Há aproximadamente três anos, certos indivíduos ou grupos anarquistas e a CCI tem derrubado as barreiras que os separam, atrevendo-se a discutir de forma aberta e fraternal. Rompendo com a indiferença ou o rechaço recíproco, a priori e sistemático, de anarquismo para marxismo e vice-versa, deram lugar a uma vontade de discutir, de compreender as posições do outro e de delimitar honradamente os pontos de convergência e de divergência.
No México, este novo estado de espírito permitiu a redação comum de um panfleto assinado por dois grupos anarquistas (o GSL e o PAM)[1] e uma organização da Esquerda Comunista (a CCI). Na França, recentemente, a CNT-AIT de Toulouse convidou a CCI para realizar uma apresentação em uma das suas reuniões públicas [2]. Na Alemanha também, os laços começam a desenvolver-se.
Sobre a base dessa dinâmica, a CCI tem iniciado um trabalho de fundo sobre a questão da história do Internacionalismo dentro do movimento anarquista. Publicamos ao longo do ano de 2009 toda uma série de artigos intitulados Os anarquistas e a guerra [3]. Nosso objetivo foi mostrar que em cada conflito imperialista, uma parte dos anarquistas tem tratado de evitar a armadilha do nacionalismo e defender o internacionalismo proletário. Também mostrar que esses camaradas estavam dispostos a continuar lutando pela revolução e pelo proletariado internacional embora ao seu redor se desencadeava o chauvinismo e a barbárie guerreira.
Quando se conhece a importância que a CCI atribui ao Internacionalismo, verdadeira fronteira que delimita os revolucionários que lutam realmente pela emancipação da humanidade dos que traem o combate do proletariado, esses artigos são a evidência não somente de uma crítica sem concessões dos anarquistas belicistas, que apoiaram a guerra, mas, sobretudo, uma saudação aos anarquistas internacionalistas!
Entretanto nossa intenção não tem sido bem percebida. Esta série foi recebida momentaneamente com uma certa frieza. De um lado, os anarquistas viram um ataque em série contra seu movimento. Do outro, os simpatizantes da Esquerda Comunista e da CCI não têm compreendido nossa vontade de "aproximação aos anarquistas" [4].
Para além dos deslizes cometidos nos nossos artigos, que podem ter "ofendido" alguns entre eles [5], estas críticas aparentemente contraditórias têm de fato a mesma raiz. Revelam a dificuldade de ver, além das divergências, os elementos essenciais que aproximam os revolucionários.
Os que se reclamam da luta pela revolução são tradicionalmente classificados em duas categorias: os marxistas e os anarquistas. Há, com efeito, divergências muito grandes que os separam: centralismo / federalismo; materialismo / idealismo; "período de transição" ou "abolição imediata do estado"; reconhecimento ou denúncia da Revolução de Outubro de 1917 e do Partido Bolchevique...
Todas essas questões são efetivamente muito importantes. É nossa responsabilidade não escamoteá-las e debatê-las abertamente. Porém, por outro lado, não delimitam dois campos. Concretamente, nossa organização que é marxista, considera que luta pelo proletariado ao lado dos militantes anarquistas internacionalistas e frente aos chamados partidos "comunistas" e maoístas (que, no entanto, se proclamam também marxistas). Por quê?
Dentro da sociedade capitalista, existem dois campos fundamentais: o da burguesia e o da classe operária. Nós denunciamos e combatemos todas as organizações políticas que pertencem ao primeiro. E discutimos, às vezes vivamente, mas sempre fraternalmente, e tratamos de colaborar com os membros do segundo. Desse modo, sob o rótulo de "marxista" se escondem organizações autenticamente burguesas e reacionárias; do mesmo modo sob o rótulo de "anarquista"!
Não se trata de pura retórica. A história está repleta de exemplos de organizações "marxistas" ou "anarquistas" que tem jurado defender a causa do proletariado para imediatamente apunhalar pelas costas. A social-democracia alemã se dizia marxista em 1919, ao mesmo tempo que assassinava Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht e milhares de operários. Os partidos stalinistas abateram sanguinariamente as insurreições operárias em Berlim em 1953 e na Hungria em 1956 em nome, também, do "comunismo" e do "marxismo" (na realidade pelo interesse do bloco imperialista dirigido pela URSS). Na Espanha, em 1937, os dirigentes da CNT participando do governo, serviram de garantia aos verdugos stalinistas que massacraram e reprimiram sanguinariamente milhares de revolucionários... anarquistas! Atualmente na França, por exemplo, a mesma denominação "CNT" abriga duas organizações anarquistas, uma com posições autenticamente revolucionárias (CNT-AIT) e outra puramente "reformista" e reacionária (CNT Vignoles [6]).
Descobrir os falsos amigos que se escondem atrás dos "rótulos" é vital.
Porém não temos de cair na armadilha contrária e acreditar-se os únicos no mundo, os detentores exclusivos da "verdade revolucionária". Os militantes comunistas são atualmente pouco numerosos e não há nada pior que o isolamento. Faz falta também lutar contra a tendência ainda muito grande da defesa do "feudo", da "família" (anarquista ou marxista) e contra o espírito concorrencial que nada tem a desempenhar no campo da classe operária. Os revolucionários não competem entre si. As divergências, os desacordos, por mais profundos que sejam, são uma fonte de enriquecimento para a consciência de toda a classe operária quando se discutem aberta e sinceramente. Criar laços e debater em escala internacional é uma necessidade absoluta.
Mas por tudo isso é necessário saber distinguir os revolucionários (aqueles que defendem a perspectiva da derrubada do capitalismo pelo proletariado) dos reacionários (aqueles que, de uma maneira ou de outra, contribuem com a perpetuação desse sistema), sem focar sobre o único rótulo "marxismo" ou "anarquismo".
Para a CCI existem critérios fundamentais que distinguem as organizações burguesas e proletárias.
Apoiar o combate da classe operária contra o capitalismo significa ao mesmo tempo lutar de forma imediata contra a exploração (quando das greves, por exemplo) sem perder de vista o desafio histórico desse combate: a derrubada desse sistema de exploração pela revolução. Para isso, as organizações que se reclamam desse combate, não devem jamais dar seu apoio, da maneira que for (de forma "crítica", por "tática", ou em nome do "mal menor"...), a um setor da burguesia: nem a burguesia "democrática" contra a burguesia "fascista": nem à esquerda contra a direita; nem à esquerda contra a direita; nem a burguesia palestina contra a burguesia israelense; etc. Tal política tem duas implicações concretas:
Esses critérios, expostos aqui muito brevemente, explicam porque a CCI considera certos anarquistas como camaradas de combate, porque deseja discutir e colaborar com eles enquanto denuncia paralelamente com virulência outras organizações anarquistas.
Por exemplo, nós colaboramos com o KRAS (secção da AIT anarcosindicalista na Rússia), publicando e saudando suas tomadas de posição internacionalistas frente à guerra, sobretudo a da Chechênia. A CCI considera esses anarquistas, apesar das divergências, como pertencente de verdade ao campo do proletariado. Eles se demarcam claramente de todos esses anarquistas e de todos esses "comunistas" (como os partidos "comunistas" ou maoístas ou trotskistas) que defendem em teoria o internacionalismo, mas que se opõem a ele na prática, defendendo em cada guerra um campo beligerante contra o outro. Isso não nos faz esquecer que em 1914, ante a deflagração da Primeira Guerra Mundial, e em 1917, ante a Revolução Russa, a maior parte de "marxistas" da social-democracia se colocaram do lado da burguesia contra o proletariado enquanto a CNT espanhola denunciara a guerra imperialista e apoiou a revolução! Quando dos movimentos revolucionários no final dos anos 1910, os anarquistas e os marxistas que atuam sinceramente em favor da causa do proletariado se encontraram ombro a ombro no combate, apesar dos seus desacordos. Neste período, houve uma tentativa de colaboração de grande amplitude entre os revolucionários marxistas (os bolcheviques, os espartaquistas alemães, os tribunistas holandeses, os abstencionistas italianos, etc), que tinham rompido com uma Segunda Internacional em degeneração, e numerosos grupos que se reivindicavam do anarquismo internacionalista. Um exemplo desse processo é o fato de uma organização como a CNT estudou a possibilidade, finalmente rechaçada, de integrar-se na Terceira Internacional [8].
Para mostrar um exemplo mais recente, por todo o mundo e diante dos acontecimentos atuais, existem grupos anarquistas e secções da AIT que não somente mantém uma posição internacionalista como também lutam pela autonomia do proletariado diante de todas as ideologias e todas correntes da burguesia;
Em outras palavras, são partidários dos princípios formulados pela Primeira Internacional: "A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores". Aqueles agem desse jeito para o combate pela revolução e por uma comunidade humana mundial.
A CCI pertence ao mesmo campo que os anarquistas internacionalistas que defendem realmente a autonomia operária. Sim, nós os consideramos como camaradas com os quais desejamos debater e colaborar! Sim, nós também pensamos que esses militantes anarquistas tem mais em comum com a Esquerda Comunista que com os que, sob o mesmo rótulo anarquista, defendem na realidade posições nacionalistas ou "reformistas" e que são de fato, defensores do capitalismo, reacionários.
Pouco a pouco está se desenvolvendo entre todos os elementos e grupos revolucionários e internacionalistas do planeta debates vivos e animados. Haverá erros, mal entendidos e verdadeiros desacordos. Porém as necessidades da luta do proletariado contra um capitalismo cada vez mais desumano e bárbaro, a perspectiva indispensável da revolução proletária mundial, condição para garantir a sobrevivência da humanidade e do planeta, exigem este esforço. Trata-se aqui de um dever. E atualmente quando emergem novamente minorias revolucionárias em numerosos países, que se reivindicam do marxismo ou do anarquismo (ou que estejam abertas aos dois), o dever de debater e colaborar deve encontrar uma adesão determinada e entusiasta.
Tradução de Révolution Internationale (publicação da CCI na França).
[1] GSL: Grupo Socialista Libertário (https://webgsl.wordpress.com/; [2] PAM: Proyecto Anarquista Metropolitano (https://proyectoanarquistametropolitano.blogspot.com [3]).
[2] Um ambiente caloroso reinou ao longo dessa reunião. Ler artigo intitulado "Reunião CNT-AIT de Toulouse de 15 de abril de 2010: para a constituição de um crisol de reflexão no meio internacionalista" [https://fr.internationalism.org/node/4256] [4].
[3] Os anarquistas e a guerra (I) (RI nº 402): [https://es.internationalism.org/ap2000s/2009/208_anarguerra] [5]. A participaçao dos anarquistas na Segunda Guerra Mundial (II) (RI nº 403): [https://es.internationalism.org/ap2000s/2009/209%3Aanar2] [6]. Da Segunda Guerra Mundial até hoje (III) (RI nº 404): [https://es.internationalism.org/ap/2009/210_anartres] [7]. O Internacionalismo, uma questão crucial (IV) (RI nº 405): [https://es.internationalism.org/ap/2009/210_anartres] [7].
[4] Em particular, os camaradas ficaram em um primeiro momento contrariados pela realização de um panfleto em comum GSL-PAM-CCI. Tratamos de explicar nossa atitude em um artigo em espanhol intitulado "¿Cuál es nuestra actitud frente a los camaradas que se reclaman del anarquismo?" [https://es.internationalism.org/node/2715 [8]].
[5] Alguns camaradas anarquistas tem salientado com toda razão os erros, as formulações imprecisas e também os erros históricos. Voltaremos sobre isso posteriormente. Temos, no entanto, que retificar de imediato dois erros mais grosseiros:
[6] "Vignoles" é o nome da rua onde se situa seu local principal.
[7] É necessário mencionar também os elementos ou grupos que apesar disso conseguiram romper com organizações que se passaram para o campo da burguesia, por exemplo, a tendência de Munis ou a que deu origem a "Socialismo ou Barbárie" no seio da "IV Internacional" trotskista. [https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/As-rupturas_em_reacao_a_d... [10]
[8] Ler Historia del movimiento obrero: la CNT frente a la guerra y a la revolución (1914-1919), segundo artigo de uma série sobre a história da CNT, na Revista Internacional nº 129: [https://es.internationalism.org/rint129cnt] [11].
Na primeira parte dessa série de artigos, tentamos evidenciar quais pontos de acordo fundamentais aproximam os anarquistas internacionalistas e a Esquerda Comunista. Para a CCI, sem negar que existam divergências importantes, o aspecto crucial é que defendemos com determinação a autonomia da classe operária rechaçando "dar apoio ou suporte de qualquer espécie (que seja "crítico", "tático",ou em nome de qualquer "mal menor") a qualquer setor da burguesia: nem à burguesia "democrática" contra a "fascista"; nem à esquerda contra a direita; nem à burguesia palestina contra a burguesia israelense etc.". Trata-se, pois, concretamente de:
Todos os que defendem teórica e praticamente essas posições essenciais devem ser conscientes de que pertencem ao mesmo campo: o da classe operária, o da revolução.
No seio desse campo há, necessariamente, diferenças de opinião e de posição entre os indivíduos, grupos, tendências. É através do debate em escala internacional, aberto, fraternal, mas também sem falsas concessões, que os revolucionários conseguirão participar da melhor maneira, no desenvolvimento geral da consciência proletária. Para conseguirem terão de compreender a origem das dificuldades que ainda hoje entorpecem este debate.
Essas dificuldades são fruto da história. A onda revolucionária que, a partir de 1917 na Rússia e 1918 na Alemanha, acabou com a Primeira Guerra Mundial foi vencida pela burguesia. A partir de então, uma terrível contrarrevolução se abateu sobre a classe operária de todos os países e da qual as expressões mais monstruosas foram o stalinismo e o nazismo; implantados justamente nos países onde o proletariado tinha sido a vanguarda da revolução.
A instauração, através de um partido que se reivindicava do "marxismo", de uma aterradora ditadura militar no país da Revolução de Outubro de 1917 tem sido considerada pelos anarquistas como uma confirmação das críticas que eles haviam mantido durante muito tempo contra as concepções marxistas. A crítica a essas concepções era seu "autoritarismo", seu "centralismo", o fato de que não chamem a abolição imediata do Estado desde o dia seguinte da revolução, o fato de não ter como princípio fundamental a liberdade. Ao findar-se o século XIX, o triunfo do reformismo e do "cretinismo parlamentar" nos partidos socialistas foi considerado pelos anarquistas como a confirmação da validade do seu rechaço a qualquer participação nas eleições. [1] É um pouco o que se produziu depois do triunfo do stalinismo: para o movimento anarquista este regime não era nada mais que a conseqüência lógica do "autoritarismo congênito" do marxismo. Em particular, existiria uma "continuidade" entre a política de Lênin e a de Stálin, considerando que a polícia e o terror político se desenvolveram quando o primeiro ainda estava vivo e até pouco depois da revolução.
Evidentemente, um dos argumentos empregados para exemplificar esta "continuidade" é o fato de que desde a primavera de 1918 alguns grupos anarquistas da Rússia foram reprimidos e sua imprensa amordaçada. Entretanto, há um argumento que consideram "decisivo": o massacre sangrento da insurreição de Kronstadt, em março de 1921, pelos bolcheviques, com Lênin e Trotsky encabeçando. O episódio de Kronstadt é sem dúvida muito significativo já que os marinheiros e operários dessa base naval constituíam, em outubro de 1917, uma das vanguardas da insurreição que derrubou o governo burguês e facilitou a tomada do poder pelos sovietes (Conselhos de operários e soldados). E é justamente este setor, dos mais avançados da revolução, quem se rebelou em 1921 com a consigna: "o poder para os Sovietes, sem os partidos"
No seio da Esquerda Comunista há um total acordo, entre suas diferentes tendências, em torno dos pontos que são evidentemente essenciais:
Sobre esses pontos decisivos a Esquerda comunista está de acordo com os anarquistas internacionalistas, porém se opõe totalmente ao trotskismo que considera o Estado stalinista como um "Estado operário degenerado" e os partidos "comunistas" como "partidos operários" e que na sua grande maioria alistou seus seguidores na Segunda Guerra Mundial (concretamente nas fileiras da Resistência).
Há, no entanto, no próprio seio da Esquerda Comunista, notáveis diferenças na compreensão do processo que levou a revolução de Outubro de 1917 a desembocar no stalinismo.
Por exemplo, a corrente da Esquerda Holandesa (os "comunistas de conselhos" ou "conselhistas") considera que a Revolução de Outubro foi uma revolução burguesa cuja função era substituir o regime czarista feudal por um Estado burguês, melhor adaptado para desenvolver uma economia capitalista moderna. Consideram o Partido bolchevique, que estava à cabeça dessa revolução, como um partido burguês de tipo particular encarregado de dirigir a instauração de um capitalismo de Estado, embora seus militantes e dirigentes não fossem verdadeiramente conscientes disso. Para os "conselhistas" há realmente uma continuidade entre Lênin e Stálin, sendo este último, de alguma maneira o "executor testamentário" do primeiro. Neste sentido, podemos dizer que existe certa convergência entre os anarquistas e os conselhistas, mas não é por isso que esses últimos têm rechaçado sua referência com respeito ao marxismo.
A outra grande tendência da Esquerda Comunista, a vinculada à Esquerda Comunista italiana, considera que a Revolução de Outubro e o Partido bolchevique eram de natureza proletária. [2] O marco no qual esta tendência insere sua compreensão do triunfo do stalinismo é o do isolamento na Rússia da Revolução de Outubro; por causa, fundamentalmente, da derrota das lutas revolucionárias em outros países, em primeiro lugar na Alemanha. Pouco antes da Revolução de Outubro, o conjunto do movimento operário, e os anarquistas não eram uma exceção, considerava que se a revolução não se estendesse em escala mundial seria derrotada. O fato histórico fundamental que exemplifica o trágico destino da Revolução russa foi que esta derrota não veio do "exterior" (os exércitos brancos apoiados pela burguesia mundial foram derrotados), mas do "interior", através da perda do poder pela classe operária, especialmente do controle sobre o Estado surgido no dia seguinte da revolução; e também através da degeneração e da traição do partido que, após ter liderado a revolução, acabou integrado nesse Estado.
Neste marco, os diferentes grupos que se consideram da Esquerda Italiana não compartilham as mesmas análises sobre a política dos bolcheviques nos primeiros anos da revolução. Para os "bordiguistas", o monopólio do poder por um partido político, a instauração de certo monolitismo neste partido, o emprego do terror, inclusive a repressão sangrenta da sublevação de Kronstadt, não são criticáveis; muito pelo contrário, ainda hoje assumem plenamente isso. Por isso, durante muito tempo, na medida em que a corrente da Esquerda Italiana era conhecida em escala internacional essencialmente através do "bordiguismo", esse tem atuado como repelente, entre os anarquistas, como repelente das posições e princípios da Esquerda Comunista.
Todavia, a corrente da Esquerda Italiana não se reduz ao "bordiguismo". A Fração de Esquerda do Partido Comunista da Itália (mais tarde Fração Italiana da Esquerda Comunista) iniciou nos anos 1930 todo um trabalho de balanço da experiência russa (Bilan - que significa balanço em francês - era então o nome da sua revista nesta língua). Entre 1945 e 1952 a Esquerda Comunista da França (que publicava Internationalism) prossegue este trabalho e a corrente que se constituiu em 1975, a CCI, recolheu esta tocha desde 1964 na Venezuela e em 1968 na França.
Esta corrente (e, em parte, também a que se relaciona com o Partito Comunista Internazionalista na Itália) considera necessária a crítica de alguns aspectos da política dos bolcheviques após a revolução. Em particular, a de muitos aspectos que denunciam os anarquistas: a tomada do poder por um partido, o terror e, especialmente, a repressão de Kronstadt são considerados por nossa organização (em continuidade com Bilan e a GCF) como erros, falhas cometidas pelos bolcheviques que podem ser criticados perfeitamente no marco do marxismo e mesmo das concepções de Lênin; especialmente as que são expressas na sua obra O Estado e a revolução, redigida em 1917. Esses erros podem ser explicados por numerosas razões que não podemos desenvolver aqui, porém que fazem parte do debate geral entre a Esquerda Comunista e os anarquistas internacionalistas. Diremos simplesmente que a razão essencial é o fato de que a revolução Russa constituiu a primeira (e única até hoje) experiência histórica de uma revolução proletária momentaneamente vitoriosa. Cabe aos revolucionários tirar os ensinamentos dessa experiência; como fez, desde os anos 1930, Bilan para quem "o conhecimento profundo das causas da derrota" era uma exigência primordial: "E este conhecimento não pode tolerar nenhuma proibição nem nenhum ostracismo. Fazer o balanço dos fatos do pós-guerra é, portanto, estabelecer as condições para a vitória do proletariado em todos os países" (Bilan nº1, Novembro de 1933, tradução nossa).
Os períodos de contrarrevolução realmente não favorecem a unidade, nem a cooperação entre forças revolucionárias. A confusão extrema e a dispersão que afetam o conjunto da classe operária repercutem também nas fileiras dos seus elementos mais conscientes. Da mesma maneira que não foi fácil o debate no seio dos grupos que haviam rompido com o stalinismo e que apesar disso reivindicavam a Revolução de Outubro, nem durante os anos 20 nem ao longo dos anos 30; também foi particularmente difícil o debate entre anarquistas e Esquerda Comunista ao longo de todo período da contrarrevolução.
Como vimos acima, devido ao fato de que o destino da revolução parecia levar água ao moinho de suas críticas ao marxismo, a atitude no seio do movimento anarquista foi a de rechaçar qualquer discussão com os marxistas, "ferozmente autoritários", da Esquerda Comunista; E isto crescia à medida que a popularidade desse movimento, nos anos 1930, era muito superior à dos pequenos grupos da Esquerda Comunista, graças, fundamentalmente, ao papel de primeiro plano que chegaram a desempenhar os anarquistas em um país, Espanha, onde teve lugar um dos acontecimentos históricos mais decisivos deste período.
Reciprocamente, ao fato de que, de maneira quase unânime, o movimento anarquista considerava que os acontecimentos da Espanha constituíam uma espécie de confirmação da validade das suas concepções e que a Esquerda Comunista os vira sobretudo como a prova de seu fracasso, constituiu durante muito tempo um obstáculo para a colaboração desta com os anarquistas. Há, não obstante, que assinalar que Bilan se negou a incluir todos anarquistas no mesmo saco e publicou, após seu assassinato pelo stalinismo em maio de 1937, uma homenagem ao anarquista italiano Camilo Berneri, que havia realizado uma crítica sem concessões da política levada a cabo pela direção da CNT espanhola.
Mais significativo ainda é o fato de que se celebrara em 1947 uma conferência que reuniu a Esquerda Comunista Italiana (Grupo de Turim), a Esquerda Comunista da França, a Esquerda Comunista Holandesa e certo número de anarquistas internacionalistas. Um dos quais copresidiu esta Conferência. Isto mostra que, inclusive durante a contrarrevolução, certo número de militantes da Esquerda Comunista e do anarquismo internacionalista era animado por um verdadeiro espírito de abertura, uma vontade de debater e uma capacidade para reconhecer os critérios fundamentais que unem os revolucionários mais além das suas divergências.
Esses camaradas de 1947 nos dão uma lição e uma esperança para o futuro [3].
É evidente que as atrocidades cometidas pelo stalinismo, usurpando o nome do marxismo e do comunismo, ainda pesam hoje. Atuam como uma barreira emocional que obstaculiza, sempre e poderosamente, o debate sincero e a colaboração leal.
"A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebrodos vivos" (Karl Marx - O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann - Ed. Paz e Terra, 4ªed., pg17;) Este muro que nos impede atuar não pode ser demolido de um dia para o outro, porém começa a se fissurar. Devemos cultivar o debate que nasce pouco a pouco diante de nossos olhos, animados por um espírito fraternal, tendo sempre na mente que todos tentamos sinceramente trabalhar para o advento do comunismo, de uma sociedade sem classes.
CCI (agosto 2010)
[1] Para Lênin,"Na Europa ocidental o sindicalismo revolucionário apareceu em numerosos países como o resultado direto e inevitável do oportunismo, do reformismo, do cretinismo parlamentar." (prólogo à brochura de Bóinov (A.V. Lunacharski); "Sobre a atitude do partido diante dos sindicatos" (1907). Obras completas Tomo XIII, página 156. Akal Editor) (Tradução nossa). O anarquismo, que existia antes do sindicalismo revolucionário, mas que lhe é próximo, tem se beneficiado também desta evolução dos partidos socialistas.
[2] É necessário ressaltar que na Rússia existiam muitos vários grupos, desgarrados do partido bolchevique, que compartilhavam suas análises. Ver sobre esse isso nosso folheto A Esquerda Comunista na Rússia (disponível em inglês e logo em francês).
[3]Com efeito, o debate, a cooperação e o respeito recíproco entre anarquistas internacionalistas e comunistas não era naquele tempo nenhuma novidade.
Além de outros exemplos, pode-se citar o que escrevia a anarquista americana Emma Goldman na sua autobiografia (publicada em 1931, dez anos depois de Kronstadt): "... o bolchevismo era uma concepção social sustentada pelo espírito brilhante de homens animados pelo ardor e a coragem dos mártires. (...) era da maior urgência que os anarquistas e outros autênticos revolucionários se implicassem resolutamente na defesa desses homens difamados e da sua causa, nos acontecimentos que se precipitaram na Rússia." (Living my life).
Outro anarquista muito conhecido Victor Serge, em um artigo redigido em agosto de 1920 "Os anarquistas e a experiência da Revolução russa" tem uma opinião muito semelhante embora ao continuar considerando-se anarquista e criticando alguns aspectos da política do Partido Bolchevique, continuou dando seu apoio a este partido.
Por outro lado, os bolcheviques convidaram uma delegação da CNT espanhola anarco-sindicalista ao Segundo Congresso da Internacional Comunista. Juntos mantiveram com debates realmente fraternais e a convidaram para ingressar na Internacional.
Esta série de artigos se deu como objetivo demonstrar que os membros da Esquerda Comunista e os anarquistas internacionalistas têm o dever não só de discutir, também de colaborar. A razão é simples: apesar das nossas divergências - às vezes, importantes - compartilhamos posições revolucionárias essenciais: o internacionalismo, o rechaço de qualquer colaboração ou compromisso com forças políticas burguesas, a defesa de que "os operários se apoderem das suas lutas" [1].
Apesar dessa evidência, durante muito tempo, as relações entre estas duas correntes revolucionárias têm sido quase nulas. Justo agora e após muitos anos começamos a esboçar um debate e uma colaboração. Sem dúvida, isto é resultado da dolorosa história do movimento operário. A atitude da maioria do Partido bolchevique durante os anos 1918-1924 (proibição sem distinções de toda imprensa anarquista, enfrentamento com o Exército de Makhno; massacre dos marinheiros insurgentes de Kronstadt...) abriu um abismo entre os revolucionários marxistas e os anarquistas. Mas acima de tudo, o stalinismo, que massacrou milhares de anarquistas [2] em nome do "comunismo", causou um autêntico traumatismo que durou décadas [3].
Ainda hoje persistem, de uma parte e de outra, certos medos para debater e colaborar. Para superar estas dificuldades, é necessário estar totalmente convencidos, apesar das divergências, de pertencer ao mesmo campo: o da revolução e o do proletariado. Mas isso não pode ser suficiente. Deveremos fazer um esforço consciente para cultivar a qualidade dos nossos debates. "Alçar do abstrato para o concreto" tendo em conta que é sempre a etapa mais arriscada. É por isso que, através deste artigo, a CCI procura precisar com qual estado de espírito aborda esta possível e necessária relação da Esquerda Comunista e o anarquismo internacionalista.
Em nossa imprensa temos afirmado numerosas vezes e de diferentes formas, a afirmação segundo a qual o anarquismo carregava com si a marca original da ideologia pequeno-burguesa. Esta crítica, efetivamente radical, é freqüentemente taxada de inaceitável pelos militantes anarquistas, inclusive pelos mais habitualmente abertos à discussão. E ainda hoje, mais uma vez, este qualificativo de "pequeno-burguês" agregado ao termo "anarquismo" é motivo suficiente para que alguns não queiram nem ouvir falar da CCI. Recentemente em nosso foro na internet, um participante que se diz anarquista tem definido essa crítica de autêntica "injúria". Não é nosso ponto de vista.
