulsionar um ataque, é porque intuiu que seu cúmplice de esquerda executava admiravelmente seu papel de algoz do proletariado.

Exaurido por dez meses de guerra, de colaboração de classe, da CNT, da FAI, do POUM, o proletariado catalão acaba por sofrer uma terrível derrota. Mas essa derrota também é uma fase com relação à vitória de amanhã, um momento de sua emancipação, porque representa o atestado de óbito de todas as ideologias que permitiram ao capitalismo a preservação de seu domínio, apesar do sobressalto enorme de 19 de Julho.

Não! Os proletários tombados em 4 de Maio não podem ser reivindicados por nenhuma das correntes que, em 19 de Julho, empurraram-nos fora de seu terreno de classe para lançá-los no abismo do antifascismo.

Os proletários tombados pertencem ao Proletariado e somente ao Proletariado. Representam as membranas do cérebro da classe operária mundial, do partido de classe da revolução comunista.

Os operários do mundo inteiro inclinam-se diante dos mortos e reivindicam seus corpos contra todos os traidores, tanto os de ontem como os de hoje. O proletariado do mundo inteiro saúda a Berneri como um dos seus e sua imolação no altar do ideal anarquista é também um protesto contra uma escola política que desmoronou durante os acontecimentos da Espanha. Porque sob a direção de um governo com participação anarquista, a polícia repetiu no corpo de Berneri, o feito de Mussolini sobre o corpo de Matteotti!

O massacre de Barcelona é um sinal precursor de repressões ainda mais sangrentas contra todos os operários da Espanha e do mundo inteiro. Mas também é um sinal precursor das tempestades sociais que, amanhã, desabarão sobre o mundo capitalista.

O capitalismo, em apenas dez meses, teve que esgotar os recursos políticos com os quais contava para demolir o proletariado, interpondo obstáculos ao trabalho que este cumpria para fundar seu partido de classe, arma para sua própria emancipação e para a construção da sociedade comunista. Centrismo e Anarquismo, unindo-se à Social-democracia, levaram a termo sua evolução na Espanha, da mesma forma que a guerra reduziu ao estado de cadáver a Segunda Internacional, depois de 1914.

Na Espanha, o capitalismo provocou uma guerra de dimensões internacionais, a guerra entre fascismo e antifascismo que, através da forma extrema da luta armada, anuncia uma tensão aguda das relações de classe na arena internacional.

Os mortos de Barcelona preparam o terreno para a construção do partido da classe operária. Todas as forças políticas que chamaram os operários à luta em favor da revolução, comprometendo-os numa guerra capitalista, todas sem exceção, mudaram de trincheira e diante dos operários do mundo inteiro abriu-se o horizonte luminoso no qual os operários de Barcelona escreveram, com seu próprio sangue, a lição de classe já traçada pelo sangue dos mortos de 1914-1918: A luta dos operários somente é proletária sob a condição de dirigir-se contra o capitalismo e seu Estado; serve aos interesses do inimigo se não se dirige contra este a cada momento, em todos os campos, em todos os organismos proletários que as circunstâncias geram.

O proletariado mundial lutará contra o capitalismo inclusive quando este passar para a fase de repressão de seus lacaios de ontem. Porque é a classe operária, e jamais seu inimigo de classe, que tem a responsabilidade de ajustar contas em nome dos que expressaram um momento de sua luta para a emancipação da escravidão capitalista.

A batalha infernal que o capitalismo espanhol iniciou contra o proletariado abre um novo capítulo internacional na vida das frações de todos os países. O proletariado mundial, que deve continuar sua luta contra os "construtores" de Internacionais artificiais, sabe que somente pode fundar a Internacional proletária através da sublevação mundial da relação de classes que abra o caminho da Revolução comunista, e unicamente desta forma. Diante da frente de guerra da Espanha, que anuncia o aparecimento de tormentas revolucionárias em outros países, o proletariado mundial sente que chegou o momento de tecer os primeiros laços internacionais das frações da esquerda comunista.

PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES!

Sua classe é invencível, representa o motor da revolução histórica: a prova disso são os acontecimentos da Espanha, já que é a sua classe, unicamente, a que representa o centro nevrálgico da luta que convulsiona o mundo inteiro!

A derrota não deve desencorajá-los: dessa derrota deve-se tirar os ensinamentos para a vitória de amanhã!

Confiem em seus princípios de classe, reconstruam sua unidade de classe além das fronteiras, contra todas as mistificações do inimigo capitalista!

De pé para a luta revolucionária em todos os países!

Viva os proletários de Barcelona que viraram uma nova página sangrenta no livro da Revolução Mundial!

Avante, para a construção do Comitê Internacional das frações para promover a formação das frações de esquerda em todos os países!

Levantemos a bandeira da Revolução Comunista, que os algozes fascistas e antifascistas não possam impedir os proletários vencidos de transmiti-la a seus herdeiros de classe!

Viva a Revolução Comunista no mundo inteiro!

Estrutura e funcionamento das organizações revolucionárias

  • 8016 leituras
 

I

A estrutura que se dá a organização dos revolucionários corresponde a da função que assume na classe operária. Visto que esta função comporta tarefas válidas em todas etapas do movimento operário e também tarefas mais específicas em tal ou qual época deste, a organização dos revolucionários tem características mais constantes e características mais circunstanciais, mais determinadas pelas condições históricas em que surge e se desenvolve.

Entre as características mais constantes, podemos determinar:

a) a existência de um programa válido para toda organização. Este programa ao ser a síntese da experiência do proletariado - do qual a organização revolucionária é parte - e porque é emanação de uma classe que não tem somente uma existência presente, como todo um futuro histórico:

  • expressa esse futuro através da formulação dos objetivos da classe e do caminho a seguir para alcançá-los.
  • reúne as posições essenciais que a organização deve defender na classe,
  • serve de base para a adesão à organização de revolucionários;

 b) seu caráter unitário, expressão da unidade do seu programa e de unidade da classe da qual emana, o que na prática se traduz na centralização da sua estrutura,

Entre as características mais circunstanciais podemos assinalar:

a) caráter mais ou menos amplo da sua extensão, segundo que se situe nos balbuceios do movimento operário (sociedades secretas, seitas), na sua etapa de pleno desenvolvimento capitalista (partidos de massa nas Iª e IIª Internacional) ou na sua etapa de enfrentamento com o capitalismo para a destruição deste (período aberto com a revolução de 1917 e a fundação da Internacional comunista) e impõe a organização critérios de seleção mais estritos e mais restritivos

b) no plano em que se expressa mais diretamente sua unidade programática e orgânica: o nacional quando a classe operária no seio do capitalismo em pleno desenvolvimento se via confrontada a tarefas mais específicas segundo os países onde levava à cabo suas lutas (partidos da IIª Internacional); ou internacional quando a única tarefa colocada na ordem do dia que resta ao proletariado é, a revolução mundial.

II

O modo de organização da CCI participa diretamente desses elementos;

  • unidade programática e orgânica em escala mundial.,
  • organização "restringida" com critérios de adesão estritos,

Entretanto, o caráter unitário a nível internacional é muito mais forte na CCI porque, contrariamente às primeiras organizações nascidas no período de decadência (Internacional Comunista, Frações de Esquerda), não tem nenhuma ligação orgânica com as organizações procedentes da IIª Internacional onde a estruturação por nações estava muito mais marcada. Por isso a CCI surgiu desde o início como organização internacional suscitando o aparecimento progressivo de secções territoriais e não como resultado de um processo de aproximação de organizações já constituídas a nível nacional.

Este elemento mais "positivo" resultante dessa ruptura orgânica está em contrapartida compensado por toda uma série de debilidades relacionadas com a dita ruptura e que consideram a compreensão das questões de organização. Debilidades que não são exclusivas da CCI, mas que afetam ao conjunto do meio revolucionário. Estas debilidades, que tem se manifestado novamente na CCI, motivaram a celebração de uma Conferência Internacional e o presente texto.

III

No centro das incompreensões que tem se manifestado na CCI está a questão da centralização. A centralização não é um princípio abstrato ou facultativo da estrutura da organização. E a concretização do seu caráter unitário, de que é uma só e única organização a que toma posição e atua na classe. E nas relações entre as diferentes partes da organização e o todo, este é sempre prioritário. Não pode existir diante da classe uma posição política ou uma concepção da intervenção particular de tal ou qual secção territorial ou local. Estas devem conceber-se sempre como partes de um todo. As análises e posições que se expressam na imprensa, panfletos, reuniões públicas, discussões com os simpatizantes, os métodos empregados tanto na nossa proposta como na nossa vida interna são os da organização no seu conjunto, embora existam desacordos sobre tal ou qual ponto, em tal ou qual local, em tal ou qual militante e embora a organização torne públicos os debates políticos que se desenrolam no seu seio. Deve banir a concepção segundo a qual tal ou qual parte da organização possa adotar diante da classe ou diante a organização posições ou atitudes que lhe parecem corretas no lugar das da organização que acha errôneas, pois:

  • se a organização vai por um caminho equivocado, a responsabilidade dos membros que acreditam defender uma posição correta não é de se salvar, mas de levar a efeito uma luta dentro da organização para que volte a um "bom caminho"[1];
  • essa concepção conduz a que uma parte da organização impunha arbitrariamente sua própria posição a toda organização sobre tal ou qual aspecto do trabalho (local ou específico).

Na organização, o todo não é a soma das partes. Estas recebem um mandato para cumprir determinadas atividades particulares (publicações territoriais, intervenções locais...), sendo responsáveis frente ao conjunto do mandato recebido.

IV

O momento culminante no qual se expressa com toda sua amplitude a unidade da organização é o seu Congresso Internacional. Nele se define, enriquece ou retifica o programa da CCI, se estabelece, precisa, modifica as suas modalidades de organização e funcionamento, se adota análises e orientações de conjunto, se faz um balanço das suas atividades anteriores e se elabora suas perspectivas de trabalho para o futuro. Por isso a organização no seu conjunto deve assumir com o maior cuidado e energia a preparação do Congresso. Por isso também, as orientações e decisões dos Congressos devem servir de referencia permanente para a vida da organização.

V

Entre dois congressos a unidade e a continuidade da organização se expressam na existência de órgãos centrais eleitos pelo congresso e responsáveis perante ele. E nos órgãos centrais repousa a responsabilidade (segundo seu nível de competência; internacional ou territorial) de:

  • representar a organização frente o exterior,
  • tomar posição quando seja necessário com base nas orientações definidas no congresso,
  • coordenar e orientar o conjunto de atividades da organização,
  • zelar pela qualidade da intervenção, especialmente da imprensa,
  • animar e estimular a vida interna da organização principalmente mediante a colocação em circulação de boletins de discussão internos e com tomadas de posição sobre os debates quando necessário,
  • gerir os recursos financeiros e os materiais da organização,
  • colocar em funcionamento todas as medidas necessárias para garantir a segurança da organização e sua amplitude para cumprir suas tarefas,
  • convocar os congressos.

O órgão central é uma parte da organização e como tal é responsável perante ela quando esta se reúne em Congresso. Entretanto, é uma parte que tem como função específica expressar e representar o conjunto da organização, pelo que suas decisões e posições têm primazia sempre sobre qualquer das demais partes em separado.

Contrariamente a certas concepções, notadamente as chamadas "leninistas", o órgão central é um instrumento da organização e não ao contrário. Não é o cimo de uma pirâmide segundo uma visão hierárquica e militar da organização dos revolucionários.

A organização não está formada por um órgão central mais os militantes, e sim como um tecido firme e unido no seio do qual se inserem e vivem todos os seus componentes. É mais certo conceber o órgão central como o núcleo de uma célula que coordena o metabolismo de uma entidade viva.

Neste sentido o conjunto da organização está concernido de forma constante pelas atividades dos seus órgãos centrais, os quais tem como mandato fazer informes regulares das suas atividades. Embora seja unicamente perante o Congresso onde prestam contas, os órgãos centrais têm de manter a maior atenção quanto a vida da organização.

Segundo as necessidades e as circunstâncias, os órgãos centrais podem designar no seu seio subcomissões que têm a responsabilidade de executar e fazer cumprir as decisões adotadas nas reuniões plenárias dos órgãos centrais, assim como cumprir as tarefas que sejam necessárias entre duas reuniões plenárias (especialmente as tomadas de posição).

Estas subcomissões são responsáveis perante as reuniões plenárias. Mais geralmente, as relações estabelecidas entre o conjunto da organização e os órgãos centrais são válidas igualmente entre esses e suas subcomissões permanentes.

VI

A vontade da maior unidade possível no seu seio da organização preside igualmente da definição dos mecanismos que permitem as tomadas de posição e a nomeação dos órgãos centrais. Não existe um mecanismo ideal que garanta a melhor opção das decisões que venha tomar, e nas orientações que adotar e os militantes que eleger para os órgãos centrais. Entretanto, o voto e a eleição são os que permitem garantir melhor tanto a unidade da organização como a maior participação possível do conjunto desta na sua própria vida.

No geral, as decisões em todos os níveis (congressos, órgãos centrais, secções locais) se tomam (quando não há unanimidade) pela maioria simples. Entretanto certas decisões que possam ter uma repercussão direta na unidade da organização, (modificação da Plataforma ou dos Estatutos, integração ou exclusão de militantes) são tomadas por uma maioria mais forte que a simples (3/4, 3/5....)

E, pelo contrário, por aquela mesma vontade de unidade, uma minoria da organização pode provocar a convocação de um Congresso extraordinário a partir do momento em que é significativa (por exemplo 2/5 partes): como regra geral incube ao Congresso decidir sobre as questões essenciais e a existência de uma forte minoria que exija a sua realização é indício que há problemas importantes na organização.

Finalmente, é evidente que o voto não tem sentido mais que se os membros que estão minoria aplicam as decisões adotadas e que, portanto já são as da organização.

Na eleição dos órgãos centrais é necessário tomar em conta três elementos;

  • a natureza das tarefas que haverão de cumprir esses órgãos,
  • a amplitude dos candidatos para essas tarefas,
  • sua capacidade para trabalhar de forma coletiva.

Por isso pode dizer-se que a assembléia (congressos e demais) que deve designar um órgão central elege a uma equipe: é por isso que em geral o órgão central que está findando o mandato faz uma proposta de candidatos. Entretanto, cabe a esta assembléia (e é direito de todo militante) propor outros candidatos se o considera necessário e, em todo caso, eleger individualmente os membros dos órgãos centrais. Só este tipo de eleição permite a organização dotar-se de órgão nos quais tenha a máxima confiança.

O órgão central tem a responsabilidade de que se aplique e de defender as decisões e orientações adotadas pelo Congresso que o elegeu. Nesse sentido, é oportuno que figure no seu seio uma forte proporção de militantes que, no congresso haja se pronunciado em favor dessas decisões e orientações. Isto não quer dizer que somente os que tenham defendido no congresso as posições majoritárias, posições que se converteram as da organização, possam tomar parte do órgão central.

Os três critérios definidos acima são válidos quaisquer que sejam as posições defendidas nos debates por tal ou qual candidato. Isso não quer dizer, entretanto, que deva existir um princípio de representação - por exemplo, proporcional - das posições minoritárias no órgão central. Essa é uma prática corrente nos partidos burgueses, particularmente nos partidos social-democratas cuja direção está constituída por representantes das diferentes correntes ou tendências em proporção aos votos obtidos no Congresso.

Semelhante forma de designação do órgão central corresponde ao fato de que, em uma organização burguesa, a existência de divergências resulta da defesa de tal ou qual orientação de gestão do capitalismo, ou, mais claramente, a defesa dos interesses de tal ou qual setor da classe dominante ou de tal ou qual camarilha, orientações e interesses que se mantêm de forma duradoura e que tem de ser conciliadas mediante uma "participação eqüitativa" de postos entre os seus representantes. Nada disso ocorre em uma organização comunista onde as divergências não expressam de maneira alguma a defesa de interesses materiais, pessoais ou de grupos de pressão particulares, mas que são a tradução de um processo vivo e dinâmico de clarificação dos problemas que se colocam à classe e que tendem por definição a ser superados pelo aprofundamento da discussão e à luz da experiência. Uma representação estável, permanente e proporcional das diferentes posições surgidas nos diversos pontos da ordem do dia de um Congresso, daria às costas ao fato de que os membros dos órgãos centrais:

  • tem como primeira responsabilidade aplicar as decisões e as orientações do congresso,
  • podem perfeitamente mudar de posição pessoal (num sentido como em outro) com a evolução do debate.

VII

Tem que acabar com o uso dos termos "democrático" e "orgânico" para qualificar a centralização das organizações revolucionárias:

  • porque não faz avançar em nada a compreensão correta do centralismo;
  • porque esses termos levam em si as práticas que, na história têm legitimado.

Com efeito, o "centralismo democrático" (termo alcunhado por Lênin) está marcado pelo selo do stalinismo que o há empregado para mascarar e encobrir o processo de esmagamento e liquidação de toda vida revolucionária nos partidos da internacional; processo no qual, por outra parte, Lênin tem uma grande responsabilidade por ter pedido e obtido no Xº Congresso do PCUS (1921) a proibição das frações, que erroneamente estimava necessária, inclusive provisoriamente, diante das terríveis dificuldades que atravessava a revolução.

Por outra parte, a reivindicação de um "verdadeiro centralismo democrático" tal como era praticada no partido Bolcheviques, não tem sentido tão pouco na medida em que:

  • tem que rechaçar algumas concepções defendidas por Lênin (sobre tudo em Um passo adiante, dois passos atrás), em relação com o caráter hierárquico e "militar" da organização, e que tem sido explorado pelo estalinismo para justificar seus métodos;
  • o termo "democrático" em si não é o mais apropriado tanto etimologicamente ("poder do povo") como no sentido que tomou no capitalismo, que tem feito dele um fetiche formalista destinado a mascarar e fazer aceitar a dominação da burguesia sobre a sociedade.

De certo modo, o termo "orgânico" (devido a Bordiga) seria mais correto para qualificar a natureza do centralismo que existe na organização dos revolucionários. Entretanto, o uso que tem feito dele pela corrente bordiguista para justificar um método de funcionamento que exclui todo controle dos órgãos centrais e da sua própria vida pelo conjunto da organização, o desqualifica e tem que rechaçá-lo.

Com efeito, para os bordiguistas, o fato - em si mesmo justo - de que uma maioria à favor de uma posição não garanta que esta seja correta, ou que a eleição de órgãos centrais não seja um mecanismo perfeito que os proteja de toda degeneração, é utilizado para defender uma concepção de organização onde o voto e a eleição são negados. Nesta concepção, as posições corretas dos "chefes" se impõem "por si mesmas" através de um processo chamado "orgânico", porém que na prática, supõe confiar ao "centro" a responsabilidade de decidir só e sobre todas as coisas, de encerrar todo debate, e leva a esse "centro" a aliar-se com as posições de um "chefe histórico" que teria uma espécie de infalibilidade divina. Posto que combatem qualquer forma de espírito religioso e místico, os revolucionários não podem substituir o pontífice de Roma pelo de Nápoles ou Milão[2].

Repetimos que o voto e a eleição, por muito imperfeitos que sejam, são, nas condições atuais, o melhor meio para garantir um máximo de unidade e de vida na organização.

VIII

Contrariamente à visão bordiguista, a organização dos revolucionários não pode ser "monolítica". A existência de divergências no seu seio é a manifestação de que é um órgão vivo que não tem respostas pré-fabricadas para aportar imediatamente aos problemas que surgem na classe. O marxismo não é um dogma nem um catecismo. É o instrumento teórico de uma classe que, através das suas experiências e na perspectiva do seu objetivo histórico, avança progressivamente, com altos e baixos, para uma tomada de consciência que é a condição indispensável para sua emancipação. Como toda reflexão humana, a que preside o desenvolvimento da consciência proletária não é um processo linear e mecânico, mas contraditório e crítico, que coloca necessariamente a discussão e a confrontação de argumentos. De fato, o famoso "monolitismo" ou a famosa "invariância" dos bordiguistas é um engodo (isto se verifica freqüentemente nas tomadas de posição desta organização e de suas diversas secções): seja a organização está completamente esclerosada e já não pode participar na vida da classe, ou seja não é monolítica e suas posições não são invariáveis.

IX

Se a existência de divergências no seio da organização é sinal de que está viva, só o respeito a certas regras na discussão dessas divergências permite que estas sejam uma verdadeira contribuição ao reforçamento da organização e a melhora das tarefas, para as quais a classe lhe a criado.

Podemos enumerar algumas dessas regras:

  • reuniões regulares das secções locais cuja ordem do dia está composta pelas principais questões debatidas no conjunto da organização: de nenhuma maneira o debate pode ser abafado;
  • circulação a mais ampla possível das diferentes contribuições feitas no seio da organização utilizando os instrumentos previstos para isso (boletins internos);
  • rechaço, em conseqüência, de correspondências secretas e bilaterais, que, longe de favorecer a claridade do debate, não podem mais que obscurecê-lo ao provocar mal entendidos, desconfiança e tendência em formar uma organização dentro da organização;
  • a minoria tem de respeitar a indispensável disciplina organizativa (como já temos visto no ponto III);
  • rechaço de toda medida disciplinar ou administrativa da organização frente a membros que hajam expressado desacordos; de igual maneira que a minoria tem de saber comportar-se como minoria no seio da organização, a maioria deve saber ser uma maioria e, em particular, não abusar pelo fato de que a sua posição é a da organização; isto levaria a aniquilar o debate de um modo ou de outro, por exemplo, obrigando aos membros da minoria a serem porta-vozes de posições das quais não tenha adesão;
  • o conjunto da organização está interessado em que a discussão (embora as divergências sejam de princípios, o qual não poderia terminar senão em ruptura orgânica) seja levada, o mais longe possível e o mais claramente possível. Tanto a minoria como a maioria tem de fazer o possível (sem por isso paralisar ou debilitar as tarefas da organização) para convencer-se mutuamente da validade das suas respectivas análises ou, pelo menos, permitir que se consiga uma claridade maior sobre a natureza e o alcance desses desacordos.

Na medida em que os debates em curso na organização concernem ao conjunto do proletariado, é conveniente que esta, seja levada ao exterior, respeitando as condições seguintes:

  • os debates se refiram a questões políticas gerais e têm alcançado uma maturidade suficiente para que sua publicação seja uma contribuição real para a tomada de consciência da classe operária;
  • o lugar que ocupem os debates não compromete o equilíbrio geral das publicações;
  • é a organização como um todo que decide e toma à sua responsabilidade a publicação em função dos critérios que orientam a publicação de qualquer artigo na imprensa: clareza e forma de redação, interesse que representam para o conjunto da classe operária. Deve prescrever-se a publicação de textos fora dos órgãos previstos para isso, por iniciativa "privada" de alguns membros da organização. Tão pouco não existe nenhum "direito" formal de ninguém na organização (indivíduos ou tendência) para publicar um texto se os órgãos responsáveis das publicações não vêem sua utilidade ou sua oportunidade.

X

As divergências existentes na organização podem acabar plasmando-se em formas organizadas de posições minoritárias. Diante dessa situação, nenhuma medida do tipo administrativa (como a proibição destas formas organizadas) poderá substituir o máximo aprofundamento possível da discussão porém também é conveniente que este processo seja levado de maneira responsável, o que supõe:

  • que os desacordos estabelecidos de forma organizada se baseiem em uma posição positiva e coerente, e não em um monte heterogêneo de pontos em oposição e recriminações;
  • que a organização seja capaz de compreender a natureza deste processo, que compreenda notadamente a diferença entre uma tendência e uma fração.

A tendência é antes de tudo a expressão de vida da organização, pelo fato de que o pensamento não se desenvolve nunca em linha reta e sim mediante um processo contraditório de discussão e confrontação das idéias. Assim, uma tendência está geralmente destinada a reabsorver-se enquanto a questão colocada está suficientemente clara para que o conjunto da organização possa estabelecer uma análise única, ou seja, como resultado da discussão, ou pelo surgimento de novas coordenadas que afirmam uma visão e rechaçam a outra.

Por outra parte, uma tendência se desenvolve essencialmente sobre pontos que condicionam a orientação e a intervenção da organização. Por isso, sua constituição não tem como ponto de partida questões de análises teóricas; esta concepção da tendência levaria a um enfraquecimento da organização e a um parcelamento extremo da energia militante.

A fração é a expressão do fato que a organização está em crise pelo aparecimento no seu seio de um processo de degeneração e de capitulação diante do peso da ideologia burguesa. Contrariamente à tendência que só se baseia em divergências na orientação frente a questões circunstanciais, a fração se baseia em divergências programáticas, divergências cuja solução só pode ser a exclusão da posição burguesa, ou o abandono da organização por parte da fração comunista. Na medida em que a fração surge pelo aparecimento de suas posições incompatíveis no seio de uma mesma organização, tende a tomar uma forma organizada com seus próprios órgãos de propaganda.

Tendo em conta que a organização da classe não tem nenhuma garantia contra a degeneração, o papel dos revolucionários é lutar em todos os momentos pela eliminação das posições burguesas que possam desenvolver no seu seio. Quando se encontram em minoria nesta luta, sua tarefa é a de organizar-se em fração para ganhar o conjunto da organização para as posições comunistas e excluir a posição burguesa. Quando esta luta se torna estéril devido o abandono do terreno proletário pela organização - geralmente em um período de refluxo da classe - a tarefa consiste em ser a ponte para uma reconstrução do partido de classe que só pode surgir em uma fase de retomada histórica das lutas.

Em qualquer caso, a preocupação que deve guiar os revolucionários é a que existe no seio da classe em geral, a de não desgastar as débeis energias revolucionárias de que dispõe a classe, e velar sem trégua pela manutenção e desenvolvimento do instrumento tão indispensável mas também tão frágil que a organização de revolucionários é.

XI

O fato de que a organização tenha de abster-se do uso de qualquer meio administrativa ou disciplinar diante dos desacordos, não quer dizer que tenha de privar-se deles em todas as circunstâncias. Pelo contrário, é necessário que recorra a esses meios, suspensão temporária ou exclusão definitiva, quando se defronta com atitudes, comportamentos ou atos que vão no sentido de criar um perigo para a sua existência, sua segurança ou sua capacidade para cumprir suas tarefas. Isto se aplica tanto aos comportamentos no seio da organização como os comportamentos fora da organização que possam ser incompatíveis com o pertencimento a uma organização comunista.

É conveniente que a organização disponha das medidas necessárias para sua proteção diante dos intentos de infiltração ou destruição por parte dos órgãos do estado capitalista ou por parte de elementos que, sem estar diretamente manipulados por esses órgãos, tem um comportamento geral que lhes favoreça no seu trabalho.

Quando esses comportamentos são evidentes, é dever da organização tomar medidas não só a favor da sua própria segurança, como também em favor da segurança das demais organizações comunistas.

XII

Uma das condições fundamentais da capacidade de uma organização para cumprir suas tarefas na classe é uma compreensão correta, no seu seio, das relações que se estabelecem entre militantes e a organização. Esta é uma questão particularmente difícil de compreender na nossa época devido ao peso da ruptura orgânica com as frações do passado e da influência do elemento estudantil nas organizações revolucionárias depois de 1968, que tem favorecido o ressurgimento de uma das chagas do movimento operário no século XX, o individualismo.

De maneira geral, as relações que se estabelecem entre os militantes e a organização se baseiam nos mesmos princípios que os tratados anteriormente a respeito das partes e do todo.

Com maior precisão, cabe afirmar sobre esta questão os pontos seguintes:

  • a classe operária não faz surgir militantes revolucionários e sim organizações revolucionárias: não existem relações diretas entre os militantes e a classe. Os militantes participam do combate da classe enquanto se convertem em membros e tomam à sua responsabilidade as tarefas da organização. Não tem nenhum reconhecimento particular que conquistar frente a classe ou a história. O único "reconhecimento" que lhes importa é o da classe e da organização com que ela se dotou.
  • a mesma relação que existe entre um organismo particular (grupo ou partido) e a classe existe também entre a organização e o militante. Da mesma maneira que a classe não existe para corresponder as necessidades das organizações comunistas, estas não existem para resolver os problemas do individuo militante. A organização não é o produto das necessidades do militante. É militante na medida em que se tem compreendido e aderido às tarefas e a função da organização.
  • nessa ordem de idéias, a divisão de tarefas e de responsabilidades dentro da organização não tem como finalidade a "realização" dos indivíduos militantes. As tarefas devem ser repartidas de modo que a organização possa funcionar como um todo de maneira ótima. Se a organização vai na medida do possível por um bom estado da cada um dos seus membros, é antes de tudo pelo seu próprio interesse de organização. Isto não quer dizer que se ignore as circunstâncias individuais do militante e dos seus problemas, sim que o ponto de partida e de chegada são a capacidade da organização para cumprir suas tarefas na luta de classes.
  • Não existe na organização tarefas "nobres"e tarefas "secundárias" ou menos "nobres". O trabalho de elaboração teórica e a realização de tarefas práticas, o trabalho no seio dos órgãos centrais e o trabalho específico nas secções locais, são de igual importância para a organização e por isso não podem estar hierarquizadas (é o capitalismo que estabelece tais hierarquias). A idéia segundo a qual a nomeação de um militante para um órgão central seria "um ascenso" para ele, uma "honra" ou um "privilégio", deve ser totalmente rechaçada como idéia burguesa que é. A mentalidade de "carrierismo" deve ser totalmente proscrita da organização por ser algo totalmente oposto a entrega desinteressada que é uma das características dominantes da militância comunista.
  • se é certo que existe desigualdades de capacidade entre indivíduos e entre militantes, fomentadas e reforçadas pela sociedade de classes, o papel da organização não é de pretender aboli-las, como assim acreditavam as sociedades utopistas. A organização deve desenvolver ao máximo a formação e as capacidades políticas dos seus militantes como condição para seu próprio fortalecimento, porém nunca se pode colocar o problema em termos nem de uma formação escolar individual de seus membros, nem de uma igualdade na sua formação. A verdadeira igualdade que pode existir entre militantes é a que consiste em que cada um deles dê o máximo do que possa dar para a vida da organização ("de cada um segundo suas capacidades", citação de Saint Simon, recolhida por Marx). A verdadeira "realização" dos militantes, enquanto militantes, consiste em fazer tudo o que lhes incumbe para que a organização possa cumprir com as tarefas para as quais lhe fez surgir a classe;
  • o conjunto desses elementos significa que o militante não faz um "investimento" pessoal na organização da qual espere dividendos ou que poderia retirar se for sair. Assim pois, tem que proibir absolutamente todas as práticas de "recuperação" de material ou de fundos da organização, mesmo que tendo em vista constituir outro grupo político, pois são totalmente alheia ao proletariado;
  • da mesma maneira, "as relações que se travam entre os militantes da organização, se carregam necessariamente os estigmas da sociedade capitalista, não podem estar em flagrante contradição com o objetivo perseguido pelos revolucionários... por isso devem apoiar-se necessariamente sobre a solidariedade e a mútua confiança que são uns dos signos de pertencimento a uma organização da classe portadora do comunismo" (Plataforma da CCI)
Em 23 de outubro de 1981,

[1] Esta afirmação não vale só para a vida interna da organização. Não só considera as cisões que aconteceram (ou que poderão novamente acontecer) na CCI. No meio político proletário, sempre defendemos esta postura. Foi notadamente o caso a propósito da cisão de Aberdeen da Communist Workers' Organisation e da cisão do Nucleo Comunista Internazionalista com Programa Comunista. Tínhamos aí criticado o caráter prematuro das cisões fundadas sobre divergências que pareciam não fundamentais e que não tinham sido clarificadas por um debate interno aprofundado. De maneira geral, a CCI se opõe às "cisões" sem princípios fundadas sobre divergências secundárias (inclusive quando os militantes envolvidos na cisão se candidatam depois à CCI como foi o caso com Aberdeen). Qualquer cisão sobre questões secundárias resulta na realidade de uma concepção monolítica da organização que não tolera nenhuma discussão nem divergência no seu seio. É o caso típico das seitas.

[2] Sedes de partidos bordigusitas

França: Abaixo o Estado policial! Solidariedade de todos os trabalhadores com os estudantes espancados pela polícia

  • 4098 leituras
 

Na semana passada, o governo Sarkozy/Fillon/Hortefeux/Pécresse[1] e consortes - contando, além disso, com a silenciosa cumplicidade do PS (Partido Socialista) e de toda a "esquerda plural" - tem franqueado o limite da ignomínia. Depois de expulsar "manu militari" os imigrantes do território francês, invocando a política de "imigração seletiva", agora lhes tem chegado a vez os estudantes em greve que tem sido selvagemente espancados com cassetetes com uma feroz represão por sua oposição à lei sobre a privatização das universidades (a chamada LRU). Invocando a "democracia" e a "liberdade", alguns reitores universitários ao serviço do capital, têm tomado a iníqua decisão de chamar aos CRS[2] e outros corpos antidistúrbios para desalojar as faculdades universitárias ocupadas nas quais haviam se trancado os estudantes em Nanterre, Tolbiac, Rennes, Aix-Marseille; Nantes, Grenoble,...

A ordem do terror capitalista!

Essa repressão tem sido especialmente ignóbil em Rennes e, sobretudo em Nanterre.

Atrás da intervenção de guardas com cachorros, os reitores destas universidades permitiam que centenas de CRS entrassem pela força nos locais desalojando os piquetes de estudantes a pancadas e asfixiando-os com gases lacrimogêneos. Muitos destes estudantes acabaram sendo feridos ou detidos. Os CRS chegaram ao sadismo de arrancar-lhe os óculos (todo um símbolo dos que estudam e lêem livros!) a um estudante de Nanterre e quebrá-los. As mídias pró-Sarkozy e ao serviço do capital têm posto seu grão de areia na justificativa de tal repressão e na sua divulgação, dando a palavra aos reitores universitários. Em 13 de Novembro passado, no noticiário de "France 2" das 20 horas, pôde ouvir-se o reitor da Universidade de Nanterre justificar a repressão dizendo que "não se trata de uma luta, mas de delinqüência". E enquanto a esse outro histérico lacaio da burguesia que é o reitor da Universidade de Rennes teve o descaramento de afirmar que aqueles que se rebelam são "terroristas e kmers vermelhos[3]"!

Está claro que o antigo Primeiro Polícia da França, Nicolás o Pequeno (apelido popular de Sarkozy dadas suas pretensões napoleônicas) se dispõe hoje a fazer uma "limpeza à Kärcher"[4] das universidades francesas, e a estigmatizar os filhos dos trabalhadores como "baderneiros", "escória" ou "delinqüentes" (por empregar os termos do reitor de Nanterre). Enquanto a todos esses que se dedicam à "política" (a Sra. Pécrese, declarava em 7 de Novembro em LCI que "os encerros são sobretudo políticos"), se trata de "terroristas". No mesmo momento em que a ministra de Interior, Alliot-Marie, dava ordem a seus esbirros para que assaltassem as faculdades ocupadas, sua "companheira", a Sra. Pécrese declarava na TV, no cúmulo do cinismo, que ela queria "tranqüilizar os estudantes".

Trata-se de uma mensagem lançada aos trabalhadores tanto do setor público como do privado: quem ouse fazer greves "ilegais" e "impopulares" (e já está Tele-Sarkozy com sua matraca cotidiana para fazer que assim o sejam), quem como os trabalhadores da SNCF (ferrovias) ou da RATP (rede de transportes das proximidades de Paris) se atrevam a "tomar como reféns os usuários", serão denunciados como "terroristas" ou "perturbadores" da "ordem pública".

O verdadeiro "perigo amarelo" não vem dos supostos "kmeres vermelhos" da universidade de Rennes, mas dos "valentões", das hordas policiais que se dedicam a espancar e atacar com gases as jovens gerações do proletariado, com a inestimável colaboração desses denunciantes e puxa-sacos que são os reitores universitários. Os verdadeiros "terroristas", os autênticos criminosos, são os que nos governam, os que executam as ordens dessa classe de gângsteres que é a burguesia decadente. Sua "ordem" não é outra que o TERROR implacável do capital.

Porém estes ladrões não têm se contentado com enviar seus cachorros raivosos (e não necessariamente os de quatro patas) contra os estudantes grevistas. Em algumas universidades desalojadas pela polícia tem chegado inclusive à vagabundagem de "confiscar" as caixas de resistência dos estudantes. Assim aconteceu em 16 de novembro em Lyón. Enquanto que os CRS armados até os dentes se dedicavam a desocupar a faculdade, a Administração da Universidade se dedicava a roubar os utensílios de cozinha que os estudantes tinham trazido e a meter a mão na caixa em que os estudantes haviam reunido umas centenas de euros. Que comportamento mais vergonhoso e repugnante o destes pequenos gângsteres da burguesia, que nada tem que invejar evidentemente ao dos valentões dos subúrbios que foram manipulados pelo Estado burguês para serem enviados contra as manifestações estudantis anti-CPE da primavera de 2006, e que se dedicaram a roubar-lhes os telefones celulares!

Esse é o verdadeiro rosto da democracia parlamentar: a ordem "pública" é a ordem do capital. É a ordem do terror e das porretadas, a dos policiais e dos meios de comunicação, a ordem da manipulação e da Tele-Sarkozy. É a ordem desses "Maquiavélicos" que tratam de dividir-nos para poder reinar. A ordem de quem busca que nos enfrentemos entre nós aplicando a conhecida doutrina preconizada pelo anterior governo Villepin/Sarkozy em 2006: utilizar a violência para apodrecer as lutas.

A solidariedade dos estudantes e dos ferroviários nos mostra o caminho

A repressão selvagem contra os estudantes constitui um ataque criminoso contra o conjunto da classe operária. A grande maioria dos estudantes que lutam contra a privatização da universidade e contra uma seletividade em base à capacidade econômica das famílias é na realidade, contra o que afirmam algumas mídias e os "sócio-ideólogos" da burguesia, filhos de trabalhadores e não de acomodados pequeno burgueses. Muitos deles são efetivamente filhos de trabalhadores do setor público ou de imigrantes (isto se dá, sobretudo nas universidades da periferia como Nanterre ou Saint-Denis). O caráter proletário da luta dos estudantes contra a Lei Pécrese se põe precisamente de manifesto no fato de que os grevistas têm sido capazes de ampliar suas reivindicações, de tal modo que na maioria das universidades ocupadas têm posto adiante não só a retirada da LRU, mas também a manutenção dos regimes especiais de aposentadoria (ver o outro artigo em espanhol sobre França[5]), a recusa da lei Hortefeux e da política de "imigração seletiva" de Sarkozy, o rechaço das franquias nos gastos médicos e do conjunto dos ataques do governo contra o conjunto da classe operária. Têm colocado a frente a necessária SOLIDARIEDADE que deve unir todos os trabalhadores em luta em vez de ficar encerrados no setor ou nas negociações "empresa a empresa" que preconizam os sindicatos. Os estudantes têm conseguido demonstrar na prática em que consiste essa solidariedade. Assim por exemplo várias centenas de estudantes parisienses, e o mesmo aconteceu nas províncias, se somaram às manifestações dos trabalhadores da ferrovia (sobretudo as de 13 e 14 de Novembro) que lutam contra a ameaça sobre seus regimes de aposentadoria. Em algumas cidades, caso de Rennes, Caen, Rouen, Saint-Denis, Grenoble, esta solidariedade dos estudantes tem sido muito bem acolhida pelos ferroviários que, além disso, lhes têm aberto as portas de suas Assembléias Gerais e têm organizado ações comuns com eles (tais como as intervenções nos pedágios das auto-estradas onde estudantes e ferroviários deixavam passar gratuitamente os automobilistas explicando-lhes o sentido de suas mobilizações). Hoje vemos estudantes e ferroviários refletir e discutir juntos, atuar juntos e compartilhar juntos os sanduíches de um pelotão. Em algumas universidades - nas que o reitorado é ocupado por seres humanos e não por hienas histéricas que uivam com os lobos - também têm podido somar-se educadores e pessoal administrativo. Tal tem sido o caso de Paris 8-Saint Denis.

Este caráter proletário da luta dos estudantes se tem visto ainda mais reafirmado pelo fato de que os estudantes não têm ocupado os locais universitários só para poder fazer suas assembléias gerais e levar a cabo debates políticos abertos a todos (se, Mme Décrese, a espécie humana, precisamente porque está dotada de linguagem à diferença dos símios, é uma espécie política, tal e como tem demonstrado alguns dos "pesquisadores", que trabalham nos "centros de excelência" educativos): Em algumas faculdades os estudantes em greve tem posto seus locais à disposição dos imigrantes sem papéis.

E precisamente ante o risco de que esta solidariedade ativa se extenda como uma mancha de óleo, o Governo de Sarkozy/Fillon (com a companhia de suas "damas de ferro" as Pécrese, Alliot-Marie, Dati,...) tem decidido enviar suas polícias para quebrar a luta da classe operária. A Aspiração da burguesia francesa é aplicar a mesma política que colocou em prática Margaret Thatcher. O que querem é proibir, como na Grã Bretanha, toda greve por solidariedade, com objeto de ter as mãos livres para desferir, atrás das eleições municipais do ano que vem, ataques ainda mais brutais. Porém hoje com este pulso e com o emprego da repressão, o que pretende a classe dominante, e seu executor Sarkozy, é impor o reino da ordem "democrática" do capital.

O movimento de solidariedade, em que se têm envolvido estudantes e alguns ferroviários, demonstra que os ensinamentos da luta contra o CPE[6] não têm passado ao esquecimento apesar da ensurdecedora campanha ideológica das eleições presidenciais. A solidariedade de estudantes e trabalhadores da SNCF e a RATP nos mostra o caminho. E essa é a via na qual devemos implicar-nos resolutamente, todos os trabalhadores, ativos e desempregados, franceses "de naturalidade" e imigrantes, da função pública e das empresas privadas. É a única forma de criar uma relação de forças contra os ataques da burguesia e do seu sistema decadente que não tem outro futuro a oferecer às novas gerações: desemprego, precariedade, miséria e repressão (hoje as cacetadas e os gases lacrimogêneos, amanhã a metralhadora).

Na primavera de 2006, se o então Primeiro Policial da França, Sarkozy, não enviou os CRS contra os estudantes "bloqueadores", não é porque à época conservara algum escrúpulo moral, mas porque sendo candidato às eleições presidenciais não queria colocar-se contra o eleitorado que tinha seus filhos na Universidade. Hoje já assentado no poder, quer estufar o peito e ressarcir-se da humilhação que sofreu toda a burguesia tendo que retirar a CPE em 2006. Não anunciou já no mesmo dia de sua eleição que "o Estado não deve retroceder nunca"? O que pretende Sarkozy é demonstrar aos da banda de Villepin que não lhe falta pulso, e que como dizia Raffarin ante as manifestações massivas de 2003. "Não é a rua que governa". O cinismo com o que tem anunciado publicamente, supostamente em nome de transparência, o aumento do seu salário em 140%, ao mesmo tempo em que se mostra disposto a manter intransigentemente todo o calendário de ataques às condições de vida da classe operária, constitui uma verdadeira provocação. A mensagem que quer transmitir-nos com tamanho desprezo é claro: "Não tem sentido algum pôr na questão os privilégios da burguesia. Eu fui eleito pelos franceses, e por isso tenho carta branca para fazer o que quero". Porém deixando de lado os interesses e as ambições pessoais deste sinistro personagem, o certo é que atua em representação dos interesses de conjunto da classe capitalista e para fazer cumprir a lei do capital. A pugna que tem lançado aos ferroviários não tem mais que um objetivo: infligir uma humilhante derrota à classe operária que arranque das cabeças dos trabalhadores o sentimento que deixou a luta contra a CPE: que só a luta unida paga. Por essa razão Sarkozy não tem nenhuma intenção de ceder ante os ferroviários e por isso quer converter as universidades em quartéis policiais.

Mas seja qual for o resultado final desta pugna entre o governo Sarkozy/Fillon/Pécrese e a classe operária, a luta já tem começado a responder: o movimento de solidariedade a que já recorrem estudantes e ferroviários e que começa a se entendendo para outros setores da classe operária (sobretudo entre trabalhadores da própria universidade) deixará uma impressão duradoura nas consciências como já sucedeu com a luta contra a CPE. Como todas as lutas operárias que se desenvolvem em todo o mundo, se trata de um estágio no caminho que conduz à futura destruição do capitalismo. O principal ganho da luta é a luta mesmo, é a experiência de solidariedade viva e ativa da classe operária lutando por sua emancipação, e pela libertação de toda humanidade.

Trabalhadores "franceses" e imigrantes, do setor público ou das empresas privadas, estudantes universitários ou dos institutos, desempregados: um só e único combate contra os ataques do governo. Abaixo o estado policial! Frente ao terror do capital: solidariedade de toda a classe operária!

Sofiane (17 de Novembro 2007).

Do suplemento com que a CCI está intervindo nas manifestações e mobilizações dos trabalhadores na França.


[1] Presidente da República, primeiro ministro, e ministros de imigração e educação respectivamente do atual governo francês.

[2] Companhia Republicana de seguridade; força de repressão.

[3] Os kmeres vermelhos, cujo nome oficial foi sucessivamente Partido Comunista do Camboja e Partido do Kampuchea democrático eram membros de uma organização stalinista no poder no Camboja desde 1975 até 1979. Os kmeres vermelhos tornaram-se a ser tristemente celebres por suas exações que causaram a morte de cerca de 1,5 milhões milhão de pessoas (mais de um quarto da população), mortas de fome, de esgotamento ou executadas.

[4] Nome de uma potente limpadora industrial. Essa expressão foi empregada por Sarkozy para referir-se às instruções dadas à polícia contra as revoltas dos subúrbios em Novembro de 2005.

[5] Luchas en Francia: ¡Hay que luchar unidos! https://es.internationalism.org/ap/2007/178_unidos [16]

[6] Ver em. "Tesis sobre o movimento dos estudantes da primavera de 2006 na França" (Revista Internacional nº 125): publicado  em português em : https://pt.internationalism.org/icconline/2006_estudiantes_franca [17]

Recente e atual: 

  • Luta de classe [12]
  • Movimento dos estudantes na França [18]

Internacionalismo sem concessão ou nacionalismo e patriotismo Não há compatibilidade nenhuma – Tem que escolher

  • 7914 leituras

Muitas correntes que reivindicam a luta para o comunismo assumem sem reservas uma postura de defesa do nacionalismo, portanto da pátria. Outras tentam dissimular a questão em nome de uma luta em defesa da independência e contra o imperialismo. Será que estas duas orientações, luta para o comunismo e defesa da pátria, se completam a nível teórico e prático, se fortalecem mutuamente ou, pelo contrario, se excluem? Na história da luta revolucionária por sua emancipação, o proletariado já confrontou esta questão e lhe custou muito a falta de lucidez sobre o nacionalismo.

Esta curta tomada de posição foi motivada pela discussão com elementos demonstrando um interesse para nossas posturas, mas, no mesmo tempo, reivindicando o nacionalismo[1]. Achamos necessário colocar claramente em evidência diante deles, como na história a burguesia utilizou a nacionalismo para corromper a consciência dos operários e levá-los assim para a derrota. Embora de maneira concisa esta crítica considera também os pretendidos internacionalistas, como os trotskistas.

Será que o nacionalismo é realmente compatível com o comunismo?

Um documento que, do ponto de vista teórico e histórico, fundou a perspectiva do comunismo, e que tem ainda toda validez considerando muitos aspetos que trata, queremos falar do Manifesto Comunista de Marx e Engels de 1848, é muito claro sobre esta questão quando afirma "Os proletários não têm pátria" e quando conclui pela consigna: "Proletários de todos os países! Uni-vos!". Não é nada casual que o chamamento inaugural da AIT em 1864 contém a mesma consigna.[2]

Pela sua situação, o proletariado em cada país tem a obrigação de desenvolver sua luta no lugar em que trabalha e mora. Mas não é por conta disso que tem qualquer reivindicação a defender que coincida com o interesse nacional de tal ou qual país particular: "Pela forma, embora não pelo conteúdo, a luta do proletariado contra a burguesia começa por ser uma luta nacional. O proletariado de cada um dos países tem naturalmente de começar por resolver os problemas com a sua própria burguesia" (Manifesto Comunista). Estas frases foram escritas num momento em que as interpelações internacionais eram bem menos desenvolvidas de que hoje em dia. Isso significa que não perderam nenhuma validade, muito pelo contrario.

A cena da revolução é mundial. Apesar de várias divergências entre eles, Rosa Luxemburgo e Lênin estavam totalmente em sintonia considerando o caráter decisivo da extensão da revolução russa: “... a revolução russa só fez confirmar ensinamento fundamental de toda grande revolução cuja lei vital se formula assim : se deve ir para frente muito rapidamente e resolutamente, derrubar com uma mão de ferro todos os obstáculos, definir seus objetivos sempre altos, se ela não quiser em breve voltar a seu frágil ponto de partida para ficar esmagada pela contra-revolução (...) O futuro da revolução na Rússia dependia integralmente dos acontecimentos internacionais. Em terem apostado resolutamente na revolução mundial do proletariado, os bolcheviques forneceram a prova resplandecente de sua inteligência política, de sua solidez sobre os princípios, da audácia de sua política" (Rosa Luxemburgo, A revolução russa ; a tradução é nossa – sublinhado por nós).

A revolução – a luta do proletariado mundial contra a burguesia mundial - assim que se estender a novos paises deverá de maneira prioritária abolir as fronteiras nacionais, dando um final à divisão do mundo entre nações.

O comunismo, a construção da comunidade humana mundial, que significa necessariamente o fim da divisão do mundo entre classes sociais, só pode se realizar em escala mundial, pois as relações sociais de produção, que se baseiam sobre a exploração do trabalho assalariado, só podem ser abolidas nesta escala.

Visto que o socialismo só pode se edificar em escala mundial e não em cada país de maneira separada, a luta pelo comunismo e a defesa do projeto da revolução proletária são, na nossa época, totalmente antagônicos com qualquer tarefa de defesa da nação, da pátria pelo proletariado.

Disso resulta que qualquer pretensão em mudar as relações sociais de produção no âmbito dum país só, constitui uma automistificação, ou seja, uma tentativa de enganar o proletariado. A revolução russa ilustrou tragicamente esta realidade. Na Rússia soviética isolada, não tinha nenhuma possibilidade de construir o socialismo. Só o pior representante da contra-revolução, o stalinismo, podia afirmar o contrário, com sua teoria do socialismo num só país. Este isolamento condenou o estado que surgiu depois da revolução a degenerar e a se tornar vanguarda da contra-revolução mundial.

É por isso que o desenvolvimento do sentimento nacionalista é totalmente antagônico ao desenvolvimento da consciência pela classe operária das necessidades de seu projeto revolucionário.

Será que se pode defender a pátria sem defender o capitalismo?

Segundo o que expomos resumidamente, a defesa da pátria e a perspectiva da revolução proletária mundial são antagonistas. Alem disso, de maneira prática, a propaganda nacionalista constitui um dos piores venenos ideológicos para subordinar os proletários aos interesses da burguesia.

A burguesia mundial é divida em frações nacionais que entram em concorrência econômica e imperialista. São as necessidades desta concorrência, cada vez mais agudas por conta do agravamento da crise, que empurram a intensificar a exploração do proletariado por parte da burguesia. Para tentar obter a adesão dos proletários a estas necessidades, para fazê-los aceitar os sacrifícios, a burguesia tenta insuflar o nacionalismo nas fileiras operárias.

O sacrifício supremo do proletariado às necessidades do capitalismo se encontra quando ele é arregimentado atrás das bandeiras nacionais, nas guerras imperialistas, nas quais ele chega a consentir em dar sua própria vida para uma causa que não é a sua.

Assim, podemos dizer que o nacionalismo é uma das formas ideológicas mais perigosas da dominação da burguesia sobre a sociedade.

Os exemplos mais dramáticos disso são constituídos pelas duas guerras mundiais nas quais o proletariado existia só como bucha de canhão, incapaz de opor sua própria perspectiva à barbárie da burguesia. Hoje em dia, se a burguesia conseguisse arrastar os principais batalhões do proletariado mundial no nacionalismo e na defesa da pátria, então isso significaria o afundamento da humanidade, sem possibilidade de retorno, numa barbárie que implicaria provavelmente sua regressão trágica, talvez seu desaparecimento. É por isso que a primeira responsabilidade de uma organização que reivindica o projeto histórico do proletariado é a defesa intransigente do internacionalismo e a denúncia, sem tréguas, de qualquer forma de nacionalismo.

Terminamos esta ilustração da nocividade do nacionalismo com um exemplo do perigo do nacionalismo das nações oprimidas nas fileiras operarias: o caso da Polônia e do proletariado polonês em dois momentos sucessivos mais diferentes da sua história. A independência da Polônia contra a opressão tzarista era uma das reivindicações centrais das 1ª e 2ª internacionais. Entretanto, desde o fim do século XIX, Rosa Luxemburgo e seus camaradas poloneses questionaram esta reivindicação colocando em evidência, notadamente, que a reivindicação pelos socialistas arriscava enfraquecer o proletariado deste país. A realidade comprovou isso. Em 1905, o proletariado polonês tinha constituído a vanguarda da revolução contra o regime tzarista. Entretanto, em 1917 e depois, ele não manteve essa dinâmica. Ao contrario: o meio mais importante encontrado pelas burguesias inglesa e francesa para paralisar e derrotar o proletariado polonês foi de conceder independência à Polônia. Os operários deste país foram assim arrastados por um turbilhão nacionalista que os levou a dar as costas à revolução que estava desenvolvendo-se do outro lado da fronteira oriental e até alguns deles a se engajar nas tropas que combateram esta revolução. O fato da maioria de os operários poloneses ter seguido as bandeiras nacionalistas depois de 1917 teve conseqüências trágicas. A sua não participação, até sua hostilidade para com ela, impediram a junção geográfica da revolução russa e da revolução alemã. E se esta junção tivesse acontecido, é provável que a revolução mundial teria sido capaz de vencer, poupando assim a humanidade de toda a barbárie do século XX que continua até hoje.

Qual é a natureza de classe de uma organização que defende o nacionalismo ou apóia uma fração da burguesia mundial contra uma outra?

Pela sua reivindicação aberta de seu projeto nacionalista, incompatível com o programa da revolução comunista, as correntes que reivindicam o nacional-comunismo, o nacional-socialismo, o nacional-bolchevismo nunca constituíram organizações revolucionarias proletárias. Ninguém irá contradizer isso considerando o nacional socialismo, foi tão evidente este papel de defesa do capital nacional que o NSDAP (Partido Operário Alemão Nacional Socialista – partido nazista de Hitler) assumiu contra a classe operária na Alemanha, antes e depois ter sido chamado a assumir a direção do Estado burguês. Voltaremos sobre o caso do nacional-bolchevismo, o mais "esquerdista" e "operário" dos partidos nacionais depois de ter examinado o caso das outras organizações ditas "operarias" até "revolucionarias" ou "comunistas" em relação à questão do nacionalismo e do internacionalismo.

Trata-se de organizações que foram operárias e internacionalistas antes de se tornar órgãos do Estado capitalista:

  • Os partidos ditos "comunistas" ou "socialistas" que, apesar de denunciar o nacionalismo de extrema direita, não são por isso menos nacionalistas, quer dizer são defensores do capital nacional tanto quanto as primeiras;
  • as organizações trotskistas, que reivindicam o internacionalismo proletário, mas que, na prática, não deixam de apoiar a tal ou qual fração nacional da burguesia nos conflitos imperialistas que as opõem.