Por mais profundos que sejam os desacordos recíprocos, não devem fazer perder de vista que os militantes da Esquerda comunista e do anarquismo internacionalistas debatem entre revolucionários. Por outro lado, os anarquistas internacionalistas, por sua vez, também dirigem numerosas críticas ao marxismo, começando pelo que eles chamam inclinação natural dos marxistas pelo autoritarismo e pelo reformismo. O site da CNT-AIT na França, contém múltiplas passagens dessa índole:
"Os marxistas se converteram progressivamente (desde 1871) em adormecedores dos explorados e assinaram a ata de nascimento do reformismo operário" [4].
"O marxismo é responsável pelo desvio da classe operária para o parlamentarismo (...). Só quando tenha se compreendido isso se poderá ver que a via da libertação social nos leva ao mundo venturoso do anarquismo, passando por cima do marxismo" [5].
Não se trata de "injúrias", mas de críticas radicais... com as quais estamos evidentemente, em total desacordo. Assim sendo, também é no sentido da crítica aberta que deve ser entendida nossa análise da natureza do anarquismo . Portanto, vale a pena recuperar aqui esta análise, aportando algumas citações, curtas. Em um capítulo intitulado "O núcleo pequeno burguês do anarquismo", escrevemos em 1994: "O crescimento do anarquismo na segunda metade do século XIX foi produto da resistência das camadas pequeno burguesas (artesões, intelectuais, pequenos comerciantes, pequenos camponeses) à marcha triunfal do capital, resistência ao processo de proletarização que os privava da sua "independência" social original. Mais forte naqueles países onde o capital industrial chegou tarde, nos países da periferia no Leste e Sul da Europa, o anarquismo expressava tanto a rebelião dessas camadas contra o capitalismo, como sua incapacidade para ver, mais adiante, o futuro comunista. Pelo contrário, o anarquismo expressava assim o anseio por um passado semimítico de comunidades locais livres e produtores estritamente independentes sem o estorvo da opressão do capital industrial ou da centralização do Estado burguês. O "pai" do anarquismo, Pierre-Joseph Proudhon, era a encarnação clássica dessa atitude, com seu ódio feroz não só ao Estado e aos grandes capitalistas como ao coletivismo em todas as suas formas, incluindo os sindicatos, as greves e expressões similares de coletividade da classe operária. O ideal de Proudhon, contra todas as tendências que se desenvolviam na sociedade capitalista, era uma sociedade "mutualista" fundada na produção artesanal individual e unida pelo livre intercâmbio e o livre crédito " [6].
Também em "Anarquismo e comunismo: Carta aberta aos militantes do Comunismo de Conselhos (Esquerda comunista libertária)", redigido em 2002, dizíamos: "Na gênese do anarquismo o que se expressa é o ponto de vista do operário recém proletarizado e que rechaça com todas as suas forças a proletarização. Esses operários, recém saídos do campesinato e do artesanato, geralmente metade operários metade artesãos (no caso dos relojoeiros do Jura Suíça) expressavam a nostalgia do passado diante do drama que para eles era ter caído na condição operária. Sua aspiração social era que fosse dada marcha a ré à roda da história No miolo dessa concepção está a nostalgia da pequena propriedade. Por isso é que, seguindo Marx, nós analisamos o anarquismo como a expressão da penetração da ideologia pequeno burguesa no proletariado." [7]
Dito em outras palavras, reconhecemos que, desde seu nascimento, o anarquismo se caracteriza por um profundo sentimento de revolta contra a barbárie da exploração capitalista, porém, também, que herda a visão dos "artesões, comerciantes, granjeiros,..." que fora sua origem. Isto não significa absolutamente que, hoje, todos os grupos anarquistas sejam "pequenos burgueses". É evidente que a CNT-AIT, o KRAS [8] estão animados pela chama revolucionária da classe operária. Indo mais longe ainda, ao largo dos séculos XIX e XX numerosos operários abraçaram a causa anarquista e lutaram autenticamente pela abolição do capitalismo e a chegada do comunismo, desde Louise Michel a Durruti, passando por outros como Volin ou Malatesta. Inclusive, durante a onda revolucionária de 1917, grande número de anarquistas formaram, nas fileiras operárias, batalhões dos mais combativos.
Sempre houve no movimento anarquista uma batalha contra a tendência originária de se deixar influenciar pela ideologia da pequena burguesia radicalizada. Por isso, em parte, é que há profundas divergências entre anarquistas individualistas, mutualistas, reformistas, comunistas nacionalistas e comunistas internacionalistas (só os últimos pertencem realmente ao campo revolucionário). Porém inclusive os anarquistas internacionalistas sofrem a influência das raízes históricas do seu movimento. Esta é a causa da sua tendência a substituir a "luta da classe operária" pela "resistência popular autônoma", por exemplo.
Para a CCI é uma responsabilidade expor honestamente à luz do dia todos esses desacordos para contribuir da melhor maneira ao fortalecimento geral do campo revolucionário. De igual maneira, que deve ser uma responsabilidade dos anarquistas internacionalistas expressarem suas críticas ao marxismo. Isso não tem porque ser um obstáculo para desenvolver nossos debates de maneira fraternal nem tem porque ser um freio a futuras colaborações, muito pelo contrário [9].
Todas suas críticas aos anarquistas internacionalistas, a CCI não as dirige do modo que um professor corrige os erros de seu aluno. Entretanto, intervenções em nosso fórum têm se queixado do tom "professoral" da nossa organização. Deixando de lado o gosto por um ou outro estilo literário, entendemos que o que se oculta por trás desses comentários é uma questão teórica. Será que o papel da CCI com respeito a CNT-AIT e em geral o papel da Esquerda comunista com relação ao anarquismo internacionalista é o de "guia" ou de "modelo" ? Será que pensamos ser uma minoria iluminada cuja tarefa é de incutir a verdade, a boa consciência?
Tal concepção estaria em total contradição com a própria tradição da Esquerda comunista. É ligada mais profundamente ao que une os revolucionários comunistas com a sua classe.
Marx nos afirma em uma carta a Ruge: "não vamos ao encontro do mundo de modo doutrinário com um novo princípio: "aqui está a verdade, todos de joelho!" Desenvolvemos novos princípios para o mundo a partir dos princípios para o mundo a partir dos princípios do mundo. Não dizemos a ele: "Deixa de lado esssas tuas batalhas, pois é tudo bobagem; nós é que proferiremos o verdadeiro mote para a luta". Nós apenas lhes mostramos o porquê de ele estar lutando e a consciência é algo de que ele terá de apropriar-se, mesmo que não queira." [10]
Os revolucionários, marxistas ou anarquistas internacionalistas, não se colocam acima da classe operária, mas sãoparte integrante dela, à qual estão unidos por milhares de laços. Sua organização é o produto coletivo do proletariado.
A CCI jamais se considerou uma organização com vocação de impor seu ponto de vista à classe operária ou a outros grupos revolucionários. Assumimos plenamente os seguintes parágrafos do Manifesto comunista de 1848: "Os comunistas não são nenhum partido particular face aos outros partidos operários. Não têm nenhuns interesses separados dos interesses do proletariado todo. Não estabelecem nenhuns princípios particulares segundo os quais queiram moldar o movimento proletário." [11]. Este mesmo princípio é o que Bilan, órgão da Esquerda comunista italiana, manteve vivo em toda sua obra desde o aparecimento do seu primeiro número em 1933: "efetivamente nossa fração se considera parte de um longo passado político, de uma tradição enraizada no movimento italiano e internacional, de um conjunto de posições políticas fundamentais. Porém não faz prevalecer seus predecessores políticos para pedir a adesão às soluções políticas que preconiza para a situação atual. Pelo contrário, convida os revolucionários a submeter à verificação dos acontecimentos as posições que defende atualmente assim como as posições políticas contidas nos seus documentos básicos".
Desde seu nascimento, nossa organização tenta cultivar este mesmo estado de espírito quanto à abertura e essa mesma vontade de debater. Assim já em 1977, escrevemos:
"Nas nossas relações com [os outros grupos revolucionários] próximos a CCI, mas exteriores, nossa intervenção é clara; tentamos estabelecer com eles uma discussão fraternal e aprofundada sobre as diferentes questões com às quais se defronta a classe operária."
"Não poderemos assumir realmente nossa função (...) com respeito a eles se não formos ao mesmo tempo capazes:
Para nós, trata-se de uma norma de conduta. Estamos convencidos da validade das nossas posições (embora abertos a uma crítica fundamentada), porém não as consideramos como "a solução para os problemas do mundo". Para nós, se trata de um aporte ao debate coletivo da classe operária. Por isso é que concedemos uma importância muito particular à cultura do debate. Em 2007, a CCI dedicou todo um texto de orientação somente a esse tema: "A cultura do debate: uma arma da luta da classe": "Se as organizações revolucionárias querem cumprir seu papel fundamental de desenvolvimento e de extensão da consciência de classe, a cultura da discussão coletiva, internacional, fraterna e pública é absolutamente essencial" [13]
Portanto, o leitor atento terá percebido que todas as citações contêm também a idéia da necessidade de debater, a afirmação de que a CCI deve defender firmemente suas posições políticas. Não se trata de uma contradição. Querer discutir abertamente não significa acreditar que todas as idéias são iguais, que todas as posições têm validade. Como assinalávamos em nosso texto de 1977: "Longe de se excluírem, firmeza nos princípios e abertura na atitude caminham de mãos dadas: não temos medo de discutir, precisamente porque estamos convencidos da validade das nossas propostas."
Tanto no passado como no futuro, o movimento operário teve e terá necessidade de debates francos, abertos e fraternais entre suas diferentes tendências revolucionárias. Esta multiplicidade de pontos de vista e de abordagens será uma riqueza e um aporte indispensável para a luta do proletariado e para o desenvolvimento da sua consciência. Nós reiteramos, porém no interior do território comum dos revolucionários pode haver divergências profundas. Essas devem ser expressas e debatidas na sua totalidade. Não pedimos aos anarquistas internacionalistas que renunciem seus próprios critérios nem ao que consideram ser seu patrimônio teórico; pelo contrário, lhes exortamos vivamente que o exponham com clareza, em resposta às questões que nós colocamos, e que aceitem a crítica e a polêmica, da mesma maneira que nós não consideramos nossas posições como "a última palavra", mas como uma contribuição aberta a argumentos contraditórios. Não dizemos a esses camaradas: "ajoelhe-se diante da superioridade proclamada do marxismo".
Respeitamos profundamente a natureza revolucionária dos anarquistas internacionalistas, sabemos que combateremos ombro a ombro quando os movimentos de lutas massivas se farão presentes; porém defenderemos firmemente e com convicção (desejamos por sua vez ser convincentes) nossas posições sobre a revolução russa e o partido bolchevique, a centralização, o período de transição, a decadência do capitalismo, o papel antioperário do sindicalismo,... Isso não é se colocar numa relação mestre-aluno ou aguardar a que, convertidos, alguns anarquistas se somem as nossas fileiras mas participar plenamente do necessário debate entre revolucionários.
Como vêem, camaradas, este debate "corre o risco" de ser animado e apaixonante!
Concluiremos esta série de três artigos sobre a Esquerda comunista e o anarquismo internacionalista com essas palavras de Malatesta:
CCI, Setembro de 2010
[1] Leia a primeira parte desta série: "O que temos em comum": pt.internationalism.org/ICConline/2010/A_Esquerda_comunista_e_o_anarquismo_internacionalista
[2] Como milhares de marxistas e milhões de proletários em geral também;
[3] Leia a segunda parte desta série: "Sobre as nossas dificuldades para debater e os meios de superá-las [12]"
[4] cnt-ait.info/article.php3?id_article=472&var_recherche=r%E9formisme+marxisme
[5] Trata-se concretamente de uma citação de Rudolf Rocker que a CNT-AIT faz sua.
[6] Em "O comunismo não é um belo ideal, mas uma necessidade material"; Revista Internacional nº102, 2002.
[7] "Anarquismo y comunismo - Carta abierta a los militantes del comunismo de consejos (Izquierda comunista libertaria) [13]"; Ver. Revista Internacional nº102, 2002.
[8] Trata-se da secção na Rússia da AIT com quem mantemos muito boas relações de camaradagem e que temos publicado várias tomadas de posição na nossa imprensa.
[9] Dito isso, durante o debate que temos mantido nesses últimos meses, companheiros anarquistas protestaram, com justiça, contra os termos exagerados que sentenciam definitiva e injustificadamente a respeito do anarquismo. Repassando nossos antigos textos temos encontrado passagens que não escreveríamos hoje. Por exemplo:
[10] Carta de Marx a Ruge, setembro de 1843. In: Marx, K.Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.
[11] Marx e Engels. Manifesto Comunista. Fonte: https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista... [16]
[12] "Os grupos políticos proletários" na Revista Internacional nº11, out/dez 1977
[13] Consultar: Revista Internacional nº 131, 2007. -"La cultura del debate: un arma de la lucha de la clase [17]"
[14] Quando Malatesta escreve este artigo, o partido socialista italiano agrupava também, juntamente com os reformistas, os elementos revolucionários que fundaram o PCI em janeiro de 1921 no congresso de Livorno.
[1] https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Sera-que_o_trotskismo_pertence_ao_campo_do_proletariado [18]
Por outra parte, fazia-se indispensável reconsiderar a tática tradicional, que data da Comuna de Paris e da Revolução Russa, bem como determinados aspectos da estratégia, a fim de adequá-los às importantes mudanças sobrevindas desde 1917. De fato, o retrocesso termidoriano da Revolução russa iniciado em 1921 (N.E.P.= Nova Política Econômica), completou-se depois em contrarrevolução capitalista de Estado. E graças principalmente a esse fato, o capitalismo em geral conseguiu perdurar e aumentar seu potencial explorador em forma cada vez mais centralizada e prejudicial aos homens.
Esse mesmo processo acarretou uma modificação radical dos partidos antes comunistas fazendo deles, não organizações oportunistas ou lacaios operários da burguesia, mas representantes diretos de uma forma particular de capitalismo, a intrínseca à lei de concentração de capitais anexa ao automatismo da sociedade atual e deliberadamente acelerada na Rússia. Por sua vez os sindicatos, foram dominados pelo stalinismo ou independentes dele, foram se moldando sem cessar ao sistema de exploração, do qual já parecem pelo menos inseparáveis.
O proletariado mundial padecia enquanto isso de uma série de derrotas que nada veio interromper até agora. Quando falsos amigos apresentavam-nas como suas vitórias, China ou Cuba, Argélia ou Gana, isto só serve para desmoralizá-lo e pô-lo, inerte, ao gosto de seus inimigos. Essas vitórias, que são na realidade as de determinados círculos capitalistas frente a outros, representam outras tantas derrotas do proletariado; tornadas possibilitadas pelo peso material da contrarrevolução russa no mundo, sim, mas não sem que deixasse a via livre para uma vanguarda revolucionária prisioneira de suas próprias idéias envelhecidas. Mais do que nunca "a crise da humanidade é uma crise de direção revolucionária" como dizia Leon Trotsky, mas as organizações que se dizem trotskistas ficaram encalhadas, por trágico sarcasmo, nas águas lamacentas do stalinismo.
Da luta contra a degeneração da IV Internacional nasceu a maioria das idéias e proposições contidas no presente manifesto. A origem de algumas das modificações ideológicas enunciadas ascende ao período mais incandescente da revolução espanhola, 1936-1937, quando pela primeira vez fora da Rússia, o stalinismo revela toda sua natureza contrarrevolucionária, em relação à qual quaisquer Kerensky ou Noske parecem apenas daninhos. Por tal razão, entre outras, resulta indispensável conhecer a fundo as peripécias da revolução espanhola, tão falsificadas ou desnaturalizadas em livros como o de P. Broué e E. Témine. Ela fecha uma etapa combativa e ideológica do proletariado mundial e abre outra. Seus ensinamentos servirão de luz a uma futura reincidência de combatividade dos oprimidos.
Ainda não encontramos tempo para considerar a rica experiência da revolução espanhola, quando os organismos dirigentes da IV Internacional deram frente à guerra mundial provas de uma carência de internacionalismo, cujas conseqüências últimas seriam a esterilidade ideológica e a aproximação ao stalinismo. Não só a revolução espanhola, senão também os importantíssimos acontecimentos da guerra e do pós-guerra desfilaram diante deles sem maior conseqüência do que acentuar sua inaptidão.
Desde os primeiros sintomas de degeneração ideológica, o grupo espanhol da IV Internacional no México se alçou vigorosamente contra ela, ao mesmo tempo em que se lançava em um amplo trabalho de interpretação dos acontecimentos mundiais e da revolução espanhola em particular. Surdos e estultos, os organismos dirigentes impediram que informação, críticas e proposições chegassem à base de todos os partidos, excluindo deliberadamente a própria possibilidade da discussão. No primeiro congresso do pós-guerra, em 1948, a seção espanhola rompeu com a IV Internacional acusando-a de abandono do internacionalismo e de curso pró-stalinista. Pouco tempo depois, e sobre as mesmas bases, rompia também com ela Natalia Sedova Trotsky, que desde 1941 esteve ao nosso lado.
A situação do proletariado mundial foi piorando sem cessar desde o aniquilamento da revolução espanhola. Continuamente empurrado a apoiar causas reacionárias chamadas de libertadoras, ideologicamente defraudado dia-a-dia em todos os países, esse proletariado se encontra amordaçado e enquadrado por organizações escravizantes. A humanidade inteira, pelo ato único de achar-se submetida ao terror termonuclear além e aquém da cortina de ferro, vive uma situação degradante, sem dela se desvencilhar, da qual toda modificação a agravará. Assim, a sociedade capitalista, consubstancial à guerra de classes e a guerra inter-nações, atinge o grau de desenvolvimento em que sua simples continuidade destrói ao homem, a não ser que o homem dê cabo dela. Indicadora da rebelião da humanidade, só a do proletariado frente ao capital e ao trabalho assalariado é susceptível de transtornar tão grosseira condição e acender a alvorada do sonho revolucionário, fator histórico materialista entre todos primordial.
Estão, no entanto, longe de bastar para tal embate as idéias concretas da revolução russa, que o Programa de Transição acolhe. Escrito por Leon Trotsky em 1937-38, quando ainda não se perfilava bem o significado do período que a derrota da revolução espanhola abre, esse programa revela-se hoje, mais do que insuficiente, suscetível de propiciar oportunismos frente à contrarrevolução stalinista e suas vielas. Caducou do mesmo modo que, em 1917, o programa anterior de Lênin. Sem superá-lo conforme à experiência, às condições objetivas nascidas da rotação capitalista e às possibilidades subjetivas do proletariado em pleno ardor revolucionário, este não conseguirá triunfar em parte alguma e qualquer movimento insurrecional será esmagado pelos falsários.
A obviar tal carência ideológica se emprega o presente Manifesto, que inspira nossa atividade na Espanha e internacionalmente. Dirigimo-nos a todos os grupos e organizações do mundo que vêem a mesma necessidade de revolução socialista no bloco oriental e no ocidental. Convidamos-lhes a meditar as idéias aqui expostas. O renascimento de uma organização operária em escala planetária exige a ruptura com numerosos atavismos e um pensamento em permanente inventiva. Estamos dispostos, quando expomos, a discutir publicamente com qualquer grupo cuja atividade prática e teórica mostre seu apego à revolução. Mas desdenharemos aqueles nos quais o diletantismo domina, ainda que pretendam acolher totalmente ou em parte a nossas idéias. O intelecto revolucionário "não é uma paixão cerebral, mas o cérebro da paixão" (Karl Marx), e como tal reivindica algo muito diferente de aventuras livrescas ou protestos só mentais. Todo diletantismo é uma reverberação do mundo contra o qual nos batemos.
Fica por notificar que algumas partes do nosso Manifesto foram publicadas em 1949 com o título "O Proletariado frente aos dois blocos", sob a responsabilidade de um agrupamento de vida efêmera chamada União Operária Internacional. Mas tanto aquela versão sucinta como a atual são a elaboração ideológica e redação de Benjamín Péret e G. Munis como militantes de Fomento Operário Revolucionário[Fomento Obrero Revolucionario], cuja origem é a seção espanhola da IV Internacional. Em plena revolução de 1936, no México ainda sob a ameaça dos assassinos de Stálin, na Espanha outra vez desafiando a repressão franquista, Benjamín Péret não cedeu um só instante no combate ao nosso lado. É este lugar apropriado para recordar ao amigo, revolucionário, poeta cuja pluma transluz aqui e ali neste Manifesto.
G. Munis
Paris, 1965.
Em 4 de fevereiro de 1989 morreu Manuel Fernandez Grandizo, apelidado de G. Munis. Com ele, o proletariado perdeu um militante que entregou toda sua vida ao combate de sua classe.
Munis nasceu em princípios do século em Extremadura, Espanha. Ainda muito jovem, iniciou sua vida revolucionária militando no trotskismo, numa época na qual essa corrente ainda pertencia ao proletariado e estava levando a cabo uma luta sem quartel contra a degeneração stalinista dos partidos da Internacional Comunista. Foi membro da Oposição de Esquerda Espanhola (OIE) criada em Liège, Bélgica, em Fevereiro de 1930, em torno de F. García Lavid, conhecido por H. Lacroix. Militou em sua seção de Madri, tomando posição a favor da tendência Lacroix em Março de 1932 contra o centro dirigido por Andrés Nin. A discussão no seio da Oposição de Esquerda (OI) residia na necessidade de criar ou não um «segundo partido comunista» ou ainda manter a Oposição nos PCs para fazê-los voltar ao bom caminho. Esta última posição, que foi a de Trotsky durante os anos 30, ficou em minoria na IIIª Conferência da OIE, que mudou então de nome para converter-se em Esquerda Comunista Espanola (ICE). Munis, apesar de seu desacordo, continuará militando nela.
Essa orientação de criar um novo partido acabou plasmando-se na fundação, em setembro de 1934, do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), partido centrista, catalanista e sem princípios que agrupou à ICE e ao Bloco Operário e camponês (BOC) de J. Maurín. Munis se opôs então a essa dissolução dos revolucionários no POUM, fundando o Grupo Bolchevique-Leninista da Espanha.
Quando chegaram as primeiras notícias do levante de 1936 na Espanha, regressou a este país abandonando o México, onde as circunstâncias da vida o tinham levado; volta a formar o grupo B-L que tinha desaparecido e, sobretudo, participa com valentia e decisão, ao lado dos "Amigos de Durruti", na insurreição dos operários de Barcelona em Maio de 1937 contra o governo da Frente Popular. É detido em 1938, mas consegue evadir-se dos cárceres stalinistas em 1939.
O desencadeamento da IIª Guerra Mundial levou Munis a romper com o trotskismo sobre a questão de defender a um campo imperialista contra o outro, adotando uma clara posição internacionalista de derrotismo revolucionário contra a guerra imperialista. Munis denunciou a Rússia como país capitalista que era, o que acabou na ruptura de sua seção espanhola com a IVª Internacional, no primeiro congresso do pós-guerra em 1948. (Ver "Explicação e apelo aos militantes, grupos e seções da IV° Internacional", setembro de 1949).
Após essa ruptura, continuou sua evolução política para uma maior clareza revolucionária, em especial sobre a questão sindical e a questão parlamentar, sobretudo depois de ter mantido discussões com militantes da Esquerda Comunista na França.
No entanto, o Segundo Manifesto Comunista, que publicou em 1965, depois de ter passado longos anos nos cárceres franquistas, testemunha suas dificuldades para romper completamente com a orientação Trotskista, ainda que tal documento se situe claramente em um terreno de classe proletário.
Em 1967 participou na companhia de camaradas de Internacionalismo (Venezuela), de um contato com o meio revolucionário da Itália. No final dos anos 60, com o ressurgir da classe operária no palco histórico, estará mobilisado junto às fracas forças revolucionárias existentes e, entre elas, as que fundariam Revolution Internationale [1]. No início dos anos 70, Munis ficou, infelizmente, à margem do esforço de discussão e agrupamento que desembocaria em especial, na constituição da Corrente Comunista Internacional. Por outro lado, Fomento Operário Revolucionário (FOR), organização por ele fundada em torno das posições do Segundo Manifesto, participou da Primeira Conferência de Grupos da Esquerda Comunista, realizada em Milão em 1977. No entanto, esta atitude foi abandonada na Segunda Conferência, da qual FOR se retirou desde o seu início, plasmando-se assim uma atitude de isolamento sectário que até hoje prevaleceu em tal organização.
É evidente que nós tínhamos divergências muito importantes com FOR, as quais levaram-nos polemizar em numerosas ocasiões na nossa imprensa com esta organização (ver, por exemplo, a Revista Internacional nº 52 - em espanhol). No entanto, apesar dos erros que Munis pudesse ter cometido, até o final foi um militante dos mais fiéis ao combate da classe operária. Foi dos raríssimos militantes que resistiram à terrível pressão da contrarrevolução mais sinistra que o proletariado pôde viver em toda sua história, isso quando muitos desertaram do combate militante e até traíram, para estar presente nas fileiras da classe operária desde a recuperação de seus combates de classe no final dos anos 60.
Ao militante do combate revolucionário, à sua fidelidade ao campo proletário, a seu indefectível envolvimento queremos hoje prestar homenagem.
Aos seus camaradas do FOR dirigimos nossa saudação mais fraterna.
Corrente Comunista Internacional
[1] Revolution internationale participou do agrupamento a base da fundação da Corrente Comunista Internacional
Para: o Comitê Político do Socialist Workers Party
Camaradas:
Vocês sabem muito bem que não tenho estado de acordo politicamente com vocês durante os últimos cinco ou seis anos, desde o final da guerra e até mesmo antes. As posições tomadas por vocês sobre os importantes acontecimentos dos últimos tempos, demonstram que, em vez de corrigirem seus erros anteriores, vocês persistem neles e os aprofundam Na rota que vocês assumiram, chegaram a um ponto em que já não me é possível permanecer silenciosa ou me limitar a protestos privados. Devo expressar agora minhas opiniões publicamente.
Sinto-me obrigada a dar um passo grave e difícil para mim, e só posso lamentá-lo sinceramente. Mas não há outra via. Após muitas reflexões e hesitações sobre um problema que me afligiu profundamente, acredito que não há outra maneira senão dizer-lhes abertamente que nossos desacordos não me permitem permanecer mais tempo em suas fileiras.
As razões para esta minha atitude final são conhecidas pela maioria entre vocês. Eu as repito aqui brevemente somente para aqueles que não estão familiarizados com as mesmas, mencionando apenas nossas diferenças fundamentais e não as diferenças sobre questões de política cotidiana que estão relacionadas a elas ou que delas decorrem.
Obcecados por fórmulas velhas e ultrapassadas, vocês continuam considerando o estado stalinista como um Estado operário.
Eu não posso e não seguirei vocês nesse ponto. Depois do começo da luta contra a burocracia stalinista usurpadora, L.D. Trotsky repetia praticamente a cada ano que o regime estava se deslocando para a direita, sob as condições de retardo da revolução mundial e da conquista de todas as posições políticas na Rússia pela burocracia. Repetidas vezes ele sublinhou que a consolidação do stalinismo na Rússia conduzia a uma deterioração das posições econômicas, políticas e sociais da classe operária, e ao triunfo de uma aristocracia tirânica e privilegiada. Se esta tendência continuar, disse ele, a revolução chegará a um fim e o capitalismo será restaurado. Infelizmente, isso é o que aconteceu, ainda que em formas novas e inesperadas. Dificilmente há um país no mundo onde as ideias e defensores autênticos do socialismo sejam perseguidos de maneira tão bárbara. Deveria estar claro para qualquer um que a revolução foi completamente destruída pelo stalinismo, não obstante vocês ainda continuarem a dizer que sob este regime inominável, a Rússia é ainda um Estado operário. Considero isto como um golpe desfechado ao socialismo. O stalinismo e o Estado stanilista não têm absolutamente nada em comum com um Estado operário e com o socialismo. Eles são os mais perigosos inimigos do socialismo e do proletariado.
Vocês consideram agora que os Estados da Europa Oriental, sobre os quais o stalinismo estabeleceu sua dominação durante e após a guerra, são igualmente Estados operários. Isto é equivalente a dizer que o stalinismo preencheu um papel socialista revolucionário. Eu não posso e não quero segui-los neste ponto. Após a guerra e antes mesmo que terminasse, houve um movimento revolucionário ascendente das massas nestes países. Mas não foram as massas que tomaram o poder e, não foram estabelecidos Estados operários pelas suas lutas. É a contra-revolução stalinista que se apossou do poder, reduzindo esses países ao estado de vassalos do Kremlin, estrangulando as massas trabalhadoras, as suas lutas e aspirações revolucionárias. Ao considerar que a burocracia stalinista estabeleceu Estados operários nesses países, vocês lhe atribuem um papel progressista e até mesmo revolucionário. Ao propagarem esta inverdade monstruosa vocês negam à IV Internacional qualquer razão fundamental de existência como partido mundial da revolução socialista. No passado, nós sempre consideramos o stalinismo como uma força contra-revolucionária em todos os sentidos do termo, vocês já não o fazem, mas eu continuo a fazê-lo.