Esta traição da Social-democracia diante da Guerra de 1914 constituiu um evento da maior importância porque, pela primeira vez, nesta circunstancia, organizações que se reclamavam do socialismo e até mesmo de Marx e Engels se encontraram em lados distintos das barricadas :

  • os partidos oficiais social-democratas, a maioria dos quais tinham passado à direção de antigos “reformistas”, apoiaram a guerra imperialista invocando os escritos de Marx de um período anterior. Mas ao fazerem isto, chamaram os proletários a matarem-se mutuamente em 1914, sob o pretexto da luta contra o "militarismo prussiano" para uns (social-democratas francesas, ...), e contra a "pressão tzarista" para outros (social-democratas alemães, ...) e passaram irrevogavelmente ao campo da burguesia, convertendo-se em estandartes para a guerra. Lênin n' O Oportunismo e a Falência da II Internacional, os caraterizou da maneira muito clara: "Basta de frases, basta de "marxismo" prostituído à la Kautsky! Depois de 25 anos de existência da II Internacional, depois do manifesto de Basiléia, os operários não acreditarão mais em frases. O oportunismo mais do que amadureceu, passou definitivamente para o campo da burguesia, transformando-se em social-chauvinismo: ele rompeu espiritual e politicamente com a social-democracia." (V. I. Lênin, Janeiro de 1916; sublinhado por nós)";
  • as correntes da ala esquerda da 2ª Internacional, e só eles, foram capazes de içar a bandeira do internacionalismo proletário contra o holocausto imperialista, de se unificar na defesa da revolução proletária na Rússia, e de encabeçar as greves e sublevações que estalaram em numerosos países durante a guerra. Foram estas mesmas correntes as que proporcionaram o núcleo da nova Internacional Comunista fundada em 1919.

Este método, empregado por Lênin e Rosa Luxemburgo diante da Primeira Guerra mundial, é implacável quanto à caracterização dos partidos da classe operária que, do mesmo modo que a social-democracia em 1914 e sob pretextos diversos, traíram o internacionalismo proletário na ocasião de outros conflitos imperialistas. Todos estes partidos se tornaram partidos a serviço da ordem burguês:

  • Os partidos comunistas, gangrenados pelo stalinismo, em via de degenerescência oportunista desde os anos 1920, quando participaram ativamente na preparação ideológica e política dos proletários para a Segunda Guerra mundial;
  • O anarquismo "oficial"[3] na Espanha em 1936 que jogou o mesmo papel de acompanhamento ideológico e de arregimentação dos operários nas frentes de guerra no conflito entre "democracia" e "ditadura" durante a Guerra civil espanhola, preparação da Segunda Guerra mundial;
  • O trotskismo cujo oportunismo crescente nos anos trinta levou a trair o internacionalismo pelo seu apoio ao imperialismo da União soviética e das potencias ditas democráticas.

Somente uma analise não materialista da Segunda Guerra mundial que seria de natureza diferente da Primeira, quer dizer não imperialista e o produto de "uma luta entre o bem e o mal", pode deixar de recusar esta caracterização das correntes e partidos comunistas, anarquistas oficiais e trotskistas que "passaram definitivamente para o campo da burguesia". Toda a atuação destes desde então confirmou amplamente esta realidade e ninguém demonstrou o caráter não imperialista da Segunda Guerra mundial.

Os argumentos que os troskistas utilizaram na Segunda Guerra mundial, como em todos os conflitos que aconteceram depois, apoiando tal ou qual campo contra o outro[4], são fundamentalmente do mesmo tipo que os social-patriotas da Primeira Guerra mundial, ou seja, aqueles setores da social-democracia "socialistas em palavras e patrioteiros em seus atos" (Lênin) que tanto ajudaram a burguesia alistando o proletariado na matança mundial.

O ponto de convergência entre todos os nacionalismos, de "direita" como de "esquerda": a defesa do capital nacional

Apesar de, muitas vezes, se considerar como fazendo parte de campos diferentes, até opostos, à vezes se combater, todas a frações nacionalistas finalmente convergem na defesa do capital nacional. Ilustraremos isso através de alguns episódios escolhidos e significativos que tiveram lugar entre a Primeira Guerra mundial e os anos trinta.

O primeiro político que teve a ousadia de reivindicar abertamente o internacionalismo e a defesa da pátria, não foi um nacional-socialista ou nacional-comunista, mas um membro eminente do centro da Socialdemocracia alemã, quer dizer situado entre a ala direita abertamente reformista e social-chauvinista e a ala esquerda marxista. Foi o centrista (o centro era tão perigoso quanto a direita social-chauvinista do partido, como dizia Lênin) Kautsky[5] que, para justificar sua traição ao internacionalismo proletário na Primeira Guerra mundial, declarava ser:

  • Patriota em tempo de guerra: "Tanto os que justificam e exaltam os governos e a burguesia de um grupo das potencias beligerantes como os que, como Kautsky, reconhecem para os socialistas de todas as potencias beligerantes um direito idêntico à defesa da pátria, são social-chauvinistas " (Lênin, O socialismo e a guerra, Agosto 1915, traduzido por nós);
  • Internacionalista em tempo de paz: "Oh, os social-chauvinistas de todos os países são grandes 'internacionalistas' (...) Ouçam Kautsky. Para ele é muito simples, a Internacional é 'um instrumento em tempo de paz'"

Todos os social-chauvinistas foram defensores do capital e da burguesia nacionais na guerra imperialista e estandartes para a guerra, contra os interesses de classe do proletariado.

Mas não foram os únicos.

Durante a Guerra, os nacional-blocheviques, ditos "comunistas de esquerda" distribuírem em Hamburgo, folhetos anti-semitas contra a direção de Spartacus (O grupo liderado por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, Die Internationale, que recebeu o nome de Spartacusbund em 1916) por conta de sua postura internacionalista.

Os nacional-blocheviques entraram no KAPD (Partido Operário Comunista de Alemanha) no momento de sua formação em abril de 1920, consecutiva à exclusão da maioria dos membros do KPD (Partido Comunista de Alemanha fundado em dezembro 1918) pela direção deste. Foi um erro enorme por parte do KAPD ter aceitado a presença dos nacional-blocheviques no seu seio e finalmente estes foram expulsos pouco depois. Mas não foi o fim da influência do nacional-blochevismo e do nacionalismo, muito pelo contrário.

Embora a IC tivesse partilhado esta decisão de exclusão dos nacional-blocheviques, sua atitude em relação ao nacional bolchevismo começou a mudar com sua dinâmica oportunista incluindo concessões, cada vez maiores e mais importantes, ao nacionalismo. Esta política foi aí prolongada na Alemanha pelo KPD totalmente oportunista e por Radek, o representante da IC na Alemanha. Com fim de servir, não a luta internacional pelo comunismo, mas a defesa do Estado Russo que cada vez menos tinha a ver com a ditadura do proletariado, Radek promoveu a necessidade do apoio, por parte do KPD, de uma política nacionalista: "A União Soviética está em situação perigosa. Todas as tarefas devem ser submetidas à defesa da União Soviética, pois, segundo esta análise, um movimento revolucionário na Alemanha seria perigoso e enfraqueceria os interesses da União Soviética". Ecoando esta declaração, Die Rote Fahne, o jornal do KPD escreve em abril 1923: "... hoje, o nacional-bolchevismo significa que tudo está impregnado pelo sentimento que só podemos ser salvos pelo comunismo. Hoje, somos a única saída. A insistência forte sobre a nação na Alemanha é um ato revolucionário, exatamente como é a insistência sobre a nação nas colônias" (tradução nossa; sublinhado por nós). Os exemplos poderiam ser multiplicados. Agora é Talheimer (secretário geral do KPD) que declara o 18 de abril em Die Internationale: "a tarefa privilegiada da revolução proletária fica não somente a libertação da Alemanha, mas de realizar a obra de Bismarck de integrar a Áustria no Reich. O proletariado deve cumprir esta tarefa no seio de uma aliança com a pequena burguesia" (tradução nossa; sublinhado por nós)

Quem pode negar as semelhanças com o discurso nacional-socialista de Hitler. De uma certa maneira, esta política do KPD constituiu o trampolim para números operários assim inebriados pelo nacionalismo entrarem no partido nazista. O KAPD, falando do KDP, disse: "ele fez da demagogia um princípio, e foi ultrapassado pelo mestre da demagogia, Hitler". O resultado disso foi que "uma grande proporção dos defensores do KPD passaram a ser adeptos de Hitler" (Brochura do KAPD, O movimento da industria capitalista, 1932).

Depois disso, como ficar surpreso por esta passagem do Manifesto pela salvação da Itália e reconciliação do povo italiano, redigido pela mão do próprio Togliatti (secretário geral do Partido Comunista Italiano) e aprovado em setembro de 1936 pelo comitê central do Partido Comunista Italiano e publicado em O Stato Operaio n°8 de 1936: "Nós, comunistas, adotamos o programa fascista de 1919, programa de paz, de liberdade e de defesa dos interesses operários. Camisas pretas e Veteranos da África, chamamos vocês para nos unirmos por este programa. Proclamamos que estamos prontos para combater ao seu lado, Fascistas da Guarda antiga e Juventude fascista, para realizar o programa fascista de 1919."

Poderíamos multiplicar os exemplos em vários países da convergência entre o stalinismo e o fascismo, unidos pelo nacionalismo. Mas seria um erro pensar que o nacionalismo foi exclusividade destas correntes políticas. Na realidade, todos os setores da burguesia, incluída democrática, utilizaram o veneno do nacionalismo para arrastar o proletariado na guerra.

Agora, resta escolher: em toda consciência dos prejuízos causados pelo nacionalismo na história da luta de classes à causa revolucionária: "internacionalismo sem nenhuma concessão", ou "patriotismo".

CCI


[1] Trata-se em particular do grupo NACO (Nacional Comunismo), no Brasil. www.nacos-br.org [19]

[2] Temos que assinalar, entretanto, que no século XIX, os revolucionários apoiaram certos movimentos de libertação nacional sob a condição que estes pudessem favorecer o desenvolvimento das forças produtivas, o proletário em primeiro lugar, e acelerar assim a maturação das condições objetivas da revolução.

[3] A precisão de "oficial" é necessária para identificar aquelas correntes do anarquismo que reivindicam ou desculpam a participação na Guerra imperialista, nos governos burgueses central de Madrid e de Catalunha, pois existem correntes dentro do anarquismo que os condenam.

[4] Vale a pena aqui assinalar a qual nivel não somente de traição, mas também do absurdo que conduz esta problemática trotskista que consiste em procurar sempre, em cada conflito, um campo que não seja imperialista a ser apoiado. Um exemplo disso foi dado na última guerra nos Balkans (1998-99) quando uma parte das organizações trotskistas apoiaram a UCK (Frente para a libertação do Kosovo), por ser perseguido pela Servia, enquanto uma outra parte destas organizações apoiou a Servia por conta dos restos de economia estatizada e planejada (qualificados de aquisições operárias) que ainda subsistiam neste país.

[5] Chamado de papa do Marxismo antes da sua traição, por conta da sua notoriedade internacional sobre as questões teóricas do marxismo.

Herança da Esquerda comunista: 

  • Autonomia do proletariado [20]

Outubro de 17, o começo da revolução mundial: As massas operárias tomam seu destino em suas próprias mãos (Brochura da CCI)

  • 7994 leituras

-

Tags: 

  • Brochuras [21]

Herança da Esquerda comunista: 

  • Herança da Esquerda comunista [22]

Outubro de 17, o começo da revolução mundial: As massas operárias tomam seu destino em suas próprias mãos (Brochura da CCI) - Introdução

  • 3912 leituras

A revolução na Rússia continua sendo até agora a ação mais grandiosa das massas exploradas para tentar destruir um sistema que as reduz a meras bestas de carga da máquina econômica e carne de canhão nas guerras entre potências imperialistas. Foi a ponta de lança de uma onda revolucionária mundial que se desenvolveu em reação contra a barbárie da Primeira Guerra mundial. Para fazerem-se donos de seu próprio destino e começarem a construção de outra sociedade, uma sociedade comunista, sem exploração, sem miséria, sem guerras, sem classes, sem nações, milhões de proletários conseguiram romper com sua atomização, unir-se conscientemente, dar-se meios para atuar coletivamente como uma só e única força. Pela Primeira vez em sua história, o proletariado conseguiu tomar o poder político em um país.

Unindo contra a Revolução todas as forças que estavam se enfrentando na Primeira Guerra mundial, a burguesia conseguiu vencê-la antes que se generalizasse a revolução mundial, esmagando, em particular, a classe operária na Alemanha, coração do proletariado industrial mundial. Foi a burguesia a que, ao afogar a Revolução russa com o bloqueio de suas fronteiras, precipitou a degeneração e a perda progressiva do poder político da classe operária. Assim favoreceu objetivamente a vitória na Rússia do stalinismo, braço armado da contra-revolução nesse país em que se impôs mediante a repressão sistemática e maciça da classe operária, mediante a eliminação no próprio Partido bolchevique das maiores figura de Outubro de 1917.

Esse primeiro intento revolucionário mundial é para a classe operária uma fonte considerável de ensinamentos, um patrimônio inestimável para a preparação dos próximos enfrentamentos revolucionários [1].

Nada pode encolerizar mais uma classe exploradora que a sublevação dos explorados. As revoltas dos escravos no Império romano, a dos servos sob o feudalismo sempre foram reprimidas com uma crueldade desumana. A revolta da classe operária contra o capitalismo é uma ofensa ainda maior contra a classe dominante, ao escrever claramente em sua bandeira a perspectiva de uma nova sociedade, uma sociedade autenticamente comunista que liberará a humanidade das calamidades de todas as sociedades de classes da história até o capitalismo. É por isso que, para a classe capitalista, não basta só reprimir as tentativas revolucionários da classe operária, banhando-as em seu sangue; a contra-revolução capitalista é sem sombra de dúvidas a mais sangrenta da história, mas necessita ir além transfigurando o seu inimigo para desprestigiá-lo.

Por isso a burguesia, além de seu arsenal repressivo, utilizou seu arsenal ideológico para pôr em cena e manter a maior mentira da história, afirmando que o stalinismo seria a continuidade do regime político nascido na Revolução de 1917 na Rússia. De igual modo, outra mentira afirma que todos os países dominados pela URSS teriam sido também "regimes comunistas". Todas as frações da burguesia, dos PC até a extrema-direita passando pelos social-democratas (sem esquecer a corrente trotskista desde que passou para o lado da burguesia ao trair o internacionalismo proletário durante a Segunda guerra mundial) contribuíram para essa mistificação desde finais dos anos 1920. As ensurdecedoras campanhas democráticas que se desencadearam com a derrocada dos regimes stalinistas a princípios dos anos 1990 arrastaram o movimento operário pelas ruas da amargura, seus momentos gloriosos (outubro de 1917), suas organizações revolucionárias (o Partido bolchevique) e suas figuras (Marx, Lênin) reativando essa mentira com o objetivo parcialmente obtido de debilitar a consciência da classe operária.

Entretanto, a burguesia não conseguiu erradicar a consciência de classe do proletariado. De novo, sob os efeitos do desmoronamento na crise econômica e dos ataques contra a classe operária, diante das manifestações cada vez mais evidentes da quebra do capitalismo, saem de novo à luz, tentativas de reatar com o passado revolucionário de sua classe por parte de algumas minorias. As mentiras mais sórdidas da burguesia sobre a Revolução Russa serão incapazes de resistir a suas perguntas e a sua busca de verdade. Por isso não vamos insistir especialmente neste folheto em pôr de relevo que o stalinismo, não foi, nem muito menos, a continuidade do movimento revolucionário, mas sim seu principal verdugo [2].

Com a esta seleção de artigos já publicados em nossa Revista internacional, queremos responder a certas perguntas ou dúvidas que regularmente se expressam assim que se evoca a Revolução de Outubro:

  • Foi a insurreição de Outubro um golpe do Partido bolchevique ou a emanação da vontade dos sovietes?
  • O proletariado acompanhou cegamente o Partido bolchevique para Revolução de Outubro ou Outubro foi o resultado de um autêntico movimento da classe operária?
  • Como se explica a influência crescente do Partido bolchevique nas fileiras operárias? Equivocados e mistificados pelo Partido bolchevique, teriam os operários abandonado progressivamente suas responsabilidades para deixá-las em mãos daquele? Ou, essa vanguarda da classe defendia realmente os interesses imediatos e históricos desta, contra as posições dos demais partidos (incluídos os partidos pretensamente "operários") a favor da defesa do capital nacional e da guerra?
  • Teria sido possível que o proletariado, depois de ter abandonado o poder a um partido burguês em fevereiro de 1917, tivesse conseguido, sem partido, tomar o poder em outubro?
  • Como explicar a degeneração da Revolução Russa? Estava já escrita de antemão no programa do Partido bolchevique, que conteria já, de forma subjacente, o projeto stalinista? Ou, deveu-se ao isolamento internacional do bastão proletário?

[1] Leia-se nosso folheto a Rússia 1917, princípios da revolução mundial - A maior experiência revolucionária da classe operária.

[2] Recomendamos aos leitores interessados os folhetos O terror stalinista: um crime do capitalismo, não do comunismo e O afundamento do stalinismo, assim como também nosso manifesto Revolução comunista ou destruição da humanidade.

Herança da Esquerda comunista: 

  • Revolução russa alemã [23]

A revolução proletária de outubro de 1917 é produto da ação consciente e massiva dos trabalhadores

  • 6541 leituras
Em 1914 os senhores "bons funcionários" de governantes, reis, políticos, militares, como expressões e agentes de um sistema social que entrava na sua época de decadência, levaram o mundo ao cataclismo da Primeira Guerra Mundial: mais de 20 milhões de mortos, destruições jamais vistas até então, desabastecimento, penúria e fome na retaguarda; morte, selvageria da disciplina militar, sofrimentos sem limites no front; toda Europa se viu inundada no caos, na barbárie, na aniquilação de indústrias, edifícios, monumentos...O proletariado internacional, depois de ter se deixado arrastar pelos venenos patrióticos e as falácias democráticas dos governos, avalizados pela traição da maioria dos partidos social-democratas e dos sindicatos, começou a reagir contra a barbárie guerreira desde finais de 1915. Greves, revoltas contra a fome, manifestações contra a guerra, explodem na Rússia, Alemanha, Áustria, etc. E no front, sobretudo nos exércitos russo e alemão, surgem motins, deserções coletivas, confraternização entre soldados de ambos os lados. À cabeça do movimento estão os internacionalistas, os bolcheviques, os espartaquistas, toda esquerda da Segunda Internacional que desde a explosão da guerra em agosto de 1914, a denunciam sem vacilar como uma rapina imperialista, como uma manifestação da débâcle do capitalismo mundial, como o sinal para que o proletariado cumpra sua missão histórica: a revolução socialista internacional.

 

Herança da Esquerda comunista: 

  • Herança da Esquerda comunista [22]

O desenvolvimento do movimento, de fevereiro a outubro de 1917

  • 5707 leituras

À vanguarda deste movimento internacional que acabará com a guerra e abrirá a possibilidade da revolução mundial, os operários russos desde finais de 1915 protagonizam greves econômicas que são duramente reprimidas. No entanto, o movimento cresce: o 9 de janeiro de 1916 - aniversário do início da Revolução de 1905 - é comemorado pelos trabalhadores com greves massivas. Novas greves estouram ao longo do ano acompanhadas por comícios, discussões, reivindicações, choques com a polícia.

A revolução russa, ponta de lança do movimento internacional do proletariado contra a guerra mundial

"No fim de 1916, os preços estão subindo vertiginosamente. À inflação e a desorganização dos transportes se acrescenta uma enorme escassez de mercadorias. O consumo da população se reduz neste período a menos da metade. A curva do movimento operário ascende bruscamente. Em outubro, a luta entra numa fase decisiva, unindo todas as formas de descontentamento numa só. Petrogrado tomava impulso para o grande salto de fevereiro. Uma onda de comícios recobre as fábricas. Temas: abastecimento, carestia de vida, a guerra, o governo. Panfletos bolcheviques são distribuídos; começam greves políticas. Manifestações improvisadas nos portões das fábricas. São observados casos de fraternização entre certas fábricas e os soldados. Estoura uma tulmutuosa greve de protesto contra o processo dos marinheiros revolucionários da Frota do Báltico. (...) os operários sentem cada vez mais que não há mais retirada possível. Em cada fábrica, um núcleo ativo estava se formando, geralmente em torno dos bolcheviques. Durante as duas primeiras semanas de fevereiro, as greves e comícios se sucediam ininterruptamente. No dia 8, na fábrica Putilov, os policiais foram recebidos por uma "chuva de escórias e ferro-velho". (...) No dia 19, uma massa de pessoas se reúne perto dos armazéns de provisões, formada principalmente por mulheres, exigindo pão. No dia seguinte, padarias foram saqueadas em várias partes da cidade. Eram os alvores da revolução, que chegaria alguns dias mais tarde." [1]

Um movimento de massas

Acabamos de ver as etapas sucessivas de um processo social que hoje muitos operários consideram utópico: a transformação dos trabalhadores de uma massa atomizada, apática, dividida, em uma classe unida que atua como um só homem e se volta capaz de lançar ao combate revolucionário, como demonstram os 5 dias que vão de 22 a 27 de fevereiro de 1917.

"No dia seguinte, o movimento não apenas não diminuiu, mas dobrou. Cerca de metade dos trabalhadores industriais de Petrogrado estavam em greve de manhã; ao invés de irem trabalhar, eles organizaram reuniões; então iniciaram cortejos rumo ao centro. Novos bairros e novos grupos da população foram atraídos pelo movimento. A palavra de ordem "Pão!" desaparece ou se obscurece por outras fórmulas: "Abaixo a autocracia!", "Abaixo a guerra". Contínuas manifestações na Nevsky (Principal avenida da cidade - N.E) (...) Em 23 de fevereiro, sob a bandeira do "Dia da Mulher", começa a revolta, há muito madura e há muito negada, das massas operárias de Petrogrado. O primeiro passo da insurreição foi a greve. No curso de três dias, ela se ampliou e se tornou praticamente geral. Apenas isso dá confiança às massas e leva-as adiante. Tornando-se cada vez mais agressiva, a greve se uniu às manifestações, que põem as massas revolucionárias face a face com as tropas. (...) as massas não mais retrocederiam, elas resistirão com um brilhante otimismo, ficavam nas ruas mesmo após descargas mortais (...) "Não atire em seus irmãos e irmãs!", gritam os operários. E não apenas isso: "Marchem conosco!". Assim nas ruas e praças, pelas pontes e portas dos quartéis, é travada uma luta ininterrupta, ora dramática ora imperceptível - mas sempre uma luta desesperada, pelo coração do soldado. (...) Os operários não iriam se render ou se retirar; sob uma chuva de balas eles ainda mantinham sua posição. E com eles iam suas companheiras, esposas, mães, irmãs. Chegara a hora de que tanto se falava em voz baixa: "Se todos pudéssemos nos unir"..." [2] .

As classes dirigentes não podem acreditar, pensam que se trata de uma revolta que desaparecerá com um bom castigo. O fracasso estrondoso das ações terroristas de pequenos corpos da elite comandados por coronéis da gendarmaria evidencia as firmes raízes do movimento: " "A revolução parece indefesa a estes coronéis verbalmente audaciosos, porque ainda é terrivelmente caótica (...) É suficiente, pode-se pensar, levantar uma espada sobre todo esse caos, e ele se dispersaria sem deixar rastro. Mas isso é uma grosseira ilusão de ótica. O caos é apenas aparente. Debaixo dele está se processando uma irresistível cristalização das massas em torno de novos eixos. ..." [3]

Uma vez rompidas as primeiras cadeias, os operários não querem retroceder e para caminhar sobre terra firme retomam a experiência de 1905 criando os Sovietes, organizações unitárias do conjunto da classe em luta. No entanto, os Sovietes são imediatamente dominados pelos partidos menchevique e social-revolucionário, antigos partidos operários que passaram ao campo burguês por sua participação na guerra, e permitem formar um Governo provisório onde estão os "grandes personagens" de sempre: Miliukov, Rodzianov, Kerenski...

A primeira obsessão desse governo é convencer os operários de que devem "voltar a normalidade", "abandonar os sonhos" e transformar-se na massa submissa, passiva, atomizada, que a burguesia necessita para manter seus negócios e continuar a guerra. Os operários não engolem. Querem viver e desenvolver a nova política: a que exercem eles mesmos, unindo em um laço inseparável a luta por seus interesses imediatos com a luta pelos interesses gerais do conjunto da humanidade. Assim, frente à insistência dos burgueses e social-traidores de que "o que toca é trabalhar e não reivindicar, porque agora temos liberdade política", os operários reivindicam a jornada de 8 horas para terem "liberdade" para se reunirem, discutir, ler, estar com os seus: "... uma onda de greves recomeçou depois da queda do absolutismo. Em cada fábrica ou oficina, sem esperar os acordos firmados nas alturas, se apresentaram reivindicações sobre os salários e a jornada de trabalho. Os conflitos se agravaram dia a dia e se complicavam em uma atmosfera de luta" [4].

Em 18 de abril, Miliukov, ministro liberal do partido kadete do governo provisório, publica uma nota reafirmando o compromisso da Rússia com os aliados na continuação da guerra imperialista, a qual é uma verdadeira provocação. Os operários e os soldados respondem imediatamente: surgem manifestações espontâneas, são realizadas assembléias massivas nos bairros, nos regimentos, nas fábricas: "A comoção que inundava a cidade, contudo, não descia de nível. Multidões se reuniam, comícios continuavam, discutia-se nas esquinas, as pessoas nos bondes se dividiam em partidários e adversários de Miliukov. (...) Também em Moscou os operários abandonaram as oficinas e os soldados saíram dos quartéis, enchendo as ruas com protestos tempestuosos." [5]

Em 20 de abril uma gigantesca manifestação força a demissão de Miliukov. A burguesia deve retroceder em seus planos de guerra. Maio registra uma frenética atividade de organização. Há menos manifestações e menos greves, porém isso não expressa um refluxo do movimento, mas ao contrário, manifesta seu avanço e desenvolvimento, porque os operários se dedicam a um aspecto de seu combate até então pouco desenvolvido: sua organização massiva. Os Sovietes se estendem aos recantos, mesmo os mais recônditos da Rússia, ao seu redor aparece uma multidão de órgãos de massa: Comitês de fábrica, Comitês de camponeses, Sovietes de bairro, Comitês de soldados. Através deles as massas se agrupam, discutem, pensam, decidem. Debaixo de seu cálido alento se despertam os grupos de trabalhadores mais atrasados: "... A servidão, tratada antes como bestas ao que quase não pagavam nada, adquiriu noção de sua própria dignidade. Um par de sapatos custava mais de 100 rublos e como o salário médio não passava de 35 ao mês, as criadas se negavam a estar nas filas e gastar o calçado. (...) Até os cocheiros tinham seu sindicato e seu representante no Soviete de Petrogrado. Os criados e camareiros se organizaram e renunciaram as gorjetas" [6].

Os operários e soldados começam a se cansar das eternas promessas do Governo provisório e do apoio que lhe dão os socialistas mencheviques e socialista revolucionário. Comprovam como crescem as filas, o desemprego, a fome. Vêem que diante da guerra e a questão camponesa, os de cima só oferecem discursos brilhantes. Estão se fartando da política burguesa e começam a vislumbrar as últimas conseqüências de sua própria política: a reivindicação de "Todo o poder para os sovietes!" se transforma na aspiração de amplas massas operárias [7].

Junho é um mês de intensa agitação política que culmina com as manifestações armadas dos operários e soldados de Petrogrado de 4 à 5 de julho: "... As fábricas se moveram para a linha de frente. Além disso, foram arrastadas para o movimento as fábricas que ontem ficaram de lado. Onde os líderes hesitavam ou resistiam, jovens operários obrigavam os membros em serviço do comitê de fábrica a tocar o apito como um sinal para parar o trabalho. (...) Todas as fábricas paravam e faziam comícios. Elegiam líderes para a manifestação e delegados para apresentar suas demandas (...) De Kronstadt, de New Peterhoff, de Krasnoe Selo, do forte de Krasnaia Gorka, de todos os centros próximos, por terra e mar, soldados e marinheiros marchavam com música, armas e, pior ainda, com cartazes bolcheviques. ..." [8].

No entanto, as jornadas de Julho se acabam com um amargo fracasso para os trabalhadores. A situação não está ainda madura para a tomada do poder, pois os soldados não se solidarizaram de maneira plena com os operários; os camponeses estão cheios de ilusões a respeito dos Social-revolucionários e o próprio movimento nas províncias está atrasado comparativamente à capital.

Nos dois meses posteriores -agosto e setembro-, aguçados pela amargura da derrota e forçados pela violência da repressão burguesa, os operários vão resolver praticamente estes obstáculos, não através de um plano de ação preconcebido senão como produto de um oceano de iniciativas, de combates, de discussões nos Sovietes, etc., que vão materializando a tomada de consciência do movimento. Assim, a ação dos operários e soldados acaba se fundindo plenamente: "... Aparece um fenômeno de osmose, especialmente em Petrogrado. Quando a agitação se apropria do bairro operário de Vyborg, os regimentos aquartelados na capital entram em efervescência e vice-versa. Os operários e os soldados se habituam a sair à rua para manifestar ali seus sentimentos. A rua lhes pertence. Nenhuma força, nenhum poder, pode nesses momentos, lhes proibir de agitar suas reivindicações ou cantar a pleno pulmão hinos revolucionários" [9].

Depois da derrota de julho, a burguesia acredita que, por fim, pode acabar com o pesadelo. Para ele, se repartindo o trabalho entre o bloco "democrático" de Kerenski e o bloco abertamente reacionário de Kornilov -generalíssimo dos exércitos-, organiza o golpe militar deste último, que reúne os regimentos de soldados, caucásicos etc., que ainda parecem ser fiéis ao poder burguês e tenta lançá-los contra Petrogrado.

Porém a intentona fracassa estrepitosamente. A reação massiva dos operários e dos soldados, sua firme organização em um Comitê de defesa da Revolução -que sob controle do Soviete de Petrogrado se transformará no Comitê militar revolucionário, órgão da insurreição de Outubro- fazem que as tropas de Kornilov ou bem fiquem imobilizadas e se rendam, ou bem, o que sucede na maioria dos casos, desertem e se unam aos operários e soldados.

"A conspiração foi conduzida por círculos que não sabiam fazer nada sem as baixas fileiras, sem a força de trabalho, sem a carne para canhão, sem ordenanças, servos, notários, condutores, mensageiros, cozinheiros, lavadeiras, guarda-chaves, telegrafistas, cocheiros etc. Mas todos estes pequenos elos e raios humanos, imperceptíveis, incontáveis, necessários, estavam com o Soviete contra Kornilov (...) O ideal da educação militar é que o soldado deve agir fora das vistas do oficial como se estivesse sob seus olhos. Mas os soldados e marinheiros russos de 1917, sem cumprir as ordens oficiais nem mesmo ante os olhos dos comandantes, apanhavam avidamente no ar as ordens da revolução, e frequentemente as cumpriam por iniciativa própria antes que elas chegassem. (...)

Não espanta que as massas dirigidas pelos bolcheviques na luta contra Kornilov nem por um momento confiassem em Kerensky. Para elas não era um caso de defender o Governo, mas de defender a revolução. Para isto, tanto mais era resoluta e devotada a sua luta. A resistência aos rebeldes brotava dos próprios trilhos, das pedras, do ar. Os ferroviários da estação de Luga, onde chegara Krymov, obstinadamente se recusaram a mover os trens das tropas, aludindo a falta de locomotivas. Os escalões cossacos se viram também imediatamente cercados pelos soldados armados da guarnição de Luga, vinte mil homens. Não houve confronto militar, mas algo muito mais perigoso: contatos, troca social, interpenetração. [10]

Um movimento consciente

Os burgueses concebem as revoluções operárias como um ato de demência coletiva, um caos horrível que acaba pavorosamente. A ideologia burguesa não pode admitir que os explorados possam atuar por sua própria conta. Ação coletiva e solidária, ação consciente da maioria trabalhadora, são noções que o pensamento burguês considera uma utopia antinatural (o "natural" para a burguesia é a guerra de todos contra todos e a manipulação pelas elites das grandes massas humanas).

"...em todas as revoluções passadas, quem lutava nas barricadas eram os trabalhadores, aprendizes, em parte estudantes, e os soldados tomavam seu partido. Mas depois a sólida burguesia, tendo assistido cautelosamente as barricadas de suas janelas, recolhia o poder. Mas a Revolução de Fevereiro de 1917 se distinguiu das antigas revoluções pelo seu caráter social e nível político incomparavelmente maiores da classe revolucionária, pela desconfiança hostil dos insurretos pela burguesia liberal, e a conseqüente formação, no momento mesmo da vitória, de um novo órgão de poder revolucionário, o soviete, baseado na força armada das massas." [11]

Esta natureza totalmente nova da Revolução de Outubro corresponde ao ser mesmo do proletariado, classe explorada e revolucionária de vez, que só pode libertar-se se for capaz de atuar de maneira coletiva e consciente.

A Revolução Russa não é o simples produto passivo de umas condições objetivas excepcionais. É também o produto de uma tomada de consciência coletiva. Sob a forma de lições, de reflexões, de consignas, de recordações, podemos ver nela a impressão das experiências do proletariado, da Comuna de Paris de 1871, da revolução de 1905, das batalhas da Liga dos comunistas, da Primeira e Segunda Internacional, da Esquerda de Zimmerwald, dos bolcheviques. A revolução russa é sem dúvida uma resposta à guerra, a fome e a barbárie agonizante do czarismo, porém é uma resposta consciente, guiada pela continuidade histórica e mundial do movimento proletário.

Isto se manifesta concretamente na enorme experiência dos operários russos que haviam vivido as grandes lutas de 1898, 1902, a Revolução de 1905 e as batalhas de 1912-14, de vez que haviam feito surgir de suas entranhas o partido bolchevique, na ala esquerda da Segunda Internacional. "...Em outras palavras era preciso não contar com as massas no abstrato, mas com as massas operárias de Petrogrado e os operários russos em geral, que passaram pela Revolução de 1905, pela insurreição de Moscou de dezembro de 1905, e esmagados pelo Regimento Semenovsky da Guarda. Era preciso que por esta massa estivessem espalhados operários que refletissem sobre a experiência de 1905, criticando as ilusões constitucionais dos liberais e mencheviques, assimilando as perspectivas da revolução, meditando centenas de vezes sobre a questão do exército" [12].

Mais de 70 anos antes da Revolução de 1917, Marx e Engels escreviam que: "... a revolução não só é necessária porque a classe dominante não pode ser derrubada de outra maneira, senão também porque unicamente por meio de uma revolução poderá a classe que derruba a outra, sair da lama em que está submersa e voltar-se capaz de fundar a sociedade sobre novas bases" [13]. A Revolução russa confirma plenamente esta posição: o movimento mesmo contribui com os materiais para a auto-educação das massas: "Uma revolução ensina, e ensina rápido. Nisto está sua força. Cada semana traz algo novo para as massas. A cada dois meses se cria uma época. No fim de fevereiro, a insurreição. No fim de abril, uma manifestação de operários e soldados armados em Petrogrado. No início de julho, um novo ataque, mas amplo em seu alcance e com palavras de ordem resolutas. No fim de agosto, a tentativa de golpe de Kornilov foi batida pelas massas. No fim de outubro, a conquista do poder pelos bolcheviques. Sob estes eventos, tão marcantes em seu ritmo, ocorriam processos moleculares, soldando as partes homogêneas da classe operária num todo político" [14]

"Toda Rússia aprendia a ler e efetivamente lia livros de economia, de política, de história, lia porque queria saber... A sede de instrução, tanto tempo freada, abriu passagem ao mesmo tempo que a revolução, com força espontânea. Nos primeiros seis meses da Revolução tão só do Instituto Smolny se enviavam a todos os confins do país toneladas, caminhões e trens de publicações. A Rússia tragava o material impresso com a mesma insaciabilidade que a areia absorve a água... Depois a palavra. A Rússia viu-se inundada de tal torrente de discursos que, em comparação, a "avalanche de loquacidade francesa", de que fala Carlyle, não passa de ser um regato. Conferências, controvérsias, discursos nos teatros, circos, escolas, clubes, quartéis, salas dos Sovietes. Comícios nas trincheiras da frente de batalha, nas praças do interior, nos pátios das fábricas. Que admirável espetáculo oferece a fábrica Putilov quando de seus muros saem em compacta torrente 40 000 operários para ouvir os social-democratas, anarquistas, ou quem seja, fale do que fale e por muito tempo que fale! Durante meses inteiros, cada cruzamento das ruas de Petrogrado e de outras cidades russas era uma constante tribuna pública. Surgiam discussões e comícios espontâneos nos trens, nos bondes, em todas as partes... As tentativas de limitar o tempo dos oradores fracassavam estrepitosamente em todos os comícios e cada qual tinha a plena possibilidade de expressar todos seus sentimentos e idéias" [15].

A "democracia" burguesa fala muito de "liberdade de expressão" quando a experiência nos diz que tudo nela é manipulação, teatro e lavagem cerebral; a autêntica liberdade de expressão é a que conquistam as massas operárias com sua ação revolucionária: "Em cada fábrica, em cada corporação, em cada companhia, em cada taverna, no hospital militar, nos centros de transferências, mesmo nas vilas despovoadas, o trabalho molecular do pensamento revolucionário progredia. Por toda parte havia comentaristas e quem esperasse as palavras necessárias. Estes líderes estavam quase sempre entregues a si mesmos, nutriam-se de fragmentos de generalizações revolucionárias que vinham até eles por vários caminhos, descobrindo por si mesmos, entre as linhas dos jornais liberais, o que eles precisavam. Seu instinto de classe era refinado por um critério político e, embora não levassem todas as suas idéias até o fim, não obstante pensavam sem cessar, obstinadamente a trabalhar em uma só direção. Elementos de experiência, crítica, iniciativa, auto-sacrifício, penetravam nas massas e criavam, de forma invisível a uma olhada superficial, mas não menos decisiva, uma mecânica interna do movimento revolucionário como um processo consciente" [16].

Esta reflexão, esta tomada de consciência, punha a nu... " ... toda a injustiça material e moral infringida aos trabalhadores, a exploração inumana, os salários de miséria, o trabalho extenuante, o dano causado a sua saúde, os sistemas de castigo requintado, o desprezo e a ofensa a sua dignidade humana pelos capitalistas e patrões, este conjunto de condições de trabalho insalubres e vergonhosas que os são impostas, este inferno inteiro que representa o destino diário do proletário debaixo do jugo capitalista" [17].

Por isso mesmo, a Revolução russa apresenta uma unidade permanente, inseparável, entre a luta política e a luta econômica: "Cada onda de ação política deixa atrás de si um terreno fértil de onde surgem imediatamente mil brotos novos: as reivindicações econômicas. E inversamente, a guerra econômica incessante que os operários travam contra o capital mantém desperta a energia combativa inclusive nas horas de tranqüilidade política; de alguma maneira constitui uma reserva permanente de energia de que a luta política extrai sempre forças renovadas. Ao mesmo tempo o trabalho infatigável de corrosão reivindicativa desencadeia aqui e ali conflitos agudos a partir dos quais estouram bruscamente batalhas políticas" [18].

Este desenvolvimento da consciência levou em junho-julho os operários a convicção de que não deviam esbanjar energias e dispersar-se em mil conflitos econômicos parciais, de que deviam concentrar suas forças na luta política revolucionária. Isto não supunha negar a luta reivindicativa senão, muito ao contrário, assumir suas conseqüências políticas: "Os soldados e operários consideravam que todas as outras questões - salários, preço do pão, e se era necessário morrer no front ninguém sabia por que - dependia da questão de quem governaria o país no futuro, a burguesia ou seu próprio Soviete" [19].

Esta tomada de consciência das massas operárias culmina com a insurreição de Outubro cujo ambiente prévio descreve admiravelmente Trotski: "As massas sentiam a necessidade de se manterem juntas. Cada um queria se testar através dos outros, e todos tensa e atentamente observavam como um e o mesmo pensamento se desenvolvia em suas várias mentes e com diferentes características e nuanças. Multidões incontroláveis de pessoas mantinham-se nos circos e outros grandes edifícios, onde os bolcheviques mais populares se dirigiam a elas com os últimos argumentos (...) Mas incomparavelmente mais efetiva que no último período antes da insurreição era a agitação molecular realizada por operários, soldados e marinheiros anônimos, ganhando simpatizantes uns aos outros, quebrando as últimas dúvidas, superando as últimas hesitações. Estes meses de febril vida política criaram inumeráveis quadros nas bases, educou centenas de milhares de diamantes brutos, que estavam acostumados a olhar a política de baixo e não de cima (...) As massas não mais toleravam em seu meio os hesitantes, os dúbios, os neutros. Esforçavam-se para dominar a todos, atrair, convencer, conquistar. As fábricas uniam-se aos regimentos para enviar delegados ao front. As trincheiras entravam em contato com os operários e camponeses nos locais perto da retaguarda. Nas cidades ao longo do front havia intermináveis comícios, conferências, consultas, em que os soldados e marinheiros harmonizavam sua atividade com a dos operários e camponeses" [20]

"Ao mesmo tempo em que a sociedade oficial, toda esta super-estrutura de vários andares das classes dominantes, grupos, partidos e clãs, viviam no dia-a-dia da inércia e do automatismo, nutriam-se com as relíquias de idéias caducas, mortas para as inexoráveis demandas da evolução, satisfeitas com fantasmas e nada prevendo - ao mesmo tempo, nas massas trabalhadoras, estava ocorrendo um processo independente e profundo de crescimento, não apenas de ódio aos governantes, mas um entendimento crítico de sua impotência, uma acumulação de experiência criativa, que a insurreição revolucionária e sua vitória apenas completou." [21].

O proletariado, única classe revolucionária

Enquanto a política burguesa é realizada sempre em proveito de uma minoria da sociedade que é a classe dominante, a política do proletariado só pode ser feita com a participação massiva de todos os explorados e não persegue um benefício particular senão o de toda a humanidade. "(...) a classe explorada e oprimida (o proletariado) já não se pode libertar da classe exploradora e opressora (a burguesia) sem simultaneamente libertar para sempre a sociedade toda da exploração" [22].

A luta revolucionária do proletariado constitui a única esperança de libertação para todas as massas que hoje vivem mal em uma situação espantosa em 3/4 partes do planeta. A Revolução russa o pôs em evidência: os operários conseguem ganhar para a sua causa os soldados (camponeses em uniforme em sua maioria) e toda a população camponesa. O proletariado confirmava assim que a revolução não só é uma resposta em defesa de seus próprios interesses, como também a única saída possível para acabar com a guerra e com as relações sociais da exploração e da opressão capitalistas em geral.

A vontade operária de proporcionar uma perspectiva para as demais classes oprimidas foi habilmente explorada pelos partidos menchevique e socialista revolucionário que pretendiam, em nome da aliança com os camponeses e os soldados, fazer com que o proletariado renunciasse a sua luta autônoma de classe e à revolução socialista. Esta explicação parece, à primeira vista, o mais "lógico": se queremos ganhar as outras camadas há que dobrar-se a suas reivindicações, há que buscar um mínimo denominador comum em torno ao qual todas se possam unir.

No entanto, "Os estados médios - o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês - todos eles combatem a burguesia para assegurar, face ao declínio, a sua existência como estados médios. Não são, pois, revolucionários, mas conservadores. Mais ainda, são reacionários, procuram fazer andar para trás a roda da história" [23].

Em uma aliança interclassista, o proletariado tem tudo a perder: não ganha as outras camadas oprimidas senão que as empurra aos braços do capital e ao mesmo tempo debilita sua unidade e sua consciência de forma decisiva; não leva adiante suas próprias reivindicações senão que as dilui e nega; não avança no caminho do socialismo senão que se atrasa, e agora no pântano do capitalismo decadente. Em realidade, nem sequer ajuda as camadas pequeno-burguesas e camponesas senão que contribui no seu sacrifício aos interesses do capital, porque as reivindicações "populares" são o disfarce que a burguesia utiliza para fazer passar por contrabando seus próprios interesses. O "povo" não está representando o interesse das "camadas laboriosas", senão o interesse explorador, nacional, imperialista, do conjunto da burguesia. "Nestas circunstâncias, a união dos mencheviques e socialista-revolucionários não era uma cooperação do proletariado com os camponeses, mas uma coalizão dos partidos que romperam com o proletariado e os camponeses respectivamente, pelo amor com o bloco com as classes possuidoras" [24].

Se o proletariado quer ganhar a sua causa as camadas não exploradoras deve afirmar de maneira ainda mais clara e total suas próprias reivindicações, seu próprio ser, sua autonomia de classe. Deve ganhar as outras camadas não exploradoras naquilo em que possam ser revolucionárias. "Se são revolucionários, são-no apenas à luz da sua iminente passagem para o proletariado, e assim não defendem os seus interesses presentes, mas os futuros, e assim abandonam a sua posição própria para se colocarem na do proletariado" [25].

Concentrando sua luta em pôr fim à guerra imperialista; buscando dar uma perspectiva de solução ao problema agrário [26]; criando os sovietes como organização de todos os explorados; e, sobretudo, apresentando a alternativa de uma nova sociedade frente à bancarrota e ao caos da sociedade capitalista, o proletariado na Rússia se colocou na vanguarda de todas as classes exploradas e soube lhes dar uma perspectiva a qual se unir e lutar.

A afirmação autônoma do proletariado não o isola das demais camadas oprimidas, ao contrário, lhe permite isolar o Estado burguês destas. Frente ao impacto sobre os soldados e os camponeses da campanha da burguesia russa sobre o "egoísmo" dos operários com sua reivindicação da jornada de 8 horas, estes "entendiam a manobra e a evitaram habilmente. Para isso, era apenas necessário dizer a verdade - citar os dados dos lucros de guerra, mostrar aos soldados as fábricas e oficinas com o roçar das máquinas, as chamas infernais das fornalhas, seu front perpétuo onde as vítimas eram inúmeras. Sob a iniciativa dos operários, começaram as visitas regulares das tropas da guarnição às fábricas, e especialmente às de munições. Os soldados olhavam e ouviam. Os operários mostravam e explicavam. Estas visitas terminavam em triunfante fraternização." [27]

"O Exército estava incuravelmente doente. Era ainda capaz de dizer sua palavra na revolução, mas não mais para fazer a guerra" [28]

Essa "enfermidade incurável" do Exército era o produto da luta autônoma da classe operária. Do mesmo modo, frente ao problema agrário, que o capitalismo decadente não só é incapaz de resolvê-lo senão que não termina de agravá-lo, o proletariado o encarou acertadamente: todos os dias saíram das cidades industriais legiões de agitadores, delegações de Comitês de fábrica, de Sovietes, para discutir com os camponeses, para lhes animar a luta, para organizar os operários agrícolas e os agricultores pobres. Os Sovietes e os Comitês de fábrica tomaram numerosas resoluções declarando sua solidariedade com os camponeses e propondo medidas concretas de solução do problema agrário: "A conferência de Moscou dos comitês de fábrica e usina devotou sua atenção à questão agrária e, por um relato de Trotsky, foi redigido um manifesto aos camponeses: o proletariado se sente não apenas uma classe especial, mas também o líder do povo" [29]

Os sovietes

Enquanto a política da burguesia concebe a maioria como uma massa a ser manipulada para que referende as ações preparadas pelos poderes do Estado, a política operária se apresenta como a obra livre e consciente da grande maioria para seus próprios interesses.

"Os sovietes, conselhos de deputados ou delegados das assembléias operárias, apareceram espontaneamente pela primeira vez na grande greve de massas que sacudiu a Rússia em 1905. Era a emanação direta de milhares de assembléias de trabalhadores, nas fábricas e nos bairros, que se multiplicaram por todas as partes, na maior explosão de vida operária que até então se havia produzido na história. Como se retomassem a luta ali onde seus antepassados da Comuna de Paris em 1871 a haviam deixado, os operários generalizaram na prática a forma de organização que os comunards haviam tentado: assembléias soberanas, centralização mediante delegados eleitos e revogáveis" [30].

Desde que em fevereiro os operários derrubaram o Czarismo, em Petrogrado, em Moscou, em Jarkov, em Helsingfors, em todas as cidades industriais se constituíram rapidamente Sovietes de delegados operários, aos que se uniram os delegados dos soldados e, posteriormente dos camponeses. Ao redor dos Sovietes, o proletariado e as massas exploradas constituíram uma rede infinita de organizações de luta, baseadas nas assembléias, na livre discussão e decisão de todos os explorados: Sovietes de bairro, Conselhos de fábrica, Comitês de soldados, Comitês camponeses... "A rede de conselhos operários e de soldados locais em toda Rússia formava a coluna vertebral da revolução. Com sua ajuda havia se estendido a revolução como uma rede por todo o país, só com sua existência era possível dificultar enormemente todo intento de reação" [31].

A "democracia" burguesa reduz a "participação" das massas a eleição, a cada 4 anos, onde um senhor é eleito e faz o que necessita a burguesia; frente a ela, os Sovietes constituem a participação permanente, direta, das massas operárias que em assembléias gigantescas discutem e decidem sobre todos os assuntos da sociedade. Os delegados são eleitos e revogáveis a qualquer momento e participam dos Congressos com mandatos definidos.

A "democracia" burguesa concebe a "participação" segundo a farsa do indivíduo livre que decide sozinho diante da urna. É, pois, a consagração da atomização, o individualismo, o "todos contra todos", o mascaramento da divisão de classes, o que favorece a classe minoritária e exploradora. Em troca, os Sovietes se baseiam na discussão e na decisão coletivas, cada qual pode sentir o alento e a força do conjunto e sobre essa base desenvolver todas suas capacidades reforçando por sua vez o coletivo. Os Sovietes partem da organização autônoma da classe trabalhadora para, desde essa plataforma, lutar pela abolição das classes.

Os operários, soldados e camponeses consideravam os Sovietes como sua organização. "Não apenas os operários e soldados das enormes guarnições da retaguarda, mas todo o povo heterogêneo das cidades - mecânicos, vendedores ambulantes, pequenos funcionários públicos, cocheiros, porteiros, servidores de todos os tipos - sentiam-se alienados do Governo Provisório e seus departamentos, procuravam uma autoridade mais próxima e acessível. Em números cada vez maiores, delegados camponeses apareciam no Palácio de Tauride, As massas afluíam ao soviete como pelos arcos do triunfo da revolução. Tudo o que permanecia fora dos limites do soviete parecia estar à margem da revolução, algo que pertencesse a outro mundo do dono de propriedade" [32]

Nada podia se fazer em toda a Rússia sem os sovietes: as delegações da frota do Báltico e do Mar Negro declaram em 16 de março que só obedeceriam às ordens do Governo provisório que estivessem de acordo com as decisões dos sovietes: "O Exército e o povo devem se submeter apenas ao controle do soviete (...) As ordens do Governo provisório que conflitem com a decisão do Soviete não serão obedecidas" [33]

Guchkov, grande capitalista e ministro do Governo provisório declara: "O governo não tem nenhum poder real: as tropas, as ferrovias, o correio e o telégrafo estão nas mãos do Soviete. O fato é que o Governo Provisório existe apenas enquanto o Soviete permitir." [34]

A classe operária, como classe que aspira à transformação revolucionária e consciente do mundo, necessita um órgão que lhe permita expressar todas suas tendências, todos seus pensamentos, todas suas capacidades; um órgão extremamente dinâmico que sintetize em cada momento a evolução e o avanço das massas; um órgão que não caia no conservadorismo e na burocracia, que lhe permita recusar e combater toda tentativa de confiscar o poder direto da maioria. Um órgão de trabalho, onde se decidam as coisas de maneira rápida e ágil, de maneira consciente e coletiva, de tal forma que todos se sintam implicados em sua aplicação.

"De órgãos para o controle do governo, os sovietes se tornaram órgãos de administração. Eles não podiam se acomodar com qualquer teoria da divisão de poderes, mas interferiam na administração do Exército, em conflitos econômicos, nas questões de abastecimento e transporte, até nos tribunais de justiça. Os Sovietes, sob pressão dos operários, decretavam a jornada de oito horas, removiam administradores reacionários, expulsavam os mais intoleráveis comissários do Governo Provisório, conduziam buscas e prisões, suprimiam jornais hostis." [35]

Temos visto como a classe operária foi capaz de se unir, de expressar toda sua energia criadora, de atuar de maneira organizada e consciente, de, no fim das contas, se levantar frente uma sociedade como a classe revolucionária que tem como missão instaurar a nova sociedade, sem classes e sem Estado. Porém, para isso, a classe operária devia destruir o poder da classe inimiga: o Estado burguês, encarnado pelo Governo provisório; e impor seu próprio poder: o poder dos sovietes.


[1] Trotski, A História da Revolução russa; Edição Sundermann - Tomo I; capítulo "O proletariado e os camponeses".

[2] Trotski, op. cit. Capítulo "Cinco dias (23 a 27 de fevereiro de 1917)".

[3] Trotski, op. cit.

[4] Ana M. Pankratova, Os Conselhos de fábrica na Rússia de 1917, capítulo "Os Comitês de fábrica obra da Revolução". Tradução nossa.

[5] Trotski, op. cit. Capítulo "jornadas de abril".

[6] Reed, J. Dez dias que estremeceram o mundo. Tradução nossa.

[7] Dois meses antes, em abril, quando esta reivindicação foi proposta por Lênin em suas famosas Teses, foi recusada no seio mesmo do partido bolchevique como utópica, abstrata, etc.

[8] Trotski, op.cit. Tomo II; capítulo "Poderiam os bolcheviques ter tomado o poder em Julho?".

[9] G. Soria, Os 300 dias da Revolução russa. Tradução nossa.

[10] Trotski, op.cit. Capítulo "A burguesia mede forças com a democracia".

[11] Trotski, op.cit. Tomo I; capítulo "O paradoxo da Revolução de Fevereiro".

[12] Trotski, op.cit.; capítulo "Quem dirigiu a insurreição de Fevereiro?"

[13] Marx y Engels, A ideologia alemã.

[14] Trotski, op. cit. Capítulo "Deslocamentos nas massas".

[15] J. Reed, op. cit.

[16] Trotski,, op.cit. Capítulo "Quem dirigiu a insurreição de Fevereiro"

[17] Rosa Luxemburgo, Na hora revolucionária. Tradução nossa.

[18] Rosa Luxemburgo, Greve de massas, partido e sindicatos. Tradução nossa.

[19] Trotski, op.cit. Tomo II; capítulo "As jornadas de julho: preparação e inicio".

[20] Trotski, op.cit. Capítulo "A retirada do pré-Parlamento e a luta pelo Congresso dos Sovietes".

[21] Trotski, op.cit.; Tomo I, capítulo "Quem dirigiu a insurreição de Fevereiro?"

[22] Engels, "Prólogo" de 1883 ao Manifesto comunista.

[23] , Engels, O Manifesto comunista.

[24] Trotski, op.cit. Capítulo "O Comitê Executivo".

[25] Marx, Engels, op.cit.

[26] Não se trata de discutir no marco deste artigo se a solução que os bolcheviques e os sovietes acabaram dando à questão agrária - a divisão das terras - foi justa. Como o criticou Rosa Luxemburgo, a experiência demonstrou que não era. Porém isso não deve ocultar o essencial: que o proletariado e os bolcheviques explicaram seriamente a necessidade de uma solução desde o enfoque do poder proletário e desde o enfoque da batalha pela revolução socialista.

[27] Trotski, op.cit. Trotski, op.cit. Capítulo "O Comitê Executivo"

[28] Trotski, op.cit. Trotski, op.cit. Capítulo "O Exército e a guerra"

[29] Trotski, op.cit. Tomo II; capítulo "A retirada do pré-Parlamento e a luta pelo Congresso dos Sovietes".

[30] Révolution Internationale, órgão da CCI na França, nº 190, artigo "O proletariado deverá impor sua ditadura para levar a humanidade a sua emancipação".

[31] O. Anweiler, Os Sovietes na Rússia. Tradução nossa.

[32] Trotski, op.cit. Tomo I, capítulo "O novo poder".

[33] Trotski, op.cit. Capítulo "O Comitê Executivo".

[34] Trotski, op.cit.; capítulo "A retirada do pré-Parlamento e a luta pelo Congresso dos Sovietes".

[35] Trotski, op.cit.; capítulo "A primeira coalizão".