Em 1932 e 1933, para justificar a capitulação desavergonhada diante do hitlerismo, os stalinistas declararam que pouco importava se os fascistas chegassem ao poder, porque o socialismo viria depois e através do domínio do fascismo. Só brutos desprovidos de humanidade sem uma gota de pensamento ou espírito socialistas poderiam se expressar assim. Hoje, independentemente dos objetivos revolucionários que animam vocês, pretendem que a reação stalinista despótica que triunfou na Europa Oriental é uma das vias pelas quais o socialismo eventualmente virá. Este ponto de vista marca uma ruptura irremediável com as convicções mais profundas que nosso movimento sempre defendeu e que continuo a partilhar.
É impossível segui-los na questão do regime de Tito na Iugoslávia. Toda a simpatia e todo o apoio dos revolucionários, e até de todos os democratas, deveriam ser levados ao povo iugoslavo na sua resistência determinada aos esforços de Moscou para reduzir-lhes e reduzir seu país à servidão, é necessário aproveitar cada concessão que o regime iugoslavo é agora obrigado a fazer ao seu povo. Mas toda a sua imprensa agora está consagrada a uma indesculpável idealização da burocracia titoísta, para a qual não há nenhuma base nas tradições e princípios de nosso movimento. Essa burocracia não é mais que uma réplica, sob uma nova forma, da velha burocracia stalinista. Ela foi educada nas ideias, na política e na moral da GPU. Seu regime não difere em nada de fundamental do regime de Stalin. É absurdo crer ou ensinar que a direção revolucionária do povo iugoslavo desenvolver-se-á desta burocracia ou por outras vias que não a de uma luta contra ela.
O que é mais insuportável que tudo é a posição sobre a guerra com a qual vocês se comprometeram A terceira guerra mundial que ameaça a humanidade põe o movimento revolucionário diante dos problemas mais difíceis, as situações mais complexas, as decisões mais graves. Nossa posição pode ser tomada apenas após discussões feitas da maneira mais séria e mais livre. Mas face aos acontecimentos dos anos recentes, vocês continuam a preconizar a defesa do Estado stalinista e engajando todo o movimento operário nela. Vocês apóiam inclusive agora os exércitos do stalinismo na guerra à qual está submetido o crucificado povo coreano. Eu não posso e nem quero segui-los neste ponto. Em 1927 que Trotsky, em uma resposta a uma questão desleal dirigida a ele no Burô Político, expôs suas posições como segue: Pela pátria socialista, sim! Pelo regime stalinista, não! Isso foi em 1927! Hoje, vinte e três anos depois, Stalin nada deixou da pátria socialista. Ela foi substituída pela escravização e pela degradação do povo pela autocracia stalinista. Este é o estado que vocês propõem defender na guerra, que vocês já estão defendendo na Coréia. Sei muito bem que vocês dizem seguidamente criticar o stalinismo e que o estão combatendo. Mas o fato é que a sua crítica e sua luta perderam o seu valor e não podem dar resultados, porque são determinadas pela posição de defesa do estado stalinista e subordinadas a ela. Quem quer que defenda esse regime de opressão bárbara abandona, independente dos seus motivos, os princípios do socialismo e do internacionalismo.
Na mensagem que me foi enviada pelo último congresso do SWP, está escrito que as ideias de Trotsky continuam a guiá-los. Devo dizer-lhes que li estas palavras com muita amargura. Como puderam constatar pelo que acabo de escrever, não vejo as ideias dele nas suas políticas. Eu tenho confiança nessas ideias. Permaneço convencida de que a única saída para a situação atual é a revolução social, a autoemancipação do proletariado mundial.
Natalia Sedova Trotsky
México D.F., 9 de maio de 1951
FONTE: REVOLUTAS
SITE: https://www.revolutas.net [19]
PUBLICAÇÃO: 08/03/2005
Quando do aniversario da morte de Che Guevara, em 2007 recebemos no contato de Internet da nossa seção na França (Révolution Internationale) duas mensagens sobre Che Guevara de um companheiro que assina E.K. Publicamos aqui pela primeira vez em português esta correspondência entre E.K e a CCI. Para nós, CCI, não se trata de nos colocar na roda dessas celebrações que aconteceram no mundo inteiro em homenagem a memória de Che Guevara, senão, ao contrário, tentar deixar claro se foi realmente um revolucionário e se a classe operária e as gerações jovens devem ou não reivindicar-se de sua ação e exemplo.
Para o companheiro EK, Che Guevara foi um autêntico combatente pela causa dos povos oprimidos. Para ele, com efeito, "o internacionalismo do Che é indubitável. É o modelo de combatente internacional e da solidariedade entre os povos". E teria sido um dos poucos revolucionários em atrever-se a criticar o regime da URSS: "Durante o seminário de solidariedade afro-asiática, o Che critica sem rodeios as posições conservadoras e exploradoras da URSS". E EK expõe nessa primeira carta sua visão do proletariado e do papel dos revolucionários: "Quanto ao agente histórico da transformação social, parece-me que não há razões para reduzir o conceito de proletariado unicamente aos operários, negação absoluta da condição humana. (...) A tarefa dos intelectuais é introduzir no proletariado a consciência de sua situação com meios eminentemente políticos".
Depois de nossa resposta, o companheiro E.K nos mandou muito rapidamente uma segunda mensagem no que, de entrada, se desmarca de quem transforma Che em ícone, fazendo camisetas e pôsteres com sua figura: "A tendência a fazer um mito do Che mediante a midiatização de sua imagem significa ocultar sua vida e sua obra". Mas, sobretudo, EK reafirma que "ao procurar objetivos distintos, o Che acabará, como é muito lógico, separando do modelo social-imperialista da URSS. A CIA e o KGB cooperarão inclusive para livrar-se dele durante sua intentona revolucionária na Bolívia". E EK conclui: "Ernesto Che Guevara pagou com sua vida sua integridade intelectual. Render-lhe homenagem é ler seus textos; perpetuar sua memória é continuar a luta; render-lhe justiça é apoiar seus valores. Em vésperas das celebrações dos 40 anos de sua morte em combate, chegou a hora de voltar a dar força a seu pensamento e vida a suas idéias".
Agradecemos-lhe sua mensagem de abril. Pedimos-lhe desculpas pelo atraso deste complemento à resposta. Queremos fazer aqui uma crítica do que nos tem escrito, que, por muito rude que pareça, não significa, tampouco, um rechaço, mas pelo contrário: continuamos dispostos a responder a suas perguntas e opiniões. Vamos contestar o que você diz sobre o Che Guevara, analisando o mais séria e sinceramente o que de verdade foram como você diz, "seus valores", "suas idéias" e "sua luta".
Che Guevara é um exemplo para a juventude revolucionária de hoje?
Este mês de outubro se celebra, portanto, o 40º aniversário da morte do Che Guevara, assassinado pelo exército boliviano, sob a direção da CIA norte-americana.
Desde 1967, o "Che" converteu-se no símbolo, por assim dizer, da eterna "juventude revolucionária romântica": morto jovem, com as armas na mão, em luta contra o imperialismo americano, grande "defensor das massas pobres da América Latina". Todo mundo tem em mente essa imagem mítica do Che com uma estrela na boina e olhar longínquo e triste.
Seu famoso Diário de viagem contribuíram em grande medida a popularizar a história deste rebelde, filho de boa família argentina um tanto boêmio, que se lança a uma viagem de moto pelos caminhos da América do Sul de então, pondo seus conhecimentos médicos ao serviço dos pobres... Vive na Guatemala em um momento (1956) em que os Estados Unidos urdem o enésimo golpe de estado contra um governo que não lhes convém. Este controle permanente sobre os países da América Latina por parte dos EUA vai alimentar em Guevara durante toda sua vida um ódio irreparável para esse país. Unir-se-á depois no México ao grupo cubano de Fidel Castro, refugiado nesse país depois de uma tentativa abortada de derrubada do ditador cubano, Batista, apoiado durante muito tempo pelos Estados Unidos [1]. Depois de uma série de peripécias, o grupo se instala na Sierra Maestra de Cuba até a derrota de Batista, nos inícios de 1959. O núcleo ideológico desse grupo era o nacionalismo. O "marxismo" não foi mais que um pacote de circunstâncias a uma "resistência antiyanque" exacerbada, por muito que alguns de seus elementos, o próprio Guevara entre eles, se considerassem "marxistas". O Partido Comunista cubano, que anteriormente tinha apoiado a Batista, mandou um de seus dirigentes, Carlos Rafael Rodríguez, ao encontro junto ao Castro em 1958, alguns meses antes da vitória castrista.
Essa guerrilha não é tampouco a expressão de não se sabe que revolta camponesa, e menos ainda da classe operária. Foi a expressão militar de uma fração da burguesia cubana que queria quer derrubar à fração no poder para ocupar seu posto. Não houve nenhum "levante popular" na tomada do poder pela guerrilha castrista. Aparece, como tantas vezes ocorreu na América Latina, como uma troca de uma camarilha militar por outra formação armada, no que as camadas exploradas e pobres da população da ilha, alistadas ou não pelos combatentes da guerrilha, não desempenharam nenhum papel relevante a não ser o de lançar saudações aos novos donos do poder. Diante de uma resistência bem fraca por parte da soldadesca de Batista, Guevara aparece como o intrépido guerrilheiro de quem determinação e carisma crescente poderiam chegar, inclusive, a fazer sombra a seu chefe Fidel. Depois da vitória sobre Batista, Fidel Castro vai encarregar a Che de instaurar alguns "tribunais revolucionários", uma máscara sangrenta na melhor tradição dos ajustes de contas entre frações das diferentes burguesias nacionais, em particular na América Latina. Che Guevara leva muito a sério seu papel, por convicção e com zelo, instalando uma justiça "revolucionária" em que, para alívio coletivo, julga-se aos esbirros torturadores do regime de Batista, sem nenhuma prudência visto que uma simples denúncia podia custar o fuzilamento. E Guevara reivindicará mais tarde na ONU, onde, respondendo aos representantes latino-americanos, os notáveis mestres "democráticos", "preocupados" por uns métodos tão conhecidos por eles, declara: "Fuzilamos, estamos fuzilando e continuaremos fuzilando enquanto for necessário". Ou seja, enquanto "for necessário": até que a gente se dê conta de quem manda; primeiro liquidar aos antigos donos e, sobretudo, criar as condições adequadas para esmagar a menor resistência que venha "de baixo". Essas declarações não têm nada a ver com uma defesa mais ou menos torpe, de uma justiça revolucionária. Essas palavras correspondem, repitamos, aos métodos típicos de uma fração da burguesia que desaloja a outra pela força das armas.
Pode então identificar-se com o "herói" austero da Sierra Maestra, com o "guerrilheiro heróico" que morrerá alguns anos mais tarde na serra boliviana, mas no mundo real, outorgaram-lhe o papel de executor das sujas tarefas na instauração de um regime que de comunista só tem o nome.
Che Guevara: internacionalista?
EK, você nos diz: "o internacionalismo do Che é indubitável" e "Durante o seminário de solidariedade afro-asiática, o Che critica sem rodeios as posições conservadoras e exploradoras da URSS" e que "acabará, como é muito lógico, separando do modelo social-imperialista da URSS".
O regime nacionalista de Castro logo se revestiu o qualificativo de "comunista", o que significa simplesmente que se integrou... no campo imperialista regido pela URSS. Considerando a situação geográfica de Cuba, situada a poucas milhas das costas dos EUA, isso traria inquietação evidentemente ao amo do bloco ocidental. O processo de stalinização da ilha, com uma presença de pessoal civil e, sobretudo, militar e dos serviços secretos dos países do bloco do Leste, culminará em 1962 no momento da "crise dos mísseis".
Nesse processo, Che Guevara, agora ministro da Indústria (1960-61), para soldar a nova aliança com o "campo socialista", é enviado por Castro a uma excursão pelos países desse campo. De volta a Cuba, na televisão, dedica-se a apresentar programas propagandísticos no "ano da educação" com discursos dos mais entusiásticos sobre a URSS: "esse país que tão profundamente ama a paz", "onde impera a liberdade de pensamento", "mãe da liberdade"... E elogia "a extraordinária" Coréia do Norte e logo a China do Mao onde "todos estão cheios de entusiasmo, todos fazem horas extraordinárias" e assim para todos os países do Leste: "as realizações dos países socialistas são extraordinárias. Não há comparação possível entre seus sistemas de vida, seus sistemas de desenvolvimento e os dos países capitalistas". Um verdadeiro viajante de comércio do modelo stalinista! Mais adiante, falaremos do "desamor" de Guevara para com a URSS. Mas, contrariamente ao que você afirma, o Che nunca expressou a menor dúvida de princípio sobre o sistema stalinista. Para ele, a URSS e seu bloco eram o campo "socialista, progressista" e sua própria luta se integrava plenamente na do bloco russo contra o bloco ocidental. A ordem lançada por Guevara de "Criar um, dois, vários Vietnãs", não é uma ordem "internacionalista", mas sim uma ordem nacionalista e favorável ao bloco do Leste. O único critério verdadeiro dessa consigna não é, tampouco, a mudança social, mas sim o ódio ao chefe do outro bloco, os Estados Unidos.
Com efeito, depois da 2ª Guerra mundial, o mundo se encontrou dividido em dois blocos antagônicos, um bloco regido pelos EUA e o outro pela URSS. A "libertação nacional" confirmou-se então como uma mistificação ideológica perfeita para justificar o alistamento militar da população. Nessas guerras, nem a classe operária nem as demais classes exploradas tinham nada a ganhar, servem de massa de manobra para as diferentes frações da classe dominante e de seus padrinhos imperialistas. A partilha do mundo entre dois blocos depois dos acordos de Yalta implicava que qualquer saída de um bloco só se poderia fazer caindo no bloco adversário. E, precisamente, não há melhor exemplo que o de Cuba: este país passou da ditadura corrupta de Batista, submetida diretamente a Washington, seus serviços secretos e todo tipo de máfias, ao controle do bloco estalinista. A história de Cuba é um concentrado da história trágica das "lutas de libertação nacional" durante mais de meio século!
Assim, acima de tudo, antes de dizer quando e como Guevara teria se "desviado" mais ou menos da URSS, temos que deixar as coisas claras sobre a natureza da URSS e de seu bloco. Depois da defesa de um Che Guevara revolucionário está a idéia de que a URSS, pouco ou muito, apesar de seus defeitos e demais... era o "bloco socialista, progressista". Essa é a maior mentira do século XX. Houve, sim, uma revolução proletária na Rússia, mas foi derrotada. À forma stalinista da contrarrevolução deu-se uma consigna: a "construção do socialismo em um só país", uma consigna que se localiza no extremo oposto do marxismo. Para o marxismo, "os proletários não têm pátria" [2]. Foi este internacionalismo autêntico a bússola da onda revolucionária mundial que se iniciou em 1917 e a de todos os revolucionários de então, desde Lênin e os bolcheviques até Rosa Luxemburgo e os spartaquistas [3]. A adoção dessa aberração "teórica" de uma "pátria socialista" a defender foi arrematada com o recurso sistemático a um método burguês: o terror e o capitalismo de Estado, uma das expressões mais totalitárias e ferozes da exploração capitalista.
O Che "se desviou do modelo social-imperialista da URSS"?
A origem das críticas do Che à URSS foi a frustração provocada pela "crise dos mísseis", em 1962. Para a URSS, apoderar-se de Cuba era uma ocasião que não podia se desperdiçar. Finalmente, poderiam pagar na mesma moeda aos Estados Unidos, país que a ameaçava diretamente suas portas a partir dos países vizinhos como a Turquia. A URSS começa a instalar rampas de lançamento de mísseis nucleares há poucas milhas da costa norte-americana. Estados Unidos, mediante um cerco total à ilha, obriga aos navios russos a dar meia volta. Kruschev, que era então o chefe do Kremlin, viu-se finalmente obrigado a retirar seus mísseis. É necessário dizer que durante aqueles dias de outubro de 1962, os enfrentamentos imperialistas entre quem pretendia representar o "mundo livre" e quem pretendia representar o "mundo socialista progressista" puseram à humanidade inteira à beira do abismo. Krushev foi considerado pelos dirigentes castristas como uma "joaninha" que não tinha "os ovos" de atacar aos Estados Unidos. Em um ataque de histeria patriótica em que o slogan castrista de "Pátria ou Morte" exibia seu sentido mais sinistro, os dirigentes cubanos estão dispostos a sacrificar seu povo (eles dirão que é o povo que está preparado para o sacrifício) no altar da guerra atômica. Nesse delírio perverso, Guevara está, evidentemente, na primeira fila. Escreve: "Tem razão [os países da OEA [4] de ter medo da "subversão cubana"], pois é o exemplo de um povo disposto a sacrificar-se sob as armas atômicas para que suas cinzas sirvam de cimento às novas sociedades e que, quando se concluiu um acordo sobre a retirada dos mísseis sem que lhe tivesse consultado, não deixa escapar um suspiro de alívio, não acolhe a trégua com reconhecimento. Lança-se à rua para [...] afirmar [...] sua decisão de lutar, inclusive somente ele, contra todos os perigos e contra a própria ameaça atômica do imperialismo ianque" [5]. Esse "herói" decidiu que o povo cubano estava disposto a sacrificar-se pela pátria... Assim, a base da "decepção", da crítica em relação à URSS não foi a perda da crença nas virtudes do "comunismo soviético" (ou seja, o capitalismo stalinista), e sim, pelo contrário, a decepção vem de que esse sistema não foi até o final de sua lógica de guerra, de enfrentamento, não tinha "os ovos" de ir ao limite explosivo da "Guerra Fria". E no discurso de Argel feito por Che Guevara, em que você se apóia para afirmar que o Che "se separou do modelo social-imperialista da URSS" não muda nada na realidade a raiz stalinista das posições de Guevara. Ao contrário! Nesse famoso discurso, o Che crítica, sim, o "mercantilismo" nas relações entre os países do bloco da URSS, mas segue chamando-os socialistas e "povos amigos": "Os países socialistas são, de certo modo, cúmplices da exploração capitalista [...]. Têm o dever moral de liquidar sua cumplicidade tácita com os países exploradores do oeste." Detrás de sua aparência radical, essa crítica é uma crítica de dentro do sistema stalinista. Mais ainda, é a crítica de um responsável que participou com toda sua força na instauração do sistema de capitalismo de Estado em Cuba. E, certamente, nunca usou na sua crítica expressões tais como " imperialismo". Além do mais nunca mais voltou a fazer a menor crítica oficial à URSS.
Certo, Che Guevara, no momento em que foi assassinado pela CIA e o exército boliviano em 1967, foi vítima não só do imperialismo americano, mas também, sem dúvida, também da nova orientação política do Kremlin, chamada "coexistência pacífica" com o bloco ocidental. Não vamos tratar aqui sobre as razões que levaram a direção da URSS e de seu bloco a dar esse "giro". Mas essa mudança não tem nada a ver com não se sabe que "traição" com os povos que queriam se libertar do imperialismo, nem com o proletariado. A política da classe dominante stalinista mudava de rumo em função de seus interesses como classe dominante e, precisamente, a crise dos mísseis foi a demonstração para os dirigentes do imperialismo stalinista de que não dispunham dos meios para desafiar o chefe do outro bloco ante seus próprios narizes e que deveriam ser prudentes na América Latina.
Isso é o que Guevara e uma fração de dirigentes cubanos não querem entender, até o ponto de acabar sendo incômodos não só para a URSS, mas também inclusive com seus próprios amigos da ilha. A partir de então, o destino de Che Guevara ficou selado: depois da desastrosa aventura no Congo [6], acabará encontrando-se só na Bolívia, com um punhado de companheiros de armas, abandonado pelo PC boliviano, que, finalmente, depois de muitos rodeios, acabará adotando a nova linha de Moscou. Para as frações mais "moscovitas", os defensores da tática do "foco" guerrilheiro eram um bando de pequeno-burgueses com anseios de aventuras, "isolados das massas". E para as facções dos PC favoráveis à luta armada, com seus apoios críticos de todo tipo, os "dirigentes" dos PC eram uns "revolucionários de salão", uns burocratas aburguesados e ademais... também "isolados das massas". Para nós, que nos reivindicamos da Esquerda Comunista, são ambas duas formas da mesma contrarrevolução, duas variantes da mesma grande mentira do século, a mentira de apresentar a contrarrevolução stalinista como a continuadora da revolução de Outubro e a URSS e seus clones como comunistas.
Que visão tinha Che Guevara da classe operária?
Para você, EK, a tarefa dos intelectuais seria "introduzir no proletariado a consciência de sua situação ...". Nisto parece adotar a visão de Che Guevara sobre "a elite revolucionária". Mas detrás dessa posição do Che há, na realidade, um profundo desprezo pela classe operária. O que é que há detrás de seus lirismos sobre "o novo homem na revolução cubana"?
A unidade proletária revolucionária tem uma base prática muito concreta: a solidariedade de classe. É esta solidariedade espontânea, feita de ajuda mútua e fraternidade, o que inspira a generosidade, a entrega, as qualidades do proletariado revolucionário. Mas essa "entrega" na boca da Guevara, soa, no melhor dos casos, como uma chamada quase mística ao martírio supremo (tem que reconhecer que ele sempre esteve preparado para o sacrifício, e disposto sem dúvida a virar "cinza", mártir pela causa imperialista que defendia, junto com todo o povo cubano "voluntário", no momento da crise dos mísseis)... Por trás de seu próprio comportamento "exemplar" está essa visão do "sacrifício" ou do "heroísmo" (do mesmo estilo que todos os idealismos patrióticos exaltados pelo stalinismo, por exemplo, na Resistência francesa durante a Segunda Guerra mundial) que deveria se impor de cima, pelas necessidades do Estado e sob o mando de um "líder máximo". Essa visão contém esse desprezo do intelectual pequeno-burguês para com "a massa proletária" a qual se olha de cima, a que terá que "educar" para que acabe entendendo o grandioso da revolução e suas vantagens. "Este ente multifacético [a massa], escreve com condescendência Guevara, não (...) atua como um manso rebanho. É verdade que segue sem vacilar a seus dirigentes, fundamentalmente a Fidel Castro, mas o grau em que ele ganhou essa confiança responde precisamente à interpretação cabal dos desejos do povo, de suas aspirações, e à luta sincera pelo cumprimento das promessas feitas." (...) "Vistas as coisas de um ponto de vista superficial, poderia parecer que têm razão aqueles que falam de sujeição do indivíduo ao Estado, a massa realiza com entusiasmo e disciplina sem iguais as tarefas que o governo fixa, seja de índole econômica, cultural, de defesa, esportiva, etcétera. A iniciativa parte em geral do Fidel ou do alto comando da revolução e é explicada ao povo que a toma como sua" (O socialismo e o homem em Cuba, 1965).
De fato, quando nos diz "que não há razão para reduzir o conceito de proletariado unicamente aos operários", seu raciocínio se arraiga sem dúvida e, possivelmente, involuntariamente, nessa visão depreciativa da classe operária [7]. De fato, duas das características comuns dessas metamorfoses do stalinismo (do maoísmo ao castrismo), são sua desconfiança e seu desprezo pela classe operária, fazendo de um mítico grupo de camponeses pobres o "agente da revolução" dirigido por uns intelectuais possuidores da consciência que "introduzem" no cérebro das massas. No melhor dos casos, a classe operária era para esses neostalinista, uma massa de manobra que lhes servia de referência histórica, uma comparsa de sua revolução. Não há em nenhum escrito desses "revolucionários", e menos ainda em sua prática, a menor referência à classe operária organizada como tal e às organizações do poder de classe, os sovietes. Esses clones do stalinismo já não precisam disfarçar sua ideologia capitalista de Estado e falar de conselhos operários ou outras expressões da vida proletária durante a onda revolucionária de 1917-1927. Agora só resta o Estado, dirigido por gente "ilustrada" e, abaixo, as massas, às quais deixa, às vezes, dar provas de "iniciativa", enquadrada em "comitês de defesa da revolução" e demais organismos de vigilância social.
E em Cuba, um dos primeiros órgãos de enquadramento e direção da classe operária foram, uma vez mais e sem surpresa, os sindicatos. Os sindicatos cubanos (CTC) já eram alguns sindicatos, ao modo americano, perfeitamente integrados no "capitalismo liberal" e suas corrupções. E vão ser rapidamente transformados pela direção cubana, em 1960, em sindicatos ao modo stalinista, segundo o modelo estatal. Entre as primeiras decisões dos sindicatos do regime castrista estará a de nivelar os salários por baixo e fazer respeitar a proibição das greves nas empresas. E também se justificará esse ataque contra a classe operária com a ideologia anti-ianque e de "defesa do povo cubano". Aproveitando em 1960 uma greve contra o rebaixamento de salários dos operários de empresas pertencentes ao capital americano, os dirigentes castristas estigmatizam essa greve de "privilegiados" para declarar a "greve à greve" em palavras do novo dirigente castrista da CTC.
Nestas semanas nos encheram as telas com as controvérsias sobre a vida e a obra do Che. Por um lado, na linha dos propagandistas da "morte do comunismo", as frações direitistas ou centristas da burguesia vão aproveitar a ocasião para reaquecer sua sujeira com a ajuda servil de um ou outro historiador arrependido, preparados agora para denunciar o papel "antidemocrático" do Che, seu papel de chefe executante responsável pelos tribunais "revolucionários" no princípio da era castrista, polemizando uns e outros nas telas sobre se as execuções foram "excessivas", se houve ou não um "banho de sangue", se foi uma justiça "arbitrária" ou, ao contrário, "moderada". Para nós, como dizíamos antes, simplesmente desempenhou o papel necessário para instaurar um novo regime tão burguês, capitalista e repressivo como o precedente. E, por outro lado, servem-nos mentiras ou meias verdades em sua honra. Isso é demonstrado como a Liga Comunista Revolucionária, na França, em sua vontade de ocupar a poltrona do moribundo Partido Comunista Francês e ser o primeiro partido "anticapitalista" da França, utiliza-se de Che, explorando à vontade sua imagem "jovem e rebelde" [8].
Estimado companheiro EK, a realidade é essa: detrás da camiseta com a efígie do Che, há, sem dúvida, um coração generoso e sincero de pessoas que querem combater contra as injustiças e as atrocidades deste mundo capitalista. Além do mais, se coloca o Che na frente, é precisamente para esterilizar o entusiasmo que acompanha a paixão revolucionária. Mas Che não é mais que uma das figuras da grande corte de dirigentes nacionalistas e stalinistas, sem dúvida mais atrativa que as demais, mas representativa, entretanto, dessa metamorfose tropical da contrarrevolução stalinista que é o castrismo.
Apesar de todas nossas divergências, companheiro EK, a discussão segue aberta....
Corrente Comunista Internacional
[1] O êxito da operação da derrubada de Batista por Castro e Guevara se beneficiou, de fato, do apoio dos EUA e da compreensão de uma parte da direita, que tinha começado a se incomodar seriamente com o nível de corrupção do regime. O governo americano decidiu o embargo de armas para Cuba, que, definitivamente, privou de meios a Batista para lutar contra a guerrilha. Será ao cabo de uns meses de exercício do novo poder castrista quando as relações entre o EUA e Cuba acabarão deteriorando-se e, ante a ameaça de intervenção daquele país, que o regime castrista começaria a integrar-se no bloco russo.
[2] Citação muito conhecida do Manifesto Comunista de 1848, redigido pelo Marx e Engels.
[3] Temos escrito muito sobre Outubro de 1917. Podem lê-se os textos seguintes: A revolução proletária de outubro de 1917 é produto da ação consciente e massiva dos trabalhadores (https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/outubro_1917 [21]); Revolução Mundial ou destruição da humanidade (https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/outubro_1917 [21]).
[4] Organização de Estados Americanos, organismo continental, na realidade ao serviço do EUA, e da qual foi excluída a Cuba castrista.
[5] Escrito no momento da "crise dos mísseis", publicará-se mais tarde, em 1968, em uma revista do exército cubano. Reproduzido na biografia do Che por Pierre Kalfon (e traduzido do francês por nós).
[6] Em 1965, possivelmente para por em prática a ordem de "Dois, três Vietnãs...", um punhado de cubanos se instala no leste da República do Congo (Ex-Zaire) para organizar um "foco anti-imperialista", tudo organizado pelos serviços secretos cubanos com o acordo da URSS (possivelmente, também, para livrar-se do Che). Desde o começo a aventura no Congo aparece como um desastre anunciado: Guevara encontra-se sob as ordens políticas de uma facção de dirigentes congoleses (entre eles Kabila, futuro presidente-ditador do Zaire nos anos 1990), alguns aventureiros que levam a boa vida graças aos subsídios soviéticos e chineses. A população, por sua parte, que pelo visto ia receber com os braços abertos os seus "libertadores" fica bem mais espantada com a visão dessa gente saída de não se sabe onde. Foi uma antecipação do que ia ocorrer na Bolívia no ano seguinte. Deve-se dizer que mais tarde, por conta do imperialismo russo, milhares de cubanos continuaram servindo de "instrutores militares" (e de carne de canhão) em várias "guerras de libertação nacional" em terras africanas (Guiné-Bissau, Moçambique, Angola,...) até o desmoronamento da URSS e de seu bloco em princípios dos anos 90.
[7] Não podemos desenvolver aqui o que é o proletariado ou classe operária, duas expressões equivalentes para nós. Digamos, isso sim, que nossa visão da classe operária não tem nada a ver com a sociologia nem com essas imagens de estampa realista do operário de macacão e botas. Tratamos disso na seguinte série (espanhol): "¿Quién podrá cambiar el mundo? I - El proletariado es la clase revolucionaria [22]" 2ª parte: "¿Quién podrá cambiar el mundo? II - El proletariado sigue siendo la clase revolucionaria [23]"
[8] O líder da LCR, Olivier Besancenot, afirmou durante a campanha eleitoral francesa que seu partido se identifica hoje muito mais com o Che que com Trotsky, ainda que desde seu nascimento essa organização legitimava fraudulentamente, sua identidade à classe operária, reivindicando-se acima de tudo daquele grande militante bolchevique. Marx gostava de sublinhar as ironias da história. E é hoje uma das mais mordazes: constatar que esta nova propaganda da LCR, em seu afã de parecer jovem e estar na moda para atrair à novas gerações da classe operária, reivindica-se de um herdeiro, afinal de contas, da camada stalinista e de sua ideologia, essa mesma matilha que assassinou há mais de sessenta anos a um revolucionário que por muitas incompreensões que tivesse, era um revolucionário de verdade, um tal .... León Trotsky.
Publicamos a seguir nossos comentários sobre o livro Descaminhos da esquerda: Da centralidade do trabalho à centralidade da política de Ivo Tonet e Adriano Nascimento. [1]
A questão essencial que coloca este livro é de grande interesse para o futuro da luta de classes e também o da humanidade, que depende desta:
Segundo a nossa própria interpretação da tese dos autores do livro, a situação que descrevem seria resultado de um abandono progressivo do que fundamenta a essência revolucionária desta classe (por excelência a classe do trabalho associado), isto é, seu lugar no seio das relações de produção. O enfraquecimento da dimensão "social" da luta do proletariado ter-se-ia produzido assim em benefício da sua dimensão "política". Os autores resumem isso através da formulação seguinte:
Um conjunto de pontos de vista essenciais defendidos no livro correspondem, segundo o que pensamos, às necessidades da luta histórica do proletariado para sua emancipação: a visão do comunismo, a defesa do materialismo histórico, a insistência sobre a grande importância do trabalho associado da classe operária na transformação social depois da revolução, a luta contra a veneração do Estado. Temos, entretanto, desacordos com os autores sobre algumas questões, os quais explicitaremos ao longo de nossos comentários. Assinalamos só um entre eles, já nesta introdução: a crítica feita pelos autores à orientação "por demais política" tomada pelas organizações que se reivindicam do movimento operário, particularmente desde a fundação e o desenvolvimento dos partidos social-democratas no final do século XIX. Para nós, não se trata de uma dimensão "por demais política", mas de uma política específica proveniente de organizações operárias cada vez mais gangrenadas pelo oportunismo. Pior ainda, trata-se também de uma política claramente a serviço da perpetuação deste sistema travada por ex-organizações operárias que não têm mais nada a ver com a defesa dos interesses históricos do proletariado e que guardam de "operário" só o discurso para melhor mistificar a classe revolucionária. Por fim, e ligado ao que precede, há que se constatar que um bom conhecimento do marxismo não impediu os autores do livro de sucumbir às mistificações da burguesia, retomando por sua conta as mentiras quanto ao caráter revolucionário de confrontações que, na realidade, só foram lutas entre frações rivais da burguesia, as quais levaram ao estabelecimento de regimes capitalistas de Estado como na China ou em Cuba. Ao fazer isso, os autores apresentam autênticos servidores do capital nacional, como Mao ou Fidel Castro, como revolucionários, enquanto estes nunca tiveram nada a ver com o movimento revolucionário da classe operária para sua emancipação.
Durante a nossa analise crítica, não nos satisfaremos em afirmar nosso acordo com as ideias que apoiamos, mas argumentaremos em seu favor, notadamente através de referências à obra de Marx. Este "apoio" pode não convir aos autores do livro ou àqueles que compartilham as opiniões expressas por ele. Entendemos isso muito bem e, neste caso, incitamos os mesmos para que se manifestem e alimentem o debate. Esta chamada à crítica se aplica mais ainda à nossa crítica das ideias do livro que não compartilhamos.
Com efeito, o que permitiu a Marx superar suas hesitações sobre o comunismo foi o reconhecimento de que existia na sociedade uma força com um interesse material para o comunismo. Dado que o comunismo tinha deixado de ser a abstração dogmática, o simples belo ideal dos utopistas, o papel dos comunistas não se reduzia mais a pregar contra os danos do capitalismo e a favor dos benefícios do comunismo. Significava identificar-se com as lutas da classe operária, mostrando ao proletariado "porque luta" e como "deve adquirir a consciência" dos objetivos finais de sua luta. A adesão de Marx ao comunismo se confunde com sua adesão à causa do proletariado que é a classe portadora do comunismo. [2]
A exposição clássica de sua posição se encontra na passagem final de A crítica da filosofia do direito de Hegel. Apesar deste artigo ter sido consagrado à questão de saber qual força social permitiria à Alemanha se emancipar de suas cadeias feudais, a resposta dada era na realidade mais adaptada à questão: Como a humanidade podia se emancipar do capitalismo? Com efeito, desenvolve que:
"a possibilidade positiva da emancipação alemã "reside"na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a dissolução de todos os estados; de uma esfera que possui um carácter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas simplesmente ao título humano; (...) de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu objectivo mediante a recuperação total do homem. Esta dissolução da sociedade como uma classe especial é o proletariado." [3]
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, depois de ter examinado as diversas facetas da alienação humana, Marx dedicou-se à crítica das concepções do comunismo, rudimentares e inadequadas, que predominavam no movimento proletário dessa época. Marx rechaçou as concepções herdadas de Babeuf que os adeptos de Blanqui continuavam a defender, pois tendiam a apresentar o comunismo como um nivelamento geral por baixo, uma negação da cultura em que "a condição do trabalhador não é abolida, mas generalizada a todos os homens" [4]. Nesta concepção, todo mundo devia se tornar trabalhador assalariado sob a dominação de um capital coletivo, da "comunidade como capitalista universal" [5]
Em virtude de Marx nunca ter publicado pessoalmente os Manuscritos Econômico-Filosóficos e que nesta obra tratasse de questões aparentemente pouco desenvolvidas nos seus escritos posteriores, alguns supuseram que esta obra expressava um Marx imaturo, feuerbachiano, até hegeliano, que o Marx posterior, mais maduro e científico, teria rechaçado de maneira decisiva. Os principais defensores deste ponto de vista foram ... os stalinistas, e particularmente Althusser, seu digno teórico francês nos anos 1960-70. Segundo eles, o que Marx abandonou essencialmente é a concepção da natureza humana que se encontra nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, e em particular a noção de alienação. [6]
É óbvio que tal ponto de vista não pode ser considerado independentemente da natureza de classe burguesa do stalinismo. A crítica do trabalho alienado nos Manuscritos Econômico-Filosóficos está intimamente ligada à crítica do "comunismo de quartel", um comunismo em que a comunidade se torna capitalismo abstrato pagando salários, visão do comunismo que foi defendida por autênticas correntes proletários imaturas como os Blanquistas nessa época. [7] Marx condena francamente tais visões do comunismo nos Manuscritos Econômico-Filosóficos pois, para ele, o comunismo só tinha sentido ao acabar com a aniquilação das capacidades criativas do homem e transformar o fardo do trabalho numa atividade livre e alegre.
Ao rechaçar essas concepções, Marx já se antecipava os argumentos que os revolucionários tiveram que desenvolver no século XX para demonstrar a natureza capitalista dos regimes ditos "comunistas" do ex-bloco do Leste (Ressalte-se que estes últimos foram produtos monstruosos de uma contrarrevolução burguesa e não a expressão de um movimento operário imaturo). [8]
Marx também criticou as versões mais "democráticas" e sofisticadas do comunismo como aquelas que Considérant [9] e outros desenvolveram, pois eram "de natureza ainda política"; quer dizer, que estas não propunham mudanças radicais das relações sociais; só propunham mudanças "ainda incompletas e influenciadas pela propriedade privada, isto é, pela alienação do homem." [10]
Um ano depois dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx e Engels desenvolvem em A Ideologia alemã uma visão coerente das bases práticas e objetivas do movimento da história (e, portanto, das diferentes etapas da alienação humana). A história se apresentava agora claramente como uma sucessão de modos de produção, desde a comunidade tribal até o feudalismo e capitalismo passando pela sociedade antiga. O que constituía o elemento dinâmico deste movimento não era mais as ideias ou os sentimentos humanos, mas a produção material das necessidades vitais:
"(...) o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder "fazer história". Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos." [11]
O Prefácio à Contribuição à Crítica da economia política fornece, concentradadamente, o quadro de compreensão da origem das diferentes formações sociais que se sucederam desde o comunismo primitivo, em ligação com o desenvolvimento das forças produtivas:
"(...) na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral" [12].
Também é a chave da compreensão da ligação entre a consciência e as condições materiais de existência, portanto, da consciência das classes revolucionárias no seio destas sociedades:
"Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência.... é preciso (...) explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção" [13]
Este procedimento em relação à história não descarta o papel ativo da consciência, da crença e das instituições políticas e jurídicas, nem a realidade de seu impacto sobre as relações sociais e o desenvolvimento das forças produtivas. [14]
Esta questão não é abordada explicitamente no livro. Consagramos, entretanto, a esta algumas linhas na continuação do materialismo histórico, na medida em que tal abordagem teórica é indispensável para fundar o fato de que uma análise da dinâmica da luta de classes não pode ser limitada a um estudo de suas vanguardas consideradas em si. Com efeito, mesmo se em certas circunstâncias sua intervenção pode ser decisiva, não são as vanguardas que fazem o movimento operário (ao contrário da visão desenvolvida por Trotsky no seu Programa de Transição em 1938, totalmente alheia ao método marxista, segundo a qual, a crise do movimento revolucionário resumir-se-ia à crise de sua direção).
A consciência histórica emerge da necessidade do proletariado adquirir a consciência total da realidade a partir de seu ponto de vista de classe. Tal conhecimento, entretanto não lhe é espontaneamente dado. Pelo contrário, é um processo que se sintoniza com o desenvolvimento heterogêneo e doloroso de sua prática e teoria que são confrontadas, desde o início, às pressões coercitivas da burguesia.
Como classe explorada, o proletariado sofre um desprovimento total no seio da sociedade que o determina a ser a primeira vítima da ideologia burguesa. A contradição dialética que existe entre sua situação de classe revolucionária e de classe explorada resulta na impossibilidade de desenvolver sua consciência segundo o princípio estável de uma ideologia ou de uma série de receitas práticas. Assim, o proletariado (que é ao mesmo tempo sujeito e objeto do conhecimento) só toma consciência de sua situação num processo real ligado às condições materiais de sua existência social.
São as condições objetivas e a presença sempre opressora da ideologia dominante que obrigam o proletariado a segregar as minorias revolucionárias, como parte integrante de sua tendência a se constituir em classe revolucionária, para acelerar o processo de teorização de suas aquisições históricas e sua divulgação no seio das lutas. A consciência de classe não é um "espelho" da realidade, reflexo mecânico da situação econômica da classe operária (nestas condições, não teria nenhum papel ativo), e não é espontaneamente produzida no solo da exploração capitalista. [15]
Contra a concepção que transforma o marxismo numa ideologia do fatalismo histórico, que faz um culto da "espontaneidade dos operários" e condena o partido à inação, Lênin (na sua polêmica desenvolvida em Que fazer? em 1902, contra os economicistas) demonstrou com vigor a necessidade do proletariado passar da luta econômica à luta política e defendeu a força da teoria e da ação revolucionárias. Entretanto, a partir de uma preocupação válida (lembrar o objetivo político final das lutas econômicas) acabou subestimando a luta econômica. Segundo essa visão, as lutas reivindicativas não são mais o solo fértil do desenvolvimento da consciência de classe e a dimensão política do movimento evolui "fora da esfera das relações de produção". [16] Mais tarde, Lênin será capaz de reconhecer e corrigir o erro como testemunham várias intervenções de sua parte sobre este assunto [17], esta em particular:
"A verdadeira educação das massas não pode nunca ser separada de uma luta política independente, e sobretudo da luta revolucionária das próprias massas. Só a acção educa a classe explorada, só ela lhe dá a medida das suas forças, alarga o seu horizonte, aumenta as suas capacidades, esclarece a sua inteligência e tempera a sua vontade." [18]
A presença sempre opressora da ideologia dominante que afeta o proletariado na sua tomada de consciência não poupa suas vanguardas que, embora melhor preparadas para enfrentá-la, não são isentas da penetração daquela no seu seio. É o que, em particular, gera o fenômeno do oportunismo, que nunca poupou nenhuma organização do proletariado e deu lugar, dentro destas, a combates políticos memoráveis que agora fazem parte do patrimônio histórico da classe operária: o combate da esquerda marxista no seio dos partidos da Segunda Internacional contra o peso do reformismo; o combate das esquerdas comunistas no seio dos partidos comunistas em reação ao abandono progressivo dos princípios e objetivos últimos da luta sob a pressão do refluxo da onda revolucionária mundial.
Com efeito, a luta do proletariado é fundamentalmente social na plena acepção do termo. Porta, no seu triunfo, a dissolução de todas as classes e da própria classe operária na comunidade humana reconstituída em escala do mundial. Entretanto, esta dissolução passa necessariamente pela luta política - quer dizer, tendo em vista o estabelecimento de seu poder na sociedade - pela qual a classe operária cria os instrumentos que são suas organizações revolucionárias, os partidos políticos.[19]
Apesar de ser muito crítico desde o início em relação às visões "por demais políticas" do comunismo, Marx sempre pregou e praticou o envolvimento no combate político. Assim, na sua carta a Ruge em setembro de 1843, declarava: "Nada nos impede, portanto, de vincular nossa crítica à crítica da política, ao ato de tomar partido na política, ou seja , nas lutas reais, e de identificar-se com elas." [20]
De fato, a necessidade de se envolver as lutas políticas, para realizar uma transformação social mais total, era parte integrante da própria natureza da revolução proletária: "não digam que o movimento social exclui o movimento político" [21] escreveu Marx na sua polêmica contra o "anti-político" Proudhon. Com efeito, "não há jamais, movimento político que não seja, ao mesmo tempo social. Somente numa ordem de coisas em que não existam mais classes e antagonismos entre classes que as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas." [22]
Já em 1843, apesar de Marx ter reconhecido o proletariado moderno como agente da transformação comunista, os Manuscritos Econômico-Filosóficos não são ainda precisos sobre o movimento social que levará a sociedade de alienação à comunidade humana autêntica. Este desenvolvimento fundamental no pensamento de Marx chegará à luz através da convergência de dois elementos vitais: a elaboração do método materialista histórico e a politização aberta do projeto comunista. [23]
A ideologia alemã sublinha que no fim deste vasto movimento histórico, como nos modos de produção anteriores, o capitalismo é condenado a desaparecer, não por conta de sua falência moral, mas porque suas contradições internas o constrangem a se audodestruir e porque ele gerou uma classe capaz de substituí-lo por uma forma superior de organização social:
"No desenvolvimento das forças produtivas advém uma fase em que surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que, no marco das relações existentes, causam somente malefícios e não são mais forças de produção, mas forças de destruição (maquinaria e dinheiro) - e, ligada a isso, surge uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens e que, expulsa da sociedade, é forçada à mais decidida oposição a todas as outras classes; uma classe que configura a maioria dos membros da sociedade e da qual emana a consciência da necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista (...)" [24]A primeira parte do Manifesto comunista expõe a nova teoria da história, anunciada pela famosa frase "A história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes" [25]. O proletariado diferenciava-se da burguesia em que não podia, como classe explorada e sem propriedade, edificar a base econômica de uma nova sociedade dentro da antiga. A revolução que colocaria um termo a todas as formas de dominação de classe, portanto, não podia começar senão com o assalto político contra a ordem antiga. Seu primeiro ato seria a tomada do poder político por uma classe sem propriedade que, sobre esta base, iniciaria as transformações econômicas e sociais levando a uma sociedade sem classes:
" Uma vez desaparecidos os antagonismos de classes no curso do desenvolvimento e sendo concentrada toda a produção propriamente falando nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político. O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui forçosamente em classe; converte-se, por uma revolução, em classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas relações de produção, destrói juntamente com essas relações de produção, as condições dos antagonismos entre as classes e as classes em geral e, com isso, sua própria dominação como classe.." [26]
Dá para perceber, no que precede, a existência de sensibilidades diferentes entre o livro e nós, a propósito da natureza ao mesmo tempo política e social do combate pelo comunismo. Mas, a este estágio é difícil caracterizar claramente as diferenças. Voltaremos a este assunto no momento da concretização histórica, em particular através do exemplo da revolução russa.
Segundo a concepção popular errada que todos os porta-vozes da burguesia, da imprensa e nas universidades, retomam sistematicamente, o comunismo seria uma sociedade onde tudo é dirigido pelo Estado. Toda a identificação entre o comunismo e os regimes stalinistas é apoiada sobre esta presunção. É uma total falsificação, uma inversão da realidade. Para Marx, para Engels, para todos os revolucionários que seguiram seu caminho, o comunismo significa uma sociedade sem Estado, uma sociedade em que os seres humanos dirigem as coisas sem que uma potência coercitiva os domine, sem governo, sem exército, sem prisões e sem fronteiras nacionais. [27]
Antes de se tornar claramente comunista, Marx já tinha criticado a idealização hegeliana do Estado. Para Hegel, o Estado (e, portanto, o Estado na Prússia) definia-se como a encarnação do Espírito absoluto, a forma perfeita da existência social. Em A questão judaica, Marx começou a reconhecer que a real emancipação humana não podia ser restrita à dimensão política, mas requeria uma forma de vida social diferente. Desta forma, assim que se interessou pelo comunismo, Marx ficou muito preocupado em desmistificar o Estado e nunca se desviou disso.
O Manifesto comunista, redigido na véspera das grandes sublevações sociais de 1848, tinha como perspectiva não só a tomada do poder político pelo proletariado, mas também a extinção final do Estado uma vez que suas raízes teriam sido extirpadas e suprimidas.
Falando da Comuna, Marx se expressa nesses termos:
"Pois não foi uma revolução contra tal ou qual forma de poder de Estado, legitimista, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o próprio Estado, este aborto sobrenatural da sociedade; foi a retomada pelo povo e para o povo da sua própria vida social." [28]
O marxismo funda sua concepção do caminho para o comunismo sobre as experiências reais do proletariado contra o capitalismo. Assim, enquanto a palavra de ordem de ditadura do proletariado apareceu no início do movimento marxista, a forma que esta ditadura devia tomar foi tomando precisão através dos grandes eventos revolucionários da história da classe operária, em particular, a Comuna de Paris e a Revolução de Outubro de 1917.
As lições da história não são "espontâneas" no sentido que a vanguarda comunista as desenvolve sobre a base de um quadro de ideias já existentes. Mas estas próprias ideias devem constantemente ser reexaminadas e provadas à luz da experiência da classe operária. É uma glória dos operários parisienses de ter fornecido uma prova convincente de que a classe operária não pode fazer a revolução ao apoderar-se de um aparelho com estrutura e modo de funcionamento próprios, adaptados à perpetuação da exploração e da opressão. Se o primeiro passo da revolução proletária é a conquista do poder político, ela não pode ocorrer sem a destruição violenta do Estado burguês existente. Quanto ao semi-Estado do período de transição para o comunismo, também constitui um problema para o proletariado. É o que expressa Engels dizendo do Estado que é:
"(...) um mal que se transmite hereditariamente ao proletariado triunfante em sua luta pela dominaçao de classe. Como fez a Comuna, o proletariodo vitorioso não pode deixar de amputar imediatamente, na medida do possível, os aspetos mais nocivos desse mal, até que uma futura geração, formada em circunstâncias novas e livres, possa desfazer-se de todo desse velho traste do Estado." [29]
Portanto, a extinção do Estado baseia-se na transformação da infra-estrutura econômica e social, sobre a eliminação das relações capitalistas de produção e sobre o movimento para uma comunidade humana sem classes.
Muitas questões entram nessa rubrica e só selecionaremos as mais essenciais e ligadas ao temas do livro:
Qual desenvolvimento das forças produtivas é necessário à transformação socialista?
Esta ideia da impossibilidade de desenvolver as forças produtivas depois da revolução a não ser condenando ao fracasso a construção da nova sociedade é uma interpretação abstrata e muito pessoal pelos autores do ponto de vista de Marx sobre esta questão.
O livro tem toda razão de insistir sobre o fato que:
Mas isso não pode ser interpretado no sentido que, o capitalismo tendo desenvolvido as forças produtivas em quantidade suficiente para permitir a construção de uma sociedade socialista, não seja mais necessário que o proletariado vitorioso tenha de continuar a desenvolver essas mesmas forças.
Com efeito, ao criar as forças produtivas como nenhum modo de produção anterior, o capitalismo cria o potencial para a abundância e, portanto, para o comunismo. Mas isso não significa que a abundância apareça no dia seguinte da revolução, disponível para a satisfação das necessidades humanas. Ao contrário, a revolução é uma resposta a uma profunda desorganização da sociedade caracterizada por uma destruição importante de forças produtivas acumuladas (como conseqüência, em particular da Guerra Mundial antes da primeira onda revolucionária mundial, da crise econômica muito profunda que possivelmente provocará o próximo assalto revolucionário mundial) e, na sua fase inicial, esta desorganização tenderá a piorar. O proletariado vitorioso terá à sua frente um enorme trabalho de reconstrução, de educação e de reorganização. É por isso que O Manifesto comunista tem toda razão de falar da necessidade do proletariado vitorioso de "multiplicar o mais rapidamente possível a massa das forças de produção".
Por outro lado, não faz parte da visão de Marx fixar um limite mínimo à quantidade de forças produtivas a ser atingida para se poder construir uma sociedade comunista. Marx não oferece a visão utópica da abolição imediata de todas as categorias da produção capitalista. Ao contrário, ele sublinha a necessidade de distinguir a fase inferior e a fase superior do comunismo. Falando da fase inferior, ele diz:
"Do que se trata aqui não é de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede". [31]
Nesta fase, existe ainda a escassez, assim como todos os vestígios da normalidade capitalista. É unicamente na fase superior do comunismo, quando for realizada a abundância para cada um, que a sociedade poderá escrever na suas bandeiras:
"De cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades". [32]
Para o marxismo, uma das diferenças fundamentais entre a revolução burguesa e a revolução proletária, consiste no fato que a primeira acontece só depois de um processo de transformação econômica entre o feudalismo e o capitalismo, transformação que a revolução vem ratificar e celebrar na esfera política. Ao contrário disso, a revolução proletária (tomada do poder político) é necessariamente o início da transformação econômica entre o capitalismo e o comunismo. Nessa transformação econômica, as forças produtivas são desenvolvidas em função das necessidades humanas, enquanto é abolida toda propriedade e suprimida a exploração.
Aplicados à Revolução russa, estes princípios se expressam, para os autores do livro, na análise seguinte:
No que precede, encontramos os elementos-chave da dinâmica levando a uma onda revolucionária mundial: o primeiro abalo do capitalismo mundial sob os efeitos das suas contradições históricas demonstrando, segundo os revolucionários da época, que com a Primeira Guerra Mundial este sistema entrou numa fase de convulsões colocando a questão da revolução em escala mundial; a importância determinante do proletariado alemão para a vitória da revolução mundial. O livro analisa da maneira seguinte as consequências da derrota da revolução na Alemanha:
Já vimos como os autores se iludiram pensando que, no dia seguinte ao da revolução a classe operária poderia dispor imediatamente, para construir a nova sociedade, de um alto grau de desenvolvimento das forças produtivas. Dizem-nos agora que, num contexto em que a revolução foi vencida na Alemanha e as possibilidades de sua extensão mundial liquidadas, o problema da Revolução Russa seria aquele do caráter atrasado da Rússia impedindo a marcha para o socialismo. Tal análise é confirmada por esta outra passagem:
Em outros termos, se a Rússia tivesse sido um Estado comparável à Alemanha, então teria sido possível construir o socialismo neste país. O que significa que, para os autores, o socialismo é possível num só país. Sua motivação política não tem evidentemente nada ver com aquela de Stálin quando adotou em 1925 a tese do "socialismo num só país" para legitimar politicamente a ditadura do capitalismo de Estado na Rússia. A ideia do livro a este propósito constitui, entretanto, um erro, resultando de uma visão mecanicista e estreita da relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e a possibilidade de êxito da revolução, considerada fora do único quadro possível, qual seja: o mundo dominado pelas relações de produção capitalista (que já era o caso nessa época).
O comunismo, a construção da comunidade humana mundial, que significa necessariamente o fim da divisão do mundo entre classes sociais, só pode se realizar em escala mundial, pois as relações sociais de produção, que se baseiam sobre a exploração do trabalho assalariado, só podem ser abolidas nesta escala. [33]
É nisso que reside uma diferença importante entre a revolução proletária e a revolução burguesa. Com efeito, o desenvolvimento desigual do capitalismo permitiu à burguesia ascender ao poder em períodos diferentes em diversos países. Isso também era possível, pois a nação é o quadro geopolítico específico do capitalismo, quadro que, apesar de todas suas tentativas, o capitalismo nunca conseguiu ultrapassar. Mas, enquanto o capitalismo pôde se desenvolver por "ilhotas" no seio da sociedade autárquica feudal, o socialismo só pode existir em escala mundial colocando em movimento o conjunto das forças produtivas e das redes de circulação dos bens criados pelo capitalismo. Já em 1847, à pergunta dos Princípios Básicos do Comunismo: "Poderá esta revolução realizar-se apenas num único país?", Engels respondeu categoricamente:
"Não. A grande indústria, pelo fato de ter criado o mercado mundial, levou todos os povos da terra - e, nomeadamente, os civilizados - a tal ligação uns com os outros que cada povo está dependente daquilo que acontece a outro. [...] A revolução comunista não será, portanto, uma revolução simplesmente nacional; será uma revolução que se realizará simultaneamente em todos os países civilizados. Ela é uma revolução universal e terá, portanto, também um âmbito universal." [34]
O debate sobre esta questão conheceu sua maior e mais dramática expressão com a adoção da teoria do socialismo num só país. A Esquerda italiana (Fração da Esquerda comunista internacional, apelidada também de Fração italiana e publicando a revista Bilan [Balanço]) [35], cuja oposição à degeneração da revolução foi mais decidida e conseqüente do que a de Trotsky, colocou-se de repente ao lado da oposição de Trotsky no seu combate contra a teoria de Stálin. Com sua teoria da "acumulação socialista primitiva", Trotsky considerava que, na realidade, a Rússia tinha começado a pôr os alicerces de uma sociedade socialista, mesmo que rejeitasse o que Stálin pretendia,ou seja, para ele e seus epígonos a Rússia já era socialista. Pela Esquerda italiana, no âmbito de um país, o proletariado só podia estabelecer sua dominação política, e mesmo esta seria inevitavelmente enfraquecida pelo isolamento da revolução [36] Assim, segundo a fração:
"Não somente é impossível construir o socialismo num país só, mas também estabelecer suas bases. No país em que o proletariado venceu, não se trata de realizar uma condição do socialismo (através da livre gestão econômica pelo proletariado), mas somente de salvaguardar a revolução, o que exige a permanência de todas as instituições de classe do proletariado." [37]
A tomada do poder político pelo proletariado é uma etapa indispensável à transformação das relações sociais de produção. O que entendemos por revolução vitoriosa é a derrota política e militar da burguesia mundial pelo proletariado mundial. Este objetivo, enquanto não é atingido, deve mobilizar as energias revolucionárias do proletariado mundial, inclusive nos países em que já tomou o poder, sob pena de voltar à situação anterior. É claro que, por conta da derrota na Alemanha, esta etapa não foi alcançada durante a primeira onda revolucionária mundial.