Herança da Esquerda comunista: 

  • Herança da Esquerda comunista [22]

A conquista dos sovietes pelo proletariado

  • 6104 leituras

Outubro de 1917 nos deixou uma lição fundamental: a burguesia não deixa o caminho livre à luta revolucionária das massas operárias. Ao contrário, trata de sabotá-la por todos os meios. Para isso, além do golpe e da pistola, utiliza uma arma muito perigosa: a sabotagem por dentro realizada pelas forças burguesas com roupagem "operária" e "radical" - então os partidos "socialistas", hoje os partidos de "esquerdas" e "extrema esquerda" e os sindicatos.

Essa sabotagem constituiu a principal ameaça para a Revolução iniciada em fevereiro: a sabotagem dos Sovietes pelos partidos social-traidores que mantinham em pé o aparato do Estado burguês. Abordamos agora este problema e os meios através dos quais o proletariado conseguiu resolvê-lo: a renovação dos Sovietes, o Partido bolchevique, a insurreição.

A sabotagem burguesa dos sovietes

A burguesia apresenta a Revolução de fevereiro como um movimento a favor da "democracia" violentado pelo golpe bolchevique. Suas fábulas consistem em opor Fevereiro a Outubro, apresentando o primeiro como uma autêntica "festa democrática" e o segundo como um golpe de Estado "contra a vontade popular".

Esta mentira é produto da raiva que sente a burguesia porque os acontecimentos entre fevereiro e outubro não se desenvolveram de acordo com o esquema esperado. A burguesia pensava que uma vez passadas as convulsões que em fevereiro derrubaram o Czar, as massas voltariam tranquilamente às suas casas e deixariam os políticos burgueses comandar amplamente, propiciados de vez em quando por eleições "democráticas". No entanto, o proletariado não mordeu a isca, desdobrou uma imensa atividade, tomou consciência de sua missão histórica e se deu os meios para seu combate: os sovietes. Com eles se estabeleceu uma situação de duplo poder: "ou a burguesia dominaria de fato o velho aparato estatal, alterando-o um pouco para seus propósitos, e então os sovietes se reduziriam a nada; ou os sovietes formariam a base de um novo Estado, liquidando não apenas o velho aparato governamental, mas também a dominação daquelas classes que se serviam dele" [1].

Para destruir os sovietes e impor a autoridade do Estado, a burguesia apoiou-se sobre os partidos menchevique e social-revolucionário, antigos partidos operários que, com a guerra, haviam passado ao campo burguês. Estes gozavam, no princípio da revolução de Fevereiro, de uma imensa confiança nas fileiras operárias, e a aproveitaram para dominar os órgãos executivos dos Sovietes e camuflar a burguesia: "Ali onde nenhum ministro burguês podia comparecer ante os operários revolucionários, apresentava-se (ou melhor dito, era enviado pela burguesia) um ministro "socialista", Skobelev, Tsereteli, Chernov ou outro, que cumpria conscienciosamente com sua missão burguesa, esforçando-se por defender o governo e limpar da culpa os capitalistas, enganando com promessas e mais promessas, com conselhos que se reduziam a esperar, esperar e esperar" [2].

A partir de fevereiro se dá uma situação extremamente perigosa para as massas operárias: estas lutam, com a vanguarda dos bolcheviques, para acabar com a guerra, pela solução do problema agrário, para abolir a exploração capitalista, e para isto criam os sovietes e confiam sem reservas neles. E, no entanto, esses sovietes, que têm nascido de suas entranhas, dominados pelos demagogos mencheviques e social-revolucionários, negam as necessidades mais imperiosas.

 Assim os sovietes, submetido à autoridade social-menchevique, prometem mil vezes a paz enquanto deixam o Governo provisório continuar a guerra.

Em 27 de março, o Governo provisório trata de desencadear a ofensiva dos Dardanelos cujo objetivo é conquistar Constantinopla. Em 18 de abril Miliukov, ministro do exterior ratifica em uma famosa nota a adesão da Rússia ao grupo da "Entente" (França e Grã Bretanha). Em maio, Kerenski empreende uma campanha no front para elevar a moral dos soldados e fazê-los lutar, chegando a dizer no cúmulo do cinismo que "vocês carregam a paz na ponta de vossas baionetas". De novo em junho e em agosto, os social-democratas em estreita colaboração com os odiados generais czaristas, tentaram arrastar os operários e soldados à carnificina da guerra.

Do mesmo modo, esses demagogos dos "direitos humanos" trataram de restabelecer a brutal disciplina militar no exército: restauraram a pena de morte, convenceram os Comitês de soldados para que "não virem contra eles os oficiais". Por exemplo, quando de forma massiva o soviete de Petrogrado publicou o famoso Decreto nº 1 que proíbe os castigos corporais aos soldados e defende seus direitos e sua dignidade, os social-traidores do Comitê Executivo expediram " às gráficas, como um antídoto, um apelo aos soldados que, som o pretexto de condenar o linchamento de oficiais, exigia a subordinação dos soldados ao velho comando" [3].

 Enfatizam incansavelmente sobre a "solução do problema agrário" enquanto deixam intacto o poder dos proprietários das terras e esmagam as rebeliões camponesas.

Assim, bloquearam sistematicamente os decretos mais tímidos sobre a questão agrária - por exemplo, o que proibia as transferências de terras - devolveram as terras ocupadas espontaneamente pelos camponeses a seus antigos donos; reprimiram a ferro e fogo às revoltas camponesas, enviando expedições punitivas, restauram a pena de açoites nas aldeias.

 Bloqueiam a aplicação da jornada de 8 horas e permitem aos empresários desmembrar as fábricas

Deixaram os patrões sabotar a produção com objetivo, por um lado, de matar de fome os operários e de outra parte, dispersá-los e desmoralizá-los: "Aproveitando a produção capitalista moderna e sua estreita relação com o banco nacional e internacional, e com as demais organizações do capital unificado (sindicatos patronais, trustes, etc.), os capitalistas começaram a aplicar um sistema de sabotagem de ampla escala e cuidadosamente calculado. Não recuaram diante quaisquer meios, começando com a ausência administrativa nas fábricas, a desorganização artificial da vida industrial, o ocultamento e a retirada de materiais, acabando com a queima e o fechamento das empresas desprovidas de recursos" [4].

 Empreendem uma furiosa repressão contra as lutas operárias

"Em Jarkov, 30 000 mineiros se organizaram e aprovaram o ponto do preâmbulo dos estatutos dos IWW (Operários Industriais do Mundo) que afirma "a classe dos operários e a classe dos patrões não tem nada em comum". Os cossacos esmagaram a organização, muitos mineiros foram despedidos do trabalho. O ministro de Comércio e Indústria, Konovalov concedeu amplos poderes  ao seu subsecretário Orlov, encarregando-lhe de por fim aos distúrbios. Os mineiros odiavam a Orlov, porém o CEC - Comitê Executivo Central, dominado pelos social traidores - não só aprovou sua nomeação, mas  este "se negou a retirar as tropas cossacas da bacia do Donetz" " [5].

 Iludem as massas com palavras vazias sobre a "democracia revolucionária", enquanto sabotam por todos os meios os sovietes

Trataram de liquidar os sovietes a partir de dentro: descumpriram seus acordos, adiaram as reuniões plenárias deixando tudo sob conspiração do "pequeno comitê", buscaram dividir e enfrentar as massas exploradas: "Já em abril, os mencheviques e socialistas- revolucionários começaram a apelar às províncias contra Petrogrado, aos soldados contra os operários, à cavalaria contra os metralhadores. Tinham dado às tropas privilégios de representação nos sovietes acima das fábricas, favoreceram as empresas pequenas e  dispersas contra as gigantes metalúrgicas. Eles mesmos, representando o passado, procuravam apoio nos atrasados de todos os tipos. Com o chão sumindo som seus pés, eles agora incitavam a retaguarda contra a vanguarda" [6]. Igualmente, trataram de que os sovietes entregassem o poder aos organismos "democráticos": os czemstva - organismos locais de origem czarista - e a conferência "democrática" de Moscou de agosto, autêntico ninho de cobras onde se reúnem forças tão "representativas" como nobres, militares, antigos centúrias negras, cadetes, etc., que bendizem o golpe militar de Kornilov. Igualmente, em setembro fizeram outra conspiração para rejeitar os sovietes: a convocação da Conferência pré-democrática na qual os delegados da burguesia e a nobreza têm, por expresso desejo dos social-traidores, 683 representantes frente a 230 delegados dos sovietes. Kerenski chegou a prometer ao embaixador americano que "faremos que os sovietes morram de morte natural. O centro de gravidade da vida política irá se transferindo progressivamente dos sovietes aos novos órgãos democráticos de representação autônoma".

Os sovietes que pediam a tomada do poder foram esmagados "democraticamente" pela força das armas: "Os bolcheviques, que haviam conquistado a maioria do Soviete de Kaluga, conseguiram a libertação dos presos políticos. A duma municipal, com a sanção do comissário do governo, chamou tropas de Minsk que bombardearam com artilharia o soviete. Os bolcheviques capitularam, porém no momento em que saíam do edifício, os cossacos se arremessaram sobre eles, gritando: "Aqui tens o que vai acontecer a todos os sovietes bolcheviques" " [7].

Os operários viam como seus órgãos de classe eram confiscados, desnaturalizados e acorrentados a uma política que ia contra seus interesses. Isto que, como vimos no artigo "O desenvolvimento do movimento, de fevereiro a outubro de 17", tinha desembocado nas crises políticas de abril, junho e, sobretudo, julho, lhes levou a ação decisiva: renovar os sovietes para orientá-los até a tomada do poder.

Os sovietes eram - como dizia Lênin - "órgãos, onde a fonte do poder está na iniciativa direta das massas populares desde baixo" (A dualidade do poder). Isso permitiu as massas substituí-los com muita rapidez desde o momento em que se convenceram de que não correspondiam aos seus interesses. Desde meados de agosto, a vida dos sovietes se acelera em um ritmo vertiginoso. As reuniões se sucedem dia e noite quase sem interrupção. Operários e soldados discutem conscienciosamente, tomam resoluções, votam várias vezes ao dia. Neste clima de intensa auto-atividade das massas [8], numerosos sovietes (Helsinfords, Ural, Krondstadt, Reval, a frota do Báltico, etc.) elegem maiorias revolucionárias formadas por delegados bolcheviques, mencheviques internacionalistas, maximalistas, social-revolucionários de esquerda, anarquistas, etc.

Em 31 de agosto, o Soviete de Petrogrado aprova uma moção bolchevique. Seus dirigentes - mencheviques e social-revolucionários - se recusam a aplicá-la e renunciam. Em 9 de setembro o soviete elege uma maioria bolchevique, seguido depois por Moscou e, em continuidade, pelo resto do país. As massas elegem os sovietes que necessitam e se preparam assim para tomar o poder e exercê-lo.

O Papel do partido bolchevique

Nesta luta das massas para tomar o controle de suas organizações contra a sabotagem burguesa, os bolcheviques jogaram um papel decisivo. Tomaram como centro de sua atividade o desenvolvimento dos sovietes: "A Conferência decide desdobrar uma atividade múltipla dentro dos sovietes de deputados operários e soldados, aumentar seu número, consolidar suas forças e aglutinar em seu seio os grupos proletários internacionalistas de nosso partido" [9]. Esta atividade tinha como eixo o desenvolvimento da consciência de classe: "é preciso um paciente trabalho de esclarecimento da consciência de classe do proletariado e de coesão dos proletários da cidade e do campo" [10]. Por uma parte, confiavam na capacidade de crítica e análise das massas: "Mas enquanto a agitação dos mencheviques e socialista-revolucionários era dispersa, auto-contraditória e frequentemente evasiva, a agitação dos bolcheviques distinguia-se por seu caráter concentrado e bem planejado. Os conciliadores se desviavam das dificuldades, os bolcheviques iam de encontro a elas. Uma análise contínua da situação objetiva, um teste das palavras de ordem sobre os fatos, uma atitude séria com o inimigo mesmo quando ele não era muito sério, deu força e poder de convicção especiais à agitação bolchevique" [11]. Por outra, confiavam na sua capacidade de união e auto-organização: "não creiam nas palavras. Não se deixem arrastar pelas promessas. Não exagerem suas forças. Organizem-se em cada fábrica, em cada regimento e em cada companhia, em cada barricada. Realizem um trabalho perseverante de organização cada dia, cada hora; trabalhem em se organizar por vocês mesmos, já que este trabalho não podem confiar a ninguém" [12].

Os bolcheviques não pretendiam submeter as massas a um "plano de ação" preconcebido, levando-as como o estado maior leva os soldados. Reconheciam que a revolução é a obra da ação direta das massas e que sua missão política era de atuar por dentro dessa ação direta: "A principal força de Lênin estava em sua compreensão da lógica interna do movimento, e orientava sua política por ele. Ele não impôs seu plano para as massas; ele ajudou as massas a reconhecer seu próprio plano" [13].

O partido não desenvolvia seu papel de vanguarda dizendo à classe: "eis aqui a verdade, ajoealha-te", ao contrário, estava atravessado pelas inquietudes e preocupações que afligem a classe e, como tal, estava exposto a influência destrutiva da ideologia burguesa, ainda que não da mesma maneira. Seu papel de motor no desenvolvimento da consciência de classe, o cumpriu mediante uma série de debates políticos por onde ia superando os erros e insuficiências de suas posições anteriores e travava uma luta mortal para erradicar os desvios oportunistas que podiam ameaçá-lo.

Assim, a princípios de março, um importante setor dos bolcheviques defendia que deviam unir-se aos partidos socialistas (mencheviques e social-revolucionários). Agitavam um argumento aparentemente infalível que, nesses primeiros momentos de ânimo geral e inexperiência das massas, tinha muito impacto nelas: em vez de ir cada um para seu lado porque não unimos todos os socialistas? Porque confundir os operários com 2 ou 3 partidos distintos reivindicando todos do proletariado e do socialismo?

Isto exprimia uma grave ameaça para a revolução: o partido que desde 1902 havia lutado contra o oportunismo e o reformismo, que desde 1914 havia sido o mais conseqüente e decidido em opor a revolução internacional contra a Primeira Guerra mundial, corria perigo de se diluir nas águas turvas dos partidos "social-traidores". Como ia o proletariado superar em seu seio as confusões e ilusões que padecia? Como ia combater as manobras e armadilhas do inimigo? Como ia manter permanentemente o norte de seu combate frente aos momentos de vacilação ou derrota? Lênin e a base do Partido lutaram vitoriosamente contra essa falsa unidade que na realidade significava ficar a reboque da burguesia.

O partido bolchevique era a princípio bastante minoritário. Muitos operários tinham ilusões no Governo provisório e o viam como uma emanação dos sovietes, quando na realidade era seu pior inimigo. Os órgãos dirigentes dos bolcheviques na Rússia adotaram em março-abril uma atitude conciliadora com o governo provisório, chegando a cair  num apoio aberto a guerra imperialista.

Contra esse desvio oportunista se levantou um movimento da base do partido (Comitê de Vyborg) que encontrou em Lênin e suas Teses de Abril a mais clara expressão. Para Lênin o fundo do problema estava em que: "... não podemos dar nenhum apoio ao Governo provisório. Temos de explicar a completa falsidade de todas suas promessas, notadamente aquelas que consideram a renuncia às anexações. Temos de desmascarar este governo que é um governo de capitalistas, em vez de defender a inadmissível e ilusória "exigência" de que deixe de ser imperialista" [14].

Igualmente, Lênin denunciava a arma fundamental dos mencheviques e social-revolucionários contra os sovietes: "O "erro" dos chefes mencionados reside em que enfraquecem a consciência dos operários em vez de abrir-lhes os olhos, em que lhes inculcam ilusões pequeno-burguesas em vez de destruí-las, em que reforçam a influência da burguesia sobre as massas em vez de emancipar estas dessa influência" [15].

Contra os que viam esta denúncia "pouco prática" Lênin alegava que: "... na realidade, é o trabalho revolucionário mais prático, pois é impossível impulsionar uma revolução que está estancada, que se afoga entre frases e se dedica em marcar passo sem mover-se do lugar não por conta de obstáculos vindo de fora, nem sequer por conta da violência da burguesia (...) mas  pela credulidade cega das massas. Só lutando contra essa credulidade cega (luta que pode e deve livrar-se unicamente com as armas ideológicas, pela persuasão amistosa, invocando a experiência da vida) poderemos nos desembaraçar do desenfreio de frases revolucionárias imperante, e impulsionar de verdade tanto a consciência do proletariado como a consciência das massas, a iniciativa local, audaz e resoluta das mesmas" [16].

Defender a experiência histórica do proletariado, manter vivas suas posições de classe, exige estar em minoria em muitas ocasiões dentro dos operários. Isto é assim porque: "... as massas vacilam entre a confiança em seus antigos senhores, os capitalistas, e a cólera contra eles; entre a confiança na classe nova, que abre o caminho de um porvir luminoso para todos os trabalhadores e a consciência, ainda não clara, de seu papel histórico-mundial" [17]. Para ajudar a superar essas vacilações: "... o importante não é o número, mas que se expressem de modo exato as idéias e a política do proletariado verdadeiramente revolucionário" [18]. Como todo partido autêntico do proletariado, o Partido bolchevique era parte integrante do movimento da classe. Seus militantes eram os mais ativos nas lutas, nos sovietes, nos conselhos de fábrica, manifestações e reuniões. As jornadas de julho puseram em evidência esse compromisso inquebrantável do Partido com a classe.

Como vimos no primeiro artigo, a situação em finais de junho se tornava insustentável pela fome, a guerra, o caos, a sabotagem dos sovietes, a política do Comitê executivo central nas mãos dos social-traidores consistindo em não fazer nada, em cumplicidade com a burguesia. Os operários e os soldados, sobretudo os da capital, começavam a suspeitar abertamente dos social-traidores. Cada vez a impaciência, o desespero, a raiva, eram mais fortes nas filas operárias, impulsionando-as já a tomar o poder mediante uma ação de envergadura. No entanto, as condições não estavam ainda reunidas:

  • os operários e soldados das províncias não estavam no mesmo nível político dos seus irmãos de Petrogrado;
  • os camponeses ainda confiavam no Governo provisório;
  • nos próprios operários de Petrogrado a idéia que reinava não era realmente tomar o poder mas fazer um ato de força para obrigar os dirigentes "socialistas" a "tomar de verdade o poder", ou seja, pedir a quinta coluna da burguesia que tome o poder em nome dos operários.

Em tal situação lançar-se ao enfrentamento decisivo com a burguesia e seus sequazes era embarcar em uma aventura que podia comprometer definitivamente o destino da Revolução. Era um choque prematuro que podia liquidar-se com uma derrota definitiva.

O Partido bolchevique desaconselhou a ação, mas ao ver que as massas não lhe faziam caso e seguiam adiante, não se retirou dizendo "problema seu". O Partido participou na ação cuidando para que não se convertesse em uma aventura desastrosa e que os operários tirassem dela o máximo de lições para preparar a insurreição definitiva. Lutou com todas suas forças para fazer com que o Soviete de Petrogrado, mediante uma discussão séria e dando-se os dirigentes adequados, se tornasse realmente a expressão da orientação política reinante nas massas.

No entanto, o movimento fracassou e sofreu uma derrota. A burguesia e seus acólitos mencheviques e social-revolucionários lançaram uma violenta repressão contra os operários e, sobretudo, contra os bolcheviques. Estes pagaram um alto preço: detenções, punições, exílio... Porém esse sacrifício ajudou decisivamente a classe a minimizar os efeitos da derrota sofrida e a explicar de maneira mais consciente e organizada, em melhores condições, o problema da insurreição.

Este compromisso do partido com a classe permitiu, a partir de agosto, uma vez passados os piores momentos de reação burguesa, a plena sintonia partido-classe imprescindível para o triunfo da revolução: "Durante o levante de fevereiro, todos os muitos anos precedentes de trabalho dos bolcheviques frutificaram, e os operários avançados educados pelo partido descobriram seu lugar na luta, mas ainda não havia uma liderança direta do partido. Nos eventos de abril, as palavras de ordem do partido manifestaram sua força dinâmica, mas o movimento em si desenvolveu-se independentemente. Em junho, a enorme influencia do partido revelou-se, mas as massas ainda funcionavam dentro dos limites de uma manifestação chamada oficialmente pelo inimigo. Apenas em julho o partido bolchevique, sentindo a pressão das massas, saiu às ruas contra todos os outros partidos, e não apenas com suas palavras de ordem, mas com sua direção organizada, e determinou o caráter fundamental do movimento. O valor de uma vanguarda de fileiras cerradas se manifestou totalmente pela primeira vez nas jornadas de julho, quando o partido - a um grande custo - defendeu o proletariado da derrota , e salvaguardou sua própria revolução futura" [19].

A insurreição obra dos sovietes

A situação de duplo poder que dominou todo o período que vai desde fevereiro a outubro é uma situação instável e perigosa. Seu prolongamento excessivo sem que nenhuma das duas classes acabe impondo-se foi, sobretudo danosa para o proletariado: se a incapacidade e o caos que caracterizavam nesses momentos a classe governante, acentuavam seu desprestígio, ao mesmo tempo, provocavam o cansaço e desorientação das massas operárias, lhes tiravam o sangue em combates estéreis e começavam a enfraquecer as simpatias das classes intermediárias em favor do proletariado. Por isso era necessário decantar, decidir tomar o poder mediante a insurreição. "A revolução avança em um ritmo rápido, tempestuoso e decidido, derruba todos os obstáculos com mão de ferro e se dá objetivos cada vez mais avançados, ou de repente retrocede de seu fraco ponto de partida e termina liquidada pela contra-revolução" [20].

A insurreição é uma arte. Necessita fazer-se no momento preciso da evolução da situação revolucionária, nem prematuramente com o qual fracassaria; nem demasiado tarde, com o qual, uma vez passada a oportunidade, o movimento revolucionário iria se desintegrando vítima da contra-revolução.

Em princípios de setembro a burguesia, através de Kornilov, tentou um golpe de Estado que constituiu o sinal da ofensiva final da burguesia para derrubar os sovietes e restabelecer plenamente seu poder.

O proletariado, com o concurso massivo dos soldados, fez fracassar a intentona e, com isso se acelerou a decomposição do exército: os soldados de numerosos regimentos se pronunciavam a favor da Revolução, expulsando os oficiais e organizando o conselho de soldados.

Como vimos antes, a renovação dos sovietes desde meados de agosto estava mudando claramente a correlação de forças em favor do proletariado. A derrota do golpe de Kornilov acelerou o processo.

Desde meados de setembro uma maré de resoluções reivindicando a tomada do poder (Krondstadt, Ekaterinoslav, etc.) surgiu dos sovietes locais ou regionais: o Congresso de sovietes da região norte, celebrando o 11-13 de outubro, conclamou abertamente a insurreição. Em Minsk, o Congresso regional de sovietes decidiu apoiar a insurreição e enviar tropas de soldados favoráveis à revolução. Em 12 de outubro, "... um comício de massa dos operários de uma das mais revolucionárias fábricas da capital (Old Parviainen) deu a seguinte resposta aos ataques da burguesia: "Declaramos que sairemos às ruas quando julgarmos necessário. Não temos medo da luta que se aproxima e acreditamos firmemente que dela sairemos vitoriosos" " [21].

Em 17 de outubro, o Soviete de soldados de Petrogrado decidiu: "A guarnição de Petrogrado deixa de reconhecer o Governo provisório. Nosso governo é o Soviete de Petrogrado. Acataremos somente as ordens do Soviete de Petrogrado dadas por seu Comitê militar revolucionário" [22]. O Soviete distrital de Vyborg decidiu uma marcha para apoiar esta Resolução, a qual se uniram os marinheiros. Um diário liberal de Moscou -citado por Trotski- descreveu assim o ambiente na capital: "nos bairros, nas fábricas de Petrogrado, Nevski, Obujov e Putilov, a agitação bolchevique pelo levantamento alcança sua maior intensidade. O estado de ânimo dos operários é tal que estão dispostos a colocar-se em marcha em qualquer momento".

A aceleração das insurreições camponesas em setembro constituiu outro elemento da maturação das condições necessárias para a insurreição: "Visto que deixamos os sovietes das duas capitais esmagarem a insurreição camponesa, perdemos e merecemos perder toda a confiança dos camponeses, nos colocamos ante os olhos dos camponeses no mesmo plano de que os Liber-Dan [23] e demais miseráveis" [24]. Porém é a nível mundial que está o fator decisivo da Revolução. Isto o colocou claro Lênin em uma Carta aos camaradas bolcheviques do Congresso de sovietes da região norte (8 de outubro de 17): "Nossa revolução vive momentos críticos ao extremo. Esta crise tem coincidido com a grande crise de crescimento da revolução socialista mundial e da luta do imperialismo mundial contra ela. Sobre os dirigentes responsáveis de nosso partido recai uma gigantesca tarefa, cujo descumprimento ameaçaria a bancarrota completa do movimento proletário internacionalista. O momento é tal que a demora equivale verdadeiramente à morte" [25].

Em outra carta (o 1º de outubro de 17) menciona: "Os bolcheviques não tem direito a esperar o Congresso dos sovietes, devem tomar o poder imediatamente. Com isso salvariam tanto a revolução mundial (pois, de outro modo, existe o perigo de uma confabulação dos imperialistas de todos os países, que depois de metralhados na Alemanha serão complacentes uns com os outros e se unirão contra nós) como a revolução russa (pois, de outro modo, a onda presente de anarquia pode ser mais forte que nós)" [26].

Esta consciência da responsabilidade internacional do proletariado russo não era algo que unicamente entendiam Lênin e os bolcheviques. Ao contrário, muitos setores operários participavam dela:

  • em 1ºde Maio de 1917, "A confraternização estava ocorrendo em todo front, os soldados tomavam a iniciativa mais audaciosamente... O ministro Kadete Chingarev, numa conferência com delegados das trincheiras, defendeu a ordem de Gutchkov contra a "indulgência desnecessária" aos prisioneiros de guerra, e falou da "ferocidade alemã". Sua observação não encontrou a menor simpatia. A conferência se expressou decisivamente a favor de aliviar as condições dos prisioneiros de guerra" [27].
  • "Falou um soldado do front romeno, um homem fraco, de expressão trágica e ardente. Camaradas - gritou no front - sofremos fome e nos congelamos. Morremos por nada. Que os camaradas norte-americanos transmitam à América que nós combateremos até morrer por nossa revolução. Resistiremos com todas nossas forças até que se levantem em nossa ajuda todos os povos do mundo! Digam aos operários norte-americanos que se levantem e lutem pela Revolução social!"[28].

O Governo Kerenski tentou deslocar os regimentos de soldados mais revolucionários de Petrogrado, Moscou, Vladimir, Reval etc., até o front ou para regiões perdidas como meio de descabeçar a luta. Em combinação com esta medida, a imprensa liberal e menchevique iniciou uma furiosa campanha de calúnias contra os soldados acusando-os de "acomodados", de "não dispor sua vida pela pátria", etc. Os operários da capital responderam imediatamente, e numerosas assembléias de fábrica apoiavam os soldados, pediam todo o poder aos sovietes e conquistavam adesão para armar os operários. Neste contexto, o Soviete de Petrogrado decidiu em uma reunião em 9 de outubro criar um Comitê militar revolucionário com o propósito inicial de controlar o governo, que imediatamente se transformará em centro organizador da insurreição. Nele se agrupam representantes do Soviete de Petrogrado, o Soviete de Marinheiros, o soviete da Região da Finlândia, o Sindicato Ferroviário, o Congresso de Conselhos de fábrica e a Guarda Vermelha.

Esta última era um corpo operário que "... se formou pela primeira vez durante a Revolução de 1905 e ressurgiu nos dias de março de 1917, quando era necessária uma força para manter a ordem na cidade. Nesta época os Guardas Vermelhos estavam armados e todos os esforços do governo provisório para desarmá-los tornaram estéreis. A cada crise que se produzia no curso da revolução, os destacamentos da Guarda Vermelha apareciam nas ruas, não adestrados nem organizados militarmente, mas cheios de entusiasmo revolucionário" [29].

Apoiado neste reagrupamento de forças de classe, o Comitê militar revolucionário (adiante o chamaremos CMR) convocou uma Conferência de Comitês de regimento que em 18 de outubro discutiu abertamente a questão da insurreição, pronunciando-se majoritariamente por ela exceto 2 que estavam contra e outros dois que se declararam neutros (houve mais outros 5 regimentos que não tiveram representantes na Conferência). Do mesmo modo, tomou uma Resolução a favor do armamento dos operários.

Esta Resolução já estava se aplicando na prática, os operários em massa encaminhavam-se para os arsenais do Estado e reclamavam a entrega de armas. Quando o Governo proibiu tais entregas, os operários e empregados do Arsenal da fortaleza Pedro e Paulo (baluarte reacionário) decidiram colocar-se a disposição do CMR e em contato com outros arsenais organizaram a entrega de armas aos operários.

Em 21 de outubro, a Conferência de Comitês de regimento ordenou a seguinte Resolução: "1º A guarnição de Petrogrado e região promete ao CMR sustentá-lo inteiramente em toda sua ação. 2º A guarnição se dirige aos cossacos: os convidamos às reuniões de amanhã. Sejam bem vindos irmãos cossacos! 3º O Congresso pan-russo dos sovietes deve tomar todo o poder. A guarnição promete pôr todas suas forças a disposição do Congresso. Contem com nós, representantes autênticos do poder dos soldados, operários e camponeses. Estamos em nossos postos, decididos a vencer ou morrer" [30].

Podemos ver aqui os traços característicos da insurreição operária: iniciativa criadora das massas, organização simples e admirável, discussões e debates que dão lugar a Resoluções que sintetizam a consciência adquirida pelas massas, recurso à convicção e persuasão - chamamento aos cossacos para que abandonaram o grupo governamental, ou o comício apaixonado e dramático dos soldados da fortaleza Pedro e Paulo celebrado em 23 de outubro e que decidiu não obedecer mais que o CMR. Tudo isso são os traços característicos de um movimento de emancipação da humanidade, de protagonismo direto, apaixonado, criador, das massas exploradas.

A jornada de 22 de outubro convocada pelo Soviete de Petrogrado selou definitivamente a insurreição: se reuniram manifestações e assembléias em todos os bairros, em todas as fábricas, que concordaram massivamente: "Abaixo Kerenski", "todo o poder para os sovietes". Foi um ato gigantesco, onde operários, empregados, soldados, muitos cossacos, mulheres, crianças, soldaram abertamente seu compromisso com a insurreição.

Não é possível no marco deste artigo contar todos os pormenores deste período (remetemos ao livro já mencionado de Trotski ou ao de J. Reed). O que pretendemos deixar claro é o caráter massivo, aberto, coletivo, da insurreição. "A insurreição foi determinada, por assim dizê-lo, para uma data fixa: o 25 de outubro. E não foi fixada em uma sessão secreta, mas aberta e publicamente, e a revolução triunfante se fez precisamente em 25 de outubro (6 de novembro), como havia sido estabelecido de antemão. A história universal conhece um grande número de revoltas e revoluções: porém buscaríamos nela em vão outra insurreição de uma classe oprimida que houvesse sido fixada antecipada e publicamente para uma data assinalada, e que houvesse sido realizada vitoriosamente no dia indicado de antemão. Neste sentido e em vários outros, a Revolução de novembro é única e incomparável" [31].

Os bolcheviques explicaram claramente desde setembro a questão da insurreição nas assembléias de operários e soldados, tomaram as posturas mais combativas e decididas dentro do CMR, e da Guarda Vermelha; se deslocaram aos quartéis onde havia mais dúvidas ou que estavam favoráveis ao Governo provisório, a convencer os soldados; o discurso de Trotski foi crucial para convencer os soldados da fortaleza de Pedro e Paulo. Denunciaram sem trégua as manobras, a demora, as armadilhas dos mencheviques. Lutaram para que o IIº Congresso dos sovietes fosse convocado diante a sabotagem dos social-traidores.

No entanto, não foram os bolcheviques, mas todo o proletariado de Petrogrado que decidiu e executou a insurreição. Os mencheviques e social-revolucionários tentaram repetidas vezes atrasar sine die a celebração do IIº Congresso dos sovietes. Foi pela pressão das massas, a insistência dos bolcheviques, o envio de milhares de telegramas dos sovietes locais reclamando sua convocação, o que, finalmente, obrigou a CEC -antro dos social-traidores- a convocá-lo para o 25. "Depois da revolução de 25 de outubro, os mencheviques, e perante todo Martov, falaram muito acerca da usurpação do poder às costas do soviete e da classe operária. É difícil imaginar-se uma deformação mais descarada dos feitos. Quando na sessão dos sovietes decidimos por maioria a convocação do IIº Congresso para 25 de outubro, os mencheviques diziam: "vocês decidiram a revolução". Quando, com a maioria esmagadora do Soviete de Petrogrado nós temos negado deixar partir os regimentos da capital, os mencheviques diziam: "Isto é o princípio da insurreição". Quando no Soviete de Petrogrado foi criado o CMR, os mencheviques fizeram constar: "este é o organismo da insurreição armada". Porém quando o dia decisivo estouro u a insurreição prevista por meio deste organismo, criado e "descoberto" antecipadamente, os mesmos mencheviques gritaram: uma maquinação de conspiradores tem provocado uma revolução às costas da classe" [32].

O proletariado se deu os meios de força - armamento geral dos operários, formação do CMR, insurreição - para que o Congresso dos sovietes pudesse tomar efetivamente o poder. Se o Congresso dos sovietes houvesse decidido "tomar o poder" sem essa preparação prévia, tal decisão teria sido uma gesticulação vazia facilmente desarticulável pelos inimigos da Revolução. Não se pode ver o Congresso dos sovietes como um ato isolado, formal, mas dentro de toda a dinâmica geral da classe e concretamente, dentro de um processo, onde em escala mundial se desenvolveram as condições da revolução e onde, dentro da Rússia, infinidades de sovietes locais chamavam a tomada do poder ou o tomavam efetivamente: simultaneamente com Petrogrado, em Moscou, em Tula, nos Urais, na Sibéria, em Jarkov, etc., os sovietes faziam triunfar a insurreição.

O Congresso dos sovietes tomou a decisão definitiva, confirmando a plena validade da iniciativa do proletariado de Petrogrado: "Apoiando-se na vontade da imensa maioria dos operários, os soldados e os camponeses e na insurreição vitoriosa dos operários e a guarnição de Petrogrado, o Congresso toma em suas mãos o poder... O Congresso decide: todo o poder nas localidades passa aos sovietes de deputados operários, soldados e camponeses, chamados a assegurar uma ordem verdadeiramente revolucionária".


[1] Trotsky, A História da Revolução Russa; Editora Sundermann - Tomo I; capítulo "O duplo poder".

[2] Lênin, Os ensinamentos da revolução, ponto VI. Tradução nossa.

[3] Trotski, op.cit. Capítulo "O grupo dirigente e a guerra".

[4] Ana M. Pankratova, Os conselhos de fábrica na Rússia de 1917, capítulo "O desenvolvimento da luta entre Capital e Trabalho e a Primeira Conferência de Comitês de Fábrica". Tradução nossa.

[5] J. Reed, Dez dias que abalaram o mundo, capítulo III. Tradução nossa..

[6] Trotsky, op.cit. Tomo II; capítulo "As jornadas de julho: auge e derrota".

[7] J. Reed, idem. Tradução nossa.

[8] Nunca negamos os erros que cometeu o partido Bolchevique, nem sua degeneração e transformação em coluna vertebral da odiosa ditadura stalinista. O papel do partido Bolchevique assim como a crítica implacável de seus erros e de sua degeneração, os temos analisado em vários artigos de nossa Revista internacional: "A degeneração da Revolução russa" e "Lições de Krondstadt" (nº 3) e "Defesa do caráter proletário da Revolução de Outubro" (nºs 12 e 13). A razão essencial da degeneração dos partidos e organizações políticas do proletariado resultou no peso da ideologia burguesa em suas filas que cria constantemente tendências ao oportunismo e ao centrismo (ver "Resolução sobre o centrismo e o oportunismo" na Revista internacional, nº 44).

[9] Atas da Segunda Conferência bolchevique de toda Rússia, abril 1917. Tradução nossa.

[10] Idem.

[11] Trotski, op.cit. Capítulo "Os Bolcheviques e os Sovietes".

[12] Lênin, Introdução a Conferência de Abril, 1917. Tradução nossa.

[13] Trotski, op.cit. Tomo I - capítulo "Rearmando o partido"

[14] Lênin. Teses de Abril. Tese 3 "As tarefas do proletariado na presente revolução". Tradução nossa.

[15] Lênin. A dualidade de poderes. Tradução nossa.

[16] Lênin. Teses de Abril. Tese 7 "As tarefas do proletariado na presente revolução". Tradução nossa.

[17] Lênin, Os ensinamentos da crise, abril 1917. Tradução nossa.

[18] Lênin. Teses de Abril. Tese 17, "As tarefas do proletariado...". Tradução nossa.

[19] Trotski, op.cit. Tomo II; capítulo "Rearmando o partido".

[20] Rosa Luxemburgo, A Revolução russa, capítulo I. Tradução nossa.

[21] Trotski, op.cit. Capítulo "O Comitê Militar Revolucionário".

[22] J. Reed, idem. Tradução nossa.

[23] Apelido irônico dado aos lideres mencheviques Líber e Dan, depois da publicação do artigo de Démian Biedny intitulado "Liberdan" no jornal bolchevique de Moscou de 25 de agosto de 1917. Nota do tradutor.

[24] Lênin, A crise amadureceu, parte VI. Tradução nossa.

[25] Tradução nossa.

[26] Tradução nossa.

[27] Trotski, op.cit. Tomo I; capítulo  "O grupo dirigente e a guerra".

[28] J. Reed, op.cit. Capítulo II. Tradução nossa.

[29] J. Reed, op.cit. Capítulo "Notas e esclarecimentos". Tradução nossa.

[30] Citado por Trotski. Tradução nossa.

[31] Trotski, A Revolução de novembro, 1919. Tradução nossa.

[32] Trotski, op. cit. Tradução nossa.

A insurreição de Outubro, uma vitória das massas operárias

  • 4451 leituras

Alguns historiadores assalariados do capital estão cheios de elogios hipócritas à "iniciativa" e inclusive à "energia revolucionária" dos operários e seus órgãos de luta de massas, os conselhos operários. Estão cheios de compreensão pelo desespero dos operários, soldados e camponeses, diante dos sacrifícios da "Grande guerra". Porém, sobretudo se apresentam como os verdadeiros defensores da "autêntica Revolução russa", contra sua suposta destruição que os bolcheviques teriam levado a cabo. Em outras palavras, no centro do ataque burguês contra a Revolução russa está a oposição entre "Fevereiro" e "Outubro" de 1917, opondo assim o inicio e a conclusão da luta pelo poder que é a essência de toda grande revolução.

A hipocrisia dos que defendem a Revolução de Fevereiro para atacar a de Outubro

Rememorando o caráter explosivo, espontâneo e massivo das lutas que começaram em fevereiro de 1917, quer dizer, as greves de massas, os milhões de pessoas que tomaram as ruas, as explosões de euforia pública, e o feito de que o próprio Lênin declarara de que a Rússia neste período era o país mais livre da Terra, a burguesia opõe a isto os acontecimentos de Outubro, onde havia pouca espontaneidade, on­de se planejavam as ações com antecedência, não havia greves, nem manifestações na rua, nem assembléias de massas durante a rebelião, quando se tomou o poder por meio das ações de uns poucos milhares de homens armados na capital, sob o comando de um Comitê militar revolucionário, diretamente inspirado pelo Partido bolchevique. E então conclui: Não provaria tudo isto que Outubro só foi um golpe dos bolcheviques? Um golpe contra a maioria dea população, contra a classe operária, contra a história, contra mesmo a natureza humana? E tudo isto, nos dizem, é o resultado de "uma louca utopia marxista", que só podia sobreviver através do terror, que leva diretamente ao stalinismo.

Segundo a classe dominante, a classe operária na Rússia não queria nada mais que o que lhe havia prometido o regime de Fevereiro: uma "democracia parlamentar", disposta a "respeitar os direitos humanos", e um governo que, ao mesmo tempo que continuava a guerra, se declarava "partidário de uma paz rápida e sem anexações". Dito de outra forma, a burguesia quer nos fazer acreditar que o proletariado russo lutava para a mesma situação de miséria que sofre atualmente o proletariado moderno. Se o regime de Fevreiro não tivesse sido derrubado em outubro, vêem nos dizer, a Rússia seria hoje um país tão próspero e poderoso como os EUA, e o desenvolvimento do capitalismo no século XX teria sido pacífico.

O que expressa realmente esta hipócrita defesa do caráter espontâneo dos acontecimentos de fevereiro é o ódio e o medo que os exploradores de todos os países sentem pela revolução de Outubro. A espontaneidade da greve de massas, o reagrupamento de todo o proletariado nas ruas e nas assembléias gerais, a formação dos conselhos operários no calor da luta, são momentos essenciais na luta de libertação da classe operária. "Indubitavelmente, a espontaneidade do movimento é um sintoma de sua profundidade entre as massas, da consistência de suas raízes, de sua invencibilidade", como resaltou Lenin [1]. Porém na medida em que a burguesia continua sendo a classe dominante, em que as forças políticas e armadas do Estado capitalista permanecem intactas, ainda é possível que contenha, neutralize e dissolva as forças de seu inimigo de classe. Os conselhos operários, esses poderosos instrumentos da luta operária, que surgiram mais ou menos espontaneamente, não são, contudo nem os únicos, nem necessariamente as mais altas expressões da revolução proletária. Predominam nas primeiras etapas do processo revolucionário. A burguesia contrarrevolucionária os infla precisamente para apresentar o inicio da revolução como seu ponto culminante, sabendo que é bem fácil esmagar uma revolução que se detém a meio caminho.

Porém a revolução russa não se deteve na metade do caminho. Indo até o final, ao completar o que começou em fevereiro, a Revolução russa confirmou a capacidade da classe operária para construir paciente, consciente e coletivamente, não só "espontaneamente", mas também de forma deliberada, planificada estratégicamente, os instrumentos que requerem para a tomada do poder: seu partido de classe marxista e seus conselhos operários, galvanizados em torno de um programa de classe e uma vontade real de governar a sociedade, e a estratégia e os instrumentos específicos da insurreição proletária. Esta unidade entre a luta política de massas e a tomada militar do poder, entre o espontâneo e o planificado, entre os conselhos operários e o partido de classe, entre as ações de milhões de operários e as de audazes minorias da classe avançadas, é a essência da revolução proletária. Esta unidade é a que tenta dissolver hoje a burguesia com suas calúnias contra o bolchevismo e a insurreição de Outubro.

A destruição do Estado capitalista, a derrubada do governo de classe da burguesia, o princípio da revolução mundial: estes são os êxitos gigantescos de Outubro de 1917, o maior e mais consciente, o mais atrevido capítulo até agora em toda a história da humanidade. Outubro fez em pedaços séculos de servidão engendrado pela sociedade de classes, demostrando que, pela primeira vez na história, existe uma classe que é ao mesmo tempo classe explorada e revolucionária. Uma classe capaz de governar a sociedade abolindo o governo das classes, capaz de libertar a humanidade de sua "pré-história" de submissão a forças sociais cegas. Essa é a verdadeira razão porque a classe dominante até agora, e agora mais que nunca, difunde a imundice de suas mentiras e calúnias sobre Outubro vermelho, o acontecimento "mais odiado" da história moderna, porém que é, de fato, o orgulho da consciência de classe do proletariado. Pretendemos demostrar que a insurreição de Outubro, que os porta-vozes e escreventes do capital chamam um "golpe", foi o ponto culminante, não só da Revolução russa, mas de toda a luta de nossa classe até então. Como escreveu Lênin em 1917: "O fato de que a burguesia nos odeie com tanto furor é um dos sintomas mais evidentes de que indicamos com acerto ao povo o caminho e os meios para derrubar o dominio da burguesia" [2].

 "A crise está madura"

Em 10 de outubro de 1917, Lênin, o homem mais procurado do país, assediado pela polícia por todas as partes da Rússia, compareceu à reunião do Comitê central do Partido bolchevique em Petrogrado, disfarçado com peruca e óculos, e escreveu a siguinte resolução em uma página de um caderno escolar:

  •  "O CC reconhece que tanto a situação internacional da Revolução russa (insurreição na frota alemã como manifestação extrema da marcha ascendente em toda Europa da revolução socialista mundial; e por outro lado, a ameaça de que a paz imperialista estrangule a revolução na Rússia), como a situação militar (decisão indubitável da burguesia russa e de Kerenski e companhia de entregar Petrogrado aos alemães) e a conquista pelo partido proletário da maioria dentro dos sovietes; unindo tudo isso a insurreição camponesa e a virada da confiança do povo para nosso Partido (eleições de Moscou), e, finalmente, a preparação manifesta de uma segunda korniloviada (evacuação das tropas de Petrogrado, envio de cosacos a Petrogrado, cerco de Minsk pelos cosacos, etc.), põem à ordem do dia a insurreição armada. Reconhecendo, pois, que a insurreição armada é inevitavel e se acha plenamente madura, o CC solicita a todas as organizações do Partido se guiar por isto e a examinar e resolver a partir deste ponto de vista todos os problemas práticos (Congresso dos Sovietes da região do Norte, evacuação das tropas de Petrogrado, ações em Moscou e Minsk, etc.)" [3].

Exatamente quatro meses antes, o Partido bolchevique havia freado deliberadamente o ímpeto combativo dos operários de Petrogrado, a quem as classes dominantes impulsionou a um enfrentamento isolado e prematuro com o Estado. Uma situação assim, devia ter levado sem a menor dúvida a decapitação do proletariado russo na capital e a que seu partido de classe fosse dizimado. O partido, superando suas próprias dúvidas internas, se aprestava firmemente em "... mobilizar todas suas forças para imprimir nos operários e nos soldados a necessidade incondicional de uma última luta desesperada e resoluta para derrubar o governo de Kerenski". Em 29 de setembro declarava: "A crise está madura. Está em jogo todo o futuro da Revolução russa. Está em jogo toda a honra do Partido bolchevique. Está em jogo todo o futuro da revolução operária internacional pelo socialismo".[4]

A explicação da atitude completamente diferente do Partido em outubro, oposta à de julho, está contida na resolução mencionada antes com uma brilhante claridade e audácia marxista. O ponto de partida, como sempre para o marxismo, é a análise da situação internacional, a avaliação da relação de forças entre as classes e as necessidades do proletariado mundial. A diferença da situação em julho de 1917, a resolução faz notar que o proletariado russo já não está só; que a revolução mundial havia começado nos países centrais do capitalismo. "Dêem uma olhada na situação internacional. O crescimento da revolução mundial é indiscutivel. A explosão de revolta dos operários Tchecos tem sido sufocada com incrível ferocidade, indicadora do extremado temor do governo. Na Itália as coisas tem chegado também a um estouro massivo em Turim. Porém o mais importante é a rebelião da frota alemã" [5]. É responsabilidade da classe operária na Rússia, não só aproveitar a oportunidade para romper seu isolamento internacional, imposto até então pela guerra mundial, mas sobretudo estender as chamas da insurreição na Europa ocidental, começando a revolução mundial.

Contra a minoria de seu próprio partido que ainda fazia eco da argumentação menchevique pseudomarxista, contrarrevolucionária, de que a revolução deveria começar em um país mais avançado, Lênin mostrou que, na realidade, as condições na Alemanha eram muito mais difíceis que na Rússia e que o verdadeiro significado histórico da revolução na Rússia era ajudar a desenvolver a revolução na Alemanha. "Os alemães, em condições diabólicamente dificeis, com só um Liebknecht (e, além disso, no presídio); sem jornais, sem liberdade de reunião, sem sovietes; com uma hostilidade incrível à idéia do internacionalismo por parte de todas as classes da população - incluindo o último camponês adaptado; com uma formidável organização da burguesia imperialista grande, média e pequena; os alemães, ou melhor, os revolucionários internacionalistas alemães, os operários com capas de marinheiros, têm organizado uma rebelião na frota com um por cento de probabilidades de êxito. Nós, em troca, com dezenas de jornais, com liberdade de reunião, com a maioria nos sovietes; nós, os internacionalistas proletários colocados nas melhores condições de todo o mundo, nos negaríamos a apoiar com nossa insurreição os revolucionários alemães. Raciocinaríamos como os Scheidemann e os Renaudel: o mais sensato é não revoltar-se, pois senão nos metralham que excelentes, que judiciosos, que ideais internacionalistas perderá o mundo!! Demostremos nossa sensatez. Aprovemos uma resolução de simpatia com os insurgentes alemães e recusemos a insurreição na Rússia. Isso será internacionalismo autêntico, sensato" [6].

Esta posição e este método internacionalista, exatamente o oposto à posição burguesa nacionalista que desenvolveu o stalinismo durante a contrarrevolução, não era exclusiva do Partido bolchevique nessa época, senão a propriedade comum dos operários avançados da Rússia com sua educação política marxista. Assim, em começos de outubro, os marinheiros revolucionários da frota do Báltico proclamaram através das estações de rádio de seus barcos aos confins da terra a siguinte convocação: "Neste momento em que as ondas do Báltico estão manchadas de sangue dos nossos irmãos, levantamos nossa voz: ... Povos oprimidos de todo o mundo! icem a bandeira da revolta!". Porém a avaliaçao das forças de classes a nivel mundial que faziam os bolcheviques não se limitava a examinar o estado do proletariado internacional, mas expressava uma clara compreensão da situação global do inimigo de classe. Baseando-se sempre em um enraizado e profundo conhecimento da história do movimento operário, os bolcheviques sabiam, pelo exemplo da Comuna de Paris de 1871, que a burguesia imperialista, inclusive em plena guerra mundial, unificaria suas forças contra a revolução.

"Não demonstra a completa inatividade da marinha inglesa em geral, assim como dos submarinos ingleses durante a tomada de Osel pelos alemães, em relação com o plano do Governo de transferir-se de Petrogrado para Moscou, que se há forjado um complô entre os imperialistas russos e ingleses, entre Kerenski e os capitalistas anglo-franceses, para entregar Petrogrado aos alemães e, desta forma, estrangular a revolução russa?", pregunta-se Lenin, e acrescenta, "A resolução da Seção de soldados do Soviete de Petrogrado contra a evacuação do Governo de Petrogrado mostra que também entre os soldados amadurece o convencimento do complô de Kerenski" [7]. Em agosto, sob Kerenski e Kornilov, a Riga revolucionária foi entregue aos pés do kaiser Guillermo II. Os primeiros rumores de uma paz em separado entre Grã-Bretanha e Alemanha contra a Revolução russa alarmaram Lenin. O objetivo dos bolcheviques não era a "paz", senão a revolução, posto que sabiam, como verdadeiros marxistas, que o "cessar fogo" capitalista só podia ser um intervalo entre duas guerras mundiais. Era esta visão comunista da espiral inevitavel da barbárie que o capitalismo decadente em falência histórica, reservava a humanidade o que impulsionava agora a bolchevismo na corrida contra o relógio para cessar a guerra por meios revolucionários proletários. Ao mesmo tempo, os capitalistas começavam a sabotar a produção em todas as partes para desacreditar a revolução. Estes feitos, no entanto, no fim das contas contribuíram para os operários em destruir o mito burguês patriota da "defesa nacional", segundo o qual, a burguesia e o proletariado da mesma nação, têm um interesse comum em repelir o "agressor" estrangeiro. Isto explica também porque, em outubro, a preocupação dos operários já não era desencadear a greve de massas, mas manter a produção em marcha contra a tentativa de ataque da burguesia a suas próprias fábricas.

Entre os fatores que foram decisivos para levar a classe operária à insurreição está o fato de que a revolução estava ameaçada por novos ataques contrarrevolucionários, e que os operários, sobretudo os principais sovietes, apoiavam agora os bolcheviques. Esses dois fatores eram o fruto direto da confrontação de massas mais importante entre julho e outubro de 1917: o golpe de Kornilov em agosto. Sob da direção dos bolcheviques, o proletariado interrompeu a marcha de Kornilov a capital, essencialmente ganhando a suas tropas, e sabotando seu transporte e logística graças aos operários das ferroviárias, do correio e outros. Nesta ação, durante a qual os sovietes se revitalizaram como organização revolucionária de toda a classe, os operários descubriram que o Governo provisório de Petrogrado, dirigido pelo socialista revolucionário Kerenski e pelos mencheviques, estava envolvido no complô contrarrevolucionário. A partir desse momento, os operários compreenderam que esses partidos haviam se convertido em uma verdadeira "ala esquerda do capital", e começaram a se pender para os bolcheviques.

  • "Toda a arte tática consiste em saber aproveitar o momento em que a combinação das condições é mais favorável. A sublevação de Kornilov preparara definitivamente estas condições. As massas, que tinham perdido a confiança nos partidos da maioria soviética, viram o perigo de contra-revolução com os próprios olhos. Consideraram que cabia agora aos bolcheviques encontrar uma saída para a situação" [8].

O teste mais claro que dá prova das qualidades revolucionárias de um partido operário é sua capacidade para explicar a questão do poder. "Ora, a mudança mais brusca é aquela em que o Partido do proletariado passa da preparação, propaganda, organização e agitação para a luta direta pelo poder, à insurreição armada contra a burguesia. Tudo o que há de irresoluto, cético, conciliador e capitulacionista no interior do Partido, ergue-se contra a insurreição" [9].

Porém o Partido bolchevique superou esta crise, envolvendo se firmemente na luta armada pelo poder e demostrando assim suas qualidades revolucionárias sem precedente.

O proletariado toma o caminho da insurreição

Em fevereiro de 1917 se estabeleceu uma situação denominada de "duplo poder". Junto ao Estado burguês, e oposto a ele, os conselhos operários apareciam como um governo potencial alternativo da classe operária. Posto que na realidade não possam coexistir dois governos opostos de duas classes inimigas, posto que necessariamente uma tenha que destruir a outra para impor-se à sociedade, esse período de duplo poder é necessariamente curto e instável. Essa fase não se caracteriza, desde já, por uma "coexistência pacífica" ou uma mútua tolerância. Poderá ter uma aparência de equilíbrio social. Na realidade é uma etapa decisiva na guerra civil entre o trabalho e o capital.

A falsificação burguesa da história está obrigada a mascarar a luta de vida ou morte das classes que teve lugar entre fevereiro e outubro de 1917 para apresentar a revolução de Outubro como um "golpe bolchevique". Um prolongamento "anormal" desse período de "duplo poder" teria significado necessariamente o fim da revolução e de seus órgãos. Os sovietes são reais unicamente "como órgão de insurreição, como órgão do poder revolucionário. Fora disso, os sovietes não são mais que um mero joguete que só pode produzir apatía, indiferença e decepção entre as massas, que estão legitimamente fartas da interminável repetição de resoluções e protestos" [10]. Ainda que a insurreição proletária não fosse mais espontânea que o golpe militar contrarrevolucionário, nos meses que antecederam a outubro, ambas classes manifestaram repetidamente sua tendência espontânea à luta pelo poder. As Jornadas de julho e o golpe de Kornilov só foram as manifestações mais claras. A mesma insurreição de Outubro na realidade começou não com um sinal do Partido bolchevique, mas com o intento do governo burguês de enviar as tropas mais revolucionárias, dois terços da guarnição de Petrogrado, a frente de guerra, com a intenção de substituí-los por batalhões contrarrevolucionários. Dito de outra forma, a burguesia começou, apenas algumas semanas depois da kornilovada, com um novo intento de esmagar a revolução, obrigando o proletariado a tomar medidas insurrecionais para defendê-la.

  • "No entanto, o desenlace da insurreição de 25 de Outubro pré-determinara-se já, pelo menos em três quartas partes, no momento em que, opondo-nos ao afastamento da guarnição de Petrogrado, criamos o Comitê Militar Revolucionário (7 de Outubro), nomeamos os nossos comissários para todas as unidades e instituições militares e, por isso mesmo, isolamos completamente, não só o estado-maior da circunscrição militar de Petrogrado, mas também o governo... A partir do momento em que, por ordem do Comitê Militar Revolucionário, os batalhões se recusaram a abandonar a cidade, estava-se diante de uma insurreição vitoriosa na capital" [11].

Ademais, este Comitê militar revolucionário, que tinha de conduzir as ações militares decisivas de 25 de outubro, não só não era um órgão do Partido bolchevique, mas que em sua origem foi proposto pelos partidos de "esquerda" contrarrevolucionários como um meio para impor precisamente a retirada das tropas da capital sob a autoridade dos sovietes; porém foi trasformado imediatamente pelo soviete em um instrumento não só para opor-se a esta medida, mas para organizar a luta pelo poder.

"Não, o poder dos sovietes não era uma quimera, uma construção arbitraria, a invenção dos teóricos do Partido. Subia, irresistivelmente. de baixo da desordem econõmica da impotência dos possuidores das necessidades das massas; os sovietes, transformavam-se, na verdade, no poder para os operãrios, o soldados, os camponeses não existia outro caminho. A respeito do poder dos sovietes, não era mais tempo de procurar raciocinios e objeções; era necessário realizá-lo" [12]. A lenda de um golpe bolchevique é uma das maiores mentiras da história. De fato, a insurreição se anunciou públicamente de antemão aos delegados revolucionários eleitos. O discurso de Trotski em 18 de outubro à Conferência da guarnição é uma ilustração disto: "A burguesia sabe que o Soviete de Petrogrado proporá ao congresso dos Sovietes que tome o poder em mãos... Pressentindo a batalha inevitável, as classes burguesas se esforçam por desarmar Petrogrado... A primeira tentativa da contra-revolução para suprimir o Congresso responderemos por meio de uma contra-ofensiva que será implacável e que levaremos até o fim". O ponto 3 da resolução adaptada pela Conferência da guarnição, diz: "O Congresso Panrusso dos Sovietes deve tomar o poder em mãos e assegurar ao povo paz, terra e pão" [13]. Para assegurar que todo o proletariado apoiaria a luta pelo poder, a Conferência decidiu uma pacífica revisão de forças, que se celebraria em Petrogrado, antes do Congresso dos sovietes, e se basearia em assembléias de massas e debates : "Nas salas superlotadas, o auditório renovava-se durante horas e horas. Vagas e vagas, operários, soldados e marinheiros, espraiavam-se até os edifícios e inundavam-nos. Um tremor perpassou pelo pequeno povo da cidade, acordando-o com os gemidos e as advertências que realmente deviam provocar o medo. Dezenas de milhares de pessoas faziam submergir o enorme edifício da Casa do Povo, Espalhavam-se pelos corredores, pelos bufetes e pelos salões. Nos postes de ferro fundido, nas janelas, estavam suspensos, em guirlandas, pencas de cabeças humanas, de braços e de pernas, Havia no ar aquela carga de electricidade que anuncia próximos fragores. Abaixo Kerensky! Abaixo a guerra. O poder aos sovietes. Nem um dos conciliadores ousou aparecer diante das multidões ardentes para opor-lhes objecções ou fazer advertências. A palavra pertencia aos bolcheviques" [14].Trotski acrescenta: "A experiência da Revolução, da guerra, de uma luta dura, de toda uma vida amarga, emerge das profundezas da memória de todos os homens esmagados pela necessidade, e cunha-se nas palavras de ordem simples e imperiosa. Aquilo não podia continuar assim. Era preciso abrir uma passagem para o futuro".

O Partido não inventou este "desejo de poder" das massas, porém o inspirou e deu ao proletariado confiança em sua capacidade para governar. Como escreveu Lenin depois do golpe de Kornilov: "Deixemos a esses de pouca fé aprender deste exemplo. Vergonha aos que dizem: "não temos nenhuma máquina com que substituir a velha, que funciona inexoravelmente fazendo a defesa da burguesia". Pos temos uma máquina. Trata-se dos sovietes. Não temamos a iniciativa e a independência das massas. Confiemos nas organizações revolucionárias das massas e veremos em todas as esferas da vida do Estado o mesmo poder, majestade e vontade inquebrantável dos operários e camponeses que tem mostrado sua solidariedade e entusiasmo contra a kornilovada" [15].

A tarefa do momento: demolir o Estado burguês

A insurreição é um dos problemas mais cruciais, complexos e exigentes, que o proletariado tem que resolver se quer cumprir sua missão histórica. Na revolução burguesa esta questão é muito menos decisiva, posto que a burguesia podia basear sua luta pelo poder sobre o poder que já tinha conquistado a nivel político e econômico no seio da sociedade feudal. Durante sua revolução, a burguesia deixou a pequena burguesia e a jovem classe operária combater por ela. Quando se dissipava a fumaça da batalha, a burguesia amiude prefiriu entregar seu recém-conquistado poder às antigas classes feudais, agora aburguesadas e domesticadas, posto que por tradição estas tinham a autoridade de sua parte. O proletariado, ao contrário, não tem nenhuma propriedade nem poder econômico dentro do capitalismo, e não pode delegar, nem sua luta pelo poder, nem a defesa de seu governo de classe a nenhuma outra classe nem setor da sociedade. Tem que tomar ele mesmo o poder, arrastando, atrás sua liderança, à outros estratos da sociedade, e aceitando a plena responsabilidade, assumindo as consequências e os riscos de sua luta. Na insurreição, o proletariado revela e descobre mais claro que nunca, o "segredo" de sua própria existência como a primeira e a última classe explorada e revolucionária da história. Não é de estranhar que a burguesia se dedique a censurar a memória de Outubro!

A tarefa primordial do proletariado, de fevereiro em diante, foi conquistar os corações e as mentes de todos aqueles setores que pudessem ser ganhos para sua causa, e que de outro modo poderiam ser utilizados contra a revolução: os soldados, os camponeses, os funcionários do Estado, os empregados de transportes e comunicações, e inclusive os serventes da burguesia. Às vésperas da insurreição já se havia completado esta tarefa.

A tarefa da insurreição era bastante diferente: a de romper a resistência desses corpos de Estado e formações armadas que não podiam ser ganhos para a causa do proletariado, e cuja existência contínua contém o núcleo da contrarrevolução mais bárbara. Para romper esta resistência, para demolir o Estado burguês, o proletariado tem que criar uma força armada e colocá-la sob sua própria direção de classe com disciplina de ferro. Ainda que estivessem dirigidas pelo proletariado, as forças insurreicionais de 25 de outubro estavam compostas essencialmente de soldados que obedeciam sua órdens. "A Revolução de Outubro foi a luta do proletariado contra a burguesia pelo poder. Foi, todavia, o mujique quem decidiu, afinal de contas, o resultado da luta... O que deu, na capital, á insurreição, o carácter de um golpe desferido rapidamente e com um mínimo de vítimas, foi a combinação do complô revolucionário da insurreição proletária com a luta da guarnição camponesa para a sua própria salvaguarda. O Partido dirigia a insurreição: a principal força motriz era o proletariado; os destacamentos operários armados representavam o punho fechado para o choque; mas o resultado da luta deveria ser decidido pela guarnição camponesa, difícil de sublevar" [16]. Na realidade, o proletariado pôde tomar o poder porque foi capaz de mobilizar outros estratos sociais atrás do seu próprio projeto de classe: exatamente o oposto a um "golpe".

  • "Quase não houve manifestações, combates de rua, barricadas, tudo quanto se entende geralmente por insurreição; a Revolução não tinha necessidade de resolver um problema que já estava resolvido. A tomada do aparelho governamental poderia ser efetuada segundo um plano, com o auxílio dos destacamentos armados, relativamente pouco numerosos, partindo de um centro único (...) Em Outubro, a calma nas ruas, a ausência de multidão, a inexistência de combates davam, ao adversário, motivos para falar em conspiração de uma minoria insignificante, em espírito de aventura de um punhado de bolcheviques (...) Na verdade, os bolcheviques, no último momento da luta pelo poder, poderiam reduzir tudo a um "complô", não porque fóssem uma pequena minoria, mas, ao contrário, porque tinham. atrás dêles, nos bairros operários e nas casernas, uma esmagadora maioria, fortemente agrupada, organizada, disciplinada" [17].

Eleger o momento adequado: pedra angular da luta pelo poder

Tecnicamente falando, a insurrecição comunista é uma simples questão de organização militar e de estratégia. Politicamente, é a tarefa mais exigente que se possa imaginar. E o mais difícil de tudo é eleger o momento adequado da luta pelo poder. O principal perigo era uma insurreição prematura. Por volta de setembro, Lênin já estava chamando incessantemente a preparação imediata da luta armada, e declarando: "Agora ou nunca!".

É impossível dispor a vontade de uma situaçao revolucionaria. "Caso os bolcheviques não tivessem tomado o poder em outubro-novembro, por certo, Jamais o teriam tomado. Ao invés de uma direção firme, as massas teriam encontrado, entre os bolcheviques, sempre as mesmas divergências fastidiosas entre a palavra e a ação, e afastar-se-iam do partido que iludira suas esperanças durante dois ou três meses, assim como se afastaram dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques" [18]. Por isso, Lenin, ao combater o perigo de atrasar a luta pelo poder, não só salientava os preparativos contrarrevolucionários da burguesia mundial, mas, sobretudo, advertia contra os efeitos desastrosos das vacilações para os operários, que estavam quase desesperados. "O povo faminto poderia começar a demolir tudo ao seu redor de forma puramente anarquista, se os bolcheviques não fossem capazes de conduzí-lo a batalha final. Não se pode esperar sem correr o risco de ajudar a confabulação de Rodzianko com Guillermo e de contribuir à ruina completa, com a fuga geral dos soldados, se estes (próximos já a desmoralização) chegam ao desespero completo e abandonam tudo a sua sorte" [19].

Eleger o momento adequado também requer uma avaliação exata, não só da correlação de forças entre a burguesia e o proletariado, mas tambiém da dinâmica das camadas intermediárias. "Uma situação revolucionária não é eterna. De tôdas as premissas de urna insurreição, a menos estável é o estado de espirito da pequena burguesia. Em épocas de crise nacional ela segue a classe que, não apenas pela palavra como também pela ação, lhe inspira confiança. Capaz de entusiasmos impulsivos, até mesmo de delírios revolucionários, a pequena burguesia não tem resistência, perde fàcllmente a coragem em caso de insucesso e das ardentes esperanças cai na desilusão. E são, precisamente, as violentas e ràpidas mudanças dos estados de ânimo que dão tamanha instabilidade a cada situação revolucionária. Se o partido proletário não tem suficiente resolução para transformar, em tempo, a expectativa e as esperanças das massas populares em ação revolucionária, o fluxo é cedo substituido pelo refluxo: as camadas intermediárias viram as costas à revolução e procuram um salvador no campo oposto" [20].

A arte da insurreição

Na sua luta para persuadir o Partido da necessidade imperiosa de uma insurreição imediata, Lenin retomou as reflexões de Marx (em Revolução e contrarrevolução na Alemanha) sobre a questão da insurreição como uma arte, "que, como a arte da guerra ou outras, está sujeita a certas regras cuja negligência leva à submersão do partido responsável." Segundo Marx, a regra mais importante é não parar nunca na metade do caminho uma vez que tenha começado a insurreição; manter sempre a ofensiva posto que " a defensiva é a morte de toda sublevação armada"; surpreender o inimigo e desmoralizá-lo por meio de êxitos cotidianos, "ainda que sejam pequenos", obrigando-o a bater-se em retirada; "em poucas palavras, segundo Danton, o grande mestre da tática revolucionária: "audácia, audácia e audácia"". E como assinalou Lenin, "... há que concentrar no lugar e no momento decisivos forças muito superiores, porque do contrário, o inimigo, melhor preparado e organizado, aniquilará os insurgentes". Lenin acrescenta: "Confiemos em que, se se concorda com a insurreição, os dirigentes aplicaram com êxito as grandes regras de Danton e Marx. O triunfo da Revolução russa e da revolução mundial depende de dois ou três dias de luta" [21].

Com este objetivo, o proletariado teve que criar os órgãos de sua luta pelo poder, um comitê militar e destacamentos armados. "Assim como um ferreiro não pode pegar com a mão nua um ferro aquecido a alta temperatura, o proletariado não pode, com as mãos nuas, apoderar-se do poder: é necessário, para isso, que possua uma organização apropriada. Na combinação da insurreição das massas com a conspiração, na subordinação do complô à insurreição, na organização da insurreição através da conspiração, reside o dominio complicado e cheio de responsabilidade da política revolucionária que Marx e Engels denominavam a "arte da insurreição" " [22].

Esta explicação centralizada, coordenada, é o que permitiu ao proletariado esmagar a última resistência armada da burguesia e desferir um golpe terrivel que a burguesia mundial não esqueceria, e de fato não o tem esquecido até agora. "..Os historiadores e os homens políticos denominam, habitualmente, insurreição das fôrças elementares o movimento de massas que, ligadas pela hostilidade contra o antigo regime, não possuem objetivos claros, nem métodos de luta elaborados, nem direção que conduza, conscientemente, à vitória. A insurreição das fôrças elementares é de bom grado reconhecida pelos historiadores oficiais, pelo menos pelos democratas, como uma calamidade inevitável cuja responsabilidade recai sõbre o antigo regime. A. verdadeira razão de tal indulgência está em que as Insurreições das fôrças "elementares" não podem sair dos quadros do regime burguês (...) O que ela nega, como sendo ‘blanquismo" ou pior ainda, bolchevismo, é o preparo consciente da insurreição,
o plano, a conspiração
" [23].

Isto é o que enfurece ainda mais a burguesia: a audácia com que a classe operária lhe arrebatou o poder. A burguesia do mundo inteiro sabia que estava preparando uma sublevação. Porém não sabia como e quando atacaria o inimigo. Ao desferir seu golpe definitivo, o proletariado se aproveitou plenamente da vantagem da surpresa da eleição do terreno de batalha. A burguesia esperava que seu inimigo fosse bastante ingênuo e "democrático" para decidir a questão da insurreição públicamente, na presença das classes dirigentes, no Congresso pan-russo dos Sovietes que se havia convocado em Petrogrado. Ali esperava sabotar e impedir a decisão e sua execução. Porém quando os delegados do Congresso chegaram a capital, a insurreição estava em pleno apogeu e a classe governante ja cambaleava. O proletariado de Petrogrado, através do seu Comitê militar revolucionário, entregou o poder ao Congresso dos Sovietes, e a burguesia não pôde fazer nada para impedí-lo. Golpe! Conspiração! gritava a burguesia, ainda grita o mesmo. A resposta de Lenin foi: golpe, não; conspiração, sim, porém uma conspiração subordinada a vontade das massas e às necessidades da insurreição. E Trotski acrescenta: "Quanto mais elevado for o nível político de um movimento revolucionário, quanto mais séria fôr a direção, maior será o lugar ocupado pela conspiração dentro da Insurreição popular" [24].

O bolchevismo uma forma de blanquismo? As classes exploradoras lançam de novo, atualmente esta acusação. "Os bolcheviques tiveram de, mais de uma vez, muito tempo antes da insurreição de Outubro, refutar acusações contra êles dirigidas pelos adversários, que os acusavam de maquinações conspirativas e de bianquismo. Ora, ninguém, mais do que Lenine, manteve uma luta tão intransigente contra a mera conspiração. Os oportunistas da social-democracia internacional tomaram, muitas vêzes, sob a proteção dêles, a velha tática socialista-revolucionária do terror individual contra os agentes do tzarismo, resistindo à critica implacável dos bolchevlques, que opunham ao aventureiro Individualismo de intelflguentsia o movimento que visava a insurreição das massas. Ao repudiar tôdas as variedades de blanquismo e da anarquia, Lenine também não se inclinava, um minuto sequer, diante da "sagrada" fõrça elementar das massas". Trotski acrescenta a isto: "A conspiração não substitui a insurreição. A minoria activa do proletariado, por mais organizada que seja, não pode apoderar-se do poder independentemente da situação geral do pais: nisso o blanquismo é condenado pela história. Mas apenas nisso, o teorema direito conserva toda a força dele. Para a conquista do poder, não basta ao proletariado uma insurreição das forças elementares. Ele precisa de uma organização correspondente, ele precisa de um plano, ele precisa da conspiração. É dessa forma que Lênin coloca a questão" [25].

O partido e a insurreiçao

É um fato bem conhecido que Lênin, o primeiro que foi completamente claro sobre a necessidade da luta pelo poder em outubro, expondo diferentes planos para a insurreição (um, centralizado na Finlândia e a frota do Báltico e outro em Moscou), em algum momento defendeu que fosse o Partido bolchevique, e não um órgão dos sovietes, que organizasse diretamente a insurreição. Os feitos provaram que a organização e a liderança da sublevação por um órgão do soviete como o Comitê militar revolucionário, onde por conseqüência o Partido tinha a influência dominante, é a melhor garantia para o êxito completo do acometimento , posto que então é o conjunto da classe, e não só os simpatizantes do partido, que se sente representado por seus órgãos unitários revolucionários.

Porém a proposta de Lênin, segundo a burguesia, revela que para ele a revolução não é tarefa das massas, mas um assunto privado do Partido. Porque se não - perguntam - estava termanantemente contra esperar o Congresso dos sovietes para decidir a sublevação. A atitude de Lênin se inscrevia plenamente no marxismo e sua confiança fundada historicamente nas massas proletarias. "Seria desastroso, ou em todo caso uma explicação puramente formal, querer esperar a incerta votação de 25 de outubro. O povo tem o direito e o dever de decidir sobre essas questões, não pelo voto, mas pela força; o povo tem o direito e o dever, nos momentos críticos da revolução, de mostrar a seus representantes, inclusive a seus melhores representantes, a direção correta, em vez de esperá-los. Isto nos ensina a história de todas as revoluções, e seria um monstruoso crime dos revolucionários deixar passar o momento, quando sabem que a salvação da revolução, as propostas de paz, a salvação de Petrogrado, e acabar com a fome, ou a devolução da terra aos camponeses, depende disto. O governo cambaleia, e há que dar-lhe o último golpe. A qualquer preço!" [26].

Na realidade, todos os líderes bolcheviques estavam de acordo com isto. Quem quer que fosse que dirigisse a sublevação, o poder alcançado seria entregue imediatamente ao Congresso pan-russo dos sovietes. O Partido sabia perfeitamente que a revolução não era somente assunto seu ou dos operários de Petrogrado, mas do conjunto do proletariado. Mas em relação a questão de quem devia conduzir a insurreição propriamente dita, Lênin estava certo quando argumentava que o faziam os órgãos da classe melhor preparados e em melhores condições para assumir a tarefa da planificação política e militar e de liderança política da luta pelo poder. Trotski tinha razão ao argumentar que o melhor dotado para esta tarefa seria um órgão do Soviete, especialmente criado para esta tarefa, e sob da influência do Partido. Mas não se tratava so de um debate de princípios, mas de um assunto vital de eficácia política. A preocupação de Lênin de que não se podia sobrecarregar com esta tarefa o conjunto do aparelho do Soviete, posto que isso atrasaria a insurreição e levaria a divulgar os planos ao inimigo, era completamente válida. Foi necessária a dolorosa experiência da Revolução russa para que depois, a esquerda comunista pudesse expor que, ainda é indispensavel a direção política do partido de classe, tanto na luta pelo poder como na ditadura do proletariado, não é tarefa do partido tomar o poder. Sobre esta questão, nem Lenin, nem outros bolcheviques (nem os espartakistas na Alemanha, etc) eram suficientemente claros em 1917, nem podiam sê-lo. Mas em relação a "arte da insurreição", a paciência revolucionária, e a precaução para evitar sublevações prematuras, em relação a audácia revolucionária necessária para tomar o poder, não tem hoje revolucionários de quem se pode aprender mais de que Lênin . Em particular sobre o papel do partido na insurreição. A história provou que Lênin tinha razão: quem toma o poder são as massas, e o soviete colabora com a organização, mas o partido de classe é a arma mais indispensável da luta pelo poder. Em julho de 1917 foi o partido que não permitiu que a classe operária sofresse uma derrota decisiva. Em outubro de 1917, o partido conduziu a classe ao poder. Sem esta direção indispensável não se teria tomado o poder.

Lênin contra Stalin

Porém a revolução de Outubro levou ao stalinismo! Grita a burguesia tirando seu argumento "definitivo". Porém na realidade o que levou ao stalinismo foi a contrarrevolução burguesa, a derrota da revolução na Europa ocidental, a invasão e o isolamento internacional da União soviética, o apoio da burguesia mundial à burocracia nacionalista que se desenvolvia na Rússia contra o proletariado e os bolcheviques. É importante recordar que durante as semanas cruciais de outubro de 1917, como durante os meses anteriores, dentro do Partido bolchevique se manifestou uma corrente que refletia o peso da ideologia burguesa, que se opunha a insurreição, e da qual Stalin já era o representante mais perigoso. Já em março de 1917, Stalin havia sido o principal porta-voz no Partido daqueles que queriam abandonar sua posição internacionalista revolucionária, apoiar o Governo provisório e sua política de continuação da guerra imperialista, e reagrupar-se com os socialpatriotas mencheviques. Quando Lênin chamou publicamente a insurreição, Stalin, como editor do órgão de imprensa do Partido, atrasava intencionalmente a publicação de seus artigos, enquanto as contribuições de Kamenev e Zinoviev, que estavam contra o levantamento, e que amiúde rompiam com a disciplina do Partido, estavam publicadas como se tratasse da posição oficial do Partido, razão pela qual Lênin o ameaçou demitir do Comitê central. Stalin continuou pretendendo que Lenin, que estava pela insurreição imediata e que agora tinha o Partido à reboque, e Kamenev e Zinoviev, que sabotavam abertamente as decisões do Partido, eram "da mesma opinião". Durante a insurreição, o aventureiro político Stalin "desapareceu" - na realidade para ver que grupo ganhava antes de reaparecer defendendo sua própria posição. A luta de Lênin e o Partido contra o "stalinismo" em 1917, contra suas manipulações e a sabotagem trapaceira à insurreição (a diferença de Zinoviev e Kamenev, pois, estes, quando menos, atuavam abertamente), voltou a retomar no Partido nos últimos dias da vida de Lênin, mas desta vez em condições infinitamente mais desfavoráveis.

O cume mais alto da história humana

Longe de ser um banal golpe de Estado, como mente a classe dominante, a revolução de Outubro é o ponto mais alto que foi alcançado até hoje pela humanidade em toda sua história. Pela primeira vez uma classe explorada teve a coragem e a capacidade de tomar o poder arrebatando-o dos exploadores e inaugurar a revolução proletária mundial. Ainda que a revolução prematuramente tenha sido derrotada em Berlim, Budapeste e Turim, ainda que o proletariado russo e mundial tivesse que pagar um preço terrivel por sua derrota - o horror da contrarrevolução, outra guerra mundial, e toda a barbárie até hoje - a burguesia ainda não foi capaz de apagar a memória e as lições deste enorme acontecimento. Hoje, quando a mentalidade e a ideologia decomposta da classe dominante destila o individualismo, o niilismo e o obscurantismo, o florecimento de visões reacionárias do mundo, como o racismo e o nacionalismo, o misticismo, o ecologismo burguês, quando e são abandonados os últimos vestígios de crença no progresso humano, o farol que acendeu a revolução de Outubro marca o caminho. Outubro recorda ao proletariado que o futuro da humanidade está em suas mãos, e que essas mãos, são capazes de cumprir sua tarefa. A luta de classes do proletariado, a reapropiação pela classe operária de sua própria história, a defesa e o desenvolvimento do método científico do marxismo, esse é o programa de Outubro. Esse é hoje o programa para o futuro da humanidade. Como Trotski escreveu na conclusão de sua grande História da Revolução rusa: "A subida histórica da humanidade, tomada em conjunto, pode ser resumida como um encadeamento de vitórias da consciência sobre as forças cegas - na natureza, na sociedade, no próprio homem. O pensamento critico e criador vangloriou-se dos maiores sucessos, até o momento presente, na luta contra a natureza. As ciências físico-químicas chegaram a tal ponto que os homens se dispõem a se transformarem nos senhores da matéria. Mas as relações sociais continuam a ser estabelecidas à semelhança dos attols. O parlamentarismo iluminou apenas a superfície da sociedade e ainda assim com uma luz bastante artificial. Comparada com a Monarquia e outras heranças do canibalismo e da selvajaria das cavernas, a democracia representa, é evidente, uma grande conquista. Mas não atinge de modo algum o jogo cego das forças nas relações mútuas da sociedade. Foi exactamente nos domínios mais profundos do inconsciente que a Insurreição de Outubro, pela primeira vez, levantou a mão. O sistema soviético quer introduzir um objectivo e um plano nos fundamentos mesmos de uma sociedade onde reinam, até agora, simples consequências acumuladas"

 


 

[1] Lênin, A Revolução russa e a guerra civil. Tradução nossa.

[2] Lênin, Se sustentarão os bolcheviques no poder? Tradução nossa.

[3] Lênin, Reunião do CC do POSDR, 10-23 de outubro de 1917. Tradução nossa.

[4] Lênin, A crise está madura. Tradução nossa.

[5] Lênin, Carta aos camaradas bolcheviques que participam no Congresso dos Sovietes da região do Norte. Tradução nossa.

[6] Lênin, Carta aos camaradas. Tradução nossa.

[7] Lênin, Carta à Conferência da cidade de Petrogrado. Tradução nossa.

[8] Trotski, As lições de Outubro, escrito em 1924. Tradução Aluizio Franco Moreira(Mestre em História) www.moreira.pro.br/pagcent.htm [24]

[9] Trotski, Idem.

[10] Lênin, Tese para um informe perante a Conferência de Outubro. Tradução nossa.

[11] Trotski, As lições de Outubro.

[12] Trotski, A História da Revolução russa; Edição - Editora Paz e Terra; Volume III; capítulo "Retirada do pré-parlamento e luta pelo congresso dos soviets"

[13] Trotski, op. cit.; capítulo "Retirada do pré-parlamento"

[14] Trotski, op. cit.; capítulo "O comitê militar revolucionário"

[15] Lênin, Se sustentarão os bolcheviques no poder? Tradução nossa.

[16] Trotski, op. cit.; capítulo "A insurreição".

[17] Idem.

[18] Idem.

[19] Lênin, Carta aos camaradas. Tradução nossa.

[20] Trotski, op. cit.; capítulo "A arte da insurreição".

[21] Lênin, Conselhos de um ausente. Tradução nossa.

[22] Idem.

[23] Trotski, op. cit.; capítulo "A arte da insurreição".

[24] Idem.

[25] Ídem.

[26] Lênin, Carta ao Comitê central. Tradução nossa.

O papel indispensável do partido

  • 3496 leituras
  Uma coisa é certa: o ódio e desprezo da burguesia pela revolução proletária que começou na Rússia em 1917, seus esforços por deformar e desvirtuar sua memória, centram-se sobre tudo na organização política que encarnou o espírito daquele enorme movimento insurrecional: a partido bolchevique. Isto não deveria nos surpreender. Desde os dias da Liga dos comunistas e da Primeira Internacional, a burguesia sempre esteve disposta a "perdoar" a maioria dos pobres operários enganados pelas conspirações e as maquinações das minorias revolucionárias, às que ao contrário, estigmatizou invariavelmente como a verdadeira encarnação do diabo. E para o capital, ninguém foi tão diabólico como os bolcheviques, que, depois de tudo, arrumaram para "seduzir" aos operários mais e melhor que qualquer outro partido revolucionário na história.

Um elemento importante nesta inquisição antibolchevique , é a idéia de que o bolchevismo, apesar de todo seu discurso sobre o marxismo e a revolução mundial, era sobre tudo uma expressão do atraso da Rússia. Isto não é novo: de fato uma das expressões favoritas de "renegado Kautsky"  no momento da insurreição de Outubro. Mas depois adquiriu uma considerável respeitabilidade acadêmica. Um dos estudos melhor documentado sobre os líderes da revolução russa, o livro do Bertran Wolfe, Three who made a revolution (Três que fizeram uma Revolução), escrito na década de 1950, desenvolve esta idéia com uma atenção particular para Lênin.

Segundo esta visão, a posição do Lênin sobre a organização política proletária como um corpo "reduzido" composto de revolucionários convencidos, pertence mais às concepções conspirativas e secretas dos "narodnikis" e de Bakunin, que de  Marx. Esses historiadores, freqüentemente contrastam esta visão com as concepções mais "sofisticadas", "européias" e "democráticas" dos mencheviques. E é "obvio", já que a forma da organização revolucionária está conectada com a forma da revolução propriamente dita, a organização democrática menchevique poderia nos ter legado uma Rússia democrática, enquanto que a organização ditatorial bolchevique nos legou uma Rússia ditatorial.

Não só os porta-vozes oficiais da burguesia vendem essas idéias. Também o fazem, embora com uma embalagem diferente, os anarquistas de toda índole, que se especializam na postura de "já vos  havíamos dito" sobre a revolução russa. "Já sabíamos que o bolchevismo era perigoso e que terminaria em lágrimas. Aonde,  só podia conduzir todo esse discurso sobre a partido, o Estado do período de transição e a ditadura do proletariado" Não responderemos aqui a todas as calúnias contra o bolchevismo, limitaremos a dois episódios essenciais da Revolução russa que põem em relevo o papel da vanguarda na luta revolucionária da classe operária: as Tese de Abril defendidas por Lênin quando retornou a Rússia em 1917, e as Jornadas de Julho.

Herança da Esquerda comunista: 

  • Herança da Esquerda comunista [22]

As Teses de Abril, farol da revolução proletária

  • 8897 leituras

As Teses de Abril, breve e agudo documento, é um excelente ponto de partida para refutar todas as mentiras sobre o partido bolchevique, e para reafirmar algo essencial sobre este partido: que não foi o produto da barbárie russa, de um anarco-terrorismo distorcido, ou da avidez inesgotável de poder de seus dirigentes. O bolchevismo foi um produto, em primeiro lugar, do proletariado mundial. Inseparavelmente ligado a toda tradição marxista, não foi em nada a semente de uma nova forma de exploração e opressão, e sim a vanguarda de um movimento para acabar com toda exploração.

De fevereiro a abril

Aproximando o final de fevereiro de 1917, os operários de Petrogrado iniciaram greves massivas contra as intoleráveis condições de vida impostas pela guerra imperialista. As consignas do movimento se politizaram rapidamente. Os operários reclamavam o final da guerra e a derrubada da autocracia. Com poucos dias a greve havia se estendido a outras cidades, e os operários tomaram as armas e confraternizaram com os soldados; a greve de massas tomou o caráter de um levantamento.

Repetindo a experiência de 1905, os operários centralizaram a luta por meio de Sovietes de deputados operários, eleitos pelas assembléias de fábrica e revogáveis a qualquer momento. Diferente de 1905, os soldados e camponeses começaram a seguir este exemplo em grande escala.

A classe dirigente, reconhecendo que os dias da autocracia estavam contados, se descartou do tzar e chamou os partidos do liberalismo e da "esquerda", em particular os elementos anteriormente proletários que recentemente haviam se passado para o campo burguês ao apoiar a guerra, para formar um Governo provisório, com a intenção de conduzir a Rússia para um sistema de democracia parlamentar. Na realidade, se suscitou uma situação de duplo poder, posto que os operários e os soldados só confiavam realmente nos sovietes e o Governo provisório não estava, ainda em uma posição suficientemente forte capaz de ignorá-los, e, ainda menos para dissolvê-los. Porém esta profunda divisão de classes estava parcialmente obscurecida pela névoa da euforia democrática que caiu sobre o país após a revolta de fevereiro. Com o Tzar fora do jogo e a população desfrutando de uma inaudita liberdade, todos pareciam estar a favor da "revolução", incluindo os aliados democráticos da Rússia, que esperavam que isto permitisse à Rússia participar mais efetivamente no esforço da guerra. Assim, o Governo Provisório se apresentava a si mesmo como o guardião da revolução; os sovietes estavam dominados politicamente pelos mencheviques e os social-revolucionários, que faziam tudo que podiam para torná-los impotentes diante do regime burguês recém instalado. Em resumo, todo o ímpeto da greve de massas e do levantamento - que na realidade era uma manifestação de um movimento revolucionário mais universal, que estava fermentando-se nos principais países capitalistas como resultado da guerra - estava sendo desviado para fins capitalistas.

Onde estavam os bolcheviques nesta situação tão cheia de riscos e promessas? Estavam em uma confusão quase completa: "Para o bolchevismo, os primeiros meses da revolução foram um período de perplexidade e vacilação. No "manifesto" do Comitê Central bolchevique, redigido após a vitória da insurreição, lê-se que "os operários das oficinas e fábricas, assim como as tropas amotinadas, deviam eleger imediatamente seus representantes ao Governo Provisório Revolucionário."... Comportavam-se não como representantes de um partido proletário preparando uma luta independente pelo poder, mas como a ala esquerda da democracia que, tendo anunciado seus princípios, pretendia por um tempo indefinido desempenhar o papel de oposição leal" [1].

Quando Stalin e Kamenev tomaram a direção do partido em março de 1917, o levaram ainda mais à direita. Stalin desenvolveu uma teoria sobre as funções complementares do Governo provisório e os sovietes. Pior ainda, o órgão oficial do partido, O Pravda, adotou abertamente uma posição "defensivista" sobre a guerra: "Nossa palavra de ordem não é o inconsistente "abaixo a guerra". Nossa palavra de ordem é pressionar o Governo Provisório com o objetivo de compeli-lo... a fazer uma tentativa para induzir todos os países beligerantes a abrirem negociações imediatas... e até lá, cada homem fique em seu posto de combate" [2].

Trotsky conta que muitos elementos no partido se sentiram profundamente intranqüilos, e inclusive muito irritados com essa deriva oportunista do partido, porém não estavam armados programaticamente para responder a posição da direção, posto que parecia estar baseada em uma perspectiva que havia sido desenvolvida pelo próprio Lênin, e que havia sido a posição oficial do partido durante uma década: a perspectiva da "ditadura democrática dos operários e camponeses". A essência desta teoria havia sido que embora a revolução que se desenvolvia na Rússia fosse de natureza burguesa - economicamente falando - a burguesia russa era demasiado débil para levar a cabo sua própria revolução. E por isso a modernização capitalista da Rússia deveria ser assumida pelo proletariado e as frações mais pobres do campesinato. Esta posição estava a meio caminho entre a dos mencheviques - que diziam ser marxistas "ortodoxos" e argumentavam que a tarefa do proletariado era dar apoio crítico a burguesia contra o absolutismo, até que a Rússia estivesse pronta para o socialismo - e a de Trotsky, cuja teoria da "revolução permanente", que desenvolveu após os acontecimentos de 1905, insistia em que a classe operária se veria impulsionada ao poder na próxima revolução, forçada a empunhar mais adiante da etapa burguesa da revolução, em direção a etapa socialista, porém só poderia fazê-lo se a revolução russa coincidisse com, ou emanasse de, uma revolução socialista nos países industrializados.

Na realidade, a teoria de Lênin havia sido quando muito um produto de um período ambíguo, em que cada vez era mais óbvio que a burguesia não era uma força revolucionária, porém em que todavia não estava claro que havia chegado o período da revolução socialista internacional. Apesar de tudo, a superioridade da tese de Trotsky se baseava precisamente no fato de que partia de um marco internacional, mais que do terreno puramente russo; e o próprio Lênin, apesar das suas múltiplas discrepâncias com Trotsky nessa época, havia se inclinado depois de 1905 em várias ocasiões em direção a noção da revolução permanente.

Na prática, a idéia da "ditadura democrática dos operários e camponeses" se mostrou insubstancial; os "leninistas ortodoxos" que repetiam esta fórmula em 1917, a usavam como uma cobertura para deslizar-se para o menchevismo puro e duro. Kamenev argumentou, forçando a barra, que posto que a fase burguesa da revolução ainda não havia se completado, era necessário dar um apoio crítico ao Governo Provisório; isto a duras penas enquadrava com a posição original de Lênin, que insistia em que a burguesia se comprometeria inevitavelmente com a autocracia. Inclusive houve sérias tentativas de reunificação dos mencheviques e dos bolcheviques.

Assim, o Partido bolchevique, desarmado programaticamente, se encaminhava para o compromisso e a traição. O futuro da revolução estava por um fio quando Lênin voltou do exílio.

Na sua História da Revolução russa, Trotsky nos dá uma descrição detalhada da chegada de Lênin a estação da Finlândia em 3 de abril de 1917. O soviete de Petrogrado, que embora estivesse dominado pelos mencheviques e os social-revolucionários, organizou uma grande festa de boas vindas e recepcionou Lênin com flores. Em nome do Soviete, Chkeidze saudou a Lênin com estas palavras: "Camarada Lenin, em nome do Soviete de Petrogrado e de toda revolução, saudamos vossa chegada à Rússia... Mas consideramos que a principal tarefa da democracia revolucionária no presente é defender nossa revolução contra todo tipo de ataques, tanto internos como externos... Esperamos que você se uma a nós na perseguição a este objetivo" [3]

A resposta de Lênin não se dirigiu aos líderes do Comitê de boas-vindas, mas a centenas de operários que se apinhavam na estação: "Queridos camaradas, soldados, marinheiros e operários, fico feliz de saudar em vocês a Revolução russa vitoriosa, saudar vocês como a guarda avançada do exército proletário mundial... Não está longe a hora em que, aos apelos de nosso camarada Karl Liebknecht, os povos voltarão suas armas contra seus exploradores capitalistas... A revolução russa realizada por vocês abriu uma nova época. Viva a revolução socialista mundial!" [4]

Desde o mesmo momento da chegada, Lênin se comportou dessa maneira frente ao carnaval democrático. Nessa noite, Lênin elaborou sua posição em um discurso de duas horas, que mais tarde deixaria quase sem sentido a todos os bons democratas e sentimentais socialistas, que não queriam que a revolução fosse mais longe do que havia ido em fevereiro, que haviam aplaudido as greves de massas operárias quando derrotaram o Tzar e permitiram que o Governo provisório assumisse o poder, porém que temiam uma polarização de classes que fosse mais além. No dia seguinte, em uma reunião conjunta de bolcheviques e mencheviques, Lênin expôs o que ia ser conhecido como suas Teses de Abril, que são bastante curtas e que reproduzimos aqui:

"1. Em nossa atitude diante da guerra, que em relação à Rússia continua sendo indiscutivelmente uma guerra imperialista, de rapina, mesmo sob o novo governo de Lvov e Cia., em virtude do caráter capitalista deste governo, é intolerável qualquer concessão ao "defensismo revolucionário".

O proletariado consciente só deve dar seu consentimento a uma guerra revolucionária, que justificaria realmente o verdadeiro defensismo revolucionário, sob as seguintes condições:

  • a) passagem do poder às mãos do proletariado e dos setores mais pobres do campesinato, ligados ao proletariado;
  • b) renúncia efetiva, e não verbal, a toda anexação;
  • c) ruptura completa de fato com todos os interesses do Capital.

Diante da inegável boa fé de amplas camadas da massa de partidários do defensismo revolucionário que apenas admitem a guerra como uma necessidade e não visando conquista, diante do fato de serem elas enganadas pela burguesia, é necessário esclarecer-lhes seu erro de modo minucioso, perseverante e paciente, explicar-lhes a ligação indissolúvel do Capital com a guerra imperialista e demonstrar-lhes que sem derrubar o capital é impossível por fim à guerra com uma paz verdadeiramente democrática e não com uma paz imposta pela violência.

Organização da propaganda, de forma a mais ampla, em torno desta maneira de ver, no seio do exército combatente. Confraternização na frente.

2. O que há de original na situação atual da Rússia, é a transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia por causa do grau insuficiente de consciência e organização do proletariado, à sua segunda etapa, que deve dar o poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato.

Esta transição é caracterizada, por um lado, por um máximo de possibilidades legais (a Rússia é hoje em dia, de todos os países beligerantes, o mais livre do mundo); por outro, pela ausência de violência contra as massas, e enfim, pela confiança irracional das massas em relação ao governo dos capitalistas, estes piores inimigos da paz e do socialismo.

Esta peculiaridade exige que nós saibamos nos adaptar às condições especiais do trabalho do Partido no seio da numerosa massa proletária que começa a despertar para a vida política.

3. Nenhum apoio ao governo provisório; demonstrar o caráter inteiramente mentiroso de todas suas promessas, notadamente daquelas que se referem à renúncia às anexações. Desmascarar este governo, que é um governo de capitalistas, em vez de defender a inadmissível e ilusória "exigência" de que deixe de ser imperialista.

4. Reconhecer que nosso partido está em minoria e não constitui no momento senão uma fraca minoria na maior parte dos Sovietes de deputados operários, face ao bloco de todos os elementos oportunistas pequeno-burgueses submetidos à influência da burguesia e que estendem esta influência ao seio do proletariado. Estes elementos vão dos socialista-populistas e dos socialista-revolucionários ao Comitê de Organização (Tchkhéidze, Tseretéli, etc.), a Stéklov, etc., etc.

Explicar às massas que os Sovietes de deputados operários são a única forma possível de governo revolucionário e que, conseqüentemente, nossa tarefa, enquanto esse governo se deixa influenciar pela burguesia, só pode ser a de explicar pacientemente, sistematicamente, insistentemente, às massas os erros de sua tática, partindo essencialmente das necessidades práticas das massas.

Enquanto estivermos em minoria, nos dedicaremos a criticar e a explicar os erros cometidos, sempre afirmando a necessidade da passagem de todo o poder aos Sovietes de deputados operários, a fim de que as massas se libertem de seus erros pela experiência.

5. Não uma república parlamentar - voltar a ela após os Sovietes de deputados operários seria um passo atrás - mas uma república de Sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas e camponeses no país inteiro, de alto a baixo.

Supressão da polícia, do exército e da burocracia. (Nota 1 de Lênin: quer dizer, substituição do exército permanente pelo povo armado)

O ordenado dos funcionários, eleitos e revogáveis a qualquer momento, não deve exceder o salário médio de um operário qualificado.

6. No programa agrário transferir o centro de gravidade para os Sovietes de deputados de assalariados agrícolas.

Confisco de todas as terras dos grandes proprietários.

Nacionalização de todas as terras no país e sua colocação à disposição dos Sovietes locais de deputados de assalariados agrícolas e camponeses. Formação de Sovietes especiais de deputados camponeses pobres. Transformação de todo grande domínio (de 100 a 300 hectares inclusive, levando em conta as condições locais e outras e de acordo com a decisão dos órgãos locais) em uma fazenda-modelo colocada sob o controle dos deputados de assalariados agrícolas e funcionando por conta da coletividade local.

7. Fusão imediata de todos os bancos do país em um Banco Nacional único, colocado sob o controle dos Sovietes de deputados operários.

8. Nossa tarefa imediata não é a "implantação" do socialismo, mas passar unicamente à instauração imediata do controle da produção social e da distribuição dos produtos pelos Sovietes de deputados operários.

9. Tarefas do partido

  • a) convocar sem demora o congresso do partido
  • b) modificar principalmente o programa do partido:
    1) sobre o imperialismo e a guerra imperialista,
    2) sobre a atitude em relação ao Estado e nossa reivindicação de um "Estado-Comuna" (quer dizer, um Estado cujo protótipo nos deu a Comuna de Paris),
    3) emendar o programa mínimo, que envelheceu
    .
  • c) mudar a denominação do partido (Em lugar de "social-democracia", cujos líderes oficiais traíram o socialismo no mundo inteiro, passando-se para o lado da burguesia, devemos denominarmo-nos Partido Comunista).

10. Renovação da Internacional. Tomar a iniciativa da criação de uma Internacional revolucionária, de uma Internacional contra os social-chauvinistas e contra o "centro". [5]

A Luta pelo rearmamento do partido

Zalezhski, um membro do Comitê Central do partido bolchevique nessa época resumia a reação às Teses de Lênin dentro do partido e no movimento em geral: "As teses de Lênin produziram o efeito de uma bomba explodindo." [6]

 A reação inicial foi de incredulidade, e uma chuva de anátemas caiu sobre Lênin: que este havia estado demais tempo no exílio, que havia perdido o contato com a realidade russa. Suas perspectivas sobre a natureza da revolução haviam caído no "trotskismo". Pelo que respeita a sua idéia da tomada do poder pelos sovietes, havia passado ao blanquismo, ao aventurerismo, ao anarquismo. Um antigo membro do Comitê central bolchevique, fora do partido nesse momento, colocou assim o problema: "Por muitos anos, o lugar de Bakunin ficou vago na Revolução russa, agora ele é ocupado por Lenin" [7]. Para Kamenev, a posição de Lênin impediria que os bolcheviques atuassem como um partido de massas, reduzindo seu papel ao de "um grupo de comunistas propagandistas".

Esta não era a primeira vez que os "velhos bolcheviques" se agarravam a fórmulas antiquadas em nome do leninismo. Em 1905, a reação inicial bolchevique quando do aparecimento dos sovietes se baseou em uma interpretação mecânica das críticas de Lênin ao espontaneismo em Que Fazer?; a direção chamou o soviete de Petrogrado a subordinar-se ao partido ou dissolver-se. O próprio Lênin rechaçou terminantemente esta atitude, sendo um dos primeiros a compreender o significado revolucionário dos sovietes como órgãos de poder político do proletariado, e insistiu em que a questão não era "soviete ou partido", mas ambos, posto que suas funções eram complementares.

Agora uma vez mais, Lênin tinha que dar a esses "leninistas" uma lição sobre o método marxista, para demonstrar que o marxismo é totalmente ao contrário de um dogma morto; é uma teoria científica viva, que tem que verificar-se constantemente no laboratório dos movimentos sociais. As Teses de Abril foram o exemplo da capacidade do marxismo para descartar, adaptar, modificar ou enriquecer as posições anteriores à luz da experiência da luta de classes: "Por hora é necessário assimilar a verdade indiscutível de que um marxista deve tomar em conta a vida real, os fatos exatos da realidade, e não continuar aferrando-se à teoria de ontem, que como toda teoria, no melhor dos casos, só aponta o fundamental, o geral, só abarca de um modo aproximado a complexidade da vida."

"A teoria, amigo meu, é cinza; porém a árvore da vida é eternamente verde" [8]. E na mesma carta, Lênin repreende a "aqueles "velhos bolcheviques", que já por mais de uma vez desempenharam um triste papel na história do nosso Partido, repetindo uma fórmula tontamente aprendida, em vez de dedicar-se ao estudo das peculiaridades da nova e viva realidade".

Para Lênin, a "ditadura democrática" já havia se realizado nos sovietes de deputados operários e camponeses, e como tal já tinha se convertido em uma fórmula antiquada. A tarefa essencial para os bolcheviques agora era impulsionar para frente a dinâmica proletária neste amplo movimento social, que estava orientada para a formação de uma Comuna-Estado na Rússia, que seria o primeiro marco indicativo da revolução socialista mundial. Poder-se-ia fazer uma controvérsia sobre o esforço de Lênin para salvar a honra da velha fórmula, porém o elemento essencial na sua posição é que foi capaz de ver o futuro do movimento e, assim, a necessidade de romper o modelo das teorias defasadas.

O método marxista não é só dialético e dinâmico, também é global, quer dizer, se coloca cada questão em particular em um marco histórico internacional. E isto é o que permitiu a Lênin, acima de tudo, compreender a verdadeira direção dos acontecimentos. De 1914 em diante, os bolcheviques, com Lênin à frente, haviam defendido a posição internacionalista mais consistente contra a guerra imperialista, vendo que era a prova da decadência do mundo capitalista, e assim, do início de uma época de revolução proletária mundial. Esta era a base sólida da consigna de "transformar a guerra imperialista em guerra civil", que Lênin havia defendido contra todas as variedades de chauvinismo e pacifismo. Fortemente convencido dessa análise, Lênin não se deixou levar nem por um momento pela idéia de que a chegada ao poder do Governo Provisório mudara a natureza da guerra imperialista, e não poupou adjetivos para com os bolcheviques que haviam caído neste erro: "O Pravda exige do governo que este renuncie à anexação. Exigir de um governo capitalista que renuncie à anexação é um absurdo, uma flagrante zombaria." [9]

A reafirmação intransigente da posição internacionalista sobre a guerra era em primeiro lugar uma necessidade para deter a tendência oportunista do partido, porém era também o ponto de partida para liquidar teoricamente a fórmula da "ditadura democrática", e todas as apologias dos mencheviques para apoiar a burguesia. Frente o argumento segundo qual a atrasada Rússia não estava ainda madura para o socialismo, Lênin respondia como um verdadeiro internacionalista, reconhecendo na tese 8 que "não é nossa tarefa imediata introduzir o socialismo".

A Rússia por si mesma não estava madura para o socialismo, porém a guerra imperialista havia demonstrado que o capitalismo mundial, globalmente estava mais do que maduro. Daí a saudação de Lênin aos operários na estação da Finlândia: os operários russos, ao tomar o poder, estariam atuando como a vanguarda do exército proletário internacional. Daí também o chamamento a uma nova Internacional no final das teses. E para Lênin, como para todos os autênticos internacionalistas do momento, a revolução mundial não era um desejo piedoso, mas uma perspectiva concreta nascida da revolta proletária internacional contra a guerra - greves na Inglaterra e Alemanha, manifestações políticas, rebeliões e confraternização nas forças armadas de vários países, e por conseqüência a maré revolucionária crescente na própria Rússia. Essa perspectiva, que nesse momento era embrionária, iria confirmar-se após a insurreição de Outubro pela extensão da onda revolucionária na Itália, Hungria, Áustria e, sobretudo Alemanha.

O "anarquismo" de Lênin

Os defensores da "ortodoxia" marxista acusaram Lênin de blanquismo e bakuninismo pela questão da tomada do poder e da natureza do Estado pós-revolucionário. Blanquismo, porque supostamente estava a favor de um golpe de Estado por uma minoria - seja pelos bolcheviques sozinhos, ou inclusive pelo conjunto da classe operária industrial sem contar com a maioria camponesa. Bakuninismo, porque o rechaço pelas teses da república parlamentar era uma concessão aos prejulgamentos anti-políticos dos anarquistas e anarco-sindicalistas

Nas suas Cartas sobre a tática, Lênin defendeu suas teses da primeira acusação desta maneira:

"Nas minhas teses, me assegurei completamente de todo salto para cima do movimento camponês ou, em geral pequeno-burguês, ainda latente, de toda tentativa de jogo da "conquista do poder" por parte de um Governo operário, de qualquer aventura blanquista, posto que me referia diretamente a experiência da Comuna de Paris. Como se sabe, e como o indicaram detalhadamente Marx em 1871 e Engels em 1891, esta experiência excluía totalmente o blanquismo, assegurando completamente o domínio direto, imediato e incondicional da maioria e da atividade das massas, só na medida da acentuação consciente da maioria mesma.

E nas teses resumi a questão, com plena claridade, na luta pela influência dentro dos sovietes de deputados operários, trabalhadores, camponeses e soldados. Para não deixar nenhuma possibilidade de dúvida a esse respeito, sublinhei duas vezes, nas teses, a necessidade de um trabalho paciente e continuo de "explicação", que se adapte às necessidades práticas das massas".

Pelo que concerne a uma volta para trás a uma posição anarquista sobre o Estado, Lênin assinalou em abril, como fará com maior profundidade no Estado e a Revolução, que os marxistas "ortodoxos", representados nas figuras como Kautsky e Plekanov, haviam enterrado os ensinamentos de Marx e Engels sobre o Estado sob um monte de estrume de parlamentarismo. A Comuna de Paris havia mostrado que a tarefa do proletariado na revolução não era conquistar o velho Estado, mas destruí-lo de cima abaixo; que o novo instrumento de governo proletário, a Comuna-Estado, não estaria baseado no princípio da representação parlamentar, a qual, ao fim e ao cabo, só era uma fachada para ocultar a ditadura da burguesia, mas na delegação direta e a revogabilidade desde baixo das massas armadas e auto-organizadas. Na formação dos sovietes, a experiência de 1905 e a da revolução que emergia em 1917, não só confirmava esta perspectiva, como a levava mais adiante. Embora que na comuna, que se concebia como "popular", todas as classes oprimidas da sociedade estavam igualmente representadas, os sovietes eram uma forma superior de organização, porque tornavam possível que o proletariado se organizasse autonomamente dentro do movimento das massas em geral. Globalmente os sovietes constituíam um novo estado, qualitativamente diferente do velho Estado burguês, porém um estado apesar de tudo - e neste ponto Lênin distinguia cuidadosamente dos anarquistas:

"... o anarquismo é a negação da necessidade do estado e do poder estatal na época de transição do domínio da burguesia para o domínio do proletariado.Eu defendo, com uma claridade que exclui toda possibilidade de confusão, a necessidade do Estado nesta época, porém de acordo com Marx e com a experiência da comuna de Paris, não de um Estado parlamentar burguês do tipo corrente, mas de um estado sem um exército permanente , sem uma polícia em oposição ao povo, sem uma burocracia situada por cima do povo.

Se o Sr. Plekanov, no seu Edinstvo, grita com vigor "anarquismo!", com isso só demonstra, uma vez mais, que já rompeu com o marxismo" [10]

O papel do partido na revolução

A acusação de que Lênin estava planejando um golpe blanquista, é inseparável da idéia de que se buscava o poder só para o seu partido. Isto passou a ser um tema central de toda propaganda burguesa subseqüente à revolução de outubro e que afirma que não teria acontecido nada mais que um golpe de Estado levado a cabo pelos bolcheviques. Não podemos começar a tratar aqui todas as variedades e matizes desta tese. Trotsky aporta uma das melhores respostas a isto na sua História da Revolução Russa, quando mostra que não foi o partido, mas os sovietes que tomaram o poder em Outubro. Porém um dos maiores traços dessa tese é a que coloca que a visão de Lênin sobre o partido como uma organização compacta e fortemente centralizada levava inexoravelmente a este golpe minoritário de 1917, e por extensão, ao terror vermelho e finalmente ao estalinismo.

Toda essa história retroage a divisão original entre bolcheviques e mencheviques, e este texto não é o lugar para analisar em detalhes esta questão chave. Basta dizer que já desde então, a concepção de Lênin sobre a organização revolucionária foi caracterizada de jacobina, elitista, militarista, e inclusive terrorista. Têm sido citadas autoridades marxistas tão respeitadas como Luxemburgo e Trotsky para apoiar esta visão. Da nossa parte, não negamos que a visão de Lênin sobre a questão da organização, tanto naquele período como depois, contém erros (por exemplo, sua adoção em 1902 das teses de Kautsky de que a consciência vem "de fora" da classe operária, embora posteriormente Lênin repudiasse esta posição; também certas posições suas sobre o regime interno do partido, e sobre a relação entre o partido e o estado, etc.). Porém diferentemente dos mencheviques dessa época, e dos seus numerosos sucessores anarquistas, social-democratas e conselhistas, não tomamos esses erros como ponto de partida, da mesma forma que não abordamos uma análise da Comuna de Paris ou da revolução de Outubro partindo dos erros que foram cometidos - inclusive quando fatais. O verdadeiro ponto de partida é que a luta de Lênin ao largo de toda sua vida para construir uma organização revolucionária é uma aquisição histórica do movimento operário, e que foi deixado para os revolucionários de hoje as bases indispensáveis para compreender, tanto como funciona internamente uma organização revolucionária, como qual deve ser o seu papel na classe.