No conjunto dos países em que o proletariado tiver tomado o poder, as medidas destinadas a tirar o poder da classe burguesa não mudam nada nas relações de produção. Isto porque, inclusive nestes países e nessa etapa da revolução, as relações de produção serão ainda relações de produção capitalistas. E até na ausência do poder da burguesia, como o livro diz, existe ainda a exploração do homem pelo homem, a classe explorada continuando sendo a classe que produz as riquezas, isto é, a classe operária.
Quanto ao Estado que surge depois da revolução, embora se trate de um Estado cujas atribuições mais nocivas terão sido restringidas, como foi dito, sua existência traduz, entretanto, o fato que a sociedade ainda é dividida por antagonismos de classes. Estes últimos resolver-se-ão com a vitória política da revolução mundial, a integração progressiva das camadas não proletárias ao trabalho associado e a transformação consciente e voluntária das relações de produção baseadas sobre um desenvolvimento das forças produtivas libertadas dos obstáculos do capitalismo e colocadas a serviço das necessidades da humanidade.
A experiência russa permitiu o esclarecimento da relação entre os órgãos específicos da classe, os conselhos operários, e o estado soviético no seu conjunto. Este último é a emanação da população não exploradora (incluindo, além dos operários, soldados e camponeses) organizados no país inteiro em sovietes territoriais. Os soldados e os camponeses aderem à revolução, mas não constituem por isso o sujeito da revolução. Em particular, a experiência russa demonstrou que a classe operária não pode se identificar diretamente com o Estado, mas deve exercer uma vigilância e um controle sobre este através de suas próprias organizações de classe (os conselhos operários) que participam deste órgão sem ser absorvidos por ele. [38]
Esta consideração decorre do fato que a classe operária é a única classe revolucionária da sociedade, apesar de outras classes não exploradoras também poderem ter interesse na revolução. Sobre esta questão apoiamo-nos sobre o livro para ilustrar nosso intento:
Na realidade, é a necessária autonomia do proletariado em relação a todas as outras camadas da sociedade que é colocada depois da tomada do poder, como já era antes. Sobre esta questão, vale a pena voltar à experiência da Comuna de Paris. Desse modo, o livro História da Comuna de Paris 1871 de Lissagaray [39], em particular, contém muitas críticas feitas às hesitações, confusões, posições vazias de certos delegados no conselho da Comuna, muitos entre eles expressando na realidade um radicalismo pequeno-burguês obsoleto que muitas vezes foi questionado pelas assembleias dos bairros mais proletários. Pelo menos um entre os clubes revolucionários locais declarou que havia que dissolver a Comuna, pois não era bastante revolucionária. Encontramos na Revolução Russa a mesma diferença, até oposição entre, por exemplo, o soviete de Petrogrado dominado no início pelos soldados (cuja maioria era de origem camponesa) favoráveis aos Socialistas Revolucionários e aos Mencheviques e os sovietes dos bairros periféricos de Petrogrado (Vyborg, em particular) que, de início, tiveram posições mais radicais. Foram estes bairros, entre outros, que constituíram a base operária sobre a qual Lênin tinha se apoiado para travar seu combate no seio do Partido Bolchevique para fazer triunfar as Teses de Abril.
Se retomarmos o raciocínio dos autores, devemos in fine atribuir o fracasso da revolução na Rússia ao desenvolvimento insuficiente das forças produtivas neste país, agravado pelo caráter atrasado da classe operária:
Ao contrário de Kautsky que se opôs à tomada do poder pelo proletariado na Rússia em nome do fato que "a Rússia, sendo um país economicamente atrasado, essencialmente agrícola, (...) ainda não maduro para revolução social e para uma ditadura do proletariado", Rosa Luxemburgo identifica as causas das dificuldades do proletariado na Rússia na imaturidade do proletariado mundial:
"Para todo observador que reflita, este curso das coisas é mais um argumento contra toda a teoria defendida por Kautsky e todo o Partido Social Democrata Alemão, segundo a qual a Rússia, país economicamente atrasado, agrícola em sua maior parte, não estaria ainda maduro para a revolução social. Esta teoria que não admite como possível na Rússia senão uma revolução burguesa, do que decorre, por conseguinte, para os socialistas deste país, a necessidade de colaborar com o liberalismo burguês, é também a da ala oportunista do movimento operário russo dos mencheviques, dirigidos por Dan e Axelrod. Uns e outros, os oportunistas russos como os oportunistas alemães, concordam inteiramente com os socialistas governamentais da Alemanha nesta maneira de compreender a Revolução Russa. Segundo eles, a Revolução russa não deveria ter ultrapassado o estádio que, na imaginação da social democracia, o imperialismo alemão estabeleceu como o fim nobre da guerra, a saber, a derrubada do czarismo. Se ela foi além, se ela se impôs como tarefa a ditadura do proletariado, tal aconteceu, segundo esta doutrina, por simples erro da ala radical do movimento operário russo, dos bolcheviques, e todas as amarguras que em seguida a revolução conheceu, todas as dificuldades que encontrou, não são mais do que as conseqüências desse erro. Teoricamente, esta doutrina, que o "Vorwaerts" apresenta como fruto do pensamento "marxista", chega a esta original descoberta "marxista" de que a revolução social, isto é, uma questão nacional é, por assim dizer, doméstica de cada Estado em particular.
Praticamente, esta doutrina tende a ressalvar a responsabilidade do proletariado internacional e, em primeiro lugar, do proletariado alemão, no que concerne à sorte da Revolução Russa, a negar, numa palavra, as conexões internacionais desta revolução. Na realidade, a guerra e a revolução russa demonstraram não a falta de maturidade da Rússia, mas a incapacidade do proletariado alemão de empreender sua missão histórica. Ressaltar este fato com toda a nitidez desejável é o primeiro dever de um estudo crítico da Revolução Russa. Contando com a revolução mundial do proletariado, os bolcheviques deram precisamente o testemunho mais brilhante de sua inteligência política, de sua fidelidade aos princípios e da audácia de sua política". [40] (o grifo é nosso)
Os autores do livro apoiam, sobre a questão da insurreição, o ponto de vista dos bolcheviques contra aquele dos mencheviques. Entretanto, se deve reconhecer que, apesar disso, sua postura sobre este assunto é ambígua pelo fato de que compartilham com Kautsky uma visão nacional da revolução (para a qual acabaram convergindo os próprios bolcheviques, cada vez mais enredados pelas contradições insuperáveis que resultaram do isolamento da revolução russa, embora não fosse essa sua posição antes da tomada do poder).[41]
Como já dissemos anteriormente quando tratamos da consciência de classe, a compreensão da dinâmica do movimento operário não pode ser limitada à análise de suas organizações políticas de classe. Para entender as fraquezas próprias do proletariado mundial que impediram o proletariado alemão de vencer, convém examinar a situação que tinha que enfrentar:
Assim, não foi o deslocamento da Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política que explica a derrota, mas na realidade a insuficiência das condições subjetivas da revolução e, em particular, uma consciência insuficiente no seio da classe operária na Alemanha de que a social-democracia tinha se tornado, para sempre, seu inimigo e a ponta de lança da contrarrevolução. Apenas dois meses depois do esmagamento ensangüentado da revolta de Berlim, em janeiro de 1919, os últimos, porém ainda importantes, destacamentos do proletariado alemão que tinham ficado fieis à social-democracia voltaram-se contra esta. Mas já era tarde demais. O destino da revolução alemã tinha sido jogado em Berlim. [42] Assim, não é o exemplo da revolução alemã que demonstra a validade da tese dos autores relativa à "impossibilidade de alterar radicalmente a lógica do capital através do poder político", pois o proletariado nem teve a oportunidade de tomar o poder político. Pelas mesmas razões que na Alemanha, e também como consequência da derrota neste país, a classe operária não teve a oportunidade de tomar o poder na Europa central, na Hungria em particular.
Não é que essa tese esteja errada, mas todos os exemplos dados relativos a esse período histórico não permitem ilustrá-la. Com efeito, o poder proletário isolado só podia padecer através de uma ou alternativa outra: ser derrubado pela reação internacional ou degenerar. Sabemos que foi a segunda opção que prevaleceu. A nocividade do discurso do partido bolchevique em degeneração sobre a construção do socialismo num só país em meio às medidas de capitalismo de Estado, não mudou fundamentalmente o curso dos eventos na própria Rússia, mas o acelerou. Além disso, esse discurso mistificou várias gerações de operários no mundo.
Este curso rumo à derrota da revolução mundial não era inelutável, pois, como acabamos de vê-lo, faltou pouco para que a revolução na Alemanha se desenvolvesse mais, abrindo assim a via para o derrubamento da burguesia neste país. Isso, por sua vez, teria aberto a porta para a extensão da revolução vitoriosa na Europa central e, depois, na Europa ocidental. Encontrávamos-nos aí no cenário da revolução em marcha internacionalmente. Não se produziu, mas estava inscrita no leque das possibilidades permitidas pelas condições materiais da situação mundial. Imaginemos que, depois de uma vitória política e militar sobre a burguesia, a classe operária tivesse sido capaz de tomar o poder político em escala mundial. Isso não significaria, que uma estrada levaria diretamente à edificação de uma sociedade socialista. Longe disso! O mais difícil restaria a ser feito, visto que a transformação das relações sociais em nada decorre automaticamente do aumento das forças produtivas disponíveis para a satisfação das necessidades humanas. Uma nova etapa histórica requeria (como requererá amanhã), por parte do proletariado mundial e de sua vanguarda, um altíssimo nível de consciência.
Um novo impulso da revolução mundial provocado pela revolução na Alemanha teria permitido, com a intervenção consciente do proletariado mundial, corrigir os erros cometidos na Rússia. Na ausência deste impulso vital, a revolução na Rússia afundou-se na degeneração e, como consequência disso, vimos florescer toda uma propaganda da qual o stalinismo se fez o campeão, desnaturando totalmente o projeto comunista, identificando-o mentirosamente ao capitalismo de Estado mais abjeto.
O livro oferece uma caracterização válida, em nossa opinião, do peso crescente do reformismo no seio dos partidos da Segunda Internacional e de seu desvio oportunista. Este se manifestou, antes de tudo, não pela existência de um programa mínimo de luta por reformas (numa época em que o capitalismo podia ainda conceder de maneira douradora tais reformas), mas pelo abandono progressivo do programa da revolução proletária. A estes partidos, pode-se aplicar esta caracterização dos autores, isto é, o deslocamento da Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política. Ainda que nos pareça mais adequado falar de abandono do alvo final em benefício da tática parlamentar imediata, como isso foi teorizado notadamente por Bernstein através de sua fórmula famosa "O objetivo final não é nada, o movimento é tudo".
Mas, do nosso ponto de vista, tal caracterização é ainda insuficiente, dada a trajetória destes partidos que traíram o proletariado, salvaram o capitalismo através da mais brutal repressão do proletariado. Aqui, vale a pena lembrar, para apoiar nossa ideia, que para vencer a revolução na Alemanha, a social-democracia recrutou os Corpos Francos nas camadas lumpenizadas da sociedade. Hitler apoiar-se-á nelas, mais tarde, na sua ascensão política. Será que é realmente adequado limitar a crítica a estes partidos somente por terem deslocado "a Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política"? Em outros termos, será que dá para pensar que estes partidos têm ainda algo de proletário (além da fraseologia destinada a mistificar a classe operária) desde sua traição? Sua prática desde então não deixou de ilustrar que nunca mais voltarão para o campo do proletariado. Neste caso, o que temos a ganhar dirigindo-nos a eles, a esquerda, culpando-os por ter abandonado a perspectiva do comunismo? Efetivamente fazem parte da esquerda, mais da esquerda do capital, e tudo que pode obscurecer esta realidade aos olhos do proletariado deve ser proscrito.
E o resto da esquerda? Será que não é menos reformista? Os partidos comunistas, por exemplo?
O Partido Bolchevique, depois de haver sido a vanguarda da revolução em 1917, degenerou identificando-se cada vez mais com o Estado. Em seu seio, os melhores combatentes da revolução foram progressivamente descartados das suas funções de responsabilidade, excluídos, exilados, aprisionados e depois finalmente executados por uma câmara de arrivistas e de burocratas que encontraram em Stálin seu melhor representante. Sua razão de ser não era mais defender os interesses da classe operária, mas, ao contrário, exercer sobre ela, através da mentira e da repressão, a mais hipócrita das ditaduras, a fim de preservar e consolidar a nova forma de capitalismo que estava instaurada na Rússia.
Os outros partidos da Internacional, os partidos "comunistas", seguiram o mesmo caminho. O revés da revolução mundial e a confusão que se seguiu dentro das fileiras operárias favoreceram o desenvolvimento do oportunismo no seio desses partidos, isto é, uma política que sacrifica os princípios revolucionários e as perspectivas históricas do movimento da classe operária por ilusórios "sucessos" imediatos. Infestados pela doença oportunista, esses partidos caíram sob o controle de burocratas arrivistas, e foram submetidos pela pressão do Estado Russo que, através da mentira e da intimidação, promoveu estes burocratas aos órgãos de direção. Após terem expulsado de suas fileiras os elementos fiéis ao combate revolucionário, esses partidos terminaram por trair e passar com todas suas armas para dentro do campo da burguesia. Como o partido bolchevista dominado pelo stalinismo, esses partidos se converteram na vanguarda da contrarrevolução nos seus respectivos países. Eles puderam cumprir bem melhor este papel, porque continuaram a se apresentar como partidos da revolução comunista, como os herdeiros do "Outubro Vermelho". Do mesmo modo que Stálin, para estabelecer seu poder no partido bolchevista em degeneração, a fim de eliminar os militantes os mais sinceros e devotos à causa do proletariado, tinha se enfeitado com todo o prestígio de Lênin; do mesmo modo os partidos stalinistas, a fim de sabotar mais eficazmente as lutas operárias, usurparam o prestígio que adquiriu, aos olhos dos operários do mundo inteiro, a Revolução Russa de 1917 e os combatentes bolcheviques.
Em outros termos, a caracterização precedente que fizemos dos partidos social-democratas aplica-se do mesmo modo aos partidos comunistas ou a suas variantes atuais: trotskistas, guevaristas, chavistas, etc. Todos fazem parte da esquerda do capital.
Dirigir-se à esquerda do capital para lhe mostrar seus "erros" só pode ser fonte de mistificação da classe operária. A mistificação se torna maior ainda quando se fala "das revoluções soviéticas, chinesas e cubanas", ou também dos revolucionários "Mao, Fidel e muitos outros".
O triunfo da contrarrevolução na Rússia produziu-se sob a marca da reorganização da economia nacional com as formas mais acabadas do capitalismo de Estado, cinicamente apresentadas pela circunstância como "prolongamentos de outubro" e "construção do socialismo". O exemplo foi retomado em outros lugares: China, Países do Leste, Cuba, Coreia do Norte, Indochina, etc. Entretanto, não há nada de proletário, e menos ainda de comunista em todos estes países, onde sob o peso da maior mentira da história, reina nas suas formas mais decadentes, a ditadura do capital. Além do mais, os regimes destes países não são o resultado de revoluções proletárias degeneradas, como foi o caso na Rússia, mas de confrontações entre frações adversas da burguesia.
Achamos que o assunto escolhido pelos autores do livro merece amplamente ser dicutido no campo do proletariado. Mas estimamos também que este livro coloca a necessidade de discussões pelo menos tão fundamentais para clarear a própria natureza das ditas revoluções chinesas e cubanas, do campo ao qual pertencem pretendidos revolucionários como Mao e Fidel. Em nossa opinião, uma caracterização da fronteira de classe entre organizações do proletariado e organizações da esquerda do capital é necessária. Mas ela não se efetua sobre a base de critérios próprios de tal ou qual organização, tal ou qual pensador, e sim a partir do posicionamento diante de momentos chave na vida da sociedade que são a guerra e a revolução, que colocam a necessidade da defesa dos princípios intimamente ligados à essência internacionalista e revolucionária do proletariado.
[1] Tonet, Ivo e Nascimento, Adriano. Descaminhos da esquerda: Da centralidade do trabalho à centralidade da política. Editora Alfa-Omega, São Paulo: 2009.
[2] Para mais desenvolvimentos sobre esta questão da adesão de Marx ao comunismo, ler o artigo em espanhol "Como el proletariado se ganó a Marx para el comunismo" da série El comunismo no es un bello ideal... na Revista internacional n° 69.
[3] Marx. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel [24].
[4] Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos. Cáp: Propriedade Privada e Comunismo; [https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap04.htm [25]]; tradução alterada por nós, em comparação com a versão francesa; no original em português é a seguinte: "O papel do trabalhador não é abolido, mas ampliado a todos os homens"
[5] Ibid..
[6] Para desenvolvimentos mais amplos sobre esta questão da adesão de Marx ao comunismo e da alienação, ler os artigos em espanhol "La alienación del trabajo constituye la premisa de su emancipación" e "El comunismo: verdadero comienzo de la sociedad humana" da série El comunismo no es un bello ideal... nos números 70 e 71 da Revista internacional.
[7] Sobre as críticas do "comunismo vulgar" feitas por Marx, ler o artigo "Del comunismo primitivo al socialismo utópico" da série El comunismo no es un bello ideal... no número 68 da Revista internacional.
[8] Sobre a contrarrevolução na Revolução Russa leia o nosso artigo: "A degeneração da Revolução Russa" [Link: https://pt.internationalism.org/ICCOline/2008/degeneracao_da_Revolucao_R... [26]
[9] Victor Considérant (1808-1893). Filósofo e economista francês adepto das concepções de Fourier.
[10] Manuscritos Econômico-Filosóficos. Cáp.: Propriedade Privada e Comunismo; Traduzido a partir do francês.
[11] Marx e Engels, A Ideologia alemã. Ed. Boitempo: 2007, p. 32-33.
[12] Marx, Prefácio à Introdução à Crítica da economia política - Ed. Martins Fontes, 1977, p. 24-25
[13] Ibid.
[14] Para desenvolvimentos mais amplos sobre esta questão do materialismo em Marx, ler Que método científico deve usar-se para compreender a ordem social existente, as condições e meios de sua superação? https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/decadencia_do_capitalismo_Que_m%C3%A9todo_cient%C3%ADfico [27] ; https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Decadencia_dos_modos_de_producao [28]
Ler a propósito desta questão nossa brochura em espanhol Organización comunista y conciencia de clase e o artigo em espanhol "La conciencia de clase y el papel de los revolucionarios [29]" da Revista internacional n°7.
Lênin retomou em Que Fazer passagens inteiras de um artigo de Kausky publicado no Neue-Zeit de 1901: "A consciência socialista de hoje não pode surgir senão à base de um profundo conhecimento científico. De fato, a ciência econômica contemporânea constitui tanto uma condição da produção socialista como, por exemplo, a técnica moderna, e, apesar de todo o seu desejo, o proletariado não pode criá-las; ambas surgem do processo social contemporâneo. Ora, o portador da ciência não é o proletariado, mas os intelectuais burgueses: foi do cérebro de certos indivíduos dessa categoria que nasceu o socialismo contemporâneo, e foram eles que o transmitiram aos proletários intelectualmente mais evoluídos, que o introduziram, em seguida, na luta de classe do proletariado onde as condições o permitiram. Assim, pois, a consciência socialista é um elemento importado de fora na luta de classe do Proletariado, e não algo que surgiu espontaneamente" (Que Fazer?- https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm [30])
A propósito disso, ler nosso artigo Lênin e as questões de organização. https://pt.internationalism.org/icconline/2007/leninismo-e-organizacao [31].
[18] Lênin, Relatório sobre a revolução 1905 (janeiro de 1917) https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/01/22.htm [32]
[19] A propósito da nossa concepção do partido, ler nosso artigo em espanhol "El Partido y sus lazos con la clase [33]" na Revista internacional n° 35.
[20] Marx, Sobre a questão judaica. Ed. Boitempo: 2010, p. 72.
[21] Marx, A Miséria da Filosofia. Global Editora, p.160.
[22] Ibid.
[23] Para mais desenvolvimentos sobre esta questão, ler o artigo em espanhol "1848: el comunismo como programa político [34]" da série El comunismo no es un bello ideal... na Revista internacional n° 72.
[24] Marx e Engels, A Ideologia alemã. Ed. Boitempo, pag.41.
[25] Nas últimas edições deste texto, Engels precisou que esta tomada de posição aplicava-se a "toda a história escrita" e não às formas sociais comunitárias que antecederam a aparição das divisões em classes.
[26] Marx e Engels. Manifesto do partido comunista. Cáp: Proletários e Comunistas. https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap2.htm [16]
[27] Para mais desenvolvimentos sobre esta questão, ler o artigo em espanhol "1871: la primera dictadura del proletariado [35]" - El comunismo: una sociedad sin Estado - da série El comunismo no es un bello ideal... na Revista internacional n° 77.
[28] Marx, A Guerra civil na França. Editions sociales. Traduzido do francês a partir do primeiro ensaio de Marx.
[29] Engels. Introdução à Guerra civil na França. 1891. https://www.bookess.com/read/1920-a-guerra-civil-na-franca/ [36]
[30] Nota da redação: Obra de Marx conhecida também sob o título Materiais para O Capital.
[31] Crítica ao Programa de Gotha. Observações à Margem do Programa do Partido Operário Alemão. Parte I [37], p. 22.
[32] Ibid., p. 26.
[33] Ler mais em A Primeira Guerra mundial e a onda revolucionária mundial de 1917-23 abrem a época das guerras e das revoluções. https://pt.internationalism.org/icconline/2006/debate_guerras_e_das_revolucaoes_CCI [38]
[34] Engels. Os princípios do comunismo. Obras Escolhidas em três tomos, Editorial Avante!; https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/11/principios.htm [39]
[35] A propósito da Esquerda comunista, ler nosso artigo A Esquerda comunista e a continuidade do marxismo. https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista [40]
[36] Ler mais em "1933-1946: el enigma ruso y la Izquierda comunista italiana" na Revista Internacional n° 106.
[37] Natureza e evolução da revolução russa - resposta ao companheiro Hennaut. Em Bilan n° 35, setembro de 1936. Traduzido a partir do francês.
[38] Para uma exposição mais detalhada da nossa posição sobre esta questão, ler a série de artigos O período de transição do capitalismo ao comunismo (https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/per%C3%ADodo_de_transi%C3%A7cao_do_capitalismo_ao_comunismo [41]) e, em particular O estado no período de transição (https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_per%C3%ADodo_de_transicao [42])
[39] Lissagaray, História da Comuna de 1871. Ed. Ensaio :1991.
[40] Rosa Luxemburg. A revolução russa. www.socialismo.org.br/portal/images/stories/documentos/revista2/A_Revolu... [43]
[41] Ler a este propósito a argumentação desenvolvida no nosso artigo "Debate sobre os erros da Revolução Russa [44]".
Ler a propósito destes acontecimentos nossos artigos em espanhol Hace 90 años, la revolución alemana (IV): "1918-1919: la guerra civil en Alemania [45]" e El terror dirigido por la socialdemocracia contra la clase obrera preparó el terreno al fascismo (https://es.internationalism.org/node/2566 [46]) dos n° 136 e 137 da Revista internacional.
[1] http\\opopssa.info
Ao mesmo tempo em que reconhece "o respeito muito grande que todos os revolucionários do mundo devem a Rosa Luxemburgo, por sua coragem, seu valor, a denúncia do reformismo, sua capacidade política e revolucionária e sua incansável atitude militante", a contribuição da OPOP conclui também que "Rosa Luxemburgo apresentou a maior parte do tempo uma imagem contrária de uma realidade que ela foi incapaz de compreender quando tratou das relações econômicas do capitalismo".
É com o mesmo estado de espírito que criticaremos a contribuição da OPOP, com respeito e fraternidade, mas também sem concessão no plano teórico.
Na realidade, este debate traz à luz duas explicações econômicas da crise do capitalismo que muitas vezes foram consideradas, de maneira incorreta segundo nossa opinião, como opostas e até antinômicas (visto que muitas vezes ambas foram açambarcadas por defensores tanto sectários como acadêmicos):
A primeira tese, geralmente, é associada com a ideia de que a superprodução não seria uma contradição intrínseca do modo de produção, mas unicamente a conseqüência de uma situação em que a produção, ao não poder gerar bastante lucro (pois realizada na base de uma taxa de lucro insuficiente), gera como conseqüência o fechamento de fábricas, demissões e grande quantidade de mercadorias não vendidas. Em contrapartida, a segunda tese reconhece plenamente a realidade da queda da taxa de lucro como contradição do capitalismo, sem por isso lhe dar a supremacia, e identifica o fato de que as duas contradições se fortalecem mutuamente em detrimento da acumulação capitalista [1].
A polêmica da qual toma parte o texto da Revista Germinal não é nova, pois tem sua origem quando da publicação em 1912 da obra de Rosa Luxemburgo, A acumulação do capital, que suscitou críticas violentas, muitas delas em reação à ideia de que a conquista do mundo pelas relações de produção capitalistas iria afundar este sistema dentro de contradições insuperáveis [2].
Como assinalado pela contribuição da OPOP, o esquema da acumulação capitalista do livro II de O capital abrange, segundo Rosa Luxemburgo, um problema. Para ela, não se pode explicar o mecanismo da acumulação ampliada sem que haja uma demanda adicional, isto é, uma demanda adicional em relação às necessidades da reprodução simples do capital, e que esta demanda adicional não pode ser originada do seio das relações de produção capitalistas. Ela deve, portanto, situar-se na esfera extracapitalista.
Em relação a isso, segundo nossa opinião, a contribuição da OPOP passa muito rapidamente pelo episódio da elaboração teórica por Marx do esquema da acumulação ampliada. Com efeito, não fala das hesitações e reflexões expressas por Marx neste capítulo de O Capital, nem sequer explica que estas estão relacionadas à mesma problemática daquela colocada por Rosa em A acumulação do capital. A propósito disso, Irène Petit, na sua introdução à tradução em francês desta obra [3], resume magistralmente o problema nestes termos:
Considerando este problema colocado por Rosa, a contribuição da OPOP se expressa nestes termos: "Marx demonstrou que essas trocas [com os mercados extracapitalistas] não são necessárias para compreender a acumulação ampliada; nem são verdadeiramente indispensáveis, senão na fase da acumulação primitiva, "da gênese do capital"; e que a crise, a "tendência à superprodução", não advém, de modo algum, da insuficiência dos mercados extracapitalistas, mas, antes de tudo, "da relação imediata do capital" no seio do capitalismo puro". Existe pelo menos uma falta de explicação. Onde Marx realizou tal demonstração? Por que não é fornecida nenhuma citação de Marx para apoiar esta afirmação? Porque nada foi dito do questionamento de Marx que o leva a fazer intervir, em última instância, o produtor de ouro capaz de fornecer a fonte de dinheiro adicional.
Para os oponentes atuais da tese de Rosa Luxemburgo sobre a acumulação, é o próprio capitalismo que cria seu mercado: "Pois é a própria acumulação do capital que resolve o problema do necessário dinheiro adicional e faz desaparecer as dificuldades de realização em meio de diversas técnicas de financiamento" (Paul Mattick; Crise e teoria das crises; Tradução nossa), o que supõe que a produção capitalista seja efetuada por si mesma, sem que para isso haja necessidade de uma demanda para financiá-la. A ideia segundo qual a produção criaria a demanda é só uma ficção que Marx descarta.
Chegamos agora a outro problema colocado pela contribuição. Porque não menciona neste lugar de seu desenvolvimento que Marx desenvolve explicitamente, em diferentes lugares de seus escritos, uma ideia contraditória com aquela da OPOP, isto é, que o capitalismo precisa, para se desenvolver, de um mercado que não seja aquele constituído pelos operários :
A contribuição da OPOP tem todo direito de pensar que esta ideia de Marx não merece constituir o objeto de um desenvolvimento perante o leitor, pois não seria significante, até incorreta, mas neste caso, o método científico de apreensão da realidade exige que o leitor seja avisado e igualmente sejam apresentados os argumentos comprovando que Marx se equivocou.
A contribuição continua do mesmo modo argumentando porque Marx exclui categoricamente os mercados extracapitalistas de sua análise: "Com efeito, se o capitalismo vende suas mercadorias fora de sua esfera vai dispor do dinheiro correspondente àquelas vendas, mas deixa de dispor dos meios materiais necessários para a sua expansão (bens de consumo, máquinas, meios de transporte, etc.). Esses não estariam mais disponíveis, pois seriam consumidos ou incorporados na esfera não capitalista".
Devemos confessar humildemente que não nos lembramos que Marx tenha desenvolvido tal argumentação e, mais uma vez, teria sido útil ao debate a possibilidade de dispor de citações de Marx explicitando esta ideia. Isso teria confirmado o que já evidenciamos considerando a existência de contradições no seio de O capital, sendo essas essencialmente em conseqüência de que esta obra não foi concluída. É efetivamente o que Rosa tinha percebido antes de nós considerando o problema que nos preocupa:
Dito isso, devemos dedicar uma atenção particular a esta questão pertinente da contribuição segundo a qual, ao privar a acumulação das mercadorias produzidas, a venda aos mercados extracapitalistas poderia constituir um obstáculo à acumulação. Rosa baseia sua resposta a este problema sobre a capacidade do capitalismo de produzir em excesso em relação a suas próprias necessidades, notadamente graças a um constante aumento da produtividade. Ela argumenta longamente da maneira seguinte:
Examinemos agora o caso inverso. Neste a reprodução capitalista produz meios de produção que excedem as necessidades próprias e encontra compradores em países não capitalistas. Por exemplo: a indústria inglesa forneceu, na primeira metade do século XIX, material de construção para ferrovia em países americanos e australianos. A ferrovia por si só não significa que haja domínio do modo de produção capitalista em um país. Efetivamente, as ferrovias constituíram, no caso, apenas um dos primeiros pressupostos da penetração da produção capitalista. Outro exemplo é o da indústria química alemã, que fornecia meios de produção, como tintas, de grande saída em países de produção não-capitalista, como os da Ásia, África etc. Nesse caso, o Departamento I da produção capitalista realiza seus produtos em círculos extracapitalistas. A ampliação crescente do Departamento I que daí resulta provoca, no país de produção capitalista, uma ampliação correspondente do Departamento II. Este fornece meios de consumo para um contingente enorme de operários do Departamento I, departamento que se encontra em constante aumento." (Rosa Luxemburgo - A Acumulação do Capital - Vol. II - Cap. XXV - A Reprodução do Capital e seu Meio - pg.19 e 20 Ed. Abril Cultural.)
Assim, longe de constituir um obstáculo à acumulação, a venda aos setores extracapitalistas é um fator que a favorece. Já que as vendas para a esfera extracapitalista não faltam à acumulação (pelo fato do dinamismo deste modo de produção que por sua própria natureza sempre tende a produzir um excedente); e também que essas vendas permitem dispor, no seio das relações de produção capitalistas, dos meios de pagamento (o produto da venda) para sustentar uma demanda solvente passada (e paga a crédito) ou futura. É toda a diferença entre uma economia desenvolvendo-se sobre bases sãs, como era o caso até o inicio do século 20, e uma economia que não tem outra solução além de acumular dívidas, pois não dispõe de outros meios que se endividar para estimular a demanda, como acontece plenamente desde o fim dos anos 1950.
Entretanto, a seguinte passagem de Rosa, citada pela contribuição da OPOP, parece limitar as virtudes econômicas dos mercados extracapitalistas:
Isso é só uma ilusão de ótica que desaparece assim que lemos a frase seguinte da obra, a qual só faz resumir a exposição de Rosa sobre este tema:
É a razão pela qual não é necessário que as mercadorias vendidas pelo capitalismo à esfera extracapitalista voltem para a esfera capitalista sob a forma de produtos para participar da acumulação. Dessa vez concordamos totalmente com a contribuição da OPOP: "Nenhum fato econômico, nenhum processo histórico, nenhuma passagem nem de Marx nem de Rosa atestam, de resto, qualquer movimento de retorno dessas mercadorias inicialmente vendidas na esfera extracapitalista de volta ao "capitalismo puro" a fim de lhe assegurar os meios materiais necessários ao seu desenvolvimento".
Como acabamos de ver acima, não é indispensável que o dinheiro das vendas efetuadas em direção aos mercados pré-capitalistas seja utilizado para comprar mercadorias provenientes destes mercados. A contribuição da OPOP se engana quando atribui a ideia contrária à obra de Rosa: "o dinheiro proveniente da venda de mercadorias sobre esses mercados serviria então para comprar os meios materiais necessários para a ampliação do capitalismo puro."
Rosa Luxemburgo coloca o problema de maneira diferente. Em primeiro lugar, ela evidencia que não é indispensável, para permitir a acumulação, que os meios de produção e de consumo todos sejam de origem capitalista, ao contrário da hipótese de base colocada por Marx no seu esquema da acumulação:
Além disso, existem, segundo ela, fatores que favorecem a utilização, pelo capitalismo, de produtos originários de economias pré-capitalistas: de um lado, a necessidade do capitalismo tentar aumentar permanentemente a taxa de lucro; por outro lado, o fato que, no momento em que Rosa escreveu sua obra, a imensa maioria das riquezas naturais do planeta e da produção pré-capitalista ainda estava situada fora das zonas dominadas economicamente pelo capitalismo e que faz parte da natureza deste tentar abarcá-los por todos os meios.
Rosa Luxemburgo nos fornece acima um resumo da economia mundial tal como se apresentava no início do século XX. Salvo se isso for inexato, e neste caso esperamos uma crítica construtiva para retificar a nossa visão, a seguinte afirmação da contribuição da OPOP, bastante aproximativa, tende a refletir uma imagem pouco fiel do estado do mundo na mesma época: "Sem dúvida é inegável que o capitalismo encontrou certos bens úteis à sua ampliação: matérias-primas, bens de consumo e, sobretudo, a mão-de-obra adicional. Entretanto, contrariamente ao que pensava Rosa, numerosos bens foram rapidamente produzidos localmente por empresas capitalistas empregando assalariados".
Se o processo de integração ao capitalismo das zonas pré-capitalistas é efetivamente o produto do estabelecimento de relações comerciais do capitalismo com estas, tal processo está ainda longe de ser concluído no início do século XX.
Os mercados extracapitalistas freiam a acumulação em lugar de estimulá-la?
Isto seria verificado nas taxas de crescimento do PIB por habitante das potências coloniais entre 1870 e 1913, mais fracas do que nos países sem colônias. Antes de examinar os dados fornecidos, convém destacar três erros no método utilizado para verificar empiricamente se os mercados extracapitalistas constituíram ou não um fator positivo da acumulação:
1) O método identifica mercados extracapitalistas e colônias, enquanto os mercados extracapitalistas incluem tanto os mercados internos como as colônias, ainda não submetidos às relações de produção capitalistas. Assim, o dinamismo do desenvolvimento dos Estados Unidos deve-se à exploração de seu mercado interno durante o período considerado.
2) O recurso aos mercados extracapitalistas por parte da esfera das relações exclusivamente capitalistas coloca-se a nível mundial e não isoladamente em cada país. Isso significa, por exemplo, que as vendas dos produtos de consumo efetuadas pela França direcionadas para seus setores extracapitalistas (internamente ou coloniais), poderiam beneficiar indiretamente à Alemanha através de suas exportações de meios de produção direcionadas à França.
3) Antes da Primeira Guerra Mundial, um país como a Alemanha podia comerciar, ainda que com dificuldades crescentes, com as colônias francesas e inglesas.
Destas considerações, no nosso entendimento, decorre que os dados fornecidos pela contribuição não prestam em nada para apoiar a tese defendida. Por enquanto, esses dados nos dão a oportunidade de examinar mais detidamente o caso dos Estados Unidos, país que conheceu a maior expansão durante o período considerado, diretamente ligada aos mercados extracapitalistas, internos, anexados (uma forma radical de colonização) ou coloniais.
Depois da destruição da economia escravista dos Estados do Sul pela Guerra Civil (1861-1865), o capitalismo expandiu-se durante os trinta anos seguintes para o Oeste americano através de um processo contínuo que pode ser resumido da seguinte forma: massacres e limpeza étnica da população indígena; estabelecimento de uma economia pré-capitalista através da venda e da concessão de territórios, anteriormente anexados pelo governo, a colonos e pequenos criadores; destruição desta economia extracapitalista por meio da dívida, da fraude e da violência; extensão da economia capitalista. Em 1890, o Órgão Americano do recenseamento proclamou "a Fronteira" interna fechada. Em 1893, os Estados Unidos conheceram uma forte depressão e, durante os anos 1890, a burguesia americana estava cada vez mais preocupada com a necessidade de expandir suas fronteiras nacionais. Em 1898, um documento do Departamento de Estado americano explicava: "Parece existir um acordo geral sobre o fato que, se quisermos manter o emprego dos operários e artesãos americanos, todos os anos iremos nos encontrar com um excedente crescente de produtos manufaturados destinados aos mercados estrangeiros. A expansão do consumo nos mercados estrangeiros dos produtos das nossas fábricas e oficinas torna-se um sério problema comercial, como também político" [4]. Isso foi acompanhado de uma rápida expansão imperialista: Cuba (1898), Havaí (1898), Filipinas (1899), a zona do canal do Panamá (1903). Em 1900, Albert Beveridge (um dentre os principais defensores da política imperialista americana) declarou no Senado: "As Filipinas são nossas para sempre (...). E atrás das Filipinas, há os mercados ilimitados da China (...) O Pacifico é nosso oceano (...). Onde encontrar os consumidores para nossos excedentes? A geografia nos dá a resposta. A China é o nosso cliente natural" [5].
Com o que são feitas, realmente, as trocas com as zonas extracapitalistas?
Pode-se afirmar, como faz a contribuição, que "os países desenvolvidos exportam principalmente bens de produção ao Terceiro Mundo, bens manufaturados, e importam os bens de consumo"?
Aqui nos deparamos novamente com o problema do método que é duplo:
1) Devemos reconhecer: não sabemos se a esfera das relações de produção unicamente capitalistas exportou em direção da esfera pré-capitalista, mais ou menos produtos do setor I (meios de produção) ou de produtos do setor II (meios de consumo). Não sabemos também qual era a opinião de Rosa sobre esta questão. Não conseguimos também encontrar em A acumulação do capital uma só passagem afirmando a ideia que a contribuição da OPOP atribui à autora desta obra: "Todo o raciocínio de Rosa conduz a um "déficit dos meios de produção" e a um "excedente invendável dos meios de consumo"". Na realidade, encontramos duas frases com termos idênticos, mas que não têm nada a ver com esta ideia da citação da contribuição da OPOP. Estão localizadas nas seguintes passagens:
Com efeito, estas duas frases são relativas aos comentários de Rosa depois de ela ter feito alterações no esquema de Marx pelas necessidades de uma polêmica com Tougan Baranowsky. Trata-se de hipóteses de trabalho totalmente alheias ao assunto considerado pela contribuição da OPOP. Como o autor da referida contribuição pôde se enganar a tal ponto? Parece que estava distraído, que pensava em outra coisa quando redigiu essa passagem.
2) O segundo problema é relativo à utilização do termo "Terceiro Mundo" em lugar de "esfera extracapitalista". Com efeito, este termo foi cunhado, para designar um conjunto de países "subdesenvolvidos", em 1952, isto é, no início dos 10 últimos anos em que os mercados extracapitalistas se esgotaram totalmente. Por conta disso, a afirmação da contribuição considerando as importações e exportações entre estes países e a esfera das relações capitalistas parece pouco representativa e pertinente do ponto de vista considerado.
Uma grave subestimação da lei da queda da taxa de lucro e dos ciclos econômicos para explicar as crises?
Por parte de Rosa haveria "uma grave subestimação da lei da baixa tendencial da taxa de lucro e dos ciclos econômicos para explicar as crises".
O que comprova esta pretendida subestimação da queda da taxa de lucro? Será que é o fato de que Marx ter escrito que "É de todas as leis da economia política moderna, a mais importante." (Princípios de uma crítica da economia política (1857-1858); II O Capital - Queda da taxa de lucro; Ed La Pléyade II, p 271 y 272). (Tradução nossa).
Encontramos aqui o mesmo problema já evocado que consiste em reter de Marx unicamente o que vai em direção da tese defendida. Quando na realidade, Marx não diz só isso. Em Teorias da Mais-valia, ele considera a superprodução de mercadorias como o problema fundamental das crises: "... o modo de produção burguês contenha limite para o livre desenvolvimento das forças produtivas, limite que vem à tona nas crises e em outras manifestações como a superprodução - o fenômeno fundamental das crises" (Teorias da Mais-Valia. São Paulo: DIFEL, 1980, Cap. XVII, 14, p. 962).
Dito isso, nosso objetivo não é de participar de um duelo de citações, mas, ao tomá-las em conta, como expressões reais de ideias significativas do autor, tentar abraçar de maneira não dogmática o conjunto das condições reais do desenvolvimento do capitalismo. Sobre esta questão, os argumentos que já demos e que destacam a importância do mercado, constituem, segundo nossa opinião, uma reposta.
Continuemos com a questão do caráter cíclico das crises a propósito da qual a contribuição explicita: "Na verdade, é o peso do capital fixo que está na base dos ciclos decenais e estes no seio de sua análise da acumulação e das crises". Em seguida dessa vem uma outra citação de Marx apoiando tal afirmação. Quando, como Rosa, consideramos que a abertura da crise depende essencialmente dos mercados e que, como Marx, considerou que "o mercado e a produção são fatores não idênticos" (Matériaux, Les crises. La Pléiade - Economie II, p. 489 - Tradução nossa), assim, temos de associar a irrupção da crise à saturação do mercado e não exclusivamente ao ciclo de renovação do capital fixo:
A duração dos ciclos da crise não pode ser periódica visto que a saturação momentânea do mercado não obedece a nenhuma lei.
Quanto à duração observada do ciclo de surgimento das crises, Engels necessitou fazer correção, quando se encarregou de publicar O capital, da ideia seguinte exposta por Marx no livro III: "Esse ciclo industrial é de tal natureza que o mesmo ciclo, uma vez dado o primeiro impulso, tem de reproduzir-se periodicamente" (O Capital, Volume III Tomo I, Pg. 28 Ed. Abril Cultural, 1984).
Engels efetua esta correção dentro de uma nota que vale a pena citar na íntegra, visto que ela traz muitos elementos da realidade concreta da época, nem sempre percebidos neste debate:
É importante assinalar que Engels justifica o fim das crises periódicas baseando-se em considerações não relativas à produção, mas aos mercados, a concorrência, etc.
Apoiando-se em um gráfico que permite analisar a correlação entre a evolução e a ocorrência das recessões da economia americana no período 1948-2007 [6], a contribuição da OPOP conclui esta parte da maneira seguinte: "Como Marx havia analisado, a vida do capitalismo é bem ritmada por uma sucessão de ciclos mais ou menos regulares; cada um deles é composto por uma fase de alta e depois de baixa da taxa de lucro, em meio à qual estoura uma nova crise. Isso também desmente de maneira formal a tese de Rosa que faz depender as crises e a evolução da taxa de lucro essencialmente da saturação dos mercados".
Não sabíamos que Rosa condicionava a evolução da taxa de lucro à saturação dos mercados! Na realidade, é a quantidade de mais-valia realizada que é prejudicada ao mesmo tempo pela insuficiência dos mercados e da taxa de lucro, esta última sendo totalmente independente da situação do mercado. Segundo nossa opinião, a contribuição da OPOP é muito precipitada em concluir que a teoria que defende seria verificada pela realidade demonstrada através do gráfico.
Contra esta conclusão, queremos apresentar as seguintes objeções:
1) O período não abrangido pelo gráfico incluído na contribuição não corrobora esta conclusão:
2) Ao examinar o gráfico da contribuição, pode-se encontrar elementos contrários à conclusão da contribuição;
Será que a realidade refutou as teses de Rosa Luxemburgo quanto à entrada do capitalismo em decadência?
"Rosa Luxemburgo retomou a questão da entrada em decadência do capitalismo na sequência da fase imperialista para a partilha das "zonas do mundo ainda não capitalistas", durante o último terço da fase ascendente do capitalismo. Em consonância com essa análise, muitas correntes e frações políticas se sentiram inspiradas para anunciar o fim do sistema capitalista após a Primeira Guerra Mundial"
A questão não é de saber como é interpretada a teoria de Rosa Luxemburgo, mas o que ela diz realmente. Rosa nunca disse que o capitalismo ia desaparecer depois da Primeira Guerra Mundial.
O que ela realmente disse a partir de 1913? Que a sociedade ia entrar numa nova fase, aquela de seu declínio histórico, expressando-se através de convulsões sociais, colocando na ordem do dia a alternativa "socialismo ou barbárie". Constatação essa feita pelo conjunto dos revolucionários quando da fundação da Internacional Comunista em 1919, qualquer que fosse sua análise do imperialismo. Rosa se expressava nesses termos:
Não se deve confundir o estágio mundial quando as diferentes potências do mundo concluíram a partilha dos territórios extracapitalistas (antes da Primeira Guerra Mundial), visto que essa parcela "Geograficamente [..] abrangem, mesmo hoje, vastas regiões da Terra" [7] e este outro estágio mundial, quando a esfera extracapitalista acabou de ser integrada na sua quase totalidade às relações capitalistas (final dos anos 1950).
O primeiro estágio é diretamente o causador da Primeira Guerra Mundial, análise sobre a qual convergiram Rosa Luxemburgo e Lênin. O segundo, abre um período sem volta de endividamento crescente por parte do capitalismo (para compensar a ausência de mercados solventes extracapitalistas) para sobreviver, mas que só faz adiar o fim.
Entre os dois, encontra-se um período de convulsões (crise de 1929, depressão dos anos trinta e Segunda Guerra Mundial) que diretamente é a conseqüência de uma insuficiência dos mercados extracapitalistas em relação às necessidades da produção. Durante a fase de depressão dos anos 1930, estes mercados foram relativamente pouco conquistados pelas relações capitalistas. Sua participação na prosperidade do período pós Segunda Guerra Mundial é essencialmente devida aos progressos da indústria capitalista que permitiu obter mais lucro decorrente de sua exploração [8]. A fase de prosperidade dos anos 1950 e 60 [9], que aparece como uma exceção na decadência do capitalismo [10], por um lado, corresponde a um desenvolvimento "sadio" apoiando-se sobre a exploração dos últimos mercados extracapitalistas; por outro lado, significa um desenvolvimento artificial, uma transgressão à lei do valor, mas para o qual, um dia, deverá ser pago a um preço devastador [11]. O capitalismo mundial já se engajou num período de reajuste brutal.
A nosso ver, não tem nada nesta análise que constitua "uma bela confissão de que grande parte das previsões luxemburguistas anteriores se revelaram falsas". Na realidade, sem dúvida, não é nada menos que a barbárie que reina sobre o mundo desde o fracasso da onda revolucionaria de 1917-23. É essa situação que faz do século XX o século mais bárbaro nunca conhecido pela humanidade.
Há uma perspectiva sobre a qual Rosa Luxemburgo se enganou efetivamente, quando previu que um mundo privado de mercados extracapitalistas (e, pois, conforme o esquema da acumulação desenvolvido por Marx) significaria a quebra das relações de produção (e não a fatalidade de sua destruição pelo proletariado revolucionário):
Tal erro na previsão da revolucionária não é conseqüência de uma insuficiência intrínseca da sua teoria, mas resultado da dificuldade de prever até que ponto a burguesia seria capaz de transgredir as próprias leis de seu sistema, como a de um endividamento sem reembolso possível com a finalidade de manter a acumulação e adiar o momento do naufrágio.
Mas a maior perspicácia de seu julgamento político reside no fato de que ela foi capaz de evidenciar que a revolta das forças produtivas aconteceria antes do último estágio do imperialismo, ou seja, a integração da última parcela de mercado extracapitalista às relações de produção capitalistas:
Antes de concluir, devemos examinar uma última crítica segundo a qual o método de Rosa Luxemburgo defendido em A acumulação do capital e sua visão da decadência teriam levado ao desaparecimento de organizações revolucionárias ou a previsões totalmente defeituosas como teria sido o caso de Internationalisme (Esquerda comunista da França) em 1952. Segundo a passagem a seguir, colhida a partir de citações de Internationalisme n° 46, publicado em 1952, os mercados extracapitalistas estando esgotados, o sistema viveria uma situação de crise permanente com a perspectiva de iminência da Guerra Mundial.
Isso é uma deformação das posições de Internationalisme. Na realidade, Internationalisme não considerava, nessa época, os mercados extracapitalistas como esgotados e, sobretudo, não fazia decorrer mecanicamente a perspectiva de guerra desta situação. Na realidade, a contribuição da OPOP recuperou na Internet, sem se dar conta disso, um parágrafo que é nada menos que uma contrafação destinada a desnaturar o pensamento de Internationalisme através de uma manipulação grosseira [14]. Achamos importante, em relação à clareza da discussão, evitar se inserir em falsos debates.
A conclusão da contribuição da OPOP termina com essas palavras: "A raiz dessa incompreensão [de Rosa Luxemburgo] está nos seus pressupostos teóricos, tema que será tratado e analisado num momento posterior". É com uma grande satisfação que tomaremos conhecimento desta futura publicação que, esperamos, seja publicada brevemente e, que desejamos, responda nossas críticas.
[1] A queda da taxa de lucro obriga o capitalista a procurar permanentemente compensar a redução do lucro extraído de cada mercadoria pela venda de um maior número delas, favorecendo assim o esgotamento dos mercados. Reciprocamente, o mercado, quando estiver esgotado, não vai mais permitir tal compensação, o que implica na impossibilidade de aliviar os efeitos da queda da taxa de lucro.
[2] Um número importante de contribuições sobre este tema já foi publicado desde a saída de A acumulação o capital. Elas são essencialmente provenientes do meio revolucionário e de inúmeras "personalidades de cultura marxista", militantes de organizações da esquerda do capital e que muitas vezes são motivadas por sua glória pessoal ou por estarem a serviço de uma ideologia entre as numerosas do capitalismo: democrática, reformista ou capitalista de estado (stalinista ou trotskista). Duas boas obras (escritas por revolucionários) permitem uma boa visão geral das contribuições essenciais sobre este assunto e de suas especificidades e diferenças: A Anticrítica de Rosa Luxemburgo (1913) e Crise e teoria das crises de Paul Mattick (1974 ; Cap Os epígonos), defensor da tese da queda da taxa de lucro. Os textos em defesa da tese de Rosa Luxemburgo são menos conhecidos que aqueles em defesa da tese da queda da taxa de lucro. Entre eles existem alguns escritos da Esquerda Comunista da França (em que coexistiam as duas teses) e o elogio ao método empregado por Rosa Luxemburgo feito por Georg Lukács em História e consciência de classe durante o curto período em que foi um militante revolucionário, antes de ter renegado sua obra na sua submissão ao stalinismo. Citamos uma passagem desta obra: "Esta rejeição de todo o problema está estreitamente ligada ao fato dos críticos de Rosa Luxemburgo terem passado distraidamente à margem da parte decisiva do livro (As condições históricas da acumulação) e, coerentes consigo mesmos, puseram a questão sob a seguinte fórmula: serão aceitas as fórmulas de Marx, que se baseiam no princípio isolador, de uma sociedade composta unicamente por capitalistas e por proletários, princípio esse admitido por preocupação metodológica? E qual a melhor interpretação delas? Esse princípio não era mais do que uma hipótese metodológica de Marx, a partir da qual se devia progredir para pôr a questão quanto à totalidade da sociedade, e foi isso que escapou completamente aos críticos. Escapou-lhes que o próprio Marx transpôs esse passo no primeiro volume d'O Capital a propósito daquilo a que se chama a acumulação primitiva. Ocultaram - consciente ou inconscientemente - o fato de, justamente em relação a esta questão, O Capital ser só um fragmento interrompido precisamente no ponto em que este problema deve ser levantado, e que, consequentemente, Rosa Luxemburgo se limitou a levar até ao fim, no mesmo sentido, este fragmento, completando-o em conformidade com o espírito de Marx." (História e Consciência de Classe; Elfos editora, 1989, 2ed. p. 45)
[3] L'accumulation du capital. Tome I. Edt. François Maspero.
[4] Citado em Howard Zinn, History of American People. Tradução nossa.
[5] Idem
[6] Gráfico disponível através do link [47].
[7] Rosa Luxemburgo - A Acumulação do Capital - Vol. II - Cap. XXXI - Tarifas protecionistas e Acumulação - pg. 83
[8] Um território ainda não conquistado pelas relações de produção capitalistas constitui um mercado potencial, mas não necessariamente imediatamente lucrativo. Neste caso, sua exploração será adiada até que estejam presentes condições mais favoráveis para a lucratividade de sua exploração. Essas condições consideram os custos de produção das mercadorias, dos transportes ou ainda o modo de administração do território considerado (supressão da forma colonial de dominação, muito dispendiosa).
[9] Esta fase foi precedida pela reconstrução das economias europeias e japonesas destruídas pela guerra. Seu financiamento foi assumido pelas doações e empréstimos consentidos pelo Estado americano (o plano Marshall) que, para isso, teve que subtrair fundos das suas reservas. São aquelas reservas que chamamos "fundo de guerra" no seio do texto de uma reunião pública, talvez de maneira não adaptada. É óbvio que esta poupança do Estado americano, produto de ciclos anteriores de acumulação, não tinha nada de premeditada para futuramente servir de estímulo à atividade econômica, ao contrário da interpretação irônica feita pela contribuição da OPOP.
[10] É preciso assinalar que os períodos de decadência das formações sociais anteriores ao capitalismo conheceram, elas também, fases de estagnação (até recuperação) devidas aos esforços da classe dominante para resistir ao declínio.
[11] Sobre esta questão, ler os vários artigos do debate interno da CCI, publicados na Revista internacional N° 133, 135, 136, 138 e 141.
[12] (Rosa Luxemburgo - A Acumulação do Capital - Vol. II - Anticrítica - pg.113 Ed. Abril Cultural.)
[13] (Idem pg.178)
[14] A nota 1 da contribuição da OPOP avisa que esta é "produto de uma troca de ideias e opiniões com um militante de outro continente". Será que este militante tem um laço com as passagens citadas que são resultado de recortes "sem escrúpulos" efetuados sucessivamente nas páginas 9, 11, 17 e 1 no seio de diferentes exposições apresentadas nesta revista?
A primeira passagem citada, "O desaparecimento dos mercados extracapitalistas provoca, por conseguinte, uma crise permanente" é imediatamente seguida, em Internationalisme, pela frase seguinte que lhe confere todo seu sentido, mas que não é citada na passagem considerada: "Rosa Luxemburgo demonstra por outro lado que o ponto indicativo de abertura desta crise se inicia bem antes que este desaparecimento se torne absoluto". Em outros termos, pela teoria de Rosa Luxemburgo como para Internationalisme, a situação de crise que prevalece no momento da redação deste artigo não implica em nada o esgotamento dos mercados extracapitalistas, "pois a crise tem início bem antes deste prazo".
A ideia segundo a qual "o caráter inevitável e iminente da guerra que decorreria do esgotamento dos mercados extracapitalistas" na realidade não é uma ideia do grupo Internationalisme como tal, mas de alguns companheiros no seu interior com os quais a discussão tinha se iniciado. É o que demonstra a passagem seguinte de Internationalisme reproduzido na sua integralidade, incluindo assim as passagens que foram intencionalmente eliminados (assinalados em negrito) e que são os mais importantes em tamanho e pelo significado: "Para alguns de nossos camaradas, de fato, a perspectiva da guerra, que nunca deixaram de considerar como iminente, está chegando à sua realização. Nós vivemos num estado de guerra iminente e a questão que é colocada para analisar não é de estudar os fatores que empurrariam à conflagração mundial - esses fatores já estão presentes e atuando - mas, pelo contrário, examinar porque a guerra mundial ainda não foi deflagrada em escala mundial" Esta alteração do pensamento de Internationalisme tende a desprestigiar a posição defendida por Rosa Luxemburgo e Internationalisme, visto que a Terceira Guerra Mundial, que deveria ser a conseqüência da saturação dos mercados, não ocorreu.