Com respeito a este último ponto, e contrariamente a muitas análises superficiais, a concepção de uma organização de "minorias", que Lênin contrapunha a visão de uma organização "de massas" dos mencheviques, não era simplesmente o reflexo das condições impostas pela repressão tzarista. Da mesma forma que as greves de massas e os levantes revolucionários de 1905 não eram os últimos ecos das revoluções do século XIX, mas que refletiam o futuro imediato da luta de classes internacional e o amanhecer da época da decadência do capitalismo, assim a concepção bolchevique de um partido "de minorias", de revolucionários dedicados, com um programa absolutamente claro e que funcionasse centralizadamente, era uma antecipação da função e da estrutura do partido que impunha as condições da decadência capitalista, a época da revolução proletária. Pode ser, como reivindicam muitos anti-bolcheviques, que os mencheviques tenham olhado para o ocidente para estabelecer seu modelo de organização, porém também olhavam para trás, copiando o velho modelo da social-democracia do partido de massas que engloba e representa a classe, particularmente através do processo eleitoral. E frente à todas as afirmações segundo quais eram os bolcheviques os que estavam ancorados nas condições arcaicas da Rússia, copiando o modelo das sociedades conspirativas, há que dizer que na realidade os bolcheviques eram os únicos que olhavam para frente para um período de turbulências massivas revolucionárias que nenhum partido podia organizar, planificar nem encapsular, porém que ao mesmo tempo tornavam mais vital que nunca a necessidade do partido. "Com efeito, deixemos de lado a teoria pedante de uma greve demonstrativa montada artificialmente pelo partido e os sindicatos e executada por uma minoria organizada e consideremos o quadro vivo de um verdadeiro movimento popular surgido da exasperação dos conflitos de classe e da situação política (...) a tarefa da social-democracia consistirá então, não na preparação ou na direção técnica da greve, mas na direção política do conjunto do movimento." [11]

Isto é o que escreveu Rosa Luxemburgo na sua análise magistral da greve de massas e as novas condições da luta de classes internacional. Assim, Luxemburgo, que havia sido uma das críticas mais ferrenhas de Lênin quando da divisão de 1903, convergia com os elementos fundamentais da concepção bolchevique do partido revolucionário.

Esses elementos são expostos com grande claridade nas Teses de Abril, que como já tínhamos visto, rechaçam qualquer visão que tente impor a revolução "desde cima": "Enquanto estivermos em minoria realizaremos um trabalho de crítica, a fim de libertar as massas da impostura, continuaremos afirmando a necessidade de todo o poder para os sovietes de deputados operários, para que as massas se libertem através da experiência de seus próprios erros". Este trabalho de "explicação sistemática, paciente e persistente" é precisamente o que quer dizer a direção política em um período revolucionário. Não podia reivindicar-se passar à fase da insurreição até que as posições dos bolcheviques fossem vitoriosas nos sovietes. E em dizer a verdade, antes que isto pudesse acontecer, tinham que triunfar as posições de Lênin no próprio partido bolchevique, e isto exigiu uma luta áspera sem compromissos desde o primeiro momento que Lênin chegou a Rússia.

 " não somos charlatães (...) devemos nos basear apenas sobre a consciência das massas." [12] Na fase inicial da revolução, a classe operária havia entregado o poder à burguesia, o que não deveria surpreender a nenhum marxista "posto que sempre temos sabido e indicado reiteradamente que a burguesia se mantém não só por meio da violência, como também graças a falta de consciência, a rotina, a ignorância e a falta de organização das massas" [13]. Por isso, a tarefa principal dos bolcheviques era fazer avançar a consciência de classe e a organização das massas.

Esta função não satisfazia aos "velhos bolcheviques", que tinham planos mais "práticos". Queriam tomar parte da revolução burguesa que estava se produzindo, e que o partido bolchevique tivesse uma influência massiva no movimento tal qual era. Nas palavras de Kamenev, estavam horrorizados de pensar que o partido pudesse ficar a margem, com suas posições "puras", reduzido a função de "um grupo de propagandistas comunistas".

Lênin não teve nenhuma dificuldade para combater esta fala: acaso os chauvinistas não tinham arrotado os mesmos argumentos contra os internacionalistas no princípio da guerra mundial, dizendo que eles permaneciam vinculados a consciência das massas embora que os bolcheviques e os espartaquistas haviam se convertido em seitas marginais? Deve ter sido particularmente irritante ouvir os mesmos argumentos por parte de um camarada bolchevique. Porém isto não debilitou a agudeza da resposta de Lênin: "O camarada Kamenev contrapõe "o partido das massas" a "um grupo de propagandistas". Porém as "massas" têm se deixado levar precisamente agora pela embriaguez do defensismo "revolucionário". Não seria mais decoroso particularmente para os internacionalistas saber opor-se em um momento como este a embriaguez "massiva" em lugar de querer "ficar vinculado com as massas", quer dizer ceder diante do contagio geral? Não se deve saber ficar em minoria durante um tempo para combater uma embriaguez "massiva"? Não é precisamente o trabalho dos propagandistas no momento atual o ponto central para libertar a linha proletária da embriaguez defensiva e pequeno-burguesa "massiva"? Cabalmente a união das massas proletárias e não proletárias, sem importar as diferenças de classe no seio das massas, tem sido uma das premissas da epidemia defensivista. Acho bastante despropositado falar com desprezo de "um grupo de propagandistas" da linha proletária" [14].

Esta postura, esta vontade de ir contra a corrente e ficar em minoria defendendo incisiva e claramente os princípios de classe, não tem nada que ver com o purismo ou o sectarismo. Pelo contrário, se baseia na compreensão do movimento real da classe, e a partir daí, na capacidade em cada momento para permitir aos elementos mais radicais do proletariado tomar a palavra e oferecê-los uma orientação.

Trotsky mostra como Lênin ganhou o partido para suas posições e depois defendeu a linha proletária; mostra também como procurou o apoio desses elementos: "Contra os velhos bolcheviques, Lênin encontrou apoio em outra camada do partido, já temperada, mas mais fresca e mais estreitamente unida com as massas. Na revolução de Fevereiro, como vimos, os operários bolcheviques desempenharam um papel decisivo. Eles pensavam ser óbvio que a classe que obteve a vitória devesse tomar o poder. Estes mesmos operários protestavam veementemente contra o curso de Kamenev e Stalin, e o bairro de Vyborg até ameaçou os "líderes" com a expulsão do partido. A mesma coisa seria observada nas províncias. Quase em todo lugar havia bolcheviques de esquerda acusados de maximalismo, até de anarquismo. Estes operários revolucionários apenas careciam de recursos teóricos para defender sua posição, mas estavam prontos para responder ao primeiro chamado claro" [15].

Isto também foi uma expressão da compreensão de Lênin do método marxista, que sabe ver mais além das aparências para discernir a verdadeira dinâmica do movimento social. E como exemplo contrário, em troca, quando em começo da década de 1920, Lênin se inclinou para o argumento de "permanecer com as massas" para justificar a "Frente Única" e a fusão organizativa com partidos centristas, foi um sinal de que o partido estava perdendo suas amarras com o método marxista, e escorregava para o oportunismo. Porém ao mesmo tempo isto foi conseqüência do isolamento da revolução e da fusão dos bolcheviques com o estado soviético. No momento de alta maré revolucionária na Rússia, o Lênin das Teses de Abril não foi um profeta isolado, nem um demiurgo que se elevava por cima das massas vulgares, mas a voz mais clara da tendência mais revolucionária no proletariado; uma voz que indicou com precisão o caminho que levava a insurreição de Outubro.


[1] Trotsky - A História da Revolução Russa; Edição Sundermann - Tomo II; Capítulo "Os Bolcheviques e Lênin".

[2] Idem

[3] Idem

[4] Idem

[5] www.moreira.pro.br/classcent.htm [25]

[6] Trotsky , op.cit.

[7] Idem

[8] Lênin, Carta sobre a tática. A Citação é de Mefistófeles no Fausto de Goethe. Tradução nossa.

[9] Trotsky , op.cit.

[10] Lênin, Carta sobre a tática. Tradução nossa.

[11] Greve de massas, partido e sindicatos; Rosa Luxemburgo

[12] Trotsky , op.cit.

[13] Lênin, Carta sobre a tática. Traduzido por nós

[14] Idem.

[15] Trotsky, op.cit. Capítulo "Rearmando o Partido".

Herança da Esquerda comunista: 

  • Herança da Esquerda comunista [22]

As jornadas de Julho - O partido faz abortar uma provocação da burguesia

  • 5436 leituras

As Jornadas de Julho de 1917 representam um dos momentos mais importantes, não apenas da revolução russa, mas sim de toda a história do movimento operário. Essencialmente em três dias, de 3 a 5 de Julho, houve uma das maiores confrontações entre burguesia e proletariado, que embora tenha resultado numa derrota da classe operária, abriu o caminho para a tomada do poder quatro meses depois, em outubro de 1917. Em 3 de Julho, os operários e os soldados de Petrogrado, levantaram-se massiva e espontaneamente, reivindicando que todo o poder fosse transferido aos conselhos operários, aos sovietes. Em 4 de Julho, uma manifestação armada de meio milhão de participantes diante da sede da direção do soviete de Petrogrado reclamava que o conselho tomasse o poder, mas voltaram para casa pacificamente à tarde, seguindo as orientações dos bolcheviques.  Em 5 de Julho, tropas contra-revolucionárias se apoderaram da capital da Rússia e começaram a caça aos bolcheviques e a repressão aos operários mais avançados. Mas, ao evitar uma luta prematura pelo poder, o proletariado manteve suas forças revolucionárias intactas.  O resultado é que a classe operária foi capaz de tirar as lições de todos aqueles acontecimentos, e em particular compreender o caráter contra-revolucionário da democracia burguesa e da nova ala esquerda do capital: os mencheviques e os social-revolucionários (eseristas), que tinham traído a causa dos operários e dos camponeses pobres e se tinham passado para a contra-revolução.  Em nenhum outro momento da revolução russa como nestas 72 horas dramáticas tenha sido tão grave o risco de uma derrota decisiva do proletariado, e de que o Partido bolchevique visse dizimadas suas forças. Em nenhum outro momento resultou ser tão crucial a confiança dos batalhões mais avançados do proletariado em seu partido de classe, na vanguarda comunista.

80 anos depois, diante das mentiras da burguesia sobre a "morte do comunismo", e particularmente das suas difamações sobre a Revolução Russa e o bolchevismo, a defesa das verdadeiras lições das Jornadas de Julho, e globalmente da revolução proletária é uma das principais responsabilidades dos revolucionários. Segundo a burguesia, a revolução russa foi uma luta "popular" por uma república parlamentar burguesa, a "forma de governo mais livre do mundo", até que os bolcheviques "inventaram" a bandeira "demagógica" de "todo o poder aos sovietes", e impuseram graças a um "golpe" sua "ditadura bárbara" sobre a grande maioria da população trabalhadora. Entretanto, uma breve olhada sobre os fatos de 1917 é suficiente  para mostrar tão claro como a luz do dia, que os bolcheviques estavam junto à classe operária, e que foi a democracia burguesa a que estava do lado da barbárie, do golpismo, e da ditadura de uma ínfima minoria sobre os trabalhadores.

Uma provocação cínica da burguesia e uma armadilha contra os bolcheviques

As Jornadas de Julho de 1917 foram acima de tudo uma provocação da burguesia com o propósito de decapitar o proletariado esmagando a revolução em Petrogrado, e eliminando o partido bolchevique antes que, globalmente, o processo revolucionário em toda a Rússia estivesse maduro para a tomada do poder pelos operários.

A sublevação revolucionária de fevereiro 1917 que conduziu à substituição do czar por um governo provisório "democrático burguês", e ao estabelecimento dos conselhos operários como o centro proletário de poder rival, foi acima de tudo o produto da luta dos operários contra a guerra imperialista mundial que começou em 1914.  Mas o governo provisório, e os partidos majoritários nos sovietes, os mencheviques e os eseristas, contra a vontade do proletariado, prepararam-se para a continuação da guerra, para a execução do programa imperialista de rapina do capitalismo russo. Desta forma, não só na Rússia, mas também em todos os países da Entente (a coalizão contra a Alemanha), era atribuída uma nova legitimidade pseudo-revolucionária para a guerra, o maior crime da história da humanidade. Entre fevereiro e julho de 1917 foram assassinados ou feridos vários milhões de soldados, incluindo a mais fina flor e o fruto da classe operária internacional, para elucidar a questão sobre qual dos principais gangsteres imperialistas capitalistas dirigiria o mundo.  Embora inicialmente muitos operários russos tenham acreditado nas mentiras dos novos dirigentes, de que era preciso continuar a guerra "para conseguir de uma vez por todas uma paz justa e sem anexações", mentiras que saíam das bocas de "democratas" e "socialistas", por volta de junho de 1917, o proletariado havia retornado à luta contra a carnificina imperialista com energia redobrada. Durante a gigantesca manifestação de 18 de junho em Petrogrado, as bandeiras internacionalistas dos bolcheviques pela primeira vez tornaram-se majoritárias.  No início de julho, a maior e mais sangrenta ofensiva militar russa desde o "triunfo da democracia" terminava em fiasco; o exército alemão havia despedaçado as linhas russas no front em vários pontos. Era o momento mais crítico para o militarismo russo desde o começo da "Grande Guerra". As notícias do fracasso da ofensiva já haviam chegado à capital, avivando as chamas revolucionárias, enquanto ainda não tinham alcançado o resto do gigantesco país. Para enfrentar esta situação desesperadora surgiu a idéia de provocar uma revolta prematura em Petrogrado, para, nesta cidade, esmagar os operários e os bolcheviques, e depois culpá-los do fracasso da ofensiva militar à "punhalada traiçoeira" lançada pelo proletariado da capital aos que se encontravam no front.

A situação objetiva não era entretanto  ainda favorável para levar a cabo este plano. Embora os principais setores operários de Petrogrado antecedessem as orientações dos bolcheviques, os mencheviques e os eseristas ainda tinham uma posição majoritária nos sovietes, e tinham uma posição dominante nas províncias. No conjunto da classe operária, inclusive em Petrogrado, ainda havia fortes ilusões sobre a capacidade dos mencheviques e dos eseristas servirem à causa do proletariado. Apesar da radicalização dos soldados, majoritariamente camponeses, igualmente um número considerável de regimentos importantes ainda eram leais ao governo provisório. As forças da contra-revolução, depois de uma fase de desorganização e desorientação depois da "revolução de Fevereiro", estavam agora no ápice de sua reconstituição. E a burguesia tinha uma carta marcada na manga: documentos e falsos testemunhos que supostamente provariam que Lênin e os bolcheviques eram agentes pagos pelo Kaiser alemão.

Este plano representava, sobretudo uma armadilha para o Partido bolchevique. Se o partido encabeçasse uma insurreição prematura na capital, ficaria desprestigiado diante do proletariado russo, aparecendo como representante de uma política aventureira e irresponsável, e até, para setores atrasados, como apoio ao imperialismo alemão. Mas se deixasse de estar solidário do movimento de massas ficaria perigosamente isolado da classe, deixando os operários largados à própria sorte. A burguesia esperava que qualquer que fosse a decisão do partido, essa o levaria ao fracasso.

A turma de contra-revolucionários (centúrias negras, anti-semitas) organizada pelas "democracias" ocidentais

Eram realmente as forças anti-bolcheviques excelentes democratas e defensores da "liberdade do povo" como pretendia a propaganda burguesa? Eram dirigidas pelos kadetes, o partido da grande indústria e dos grandes latifundiários; pelo comitê de oficiais, que representava ao redor de 100.000 comandados que preparavam um golpe militar; pelo pretendido soviete das tropas contra-revolucionárias cossacas; pela polícia secreta e pela máfia anti-semita das "centúrias negras":

  • "(...) tal é o meio de que surge o ambiente de pogrom, as tentativas de organizar pogrons, os disparos contra os manifestantes, etc."[1]

Mas a provocação de Julho foi um golpe disparado contra a maturação da revolução mundial, não só pela burguesia russa, mas também pela burguesia mundial, representada pelos aliados da Rússia na guerra. Nesta tentativa astuta de afogar em sangue a revolução imatura que ainda estava apenas surgindo, podemos reconhecer as formas das velhas burguesias democráticas: a burguesia francesa, que acumulou uma larga e sangrenta tradição de provocações semelhantes (1791, 1848, 1870), e a burguesia britânica com sua incomparável experiência e inteligência política. De fato, em vista das crescentes dificuldades da burguesia russa para combater de forma eficaz a revolução e manter o esforço de guerra, os aliados ocidentais da Rússia tinham sido a principal força, não só no financiamento do front russo, mas também no que se refere a aconselhar e apoiar a contra-revolução naquele país. O Comitê provisório da Duma estatal (parlamento): "servia de cobertura legal da atividade contra-revolucionária, largamente financiada pelos bancos e pelas embaixadas da Entente."[2]

  • "Petrogrado formigava de organizações secretas e semi-secretas de oficiais altamente apadrinhados e generosamente apoiados. Em Informação confidencial. do menchevique Lieber, quase um mês antes das Jornadas de Julho, percebia-se que os oficiais conspiradores gozavam de entrada franca junto a Buchanan. E, com efeito. não seria plausível que os diplomatas da Entente se preocupassem ao máximo com a instauração o mais ràpidamente possivel de um Poder forte?"[3]

Não foram os bolcheviques, mas sim a burguesia a que se aliou com os governos estrangeiros contra o proletariado russo.

As provocações políticas de uma burguesia sedenta de sangue

No começo de julho, três incidentes forjados pela burguesia foram suficientes para desencadear uma revolta na capital. 

O partido kadete retira seus quatro ministros do governo provisório

Posto que os mencheviques e os eseristas tinham justificado até então seu rechaço à ordem de "todo o poder aos sovietes" pela necessidade de colaborar, fora dos conselhos operários, com os kadetes como representantes da "democracia burguesa", a retirada destes tinha a finalidade de provocar, entre os operários e os soldados, uma nova exigência de reivindicações favoráveis a que todo o poder recaísse nos sovietes.

  • "Supor que os cadetes não pudessem prever as repercussões do ato de sabotagem que haviam declarado em relação aos soviete, significaria subestimar deliberadamente Miliukov. O líder do liberalismo evidentemente esforçava-se por arrastar os conciliadores a uma situação crítica, totalmente sem vias de saida, a não ser pelo emprêgo de baionetas: naqueles dias, julgava ele firmemente que ainda era possivel salvar a situação por meio de uma sangria desatada."[4]

A pressão da Entente sobre o Governo provisório

A Entente obriga ao Governo provisório a confrontar a revolução pelas armas ou a ser abandonado por seus aliados.

"Nos bastidores, os fios estavam nas mãos dos embaixadores e dos governos da Entente. Na Conferência interaliada inaugurada em Londres, os amigos do "Ocidente" esqueceram-se de convidar o embaixador da Rússia; (...) trote, de que foi  objeto o embaixador do Govêrno Provisório e a significativa demissão dos cadetes do ministério deram-se a 2 de julho: os dois acontecimentos tinham um único e mesmo fim: obrigar os conciliadores a arriarem a bandeira"[5]. O Partido menchevique e os eseristas estavam em processo de adesão à burguesia. Sua inexperiência no governo, suas dúvidas e vacilações pequeno-burguesas mas também a existência em suas fileiras de algumas oposições internacionalistas e proletárias; não foram direitamente envolvidos no complô contra-revolucionário. Mas foram manipulados para jogar o papel que lhes tinham encomendado seus donos e dirigentes burgueses.

A ameaça de deslocar para o front os regimentos da capital

De fato, a explosão da luta de classe em resposta a estas provocações não foi iniciada pelos operários, mas sim pelos soldados, e não foram os bolcheviques que incitaram tal resposta, mas sim os anarquistas. "Os soldados via de regra mostravam-se mais impacientes que os operários: primeiro porque estavam sob ameaça direta de serem enviados ao front; e segundo porque assimilavan com maior dificuldade as razões da estratagia política. E além de tudo mais, cada soldado tinha em mão o fuzil e, depois de fevereiro, o soldado se mostrava propenso a superestimar o poder especifico daquela arma."[6] Os soldados se empenharam imediatamente em trazer os operários para seu lado. Na fábrica Putilov, a maior concentração operária da Rússia, fizeram seu avanço mais decisivo:

  • "10 mil operários, reuniram-se diante dos locais da administração. Aclamados, os metralhadores revelaram que haviam recebido ordem de partir, a 4 de julho, para o front, mas que tinham resolvido ‘marchar, não contra o proletariado alemão, em direção ao front alemão, mas contra seus próprios ministros capitaliatas'. Cresceu o entusiasmo geral. Para frente! Para frente! ' - gritaram os trabalhadores."[7]

Em algumas horas, todo o proletariado da cidade havia se levantado e armado, e se reagrupava ao redor da palavra de ordem "todo o poder aos sovietes", a bandeira das massas.

Os bolcheviques evitam a armadilha

Na tarde de 3 de julho, chegaram delegados dos regimentos de metralhadoras para tentar ganhar o apoio da conferencia de cidade dos bolcheviques e ficaram pasmos ao inteirar-se de que o partido se pronunciava contrário à ação. Os argumentos que dava o partido mostram que os bolcheviques captaram imediatamente o significado e o risco dos acontecimentos: a burguesia queria provocar Petrogrado para culpar-lhe do fracasso no front; a situação não estava madura para a insurreição armada e o melhor momento para uma ação contundente imediata seria quando todo mundo se inteirasse do colapso no front. De fato, já na manifestação de 18 de junho, os bolcheviques haviam advertido contra uma ação prematura.


Os historiadores burgueses reconheceram a destacada inteligência política do partido nesse momento.  Certamente o Partido bolchevique estava plenamente convencido da necessidade imperativa de estudar a natureza, a estratégia, e as táticas de classe inimiga, para ser capaz de responder e intervir corretamente em cada momento. Estava convicto da compreensão marxista de que a tomada revolucionária do poder é, de certo modo, uma arte ou uma ciência, e que tanto uma insurreição em um momento inoportuno, como não tomar o poder no momento justo, são igualmente fatais.

Mas, por mais que a análise do partido estivesse correta, se tivesse parado aí teria significado cair na armadilha da burguesia. O primeiro ponto de inflexão decisivo das jornadas de julho se produziu na mesma noite que o Comitê central e o Comitê de Petrogrado do Partido decidiram apoiar o movimento e colocar-se à sua cabeça, mas para garantir seu "caráter pacífico e organizado". Contrariamente aos acontecimentos espontâneos e caóticos do dia anterior, as gigantescas manifestações de 4 de julho deixaram ver "a mão organizativa do partido ". Os bolcheviques sabiam que o objetivo que se propuseram as massas - obrigar que os dirigentes mencheviques e eseristas do soviete tomassem o poder em nome dos conselhos operários - era impossível de ser alcançado. Os mencheviques e eseristas, que a burguesia apresenta hoje como os autênticos representantes da democracia soviética, estavam então se integrando na contra-revolução, e só esperavam uma oportunidade para liquidar os conselhos operários. O dilema da situação, o fato de que a consciência das massas operárias ainda era insuficiente, concretizou-se na famosa anedota do operário encolerizado que agitava seu punho em torno do queixo de um dos ministros "revolucionários" gritando-lhe: "Filho da puta! Toma o poder já que o estamos te entregando".  Na verdade, os ministros e dirigentes traidores dos sovietes, deixavam passar o tempo até que chegassem os regimentos leais ao governo.

Nesse momento, os operários estavam se dando conta das dificuldades de transferir todo o poder aos sovietes enquanto os traidores e conciliadores ocupassem sua direção. Uma vez que a classe ainda não havia encontrado o método de transformar os sovietes a partir de dentro, tentava em vão impor pelas armas sua vontade desde fora.


O segundo ponto de inflexão decisivo veio com a chamada do orador bolchevique a dezenas de milhares de operários de Putilov e outros locais em 4 de julho, ao final de um dia de manifestações de massas; Zinoviev começou com uma brincadeira, para baixar a tensão, e terminou com uma chamada para voltar casa pacificamente que os operários seguiram. O momento da revolução não é agora, mas se aproxima. Nunca se tinha provado de forma mais espetacular a frase de Lênin de que a paciência e bom humor são qualidades indispensáveis dos revolucionários.
A capacidade dos bolcheviques de conduzir o proletariado a driblar a armadilha da burguesia não se devia somente a sua inteligência política.  Sobretudo foi decisiva a confiança do partido no proletariado e no marxismo, o que lhe permitiu  basear-se plenamente na força e no método que representa o futuro da humanidade, e evitar assim a impaciência da pequena burguesia. Foi decisiva a profunda confiança que tinha desenvolvido o proletariado russo em seu partido de classe, que permitiu ao partido permanecer com as massas e inclusive assumir seu papel de direção, embora não compartilhassem seus objetivos imediatos nem suas ilusões.  A burguesia fracassou em sua tentativa de abrir um fosso entre o partido e a classe, separação que teria significado seguramente a derrota da Revolução russa.

  • "Era um dever inevitável do partido proletário permanecer ao lado das massas, esforçar-se por dar um caráter o mais pacífico e organizado possível a suas justas ações, não ficar de lado, nem lavar as mãos como Pilatos, apoiando-se no argumento pedante de que as massas não estavam organizadas até o último homem e de que em seu movimento havia excessos"[8]

Os pogrons e as calúnias da contra-revolução

Na manhã de 5 de julho, cedo, tropas do governo começaram a chegar à capital. Começou um trabalho de caça aos bolcheviques, de lhes privar de seus escassos meios de propaganda, de desarmar e culpar de terrorismo os operários, e incitar a pogrons contra os judeus. Os "salvadores da civilização", mobilizados contra a "barbárie bolchevique", recorreram essencialmente a duas provocações para mobilizar as tropas contra os operários.

A campanha de mentiras segundo a qual os bolcheviques eram agentes alemães

  • "Do governo e do Comitê-Executivo: os soldados, melancólicos, permaneeiam encerrados nos quartéis em expectativa. Somente na tarde de 4 de julho foi que enfim, as autoridades descobriram poderoso meio de ação: mostraram aos homens do Regimento Preobrazhensk, documentos que provavam insofismávelmente que Lênin era espião da Alemanha. Este estratagema foi bem sucedido. Espalhou-se a noticia pelos regimentos. (...). Modificou-se bruscamente a opinião dos batalhões neutros."[9]

Em particular se empregou nesta campanha um parasita político chamado Alexinski, um bolchevique renegado que tinha tentado criar uma oposição de "ultra-esquerda" contra Lênin, mas que ao fracassar em suas ambições converteu-se em um inimigo declarado dos partidos operários. Como resultado desta campanha, Lênin e outros bolcheviques se viram obrigados a esconder-se, enquanto que Trotski e outros foram presos. "O que o poder necessita não é um processo judicial, mas sim acossar aos internacionalistas. Encerrá-los e mantê-los presos: isso é o que precisam os senhores Kerenski e Cia."

A burguesia não mudou. 80 anos depois organiza uma campanha similar com a mesma "lógica" contra a Esquerda comunista. Então, em 1917, posto que os bolcheviques se negaram a apoiar a Entente, é porque estão do lado dos alemães! Depois, posto que a Esquerda comunista se negou a apoiar o bando imperialista "antifascista" na Segunda Guerra mundial, ela e seus sucessores de hoje devem ter estado ao lado dos alemães. Campanhas "democráticas" do Estado que preparam futuros pogrons.

Os revolucionários atuais, que amiúde subestimam o significado destas campanhas contra eles, têm muito que aprender ainda com o exemplo dos bolcheviques que depois das jornadas de julho, moveram céus e terra em defesa de sua reputação junto à classe operária. Mais tarde Trotski falou de julho de 1917 como "o mês de calúnia mais gigantesca da historia da humanidade", mas mesmo aquelas mentiras ficam pequenas se comparadas com as atuais segundo as quais o estalinismo seria o comunismo.

Outra forma de atacar a reputação dos revolucionários, tão velha como o método da difamação pública, e que normalmente se usou de forma combinada com esta, é a atitude do Estado de animar elementos não proletários e anti-proletários, que pretendem apresentar-se como revolucionários, a entrar em ação.


  • "A provocação desempenhou, inegávelmente, certo papel quer nos acontecimentos do front quer nas ruas de Petrogrado. Após a insurreição de Fevereiro, o govêrno jogara nas linhas de fogo grande nimero de antigos policiais e de sargentos da policia militar. Nenhum dêles, é claro, queria combater. Tinham mais mêdo dos soldados russos do que dos alemães. A fim de fazer esquecer o passado, afetavam as opiniões mais extremistas do exército, incitavam sub-repticiamente os soldados contra os oficiais, reagiam mais do que ninguém contra a disciplina e a ofensiva e, frequentemente, declaravam-se claramente bolcheviques. Mantendo entre eles uma ligação natural de cumplices, representavam uma original confraria de poltrões e de covardes. Por intermédio deles, rumores os mais fantásticos se insinuavam entre as tropas e se propalavam rapidamente, rumores êsses que combinavam o espirito ultra-revoluciontrio com o espirito reacionário dos cem-negros. Nas horas criticas êsses inividuos eram os primeiros a dar o sinal de pânico. A obra desmoralizadora dos policiais e dos policiais-militares foi por mais de uma vez mencionada na imprensa. Frequentemente encontram-se indicações dessa natureza nos docusmentos secretos do próprio exército. O alto-comando, porém, silenciava. preferindo identificar o provocadores cem-negros com os bolchevlques."[10]

Franco-atiradores disparam contra as tropas que chegam à cidade, às quais se dizia que os disparos eram dos bolcheviques

  • "A loucura calculada desta fuzilaria profundamente os operários. Era mais do que claro que provocadores de grande experiência acolhiam a bala os soldados, a fim de vaciná- los contra o bolchevismo. Os operários esforçavam-se ao máximo para explicar o que acontecia aos soldados que chegavam; mas não lhes permitiam que se aproximassem: pela primeira vez, depois das Jornadas de Fevereiro, entre o operário e o soldado colocavam- se ora os junkers, ora os oficiais."[11]

Vendo-se forçados a trabalhar na semi-legalidade depois das jornadas de julho, os bolcheviques tiveram que combater as ilusões democráticas de quem, em suas próprias fileiras, pensavam que deviam comparecer diante de um tribunal contra-revolucionário para responder às acusações de que eram agentes alemães. Lênin reconheceu nisto outra armadilha dirigida ao partido: "O que atua é a ditadura militar. Neste caso é ridículo falar de "justiça". Não se trata de "justiça", mas sim de um episodio de guerra civil."[12]

Mas se o partido sobreviveu ao período de repressão que se seguiu às jornadas de julho, foi, sobretudo por sua tradição de vigilância a respeito da defesa da organização contra todos as tentativas do Estado de destruí-la. Há que se assinalar, por exemplo, que o agente de polícia Malinovski da Okhrana, que tinha conseguido antes da guerra a ser o membro do comitê central do partido diretamente responsável pela segurança da organização: se não tivesse sido desmascarado previamente (apesar da cegueira de Lênin), tivesse sido encarregado de esconder Lênin, Zinoviev, etc, depois das jornadas de julho. Sem essa vigilância na defesa da organização, o resultado teria sido provavelmente a liquidação dos líderes revolucionários mais experimentados. Em janeiro-fevereiro de 1919, quando foram assassinados na Alemanha, Luxemburgo, Jogisches, Liebknecht e outros veteranos do muito joven (recem) KPD, parece que as autoridades foram advertidas previamente por um agente de polícia "de alto escalão" infiltrado no partido.

Balanço das Jornadas de julho

As Jornadas de julho puseram a nu mais uma vez o gigantesco potencial revolucionário do proletariado, sua luta contra a fraude da democracia burguesa, e o fato de que a classe operária é um fator contra a guerra imperialista frente à decadência do capitalismo. Nas jornadas de julho não se colocava o dilema "democracia ou ditadura", mas sim se colocava a verdadeira alternativa com que se enfrenta a humanidade, ditadura do proletariado ou ditadura da burguesia, socialismo ou barbárie. Mas o que as jornadas de julho ilustraram, sobretudo foi o papel indispensável do partido de classe do proletariado. Julho de 1917 também mostrou que é indispensável superar as ilusões nos partidos renegados ex-operários, na esquerda do capital, para que o proletariado possa tomar o poder. Com efeito, essa foi a principal ilusão da classe durante as Jornadas de julho. Mas esta experiência foi decisiva. As Jornadas de julho esclareceram definitivamente, não só para a classe operária e para os bolcheviques, mas também para os próprios mencheviques e eseristas, que estes dois últimos partidos haviam abraçado irrevogavelmente a causa da contra-revolução. Como escreveu Lênin em princípios de setembro: "(...) naquele momento, Petrogrado não podia ter tomado o poder nem sequer materialmente, e se o tivesse feito, não o teria podido conservar politicamente porque Tsereteli e Cia não haviam caído ainda tão baixo a ponto de apoiar um governo de verdugos. Eis aqui por que, naquele momento, entre 3 e 5 de julho de 1917, em Petrogrado, a palavra de ordem de tomada do poder teria sido incorreta. Naquele momento, nem sequer os bolcheviques tinham, nem podiam ter, a decisão consciente de tratar  Tsereteli e Cia como contra-revolucionários. Naquele momento, nem os soldados, nem os operários podiam ter a experiência adquirida no mês de julho"[13]

Em meados de julho Lênin já havia tirado claramente esta lição:
"A partir de 4 de julho, a burguesia contra-revolucionária, de braços com os monarquistas e as centúrias negras, pôs a seu lado, em parte por intimidação, os eseristas e mencheviques pequeno burgueses, entregou de fato o poder de Estado aos Cavaignac, a uma camarilha militar que fuzila no front os insubordinados e persegue em Petrogrado os bolcheviques."[14]

Mas a lição essencial de julho foi a liderança política da classe pelo partido. A burguesia empregou freqüentemente a tática de provocar enfrentamentos prematuros. Tanto em 1848 ou 1870 na França, como em 1919 ou 1921 na Alemanha, em todos estes casos o resultado foi uma repressão sangrenta do proletariado.  Se a Revolução russa foi o único grande exemplo de que a classe operária tenha sido capaz de evitar a armadilha e impedir uma derrota sangrenta é, em grande parte, porque o partido bolchevique foi capaz de cumprir seu papel decisivo de vanguarda da classe. Ao evitar à classe operária uma tal derrota, os bolcheviques destacaram, contra a interpretação pervertida dos oportunistas, as profundas lições revolucionárias da famosa introdução de Engels em 1895 À luta de classes na França de Marx, especialmente sua advertência: "E só há um meio para poder conter momentaneamente o crescimento constante das forças socialistas na Alemanha e inclusive para levá-lo a um retrocesso passageiro: um choque em grande escala com as tropas, uma sangria como a de 1871 em Paris."[15]

Trotski resumia assim o balanço da ação do partido: "Se o Partido Bolchevique, teimando em julgar doutrinariamente "inoportuno" o movimento de Julho, tivesse voltado as costas às massas, a semi-insurreiçao teria, inevitavelmente, caído nas mãos da direção dispersiva e sem planejamento dos anarquistas, dos aventureiros, de intérpretes ocasionais da indignação das massas, e teria derramado todo o seu sangue em convulsões estéreis. Se o partido, em compensação. colocando-se à frente dos metralhadores e dos operário, de Putilov, tivesse renunciado ao julgamento sobre situação no seu todo, e tivesse deslizado pelo caminho dos combates decisivos, insurreição, indubitavelmente, teria alcançado amplitude audaciosa, e os operário, e os soldados, sob a direção dos bolchevque, ter-se-iam, todavia, apoderado do poder, tão-somente para prepararem o desmoronamento da RevoluçAo. A questão do poder transportada para a escala nacional não teria sido, como em Fevereiro o foi, resolvida por simples vitória em Petrogrado. As provincias não teriam acompanhado de perto a capita1. O front não teria compreendido, nem aceitado, a mudança de regime. As estradas de ferro e o telégrafo teriam passado ao serviço dos conciliadores contra os bolcheviques, Kerensky e o quartel-general teriam criado um poder para o front e para as provincias. Petrogrado seria bloqueada. Dentro de suas próprias muralhas iniciar-se-ia a desagregação. O Govarno teria a possibilidade de lançar, contra Petrogrado, massas consideráveis de soldados e, em semelhantes condições, a insurreição terminaria na tragédia de uma Comuna de Petrogrado.
Em julho, por ocasião da bifurcação dos caminhos históricos. Somente a intervenção do Partido dos bolcheviques eliminou as duas variantes de um perigo fatal: a que conduzia a uma espécie de Jornadas de Junho de 1848, e a que enveredava no sentido da Comuna da Paris de 1871. Foi por ter audaciosamente encabeçado o movimento que o partido obteve a possibilidade de represar as massas no momento em que a manifestação começava a transformar-se em comprometimento geral de forças armadas. O golpe assestado em julho contra as masses e contra o partido, foi muito grave. Mas não era golpe decisivo, (...) A classe operária, ao sair da prova. não estava nem decapitada nem exangue. Conservou integralmente os quadras de combate, e êsses quadros aprenderam muito.
"[16]

A história provou que Lênin tinha razão quando escrevia: "Começa um novo período. A vitória da contra-revolução tem feito que as massas se desiludam com os partidos eserista e menchevique e prepara o caminho que levará essas massas a uma política de apoio ao proletariado revolucionário."[17]


[1] Lênin, Obras completas, T. 32, "Onde está o poder e onde, a contra-revolução?". Tradução nossa.

[2] Trotsky, História da Revolução Russa - Cap.I As Jornadas de Julho; Preparativos e Início  - Ed.Paz e Terra.

[3] Trotsky, História da Revolução Russa - Cap.II As "Jornadas de Julho"; Ponto Culminante e Esmagamento - Ed.Paz e Terra.

[4] Trotsky, História da Revolução Russa - Cap.I As "Jornadas de Julho"; Preparativos e Início  - Ed.Paz e Terra.

[5] Trotsky, História da Revolução Russa - Cap.IV A Contra-Revolução Levanta a Cabeça - Ed.Paz e Terra.

[6] Trotsky, História da Revolução Russa - Cap.I As "Jornadas de Julho"; Preparativos e Início  - Ed.Paz e Terra.

[7] Idem.

[8] Lênin, Obras completas, T. 34, "Sobre as ilusões constitucionalistas". Tradução nossa.

[9] Trotsky, História da Revolução Russa - Cap.II As "Jornadas de Julho"; Ponto Culminante e Esmagamento - Ed.Paz e Terra. Tradução nossa

[10] Trotski, História da Revolução Russa Cap. III - Poderiam os Bolcheviques tomar o poder em Julho? Tradução nossa. Foi inclusive mais catastrófico o papel assumido por esses elementos ex-policiais e lupem-proletários, mesclando-se entre os "soldados de Spartakus" e os "inválidos revolucionários" durante a revolução alemã, particularmente durante a trágica "semana Spartakus" em Berlim, em janeiro de 1919.

[11] Trotsky, História da Revolução Russa - Cap.II As "Jornadas de Julho"; Ponto Culminante e Esmagamento - Ed.Paz e Terra.

[12] Lênin, Obras, T. 32, "Devem os dirigentes bolcheviques comparecer diante dos tribunais?". Tradução nossa.

[13] Lênin, Obras, T. 34, "Rumores sobre uma conspiração". Tradução nossa.

[14] Lênin, Obras, T. 34, "A propósito das consignas." Tradução nossa.

[15] Engels, "Introdução" a A luta de classes na França de 1848 a 1850. Tradução nossa.

[16] Trotsky, História da Revolução Russa - Cap.II As "Jornadas de Julho"; Ponto Culminante e Esmagamento - Ed.Paz e Terra.

[17] Lênin, Obras, T. 34, "Sobre as ilusões constitucionalistas". Tradução nossa.

Herança da Esquerda comunista: 

  • Herança da Esquerda comunista [22]

A revolução proletária só pode triunfar ao estender-se por todo o planeta

  • 3703 leituras

Frente a degeneração materializada pelo stalinismo, muitos trabalhadores acreditam, aceitando as mentiras da burguesia, que a Revolução russa estava "podre desde o seu interior", que os bolcheviques se aproveitaram dos trabalhadores russos para  ascenderem ao poder [1]. Ao retratar assim Outubro, a burguesia não faz mais que aplicar a revolução russa, o clichê do que sempre tem sido sua própria política: o engano, a manipulação de massas. No entanto, o curso dos acontecimentos posteriores à insurreição de Outubro, está regido pelas "leis históricas" das revoluções proletárias e não pelas do maquiavelismo político clássico da burguesia: "A revolução russa não fez mais que confirmar o que constitui a lição básica de toda grande revolução, a lei de sua existência: ou a revolução avança a um ritmo rápido, tempestuoso e decidido, derruba todos os obstáculos com mão de ferro e se dá objetivos cada vez mais avançados ou num instante retrocede de seu débil ponto de partida e acaba liquidada pela contra-revolução" [2].

Se a formidável abundância de experiên­cias de fevereiro a outubro de 1917, mostra aos trabalhadores que é possível derrubar o Estado burguês, a tragédia da degeneração desta revolução nos ensina outra lição igualmente valiosa: a revolução proletária só pode subsis­tir extendendo-se ao conjunto do planeta.


[1] Desgraçadamente, como conseqüência da terrível decepção que presumiu o fracasso da revolução, também entre os revolucionários se tem desenvolvido teorias como as dos conselhistas que apresentam a Revolução russa como uma simples revolução burguesa e ao Partido bolchevique como um partido burguês. Ou, como é o caso dos bordiguistas, que definem uma dupla natureza (burguesa e proletária) da Revolução russa. Temos criticado estes erros nos artigos da Revista internacional nº. 12 e 13: "Outubro de 1917: início da revolução proletária".

[2] Rosa Luxemburgo, A Revolução russa.

Herança da Esquerda comunista: 

  • Herança da Esquerda comunista [22]

O isolamento é a morte da revolução

  • 7961 leituras

"O destino da revolução na Rússia dependia totalmente dos acontecimentos internacionais. O que demonstra a visão política dos bolcheviques, sua firmeza de princípios e sua ampla perspectiva é que haviam baseado toda sua política na revolução proletária mundial" [1].

Em conseqüência, desde 1914, quando a Primeira Guerra mundial abriu o período de decadência do capitalismo, os bolcheviques estiveram na vanguarda dos revolucionários, ao assinalar que a alternativa às guerras mundiais só podia ser a revolução mundial do proletariado. Com essa orientação firmemente internacionalista, Lênin e os bolcheviques vêem na revolução Russa: "... só a primeira etapa das revoluções proletárias que inevitavelmente surgirão como conseqüência da guerra". Para o proletariado russo, a sorte da revolução dependia em primeiro lugar das insurreições operárias em outros países, principalmente na Europa.

A revolução na Rússia lutou com todas suas forças para estender-se a outros países

A Revolução russa não se limitou a confiar passivamente seu destino ao surgimento da revolução proletária em outros países, mas apesar das imensas dificuldades que enfrentava na própria Rússia, tomou continuamente iniciativas para estender a revolução. De fato o Estado que surge da revolução concebe a si mesmo como o primeiro passo até a "República internacional dos sovietes", delimitado não pelas fronteiras artificiais das nações capitalistas, mas pelas fronteiras de classe [2]. Por exemplo, uma propaganda sistemática foi levada a cabo até os prisioneiros de guerra incitando-lhes a se unirem à revolução internacional, e quem o desejasse tinha a possibilidade de ser cidadão russo. Como conseqüência dessa propaganda, se constituiu a Organização social democrata de prisioneiros de guerra na Rússia, que chamava os trabalhadores alemães, austríacos, turcos..., à insurreição para por fim a guerra, e estender a Revolução russa.

Porém a chave da extensão da revolução estava na Alemanha, e a revolução russa canalizou toda sua energia em direção dos trabalhadores alemães. Desde que pôde instalar-se uma embaixada em Berlim (abril de 1918), esta se transformou em uma espécie de quartel general da revolução na Alemanha. O embaixador russo, Joffe, comprava informação secreta de funcionários alemães, e as passava aos revolucionários alemães para que desmascarassem a política imperialista do Governo, comprou igualmente armas para os revolucionários, imprimia na própria embaixada toneladas de propaganda revolucionária, e todas as noites, os revolucionários alemães se dirigiam discretamente a embaixada para discutir os preparativos da insurreição.

As prioridades da revolução mundial fizeram com que os trabalhadores russos esfomeados ) sacrificassem de suas próprias rações três trens carregados de trigo para ajudar os operários alemães.

Cabe saber como viveram na Rússia os primeiros momentos da revolução na Alemanha. Quando esta estourou, em uma impressionante concentração de trabalhadores ante o Kremlin, "dezenas de milhares de trabalhadores explodiram em aplausos arrebatados. Nunca tinha visto uma coisa como essa. Até bem iniciada a tarde, operários e soldados do Exército vermelho desfilaram. A revolução mundial havia chegado. A massa do povo ouvia o duro eco de seus passos. Nosso isolamento havia terminado" [3].

Como contribuição a essa revolução mundial em marcha, ainda que desgraçadamente com atraso, em março de 1919 teve lugar em Moscou o primeiro congresso da Internacional comunista, que concebia a si mesma nestes termos:

"Nossa tarefa é generalizar a experiência revolucionária da classe operária, depurar o movimento de misturas impuras de oportunismo e social patriotismo, unir as forças de todos os partidos verdadeiramente revolucionários do proletariado mundial e desse modo, facilitar e acelerar a vitória da Revolução comunista no mundo inteiro" [4].

No entanto o proletariado foi massacrado em Berlim, Viena, Budapeste, Munique, e a Internacional comunista começou a fazer concessões ao parlamentarismo, ao sindicalismo, a libertação nacional. Do mesmo modo, a extensão da revolução, se confia então à "guerra revolucionária", que os mesmos bolcheviques, como vimos mais adiante, haviam recusado quando o tratado de Brest-Litovsk em 1918 [5]. Em dezembro de 1920, nesse caminho de degeneração, o Executivo ampliado da IC lança a nefasta consigna de "Frente única", ante a convicção de que a revolução européia se afastava.

A lógica "fatalista" tão própria da filosofia burguesa considera que "uma coisa é... o que termina por ser". Assim a Internacional comunista, como tantos outros titânicos esforços dos trabalhadores, e dos revolucionários, nos são apresentados, já desde suas origens, como o plano preconcebido pelos "maquiavélicos" bolcheviques para construir "um instrumento de defesa do Estado capitalista russo". Porém como dizíamos, essa é a lógica da burguesia. Para o proletariado, entretanto, a degeneração da Revolução russa, e da própria Internacional comunista, são o resultado de uma derrota da classe operária, de uma luta encarniçada contra a reação mais brutal por parte do capitalismo mundial. Se, segundo o que nos explica hoje a burguesia, a revolução russa só podia passar a ser o que veio a ser, porque então todos os capitalistas do mundo se empenharam em afogá-la?

O cerco capitalista à Revolução russa

Entre 1917 e 1923, até que fracassa a tentativa revolucionária do proletariado mundial, todos os capitalistas tinham se reunido em uma cruzada internacional sob a consigna: Abaixo o bolchevismo! Nessa cruzada aparecem agrupados, desde o imperialismo alemão aos generais tzaristas, e as "democracias" ocidentais da Entente, que poucos meses antes estavam se massacrando mutuamente na primeira carnificina imperialista mundial. Essa é outra lição essencial da revolução de Outubro: quando a insurreição operária ameaça a existência do próprio capitalismo, os exploradores deixam de lado suas divergências para esmagar a revolução.

O imperialismo alemão

A primeira barreira que sofre a extensão da revolução russa é o cerco dos exércitos do Kaiser. É certo que a revolução russa, como o conjunto da onda revolucionária, surgiu como resposta a Primeira Guerra mundial; também é verdade que essa guerra mundial criou "as condições mais difíceis e anormais", como dizia Rosa Luxemburgo, para o desenvolvimento e a extensão da revolução.

A paz era uma necessidade imperiosa, e como tal figurava em primeiro lugar das prioridades da revolução na Rússia. Em 19 de novembro de 1917, começaram as conversações de paz em Brest-Litovsk, que eram "retransmitidas" por rádio todas as noites pelos delegados soviéticos, não só para os próprios trabalhadores russos, mas também para os prisioneiros de guerra, e em definitivo para os trabalhadores do mundo inteiro. Ao fim e ao cabo haviam ido a Brest-Litovsk sem nenhuma confiança nas intenções de "paz" do imperialismo alemão. Trotski fez a declaração: "Não ocultamos a ninguém que não consideramos capazes de uma paz democrática aos atuais governos capitalistas; só a luta revolucionária das massas trabalhadoras contra seus Governos pode trazer a Europa uma paz semelhante, e sua plena realização não estará assegurada mais que por uma revolução proletária vitoriosa em todos os países capitalistas" [6].

Em inícios de 1918 começam a chegar notícias das greves e motins na Alemanha, Áustria, Hungria [7],... o que permitiu os bolcheviques dilatar as negociações, porém finalmente essas revoltas são esmagadas; isso incita Lênin, de novo em minoria dentro do partido bolchevique, a defender a necessidade de assinar quanto antes o tratado de paz. A extensão da revolução, a causa pelo que lutam bravamente, não pode ser confiada à "guerra revolucionária", que defendem os "comunistas de esquerda" [8] mas só pode ser baseada sobre a maturação da revolução na Alemanha: "É admissível por completo que com tais premissas, não só seria "conveniente", mas absolutamente obrigatório aceitar a possibilidade da derrota e da perda do Poder soviético. No entanto está claro que essas premissas não existem. A revolução alemã amadurece, porém é evidente que não tem chegado ainda a seu estouro, que não tem chegado ainda a guerra civil na Alemanha. É evidente que nós não ajudaríamos, senão que obstaculizaríamos o processo de maturação da revolução na Alemanha se "aceitássemos a possibilidade da perda do poder soviético". Com isso ajudaríamos a reação alemã, lhe faríamos o jogo, dificultaríamos o movimento socialista na Alemanha, afastaríamos do movimento socialista grandes massas de proletários e semi-proletários da Alemanha que não têm se incorporado ainda ao socialismo e que se veriam atemorizados pela derrota da Rússia soviética, da mesma maneira que a derrota da Comuna em 1871 amedrontou os operários ingleses" [9].

Assim se expressa o dilema que se vive em um bastião onde o proletariado tomou o poder, porém que momentaneamente está isolado, que não tem conseguido estender-se com insurreições triunfantes em outros países: Ceder o bastião ou negociar, e por tanto submeter-se ante uma força militarmente muito superior, para tratar de obter um respiro, e mantendo o bastião revolucionário seguir ajudando a revolução mundial? Rosa Luxemburgo, quem por certo em um primeiro momento não esteve de acordo com as negociações de Brest-Litovsk, resume, no entanto, com muita clareza, como o único que pode desbloquear essa contradição num sentido favorável à revolução é a luta do proletariado alemão: "Todo o cálculo da batalha empenhado pelos russos para a paz, se assentava em efeito sobre esta hipótese silenciosa: que a revolução na Rússia devia ser o sinal do levantamento revolucionário do proletariado no Ocidente (...). Nesse caso somente, mas também indubitavelmente, a revolução russa havia sido o prelúdio da paz generalizada. Até agora nada disso aconteceu Fora de alguns valorosos esforços do proletariado italiano (greve geral de 22 de Agosto em Turim) os proletários de todos os países faltaram aos compromissos da revolução russa. E no entanto, a política de classe do proletariado internacional, por natureza e por essência, só pode ser realizada internacionalmente..." [10].

Finalmente o Alto comando alemão retomou surpreendentemente, em 18 de Fevereiro, as operações militares ("o salto dessa fera é muito rápido" havia advertido Lênin) e em apenas uma semana estava às portas de Petrogrado e, finalmente, o Governo russo teve de aceitar uma paz ainda em piores condições: na primavera de 1918, os exércitos alemães ocupavam as antigas províncias bálticas, a maior parte de Bielorrússia, toda Ucrânia, o norte do Cáucaso, e, posteriormente descumprindo os próprios acordos de Brest, Criméia e Transcaucásia (exceto Baku e o Turquistão).

Em continuidade com o que defendeu a Esquerda comunista italiana [11], não pensamos que a paz de Brest-Litovsk representou um passo atrás da revolução, mas que vinha imposta por essa contradição que antes assinalamos entre a manutenção do bastião proletário e a incapacidade momentânea da extensão da revolução. A solução para essa contradição não está na mesa de negociações, nem na frente militar, mas na resposta do conjunto do proletariado mundial. Precisamente, quando os capitalistas conseguiram derrotar a onda revolucionária, o Governo russo aceitou a "política exterior" convencional dos Estados capitalistas e assinou os acordos de Rapallo em abril de 1922, que nem por sua forma (acordos secretos), nem evidentemente por seu conteúdo (apoio militar do exército russo ao Governo alemão) não tinham nada a ver com Brest-Litovsk, nem com a política revolucionária do proletariado. Quando a IC, em pleno processo de degeneração, chama os trabalhadores alemães a uma reação desesperada em Março de 1923 (a chamada "ação de Março"), as armas de que se utilizam as tropas governamentais alemãs para massacrar os trabalhadores, lhes foram vendidas pelo Governo russo.

O assédio contínuo das "democracias" ocidentais

Os aliados da Entente, as "democracias avançadas do Ocidente", não economizaram esforços para afogar a revolução russa. Na Ucrânia, na Finlândia, nos países bálticos, na Bessarábia, Grã-Bretanha e França instalaram governos que apoiaram os exércitos brancos contra-revolucionários. Não contentes com isto, decidiram, além disso, intervir diretamente na Rússia: em 3 de Abril desembarcavam tropas japonesas em Vladivostok. Posteriormente chegaram destacamentos franceses, ingleses e americanos:

"Desde o começo da revolução de Outubro, as potências da Entente têm se colocado do lado dos partidos e governos contra-revolucionários da Rússia. Com a ajuda dos contra-revolucionários burgueses anexaram a Sibéria, Ural, os limites da Rússia Européia, a Cáucaso e o Turquistão. Roubam dessas comarcas as matérias primas (madeira, petróleo, magnésio, etc.). Com a ajuda das bandas tchecoslovacas a seu serviço, tem roubado as reservas de ouro da Rússia sob a direção do diplomático inglês Lockhart, espiões ingleses e franceses têm detonado pontes e destruído ferrovias e tentaram obstaculizar o abastecimento de mantimentos. A Entente tem sustentado, com fundos, armas, e ajuda militar, os generais reacionários Denikin, Koltchak, Krasnov, que tem fuzilado e enforcado milhares de operários e camponeses em Rostov, Yusovka, Novorossijsk, Omsk..." [12].

Em inícios de 1919, quer dizer quando eclode a revolução na Alemanha, a Rússia está completamente isolada do exterior, e enfrenta um dos momentos de maior atividade tanto dos exércitos brancos, como das tropas das "democracias ocidentais". Os bolcheviques proclamam de novo, ante os soldados enviados pelos capitalistas para esmagar a revolução, a necessidade do internacionalismo proletário: "Não vais lutar contra inimigos (dizia uma folha distribuída entre as tropas inglesas e americanas em Arkángel), mas contra trabalhadores como vós; e nós os questionamos: Vais nos esmagar?... Sedes leais a vossa classe e se negue a fazer o trabalho sujo de vossos amos..." [13].

E de novo os chamamentos dos bolcheviques (se editam jornais como The Call em inglês - chamamento - ou La Lanterne em francês - A lanterna), voltam a fazer efeito nas tropas enviadas a combater a revolução: "Em 1º de Março de 1919, estouram motins nas tropas francesas que tinham sido mandadas para marchar para o front. Antes, uma companhia de infantaria britânica havia se negado como um só homem a voltar ao seu posto no front, e pouco depois o fez uma companhia americana" [14]. Em Abril de 1919, as tropas e a frota francesas têm de ser retiradas, pois na França cresce a indignação dos trabalhadores ante o fuzilamento de Jeanne Labourbe (uma militante comunista que fazia propaganda a favor da confraternização entre os soldados franceses e os russos). Do mesmo modo, as tropas inglesas deverão ser repatriadas, pois na Inglaterra, na Itália, etc., se produzem manifestações operárias contra o envio de tropas ou armamentos aos exércitos contra-revolucionários. Por isso as "democracias" ocidentais se viram obrigadas a mudar de tática, e utilizar, no assédio à revolução russa, as tropas das nações que elas mesmas haviam contribuído para criar sobre as ruínas do antigo império russo, como um "cordão de isolamento" contra a extensão da revolução.