Rosa Luxemburgo redigiu sua obra A Acumulação do Capital porque sua leitura de Marx não lhe havia permitido compreender nem "o problema da produção capitalista nas suas relações concretas" nem "seus limites objetivos históricos". Apoiando-se sobre o que ela considerava ser "as contradições do esquema de reprodução ampliada", tal como nos livros II e III de O Capital, ela desenvolveu outra análise da expansão capitalista, diferente daquela elaborada por Marx. [1] Uma leitura correta deste último mostra claramente os múltiplos erros de Rosa acerca da análise econômica de Marx. É o que tentaremos evidenciar, ainda que de maneira sucinta, no presente artigo.
Para Rosa, a esfera propriamente capitalista só pode assegurar de fato a reprodução simples, mas não a reprodução ampliada. O capitalismo puro não comporta a demanda social que lhe permitiria realizar o objetivo de sua acumulação ampliada: a capitalização da mais-valia adicional. Dito de outra forma, ele é confrontado com uma superprodução permanente em relação aos seus meios internos de realização. A resposta de Rosa é que essa demanda seria fornecida "de fora" por compradores. Na sua obra A Acumulação do Capital, Rosa prognostica:
Ora, os tais meios existiam em quantidade limitada e foram arruinados progressivamente. Isso engendra, ainda segundo Rosa, crises periódicas de superprodução que o capitalismo supera por meio de uma extensão do mercado mundial e de suas relações de produção dependentes da esfera extracapitalista. Entretanto, a certo momento, essa esfera torna-se relativamente insuficiente em ralação às necessidades da acumulação à escala mundial. Essa inflexão levaria à abertura da fase de decadência do capitalismo, inaugurada pelo primeiro conflito mundial. Rosa dizia que as tais zonas extracapitalistas, embora ainda fossem geograficamente abundantes no início do século XX, não representavam mais um mercado suficiente, em valor, para assegurar uma expansão normal do capitalismo tal como existira no século XIX. Era esse então, para Rosa, o fundamento econômico da entrada do capitalismo em decadência no momento da Primeira Guerra Mundial.
Na lógica econômica de Rosa, quanto mais o capitalismo substituísse os modos de produção anteriores mais se tornariam estreitos os limites do mercado e mais problemas causariam à necessidade de expansão das empresas capitalistas existentes. Expandir ou ampliar, portanto, era algo que o capitalismo só poderia fazer para fora de si mesmo, açambarcando mercados de "fora do capitalismo", ou, na sua terminologia, extracapitalistas. Só que à medida que fazia isso, estaria cavando o seu próprio fim, já que chegaria o momento em que as travas para o crescimento seriam maiores do que a sua capacidade de manter a expansão. Era esse freio no crescimento das forças produtivas o que caracterizaria a decadência do capitalismo. O desmoronamento catastrófico do sistema capitalista seria, dessa maneira, irreversível, já que seria impossível a continuidade da acumulação, sobretudo à medida que aumentasse o número de países capitalistas na disputa por territórios de acumulação. A situação ficaria cada vez mais grave à medida que ficassem restritos os territórios que ainda estavam disponíveis para a acumulação capitalista, o que levaria a lutas mais violentas e a catástrofes econômicas e políticas. [2]
Essa nova visão da dinâmica e das contradições do capitalismo constituiria, segundo Rosa, a solução das contradições existentes na obra de Marx. Mas o desenvolvimento do capitalismo na sua lógica econômica não se deu segundo os pressupostos teóricos da revolucionária alemã. Não apenas cada uma das teses de Rosa é contrária à análise desenvolvida pelos fundadores do marxismo, mas também elas não correspondem à realidade do desenvolvimento histórico do sistema capitalista. Teórica e empiricamente, a concepção de Rosa tem-se mostrado inadequada para compreender a dinâmica e as contradições do capitalismo. Jogar alguma luz sobre essa discussão é o que nos propomos a fazer daqui por diante neste artigo.
Em Rosa, como dissemos, apenas os mercados extracapitalistas ofereceriam a possibilidade de realizar a mais-valia necessária à ampliação do capitalismo. Essa é uma de suas mais caras teses acerca do desenvolvimento econômico:
Rosa ilustra aqui sua incompreensão das principais razões pelas quais Marx explicitamente retirou de sua análise as trocas com os setores não-capitalistas, tendo ele em sua argumentação lógica considerado esse sistema exclusivamente composto de operários e capitalistas. Isso não decorre de uma simples razão metodológica, mas, antes de tudo, porque ele demonstrou que essas trocas não são necessárias para compreender a acumulação ampliada; nem são verdadeiramente indispensáveis, senão na fase da acumulação primitiva, "da gênese do capital"; e que a crise, a "tendência à superprodução", não advém, de modo algum, da insuficiência dos mercados extracapitalistas, mas, antes de tudo, "da relação imediata do capital" no seio do capitalismo puro.
Efetivamente, para ampliar, o capitalismo tem a necessidade de encontrar à disposição sobre o seu próprio mercado todos os meios materiais modernos e eficientes necessários para a sua ampliação. Dito de outra forma, as vendas extracapitalistas correspondem a uma saída do circuito de acumulação, e as compras na esfera da pequena produção mercantil são incapazes de lhe fornecer todos os meios materiais novos e competitivos necessários ao seu crescimento ampliado. São essas as principais razões pelas quais Marx excluiu categoricamente os mercados extracapitalistas de sua análise.
Com efeito, se o capitalismo vende suas mercadorias fora de sua esfera vai dispor do dinheiro correspondente àquelas vendas, mas deixa de dispor dos meios materiais necessários para a sua expansão (bens de consumo, máquinas, meios de transporte, etc.). Esses não estariam mais disponíveis, pois seriam consumidos ou incorporados na esfera não capitalista. Eles seriam, de resto, de modo geral, bens baratos, máquinas cujas patentes já teriam caído no domínio público e, sobretudo, bens que respondem à demanda local e não às necessidades materiais de expansão do capitalismo, como reconhece a própria Rosa Luxemburgo.
O capitalismo não pode, por conseguinte, encontrar nessas mercadorias, já obsoletas e concebidas para responder à demanda dos pequenos produtores mercantis, os bens modernos e tecnologicamente avançados necessários à sua ampliação. Nenhum fato econômico, nenhum processo histórico, nenhuma passagem nem de Marx nem de Rosa atestam, de resto, qualquer movimento de retorno dessas mercadorias inicialmente vendidas na esfera extracapitalista de volta ao "capitalismo puro" a fim de lhe assegurar os meios materiais necessários ao seu desenvolvimento.
Seria então a produção localizada da esfera extracapitalista que poderia oferecer os meios materiais necessários à produção ampliada do capitalismo? Em outras palavras, o dinheiro proveniente da venda de mercadorias sobre esses mercados serviria então para comprar os meios materiais necessários para a ampliação do capitalismo puro. É o que Rosa tenta argumentar no capítulo 26 de sua obra. Sem dúvida é inegável que o capitalismo encontrou certos bens úteis à sua ampliação: matérias-primas, bens de consumo e, sobretudo, a mão-de-obra adicional. Entretanto, contrariamente ao que pensava Rosa, numerosos bens foram rapidamente produzidos localmente por empresas capitalistas empregando assalariados. A troca, por conseguinte, tornou-se rapidamente interna ao capitalismo puro. No entanto, mais importante ainda, para a particularidade da ampliação da acumulação, foi que passou também a se tratar de bens modernos e eficientes.
Certamente a esfera da pequena produção mercantil era incapaz de produzir tal proeza. Na verdade, é difícil ver artesãos e camponeses aprovisionarem linhas de montagem robotizadas, máquinas em grande número e os meios de transportes modernos que pudessem levar à ampliação da acumulação do capitalismo puro. Essa esfera do comércio se caracteriza por uma venda de bens de produção e compra de bens de consumo, ou seja, é o inverso do que postula a teoria de Rosa, como mostraremos mais adiante.
Uma primeira conclusão se impõe: Rosa Luxemburgo faz da demanda social externa ao capitalismo puro o motor de sua acumulação, e da produção local a fonte dos meios materiais da reprodução ampliada. Ora, Marx demonstra que essas vendas correspondem a uma saída do circuito de acumulação e que o capitalismo não pode encontrar no seio da pequena produção mercantil os meios materiais modernos e eficientes requeridos para a sua ampliação. Tais são os fundamentos teóricos da exclusão dessa esfera por Marx. A teoria de Rosa Luxemburgo, nesse aspecto, não oferece nenhuma análise coerente da acumulação ampliada, nem uma explicação satisfatória da origem de seus meios materiais.
Seguindo Rosa, os defensores da visão luxemburguista da acumulação apresentam a sua capacidade suposta de explicar a história do capitalismo de modo coerente: sua expansão, a destruição e integração das zonas extracapitalistas, o imperialismo, etc. Ela dizia que "o esquema de Marx da reprodução ampliada não conseguia nos explicar o processo da acumulação tal como existiu na realidade histórica". [5] Não apenas essa coerência prometida por Rosa é bastante peculiar, mas a história real do desenvolvimento capitalista traz um contundente desmentido das principais teses originadas por Rosa Luxemburgo em sua análise. Vejamos alguns desses desmentidos:
Conceber, como defende Marx, que as vendas extracapitalistas correspondem a uma saída do circuito de acumulação, permite compreender porque foram os países que dispunham de um vasto império colonial que conheceram as taxas de crescimento mais fracas, enquanto aqueles que vendiam nos mercados capitalistas tiveram taxas bem superiores. Com efeito, ao invés de estimular a acumulação, como pensava Rosa, e ainda pensam muitos dos seus seguidores, as vendas nos mercados extracapitalistas a freiam. Isso se verificou em toda a história do capitalismo e, em particular, nos momentos onde as colônias jogavam, ou deveriam jogar, o papel mais importante.
No século XIX, quando houve uma maior intervenção dos mercados coloniais, os países capitalistas não-coloniais conheceram crescimento quase duas vezes mais rápido que as potências coloniais. As cifras do crescimento do PIB por habitante entre 1870 e 1913 são: Países coloniais: Grã-Bretanha (1,01%), França (1,45%), Holanda (0,9%), Espanha (1,15%), Portugal (0,52%). Países não- coloniais: Estados Unidos (1,82%), Alemanha (1,63%), Suécia (1,46%), Suíça (1,55%), Dinamarca (1,57%).[6] A média das taxas de crescimento de cada um dos dois grupos mostra que os países coloniais conheceram um crescimento quase duas vezes mais fraco do que os outros. A realidade, então, corresponde à visão de Marx da acumulação e é contrária à teoria econômica de Rosa Luxemburgo.
Todo o raciocínio de Rosa conduz a um "déficit dos meios de produção" e a um "excedente invendável dos meios de consumo". Ela conclui, por conseguinte, que são estes últimos que devem ser escoados para os mercados extracapitalistas e por lá serem comprados. Ora, os países desenvolvidos exportam principalmente bens de produção ao Terceiro Mundo, bens manufaturados, e importam os bens de consumo. Em boa parte do século XX, as exportações de quase todos os países do Terceiro Mundo foram em absoluta maioria compostas por produtos primários, ou seja, exatamente o contrário do que previa a teoria de Rosa. Isso vem formalmente desmentir a sua tentativa de fundar no comércio com a esfera da pequena produção mercantil a origem dos meios materiais necessários para a ampliação do capitalismo puro. Mais uma vez o esquema teórico pensado pela revolucionária Rosa entrou em contraposição com o desenvolvimento histórico real.
Ao colocar a origem da dinâmica do capitalismo na demanda dos mercados extracapitalistas, Rosa seria levada a uma grave subestimação da importância da lei da baixa tendencial da taxa de lucro e a negar qualquer noção de ciclos econômicos. Assim, dizia ela, em Reforma Social ou Revolução, que "correria muita água debaixo da ponte antes que a baixa da taxa de lucro viesse provocar o desmoronamento do capitalismo" e que
Ora, nada mais equivocado, segundo o que nos apontaria o próprio Marx, que mostraria tudo isso de forma muito diferente. A lei da queda tendencial da taxa de lucro foi colocada por Marx como um elemento central para o entendimento da dinâmica em que se desenvolve o capitalismo. Com efeito, ele considerou a lei da baixa tendencial da taxa de lucro como
Na verdade, é o peso do capital fixo que está na base dos ciclos decenais e estes no seio de sua análise da acumulação e das crises:
Como vimos, os ciclos decenais, considerados e estudados por Marx, nada tinham de "fato puramente exterior", e muito menos de "acaso". Os 25 ciclos econômicos em dois séculos de capitalismo mostram formalmente a invalidação dessa tese de Rosa. Marx identificou e analisou sete ciclos decenais durante o seu período de vida. A essas evidências históricas mais elementares, o gráfico seguinte busca fazer a demonstração da plena operacionalidade da lei da baixa tendencial da taxa de lucro para compreender a dinâmica do capitalismo, suas contradições e suas crises cíclicas: [10]
US rate of profit and recessions 1948-2007 q3
Como Marx havia analisado, a vida do capitalismo é bem ritmada por uma sucessão de ciclos mais ou menos regulares; cada um deles é composto por uma fase de alta e depois de baixa da taxa de lucro, em meio à qual estoura uma nova crise. Isso também desmente de maneira formal a tese de Rosa que faz depender as crises e a evolução da taxa de lucro essencialmente da saturação dos mercados. Na realidade, como poderíamos explicar a retomada do crescimento da taxa de lucro desde 1982, quando os discípulos de Rosa sustentam que os mercados extracapitalistas estão saturados desde o fim dos anos 1960 e que hoje nós estaríamos perante um "esgotamento total dos mercados extracapitalistas"? [11] Tudo isso remonta, mais uma vez, a uma oposição radical entre as análises de Marx e a de Rosa, tal como temos demonstrado.
4) Análise econômica e decadência do capitalismo
Os discípulos de Rosa gostam de salientar que a sua análise guarda até hoje uma grande coerência para fundar toda uma série de posições políticas e, notadamente, a mais importante dentre elas: a decadência do capitalismo. Para Rosa, o socialismo deveria fundamentar-se não na "injustiça do mundo atual", mas justamente nessa decadência que seria uma espécie de "viga mestre" da necessidade histórica objetiva. O que ela buscava, naquele momento, era uma fundamentação econômica rigorosa para justificar o colapso inevitável do capitalismo. Apesar de querer fazer pender a balança em favor do núcleo revolucionário do marxismo, em contraposição às tendências reformistas da época, a realidade, outra vez, mostrou-se contrária às teses da revolucionária alemã.
Rosa Luxemburgo retomou a questão da entrada em decadência do capitalismo na sequência da fase imperialista para a partilha das "zonas do mundo ainda não capitalistas", durante o último terço da fase ascendente do capitalismo. Em consonância com essa análise, muitas correntes e frações políticas se sentiram inspiradas para anunciar o fim do sistema capitalista após a Primeira Guerra Mundial. Muitas inscreveram, infelizmente, o seu próprio fim adotando tal visão catastrofista; outros repetiram o mesmo erro estabelecendo um diagnóstico análogo ao momento da crise de 1929. Alguns chegaram a prever a eclosão da terceira guerra mundial, em 1952, a partir desse mesmo tipo de constatação:
Essa expressão do catastrofismo, que era filha da trajetória política e econômica de Rosa, foi enunciada no início do que se tornaria a fase mais dinâmica e próspera do capitalismo. Isso não é surpreendente, dado que, como vimos anteriormente, a visão luxemburguista tem engendrado frequentemente análises e previsões bastantes distantes do que se dá na realidade.
Hoje em dia, não apenas os herdeiros da Esquerda Comunista Francesa não hesitam em recuar um século na mesma constatação de "esgotamento total dos mercados extracapitalistas", mas fazem desses mercados repetidamente anunciados como saturados no passado uma das duas "causas do período de prosperidade consecutivo à Segunda Guerra Mundial".
Essa é, sem dúvida, uma bela confissão de que grande parte das previsões luxemburguistas anteriores se revelaram falsas. A citação acima é bastante singular se levarmos em consideração que os mercados já estavam saturados desde a Primeira Guerra Mundial. Com efeito, não é mais o período imperialista de antes de 1914 que assinala a saturação relativa dos mercados extracapitalistas, como defendia Rosa, mas a crise de 1929 que passou a ser esse marco. Mas então, por qual magia essa insuficiência de mercados extracapitalistas, na base da mais grave crise de superprodução de toda a história do capitalismo, de repente pôde transformar-se em uma potente causa da mais longa e intensa fase de crescimento? Totalmente insuficiente em 1929, a esfera extracapitalista tornou-se subitamente um dos dois fundamentos da prosperidade no curso dos Trinta Gloriosos! Como poderia ter-se dado isso?
A magia referida era tão potente que o contexto do entre guerras era de muito fraco crescimento, enquanto que o dos Trinta Gloriosos foi de muito forte crescimento. Portanto, como a insuficiência de mercados no contexto de fraco crescimento de 1929 transformou-se miraculosamente em um fator de prosperidade de crescimento muito forte? Em outras palavras, apesar da "crise permanente e da entrada no período de guerras e de catástrofes", o capitalismo havia sido bastante inteligente para se preparar para períodos como tais constituindo uma base, uma reserva trinta anos mais cedo.[14]
Todos os revolucionários do mundo devem um respeito muito grande a Rosa Luxemburgo, por sua coragem, seu valor, a denúncia do reformismo, sua capacidade política e revolucionária e sua incansável atitude militante. No que diz respeito à sua tentativa de dar contornos reais às suas abstrações teóricas no terreno da economia, entretanto, muitos equívocos foram cometidos. Essas quatro discordâncias maiores entre a história do desenvolvimento capitalista e as teses e previsões decorrentes da análise econômica luxemburguista, dentre outras aqui não citadas, mostram que Rosa Luxemburgo apresentou a maior parte do tempo uma imagem contrária de uma realidade que ela foi incapaz de compreender quando tratou das relações econômicas do capitalismo. A raiz dessa incompreensão está nos seus pressupostos teóricos, tema que será tratado e analisado num momento posterior.
[1] LUXEMBURG, Rosa. A Acumulação do Capital/Anticrítica, Nova Cultural, 1985. O presente artigo é produto de uma troca de ideias e opiniões com um militante de outro continente.
[2] Anticrítica, ensaio publicado como apêndice de edições posteriores de A Acumulação do Capital.
[3] _____. Anticrítica.
[4] _____. A Acumulação do Capital.
[5] _____ . A Acumulação do Capital
[6] MADDISON, Angus. L'économie mondiale, OCDE, 2001, p.284
[7] LUXEMBURG, Rosa. Reforma Social ou Revolução? 1990, Global.
[8] MARX, Karl. Grundrisse. Apud Roman Rosdolsky: Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx, Contraponto,
2001.
[9] _____. O Capital, Livro II, segunda sessão - A rotação do capital, capítulo IX A rotação total do capital avançado. Os ciclos de rotação.
[10] "Estados Unidos - Taxa de lucro e recessões 1948-2007 [47]". Esse gráfico, que mostra a relação entre a taxa de lucros e as recessões nos Estados Unidos entre 1948 e 2007, evidencia muito claramente que a taxa de lucro esteve alta e estável entre 1947 e 1966, que ela caiu entre 1966 e 1982, e que ela voltou a subir entre 1982 e 2007. É sempre o seu ciclo que determina as fases de retomadas e recessões econômicas: entre cada recessão (em vermelho) há uma retomada e depois uma queda da taxa de lucro, e as recessões chegam sempre depois de um período de queda da taxa de lucro. Data de acesso: 11 de abril de 2009
[11] Revue Internationale, n°133, da Corrente Comunista Internacional. Les causes de la prospérité
consécutive à la Seconde Guerre mondiale (debate interno da CCI). Disponível em: https://fr.internationalism.org/rint133/les_causes_de_la_periode_de_prosperite_consecutive_a_la_seconde_guerre_mondiale.html [48] Data de acesso: 11 de abril de 2009.
[12] Internacionalismo, nº 46, Revista da Esquerda Comunista da França (1942-1952). Disponível em: www.collectif-smolny.org/article.php3?id_article=523 [49] Data de acesso: 10 de abril de 2009.
[13] Revue Internationale, n°133, da Corrente Comunista Internacional
[14] Os leitores poderão apreciar alguns dos argumentos desenvolvidos pela análise luxemburguista a respeito da decadência do capitalismo, como o da "utilização de um fundo de guerra resultante de ciclos passados de acumulação". Disponível em: https://pt.internationalism.org/icconline/2006_reunioes_publicas-2-decadencia-do-capitalismo [50] Data de acesso: 10 de abril de 2009.
Existe um acordo profundo entre a Corrente Comunista Internacional (CCI) e a Oposição Operária (OPOP) [1] quanto à existência de uma crise irreversível que abre a perspectiva de um desenvolvimento dos combates de classes em escala mundial e coloca a alternativa Socialismo ou barbárie. Entretanto existe também uma série de questões, relativas a essa crise e essa perspectiva, que merecem ser discutidas e esclarecidas: Qual é o significado de Outubro de 17 no que se refere precisamente à perspectiva revolucionaria atual? Será que a destruição revolucionária do capitalismo pelo proletariado já estava naquela época na ordem do dia da história? Será que realmente a contradição central que se manifesta hoje na crise do capitalismo é a queda da taxa de lucro, a superprodução sendo somente uma conseqüência desta? Será que tal analise corresponde realmente ao que salienta na obra de Marx?E com esta finalidade de esclarecimento através do debate que publicamos nossas objeções (a certos aspetos da visão desenvolvida por OPOP, apoiadas por numerosos elementos relativos ao período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial e àquela que lhe sucedeu, muitas vezes desconhecidos, para evidenciar a ruptura que este evento constituiu em todos os aspetos da vida social. É obvio que a participação, além da OPOP e da CCI é desejada, notadamente sob a forma de contribuições escritas que publicaremos.
[1] Revista Germinal. http\\opopssa.info
Em um artigo publicado em Germinal n°2, intitulado Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual? OPOP analisa o curso da crise econômica aberta iniciada nos finais dos anos sessenta. Conclui com a existência de uma crise irreversível que abre a perspectiva de um desenvolvimento dos combates de classe e coloca a alternativa socialismo ou barbárie: "Afirmamos aqui, categoricamente, que existem situações nas quais as contradições acumuladas foram tão longe que o capital não encontrava mais meios com os quais pudesse reverter uma crise (...) que coloca a questão da decisão num outro plano: no do embate entre o socialismo e a barbárie".
Estamos plenamente de acordo com essa alternativa a qual deve enfrentar o proletariado, socialismo ou barbárie. Esta supõe uma perspectiva de desenvolvimento da luta de classes resultante do caráter irremediável do agravamento da crise atual, assim descrita no artigo: "dada uma situação de crise grave-numa reconhecida situação revolucionária-, a burguesia já não pôde ou já não pode estar com a iniciativa e essa esteve ou venha a estar com um proletariado consciente, mobilizado, organizado e bem dirigido com base num projeto de classe, como foi o caso da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, então, em tais circunstâncias, é a classe operária a que pode ultrapassar a crise do modo de produção, mas dessa vez não para reabrir mais um ciclo de reprodução do capital, mas para declarar e praticar a sua ruptura inaugurando, pela via revolucionária, um outro modo de produção e de existência social".
Contudo, o artigo não é explícito sobre o significado de Outubro de 17 no que se refere precisamente para ilustrar a perspectiva. Pode afirmar-se que a revolução na Rússia, ponto mais avançado da onda revolucionária mundial contra a barbárie da Primeira Guerra Mundial, colocou já pela primeira vez na história, essa alternativa de socialismo ou barbárie? Uma resposta afirmativa significa, como pensamos nós, que a destruição revolucionária do capitalismo pelo proletariado já estava naquele momento na ordem do dia e era a resposta necessária às contradições doravante insuperáveis, desse sistema. A pergunta não é insignificante, pois permite datar o momento em que tais contradições, ao plasmar-se na guerra e na luta de classes e posteriormente na crise, implicaram mudanças fundamentais na vida do capitalismo, caracterizando a sua entrada em decadência: desenvolvimento do capitalismo de Estado e da sua dominação sobre o conjunto da sociedade, integração dos sindicatos no seu aparato, que passam a alistar-se na defesa da ordem dominante, impossibilidade de obtenção de reformas duradouras pelo proletariado etc. A compreensão que temos da dinâmica do capitalismo nos leva, portanto, a datar sua entrada em decadência com o início da Primeira Guerra Mundial[1] e a analisar a crise aberta nos finais dos anos sessenta como um novo episódio das convulsões do capitalismo que pela segunda vez na história, poderá ser a base material para um novo assalto revolucionário do proletariado mundial.
O estudo da crise atual, no artigo publicado pela OPOP, baseia-se na contradição do capitalismo, assinalada por Marx, ou seja, a tendência decrescente da taxa de lucro. Porém ao mesmo tempo, no beco sem saída atual do capitalismo, nega todo papel fundamental a outra contradição do sistema, que também Marx colocou em evidência: o esgotamento dos mercados extracapitalistas: "Aqueles analistas - em especial os que seguem a teoria Luxemburguista da acumulação do capital - que colocam o mercado como a premissa mais decisiva da acumulação não conseguem dar uma explicação convincente de porque o capital consegue abrir caminhos para a retomada do crescimento num quadro no qual o mercado se encontra mais restringido (...)A história das crises capitalistas não deixa dúvidas a esse respeito: a retomada dos ciclos de acumulação do modo produção capitalista se dá não pelo mercado em si mesmo, mas, também aqui, por um movimento que tem sua gênese na produção."
Temos reservas em relação a esse método de análise da crise que consiste em descartar peremptoriamente contradições essenciais do sistema (a saturação dos mercados) diferentes da tendência decrescente da taxa de lucro. Embora a obra de Marx ofereça uma grande riqueza, às vezes contraditória, sobre o tema das crises do capitalismo, querer solucionar tais contradições pela eliminação pura e simples de algum dos seus termos nos isola de uma compreensão do problema na sua totalidade.
O objetivo desse texto é precisamente ampliar a reflexão desses aspectos teóricos e históricos não tomados em conta explicitamente pelo o artigo Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual? Por isso, colocará em relevo a ruptura profunda e irreversível nos aspectos econômico, social e imperialista, que significou o início do primeiro conflito mundial, quer dizer a entrada do capitalismo em sua fase de decadência.
Mencionam-se geralmente as contradições seguintes do modo de produção capitalista:
-A oposição entre valor de uso e valor mercantil que expressa a relação antagônica entre a produção para a satisfação das necessidades humanas e a que serve para o lucro;
Existem contradições do capitalismo mais fundamentais que outras? Existem duas que, segundo Marx, podem entorpecer o próprio desenvolvimento do capitalismo:
Assim, pois, por si mesma, cada uma dessas duas contradições é igualmente fundamental. A questão que se coloca não é então a de saber qual é mais fundamental e sim qual a que se manifesta antes, no tempo, como obstáculo decisivo para o desenvolvimento das forças produtivas.
Faz um século que existe um debate no movimento operário para definir a contradição determinante entre essas duas: "queda da taxa de lucro" "ou incapacidade do mercado para ampliar-se ao ritmo do aumento da produção". Nenhuma das duas teses conseguiu impor-se, pois há correntes autenticamente marxistas que defendem esta ou aquela. Embora a posição da CCI, defendida majoritariamente no seu seio, seja a da insuficiência do mercado, não pertence a nossa mentalidade o cultivo das diferenças entre essas duas teses na medida em que nenhuma delas é chave para delimitar o campo da burguesia e o campo do proletariado, contrariamente, por exemplo, a questão do internacionalismo.
Dito isso, responderemos algumas afirmações expressas contra a tese da insuficiência dos mercados, sem com isso pretender aportar aqui os argumentos decisivos em favor dela [2] e sim com o objetivo de recordar a maneira com a qual o marxismo colocou o problema na história.
O Capital inacabado
Marx não viveu o suficiente para terminar O Capital, o que é fácil constatar ao comparar o que realizou a respeito com o que tinha a intenção de escrever: "Examino o sistema da economia burguesa na seguinte ordem: Capital, Propriedade, Trabalho assalariado, Estado, Comércio exterior, Mercado Mundial. Sob os três primeiros títulos, estudo as condições de existência econômica das três grandes classes nas quais se divide a sociedade burguesa moderna; a relação dos três outros títulos salta aos olhos" (Prefácio a Contribuição à crítica da economia política - Ed.Flama 1946 p.29)
Por outra parte, O Capital foi escrito em um período histórico em que as relações sociais capitalistas ainda não haviam se convertido em um obstáculo definitivo ao desenvolvimento das forças produtivas. Por isso é evidente que há uma relação com o fato de que, quando define o elemento fundamental da crise capitalista, Max insiste algumas vezes no problema da superprodução, outras na tendência à queda da taxa de lucro, sem fazer nunca uma separação mecânica e rígida entre ambas. Por exemplo, no III volume, o capítulo dedicado às consequências da queda da taxa de lucro também contém uma das passagens mais claras sobre o problema do mercado.