Em Abril de 1919, tropas polacas ocuparam uma parte da Bielorrússia e Lituânia. Em abril de 1920, ocupam Kiev na Ucrânia, e finalmente em maio-junho de 1920, apoiaram o general branco Denikin e tomaram o controle de quase toda Ucrânia. Igualmente, Enver Pachá, líder da revolução "antifeudal" dos jovens turcos, acabou encabeçando uma revolta anti-soviética no Turquistão, em Outubro de 1921.

A reação interior

Depois da insurreição de outubro e a tomada do poder em toda Rússia, os restos da burguesia, do exército, as castas militares reacionárias (cossacos, tekineses...) começam imediatamente a reagrupar suas forças, atrás da bandeira do Governo provisório (a mesma curiosamente que hoje, com Yeltsin, ondula no Kremlin) formando-se os primeiros exércitos "brancos" ao comando de Kaledin, chefe dos cossacos do Dom.

O imenso caos e a penúria que atravessava a isolada Rússia, a "auto-desmobilização" dos restos do exército herdado do tzarismo, a fraqueza das forças armadas revolucionárias, porém, sobretudo devido à ação do imperialismo alemão e dos imperialismos ocidentais com ajuda dos exércitos brancos, inverteu progressivamente a relação de forças na guerra civil. Em meados de 1918, o território sob o domínio dos Sovietes se reduziu ao que na época feudal era o principal da Moscóvia, e a revolução tem que fazer frente a revolta da "legião tcheca" e ao Governo "antibolchevique" de Samara [15], que cortavam a necessária comunicação com a Sibéria. A estes, acabou somando-se logo os cossacos de Krasnov (o general derrotado em Púlkovo nos primeiros dias da insurreição, e que havia sido detido e posteriormente liberado pelos bolcheviques), o exército de Denikin no Sul, Kaledin no Dom, Kolchak no Leste, Yudenitch no Norte... Em resumo uma sangrenta orgia de terror, de matanças, assassinatos e atrocidades de todo tipo, aplaudida pelos "democratas" e bendita pelos "socialistas" que na Alemanha, Áustria, Hungria..., esmagavam as insurreições operárias.

Os historiadores burgueses apresentam essas brutalidades da guerra civil, "como em todas as guerras", fruto do "selvagerismo" dos homens. Porém a atroz guerra civil, que sacudiu a Rússia durante três anos, que custou junto às enfermidades e a fome causada pelo bloqueio econômico imposto a população na Rússia, sete milhões de mortos, foi uma imposição do capitalismo mundial.

Junto aos exércitos ocidentais, junto às "bandas brancas", operavam ao mesmo tempo contra a revolução a sabotagem e as conspirações contra-revolucionárias da burguesia e a pequena-burguesia. Em julho de 1918, Savinkov [16] organizou com fundos disponibilizados pelo embaixador francês Noulens, um motim em Yaroslav onde se sustentaram duas semanas de autêntico terror e vingança contra tudo o que cheirava proletário, revolucionário, bolchevique. Também em julho, apenas alguns dias depois do desembarque franco-britânico em Murmansk, os socialistas revolucionários de esquerda organizaram uma tentativa de golpe de Estado, depois de assassinar o embaixador alemão, conde Mirbach, com objetivo de provocar uma retomada imediata das hostilidades com a Alemanha. Lênin o definiu como "outro monstruoso golpe do pequeno-burguês". Só lhe faltava à revolução nesse momento, uma guerra aberta com a Alemanha!

A revolução se debatia entre a vida e a morte. Sobreviver, à espera da revolução na Europa, exigia uma infinidade de sacrifícios, no terreno econômico como veremos mais adiante, porém também no terreno político. Não entraremos neste artigo, na análise, por exemplo, da questão do aparato repressivo ou do exército regular [17], sobre o que a revolução russa proporciona um sem fim de lições. Interessa-nos, não obstante destacar que a passagem da necessária violência revolucionária ao terror, assim como a substituição das milícias operárias por um exército hierarquizado, cada vez mais autônomo dos Conselhos operários, são em grande parte conseqüências do isolamento da revolução, da cada vez mais adversa correlação de forças entre burguesia e proletariado mundiais, que é no final das contas o que determina o curso da revolução que tem "triunfado" em um só país.

Entre uma Tcheca que no momento de sua formação em Novembro de 1917, conta com apenas 120 homens e que não dispõe nem de carro para assumir seu papel e o monstruoso aparato policial do GPU, utilizado precisamente por Stalin contra os próprios bolcheviques, não há uma "evolução lógica", sem uma degeneração resultado da derrota da revolução. Do mesmo modo, entre a "guarda vermelha" que por mandato dos Sovietes controla as unidades militares; e um exército regular onde se reinstauram o recrutamento obrigatório (Abril de 1919), a disciplina de quartel, a saudação militar, e que em Agosto de 1920 já há 315 000 "spetsys" militares ("especialistas" procedentes do antigo exército tzarista) não há uma continuidade prevista de antemão pelos "maquiavélicos" bolcheviques, mas o massacrante peso das exigências da luta entre um bastião proletário que necessita o ar da revolução internacional para sobreviver, e uma feroz contra-revolução mundial, que cada vez foi mais potente, porque cada vez amputava, com derrotas, mais partes do corpo do proletariado mundial.

A asfixia econômica

Nas condições do isolamento da revolução, do assédio permanente dos capitalistas, da sabotagem interior, e independentemente das ilusões dos bolcheviques sobre a possibilidade de introduzir uma lógica distinta à economia, a verdade é que como o próprio Lênin reconhecia, a economia na Rússia de 1918-1921, era a de uma "fortaleza sitiada", um bastião proletário, que tratava de agüentar, nas piores circunstâncias, a espera da extensão da revolução [18].

A terrível penúria econômica que padeceu a revolução na Rússia, não é a conseqüência da miséria que seria o resultado do socialismo, mas da impossibilidade de romper com a miséria quando a revolução proletária fica isolada. A diferença é sem dúvida substancial: enquanto que da primeira tese, os capitalistas esperam que os operários tirem a lição de que "é melhor não fazer a revolução e destruir o capitalismo, pois mal ou bem este sistema nos permite sobreviver", da segunda se extrai uma lição fundamental da luta operária, desde as menores greves nas fábricas até as revoluções que ocupam um país inteiro: "... se não estendermos as lutas, ficarmos isolados, estaremos derrotados".

A revolução operária na Rússia surge frente à Primeira Guerra mundial e, portanto, herda também desta o caos econômico, os racionamentos, a subordinação da produção às necessidades da guerra. Isolada, deverá sofrer, além disso, os estragos da guerra civil, e a intervenção militar das "democracias" ocidentais. Estas que mostravam uma máscara "humanitária" em Versalhes, sob o lema "viver e deixar viver" não duvidaram, no entanto em implementar um drástico bloqueio econômico que se estendeu desde março de 1918, até começos de 1920 (poucos meses antes da derrota definitiva do último "exército branco" de Wrangel) e que impedia inclusive a chegada à Rússia dos envios solidários que os proletários de outros países faziam a seus irmãos de classe, na Rússia.

Assim, a população se viu privada, por exemplo, de combustível. O frio semeava a Rússia de cadáveres. Como conseqüência do cerco estabelecido pelos capitalistas, o carvão da Ucrânia se manteve inacessível até 1920 e o petróleo de Baku e o do Cáucaso esteve em mãos inglesas desde o verão de 1918 até finais de 1919. O total de combustível que chegava naquele momento às cidades russas, não supria nem sequer 10% dos fornecimentos normais antes da Primeira Guerra mundial.

Nas cidades, se passava uma fome atroz. Desde a guerra imperialista, o açúcar e o pão se encontravam racionados. Com a guerra civil, o bloqueio econômico, e a sabotagem dos camponeses que escondiam grande parte da colheita, para depois vendê-la no mercado negro, esse racionamento alcançou níveis inumanos. Em Agosto de 1918, quando já se haviam esgotado por completo as existências de víveres nos armazéns das cidades, se decidiu diferenciar as rações:

  • os operários da indústria pesada recebiam a ração de primeira categoria, que proporcionava aproximadamente de 1200 a 1900 calorias/dia, ou seja, a quarta parte de suas necessidades reais. Este tipo de ração se fez logo extensiva, com o transcurso da guerra civil, aos familiares dos alistados no Exército vermelho.
  • a ração inferior representava a quarta parte da anterior, e era a que se proporcionava aos burgueses. O resto dos trabalhadores obtinha uma ração "média", três vezes maior que a inferior.

Em Outubro de 1919, quando o general branco Yudenitch chegou às portas de Petrogrado, Trotski descreve os voluntários que tinham que encarregar-se de travar a marcha dos guardas brancos, como um exército de espectros: "Por aquela época, os operários de Petrogrado tinham um aspecto lamentável, com suas caras pardas como a terra por falta de alimento, com seus trajes que se lhes caiam de rotos, com suas botas furadas, que muitas vezes nem sequer fechavam" [19].

Em janeiro de 1921, mesmo depois de acabada a guerra civil, a ração de pão preto é de 800 gramas para os trabalhadores das empresas a ritmo contínuo, e de 600 gramas para diversos trabalhadores de choque; e se rebaixa a 200 gramas para os portadores da "carta B" (desempregados). O mesmo pode-se dizer do arenque, que outras vezes havia ajudado a salvar a situação e que agora faltava por completo. As batatas chegavam quase sempre congeladas às cidades, pois o estado das vias férreas e das locomotivas era lamentável (20% de seu potencial de antes da guerra). No começo do verão de 1921, uma fome atroz sacudiu as províncias orientais, assim como a região de Volga. Existiam nesse momento segundo as estatísticas reconhecidas pelo próprio Congresso dos Sovietes entre 22 e 27 milhões de necessitados, que padeciam fome, frio, epidemias de tifo [20], difteria, gripe...

Aos escassos fornecimentos, se unia a especulação. Para conseguir algo com o que completar as rações oficiais, havia que recorrer ao mercado negro: a "sujarevka" (nome tomado da Praça Sujarevski de Moscou, onde se realizava semi-clandestinamente este tipo de transações). A metade do grão que chega às cidades vem do Comissariado de Abastecimento, a outra metade se consegue no mercado negro (a um preço 10 vezes superior ao oficialmente fixado). Existe outra forma de sobreviver: o contrabando, o transporte ilegal de produtos manufaturados ao campo, para trocá-los ali com os camponeses por víveres. Logo, a tipologia da revolução embalou um novo personagem: o "homem do saco" que trazia para aldeias sal, fósforo, às vezes um par de botas ou um pouco de petróleo em uma garrafa, para trocá-los por uns kilos de batatas e um pouco de farinha. Em Setembro de 1918, o Governo reconheceu oficialmente a existência do contrabando, limitando-o unicamente a 1,5 puds (aproximadamente 25 kilos) de trigo. Desde então o homem do saco passou a denominar-se o "homem do pud e meio", sem cessar de proliferar. Quando nas fábricas começou a pagar com os próprios produtos que os operários fabricavam, se ampliou igualmente a prática de que os próprios trabalhadores se transformavam em "homens do saco", vendendo para a população, correias, ferramentas...

Quanto às condições de trabalho, a tremenda miséria, o isolamento da revolução e a guerra civil, as agravaram brutalmente, tornando vãs as reivindicações operárias e inclusive as medidas que o próprio Governo adotava para satisfazê-las: "Quatro dias depois da revolução, se publicou um decreto que estabelecia a jornada de 8 horas, e a semanal de 48 horas, proibindo o trabalho aos menores de 14 anos e limitando o das mulheres. Um ano depois o Narkomtrud (comissariado do povo para o Trabalho) teve que voltar a recordar a obrigatoriedade deste decreto. Estas proibições tiveram pouco efeito, no período de extrema escassez de mão-de-obra da guerra civil" [21].

O próprio Lênin que havia criticado o "taylorismo", ou seja, o trabalho em série, qualificando-o como o "acorrentamento do homem à máquina", cedeu finalmente às exigências de incrementar a produção, instituindo os "sábados comunistas", pelo que os trabalhadores apenas recebiam uma refeição que, além disso, em geral acabavam pagando, para apoiar a revolução. Na confiança ainda de que a revolução proletária podia ser iminente na Europa, defendendo a sobrevivência do bastião proletário, privados, além disso, como veremos mais adiante de seus Sovietes, de suas assembléias operárias, de sua luta de classes contra a exploração capitalista, os setores mais combativos e mais conscientes da classe trabalhadora foram progressivamente se encadeando às formas mais brutais da exploração capitalista vigente na Rússia.

Apesar desses esforços e dessa super-exploração, as fábricas russas produziam cada vez menos, por um lado pela própria perda de produtividade de um proletariado desnutrido, mas também pelo próprio caos da economia russa: ainda em 1923, três anos depois do final da guerra civil, o conjunto da indústria russa, funcionava a 30% da capacidade de 1912. Na pequena indústria, a produtividade do operário era só de 57% da de 1913. Esta pequena indústria, desenvolvida, sobretudo a partir de 1919, era em grande parte rural (de fato sua produção era essencialmente de ferramentas, roupa, móveis..., para o mercado camponês local) e nela os operários trabalhavam em condições muito similares as da agricultura (em número de horas de trabalho em particular). Por conta das difíceis condições de existência nas cidades, grande parte dos trabalhadores imigrou para o campo, e se integrou dentro desta produção em pequena escala. Nas grandes cidades, os operários deixavam as grandes fábricas para trabalhar em pequenas oficinas, onde podiam obter peças para trocar com o campesinato. Em 1920, o número total de assalariados na indústria era de 2 200 000 trabalhadores, dos quais apenas 1 400 000 estavam empregados em estabelecimentos de mais de 30 operários.

Com a entrada em vigor da NEP (Nova política econômica) em 1921 [22], as empresas do Estado, necessitaram fazer frente a concorrência dos capitalistas "privados" da Rússia, ou aos investidores estrangeiros recém-chegados, e como em qualquer economia capitalista, o Estado-patrão necessitava produzir mais e mais barato. Por trás da desmobilização da guerra civil, e a entrada em vigor da NEP, se produziu uma onda de demissões, que, por exemplo, nas ferrovias, alcançou a metade do quadro. O desemprego começou a estender-se com força a partir de 1921. Em 1923 havia na Rússia 1 milhão de desempregados oficialmente recenseados.

A questão camponesa

O campesinato representava na Rússia 80% da população. Na insurreição, o congresso dos Sovietes adaptou o "Decreto sobre a terra", que trata de fazer frente à necessidade de dezenas de milhões de camponeses: cultivar um pedaço de terra para poder alimentar-se, e ao mesmo tempo, eliminar as grandes propriedades agrárias, que não só obrigavam os camponeses a trabalhar em condições arcaicas, mas, além disso, eram o ponto de apoio da contra-revolução. No entanto, as medidas tomadas não contribuíram para formar grandes unidades de exploração, nas que os trabalhadores agrícolas, puderam exercer um mínimo controle operário. Ao contrário, apesar de iniciativas como os "comitês de trabalhadores agrícolas", ou como depois os Koljozi ("granjas coletivas"), ou os Sovjozi ("granjas soviéticas"), chamadas também "fábricas socialistas de grãos", pois sua missão era a de abastecer de cereais o proletariado das cidades, o que se estendeu foi a pequena unidade camponesa, de dimensões ridículas, e que apenas dava para subsistir a própria família do camponês. As explorações agrárias de menos de 5 hectares, que em 1917 representavam 58% do total, alcançaram em 1920, 86% do total da terra cultivável. Por conseqüência estas explorações, dado o exíguo da sua produção, não podiam supor nenhum alívio para a fome nas cidades. As medidas de "requisições obrigatórias" com que os bolcheviques tentaram em um primeiro momento obter os alimentos que se necessitavam para cobrir as necessidades do proletariado e do Exército vermelho se saldaram não só com um fracasso lamentável: enquanto a quantidade do coletado, mas que, além disso, empurrou a grande parte destes camponeses aos exércitos brancos, ou melhor, a bandas armadas, amiúde muito numerosas, que combatiam às vezes aos exércitos brancos e às vezes aos bolcheviques, como foi o caso do anarquista Majno na Ucrânia.

A partir do verão de 1918, o Estado tratou de apoiar-se nos camponeses médios, para obter melhores resultados: no primeiro ano da revolução, o Comissariado de Abastos, havia recolhido apenas 780 mil toneladas de grão; de Agosto de 1918 a Agosto de 1919 conseguiu dois milhões de toneladas. No entanto, o camponês proprietário de uma exploração agrícola "média", não estava disposto a colaborar: "O camponês médio produz mais artigos alimentícios do que necessita, e enquanto tem excedentes de cereais, se converte em um explorador do operário faminto (...) Aqui está nossa missão fundamental, e nisto apóia a contradição fundamental; o camponês, enquanto que trabalhador, de homem que vive de seu próprio trabalho, que tem sofrido a opressão do capitalismo está ao lado do operário; porém o camponês, em sua qualidade de proprietário, do que tem excedentes de cereais, está acostumado a considerá-los como propriedade sua, que pode vender livremente" [23].

Tampouco aqui podiam os bolcheviques levar à prática outra política, além da que lhes era imposta pelo curso desfavorável da relação de forças entre a revolução operária e o capitalismo dominante. A solução para esse acúmulo de contradições, não estava nas mãos do Estado russo, nem residia nas relações entre o proletariado e o campesinato na Rússia. A solução, só podia vir do proletariado internacional.

"No IXº Congresso do Partido, em março de 1919, que proclamou a política de conciliar-se com o camponês médio, Lênin tocou num dos pontos dolorosos da agricultura coletiva; se conseguiria ganhar o camponês médio para a sociedade comunista "unicamente... quando facilitemos e melhoremos as condições econômicas de sua vida". Porém aí estava a dificuldade. "Se pudéssemos dar-lhe amanhã 100 000 tratores de primeira classe, dotados de gasolina, fornecer-lhe mecânicos (sabeis muito bem que no momento isto é pura utopia), o camponês médio diria: estou a favor da comuna (ou seja, do comunismo). Porém para fazer isso é necessário primeiro vencer a burguesia internacional, obrigá-la para que nos dê esses tratores". Lênin não seguia o silogismo. Edificar o socialismo na Rússia era impossível sem a agricultura socializada, e socializar a agricultura era impossível sem tratores, e obter tratores era impossível sem uma revolução proletária internacional" [24].

A economia dos primeiros anos da revolução na Rússia, não está marcada, nem no período do "comunismo de guerra", nem no da NEP, pelo socialismo, mas pelas asfixiantes condições que o isolamento impõe à revolução.

"Mais ainda nós tínhamos razão ao pensar que se a classe operária européia houvesse conquistado o poder antes, ter-se-ia encarregado do nosso país atrasado - pela economia e a cultura -, e assim nos havia sem dúvida alguma ajudado por meio da técnica e da organização e nos havia permitido, corrigindo e modificando em parte ou totalmente nossos métodos de comunismo de guerra, nos dirigir até uma economia socialista verdadeira" [25].

A derrota da onda revolucionária do proletariado mundial levou também à morte o bastião proletário russo. A partir da morte da revolução pôde constituir-se na Rússia, uma nova burguesia: "A burguesia russa se reconstituiu com a degeneração interna da revolução, não a partir da burguesia tzarista, eliminada pelo proletariado em 1917, mas a partir da burocracia parasitária do aparato de Estado, com o que se confundiu cada vez mais, debaixo da direção de Stalin, o Partido bolchevique. Esta burocracia do Partido-Estado a que ao eliminar, em finais dos anos 20, todos os setores suscetíveis de reconstruir uma burguesia privada e aos que se havia aliado para assegurar a gestão da economia (proprietários camponeses, especuladores da NEP) tomou o controle desta economia" [26].

O esgotamento dos conselhos operários

Como conseqüência do isolamento da revolução, se produzem não só a fome e as guerras, mas também a progressiva perda do principal capital da revolução: a ação massiva e consciente da classe operária, que tinha se desenvolvido entre fevereiro e outubro de 1917 [27]. Em finais de 1918, o número de operários de Petrogrado era de 50% do que existia em finais de 1916, e no outono de 1920, ao final da guerra civil, a que havia sido berço da revolução havia perdido quase 58% da população total. Moscou, a nova capital, se havia despovoado em 45%, e o conjunto das capitais da província em 33%. A maioria desses trabalhadores emigrou para o campo onde sobreviver era menos difícil.

Mas uma grande parte deles se alistou no Exército vermelho, ou se colocou ao serviço do Estado: "Quando as coisas se tornaram graves no front, nos voltamos ao Comitê central do partido e ao Presidium do comitê central sindical e dessas duas fontes enviamos proletários destacados a frente e ali criaram o Exército vermelho à sua própria imagem e semelhança" [28].

Cada vez que o Exército vermelho, composto majoritariamente de camponeses, retrocedia em debandada ou difundiam as deserções, se recrutavam brigadas dos trabalhadores mais decididos e conscientes, para colocá-los em vanguarda das operações militares ou como "barreira de contenção" contra as deserções camponesas. Mas também, cada vez que havia que tomar a responsabilidade de reprimir a sabotagem, de combater o caos dos abastecimentos, os bolcheviques recorriam à célebre consigna de Lênin: "Aqui faz falta energia proletária!". Mas essa energia da classe revolucionária se afastava cada vez mais dos centros onde havia nascido, e onde se havia adquirido a força para se desenvolver e se materializar, os Conselhos Operários e os Sovietes. Esta energia estava colocada ao serviço do Estado, o órgão que passaria a ser o motor da contra-revolução [29]. Como conseqüência disso, se produziu uma progressiva perda de vitalidade desses mesmos Sovietes que Trotski descreveu assim: "Quando a tarefa principal do governo era organizar a resistência ao inimigo e nos era obrigado resistir a todos os ataques, a direção se exercia quase exclusivamente mediante ordens e a ditadura do proletariado revestia, naturalmente, a forma de uma ditadura proletária militar. Então, os amplos órgãos de poder soviético, as assembléias plenárias dos Sovietes quase desapareceram e a direção passou exclusivamente aos Comitês executivos, ou seja, a órgãos limitados, a comitês de três ou cinco pessoas, etc. Com freqüência, sobretudo nas regiões próximas à linha de frente, os órgãos "regulares" do poder soviético, ou seja, os órgãos elegidos pelos trabalhadores, foram substituídos pelos "comitês revolucionários" locais que, no lugar de submeter os problemas a exame das assembléias de massas, os resolviam por própria iniciativa" [30].

E essa perda de reflexão e discussão coletivas, se dava não só nas assembléias, nos sovietes locais, mas no conjunto do tecido dos conselhos operários. A partir de 1918, o Congresso soberano dos Sovietes, que devia se reunir, a cada três meses, passou a fazê-lo uma vez ao ano. Inclusive o Comitê central dos Sovietes, em muitas ocasiões não podia levar adiante discussões e decisões coletivas. Quando no VIIº Congresso dos Sovietes (dezembro de 1919), o representante do Bund (Partido comunista judeu) pergunta que tem feito o Comitê executivo central, Trotski lhe responde: "O CEC está no front da batalha!".

Ao final, as decisões e a própria vida política se concentravam nas mãos do partido bolchevique. Kamenev no IXº Congresso do Partido bolchevique assinalava: "Administramos a Rússia, e só podemos fazê-lo através dos comunistas" (o sublinhado é nosso).

Nós estamos de acordo com Rosa Luxemburgo, quem em A Revolução russa (op. cit.) critica: " "Graças à luta aberta e direta pelo poder as massas trabalhadoras acumulam em um tempo brevíssimo uma grande experiência política, e em seu desenvolvimento político sobem rapidamente um degrau atrás do outro". Aqui Trotski se contradiz a si mesmo e a seus próprios camaradas de partido. Justamente porque é assim, ao esmagar a vida pública, secaram a fonte da experiência política e este desenvolvimento ascendente! (...) As tarefas gigantescas que os bolcheviques assumiram com coragem e determinação exigem o mais intenso treinamento político e acumulação de experiências pelas massas!".

Nesse mesmo sentido se expressou a Esquerda comunista italiana, ao fazer um balanço das causas da derrota da Revolução russa: "Mesmo que Marx, Engels, e, sobretudo Lênin houvessem assinalado muitas vezes a necessidade de opor ao Estado seu antídoto proletário, capaz de impedir sua degeneração, a revolução russa, longe de assegurar a manutenção e a vitalidade das organizações de classe do proletariado, as esteriliza ao incorporá-las ao aparato de Estado, devorando assim sua própria substância" (Bilan nº. 28).

Pouco importou que para tratar de preservar o peso político da classe operária, se primara a representação desta no Estado (um delegado para cada 25 mil operários, enquanto que 125 mil camponeses, elegiam também apenas um delegado), já que o problema era a absorção desses trabalhadores nas próprias engrenagens reacionárias do Estado. Finalmente, quando se completou a derrota da revolução proletária na Europa, nem sequer o férreo controle que sobre a sociedade mantinha o Partido Bolchevique, pôde evitar que o capitalismo dominante a nível mundial e, portanto também na própria Rússia, tomasse o controle do Estado, o levasse em uma direção absolutamente oposta à que pretendiam os comunistas: "A máquina escapa das mãos de quem a conduz: pode se dizer que há quem maneja o volante e conduz esta máquina, porém que esta segue uma direção diferente à que se quer, como se estivesse controlada por uma mão secreta, clandestina que só Deus sabe de quem é, pode ser de um especulador ou de um capitalista privado, ou de ambos de uma vez. O fato é que a máquina não vai à direção que quer o que está ao volante, às vezes vai melhor em sentido contrário" [31].

"Os bolcheviques temiam que a contra-revolução viesse com os exércitos brancos e outras expressões diretas da burguesia, e defenderam a revolução contra esses perigos. Temiam a volta da propriedade privada através da persistência da pequena produção, e em particular do campesinato. Porém o pior perigo da contra-revolução, não veio nem dos "Kulaks", nem dos operários desgraçadamente massacrados em Kronstadt, nem do "complô branco" que os bolcheviques viam depois desta revolta. Foi sobre o cadáver dos operários alemães massacrados em 1919 que a contra-revolução ganhou, e foi através do aparato burocrático do que se supunha devia ser o "semi-Estado" do proletariado que se expressou mais poderosamente" [32].

A saída à situação criada pela insurreição de Outubro de 1917, não estava na Rússia. Como assinalou Rosa Luxemburgo: "Na Rússia somente podia apresentar-se o problema. Não podia resolvê-lo". A chave da evolução da situação estava no proletariado internacional. Na realidade, enquanto se esperava a resposta deste, a onda revolucionária que seguiu à Primeira Guerra mundial, foi sendo esmagada. Deste modo, o curso dos acontecimentos na Rússia, esteve marcado por uma acumulação de contradições, de busca desesperada de soluções, sem poder cortar o "nó cego" de todas elas: a extensão da revolução.

"Em todo caso, a situação fatal em que hoje se encontram os bolcheviques é, igual à maioria de seus erros, uma conseqüência do caráter, pelo momento insolúvel, do problema que confrontaram o proletariado internacional, e na primeira linha o proletariado alemão. Realizar a ditadura do proletariado e a revolução socialista em um só país, cercado por uma brutal dominação reacionária imperialista e assediado pela mais sangrenta das guerras gerais que havia conhecido a história humana, é a quadratura do círculo. Qualquer partido revolucionário estaria condenado a fracassar nesta tarefa e a perecer, por muito que baseie sua política na vontade de vencer e na fé no socialismo internacional, ou na abnegação profunda" [33].

A Revolução russa foi a experiência mais importante, a mais rica de ensinamentos da história do movimento operário. As futuras lutas revolucionárias do proletariado não poderão economizar o esforço de assimilar suas múltiplas lições. Porém, sem lugar a dúvidas, a primeira dessas lições é a confirmação do já antigo e nunca tão atual grito de guerra do marxismo: "Proletários de todos os países, uni-vos!" e o convencimento de que esse slogan não é uma "idéia formosa", mas a condição prévia e vital para o triunfo da revolução comunista. O isolamento internacional é a morte da revolução.


[1] Rosa Luxemburgo, A Revolução russa. Tradução nossa.

[2] A primeira constituição soviética de 1918 reconhecia a cidadania "a todos os estrangeiros que residam no território da Federação Soviética com tanto que pertençam a classe operária ou ao campesinato que não explora mão-de-obra".

[3] Radek, citado por E.H. Carr, A Revolução bolchevique. Tradução nossa.

[4] "Manifesto da Internacional comunista aos proletários de todo mundo", em Os Quatro primeiros congressos da Internacional comunista. Tradução nossa.

[5] As sessões do IIº Congresso da IC se celebraram frente um mapa onde se refletiam os avanços do Exército vermelho, em seu contra-ataque sobre a Polônia no verão de 1920. Como é sabido, o único que conseguiu esta incursão militar foi que os proletários polacos fecharam fileiras em volta da sua burguesia, sendo assim derrotado o Exército vermelho às portas de Varsóvia.

[6] Trotski, citado por E.H. Carr, op. cit. Tradução nossa.

[7] Em janeiro de 1918, estourou uma greve de meio milhão de operários em Berlim, que se estendeu a Hamburgo, Kiel, o Rhur, Leipzig..., e se constituíram os primeiros Conselhos operários. Ao mesmo tempo surgiram revoltas operárias em Viena e Budapeste, que inclusive a maioria de jornalistas burgueses (cf. E. H. Carr, op. cit.) diziam que estavam relacionadas com a Revolução russa, e mais concretamente com as negociações de Brest-Litovsk.

[8] Ver na Revista internacional, nºs 8 e 9: "A Esquerda comunista na Rússia".

[9] Lênin, Obras escolhidas. Tradução nossa.

[10] "A responsabilidade histórica", em A revolução russa. Tradução nossa.

[11] Ver em Revista internacional nº8: "A Esquerda comunista na Rússia", e Revista internacional nºs 12 e 13: "Outubro de 1917: início da revolução proletária". Ver também nosso folheto - em francês ou inglês - O período de transição do capitalismo ao socialismo, onde a propósito da experiência russa, examinamos o problema das negociações do bastião proletário com os governos capitalistas.

[12] "Teses do Iº Congresso da IC sobre a situação internacional e a política da Entente", em Os quatro primeiros congressos da Internacional comunista. Tradução nossa.

[13] Citado em E. H. Carr, op. cit. Tradução nossa.

[14] E.H. Carr, op. cit. Tradução nossa.

[15] Este Governo chegou a controlar todo o meio e baixo Volga. Em outubro de 1918, se produziu o levantamento de 400 mil "alemães do Volga" que instituíram nesse território uma "Comuna de operários". A chamada "legião tcheca" era constituída por prisioneiros de guerra tchecoslovacos que foram autorizados pelo Governo russo a abandonar a Rússia por Vladivostok. No caminho 60 mil dos 200 mil com que contava a expedição, se amotinaram, (há que dizer também que cerca de 12 000 soldados desta "legião" engrossaram o Exército vermelho) criando bandas armadas dedicadas ao saque e ao terror.

[16] Este antigo social-revolucionário serviu em setembro de 1917 de intermediário clandestino entre Kerensky e Kornilov. Em janeiro de 1918 organizou um atentado contra Lênin, e logo foi nomeado representante dos "brancos" em Paris, onde evidentemente se acotovelava não só com os serviços secretos dos "aliados", mas com ministros, generais..., que em prêmio ao seu "democrático" trabalho lhe puseram ao comando dos pelotões de sabotadores, os chamados "verdes".

[17] Ver na Revista internacional nº3, "A degeneração da revolução russa"; nos nº 8 e 9, "A Esquerda comunista na Rússia"; nos nºs 12 e 13, "Outubro de 1917: início da revolução proletária".

[18] O socialismo jamais existiu na Rússia, já que exige a vitória em escala mundial do proletariado sobre a burguesia. A política econômica de um bastião proletário isolado não pode senão ser ditada pelo capitalismo dominante em escala mundial. O "socialismo em um único país" não é mais que o tapa-sexo da contra-revolução stalinista, como sempre o tem denunciado os revolucionários. Convidamos o leitor interessado em estudar mais profundamente este tema a consultar a Revista internacional nº3, "a degeneração da Revolução russa", ou o capítulo "A Revolução russa e a corrente conselhista" em nosso folheto Rússia 1917, início da Revolução mundial".

[19] Minha vida. Trotsky Tradução nossa.

[20] As epidemias de tifo foram tão extensas e tão repetidas, que Lênin mesmo susteve: "ou a revolução acaba com os piolhos ou os piolhos acabam com a revolução". Tradução nossa.

[21] E.H. Carr, op. cit. Tradução nossa.

[22] Apesar do que então pensavam muitos dos membros da Esquerda comunista na Rússia, a NEP, não significava uma volta ao capitalismo, pois na Rússia nunca houve uma economia socialista. Tomamos posição frente a esta questão da NEP, na Revista internacional nº. 2: "Resposta a Workers Voice", e nºs 8 e 9: "A Esquerda comunista na Rússia".

[23] Lênin, citado em E.H. Carr, op. cit. Tradução nossa.

[24] E. H. Carr, op. cit. Tradução nossa.

[25] Lênin, "A NEP e a revolução", em Teoria econômica e Economia política na construção do socialismo. Tradução nossa.

[26] De nosso suplemento: Não morreu o comunismo, e sim o seu pior inimigo o stalinismo. Tradução nossa.

[27] Ver artigo na Revista internacional nº. 71.

[28] Trotski, citado em E. H. Carr, op. cit. Tradução nossa.

[29] Temos expressado nossa posição sobre o papel do Estado no período de transição, e as relações dos Conselhos operários com esse Estado, precisamente tirando lições da experiência russa no folheto O período de transição do capitalismo ao socialismo, e na Revista internacional nºs 8, 11, 15, 18. Assim mesmo, sobre nossa crítica a idéia de que o partido toma o poder em nome da classe operária, ver Revista internacional nºs 23 e 34-35.

[30] Trotski, A Teoria da revolução permanente. Tradução nossa.

[31] Lênin, Informe político do Comitê central ao Partido, 1922. Tradução nossa.

[32] Introdução ao folheto da CCI: O período de transição do capitalismo ao socialismo, editado em francês e inglês.

[33] Rosa Luxemburgo: "A tragédia russa". Cartas de Spartacus, nº 11, setembro de 1918.

Herança da Esquerda comunista: 

  • Herança da Esquerda comunista [22]

Pode o leninismo ser identificado com o militante Lênin?

  • 4324 leituras
 

O "leninismo": uma criação do stalinismo - Lênin: um combatente da classe operária

  • 13472 leituras
O artigo que publicamos é uma adaptação da primeira parte de um artigo (não traduzido em português) publicado em duas partes nos números 96 e 97 da Revista Internacional (1999), sob o titulo de Nós passamos a ser leninistas?[1]

Desde o final dos anos 1960, quando se formaram os grupos políticos que iriam logo constituir a CCI em 1975, nós temos enfrentado sempre uma dupla crítica.

Para uns, constituídos geralmente pelas diferentes organizações denominadas "Partido Comunista Internacional", descendente da Esquerda italiana, nós seriamos idealistas no que refere à consciência de classe e anarquistas enquanto a organização política.

Para outros, em geral vindos do anarquismo ou da corrente conselhista, a qual rechaça, ou subestima, a necessidade da organização política e do partido comunista, nós seríamos "partidaristas" ou "leninistas".

Os primeiros baseiam sua afirmação no nosso rechaço da posição "clássica" do movimento operário sobre a tomada do poder pelo partido comunista na época da ditadura do proletariado e na nossa visão não monolítica do funcionamento da organização política. Os segundos rechaçam nossa visão rigorosa do militantismo revolucionário e nossos esforços incessantes pela construção de uma organização internacional unida e centralizada.

Hoje, outra crítica do mesmo tipo que a dos conselhistas, porém mais virulenta, está se desenvolvendo: a CCI estaria em plena degeneração, havia se tornado "leninista".

Nós passamos a ser leninista com afirmam nossos críticos e denunciadores ? Essa é uma grave acusação que temos de contestar. E para fazer com seriedade temos, primeiro que deixar claro do que está se falando. Que é o "leninismo" ? Que tem representado para o movimento operário?

O "leninismo" e Lênin

O "leninismo" aparece ao mesmo tempo que o culto a Lênin, quando este morreu. Doente a partir de 1922, sua participação na vida política diminuiu até a sua morte em janeiro de 1924. O refluxo da onda revolucionária internacional, que havia conseguido parar a Primeira Guerra mundial, e o isolamento do proletariado na Rússia foram as causas fundamentais do desenvolvimento da contra-revolução no país. As principais manifestações desse processo foram a aniquilação do poder dos conselhos operários e de toda vida proletária no seu seio, a burocratização e a ascensão do estalinismo na Rússia e, muito especialmente, no seio do Partido bolchevique no poder. Os erros políticos, dramáticos às vezes (especialmente a identificação do partido e do proletariado com o Estado russo, que justificou a repressão de Cronstadt, por exemplo) desempenharam um papel muito importante no desenvolvimento da burocracia e do estalinismo. Lênin não está livre de crítica, embora foi muito constantemente o mais decidido para opor-se a burocratização como ocorreu em 1920 - contra Trotsky e uma grande parte dos dirigentes bolcheviques que propugnavam a militarização dos sindicatos - ou como no último ano da sua vida quando denuncia o poder de Stálin e propôs a Trotsky, nos finais de 1922, formar uma aliança, um bloco como o chamava ele, "contra o burocratismo em geral e contra o comitê de organização em particular [nas mãos de Stálin][2]. Uma vez aniquilada sua autoridade política com o seu desaparecimento, a tendência burocrática contra-revolucionária desenvolve o culto a personalidade[3] em torno de Lênin : mudaram o nome de Petrogrado para Leningrado, mumificam seu corpo e sobretudo criam a ideologia do "leninismo" e do "marxismo leninismo". Se tratou, para o trio formado por Stálin, Zinoviev e Kamenev, de apropriar-se a "herança" de Lênin como arma contra Trotsky no seio do partido russo e para apoderar-se por completo da Internacional comunista (IC). A ofensiva stalinista, para controlar os diferentes partidos comunistas, concentrou-se em torno da "bolchevização" desses partidos e a exclusão dos militantes que não se dobraram diante da nova política..

O "leninismo" é a traição a Lênin, é a contra-revolução

Em 1939, na sua biografia de Stálin, Boris Souvarine[4], sublinha a ruptura entre Lênin e o "leninismo" : "Entre o antigo "bolchevismo" e o novo "leninismo", não há continuidade, propriamente falando "[5]. É assim como define o "leninismo" : "Stálin se auto-proclamou primeiro autor clássico do leninismo com seu folheto Fundamentos do leninismo, série de conferências lidas para os "estudantes vermelhos" da universidade comunista de Sverdlov, em princípios de abril de 1924. Nessa trabalhosa compilação na qual as frases sublinhadas alternam com as citações, se procura em vão o pensamento crítico de Lênin. Todo o ativo, relativo, condicional e dialético na obra referenciada se converte em algo passivo, absoluto, catequista e, além do mais, repleto de contra-sensos "[6].

O "leninismo" é a "teoria" do socialismo em um só país, totalmente oposto ao internacionalismo de Lênin

O advento do "leninismo" significou a vitória do caminho oportunista que a IC havia tomado desde o seu IIIº Congresso, sobre tudo pela adoção da tática de Frente única e a consigna de "ir as massas" num momento em que o isolamento da Rússia revolucionária estava vivendo cruelmente. Os erros dos bolcheviques foram um fator negativo que favoreceu esse caminho oportunista. Entretanto, temos que recordar aqui que a posição falsa de que "o partido exerce o poder" era até então a de todo o movimento revolucionário, inclusive Rosa Luxemburgo e a esquerda alemã. Somente no início dos anos 20 que o KAPD começa a colocar em evidência a contradição que é para o partido revolucionário estar no poder e identificar-se com o novo Estado surgido da insurreição vitoriosa.

Foi contra essa gangrena, oportunista primeiro e logo abertamente contra-revolucionária, que surgiram e se desenvolveram as diferentes oposições. Entre estas as mais conseqüentes foram as diferentes oposições de esquerda, russa, italiana, alemã e holandesa, que se mantiveram fieis ao internacionalismo e a Outubro de 1917. Por ir contra ao crescente caminho oportunista da IC, umas após outras foram sendo excluídas dela ao longo dos anos 20. Os que conseguiram permanecer nela, se opuseram com todas as suas forças às conseqüências práticas do "leninismo", que dizer, a política de "bolchevização" dos partidos comunistas. Combateram, especialmente a substituição da organização em seções locais - que significava com uma base territorial, geográfica - por outra em células de fábrica e empresa que acabou agrupando os militantes em bases corporativistas e contribuindo em esvaziar os partidos de toda vida realmente comunista feita com debates e discussões políticas de todo tipo.

A imposição do "leninismo" agudizou o combate entre o estalinismo e as oposições de esquerda. Veio acompanhada do desenvolvimento da ideologia do "socialismo num só país", que é uma ruptura total com o internacionalismo intransigente de Lênin e da experiência de Outubro. Marca a aceleração do caminho oportunista até a vitória definitiva da contra-revolução. Com a adoção no seu programa do "socialismo em um só país" e o abandono do internacionalismo, a IC - como Internacional - morre definitivamente no seu VIº Congresso em 1928.

O "leninismo" : uma ideologia para estabelecer uma divisão entre Lênin e Rosa Luxemburgo, entre a fração bolchevique e as demais esquerdas internacionalistas

Em 1925, o Vº Congresso da IC adotou as "Teses sobre a bolchevização", que expressam o controle crescente da burocracia estalinista sobre os PC e a IC. Produto da contra-revolução stalinista, a bolchevização é, no plano organizativo, o transmissor da degeneração acelerada dos partidos da IC. A utilização crescente da repressão e do terror de Estado na Rússia e da exclusão nos demais partidos é expressão da violência e da ferocidade da luta. Para o estalinismo, existia todavia nesse momento, o perigo de que se formasse uma forte oposição em torno da figura de Trotsky, único capaz de agrupar a maior parte das energias revolucionárias. Essa oposição combate com força a política do oportunismo e tinha a capacidade de rivalizar com o estalinismo, com possibilidades de êxito, para tomar a direção de partidos como os exemplos da Itália e Alemanha o demonstraram.

Um dos objetivos da "bolchevização" é pois a de levantar uma barreira entre Lênin e as demais grandes figuras do comunismo pertencentes as demais correntes de esquerda, especialmente entre Lênin e Trotsky evidentemente, porém também com Rosa Luxemburgo : "Uma verdadeira bolchevização é impossível sem vencer os erros do luxemburguismo. O "leninismo" deve ser a única bússola dos partidos comunistas do mundo inteiro. Tudo que se afaste do "leninismo", se afasta do marxismo"[7]

Reconhecemos no estalinismo a primazia de ter rompido o vínculo e a unidade entre Lênin e Rosa Luxemburgo, entre a tradição bolchevique e as demais esquerdas surgidas da IIª Internacional. Seguindo os passos do estalinismo, os partidos da social-democracia participaram também em levantar uma barreira intransponível entre "a bondosa e democrática" Rosa Luxemburgo e o "malvado e ditatorial" Lênin. Esta política não pertence hoje só ao passado. Hoje, o que sempre há representado a unidade entre esses dois grandes revolucionários é objeto de ataques. As saudações hipócritas a clarividência de Rosa Luxemburgo por... suas críticas à Revolução russa e ao partido bolchevique são constantemente lançadas pelos descendentes políticos diretos dos seus assassinos social-democratas, ou seja, os partidos socialistas de hoje. E especialmente pelo partido socialista alemão, provavelmente porque Rosa Luxemburgo era... alemã. Uma vez mais fica confirmada a aliança de interesses comuns entre a contra-revolução stalinista e as forças "tradicionais" do capital. Comprova-se, em particular, a aliança entre a social-democracia e o estalinismo para falsificar a história do movimento operário e destruir o marxismo (...):

"Que doloroso espetáculo para os militantes revolucionários ver os assassinos dos maestros da revolução de outubro, passados aliados dos assassinos dos espartaquistas ousar comemorar a morte dos dirigentes proletários. Não, não tem nenhum direito de falar de Rosa Luxemburgo, cuja vida se construiu na intransigência e na luta contra o oportunismo, na firmeza revolucionária, aqueles que, de uma traição a outra, acabaram sendo hoje a vanguarda da contra-revolução internacional" [8]

Ambos Rosa Luxemburgo e Lênin pertencem ao campo revolucionário !

Por desgraça, a maioria das correntes e grupos proletários[9] pecam pela sua falta de claridade política. Por suas debilidades teóricas e erros políticos, o conselhismo aporta seus tijolos à parede que alguns tentam construir entre o partido bolchevique e as esquerdas alemã e holandesa, entre Lênin de um lado e Rosa Luxemburgo do outro. E o mesmo ocorre com grupos bordiguistas, e inclusive com o Pcint Battaglia Comunista, os quais, também por conta das suas debilidades teóricas (para não falar de aberrações como ocorre com a teoria da "invariabilidade" dos bordiguistas), são incapazes de perceber o que está em jogo na defesa tanto de Lênin e Luxemburgo como de todas as frações de esquerda surgidas (e saídas) da IC.

O que importa se lembrar de Lênin e de Luxemburgo e, mais além das suas pessoas, do partido bolchevique e das demais esquerdas no seio da Segunda Internacional, é a unidade e a continuidade do seu combate. Apesar dos debates e das divergências, sempre estiveram do mesmo lado da barricada frente a questões essenciais quando o proletariado se encontrou em situações decisivas. Foram os líderes da esquerda revolucionária no congresso de Stuttgard da Internacional socialista (1907), durante a qual apresentaram uma emenda à resolução sobre a atitude dos socialistas, que os chamava a "utilizar por todos os meios a crise econômica e política que provocaria uma guerra para despertar o povo e acelerar assim a queda da dominação capitalista", Lênin confiou o mandato do partido russo a Rosa Luxemburgo na discussão sobre esse tema. Fieis ao seu combate internacionalista nos seus respectivos partidos, estiveram contra a guerra imperialista : a corrente de Rosa Luxemburgo, os espartaquistas, participaram com os bolcheviques e Lênin nas conferências internacionais de Zimmerwald e Kienthal (1915 e 1916). E seguiram juntos, com todas as esquerdas, entusiastas e unânimes no apoio a revolução russa:

"A revolução russa é o acontecimento mais prodigioso da guerra mundial (...) Ao ter apostado a fundo sobre a revolução mundial do proletariado, os bolcheviques tem dado a prova patente da sua inteligência política, da firmeza dos seus princípios, da audácia de sua política. (...) O partido de Lênin tem sido o único que tem compreendido as exigências e deveres que incubem a um partido verdadeiramente revolucionário para assegurar a continuidade à revolução lançando a consigna : "todo poder nas mãos do proletariado e do camponês". [Os bolcheviques] têm definido imediatamente como objetivo dessa tomada do poder, o programa revolucionário mais avançado na sua integralidade : não se tratava de apontar a democracia burguesa, e sim instaurar a ditadura do proletariado para realizar o socialismo. Têm assim adquirido frente a história o mérito imperecível de haver proclamado pela primeira vez os objetivos últimos do socialismo como programa imediato de política prática"[10].

Será que isso quer dizer que não havia divergências entre essas duas grandes figuras do movimento operário? Claro que havia. Significa isso que haveria de ignorá-las? Muito menos. Para abordá-las e poder tirar o máximo de lições, temos que saber reconhecer e defender o que une estes revolucionários. E o que os une, é o combate de classe, o combate revolucionário conseqüente contra o capital, a burguesia, e todas as suas forças políticas. O texto de Rosa Luxemburgo que acabamos de citar é uma crítica sem concessões à política do partido bolchevique na Rússia. Porém toma o cuidado de evidenciar o marco em que deve se compreender essas críticas: no da solidariedade e da luta comum com os bolcheviques. Ela denuncia violentamente a oposição dos mencheviques e de Kautsky à insurreição proletária. E para evitar qualquer equívoco sobre a sua posição de classe, toda desvirtuação em seu propósito termina assim : "Na Rússia, só se poderia delinear o problema. Porém não podia resolver-se na Rússia. Nesse sentido, o futuro pertence ao 'bolchevismo' ".

A defesa dessas personalidades e da sua unidade de classe é uma tarefa que a tradição da esquerda italiana nos legou e que nós vamos prosseguir. Lênin e Rosa Luxemburgo pertencem ao proletariado revolucionário. Assim é como a Fração italiana da Esquerda comunista compreendia a defesa desse patrimônio contra o "leninismo" stalinista e a social-democracia:

"Porém juntamente à figura genial do dirigente proletário (Lênin) também se reconhecem tão importantes como ele as figuras de Rosa Luxemburg e Karl Libknecht. Produtos de uma luta internacional contra o revisionismo e o oportunismo, expressão de uma vontade revolucionária do proletariado alemão, nos pertencem e não a quem queira fazer de Rosa a bandeira contra Lênin e do antipartido ; de Liebknecht o agitador de um antimilitarismo que se expressa na realidade no voto dos créditos militares nos diferentes países "democráticos" "[11]

Não contestamos ainda a acusação de haver mudado de posição sobre Lênin. Porém o leitor poderá concretamente, dar-se desde já perfeita conta de que nós estamos em total oposição ao "leninismo". E que nós mantemos fiéis a tradição das frações de esquerda das quais nos reivindicamos, especialmente da fração italiana dos anos 30.

Procuramos colocar em prática a cada momento que seja necessário o método que consiste em lutar pela defesa e a unidade da continuidade histórica do movimento operário. Contra o "leninismo" e todas as tentativas de dividir e opor as diferentes frações marxistas do movimento operário, nós lutamos pela defesa da sua unidade. Contra a oposição abstrata e mecânica feita baseando-se em umas quantas citações extraídas do seu contexto, restituímos as condições reais nas quais foram elaboradas as posições, sempre nos baseando nos debates e polêmicas no seio do movimento operário. Quer dizer : no mesmo campo.

Esse é o método que o marxismo tem procurado aplicar sempre, método que é tudo ao contrário do "leninismo".

A esquerda holandesa, Pannekoek e Gorter também pertencem ao campo revolucionário !

Os adeptos contemporâneos da "metodologia" do "leninismo" podem ser identificados com facilidade em diferentes âmbitos. Está em moda, até no campo internacionalista, nos círculos anarco-conselhistas (...), tentar apropriar-se fraudulentamente da esquerda holandesa, opondo-a a outras frações da esquerda e a Lênin, evidentemente. Por sua vez, da mesma maneira que Stalin e o seu "leninismo" traíram Lênin, esses elementos traem a tradição da Esquerda holandesa e das suas grandes figuras como a de Anton Pannekoek, a quem Lênin saúda com respeito e admiração no Estado e a revolução, ou a de Herman Gorter, que traduziu imediatamente, em 1918, essa obra já clássica do marxismo. Antes de ter desenvolvido a teoria do comunismo de conselho nos anos 30, Pannekoek foi um dos militantes mais eminentes da ala esquerda marxista na IIª. Internacional, junto com Rosa Luxemburg e Lênin e continuou sendo durante toda guerra. É mais fácil excluir Pannekoek do campo proletário, por causa das suas críticas conselhistas contra os bolcheviques a partir de 1930, que alguém como Bordiga, e por isso aquele continua sendo hoje objeto de especial solicitude para acabar apagando todas recordações da sua adesão a IC, da sua participação de destaque em primeiro plano na construção do Burô de Amsterdan para o ocidente e seu entusiasmo e decidido apoio a Outubro de 1917. Igualmente as frações da esquerda italiana e russa no seio da IC, as esquerdas holandesas e alemãs pertencem ao proletariado e ao comunismo. E quando nos reivindicamos de todas as frações da esquerda saídas da IC, o que fazemos é retomar também ao método utilizado pela esquerda holandesa bem como todas as esquerdas:

"A guerra mundial e a revolução que ocasionou, têm demonstrado de maneira evidente que só há uma tendência no movimento operário que conduza de verdade os trabalhadores ao comunismo. Só a extrema esquerda dos partidos social-democratas, as frações marxistas, o partido de Lênin na Rússia, de Bela Kun na Hungria, de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht na Alemanha tem encontrado o único e bom caminho.

[isto é]A tendência que sempre teve como objetivo a destruição do capitalismo pela violência e que, na época da evolução e do desenvolvimento pacífico, usava a luta política e a ação parlamentar para a propaganda revolucionária e a organização do proletariado; aquela que, agora faz uso da força do Estado pela revolução. A mesma tendência que tem encontrado o caminho para quebrar o Estado capitalista e transformá-lo em Estado socialista, que tem encontrado também o meio pelo qual se constrói o comunismo : os conselhos operários, que englobam em si mesmo todas as forças políticas e econômicas; a tendência que descobriu finalmente que a classe ignorava até agora e que está estabelecido para sempre : a organização mediante a qual o proletariado pode vencer e substituir o capitalismo"[12]

Inclusive depois da exclusão do KAPD da IC em 1921, continuaram a mantendo-se fiéis aos seus princípios e solidários com os bolcheviques:

"Nos sentimos, apesar da exclusão da nossa tendência pelo congresso de Moscou, totalmente solidários com os bolcheviques russos (...) permanecemos solidários não só com o proletariado russo como também com os seus chefes bolcheviques, embora havemos de criticar da maneira mais veemente sua conduta no seio do comunismo internacional"[13].

Quando a CCI reivindica e defende a unidade e a continuidade "das contribuições sucessivas da Liga dos Comunistas de Marx e Engels (1847-52), das três Internacionais (a Associação Internacional dos Trabalhadores, 1864-72, a Internacional Socialista, 1884-1914, a Internacional Comunista, 1919-28), das frações de esquerda que se libertaram, nos anos 1920-30, das Terceira Internacional durante sua degeneração, em particular as Esquerdas Alemã, Holandesa e Italiana", o que a CCI faz é manter-se fiel a tradição marxista no seio do movimento operário, inscrevendo-se na luta unida e permanente da ""tendência" que definia Gorter, das frações de esquerda no seio da IIª e IIIª Internacionais. Permanecemos assim fiéis a Lênin, a Rosa Luxemburgo e à tradição das frações de esquerda dos anos 30 e, em primeiro lugar, à revista Bilan.

O combate de Lênin pela construção do partido

Uma vez rechaçada a acusação de "leninismo", temos que responder a perguntas mais sérias: haveríamos abandonado o nosso espírito crítico a respeito de Lênin sobre a questão da organização política? Tem havido uma mudança de posição da CCI sobre Lênin, especialmente em matéria de organização, sobre a questão do partido, de seu papel e do seu funcionamento? Nós não vemos por onde haveria uma ruptura na posição da CCI sobre a questão organizativa e a respeito de Lênin, entre a CCI dos seus princípios nos anos 70, e a de 1998.

Continuamos mantendo que estamos de acordo com o método utilizado e com a crítica argumentada e desenvolvida contra o economicismo e os mencheviques. E continuamos dizendo que estamos de acordo com uma grande parte dos diferentes pontos desenvolvidos por Lênin.

Mantemos nossas críticas em alguns aspectos reivindicados por Lênin em temas de organização: "Alguns conceitos defendidos por Lênin (especialmente em Um passo adiante, dois passos atrás) sobre o caráter hierarquizado e "militar" da organização, que tem sido explorados pelo estalinismo para justificar seus métodos, devem ser rechaçados"[14]. Não temos mudado de opinião também nessas críticas. Porém a questão merece uma resposta mais aprofundada para compreender ao mesmo tempo a amplitude real dos erros de Lênin e o sentido histórico dos debates que tiveram lugar no Partido Operário Social-democrata Russo (POSDR).

Para poder tratar seriamente esta questão central para os revolucionários, inclusive os erros de Lênin, devemos nos manter fiel ao método e aos ensinamentos das diferentes esquerdas comunistas tal como temos sublinhado na primeira parte deste artigo. Nos negamos a escolher entre o que nos gostáramos na história do movimento operário e o que nos desgostaria. Uma atitude assim seria ahistórica e típica de quem se permite julgar cem ou oitenta anos mais tarde, um processo histórico feito de tateamentos, de êxitos e fracassos, de múltiplos debates e contribuições, a custa de enormes sacrifícios e de duras lutas políticas. Isto é assim para as questões teóricas e políticas. Também o é em temas de organização. Nem o final menchevique de Plekhanov e sua atitude chauvinista durante a Primeira Guerra Mundial, nem a utilização de Trotsky pelo "trotsquismo", nem a de Pannekoek pelo anarco-conselhismo, diminuem em nada a enorme riqueza das suas contribuições políticas e teóricas que continuam sendo atuais e de grande interesse militante. Nem as mortes vergonhosas da IIª e IIIª Internacionais, nem o final do partido bolchevique e o estalinismo, diminuem em nada o que foi seu papel na história do movimento operário e a validade das suas aquisições organizativas.

Temos mudado a respeito disso? De maneira nenhuma: "Existe uma aquisição organizativa, que de igual maneira existe uma aquisição teórica, condicionando-se mutuamente de maneira permanente" [15]

Assim como as críticas de Rosa Luxemburgo aos bolcheviques na Revolução Russa devem ser entendidas no marco da unidade de classe que a associa aos bolcheviques, de igual maneira, as críticas que possamos fazer sobre a questão organizativa devem situar-se no marco da unidade que nos associa a Lênin no seu combate - antes e depois da formação da fração bolchevique - pela construção do partido. Esta posição não é nova e não deveria surpreender. Hoje, uma vez mais, como já o "repetíamos" em 1991, repetimos que "a história das frações é a história de Lênin"[16] "e unicamente baseando-se no trabalho por elas cumprido será possível reconstruir o partido comunista mundial amanhã"[17].

Isso quer dizer que a compreensão sobre a organização revolucionária que a CCI tinha desde sua constituição tem permanecido exatamente a mesma? Isso quer dizer que essa compreensão não tenha enriquecido, aprofundado, ao longo dos debates e dos combates organizativos que nossa organização tem assumido? Se assim fosse, poderiam acusar-nos de ser uma organização sem vida, nem debates, de ser uma seita que se contenta em recitar as Santas Escrituras do movimento operário. Não vamos agora aqui reproduzir todos os combates e debates organizativos que tem atravessado nossa organização desde sua fundação. E cada vez tivemos que voltar para as "aquisições organizativas" da história do movimento operário, voltando a fazê-las nossas, precisando-as, enriquecendo-as. E assim tinha que ser se não quiséssemos correr o risco de debilitarmo-nos, para não dizer desaparecer.

Porém as re-apropriações e os enriquecimentos que temos levado a efeito em matéria de organização não significam de nenhuma maneira, que tenhamos mudado de posição sobre esta questão em geral, nem sequer com relação a Lênin. Esse trabalho está em continuidade com a história e as aquisições organizativas que nos foram legadas pela experiência do movimento operário. Desafiamos a quem quer que queira a que nos demonstre que tem havido ruptura na nossa posição. A organização é uma questão plenamente política tanto como as demais. Afirmamos, inclusive, que é a questão central, a que em última instância, determina a capacidade para abordar todas as demais questões teóricas e políticas. Ao dizer isto, estamos na mesma sintonia de onda de Lênin. Ao afirmar isso, não estamos mudando de posição em relação com o que temos afirmado sempre. Temos defendido sempre que foi a maior clareza sobre organização, especialmente sobre o papel da fração, o que permitiu a Esquerda italiana não só manter-se como organização, como também ser capaz de tirar lições teóricas e políticas mais claras e mais coerentes, inclusive se recolhendo e desenvolvendo os aportes teóricos e políticos iniciais da esquerda germano-holandesa: sobre os sindicatos, sobre o capitalismo de estado, sobre o estado no período de transição.

O combate de Lênin contra o economismo e os mencheviques

A CCI sempre se reivindicou de Lênin em matéria de organização. Do seu exemplo nos inspiramos que "a idéia de que uma organização revolucionária se constrói voluntária, consciente e premeditadamente, longe de ser uma idéia voluntarista, é, pelo contrário, uma das conseqüências concretas de toda práxis marxista"[18].

Temos afirmado sempre nosso apoio ao combate de Lênin contra o economicismo. Da mesma maneira, sempre temos reivindicado do seu combate contra quem iriam ser os mencheviques, no IIº congresso do POSDR. Isto não é nada novo. Como tão pouco o é que consideramos Que Fazer? (1902) como uma obra essencial no combate contra o economicismo e Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás (1903) como ferramenta indispensável para compreender o que estava em jogo e as linhas de ruptura no seio do partido. Tomar esses dois livros como clássicos do marxismo em matéria de organização, afirmar que as principais lições que se tirava de Lênin neles, continuam atuais, tudo isso não é nada novo para nós. Dizer que estamos de acordo com o combate, com o método utilizado, e boa quantidade de argumentos de ambos textos, não relativiza a nossa crítica aos erros de Lênin.

Que é essencial em Que Fazer? na realidade do momento, quer dizer em 1902 na Rússia? O que permitia ao movimento operário dar um passo adiante? De que lado havia de colocar-se? Do lado dos economicistas porque Lênin retoma a idéia falsa de Kautsky sobre a consciência de classe? Ou do lado de Lênin contra o obstáculo que representavam os economicistas para a constituição de uma organização conseqüente de revolucionários?

Que é o essencial em Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás? Estar com os mencheviques porque Lênin, levado pela polêmica, defende em alguns pontos conceitos falsos? Ou estar ao Lado de Lênin na adoção de critérios rigorosos de adesão dos militantes, por um partido unido e centralizado e contra a manutenção de círculos autônomos?

Aqui, colocar a questão é dar resposta. Os erros sobre a consciência e sobre a visão do partido "militarizado" foram corrigidos pelo próprio Lênin, em particular com a experiência da greve de massas de 1905 na Rússia. A existência de uma fração e de uma organização rigorosa deu os meios aos bolcheviques para estar entre os primeiros que melhor conseguiram tirar as lições políticas de 1905, e isso quando no início, não eram os mais claros, sobretudo comparados com Trotsky ou Rosa Luxemburg, Plekhanov inclusive, considerando a dinâmica da greve de massas. A sua força organizacional lhes permitiu superar os erros anteriores.

Quais eram os erros de Lênin? De dois tipos: Uns se devem a polêmica, outros a problemas teóricos, especialmente sobre a consciência de classe.

A "forçada de barra" de Lênin nas polêmicas

Lênin tinha os defeitos das suas qualidades. Grande polemista, ele tendia forçar a barra tomando por conta própria os argumentos dos seus oponentes para voltar-lhes contra eles. "Todos nós sabemos agora que os economicistas curvaram o bastão para um lado. Para consertá-lo era preciso curvá-lo do lado oposto, e o que foi feito"[19]. Porém este método, muito eficaz na polêmica clara - indispensável em todo debate - tem seus limites e pode tornar-se fraqueza em outros aspectos. Al forçar a barra, cai-se em exageiros, deformando suas verdadeiras posições. Que Fazer? é um bom exemplo disso, como o próprio Lênin o reconheceu em várias ocasiões.

"No 2º Congresso, não pensei em erigir em "pontos programáticos", em princípios especiais, minhas formulações de Que Fazer? Pelo contrário, empreguei a expressão de endereçar todo o distorcido, que mais tarde se citaria tão constantemente. Em Que Fazer?, disse que havia de endireitar tudo que o que havia sido distorcido pelos "economicistas" (....) O Significado destas palavras é claro, Que Fazer? Retifica em forma polêmica o economismo, e seria errôneo julgar esse folheto desde qualquer outro ponto de vista"[20]

Por desgraça, são muitos os que julgam Que Fazer? e Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás com "outro ponto de vista" que se preocupa mais pela letra do que pelo significado do texto. Muitos são os que tomam os exageros ao pé da letra como seus críticos e oponentes de então, entre os quais estão Trotsky e Rosa Luxemburgo, a qual reponde em Questão de Organização na Social-democracia russa (1904) o segundo texto. Depois, 20 anos mais tarde e com conseqüências muito mais graves, os aduladores stalinistas de Lênin, para justificar o "leninismo" e a ditadura stalinista, se apoiaram nas formulas inadequadas empregadas por Rosa Luxemburgo no fogo da polêmica. Quando é acusado de ser um ditador, jacobino, burocrata, de preconizar a disciplina militar e de ter uma visão conspiradora, Lênin retoma e desenvolve os conceitos dos seus oponentes, "torcendo a barra" por sua vez. É acusado de ter uma visão conspiradora da organização quando defende alguns critérios estritos de adesão dos militantes e a disciplina em condições de ilegalidade e de repressão. Assim responde o polemista:

"Ao considerar só sua forma, uma organização revolucionária dessa força em um país autocrático pode chamar-se também organização "conspirativa" pois o caráter conspirativo é imprescindível em grau máximo para semelhante organização. Até tal ponto é o caráter conspirativo condição imprescindível de tal organização, que todas as demais condições (numero de membros, sua seleção, suas funções, etc.) têm que ser em adequação com as necessidades "conspirativas". Seria portanto, extrema candidez temer que nos acusem, nós os social-democratas, de querer criar uma organização de conspiradores. Tal acusação é por todo inimigo do "economismo", tão elogioso como a acusação de "narodovolisme"[21]" [22]

Na sua resposta a Rosa Luxemburgo (setembro de 1904), cuja publicação rechaçam Kautsky e a direção do partido SD alemão, nega ser responsável pelas formulações sobre as que volta a tratar:

"A camarada Luxemburgo declara que segundo eu, o "Comitê central é o único núcleo ativo do partido". Isso não é exato. Eu nunca havia defendido essa opinião (...) A camarada Luxemburg escreve que eu preconizo o valor educativo da fábrica. Isso é inexato: não sou eu, e sim meu adversário que tem pretendido que eu assimilo o partido a uma fábrica. Ridicularizei a esse contraditor como se deve fazer, utilizando seus próprios termos para demonstrar que confunde dois aspectos da disciplina da fábrica, o qual, por desgraça, ocorre também com a camarada Luxemburgo"[23]

O erro de Que Fazer? Sobre a consciência de classe

Por enquanto, é muito mais importante e sério por em evidencia e criticar um erro teórico de Lênin em Que Fazer? Qual segundo ele: "Os operários não podiam ter ainda uma consciência social-democrata. Esta só poderia ser trazida de fora"[24]. Não vamos aqui voltar nesta crítica e na nossa posição sobre a questão da consciência[25]. Evidentemente esta posição que Lênin retoma de Kautsky não só é falsa além do que é por demais extremamente perigosa. Servirá de justificativa para o exercício do poder pelo partido depois de 1917 em lugar da classe operária na sua totalidade. Servirá de arma letal ao estalinismo depois, especialmente para justificar as tentativas golpistas na Alemanha nos anos 20, e sobretudo para justificar a repressão sangrenta da classe operária na Rússia.

Não há necessidade de precisar que não temos mudado de posição sobre essa questão?

As debilidades da crítica de Rosa Luxemburgo

Após o IIº congresso do POSDR e da divisão entre bolcheviques e mencheviques, Lênin enfrentou muitas críticas. Dentre elas, unicamente Plekhanov e Trotsky rechaçam explicitamente a posição sobre a consciência de classe "que deve ser introduzida desde fora da classe operária". É, sobretudo, conhecida a crítica de Rosa Luxemburgo, Questão de organização na social-democracia russa, em que se apóiam os anti-Lênin de hoje para...opor aos dois eminentes militantes e provar que a semente stalinista estava já na no fruto "leniniano" , o qual vem a ser a mesma mentira stalinista porém retomada ao inverso. Na realidade, Rosa se fixa, sobretudo, nas "forçadas de barra" e reivindica conceitos justos em si, porém que são abstratos, fora do combate real prático que se travou no mencionado congresso:

"A camarada Luxemburgo ignora soberanamente nossas lutas de Partido e se estende generosamente sobre temas que não é possível tratar com seriedade (...) Esta camarada não quer saber que controvérsias havia se mantido no congresso e contra quem iam dirigidas as minhas teses. Prefere gratificar-me com um curso sobre o oportunismo...nos países parlamentares!"[26]

Um passo adiante, dois passos atrás põe em relevo o crucial do congresso e a luta que houve nele, ou seja, a luta contra a manutenção dos círculos no partido e uma delimitação clara e rigorosa entre a organização política e a classe operária. Apesar de não tê-los entendido bem, tal como foram colocados na luta concreta, Rosa Luxemburgo, é em troca, muito clara nos objetivos gerais aos quais se refere:

"O objetivo por trás do qual a social-democracia russa se afana desde já há vários anos consiste na passagem do primeiro tipo de organização (organização espalhada, de caráter local, composta de círculos totalmente independentes entre eles e adaptados à fase preparatória, essencialmente propagandista do movimento) a um novo tipo de organização como o exige uma ação política de massa, homogênea, levada a efeito sobre todo o território do estado"[27]

Lendo esta passagem, se dá conta de que Rosa encontrava-se no mesmo terreno que Lênin e com a mesma finalidade. Conhecendo a concepção "centralista", e até "autoritária" de Rosa Luxemburg e de Leo Jogisches no seio do partido social-democrata polaco - o SDKPiL - , não se pode duvidar qual haveria sido sua postura se estivesse presente no POSDR, na luta concreta contra os círculos e os mencheviques. Provavelmente Lênin teria sido obrigado a refrear suas energias e inclusive seus excessos.

Nossa posição, hoje, quase um século mais tarde, sobre a distinção precisa entre organização política e organização unitária da classe operária vem dos aportes da Internacional socialista, e especialmente aos avanços de Lênin. Com efeito, foi o primeiro a reivindicar - na situação particular da Rússia tzarista - as condições do desenvolvimento de uma organização minoritária e reduzida, contrariamente às respostas de Trotsky e Rosa Luxemburgo, que tinham, todavia então a visão dos partidos de massa. De igual maneira, foi no combate de Lênin contra os mencheviques sobre o ponto 1 dos Estatutos, e no 2º congresso do POSDR, de onde estraímos nossa visão de adesão e pertencimento militante de uma organização comunista rigorosa, precisa e claramente definida. Por fim, a nosso parecer esse congresso e a luta de Lênin foram um momento importante de aprofundamento político sobre a questão da organização, especialmente sobre a centralização contra as idéias federalistas, individualistas e pequeno-burguesas. Foi um momento em que ele, ainda reconhecendo o papel histórico positivo dos círculos de agrupamentos das forças revolucionárias em uma primeira etapa, evidenciou a necessidade de ultrapassar este estágio para formar verdadeiras organizações unidas de desenvolver relações políticas fraternas e de confiança entre todos os militantes.

Não temos mudado de posição a respeito de Lênin. E nossos princípios organizativos de base, especialmente nossos estatutos, que apóiam e sintetizam a experiência do movimento operário sobre o tema, se inspiram em muitos aspectos dos avanços de Lênin nos combates pela organização. Sem a experiência dos bolcheviques em matéria de organização, faltaria uma parte importante e fundamental das aquisições organizativas em que se fundou e se baseia a CCI e nas quais deverá ser erigido o partido comunista de amanhã.

Na segunda parte deste artigo, voltaremos sobre o que diz Que Fazer? E sobre o que não diz, pois sua finalidade e o seu conteúdo tem sido e seguem sendo muito ignorados, ou desvirtuados a propósito. Precisaremos em que medida a obra de Lênin é um clássico do marxismo e um aporte histórico ao movimento operário, tanto no plano da consciência como no organizativo. Em resumo, em que na medida, a CCI se reivindica também de Que Fazer.



[1] As adaptações consistiram, notadamente, em aliviar o texto de passagens relativos ao contexto imediato do seu aparecimento, carregado de acusações de degeneração "leninista" da CCI.

[2] Citado por Pierre Broué em Minha Vida de Trotsky.

[3] Lembramos o que o próprio Lênin dizia acerca das tentativas de recuperação das grandes figuras revolucionarias: "Após sua morte, se tenta fazer delas ícones inofensivos canonizando-os, por assim dizer, rodeando o seu nome de uma certa glória, para "consolar" e entorpecer as classes oprimidas; e assim se esvazia de conteúdo sua doutrina revolucionária, atenuando seu corte revolucionário, e a desprezando (...)(...) e os sábios burgueses da Alemanha, ainda ontem especialistas na destruição do marxismo, falam cada dia mais de um Marx "nacional alemão". E poderia acrescentar-se que os stalinistas falam de um Lênin "nacional gran russo"

[4] Boris Souvarine, Stalin, Editions Gérard Lébovici, París, 1985

[5] Souvarine, idem

[6] Idem

[7] 8 Teses 8, Vº Congresso da IC sobre a bolchevização, segunda parte.

[8] Bilan nº 39, boletim teórico da fração italiana da Esquerda comunista, janeiro de 1937

[9] Falamos aqui dos grupos do meio proletário "antigo", por oposição aos grupos que surgiram mais recentemente.

[10] Rosa Luxemburgo, A Revolução russa.

[11] Bilan nº 39, 1937

[12] Herman Gorter, "A vitória do marxismo", publicado em 1920 em Il Soviet, recolhido em Invariance nº 7, 1969

[13] Artigo de Pannekoek em Die Aktion nº 11-12, 19 de março de 1921, citado no nosso folheto A Esquerda holandesa.

[14] Relatório sobre A estrutura e o funcionamento da organização dos revolucionários, Conferencia internacional da CCI, janeiro de 1982, Revista internacional nº 33

[15] Relatório sobre a questão da organização da nossa corrente internacional, Revista internacional nº 1, abril de 1975

[16] Intervenção de Bordiga no VIº comitê executivo ampliado da Internacional comunista em 1926

[17] Introdução do nosso artigo sobre "A relação fração - partido na tradição marxista", 3ª parte, Revista internacional nº 65

[18] Relatório sobre A questão da organização da nossa corrente, Revista internacional nº 1, abril de 1975

[19] Lênin em Atas do IIº congresso do POSDR, Ediciones Era, 1977

[20] Prólogo a reedição de Em doze anos, setembro de 1907, ediciones Era, 1977

[21] O narodovolisme é a corrente organizada em torno da publicação A Vontade do Povo do grupo Norodnaia Volia, organização secreta e terrorista procedente do movimento "populista" russo dos meados do século XIX

[22] A organização de conspiradores e a democracia em Que Fazer.

[23] Um passo adiante, dois passos atrás, resposta a Rosa Luxemburgo, publicada Nos escritos políticos de Trotsky, ed. Pierre Belfond, París, 1970

[24] Lênin, Que Fazer, II. A espontaneidade das massas e a consciência da Social-democracia, a) Começo da marcha ascensional espontânea» (Ed. Progreso)..

Ver nosso folheto Organizações comunistas e consciência de classe

[26] Lênin, Resposta a Rosa Luxemburgo

[27] Rosa Luxemburgo, Questão de organização, cap. 1.

Lênin e as questões de organização

  • 9143 leituras

Na primeira parte deste artigo, demonstrávamos que o "leninismo" não só se opõe aos nossos princípios e posições políticas, e que além do mais tem como objetivo a destruição da unidade histórica do movimento operário. O "leninismo" nega, em particular, a luta das esquerdas marxistas, primeiro dentro e depois fora da Segunda e Terceira Internacionais, opondo Lênin a Rosa Luxemburgo, Pannekoek, etc. O "leninismo" é a negação do militante comunista Lênin. É a expressão da contra-revolução stalinista dos anos 1920.

Afirmávamos também que sempre temos reivindicado do combate de Lênin pela construção do partido contra a oposição do economicismo e dos mencheviques.

Recordávamos, além do mais, que mantemos nosso rechaço aos seus erros sobre a questão da organização, em especial sobre o caráter hierárquico e "militar" da organização, assim como, no plano teórico, sobre a questão da consciência de classe que haveria de ser levada ao proletariado desde o exterior, sem por isso deixar de situar esses erros em um marco histórico para poder compreender sua dimensão e significado verdadeiros.

Qual é a posição da CCI sobre Que Fazer? e sobre Um passo adiante, dois passos atrás?

Porque afirmamos que estas duas obras de Lênin representam experiências teóricas, políticas e organizativas insubstituíveis? Nossas críticas sobre pontos, que não tem nada de secundário em particular sobre a questão da consciência tal e como se desenvolve em Que fazer?, colocariam em contradição nosso acordo fundamental com Lênin?

A contribuição de Que fazer? À definição do papel do partido

"Seria falso e caricatural opor um Que Fazer? substitucionista de Lênin a uma visão sã e clara de Rosa Luxemburgo e Trotsky (assinalamos que este será nos anos 20, um ardoroso defensor da militarização do trabalho e da todo poderosa ditadura do partido....)"[1]. Como se pode ver, nossa posição sobre Que Fazer?, começa por tomar por base o nosso método de compreensão da história do movimento operário. Este método se apóia na unidade e na continuidade deste movimento tal e como temos apresentado na primeira parte deste artigo. Não é algo novo e já estava presente quando da fundação da CCI.

Que Fazer? (1902) consta de duas grandes partes. A primeira dedicada à questão da consciência de classe e do papel dos revolucionários. A segunda considera diretamente as questões de organização. O conjunto representa uma crítica implacável dos "econimicistas" que só consideram possível um desenvolvimento da consciência no seio da classe operária a partir das suas lutas imediatas. Tendem, assim, subestimar e a negar qualquer papel político ativo das organizações revolucionárias, cuja tarefa se limitaria a "ajudar" nas lutas econômicas.

Como conseqüência natural dessa subestimação do papel dos revolucionários, o economicismo se opõe à constituição de uma organização centralizada e unida capaz de intervir em grande escala e com uma só voz sobre todas as questões, tanto econômicas como políticas.

O texto de Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás, que é um complemento a Que fazer? no plano histórico, dá conta da ruptura entre os bolcheviques e os mencheviques no IIº congresso do POSDR que acabava de ter lugar.

Que Fazer? e a consciência de classe

A principal debilidade - já temos dito - de Que fazer? se encontra na questão da consciência de classe.

Qual era a posição dos demais revolucionários sobre essa questão? Até o IIº congresso, só o "economicista" Martínov se opõe a ela. Foi só depois do congresso que Plekhanov e Trotski criticaram a concepção errônea de Lênin sobre a consciência aportada do exterior até a classe operária. Foram os únicos a rechaçar explicitamente a posição de Kautsky retomada por Lênin segundo a qual "o socialismo e a luta de classes surgem paralelamente e não se engendram mutuamente [e que] os portadores da consciência não é o proletariado, e sim os intelectuais burgueses"[2].

A resposta Trotsky sobre essa questão da consciência foi bastante justa, embora também acabou muito limitada. Não esqueçamos que estamos em 1903 e Trotsky escreveu a sua resposta, Nossas tarefas políticas em 1904. O debate sobre a greve de massas apenas tinha iniciado na Alemanha e ia se desenvolver verdadeiramente à luz da experiência de 1905 na Rússia. Trotsky rechaça claramente a posição de Kautsky e assinala o perigo do substitucionismo que carrega. Entretanto, ainda sendo muito virulento contra Lênin sobre as questões de organização, não se separa totalmente dele sobre esse aspecto particular. Compreende e explica as razões dessa posição:

"Quando Lênin retomou de Kautsky a idéia absurda da relação entre o elemento "espontâneo" e o elemento "consciente" no movimento revolucionário do proletariado, o único que fazia era definir em linhas gerais as tarefas da sua época".[3]

Alem do mais a clemência de Trotsky nisto, temos que assinalar que nenhum dos novos oponentes à Lênin se levantaram contra a posição de Kautsky sobre a consciência antes do 2º Congresso do POSDR quando estavam unidos na luta contra o economicismo. No congresso, Martov, líder dos mencheviques, retoma exatamente a mesma posição de Kautsky e Lênin. Depois do congresso, essa questão parece tão pouco importante que os mencheviques continuam negando toda divergência programática e atribuem a divisão às "elucubrações" de Lênin sobre a organização: "Com minha débil inteligência, não sou capaz de compreender o que pode ser "o oportunismo sobre os problemas de organização", colocado no terreno como algo autônomo, sem nenhum vínculo orgânico com as idéias programáticas e táticas".[4]

A crítica de Plekhanov, se bem seja justa, é bastante genérica e se contenta em restabelecer a posição marxista sobre a questão. A principal argumentação consiste em dizer que não é verdade que "Os intelectuais (tem) "elaborado" suas próprias teorias socialistas "de maneira completamente independente do crescimento espontâneo do movimento operário" - isto jamais havia ocorrido e não poderia ocorrer".[5]

Antes do congresso e no seu transcurso, quando ainda continua de acordo com Lênin, Plekhanov se limita a nível teórico a questão da consciência. Não aborda os debates do IIº. Congresso. Não responde a questão central: Que partido e que papel para esse partido? Só Lênin da uma resposta.

A questão central de "Que fazer?": elevar a consciência

Lênin teve uma preocupação central na sua polemica contra o economicismo no plano teórico: a questão da consciência de classe e o seu desenvolvimento no seio da classe operária. Sabe-se que Lênin abandonara rapidamente a posição de Kautsky. Particularmente com a experiência da greve de massas russa de 1905 e o aparecimento dos primeiros soviets. Em janeiro de 1917, melhor dizendo antes do início da revolução na Rússia, em meio aos estragos da guerra imperialista, Lênin volta à greve de massas de 1905. Passagens inteiras sobre "o emaranhamento das greves econômicas e as greves políticas" podem parecer escritos por Rosa Luxemburgo ou Trotsky[6]. E dão uma idéia do rechaço por parte de Lênin do seu erro inicial em grande parte pelas suas "forçadas de barra"[7]:

"A verdadeira educação das massas jamais poderá separar-se de uma luta política independente, e sobretudo da luta revolucionária das massas mesmo. Só a ação educa a classe explorada, só ela lhe dá a medida das suas forças, amplia seu horizonte, desenvolve suas capacidades, ilumina sua inteligência e tempera sua vontade"[8]. Longe estamos do que disse Kautsky.

Porém já em Que fazer?, o que disse sobre a consciência é contraditório. Ao lado da posição errônea, Lênin afirma, por exemplo: "Isto nos demonstra que o "elemento espontâneo" não é senão, no fundo, a forma embrionária do consciente"[9].

Essas contradições são a manifestação de Lênin, como de resto do movimento operário em 1902, não terem uma posição muito precisa e clara sobre a questão da consciência de classe[10]. As contradições de Que fazer? e as tomadas de posição posteriores demonstram que Lênin não está particularmente atado à posição de Kautsky. Além do mais, só há três passagens bem delimitadas em Que fazer? nos quais escreve que "a consciência há de ser levada desde o exterior". E das três, há uma que não tem nada a ver com o que Kautsky disse.

Rechaçando a idéia que seja possível "desenvolver a consciência política de classe dos operários, por assim dizer, desde o interior da sua luta econômica, quer dizer partindo unicamente (ou pelo menos principalmente) desta luta, baseando-se unicamente (ou ao menos, principalmente) nesta luta....[Lênin responde que]....a consciência política de classe só pode chegar ao operário do exterior, quer dizer do exterior da luta econômica, do exterior da esfera das relações entre operários e patrões"[11]. A fórmula é confusa, porém a idéia é justa. E não corresponde ao que defende em outros dois usos do termo "exterior" quando fala da consciência. Seu pensamento é ainda mais preciso em outra passagem: "A luta política da social-democracia é muito mais ampla e complexa que a luta econômica dos operários contra os patrões e o governo"[12].

Lênin rechaça muito claramente a posição desenvolvida pelos economicistas sobre a consciência de classe enquanto um produto imediato, direto, mecânico e exclusivo das lutas econômicas.

Nós estamos do lado do Que fazer? no combate contra o economicismo. Também estamos de acordo com os argumentos críticos usados contra o economicismo e dizemos que, ainda hoje, continuam atuais enquanto ao seu conteúdo teórico e político.

"A idéia segundo a qual a consciência de classe não surge de maneira mecânica das lutas econômicas é completamente correta. Porém o erro de Lênin consiste em acreditar que não se pode desenvolver a consciência de classe a partir das lutas econômicas e que esta há de ser introduzida desde fora por um partido"[13]. É essa uma nova apreciação da CCI? São citações de Que fazer? que fazíamos nossas, em 1989, em um artigo de polemica[14] com o BIPR, insistindo já então sobre o que dizemos hoje. "A consciência socialista das massas operárias é a única base que pode nos garantir o triunfo (...). O partido sempre haverá de ter a possibilidade de revelar a classe operária o antagonismo hostil entre seus interesses e os da burguesia. [A consciência de classe a que tem chegado o partido] há de ser propalada no seio das massas operárias com um impulso crescente. (...) tem de esforçar-se ao máximo para elevar o nível de consciência dos operários em geral. [A tarefa do partido consiste em] tirar proveito dos lampejos de consciência política que a luta econômica tem feito penetrar na mente dos operários para elevar a eles ao nível da consciência social-democrata"[15].

Para os detratores de Lênin, as idéias de Que fazer? anunciam o estalinismo. Assim pois um vínculo uniria Lênin a Stalin inclusive sobre a questão de organização. Já havíamos denunciado semelhante mentira na primeira parte do presente artigo ao nível histórico. E também o rechaçamos no âmbito político, incluídas as questões da consciência de classe e da organização política.

Existe uma unidade e uma continuidade entre Que fazer? e a Revolução russa, porém nenhuma em absoluto com a contra-revolução stalinista. Esta unidade e continuidade existem como um todo no processo revolucionário que enlaça as greves de massas de 1905 com as de 1917, que vão de fevereiro de 1917 até a insurreição de outubro de 1917. Para nós, Que fazer? anuncia as Teses de abril em 1917: "As massas enganadas pela burguesia são de boa fé. Torna-se muito importante informá-las com cuidado, perseverança, com paciência sobre seu erro, ensinar-lhes o vínculo indissolúvel entre o capital e a guerra imperialista (...). Explicar às massas que os soviets representam a única forma possível de governo operário"[16]. Para nós, Que fazer? anuncia a insurreição de outubro e o poder dos soviets.

Nossos detratores atuais "anti-leninistas" ficam em silêncio quanto a preocupação central de Que fazer? sobre a consciência, e desta maneira imitam um aspecto do método stalinista que denunciamos na primeira parte deste artigo. Da mesma maneira como Stalin fazia desaparecer os velhos militantes bolcheviques das fotos, fazem desaparecer o essencial do que disse Lênin e nos acusam de passarmos a ser "leninistas", quer dizer stalinistas.

Para os que elogiam Lênin sem crítica, como a corrente bordiguista, seríamos idealistas incorrigíveis com nossa insistência sobre o papel e a importância da "consciência de classe na classe operária" e na luta histórica e revolucionária do proletariado. Para quem se esforça em ler o que escreveu Lênin e para quem quer imergir no processo real de discussões e confrontações políticas daqueles tempos, ambas acusações resultam falsas.

A distinção em "Que fazer?" entre organização política e organização unitária

No plano político e organizativo, há outros aportes fundamentais em Que fazer? Trata-se particularmente da distinção clara e precisa feita por Lênin entre as organizações com as quais se dota a classe operária nas suas lutas cotidianas, as organizações unitárias, e as organizações políticas. Vejamos primeiro o adquirido a nível político.

"Esses círculos, associações profissionais dos operários e organizações tornam-se necessárias em todas as partes; haverão de ser o mais numerosas possíveis e suas funções as mais variadas possíveis; porém torna-se absurdo e nocivo confundir-las com a organização dos revolucionários, apagar a demarcação que entre elas existe (...) A organização de um partido social-democrata revolucionário tem de ser necessariamente de outro tipo que a organização dos operários para a luta econômica"[17].

Esta distinção não é um descobrimento para o movimento operário. A social-democracia internacional, particularmente a alemã, tinha clara essa questão. Porém Que fazer?, na sua luta contra a variante russa do oportunismo naquela época, o economicismo, e tomando em conta as condições particulares, concretas, da luta de classes na Rússia tzarista, vai mais além e avança uma idéia nova: "A organização dos revolucionários tem de incluir antes de tudo e principalmente homens cuja profissão é revolucionário. Diante desta característica comum a dos membros de tal organização, qualquer distinção entre operários e intelectuais e, ainda mais, entre as diversas profissões dos uns e dos outros, deve se apagar Necessariamente, esta organização não deve ser muito extensa e há de ser o mais clandestina possível"[18].

Examinemos isso. Seria errôneo ver nessa passagem considerações só relacionadas com as condições históricas em que os revolucionários russos deviam atuar, particularmente as condições de ilegalidade, de clandestinidade e de repressão. Lênin avança três pontos que têm um valor universal e histórico. E cuja validade não tem deixado de confirmar-se até hoje. Primeiro, que a militância comunista é um ato voluntário e sério (utiliza a palavra "profissional" que também utilizavam os mencheviques nos debates do congresso) que compromete o militante e determina sua vida. Sempre estivemos de acordo com esse conceito do compromisso militante que combate e nega toda visão ou atitude diletante.

Segundo, Lênin defende uma visão das relações entre militantes comunistas que supera a divisão operário/intelectual[19], dirigente/dirigido diríamos hoje, uma visão que supera toda idéia hierárquica ou de superioridade individual, em uma comunidade de luta no seio do partido, ou no seio da organização revolucionária. E se opõe a qualquer divisão de ofício ou corporações entre os militantes. Rechaça de antemão as células de empresa que foram instauradas, em troca, com a bolchevização em nome do leninismo[20].

E, ultimo ponto, Lênin define uma organização que "não deve ser muito extensa". É ele o primeiro a perceber que o período dos partidos operários de massa está acabando-se[21]. Seguramente as condições da Rússia favoreciam essa clarividência. Porém são as novas condições de vida e da luta do proletariado, que se manifestam particularmente com a "greve de massas", as que determinam também as novas condições da atividade dos revolucionários, muito em particular o caráter "menos extenso", minoritário, das organizações revolucionárias no período de decadência do capitalismo que estava se abrindo no início do século XX.

"Porém seria (...) "seguidismo" pensar que sob o capitalismo quase toda a classe ou a classe inteira possa encontrar-se um dia em condições de elevar-se até ao ponto de adquirir o grau de consciência e de atividade do seu destacamento de vanguarda, do seu partido social-democrata"[22].

Embora nessa mesma época, Rosa Luxemburgo, Pannekoek ou Trotsky fossem entre os primeiros a perceber as lições do surgimento das greves de massas e dos conselhos operários, seguiram prisioneiros de uma visão dos partidos como organizações políticas de massas. Rosa Luxemburgo critica Lênin desde o ponto de vista de um partido de massas[23]. Até o ponto em que ela também acaba se esbarrando quando escreve que "na verdade, a social-democracia não está vinculada a organização da classe operária, é o movimento próprio da classe operária"[24]. Vitima ela também da "forcada de barra" na polêmica, vítima do seu apoio aos mencheviques no que está em jogo durante o IIº congresso do POSDR, se desliza inoportunamente por sua vez até o terreno dos mencheviques e dos economicistas, diluindo a organização dos revolucionários na classe[25].

Porém conseguirá voltar mais tarde - e com que ímpeto - a uma posição mais clara. Entretanto, sobre a distinção entre organização do conjunto da classe e organização dos revolucionários, as fórmulas de Lênin continuam sendo as mais claras. São as que vão mais adiante.

O Aporte de Um passo adiante, dois passos atrás para a delimitação e o funcionamento do partido

Que fazer? e Um passo adiante, dois passos atrás são pois dois tantos passos políticos essenciais na história do movimento operário. Essas duas obras constituem mais especificamente aquisições políticas "práticas" a nível organizativo. Igualmente a Lênin, a CCI sempre tem considerado a questão da organização como questão integralmente política A organização política da classe operária é diferente de sua organização unitária e isso tem implicações práticas Dentre elas, a definição estrita da adesão e do pertencimento ao partido, quer dizer à definição do militante, de suas tarefas, das suas obrigações, das suas responsabilidades, ou seja, da sua relação com a organização, é essencial. Bem se conhece a batalha do IIº Congresso do POSDR em torno do artigo primeiro dos estatutos: é o primeiro enfrentamento, no seio do congresso, entre bolcheviques e mencheviques. A diferença entre as fórmulas propostas por Lênin e Martov pode parecer completamente insignificante.

Quem é membro do partido?

Para Lênin, "é membro do Partido aquele que reconhece o programa e defende o Partido tanto com meios materiais como com a sua participação pessoal em uma das organizações do partido"; Para Martov "se considera como pertencente ao Partido operário social-democrata da Rússia, aquele que, reconhecendo seu programa, trabalha ativamente para por em aplicação suas tarefas sobre o controle e a direção dos organismos do Partido".

A divergência considera o reconhecimento da qualidade de membro: seja unicamente aos militantes que pertencem ao Partido e que este reconhece como tal- a posição de Lênin -; ou seja aqueles militantes que não pertencem formalmente ao Partido, porém que em tal ou qual momento, em tal ou qual atividade, apóiam ao Partido, ou se declaram eles mesmos social-democratas. Assim, a posição de Mártov e dos mencheviques revela muito mais ampla, mas "flexível", menos restritiva e menos precisa que a de Lênin.

Por trás dessa diferença, se esconde uma questão de fundo que rapidamente apareceu durante o congresso e que as organizações revolucionárias continuam se enfrentando hoje: quem é membro do partido, e ainda mais difícil de definir, quem não é?

Para Mártov, fica claro "Quanto mais se generalize a apelação de membro do partido melhor. Temos que ficar alegres se cada grevista, cada manifestante, ao fazer-se responsável dos seus atos, pode declarar-se membro do Partido"[26].

A posição de Mártov tende a diluir, a dissolver a organização dos revolucionários, o partido, na classe. Une-se ao economicismo que anteriormente combatia junto a Lênin. A argumentação com a que defende sua proposta de Estatutos equivale a liquidar a idéia mesma de partido de vanguarda, unido, centralizado e disciplinado em torno de um Programa político bem definido, bem preciso e com uma vontade de ação militante e coletiva ainda mais definida, precisa e rigorosa. Também abre a porta a políticas oportunistas de "recrutamento" sem princípios de militantes que hipotecam o desenvolvimento do partido a longo prazo em benefícios de resultados imediatos. Quem tem razão é Lênin:

"Ao contrário, quanto mais fortes sejam nossas organizações do Partido que englobam verdadeiros social-democratas, menos vacilação e instabilidade teremos no seio do Partido, e mais ampla, mais variada, mais rica e fecunda será a influência do Partido sobre os elementos da massa operária que o rodeiam e aos que dirige. Efetivamente, não se pode confundir o Partido, vanguarda da classe operária, com o conjunto da classe"[27].

O grande perigo da posição oportunista de Mártov sobre a organização, o recrutamento, a adesão e o pertencimento ao partido aparece muito rapidamente no mesmo congresso com a intervenção de Axelrod: "Um pode ser membro sincero e fiel do partido social-democrata, porém demonstrar completamente inadaptado para a organização de combate rigorosamente centralizada"[28].

Como se pode ser um membro do partido, militante comunista, e "inadaptado para a organização de combate centralizada"? Aceitar semelhante idéia é tão absurdo como aceitar a idéia de um operário combativo e revolucionário porém "inapto" para qualquer ação coletiva de classe. Qualquer organização comunista só pode aceitar no seu seio militantes aptos à disciplina e à centralização que necessita seu combate. Como poderia ser possível outra coisa? A não ser que se aceite que os militantes não respeitem imperativamente as relações na organização e as decisões que ela adota, assim como da necessidade do combate. A não ser, também, que se queira ridicularizar a noção mesma de organização comunista que haverá de ser "a fração mais resoluta de todos os partidos operários de todos os países, a fração que impulsiona todas as demais"[29]. A luta histórica do proletariado é um combate de classe, unindo em escala histórica e internacional, coletivo e centralizado. E como a sua classe, os comunistas levam a cabo um combate histórico, internacional, permanente, unido, coletivo e centralizado que se opõe a qualquer visão individualista. "A consciência crítica e a iniciativa voluntária têm um valor muito limitado para os indivíduos, porém em troca, se realizam plenamente na coletividade do Partido"[30]. Quem for incapaz de envolver-se nesse combate centralizado é incapaz de atividade militante e não pode ser reconhecido enquanto membro do partido. "Que o partido admita unicamente elementos capazes ao menos de um mínimo de organização"[31].

Essa "capacidade" é fruto da convicção política e militante dos comunistas. Adquire-se e se desenvolve participando na luta histórica do proletariado, particularmente no seio das suas minorias políticas organizadas. Para qualquer organização comunista conseqüente, a convicção e a capacidade "prática" - não platônica - para "a organização de combate rigorosamente centralizada" de qualquer novo militante são por sua vez condições indispensáveis para sua adesão e expressões concretas do seu acordo político com o programa comunista.

A definição do militante, da qualidade de membro de uma organização comunista continua sendo hoje em dia uma questão essencial. Que fazer? e Um passo adiante, dois passos atrás colocam os fundamentos e as respostas a quantidade de perguntas em matéria de organização. É por isso o que a CCI sempre tem se apoiado na luta dos bolcheviques no IIº Congresso para diferenciar com clareza, rigor e firmeza, um militante, ou seja "quem participa pessoalmente de uma das organizações do Partido", como defendido por Lênin, e um simpatizante, um companheiro de caminhada, aquele que "adota o programa, apóia o Partido com meios materiais e lhe aporta uma ajuda pessoal regular (ou irregular, acrescentamos) sob a direção de uma das suas organizações", tal como expressa a definição de militante de Mártov que foi finalmente adotada no IIº Congresso. Igualmente, sempre temos defendido que "quando quiser ser membro do Partido, tem de reconhecer também as relações de organização, e não só platonicamente"[32].

Nada disso é novidade para a CCI. É a base mesma da sua constituição como demonstra a adoção do seu Estatuto já no seu primeiro congresso internacional em janeiro de 1976.

E seria um erro pensar que esta questão já não colocaria nenhum problema hoje. Primeiro, a corrente conselhista, embora suas ultimas expressões políticas sejam silenciosas, senão quase a ponto de desaparecer[33] continua sendo hoje uma espécie de herdeira do economicismo e do menchevismo em matéria de organização. Em um período de maior atividade da classe operária, não há dúvida que as pressões conselhistas para "enganar a si mesma, fechar os olhos diante da imensidão das nossas tarefas, restringir essas tarefas (esquecendo) a diferença entre o destacamento de vanguarda e as massas que gravitam na sua órbita"[34] cobrarão um novo vigor. Porém também no meio que reivindica exclusivamente a Esquerda italiana e Lênin, seja a corrente bordiguista e o BIRP, a colocação em prática do método de Lênin e do seu pensamento político em matéria de organização está muito distante de constituir uma verdadeira aquisição. Basta só observar a prática de recrutamento sem princípios do PCI bordiguista nos anos 70. Sua política ativista e imediatista acabou levando a desmantelamento em 1982. No mais há de se observar que a ausência de rigor do BIRP (que agrupa Battaglia comunista na Itália e a CWO na Inglaterra) que às vezes parece custar decidir quem é militante da organização e quem é um simpatizante ou contato próximo: e isso apesar de todos os riscos que tal imprecisão organizativa suporta. O oportunismo em matéria de organização é hoje um dos venenos mais perigosos para o meio político proletário. E infelizmente de nada servem como contraveneno as cantilenas sobre Lênin e a necessidade do "Partido compacto e potente".

A concepção do militantismo defendida por Lênin

Que diz Rosa Luxemburgo, na sua polêmica com Lênin a respeito do militante e seu pertencimento ao partido?

"A idéia expressa no livro (Um passo adiante, dois passos atrás) de uma maneira penetrante e exaustiva é a de um centralismo implacável: seu princípio vital exige, por um lado, que as falanges organizadas de revolucionários declarados e ativos saiam e se separem decididamente do meio que os rodeia e que, embora não organizado, nem por isso deixa de ser revolucionário; nele se defende, por outra parte, uma disciplina rígida"[35].

Sem pronunciar-se explicitamente contra a definição precisa de militante que faz Lênin, o tom irônico que Rosa emprega quando invoca "as falanges organizadas que saem e se separam do meio que os rodeia" e... seu silêncio total sobre a batalha política no congresso acerca do artigo primeiro dos estatutos, põe em relevo a visão errônea de Rosa Luxemburgo, nesse momento, e o seu alinhamento com os mencheviques. Continua presa da visão do partido de massas, que servia de exemplo no momento a social-democracia alemã. Não vê o problema ou o evita, equivocando-se no combate. Ao não falar nada sobre o debate no congresso em torno do artigo primeiro dos estatutos acaba dando razão a Lênin quando este afirma que ela "se limita a repetir frases vazias sem procurar dar sentido. Agita espantalhos sem ir ao fundo do debate. Me faz dizer lugares comuns, idéias gerais, verdades absolutas e se esforça em não dizer nada sobre as verdades relativas que se apóiam em fatos precisos"[36].

Como no caso de Plekhanov e muitos outros, as considerações gerais avançadas por Rosa Luxemburgo - inclusive quando são justas em si - não respondem as verdadeiras questões políticas colocadas por Lênin. "É assim como uma preocupação correta: insistir no caráter coletivo do movimento operário, em que a "emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores" desemboca em conclusões práticas falsas", como dizíamos a respeito de Rosa Luxemburgo em 1979[37]. Rosa passou ao lado das conquistas políticas do combate dos bolcheviques.

E, de fato, se não houvesse ocorrido um debate em torno do artigo Iº dos Estatutos, a questão do partido claramente definido e diferenciado organizativa e politicamente, do conjunto da classe operária, não teria terminado definitivamente esgotado. Sem o combate assumido por Lênin sobre o artigo 1, a questão não seria uma aquisição política de primeira importância em matéria de organização, base em que devem apoiar-se os comunistas de hoje para constituir sua organização, não só para a adesão de novos militantes, senão também e sobretudo para o esclarecimento preciso e rigoroso das relações entre militantes e organização revolucionária.

É esta defesa da posição de Lênin sobre o artigo 1 dos estatutos algo novo para a CCI?

"Para ser membro da CCI, tem que (...) integrar-se na organização, participar ativamente do seu trabalho e cumprir as tarefas que lhe confia" afirma o artigo dos nossos estatutos que trata da questão do pertencimento militante à CCI. Está claro que recolhemos, sem a menor ambigüidade, a idéia de Lênin, o espírito e até a letra do estatuto que ele propôs no IIº Congresso do POSDR e em absoluto não a de Mártov ou Trotsky.

O combate em torno dos estatutos

Já apresentamos rapidamente nossa concepção de militante revolucionário e mostramos que esta é a herdeira, em boa parte, do combate e dos aportes de Lênin de Que fazer? e Um passo adiante, dois passos atrás. Já temos sublinhado a importância de expressar o mais fiel e mais rigorosamente possível na prática militante cotidiana, graças aos estatutos da organização, essa definição de militante. E nisso também nos mantemos fieis ao método e os ensinamentos de Lênin em matéria de organização. O combate político por estabelecer regras precisas nas relações organizativas, ou seja os estatutos, é algo fundamental. Igualmente é o combate para que se respeitem, claro está. Sem este, as grandes declarações sobre o partido não passam de fantasmagorias.

Pelos próprios limites desse artigo, não poderemos apresentar nossa concepção sobre a unidade da organização política e mostrar no que a luta de Lênin contra a sobrevivência dos círculos, no IIº. Congresso do POSDR, foi um aporte teórico e político de primordial importância. E no que queremos insistir é na importância prática que tem de expressar essa unidade nos estatutos da organização: "O caráter unitário da CCI se plasma também nesses estatutos", como assim se diz neles. Lênin expressa muito bem o porque dessa necessidade:

"O anarquismo senhorial não compreende que os estatutos formais são necessários precisamente para substituir o vínculo limitado dos círculos com o amplo vinculo do Partido. Não se necessitava nem era possível para o vínculo existente no interior de um círculo revestir uma forma definida, pois este estava baseado na amizade pessoal ou em uma "confiança" incontrolada e não motivada. O vínculo do Partido não pode nem deve repousar nem em uma nem na outra; é indispensável basear-se precisamente em estatutos formais, redigidos "burocraticamente"[38] (desde o ponto de vista do intelectual sem disciplina), e cuja estrita observância é o único que nos garante contra a arbitrariedade e os caprichos dos círculos, contra suas brigas chamadas de livre "processo" da luta ideológica"[39].

E é o mesmo enquanto a centralização da vida política interna contra toda visão federalista, localista, ou visão da organização como uma soma de partes e até de indivíduos revolucionários, autônomos. "O congresso internacional é o órgão soberano da CCI", dizem os nossos Estatutos. Também nesse aspecto nos reivindicamos do combate de Lênin e da sua necessária concretização prática nos Estatutos da organização, tanto para o POSDR de então como para as organizações de hoje.

"Em uma época de restabelecimento da unidade efetiva do partido e da diluição dos círculos antiquados nessa unidade, se situa inevitavelmente por cima o Congresso do partido, como órgão supremo do mesmo"[40].

É o mesmo enquanto a vida política interna: o aporte de Lênin considera também e especialmente os debates internos, o dever - e não só um simples direito - de expressão de toda divergência nos marcos da organização ante a organização no seu conjunto; e uma vez esgotados os debates e tomadas as decisões pelo congresso (órgão soberano, verdadeira assembléia geral da organização) as partes e os militantes se subordinam ao todo. Contrariamente à idéia, amplamente espalhada, de um Lênin ditatorial, procurando sempre abafar os debates e a vida política na organização, na realidade não parava de opor-se a idéia menchevique que via o congresso como "um relator, um controlador, e nunca um criador"[41]

Para Lênin e a CCI, o congresso é "criador". Entre outras coisas, rechaçamos radicalmente toda idéia de mandatos imperativos dos delegados por parte de seus mandatários ao congresso, o que é contrário aos debates mais amplos, dinâmicos e frutíferos. O que reduziria os congressos a nada mais que "relatores" como queria Trotsky em 1903. Um congresso "relator" consagraria a supremacia das partes sobre o todo, o império da mentalidade de "cada um na sua casa", do federalismo e do localismo. Um congresso "relator e controlador" é a negação do caráter soberano do congresso. Como Lênin, estamos a favor de congressos "organismo supremo" do partido, com poder de decisão e de "criação". O congresso "criador" implica que os delegados não estejam "imperativamente" limitados, com as mãos atadas, prisioneiros do mandato que seus mandatários lhes outorga.[42]

O congresso "órgão supremo" significa também precisamente sua "supremacia" em termos programático, político e de organização, sobre as diferentes partes da organização comunista:

"O congresso é a instancia suprema do Partido e, portanto, aquele que falta à disciplina do partido e ao regulamento do congresso; que de qualquer forma , põe obstáculos a que qualquer dos delegados apele diretamente ao Congresso, sobre todas as questões da vida do partido, sem exceção alguma. O problema em discussão se reduz desse modo a um dilema: o espírito de círculo ou o espírito de Partido? Ou se limitam os direitos dos delegados ao congresso, em virtude de imaginários direitos ou estatutos de toda sorte de grupos e círculos, ou todas as instâncias inferiores dos velhos grupinhos se dissolvem totalmente antes do congresso, e não só de palavra, e sim de fato"[43].

Os estatutos não são medidas excepcionais

Já vimos que nem Rosa Luxemburgo nem Trotsky, para não citar outros, não respondem a Lênin sobre o artigo 1 dos estatutos. Desdenham totalmente essa questão, assim também descuidam dos estatutos em geral. E nisso também preferem limitar-se a generalidades abstratas. E quando se dignam a invocar esta questão, é para subestimá-la por completo. E no melhor dos casos, consideram os estatutos da organização política como uma proteção, como limites que não se há de ultrapassar. E no pior dos casos, não os considera senão como armas repressivas que de haveria de utilizar em casos excepcionais e com muitas precauções. Aqui há de se notar que esta concepção dos estatutos também é a dos stalinistas, que também vêem neles, só medidas repressivas, com a única diferença de que esses não andam com "precauções".

Para Trotsky, a fórmula de Lênin no artigo 1 teria deixado "A satisfação platônica de ter descoberto o remédio estatutário contra o oportunismo (...) Não há dúvida: se trata de uma forma simplista, tipicamente administrativa de resolver uma questão prática muito grave"[44].

A mesma Rosa Luxemburgo responde sem saber a Trotsky, ao afirmar que no caso de um partido já constituído (caso de um partido social-democrata de massas como na Alemanha), "uma aplicação mais severa da idéia centralista no estatuto de organização e uma formulação mais estrita dos pontos sobre a disciplina de partido são muito apropriados para servir de barreira contra a corrente oportunista"[45]. Significa isso que ela está de acordo com Lênin no caso da Alemanha, que dizer em geral. Entretanto, no que considera a Rússia, continua dizendo "verdades abstratas" ("Os desvios oportunistas não podem ser prevenidos a priori, senão que há de ser superadas pelo próprio movimento") que não significam nada e que, na realidade justificam "a priori" qualquer renúncia à luta contra o oportunismo em matéria de organização. O que ela acaba fazendo, sempre para o caso russo, ou seja no concreto, burlando dos estatutos, "parágrafos de papel", de "puro papelada", e considerando-os como medidas excepcionais: "O estatuto do Partido não haveria de ser uma arma contra o oportunismo, sim um meio de autoridade externa para exercer a influência preponderante da maioria revolucionária proletária realmente existente no Partido"[46].

Nunca estivemos de acordo com Rosa Luxemburgo sobre esse ponto: "Rosa continua repetindo que é o mesmo movimento de massas que haverá de superar o oportunismo, os revolucionários não tendo de acelerar artificialmente este movimento. (...) O que não consegue compreender Rosa Luxemburg, é que o caráter coletivo da ação revolucionária é algo que se há de forjar"[47]. Enquanto a questão dos estatutos, sempre estivemos e continuamos de acordo com Lênin.

Os estatutos como regra de vida e arma de combate

Os estatutos são para Lênin muito mais que simples regras formais de funcionamento, algo a que se refere no caso de situações excepcionais. Contrariamente a Rosa Luxemburgo ou aos mencheviques, Lênin define os estatutos como uma linha de conduta, o espírito que anima a organização e seus militantes dia a dia. Contrariamente a compreensão dos estatutos como meios de coerção ou de repressão, Lênin entende os estatutos como armas que impõem a responsabilidade das diferentes partes da organização e dos militantes, com respeito ao conjunto da organização política; armas que impõem o dever de expressão aberta, pública, ante o conjunto da organização, das divergências e dificuldades políticas.

Lênin não considera a expressão dos pontos de vista, dos matizes, das discussões, divergências, como um direito dos militantes, e sim como um dever e uma responsabilidade com respeito ao conjunto do partido e de seus membros. Os estatutos são ferramentas a serviço da unidade e da centralização da organização, ou seja, armas contra o federalismo, contra o espírito de círculo, o julgamento político influenciado pelas relações de amizade, contra a vida política e a discussão escapando do marco da organização para ser assumidas fora dela. Mas que limites exteriores, mais ainda que regras, os estatutos são para Lênin como um modo de vida política, organizativa e militante.

"As questões litigiosas no seio dos círculos, não se resolveriam segundo os estatutos "senão pela luta e ameaça de quitar" (...) Quando eu era unicamente membro de um círculo (...) tinha direito de justificar, por exemplo, a minha recusa de trabalhar com X., alegando só a falta de confiança, sem ter que dar explicações nem motivos. Uma vez membro do partido, não tenho direito de invocar só uma vaga falta de confiança, porque isso equivaleria escancarar as portas a todas extravagâncias e a todas arbitrariedades dos antigos círculos; estou obrigado a motivar minha "confiança" ou minha "desconfiança" com um argumento formal, quer dizer, ao referir-me a esta ou aquela disposição formalmente fixada do nosso Programa, da nossa tática, dos nossos Estatutos. Estou obrigado a não limitar-me a um "tenho confiança" ou "não tenho confiança" sem mais controle, senão reconhecer que devo responder das minhas decisões, como em geral toda parte integrante do partido deve responder das suas diante do conjunto do mesmo; estou obrigado a seguir a via formalmente prescrita para expressar minha "desconfiança", para fazer triunfar as idéias e os desejos que emanam desta desconfiança. Nos temos elevado da "confiança" incontrolada, própria dos círculos, ao ponto de vista de um partido, que exige a observância de procedimentos controlados e formalmente determinados para expressar e comprovar a confiança"[48].

Os estatutos da organização revolucionária não são meras medidas excepcionais ou proteções. São a concretização dos princípios organizativos próprios das vanguardas políticas do proletariado. Produto desses princípios, são por sua vez uma arma de combate contra o oportunismo em matéria de organização e dos fundamentos nos quais vai construir e erguer-se a organização revolucionária. São a expressão da sua unidade, da sua centralização, da sua vida política e organizativa, como também do seu caráter de classe. São a regra e o espírito que haverá de guiar cotidianamente aos militantes na sua relação com a organização, na sua relação com os demais militantes, nas tarefas que lhes são confiadas, nos seus direitos e deveres

Para nós como para Lênin, a questão organizativa é uma questão totalmente política e fundamental. A adoção de estatutos e o combate permanente pelo seu respeito e aplicação estão no centro mesmo da compreensão e da luta pela construção da organização política. Também os estatutos são uma questão teórica e totalmente política. Será um descobrimento da nossa organização? Uma mudança de posição? "O caráter unitário da CCI se expressa nos estatutos, que são válidos para toda organização (...). Esses estatutos são uma aplicação concreta da concepção da CCI em matéria de organização. Como tais, são parte integrante da plataforma da CCI" (Estatutos da CCI).

Contra o espírito de circulo e o individualismo que levam à personalização das questões políticas

Mais ainda de que a questão de determinar quem é membro do partido, a contribuição do combate de Lênin durante o Segundo congresso do POSDR e depois, considera a questao do comportamento militante que, também, é uma questão política. Diante da atitude dos Mencheviques, personalizando as questões políticas, diante dos ataques que tomam Lênin como alvo, e da subjetividade que invadiu Martov e seus amigos, ele responde: "Quando considero o comportamento dos amigos de Martov depois do congresso, (...) só posso dizer que se trata de uma tentativa insensata, indigna de membros do partido, de despedaçar o partido. E porque? Unicamente por conta de um descontento em relação à composição dos órgãos centrais, pois objetivamente é unicamente esta questão que nos dividiu, as apreciações subjetivas (como ofenda, insulta, expulsão, posto de parte, desonra, etc.) sendo so a fruta de um amor-próprio ferido e de uma imaginação doente. Esta imaginação doente e este amor-próprio ferido levam às bisbilhotices mais vergonhosas: sem se ter informado da atividade dos novos centros, nem os ter visto estar a trabalhar, se espalha rumores sobre sua "carência", sobre o tirania de Ivan Ivanovitch, sobre o pulso de d'Ivan Nikiforovitch, etc. (...) A social-democracia russa tem ainda uma última e difícil etapa para ultrapassar, do espírito de círculo ao de partido; da mentalidade pequeno-burguesa à consciência de seu dever revolucionário; das bisbilhotices e da pressão dos círculos - considerados como meios de ação - à disciplina" (relatório do IIo congresso do POSDR (Obras, Tomo 7). Para uma leitura mais detalhada da concepção da CCI considerando o comportamento militante, aconselhamos nossos leitores os artigos seguintes não traduzidos ainda em português : "A questão do funcionamento da organização na CCI" (Revista internacional n° 109), "A confiança e a solidariedade na luta do proletariado" (Revista internacional n° 111 e 112), "Marxismo e ética" (Revista internacional n° 127 e 128)

O Partido Comunista se construirá baseando-se nas lições políticas e organizativas aportadas por Lênin

Na luta do proletariado, este combate de Lênin representa um dos momentos essenciais para a construção do seu órgão político, que finalmente se concretizou com a fundação da Internacional Comunista em março de 1919. Antes de Lênin, a Primeira Internacional (AIT) tinha representado um momento igualmente importante. Depois de Lênin, o combate da Fração Italiana da Esquerda Comunista por sua própria sobrevivência foi outro momento também importante.

Entre essas diversas experiências há uma "linha vermelha", uma continuidade de princípios, teórica e política, em matéria de organização. É só nessa continuidade e unidade histórica que os revolucionários de hoje podem integrar sua ação .

Já temos citado amplamente nossos próprios textos, que lembram claramente e sem nenhuma ambigüidade nossa filiação e patrimônio nas questões de organização. Nosso "método" de re-apropriação das lições políticas e teóricas do movimento operário não é nada um invento da CCI.

O temos herdado da Fração Italiana da esquerda comunista e da sua publicação Bilan nos anos 1930, assim como da Esquerda Comunista da França e da sua revista Internationalisme nos anos 1940. É o método de que sempre nos temos reivindicado e, sem ele, a CCI não existiria na sua forma atual.

"A expressão mais acabada da solução do problema do papel que tem de desempenhar o elemento consciente, o partido, para a vitória do socialismo, foi realizado pelo grupo de marxistas russos da antiga Iskra, e mais particularmente por Lênin que deu uma definição de principio já em 1902 ao problema do partido na sua destacada obra Que fazer? A noção que tinha Lênin do partido ia servir de coluna vertebral do partido bolchevique, e será um dos aportes maiores deste na luta internacional do proletariado"[49].

Efetivamente e sem a menor dúvida, o Partido comunista mundial de amanhã não poderá constituir-se fora destas aquisições teóricas de principio , políticas e organizativas legadas por Lênin. A recuperação real, e não declamatória, dessas aquisições, assim como sua aplicação rigorosa e sistemática às condições de hoje, constituem uma tarefa entre as mais importantes dos pequenos grupos comunistas de hoje se realmente querem contribuir no processo de formação do dito Partido.



[1] Organizações comunistas e consciência de classe (folheto da CCI em Francês); 1979

[2] Kautsky, citado por Lênin em Que fazer?

[3] Trotsky, Nossas tarefas políticas, cap. "Em nome do marxismo!" Belfond, 1970, Paris

[4] P. Axelrod, Sobre a origem e a significação de nossas divergências quanto à organização, carta a Kautsky, idem

[5] Plekhanov, A classe operária e os intelectuais social-democratas, 1904, idem.

[6] Rosa Luxemburgo: Greve de massa, partido e sindicatos (1906) e Trotski, 1905 (1908-1909).

[7] Ver a primeira parte de este artículo

[8] Lênin, Relatório sobre 1905 (janeiro de 1917)

[9] Lênin, Que fazer?

[10] Karl Marx é muito mais claro sobre este tema em algumas de suas obras. Porem estas são em grande parte desconhecidas entre os revolucionários de então, pois não disponíveis ou não publicadas. Obra fundamental sobre o tema da consciência, A Ideologia alemã, por exemplo, só foi publicada pela primeira vez em...1932!

[11] Lênin, Que fazer?

[12] Idem

[13] Organizações comunistas e consciência de classe (folheto da CCI em Francês); 1979

[14] Este artículo não é da CCI, mas foi escrito pelos camaradas do Grupo proletário internacionalista (GPI) que logo constituíram a secção da CCI no México.

[15] "Consciência de classe e Partido", Revista internacional nº 57, 1989

[16] Lênin, Teses de Abril, 1917.

[17] Lênin, Que fazer?

[18] Idem

[19] Não é necessário aqui lembrar o baixo nível "escolar" e o analfabetismo dominante entre os operários russos. Isso não impediu Lênin considerar que podiam e deviam integrar-se na atividade do partido de igual modo que os "intelectuais".

[20] Ver a primeira parte deste artigo

[21] "Também levará a efeito uma ruptura com a visão social democrata de partido de massas. Para Lênin, as condições novas da luta faziam necessário um partido minoritário de vanguarda que deveria trabalhar pela transformação das lutas econômicas em lutas políticas"(Organizações comunistas e consciência de classe; CCI, 1979)

[22] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás, parte 1 "artículo primeiro dos estatutos".

[23] "Esta militante, que havia passado pelas "escolas" do partido social-democrata, expressa um apego incondicional ao caráter de massas do movimento revolucionário" (Organizações comunistas e consciência de classe; CCI, 1979).

[24] Rosa Luxemburgo, Questões de organização na social-democracia russa

[25] O leitor terá notado que essa visão deixa a porta totalmente aberta à postura substitucionista do partido - o partido que substitui a ação da classe operária....até exercer o poder de Estado em nome dela ou a realizar ações "golpistas" como fizeram os stalinistas nos anos 1920.

[26] Martov, citado por Lênin em Um passo adiante, dois passos atrás, parte I "artigo primeiro dos estatutos"

[27] Um passo adiante, dois passos atrás, Parte I "artigo primeiro dos estatutos"

[28] Relatório do IIº congresso do POSDR, edições Era, 1977

[29] K.Marx, Manifesto do partido comunista

[30] Teses sobre a táctica do Partido comunista de Itália, Teses de Roma, 1922

[31] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás.

[32] O bolchevique Pavlóvich, citado por Lênin em Um passo adiante, dois passos atrás.

[33] Ver em nossas publicações territoriais os artigos a propósito da suspensão da publicação de Daad en Gedachte, revista do grupo conselhista holandês do mesmo nome.

[34] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás.

[35] Rosa Luxemburgo, Questões de Organização da social-democracia russa.

[36] Lênin, Resposta a Rosa Luxemburgo, publicada em Nossas tarefas políticas de Troski (Edition Belfond, Paris)

[37] Organizações comunistas e consciência de classe.

[38] É outro exemplo do método polêmico de Lênin, o qual recolhe as acusações dos seus adversários para voltar-se contra eles (ver a primeira parte deste artigo).

[39] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás, "A nova Iskra".

[40] idem

[41] Trotsky, Relatório da delegação siberiana

[42] O delegado do Partido Comunista Alemão, Eberlein, ao que em princípio não ia ser senão uma conferência internacional em março de 1919, tinha o mandato para se opor a constituição da IIIa. Internacional, a Internacional Comunista (IC). Estava claro para todos os participantes, em particular Lênin, Trotsky, Zinoviev e os dirigentes bolcheviques que a fundação da IC não poderia levar a efeito sem a adesão do PC alemão. Se Eberlein ficasse "preso" ao seu mandato imperativo, surdo aos debates e a dinâmica mesma da conferencia, a internacional,como Partido mundial do proletariado,não teria sido fundada.

[43]  Um passo adiante, dois passos atrás. "Começa o congresso....".

[44] Trotsky, Relatório da delegação siberiana

[45] Rosa Luxemburgo, Questões de organização da social-democracia russa

[46] Idem

[47] Organizações comunistas e consciência de classe

[48] Lênin, Um passo adiante, dois passos atrás; . "O oportunismo em matéria de organização"

[49] Internationalisme, nº 4, 1945

Repressão e marginalização do movimento dos controladores aéreos

  • 3766 leituras

A burguesia não quer que a classe operária redescubra que só a luta redime

O governo negou a validade do acordo que previa o atendimento das reivindicações. Não somente a burguesia ameaçou os grevistas de uma nova repressão e sim tentou apagar o caráter combativo de uma luta proletária pela defesa das condições de vida e pela dignidade, que foi exemplar e demonstrou ao conjunto do proletariado que é possível levantar a cabeça contra a opressão capitalista 

Nos primeiros dias imediatamente após a greve, o governo negou a validade do acordo firmado entre os seus representantes e os grevistas, que previa o atendimento das reivindicações. Em pronunciamento furioso feito à imprensa e a população, o presidente Lula acusou os controladores de "irresponsáveis" e "traidores" por terem desrespeitado as instituições e a hierarquia militar: "as pessoas precisam aprender que, no regime democrático, o respeito às instituições e à hierarquia é fundamental" (Folha Online, 5/4/07). Atitude semelhante teve o representante do governo nas negociações, o Ministro das Relações Institucionais Paulo Bernardo, ex-sindicalista da CUT - Central Única dos Trabalhadores. Pronunciamentos esses que prepararam o caminho para o início da repressão aberta por parte do Comando Militar da Aeronáutica, fortalecendo assim a intenção dos órgãos militares da burguesia para a aplicação de penalidades inclusive com a prisão dos elementos mais combativos, como foi o caso no início do movimento quando dezoito controladores foram presos. Por sua vez, os sindicatos e associações, desde o início do movimento, sabotaram as tentativas de mobilização dos controladores e fizeram tudo para evitar a solidariedade ativa com eles por parte de outros trabalhadores, e para desencorajar futuras lutas dos trabalhadores. Assim, a Associação Brasileira dos Controladores de Tráfego Aéreo (ABCTA) em uma nota dirigida aos Controladores pedia "paciência e compreensão" do "jogo político" e, em seguida, em nota pública dirigida a "sociedade": "Pedimos perdão à sociedade brasileira e paz para voltarmos a executar com maestria nosso trabalho". Assim fazendo, tentaram apagar o caráter combativo de uma luta proletária pela defesa das condições de vida e pela dignidade, que foi exemplar e demonstrou ao conjunto do proletariado que é possivel levantar a cabeça contra a opressão capitalista.

Por parte da CUT, numa atitude clara de que não tem nenhum compromisso em defender os interesses dos trabalhadores, a seguinte justificativa foi apresentada: "A CUT nega ter algo a ver com as entidades representativas dos controladores, sejam civis (Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Proteção ao Vôo), sejam militares (Associação Brasileira dos Controladores do Tráfego aéreo). Nenhuma delas é oficialmente filiada à CUT. Cerca de 80% dos Controladores são militares." O presidente da CUT, Artur Henrique por meio de sua assessoria, informou "que não falaria sobre o assunto porque a entidade não teria envolvimento algum com os personagens da crise aérea nacional".

Evidentemente que para nós isso não é surpresa alguma, pois os Governos, sejam eles de esquerda ou da direita, juntamente com os Sindicatos, nada mais são que instrumentos utilizados pela burguesia na manutenção dos seus interesses de classe exploradora. 

Os proletários, no Brasil e em qualquer lugar devem aprender a preço muito alto que ao contentar-se com as ditas liberdades democráticas, com promessas, de patrões e governantes, deixam espaço à burguesia nao somente para destruir seus movimentos de luta contra o sistema, como também desenvolver ampla ofensiva do capital, com o máximo de repressão, represálias, demissões e violência.

Outra lição da greve dos controladores é que a força real do movimento está na capacidade de buscar e alcançar a solidariedade de outros trabalhadores, dentro e fora do setor. Evitando cair nas falsas expressões de "solidariedade", tais como as da Conlutas, que as utiliza como trampolim eleitoral para transformar-se mais adiante no que hoje são a CUT e o PT.

O proletariado para atingir os seus verdadeiros objetivos necessita tirar os ensinamentos das suas próprias lutas, das lutas do conjunto da classe, eliminar toda e qualquer ilusão de que numa sociedade dividida em classes possa encontrar uma saída para a constante degradação das suas condições de vida.

Os controladores aéreos, apesar de estarem submetidos hoje aos piores vexames, não estão sozinhos; o conjunto do proletariado, que clama por uma vida digna, está com eles. 

CCI (21-04-2007)

Recente e atual: 

  • Luta de classe [12]

Reuniões públicas sobre o aniversário do início da onda revolucionária de 1917-23

  • 4195 leituras
 

Os ensinamentos essenciais da onda revolucionária de 1917-23

  • 4971 leituras
 

Dois aniversários recentes vêm dar testemunho das lutas heróicas das gerações passadas para transformar radicalmente o mundo:

  • o aniversário da revolução de fevereiro de 1917 na Rússia;
  • o aniversário do esmagamento, pelas forças nacionalistas do Kuomintang, da insurreição de Xangai na China em março de 1927;

O primeiro evento constitui o início de uma onda revolucionária mundial, em reação à Primeira Guerra mundial, para a derrubada do capitalismo e a instauração de uma sociedade sem classes sociais, sem exploração, sem fronteiras, sem guerras.

Resultado de uma série de derrotas da classe operária em diversos países, na Alemanha principalmente, seis anos depois, a dinâmica revolucionária mundial se tinha esgotado.

Assim a insurreição de Xangai constituiu o ultimo sobressalto da onda revolucionária.

O esgotamento da onda revolucionária desembocou progressivamente na pior das contra-revoluções que o proletariado tinha sofrido.

Esta apresentação tem como objetivo o destaque dos ensinamentos que se pode tirar do que constituiu a maior experiência do proletariado mundial, até hoje[1].

As questões seguintes merecem em particular (não só estas!) a nossa atenção:

  1. Será que esses dois fenômenos inéditos como a Guerra mundial e uma tentativa revolucionária mundial aconteceram por acaso? Será que estes acontecimentos poderiam ter ocorrido algumas décadas antes? Se não for o caso, quais são os fatores da situação mundial que determinaram estas perturbações sociais profundas?
  2. Qual é o significado do surgimento de uma nova forma de organização da classe operária, os conselhos operários?
  3. O que aconteceu ao mesmo tempo com o sindicalismo e o eleitoralismo?
  4. Quais foram os partidos que realmente defenderam os interesses da classe operária?
  5. Existem ainda hoje aquisições desta onda revolucionária mundial?

I - A significação das perturbações sociais profundas do começo do século XX

A fase imperialista do capitalismo no século XIX correspondeu ao seu maior desenvolvimento. Mas, ao mesmo tempo, continha os limites de tal desenvolvimento.

 No final do século XIX, o conjunto do mundo não capitalista já estava partilhado entre as antigas nações burguesas. Doravante, o acesso duma nação a novos territórios só podia se realizar em detrimento de seus rivais.

A Primeira Guerra mundial resultou da tentativa de uma nova partilha do mundo pelas potencias menos favorecidas deste ponto de vista, a Alemanha em primeiro lugar. Esta guerra foi a primeira manifestação, brutal, do fato que o capitalismo enfrentava contradições crescentes[2], arrastando a humanidade no horror de uma barbárie desconhecida na historia da humanidade.

A Guerra Mundial exprimiu o caráter mundial das contradições do capitalismo que a produziram. Ela significou que, a partir daí, este sistema passou a constituir uma ameaça para a civilização humana.

Assim, o capitalismo não era mais capaz de assumir um papel progressista de desenvolvimento das forças produtivas, pois tal desenvolvimento estava doravante travado por obstáculos crescentes e acompanhado pelo desencadeamento de uma barbárie desconhecida na história humana.

Para a vanguarda do movimento operário à época, tal mudança na vida da sociedade significava que o sistema tinha alcançado seu apogeu e entrava na sua fase de declínio histórico, ou de decadência.

Esta mudança na vida do capitalismo, passando de uma fase progressista de ascendência para uma fase de declínio histórico não era uma especificidade do capitalismo, mas uma característica comum de todas as sociedades de exploração que o antecederam.

Tal fenômeno expressava o conflito entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção, colocando na ordem do dia a necessidade de instauração de novas relações de produção.

Qual podia ser a classe social capaz de instaurar esta nova sociedade?

O marxismo já tinha identificado o proletariado como classe revolucionária na sociedade. Suas experiências no século XVIII já comprovaram esta potencialidade.

Pouco antes da Guerra Mundial, em 1905, o proletariado na Rússia reeditou de maneira mais explicita ainda. Surgiu na cena social como uma força autônoma na sociedade, organizada em conselhos operários, capaz de lutar contra a burguesia pelo poder.

A indignação profunda suscitada pela barbárie da Primeira Guerra Mundial se materializou sob a forma de uma onda revolucionária, colocando na ordem do dia da história a derrubada da burguesia.

A tomada do poder na Rússia demonstrou aos proletários do mundo inteiro que o estabelecimento da paz era impossível sem derrubar a classe dominante.

Pela primeira vez na historia, a classe operária tinha conseguido tomar o poder num país. Essa tomada do poder vitoriosa teve repercussões poderosas na classe operária dos outros países e constituiu um sinal da sublevação na Áustria, na Europa central, mais particularmente na Alemanha.

Assim esta época de decadência do capitalismo abria também a possibilidade material da revolução para a derrubada mundial do capitalismo. É a razão pela qual a Internacional Comunista (IC), no seu congresso de fundação, a chamou de "época das Guerras e das revoluções".

II - O surgimento dos conselhos operários

O surgimento dessa nova forma de organização, os conselhos operários, criados espontaneamente pela classe operária nas suas tentativas insurrecionais, reveste-se de uma grande importância.

Com efeito, os conselhos operários permitem assumir conjuntamente o caráter econômico e político da luta contra o capitalismo nas condições da nova época.

Em que consistem essas novas condições?

A evolução do capitalismo, com o conjunto das suas contradições, não permite mais, como antes, em satisfazer as reivindicações operárias por meio de reformas ou melhorias duradouras. Ao fazer isso, correria o risco de dificuldades enormes, em particular diante das necessidades das rivalidades econômicas e imperialistas.

Doravante, toda luta conseqüente, inclusive a base de reivindicações econômicas, tem como dinâmica uma confrontação, não com um só patrão, mas com o conjunto da burguesia organizada atrás do estado capitalista.

Tal luta precisa de um organismo que, ao contrario dos sindicatos, seja capaz de agrupar o conjunto da classe operária, e de unificá-la alem das diferenças entre categorias e setores.

A forma de organização em conselhos operários, com seu sistema de delegados eleitos pelas assembléias e revocáveis por elas, é a única a permitir o exercício do poder pela classe operária. Ela é a única que permite que, num período revolucionário, a evolução rápida da consciência das massas operárias se expresse na composição e orientação de suas instancias de centralização.

Outra característica importante: o surgimento dos conselhos operários nunca foi - nem pode ser - o produto de um trabalho anterior dos revolucionários para organizar os operários, como acontecia com a luta sindical.

Este traço reflete precisamente a aquisição pela classe operária de uma maturidade que não existia no século XIX no qual se constituira em classe. Este surgimento é o produto de uma situação de crise aberta do capitalismo fertilizada pela propaganda revolucionária.

Tudo isso não significa que os conselhos operários podem, na nova época de declínio do capitalismo, surgir em qualquer momento. Com efeito, a decadência do capitalismo, embora seja a "época das guerras e das revoluções", não apresenta permanentemente as condições da revolução. Como tivemos a possibilidade de constatá-lo, desde a primeira onda revolucionária mundial, não houve outra onda revolucionária.[3]

Mas o fato dos conselhos operários não poderem surgir no período atual não significa que tenha de esperar passivamente que cheguem as condições favoráveis, nem que tenha de voltar a utilizar os sindicatos.

Quando entram em luta, os operários se organizam em assembléia geral, salvo quando os sindicatos conseguem fazer com que não tenha nenhuma assembléia ou que tenha só um simulacro de assembléia abafada por eles.

Essa forma básica de luta, com eleição de delegados, é nada menos que a prefiguração dos futuros conselhos operários. Ela é perfeitamente adaptada para centralizar a luta e estendê-la.

O que a experiência histórica demonstra também é que a capacidade dos operários de se organizar em conselhos operários, não significa automaticamente que estes órgãos, quando nascem, sejam automaticamente dotados dum conteúdo revolucionário. O melhor exemplo disso é dado justamente pelo processo revolucionário de 1917 na Rússia, com o combate dos bolcheviques dentro dos conselhos a favor de uma orientação revolucionária.

III - O devir da luta sindical e do parlamentarismo na decadência do capitalismo

O que aconteceu com a luta sindical depois dos conselhos operários terem feito seu aparecimento?

Em 1905, ao mesmo tempo em que surgiram os conselhos operários, a classe operária criou um número muito importante de sindicatos que não existiam até então neste país. Foram arrastados pelo movimento e ficaram constantemente sob a dependência dos soviets.

Este posicionamento dos sindicatos "dentro do movimento da classe operária" foi quase uma exceção em relação ao que ia acontecer nessa nova época da vida do capitalismo. Esta exceção se reproduziu sob uma forma atenuada na revolução de 1917, na qual já alguns sindicatos, como o dos ferroviários, jogaram um papel reacionário.

A evolução real do sindicalismo se observa na maior parte dos países ocidentais desenvolvidos, como Alemanha, Grã-bretanha, França. Acontecia, nestes países, uma tendência dos sindicatos se inserir cada dia mais na gestão da sociedade através da sua participação em organismos vários.

A explosão da guerra conferiu a essa tendência seu caráter decisivo, colocando os sindicatos na obrigação de escolher explicitamente seu campo. Todos o fizeram nos países citados, traindo a classe operária, inclusive o sindicato sindicalista-revolucionário CGT na França.

Assim, durante a guerra mundial, os sindicatos foram encarregados de arregimentar o proletariado para o esforço de guerra, tanto nas fábricas como nos campos de batalha.

Tal traição dos interesses do proletariado se repetiu diante da onda revolucionária contra a qual os sindicatos se opuseram com toda sua energia.

Assim, não somente a classe operária fez surgir novos órgãos de luta adaptados às necessidades da sua luta no período de decadência do capitalismo, porém, doravante, o proletariado tinha de enfrentar os sindicatos integrados ao estado capitalista.

O Primeiro congresso da IC tinha apontado esta realidade, notadamente através das intervenções dos delegados da Alemanha e da Suíça. Estas surpreenderam bastante os delegados russos que, no final das contas, reconheceram que o caso da Rússia não podia ser generalizado.

Mas, na realidade, provavelmente poucos delegados entenderam a causa da exceção russa: O absolutismo do Estado russo, por conta de seu caráter atrasado, anacrônico, não permitia os sindicatos integrar-se no seu seio, a serviço da classe dominante, contrariamente ao que ocorria nos países ocidentais.

É assim que uma ferramenta da luta de classe no século XIX, não somente perdeu toda utilidade para o proletariado, nas novas circunstanciais do declínio do capitalismo, porem se tornou um instrumento da classe dominante para enfrentar a luta de classe.

Tal implicação da mudança de período histórico afetou também o parlamentarismo.

A questão parlamentar foi claramente analisada pela IC no contexto da evolução do capitalismo, da sua fase ascendente à sua fase decadente. As Teses do Segundo Congresso são tão claras que vale pena citá-las:

  • "A atitude da IIIª Internacional (IC) com respeito ao parlamentarismo não é determinada por uma nova doutrina porém pela modificação do papel do próprio parlamentarismo";
  • "Na época que antecedeu, o parlamentarismo, instrumento do capitalismo em via de desenvolvimento, trabalhou, num certo sentido, pelo progresso histórico."
  • "Nas condições atuais, caracterizadas pelo desencadeamento do imperialismo, o parlamento se converteu em um instrumento da mentira, da fraude, da violência, da destruição"
  • "as reformas parlamentares (...) perderam toda importância prática para as massas trabalhadoras"
  • "Para os comunistas, o parlamento não pode ser atualmente, em nenhum caso, o teatro de uma luta por reformas e pela melhoria da situação da classe operária, como sucedeu em certos momentos da época anterior"

Aí vem uma pergunta.

Porque esta caracterização clara do sindicalismo e do parlamentarismo não se impõe ainda hoje diante do movimento operário?

A resposta reside na dinâmica de refluxo da onda revolucionária mundial e suas implicações sobre o conjunto da classe e de sua vanguarda.

IV - Partidos proletários e partidos burgueses

Quais foram, nessas circunstâncias, os partidos que realmente defenderam os interesses da classe operária?

Este período, entre o início do século XX e os anos 1920, deu lugar a um conjunto de fenômenos desconhecidos até então quanto a evolução das organizações políticas da classe operária.

Da mesma maneira que para os sindicatos, os partidos da Segunda internacional foram colocados, diante da Primeira Guerra mundial, na obrigação de escolher explicitamente seu campo.

A ala direita da social-democracia, corrompida pelo oportunismo, traiu abertamente enquanto a ala marxista ficou fiel ao marxismo e o internacionalismo, e encabeçou a luta revolucionária em todos os países.

A maioria dos partidos social-democratas, incluindo os mais importantes deles, traiu na primeira hora do conflito[4].

Os partidos social-democratas, passados ao campo da burguesia, como os qualificava Lênin, constituíram a ponta de lança da ofensiva da burguesia contra os revolucionários e as tentativas crescentes do proletariado de reagir diante da barbárie da Guerra.

Uma vez passados para o campo da burguesia, foi em todas circunstancias que, a partir de então, se empenharam a defender o sistema.

A Social-democracia contra a revolução na Rússia

Assim que surgiram, os soviets na Rússia foram investidos pelos socialista-revolucionários e os mencheviques. Estes últimos, na sua maioria, tinham traído durante a guerra. Entretanto beneficiavam ainda da confiança de setores importantes da classe operária. Por conta disso, conseguiram serem eleitos na direção do executivo dos sovietes. A partir desta posição estratégica, tentaram por todos os meios sabotar os sovietes, destruí-los.

Diante disso, a atividade dos bolcheviques consistia em desenvolver a consciência da classe operária tornando explicito o que as massas já estavam fazendo e qual era a perspectiva de seu movimento. Graças a este trabalho dos bolcheviques, todos os "falsos amigos" da classe operária, os traidores, os defensores do capital nacional, foram desmascarados, abrindo assim o caminho para a insurreição vitoriosa.

A Social-democracia contra a revolução na Alemanha

Pode-se dizer que a social-democracia alemã salvou a dominação capitalista, neste país e no mundo inteiro, por conta do papel central do proletariado alemão.

Pela primeira vez na historia, em outubro de 1918, a burguesia chamou um partido originário da classe operária, que recentemente tinha passado ao campo da burguesia, para assumir, diante de uma situação revolucionária, a proteção do estado capitalista contra a luta de classe.

Assim que a social-democracia chegou ao poder, proclamou "A república livre de Alemanha". Sua estratégia era baseada sobre a compreensão de que só poderia vencer o movimento o enfraquecendo por dentro. Para isso, ela criou seu próprio conselho operário e de soldados, formado por funcionários da Social-democracia. A tática funcionou, dividindo os operários, semeando a desorientação nas suas fileiras até o momento propício da repressão. Esta foi liderada pelo social-democrata, Noske à cabeça do "corpos francos". Parte destes participará mais tarde das milícias do fascismo. Na repressão em Berlin de janeiro 1919, mataram Rosa Luxemburgo, Karl Liebnecht e Leo Jogishe mais tarde, decapitando assim o movimento.

A partir deste momento, o proletariado assumiu ainda lutas importantes como na Alemanha novamente e na Itália. Entretanto a dinâmica da onda revolucionária tinha se revertido, deixando cada vez mais espaço para a contra-revolução se desenvolver.

O desenvolvimento desta contra-revolução em escala mundial se expressou na Rússia através da degeneração do Estado que tinha surgido apois a revolução. O aparelho estatal constituiu a nova forma da burguesia encarregada de explorar a classe operária e de gerir o capital nacional.

O partido bolchevique, depois de ter sido a vanguarda da revolução em 1917, se identificou progressivamente com o Estado e se transformou em um fator ativo de sua degeneração.

No seu seio, os melhores combatentes da revolução foram progressivamente descartados das suas funções de responsabilidade, excluídos, exilados, prisioneiros, e finalmente executados por uma câmara de burocratas.

Esta encontrou em Stalin seu melhor representante. Sua razão de ser não era defender os interesses da classe operária, mas, ao contrário, preservar e consolidar a nova forma de capitalismo que era instaurada na Rússia. Por isso, exerceu sobre ela, através da mentira e da repressão, a mais ignóbil das ditaduras.

Os outros partidos da Internacional, os partidos "comunistas", seguiram o mesmo caminho.

V - Quais aquisições da onda revolucionária?

O Estado Russo cada vez menos se identificava com a ditadura do proletariado, e a IC (Internacional comunista) deixava de servir a luta internacional pelo comunismo e se tornava um instrumento deste estado no mundo.

Assim, por conta da mudança progressiva de sua função e do refluxo da onda revolucionária mundial, a IC podia cada vez menos constituir um instrumento de clarificação política.

Enquanto seus dois primeiros congressos permitiram avanços reais sobre questões cruciais como os sindicatos, o parlamentarismo e o eleitoralismo, já no terceiro podia se perceber uma mudança explícita de dinâmica.

Os Terceiro e Quarto congressos da Internacional Comunista começaram a deslizar pela perigosa ladeira da política da "frente única". Segundo essa, em certas circunstanciais, o proletariado e suas minorias comunistas deveriam se aliar com a social-democracia. Que regressão oportunista enquanto há pouco a vanguarda revolucionária dizia, com toda razão, que social-democracia tinha se passado para o campo da burguesia!

É assim que a maior clareza da IC regrediu para finalmente erigir como ensinamentos os piores erros da revolução. São esses que foram - e são ainda hoje - transmitidos às gerações de proletários.

Quanto às verdadeiras lições da onda revolucionária, coube às minorias revolucionárias que lutaram contra a degenerescência dos partidos comunistas de formular e transmiti-las.

Começamos esta apresentação falando da insurreição de Xangai em 1927. Um fator da sua derrota foi justamente a política oportunista da IC, de aliança com frações nacionalistas da burguesia de certos países. Em particular, houve uma tentativa deste tipo iniciada em 1922 na China, entre o Partido Comunista Chinês e o Kuomintang. Disso resultaram ilusões por parte dos operários chineses sobre esta fração nacionalista da burguesia, enquanto todas as frações burguesas são igualmente seu inimigo. Foi o que comprovou tragicamente o esmagamento do proletariado chinês pelo Kuomintang, cinco anos depois.

Trotsky denunciou em termos muito claros esta política da IC. Entre os primeiros combateu também a tese de Stálin do socialismo num só país.

Entretanto, o seu apego às pressupostas aquisições operárias do novo estado russo o impediu de assumir realmente um papel de oposição à degeneração dos partidos comunistas. Pior, a corrente trotskista apoiou à política de Frente única.

Acabou, por sua vez, traindo o internacionalismo proletário através da defesa de um campo imperialista na Segunda guerra mundial, o da Rússia e dos aliados, contra o da Alemanha.

Este papel de continuidade do marxismo foi assumido pelas frações das Esquerdas comunistas russa, alemã, holandesa, italiana, etc. Não sobrou nada de aquisições operárias na Rússia depois da vitória da contra-revolução, enquanto a contribuição destas esquerdas comunistas à historia da classe operária constitui um aporte insubstituível à preparação dos futuros combates da classe.

(Março de 2007)

[1] A classe operária é, na história, a única classe revolucionária cujo caminho para a vitória é marcado por derrotas. Uma responsabilidade essencial é de fazer com que estas derrotas, como também todas suas experiências, traguem ensinamentos que permitirão vencer numa próxima tentativa revolucionária.

[2] Neste contexto, assistimos depois dos anos 20 a uma tendência crescente à saturação dos mercados solváveis, contexto no qual a queda da taxa de lucro se manifesta plenamente.

[3] Neste contexto, assistimos depois dos anos 20 a uma tendência crescente à saturação dos mercados solváveis, contexto no qual a queda da taxa de lucro se manifesta plenamente.

[4] Isso tomou varias formas segundo os países. Na França, por exemplo, houve um governo de união sagrada incluindo socialistas. Alguns raros partidos social-democratas se mantiveram valorosamente sobre posturas internacionalistas, como o partido social-democrata sérvio.

Relatório das discussões sobre o tema da onda revolucionária de 1917-23

  • 3710 leituras

Como se pode constatar na leitura do texto introdutivo, a apresentação foi essencialmente histórica, o que se justifica pelo fato que existe uma responsabilidade dos revolucionários em suscitar nas novas gerações, estas que terão um papel insubstituível nos futuros combates de classes, a vontade de reapropriação das experiências das gerações passadas para transformar radicalmente o mundo.

Deste ponto de vista, a reação dos participantes fortaleceu nossa convicção que a maturação da situação, determinada pelo agravamento da crise do capitalismo e a tendência a erosão de algumas mistificações burguesas como a mentira sobre um futuro possível no seio do capitalismo, originam um processo ainda embrionário de politização dentro de uma minoria do proletariado assim como uma tendência de certas lutas em exprimir características significativas dos grandes movimentos da classe operária: solidariedade, surgimento de assembléias massivas abertas a todos os operários, existência de assembléias soberanas, capazes de preservar a independência da luta.

Uma maioria das intervenções refletiu uma vontade real de conhecer e compreender o passado da nossa classe enquanto outras demonstraram um interesse para entender como o desenvolvimento da situação atual poderia resultar num processo revolucionário. Relatamos em seguida alguns questionamentos que se expressaram nestas duas reuniões, sem a pretensão nem a possibilidade de sermos exaustivos[1].

Os conselhos operários são a criação espontânea da classe operária ou da luta?

Os conselhos operários são o produto da luta de massa do proletariado. Assim, ao contrario da forma sindical de luta, é a luta que cria a organização geral dos operários e não o inverso. Por sua vez, quando criados, os conselhos operários constituem um fortalecimento da luta, pois aumentam assim sua força de atração sobre o conjunto do proletariado, e permitem a centralização e a unidade do movimento.

Qual é, nas circunstanciais atuais, o papel do bloqueio da produção no fortalecimento da luta contra a burguesia?

À diferença da maioria das lutas sindicais do século XIX, as do século XX não encaram um patrão isolado que tem muito receio da ocorrência de uma luta duradoura paralisando a sua produção, mas têm diante delas a potencia do conjunto do estado capitalista. A partir deste momento, não é mais a luta dentro de um setor isolado que constitui uma ameaça real para o estado e a burguesia mais a união crescente dos proletários além das divisões corporativistas, setoriais, ... no seio de uma luta massiva. Por conta disso, a paralisação da produção não joga o mesmo papel de que no século XIX. Alem disso, não é cada setor da classe operária que detêm esta arma do bloqueio da produção, como o ilustra, por exemplo, o caso dos desempregados cuja luta é também essencial. Estas considerações não significam que o bloqueio da produção não constituía mais uma arma do proletariado na sua luta contra a burguesia; continua sendo, mas dentro de condições diferentes como o ilustra a luta recente dos estudantes na França, na primavera européia de 2006. As jovens gerações, já proletarizadas pois trabalhando para assumir sua sobrevivência, ou futuros proletários, se mobilizaram contra uma reforma do governo destinada a acentuar a precariedade das condições de trabalho do conjunto da classe operária. Durante quase dois meses, a luta suscitou expressões de solidariedade por parte de um número crescente de proletários participando em manifestações de ruas massivas. Finalmente o governo recuou, não por conta da paralisação das universidades, mas por medo que a classe operária, e notadamente a classe operária industrial, entrasse em massas em luta e paralizasse assim a produção. Entretanto não é sempre e em todas circunstancias que o proletariado deve paralisar a atividade social como o ilustra o fato que o comitê de greve na luta massiva em Polônia 1980 insistiu para que os transportes não parassem para não travar o desenvolvimento da luta.

Como teria sido possível mudar o curso para a derrota da onda revolucionária mundial?

A apresentação tinha colocado em evidência como a onda revolucionária mundial, depois da tomada do poder pelo proletariado na Rússia, não tinha conseguido o mesmo êxito nos países em que aconteceram sublevações proletárias. Cada uma destas tentativas foi esmagada pela burguesia, e a primeira derrota importante que sofreu o proletariado na Alemanha em janeiro de 1919 foi decisiva, dando um golpe na dinâmica revolucionária mundial que, a partir deste momento, se inverteu, apesar das outras batalhas que livrou novamente o proletariado na Alemanha. Na realidade, o devir da revolução mundial não se decidia na Rússia, mas na sua capacidade de estender a outros países. Nossa resposta desenvolveu o que já tinha sido dito na apresentação, colocando em evidencia que a derrota na Alemanha resultou da capacidade da social-democracia, depois de ter traído o internacionalismo proletário frente à Primeira Guerra mundial, de enganar novamente uma fração significativa do proletariado ao encabeçar o movimento de revolta contra a sociedade burguesa. Podemos acrescentar que, dentro de um período tão curto, o proletariado não foi capaz de assimilar todas as conseqüências de uma traição por parte de partidos originários da classe operária, em particular o fato que tal traição era irreversível. De maneira mais geral, são todas as conseqüências da nova época de decadência do capitalismo que proletariado não tinha conseguido assimilar, se iludindo sobre o fato de que o fim desta guerra, provocada em toda consciência pelos principais países em guerra para eliminar uma causa essencial de extensão da revolução, poderia ter significado o fim das guerras e da barbárie.

Será que existe uma tendência espontânea dos partidos à traição dos interesses operários do proletariado?

Esta questão é legitima visto que, como o sublinhamos na apresentação, os partidos socialistas traíram o internacionalismo proletário e a classe operária diante da Primeira Guerra mundial. Os partidos comunista degenerescentes fizeram a mesma coisa quando foram os primeiros em preparar ideologicamente o proletariado para a Segunda Guerra mundial, e a corrente trotskista igualmente quando se alinhou, nesta guerra, ao campo imperialista da Rússia e das potencias democráticas contra o campo da Alemanha. Quando um partido originário da classe operária trai, isso significa uma vitória do inimigo de classe, a burguesia. Tal traição resulta essencialmente do peso da ideologia dominante no seio das organizações do proletariado se expressando por um desenvolvimento do oportunismo dentro delas. Pode-se dizer que existe uma tendência "natural" das idéias, no seio da sociedade burguesa onde domina a ideologia desta classe, a ser influenciadas pela ideologia burguesa. A teoria do proletariado, baseando-se sobre o marxismo consiste justamente em um esforço teórico para definir os fundamentos, as perspectivas e os meios da luta para uma sociedade sem classes, livrando-se da influencia da ideologia burguesa como de todos os preconceitos herdados das sociedades de exploração do passado. Se a traição de um partido proletário significa sua derrota diante do oportunismo, a vitória deste último não é total, pois sempre houve minorias de esquerda que combateram a degenerescência dos partidos proletários e, ao mesmo tempo, contribuíram muito para o desenvolvimento da teoria revolucionária e da preparação dos futuros combates de classe. Foi o caso da esquerda dos partidos social-democratas com militantes como Rosa Luxemburgo, Lênin, Pannekoek, Gorter, ... Foi o caso das esquerdas comunistas italianas, alemãs, holandesas, ... que se destacaram da degenerescência dos partidos da IC e seu trabalho constitui um aporte essencial ao programa revolucionário.

Qual foi o papel do anarquismo na história da luta de classe?

Trata-se de uma questão muito ampla que, no contexto de uma reunião pública, só é possível dar uma resposta limitada. Pode-se dizer que há duas épocas do anarquismo. Uma primeira em que constituía uma corrente operária ao lado de outros (blanquismo, marxismo) no seio da primeira internacional, por exemplo. Nesta primeira fase, participou também de uma certa maneira em animar sindicatos sindicalista-revolucionários - muito embora com fraquezas corporativistas importantes - como a CGT na França ou a CNT na Espanha. Uma parte dos militantes anarquistas participou ativamente da primeira onda revolucionária mundial e geralmente se tornaram marxistas, aderindo à Terceira internacional. Mas não foi o caso de todos, pois uma parte significativa dos anarquistas, diante da primeira guerra mundial, fez como os social-democratas, apoiando à burguesia nacional e traindo o internacionalismo proletário. A traição aberta da CNT espanhola não aconteceu diante da Primeira Guerra mundial que não tinha afetado a Espanha, mais diante dos acontecimentos de 1936 e 1937. Em Julho 1936, os operários se sublevaram espontaneamente contra o golpe de Franco, assaltando de mãos vazias os quartéis do exercito e se armando deste jeito, sem que os soldados de Franco opusessem uma resistência real, eles também operários ou camponeses. Na realidade, a força que impediu os operários sublevados a continuarem sua ofensiva contra o estado burguês era constituída pelos traidores social-democratas, stalinistas e os anarquistas, estes últimos argumentando que este Estado não tinha nada a ver com um Estado clássico, e que combatê-lo só enfraqueceria a luta necessária contra o fascismo, e também que seria muito mais subversivo desenvolver o movimento de coletivização das empresas. Em maio de 37, quando o proletariado de Barcelona se sublevou, ele não tinha mais a mesma força como em Julho de 36 por conta da desorientação ideológica resultando da propaganda dos social-democratas, dos stalinistas e dos anarquistas, e foi sem dificuldade real que o governo de frente popular pôde massacrá-lo. Assim, os anarquistas se destacaram como os servidores mais radicais e enganadores da classe:

  • criando a ilusão que o estado burguês, no qual participavam os ministros anarquistas, tinha desaparecido;
  • criando a ilusão que as coletivizações correspondiam a uma socialização enquanto estas eram perfeitamente supervisionadas pelo estado burguês e constituíram um meio de obter dos operários que eles aceitassem a intensificação da exploração para satisfazer às necessidades do esforço de guerra;
  • enganando os operários sobre o fato que eles teriam que tomar parte na guerra entre dos campos igualmente burgueses, o da democracia e ou outro do fascismo.

Quando a CCI critica a política de Frente única, falta a contextualização, notadamente a necessidade de fazer alianças contra o desenvolvimento do perigo fascista

A política de frente única constitui uma forma do oportunismo que se desenvolveu no seio da vanguarda revolucionária com o refluxo da onda revolucionária mundial. Para não se distanciar das massas que tendiam a se afastar da revolução, a IC promoveu a política de "ir à massas" através de alianças com partidos como a social-democracia. Um outro argumento a favor desta política invocava a necessidade de constituir uma frente ampla incluindo partidos democratas burgueses, diante do desenvolvimento do fascismo. Isso foi uma política desastrosa porque pregava uma aliança com um inimigo mortal do proletariado: a social-democracia; esta tinha traído a classe operária diante da guerra mundial, tinha derrotado o movimento revolucionário na Alemanha e mandado assassinar os lideres operários como Rosa Luxemburgo, Karl Liebnecht e Leo Joguishes, salvando neste país a dominação capitalista diante da revolução. Pior ainda, ao designar o fascismo como o pior inimigo da classe operária, esta política tendia a substituir a luta de classes com a luta pela defesa da democracia contra o fascismo. Tal política desembocou no alistamento de uma fração significativa dos proletários no campo dos aliados contra o campo imperialista oposto, o da Alemanha e do Japão. Todos os antifascistas justificam tal abandono pelo proletariado de seu terreno clássico de luta de classes, internacionalista e contra todas as frações da burguesia como na primeira onda revolucionária mundial, pelas atrocidades que cometeu o fascismo e seu caráter ditatorial. Nenhuma entre estas duas características pode ser negada, mas também nenhuma vale, pois a democracia é uma forma da ditadura do capital sobre os explorados e não há uma fração da burguesia que escape da dinâmica bárbara do capitalismo decadente. Os crimes do nazismo durante a Segunda Guerra mundial são muito conhecidos, os das grandes democracias muito menos. Os campos de concentração foram uma expressão dos primeiros. Mas pouco se divulga que as grandes potências democráticas conheceram a existência destes campos desde o início e nada fizeram para impedir sua utilização, como poderiam ter feito, por exemplo, pelo bombardeio das vias de comunicação dando acessos a estes. Mais ainda. Sob iniciativas de organizações judiais para conseguir que presos judeus dos campos de concentração fossem trocados por caminhões americanos, negociações tiveram lugar entre representantes dos campos alemão e americano. Não resultaram em nada, pois não somente a burguesia americana não queria entregar caminhões, mas também não queria acolher dezenas de milhares de judeus, inclusive sem ter que dar nada em compensação. Quanto aos bombardeios americanos e ingleses das cidades alemãs, quando a guerra já estava perdida para a Alemanha, eles tiveram cada vez mais como objetivo de aterrorizar a população, de exterminá-la e, no seu seio, a classe operária, para evitar que aconteçam sublevações operárias. Assim, em pouco tempo morreram centenas de milhares de pessoas nas cidades de Hamburgo e Dresde por conseqüência das bombas incendiarias dos aliados.

O que a CCI pensa da quarta internacional?

A fundação das três primeiras internacionais sempre correspondeu a um movimento de desenvolvimento da luta de classe. Cada uma destas internacionais correspondeu também a progresso na concepção da luta política do proletariado. Assim, a segunda, se dedicava ao aspecto político da luta do proletariado, ao contrario da primeira que assumia ao mesmo tempo luta política e luta econômica. A terceira soube se adaptar às novas condições da luta revolucionária com um partido minoritário de vanguarda enquanto os partidos da segunda internacional eram partidos de massas.

As "leis" que orientaram à constituição da quarta Internacional, em 1938, não têm nada a ver com as das três primeiras Internacionais. Foi um ato totalmente voluntarista por parte de Trotsky e de seus seguidores, num período que não tinha nada de revolucionário, mas muito pelo contrario de derrota profunda da classe operária com um peso ideológico cada vez mais importante da contra-revolução, o que se materializou pouco depois pelo desencadeamento da Segunda Guerra mundial. Alem disso, foi um ato totalmente dogmático, incapaz de se basear sobre o que de melhor orientou fundação da terceira internacional, e que resultou de uma concepção alheia ao marxismo atribuindo as dificuldades do movimento operário à "crise de sua direção revolucionária". Assim, para o trotskismo, só bastava colocar a direção correta para que o movimento operário se encaminhe para a revolução.

Até que ponto a luta para as reformas participa ou não do processo para a revolução

Em qualquer período da vida do capitalismo, a classe operária teve de se defender contra uma tendência natural do capitalismo em ampliar suas condições de exploração. A diferença se situa no resultado desta luta. Enquanto na fase de ascendência do capitalismo, tal luta podia desembocar na obtenção de reformas duradouras, já não é mais o caso na fase de decadência na qual toda luta conseqüente da classe operária coloca em questão, pelo menos de maneira embrionária, a existência do sistema. É assim que, nesta época, as maiores manifestações desta luta de defesa de suas condições pela classe operária a levaram a enfrentar o conjunto da burguesia representada pelo estado capitalista e a obrigaram a se organizar para esta tarefa, como foi ilustrado através do surgimento dos conselhos operários em 1905 na Rússia. Neste contexto, a responsabilidade dos revolucionários é de colocar em evidência que não há mais possibilidade de melhoria das condições de vida sob o capitalismo, e que , diante da crise mortal do capitalismo, a classe operária não vai ter outra alternativa, senão desenvolver cada vez mais suas lutas. Diante da única perspectiva de barbárie que este sistema decadente pode oferecer a humanidade, os revolucionários devem também evidenciar que a única classe na sociedade capaz de derrubar o capitalismo para instaurar uma outra sociedade é o proletariado.

O que fazer com o sindicalismo e o parlamentarismo para impedi-los de travar a luta de classe?

O proletariado mundial não se submete à lei da deterioração constante de suas condições de vida, resultando do agravamento da crise mundial. Por conta disso, ele vai necessariamente ampliar suas lutas. É óbvio que a burguesia não ficará de braços cruzados diante disso como o demonstram todas suas manobras contra a luta de classe, desde que o proletariado voltou a lutar em escala internacional a partir de maio de 68. Contra esta, ela vai continuar utilizando todos os meio à sua disposição e em particular os órgãos do estado capitalista que são os sindicatos e a mistificação eleitoral que vão constituir ainda travas ao desenvolvimento da luta e da consciência. Entretanto, ao serem utilizadas repetidamente contra a classe operária, essas armadilhas da burguesia vão inelutavelmente perder progressivamente sua eficácia enquanto a classe operária vai desenvolver a confiança na suas próprias forças. Nesse processo, os revolucionários têm a papel da maior importância.

No último relatório que fizemos de uma reunião pública numa universidade brasileira[2] notamos: "um interesse crescente das novas gerações para um futuro de luta de classe que recusa a miséria material, moral e intelectual deste mundo em decomposição". Estas duas últimas reuniões não desmentiram tal tendência que se fortalece por um interesse crescente para a história da luta da nossa classe e dos ensinamentos que podem ser tirados deste combate.

 


 

[1] Por exemplo, não vamos falar de novo de questões como "a natureza de classe dos movimentos altermundialistas", "o papel do sindicato Solidarnosk na Polônia em 1980" que são tratadas em diversos textos de nosso site em português

[2] "A conjuntura mundial e as eleições [26]".

Saudação à criação de um núcleo da CCI no Brasil

  • 3648 leituras
 

Informamos aos nossos leitores da criação de um núcleo da CCI no Brasil.

Trata-se para nós de um acontecimento de grande importância que vem concretizar o desenvolvimento da presença política da nossa organização no país mais importante da América latina, país que conta as maiores concentrações industriais desta região do mundo, as quais são também entre as mais importantes na escala mundial.

Existe também neste país um meio de elementos em busca de posições revolucionarias, assim como grupos políticos proletários. Entre estes, já assinalamos na nossa imprensa e no nosso site em português a existência da Oposição Operária (OPOP) a propósito dos acontecimentos seguintes: celebração de reuniões públicas comuns e realização conjuntamente de uma tomada de posição sobre a situação social; publicação no nosso site em português do relatório de um debate entre nossas duas organizações sobre o materialismo histórico; publicação no nosso site de alguns textos da OPOP que consideramos particularmente interessantes. Expressão deste interesse recíproco entre nossas organizações, OPOP também participou no ano passado, como grupo convidado, dos trabalhos do XVIIº congresso da nossa secção na França e este ano do XVIIº congresso internacional da CCI.

Assinalamos também e existência no estado de São Paulo de um grupo em constituição, influenciado pelas posturas da Esquerda comunista, com o qual já estabelecemos relações políticas regulares, incluindo a celebração de uma reunião publica comum.

Esperamos obviamente que a colaboração com estes grupos seja a mais estreita e frutífera. Tal perspectiva vem ao encontro da nossa vontade de procurar desenvolver especificamente a presença política da CCI no Brasil, pois a nossa presença permanente neste país permitirá que se desenvolva ainda mais a colaboração entre nossas organizações, visto que entre nosso núcleo e OPOP existe uma longa história, feita de confidencia e respeito mútuo.

A criação do nosso núcleo é a concretização de um trabalho iniciado há mais de 15 anos e que se intensificou nestes últimos anos através a tomada de contato com diferentes grupos e elementos, a celebração de reuniões públicas em várias cidades, das quais algumas em certas universidades suscitaram um grande interesse por parte de uma assistência numerosa. Não se trata para nós de um termo, mas de uma etapa significativa no desenvolvimento da presença das posições da Esquerda comunista no continente sul-americano. Longe de constituir uma exceção brasileira, este evento faz parte do mesmo fenômeno de aparecimento de grupos no mundo inteiro e que é o produto, no seio de uma dinâmica de retomada dos combates de classes em escala internacional, da tendência da classe operária a dar nascimento a minorias revolucionarias.

CCI (Junho de 07)

URL de origem:https://pt.internationalism.org/cci/200702/128/icconline-2007

Ligações
[1] https://pt.internationalism.org/tag/1/2/decad%C3%AAncia-do-capitalismo [2] https://pt.internationalism.org/tag/2/20/crise [3] https://pt.internationalism.org/icconline/2007/leninismo-e-organizacao [4] https://authority-solutionsr-austin.jimdosite.com/ [5] https://www.yahoo.com [6] http://www.leftcom.org/en [7] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199707/1226/polemica-hacia-los-origenes-de-la-cci-y-del-bipr-i-la-fraccion-ita [8] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199710/1219/polemica-hacia-los-origenes-de-la-cci-y-del-bipr-ii-la-formacion-d [9] https://es.internationalism.org/revista-internacional/197704/2051/apuntes-para-una-historia-de-la-izquierda-comunista [10] https://es.internationalism.org/cci/200602/539/espana-1936-franco-y-la-republica-masacran-al-proletariado [11] http://www.sntpv.com.br/principal.php [12] https://pt.internationalism.org/tag/2/19/luta-de-classe [13] https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista [14] https://pt.internationalism.org/tag/1/6/Organiza%C3%A7%C3%A3o-revolucionaria [15] https://pt.internationalism.org/tag/1/9/Esquerda-do-capital [16] https://es.internationalism.org/ap/2007/178_unidos [17] https://pt.internationalism.org/icconline/2006_estudiantes_franca [18] https://pt.internationalism.org/tag/2/24/movimento-dos-estudantes-na-fran%C3%A7 [19] http://www.nacos-br.org [20] https://pt.internationalism.org/tag/1/10/Autonomia-do-proletariado [21] https://pt.internationalism.org/tag/5/38/brochuras [22] https://pt.internationalism.org/tag/1/3/Heran%C3%A7a-da-Esquerda-comunista [23] https://pt.internationalism.org/tag/1/8/Revolu%C3%A7%C3%A3o-russa-alem%C3%A3 [24] http://www.moreira.pro.br/pagcent.htm [25] http://www.moreira.pro.br/classcent.htm [26] https://pt.internationalism.org/icconline/2006/eleicoes