Podem ser extraídos outros dois exemplos dessa insistência contraditória na obra de Marx:
As principais interpretações pelos epígonos
Por estar inacabado, O Capital favoreceu a controvérsia no movimento operário sobre os fundamentos econômicos da decadência do capitalismo.
Contudo, com o maior rigor e honradez científica, nenhuma das grandes tendências, nem as baseadas na tendência decrescente da taxa de lucro (que exclui em geral os problemas dos mercados solventes), nem, ao contrário, as baseadas nos limites intrínsecos do mercado podem reivindicar a continuidade formal com os trabalhos de Marx, precisamente pelas insistências contraditórias que estes contêm. Ambas as tendências requerem ao contrário um desenvolvimento às vezes crítico dos trabalhos de Marx.
É o que fez Rosa Luxemburgo, em A Acumulação do capital, quando se propõe fazer a crítica dos esquemas da reprodução ampliada feitos por Marx no Livro II do O Capital. Segundo essa crítica, a acumulação ampliada é impossível sem que se produza uma demanda exterior ao mundo das relações de produção capitalista [5].
Também foi o que fez Paul Mattick - defensor da queda da taxa de lucro - na sua obra Crise e teoria das crises, quando não duvidou em criticar ideias e formulações de Marx, em particular quando se apóiam no caráter necessariamente limitado do consumo na esfera das relações de produção capitalistas:
"É evidente que a crise não somente se origina na insuficiente produção da mais valia, tão pouco pode apresentar-se como um problema de realização da mais-valia e debilidade do poder aquisitivo da população trabalhadora. (...) A crise se apresenta no imediato como uma superprodução de mercadorias invendíveis e uma falta do poder aquisitivo. Poder-se-ia supor, portanto, que a razão última da crise está no subconsumo. E isso, sobretudo tendo em conta que, segundo Marx, "Há uma circulação continua ente capitais constantes (mesmo abstraindo a acumulação acelerada) que, em primeira instância, é independente do consumo individual, à medida que jamais entra nele; no entanto, é definitivamente limitada por ele, pois a produção de capital constante jamais ocorre por si mesma, porque mais dele é necessitado nas esferas da produção cujos produtos entram no consumo individual" (O Capital, Volume III Tomo 1 Ed. Abril Cultural 1984; Capítulo XVIII A rotação do capital comercial p 229). (...) Se só se trata verdadeiramente de subconsumo, e é o que Marx parece afirmar, seria impossível superar a crise ampliando a produção de mercadorias e o capital constante mais além do ponto em que a boa conjuntura desemboca na crise."
Pode ou não o capitalismo criar seu próprio mercado?
O desacordo entre ambas as teorias pode resumir-se, na realidade, na resposta a esta pergunta: Pode ou não o capitalismo criar seu próprio mercado? A resposta afirmativa a essa pergunta, pelos partidários da tese da queda da taxa de lucro, baseia-se em geral na passagem de Marx segundo a qual as dificuldades no processo de acumulação, resultantes da insuficiência da queda da taxa de lucro, conduzem a perturbações no processo de produção, jogando operários na rua e reduzindo assim a demanda de mercadorias, com a superprodução como consequência. Esta passagem também é citada em Crises e teoria das crises. de Paul Mattick:
"Superprodução de capital significa apenas superprodução de meios de produção - meios de trabalho e subsistência - que podem funcionar como capital, ou seja, que podem ser empregados para a exploração do trabalho em dado grau de exploração, e a queda desse grau de exploração abaixo de dado ponto provoca perturbações e paralisações do processo de produção de produção capitalista, crises, destruição de capital. Não há nenhuma contradição em ser essa superprodução de capital acompanhada por uma superpopulação relativa mais ou menos grande. As mesmas circunstâncias que elevaram a força produtiva do trabalho aumentaram a massa dos produtos-mercadorias, ampliaram os mercados, aceleraram a acumulação de capital, tanto em massa quanto em valor, e reduziram a taxa de lucro, essas mesmas circunstâncias geraram uma superpopulação relativa e a geram continuamente, uma superpopulação de trabalhadores que não é empregada pelo capital excedente por causa do baixo grau de exploração do trabalho, único grau em que ela poderia ser empregada, ao menos por causa da baixa taxa de lucro que ela, com grau dado de exploração, proporcionaria." (O Capital, Volume III Tomo 1 Ed. Abril Cultural; 1984).
A ideia resultante, típica dos partidários da queda da taxa de lucro, é que um tipo de lucro adequado deve permitir a existência de um mercado interior em relação com as necessidades da produção.
Sem contradizer a ideia que a queda da taxa de lucro, possa carrear a superprodução, outras passagens de Marx põem em relevo que o problema da superprodução não pode reduzir-se a isso. Com efeito, quando na conclusão do capítulo sobre a Lei da tendência a queda da taxa de lucro, resume o que considera ser sua compreensão global do movimento e as contradições do processo de produção capitalista, Marx fala de uma obra que se desenvolve em dois atos. O primeiro ato é o movimento de produção da mais valia que à medida que se desenvolve o processo de produção, plasma-se em queda da taxa de lucro e incremento da massa de mais valia, enquanto que o segundo ato corresponde à necessidade para "o conjunto da massa de mercadorias a ser vendido". E sublinha que: se não consegue vender-se ou só vende em parte "então o trabalhador é certamente explorado, mas sua exploração não se realiza enquanto tal para o capitalista". Marx esclarece inclusive as relações existentes entre esses dois atos que são a produção e a venda dizendo que teoricamente "as condições da exploração direta e das da sua realização não são idênticas". Emprestamos essa ideia (até com termos idênticos) de uma passagem do Volume III Tomo 1 de O Capital que citamos exaustivamente em nota de pé de página [6].
Diferentemente dos partidários da queda da taxa de lucro, os quais em nome de que a produção geraria por si mesma seu próprio mercado, excluem a questão do mercado como tal, Marx sublinha a independência do mercado em relação à produção. Insiste nisso, sobretudo contra os economistas burgueses como Ricardo, Mill e Say que, eles também, afirmam que a produção cria seu próprio mercado:
"Os economistas que, como Ricardo, consideram que a produção se identifica diretamente com a autovalorização do capital, e desdenham, portanto, dos limites do consumo ou da circulação, pois, para eles, a produção cria automaticamente uma equivalência entre consumo e circulação, não colocando problema algum entre oferta e demanda; só se interessam pois pelo desenvolvimento das forças produtivas (...) [Para] Mill (imitado pelo insonso Say) a oferta e a demanda seriam idênticas, teriam portanto que concordar. A oferta será pois uma demanda medida por sua própria quantidade. Grande confusão aqui..." (Marx, Elementos fundamentais para a crítica da economia política - Grundisse) (Tradução nossa) (Ed. La Pléyade II, p 261 y 262 ; Gründrisse, chapitre du Capital : 216 e 217, Ed. 10/18)
Qual é o fundamento da resposta dada por Marx a esta "grande confusão" da economia burguesa?
Em primeiro lugar, Marx está totalmente de acordo com esses economistas em constatar que: "A produção mesma, com efeito, cria uma demanda, ao empregar novos operários no mesmo ramo industrial e ao criar novos ramos nos quais os novos capitalistas empregam por sua vez novos operários e ao mesmo tempo, correlativamente, transforma-se em mercado para os velhos ramos produtivos..." Porém, acrescenta imediatamente depois da citação, aprovando que neste caso o que disse Malthus: "... a demanda criada pelo próprio trabalhador produtivo nunca pode ser uma demanda adequada, posto que não abarca a magnitude total do que produz. Se o fizesse não haveria benefício algum e portanto, nenhum motivo para empregá-lo. A própria existência de um lucro sobre uma mercadoria qualquer pressupõe uma demanda exterior a do trabalhador que produziu...". (Tradução nossa) (Gründrisse, chapitre du Capital : 225, Ed.10/18 ; Ed. La Pléyade II, p 268)
O que se infere disso é que, inclusive se existe uma contradição "queda da taxa de lucro" que atua como obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas, existe outra contradição também, a não ampliação dos mercados ao ritmo da produção e o caráter limitado no planeta de tais mercados: "Desde o ponto de vista geográfico, o mercado é limitado: o mercado interior é restrito com relação a um mercado interior e exterior, este último é restrito com relação ao mercado mundial, o qual, embora suscetível de extensão, é também limitado no tempo.!" (Tradução nossa) (Grundisse, La Pléyade, Economie II: 489)
São independentes as duas contradições (queda da taxa de lucro e limitações das possibilidades extensão dos mercados)?
Constatar com Marx que produção e realização de mercadorias são dois atos independentes não significa, entretanto que não exista uma correlação, ao menos indireta, entre queda da taxa de lucro e mercado. Com efeito, como constata Marx, "Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista cai, portanto, a taxa de lucro, enquanto sua massa sobe com a massa crescente do capital empregado. Dada taxa, a massa absoluta em que o capital cresce depende de sua grandeza existente. Mas por outro lado, dada essa grandeza, a proporção em que cresce a taxa de seu crescimento, depende da taxa de lucro" (O Capital, Volume III Tomo 1 Ed. Abril Cultural; 1984)
Por isso, a queda da taxa de lucro (que se avalia em cada mercadoria produzida) não poderá compensar-se - em nível da massa de mais valia extraída - exceto por um mercado em crescimento permanente, capaz de absorver uma produção cada vez mais volumosa. Assim é como a queda da taxa de lucro vem acelerar o esgotamento do mercado:
"Durante a reprodução e a acumulação, há constantemente pequenas melhoras que acabam modificando toda escala da produção: há um crescente desenvolvimento das forças produtivas. Dizer que essa produção crescente necessita um mercado cada vez mais amplo e que se desenvolva mais rapidamente que esse mercado, é expressar, na sua forma real e já não uma abstração, o fenômeno que há de explicar. O mercado cresce menos rapidamente que a produção; ou dito de outro modo, é no ciclo da sua reprodução - um ciclo em que não só há reprodução simples, mas ampliada -, o capital descreve não um círculo, mas uma espiral: chega um momento em que o mercado parece demasiado estreito para a produção. É o que ocorre ao final do ciclo. Porém isso não significa outra coisa que, simplesmente, o mercado está supersaturado (...). Com efeito, ao ser o mercado e a produção fatores independentes, a extensão de um não corresponde necessariamente ao crescimento do outro. Pode ocorrer que os limites do mercado não se ampliem tão rapidamente como o exige a produção ou que os novos mercados se saturem rapidamente, até o ponto em que o mercado ampliado se converta em outra barreira como havia sido antes o mercado estreito" (Tradução nossa) (Grundrisse, La Pléyade, Economie II: 489)
Dito de outra maneira, um mercado amplo capaz de absorver uma produção abundante pode permitir contrarrestar os efeitos da queda da taxa de lucro com respeito à massa de mais-valia realizada. Porém tal mercado não é ilimitado no espaço e, portanto, no tempo.
Pode-se muito bem pensar, como no artigo Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual?, que os mercados extracapitalistas não desempenharam nenhum papel no desenvolvimento do capitalismo como também na resolução das suas crises e que, nesse sentido, não são mais que "espelhismos": "É, portanto, dentro dos limites do modo de produção capitalista, sem que haja necessidade de apelar para artifícios situados fora dele, como "mercados pré-capitalistas" e outras miragens que se apresentam e são superadas as premissas de seus momentos de crise" (Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual?).
Pode-se também muito bem estar em desacordo com passagens de Marx que colocam em relevo que a realização de um lucro supõe a existência de um mercado que não esteja só composto de operários e capitalistas, ou seja, um mercado extracapitalista, como assim afirmam as seguintes citações:
Porém, para ser realmente convincente, é então necessário pelo menos refutar teoricamente os argumentos dos que como Marx, pensam que esses mercados tiveram um papel histórico no desenvolvimento do capitalismo e na resolução das suas crises.
Como supera o capitalismo sua tendência imanente em saturar seus mercados solventes? Como pode solucionar essa contradição "interna" ao seu método de funcionamento? A resposta de Marx fica muito clara: "O mercado precisa ser constantemente ampliado, de forma que suas conexões e as condições que as regulam assumam sempre mais a figura de uma lei natural independente dos produtores, tornando-se sempre mais incontroláveis. A contradição interna procura compensar-se pela expansão do campo externo da produção. Quanto mais, porém, se desenvolve a força produtiva, tanto mais ela entra em conflito com a estreita base sobre a qual repousam as relações de consumo" (O Capital, Volume III Tomo 1 Ed. Abril Cultural 1984; Capítulo XVIII A rotação do capital comercial p 229); "Essa demanda criada pela produção... tende a superar com excesso sua demanda (a dos assalariados), embora que, por outra parte, a demanda das classes não operárias desaparece ou se reduzem fortemente, é assim como se prepara para a queda" (Tradução nossa) (Grundrisse, capítulo de "O Capital") (Ed. La Pléyade II, p 268)
Esse raciocínio de Marx não é, nem mais nem menos que aquele que retomará Rosa Luxemburgo na sua obra A acumulação do capital. Até certo ponto, a grande revolucionária prolongará os estudos de Marx do seu capítulo relativo ao mercado mundial que este não pôde concluir. A totalidade da obra de Rosa está animada por essa ideia central de Marx segundo a qual "Essa demanda criada pela produção... tende a superar a demanda dos assalariados ao mesmo tempo em que por outro lado, a demanda das classes não proletárias desaparece ou se reduz fortemente, - é assim como se prepara a queda". Rosa precisará esta ideia colocando que, considerando que a totalidade da mais-valia do capital social global necessita, para realizar-se, uma ampliação constante dos mercados tanto interno como externo, o capitalismo é dependente das suas conquistas contínuas de mercados solventes, tanto a nível nacional como internacional "Acontece, porém que por meio desse processo o capital prepara a própria cova. Expandindo a expensas das demais formas de produção não capitalistas existentes, chega o momento em que qualquer expansão ou acumulação subsequente do capital torna-se impossível, uma vez que a humanidade toda veio a transformar-se em duas classes únicas - capitalistas e proletários assalariados. Por outro lado, na medida que se impõe essa tendência, o referido processo também acaba acentuando os contrastes entre as classes e a anarquia econômica e política internacionais de tal maneira que, muito antes mesmo de atingida a consequência última do desenvolvimento econômico - o domínio absoluto e indiviso da produção capitalista neste mundo -, o mesmo processo irá acarretar necessariamente a revolta do proletariado internacional contra a existência do domínio do capital. (...) O imperialismo hodierno (...) constitui a última fase de um processo histórico de desenvolvimento: é o período da concorrência geral e mundial mais acirrada dos Estados capitalistas, da luta pela conquista do que sobrou das regiões não capitalistas ainda existentes neste mundo" (Rosa Luxemburgo - A Acumulação do Capital - Anticrítica- Ed. Nova Cultura; 2ª Edição 1985) [7]
A partir deste ponto de nossos "comentários" ao artigo publicado pela OPOP, torna-se conveniente ilustrar de duas formas o papel dos mercados extracapitalistas na vida do sistema:
A maioria dos dados econômicos, sociais e históricos referidos nas duas partes seguintes foi extraída do livro de Fritz Sternberg [8] El conflicto del siglo (1950). Fritz Sternberg compreendeu perfeitamente e ilustrou o novo desenvolvimento do capitalismo mediante sua conquista do mundo e sua contradição insolúvel, a qual enfrenta o sistema após haver alcançado a fase avançada da sua extensão mundial. Se a compreensão da teoria de Rosa Luxemburgo que manifesta nos permite dispor de um material que senão teria ficado disperso, esse autor tem, no entanto, limites na sua coerência política e teórica que assinalaremos quando for necessário [9] e que se concentraram, por outra parte, na sua visão reformista em um momento da história do sistema em que a única perspectiva realista que desde aquela época era possível era sua derrubada.
Os mercados extracapitalistas se localizavam em dois tipos de regiões do mundo. Nos países industrializados, são setores da economia não integrados plenamente ainda no modo de produção capitalista como a agricultura (de subsistência) ou o artesanal. Alguns países industrializados como França ou Itália dispunham ainda, inclusive depois da Segunda Guerra Mundial, de tais setores. Fora desses países, os mercados extracapitalistas são essencialmente localizados no que se denomina de colônias.
Na metade do século XIX, o modo de produção capitalista que só estendia sua soberania à décima parte da população mundial, dispunha então de uma imensa reserva à qual direcionar seus ímpetos expansionistas em renovação constante.
A extensão não imperialista
Durante a primeira fase da sua industrialização, países como Alemanha, Áustria, Hungria, Rússia e Japão passam a ser os novos mercados para as indústrias de exportação dos estados industriais mais avançados. O crescimento desses países pôde realizar-se de uma maneira relativamente rápida, porque os mercados que constituem vêem sua evolução acelerada por importações de capitais que permitem desenvolver uma indústria moderna. A Alemanha, depois de ter sido um mercado importante para as indústrias de exportações britânicas, transforma-se, por sua vez, em um grande estado industrial e começa a dirigir suas exportações para além das suas fronteiras.
Toda Europa industrial podia participar dessa forma da expansão, sobretudo a Alemanha, cujas possessões coloniais próprias continuaram sendo pouco extensas. Durante os últimos anos do século XIX e princípios do século XX, desenvolveu sua extensão através de toda Europa do Leste e do Sudeste, acelerando mais ainda o ritmo da sua extensão industrial mediante a exportação de capitais (El conflicto del siglo, p. 72) Isso representava uma dupla vantagem:
O caso específico dos Estados Unidos
A Europa necessitava exportar e ampliar seus mercados internos. O impulso imperialista permitiu alcançar ambos objetivos graças à exploração de uma maior mão de obra nas suas indústrias de exportação. Nos Estados Unidos, este processo era naquele momento muito mais simples. Ali não havia necessidade de extensão além das suas fronteiras nacionais: o que ocorreu é que suas fronteiras foram deslocadas cada vez mais longe e cada vez mais ao oeste sem ter que penetrar em territórios de outros.[10] Na Europa, as indústrias de exportação puderam desenvolver-se graças à extensão exterior, embora nos Estados Unidos as exportações tenham sido efetuadas a partir de territórios já valorizados para as regiões que estavam nas primeiras fases do seu desenvolvimento (El conflicto del siglo).
O imperialismo, um meio para encontrar as saídas indispensáveis ao insuficiente mercado interno
Parte considerável das colônias já havia caído em mãos das metrópoles antes dos inícios do século XIX, antes que o capitalismo moderno começasse a desenvolver-se. Porém, só durante a segunda metade do século é que as colônias, novas ou antigas, assumiram plenamente sua função essencial de provedores das metrópoles em matérias-primas e produtos alimentícios, assim como de compradores dos produtos industriais metropolitanos (Idem).
Para os capitalistas, o motivo que impulsionava a extensão imperialista era a esperança de lucros superiores aos que podiam extrair normalmente na metrópole, e esta esperança se cumpriu frequentemente. Durante muito tempo, as matérias-primas de procedência colonial foram vendidas com lucros muito significativos. Sendo o nível de vida geral extremamente baixo nessas populações, a mão de obra colonial era explorada ao máximo. Nas colônias, os produtos industriais da metrópole não enfrentavam a concorrência de outras empresas capitalistas, mas somente a de pequenos artesãos com métodos e ferramentas atrasadas, o que tornava fácil vencer por meio de ofertas vantajosas para o comprador local, que ainda permitia ao revendedor realizar superlucros mais que consideráveis. Assim, pois, os motivos que incitavam as distintas camadas capitalistas a conquistar economicamente os territórios coloniais e semicoloniais eram basicamente os mesmos que os animavam sua atividade na metrópole: a busca de lucros máximos (Idem).
Devido a sua situação nos anos 1830-50, ante a ameaça de superprodução, foi a Grã-Bretanha que iniciou o movimento de extensão para as colônias. A indústria inglesa esteve então obrigada a conquistar novos mercados no marco de um mercado mundial que ainda não existia realmente, em uma época na qual prevaleciam ainda de forma mais ou menos exclusiva os modos de produção pré-capitalistas no continente europeu, no qual os estados europeus tentavam frequentemente proteger com altas barreiras protecionistas o desenvolvimento da sua própria indústria contra a concorrência da indústria britânica mais evoluída. Dito de outra forma, a indústria inglesa, que tinha dificuldades muito sérias no mercado interior, enfrentava nos mercados mundiais existentes uma situação que não correspondia em absoluto às suas grandes necessidades de extensão, já que o mercado mundial não progredia senão de uma forma muito irregular, com saltos e com mudanças bruscas (Idem)
Hobson [11] coloca muito bem em relevo porque a expansão imperialista é uma solução a superprodução. A busca frenética de colônias deriva-se precisamente das capacidades produtivas superdimensionadas nos países capitalistas avançados com respeito ao seu mercado interno:
Após a Inglaterra, as demais potências capitalistas europeias alcançaram o mercado mundial com certo atraso com respeito ao que na época era a primeira potência econômica mundial. Porém puderam recuperar o atraso porque o mercado mundial havia se ampliado e estava em um movimento continuo de extensão.
Mercados extracapitalistas em abundância são fatores de prosperidade
A expansão capitalista na sua totalidade, e em particular a expansão imperialista, desempenhou um papel decisivo no descobrimento e na abertura de novos mercados, traduzindo-se entre outras coisas nas cifras em alta permanente do comércio exterior (El conflicto del siglo).
O Aumento dos salários
Nesse marco, a melhoria das condições de existência da classe operária não só é objetivamente uma possibilidade real, como também, em certos casos, um estímulo ao desenvolvimento capitalista. Por exemplo, a obtenção pela classe operária inglesa em 1848 da redução da jornada de trabalho para dez horas, não só é uma conquista real da classe operária ("real", ou seja, que não desapareceu imediatamente depois da sua promulgação com a obrigação de fazer horas extras), mas também foi um estímulo para a economia britânica. Isso é o que Marx põe em evidência em Salário, preço e lucro, quando ilustra a necessidade e a possibilidade da luta por reformas econômicas:
Apesar de não relevar consideravelmente do fator luta de classes, Sternberg descreve corretamente o contexto econômico favorável à luta operária para conseguir reformas:
Na Europa graças ao trabalho crescente das indústrias de exportação puderam crescer por sua vez os salários e o número de operários; na América do Norte, o aumento dos salários repercutiu tanto nos territórios já valorizados como naqueles em que a industrialização e o assentamento da população estavam sendo levados a cabo (Idem).
A atenuação das crises
Não só o capitalismo jamais havia conhecido semelhante prosperidade, além disso, foi naquela época que as crises foram mais suaves. A extensão dos mercados, tanto internos como externos, fornece a explicação mais plausível da forma singular das crises em particular naquela época da evolução capitalista (entre 1850 e 1914), forma que não encontramos nem durante a fase anterior, nem durante as que vieram suceder 1914 (...) Por muito distintas que fossem em muitos aspectos, todas estas crises, no entanto, apresentaram um ponto comum: apareceram como interrupções relativamente breves de um gigantesco movimento ascendente que uma visão global poderia dar por contínua. (Idem).
Joseph A. Schumpeter escreve sobre a evolução da produção nessa época (na sua análise da curva e a produção dos Estados industriais mais importantes daquela época, Inglaterra, Alemanha, os Estados Unidos) avaliando o impacto das crises na referida produção:
Uma prosperidade capitalista geral que não podia ser ilimitada
Os efeitos da expansão mais além das fronteiras, considerada como um todo, não se limitavam em suavizar a saída da crise (uma vez esta ocorrida), por meio de novos investimentos, por exemplo. A expansão influía sobre toda evolução econômica, influindo nos mercados em todas as fases conjunturais, atuando por sua vez sobre as exportações, os lucros, os salários e os mercados interiores. (Idem)
Existe um vínculo entre o desenvolvimento das forças produtivas e a conquista de novos mercados ou a melhor exploração dos antigos, porém não é o proposto pelos partidários da tese segundo qual "a produção cria seu mercado". A exploração efetiva dos mercados potenciais depende, com efeito, dos progressos da indústria que determinam:
Um mercado que só é potencial em um determinado momento pode converter-se, por causa desses mesmos progressos, em um mercado efetivo posteriormente.
O Manifesto comunista descreve muito claramente as condições e as motivações da conquista do mercado mundial.
"Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte. (...) Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destroem todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança." (Marx e Engels, O Manifesto Comunista; www.moreira.pro.br/classcent.htm [51])
As restrições de acesso aos mercados extracapitalistas apareceram como consequência por sua vez:
Tal evolução foi acompanhada de convulsões econômicas que deixaram muito atrás a prosperidade do período 1850-1914.
"A extensão capitalista e o avanço imperialista, que é uma parte importante daquela, não são fatores que estariam à margem de um sistema que teria conseguido prescindir deles para seu funcionamento; pelo contrário, são eles precisamente os quais, ao consolidar o comércio exterior e os mercados internos, que permitiram ao sistema capitalista funcionar sem tropeçar durante todo aquele período. Uma estagnação da expansão capitalista e do movimento imperialista, ou uma decadência do imperialismo, teria trazido as conseqüências mais graves para todo o sistema capitalista. A estagnação que ia se produzir posteriormente entre as duas guerras é a prova mais eloqüente disso" (El conflicto del siglo).
Na época da grande guerra, cerca de 30% da população mundial se encontrava integrada no processo de produção capitalista. (Idem)
Alemanha tem necessidade de acessar livremente os mercados extracapitalistas
A fase mais rápida do desenvolvimento industrial da Alemanha capitalista se realiza em uma época na qual a divisão das riquezas do mundo estava praticamente terminada e na qual as possibilidades de novos avanços imperialistas eram cada vez mais raras. (Idem)
Com efeito, o coração da Europa estava ocupado por um país que, em algumas dezenas de anos, havia se convertido no estado mais industrializado do continente e cujo ritmo de desenvolvimento no âmbito industrial, assim como do comércio exterior, era muito mais rápido que o dos países industriais mais antigos. Além do mais, esse estado aparecia nos mercados mundiais em um momento em que os territórios, há pouco livres de toda soberania europeia, estavam quase todos repartidos e reduzidos a categoria de colônias ou semicolonias desses estados industriais mais antigos, ou seja, precisamente, os competidores mais temíveis da Alemanha (Idem)
O desenvolvimento das tensões entre grandes potências
Acreditar que a expansão imperialista só começou no final do século XIX ou no início do século XX é um erro fundamental. Data de muito antes como temos visto anteriormente. Em contrapartida, o início do século XX sim é que está marcado pelo incremento das tensões internacionais nascidas da expansão imperialista. (Idem)
As tentativas de conquista do imperialismo alemão e seu satélite Áustria-Hungria, assim como as medidas adotadas pela "Entente" (ou seja, a aliança entre França, Grã-Bretanha e Rússia) contra os impulsivos embates do jovem imperialismo alemão que queria proceder a uma redistribuição do mundo, coloca-se em primeiro plano entre as causas do grande conflito. (Idem)
Quando a Alemanha reforçava por sua vez o exército e a força naval, quando a Inglaterra replicava incrementando por sua vez as suas forças navais, quando a França impunha o serviço militar de três anos e ajudava a Rússia para organizar sua mobilização, é evidente que os pressupostos militares dos estados mais importantes iriam conhecer aumentos mais que consideráveis. (Idem)
O fraco impacto dos preparativos militares na sociedade e na classe operária
Esse aumento dos gastos militares ocorreu em plena prosperidade econômica, contrariamente à situação da época que precedeu a Segunda Guerra Mundial. A época anterior a 1914 não tinha nada a ver com o desemprego permanente e massivo típico do período 1929-1939; em nenhuma parte havia centros de produção com capacidade utilizada só nas suas duas terças ou três quartas partes. Pelo contrário, aqueles centros estavam plenamente ocupados na produção de bens civis e, à exceção da Inglaterra, o número de desocupados continuava sendo minúsculo.
Ou dito de outra maneira, os milhares de milhões gastos com o exército ou com a força naval não serviam para reativar uma economia estancada ou em recessão; ao contrário, cada milhão gasto com fins militares freava a extensão da produção civil. As centenas de milhares de homens, à época obrigados a servir o exército ou a marinha, correspondiam à idêntica redução nas forças de trabalho mais produtivas. (Idem)
No entanto, apesar do aumento do gasto militar, os trabalhadores ingleses, alemães ou franceses desfrutaram, durante o período imediatamente anterior a Primeira Guerra Mundial, de rendas sensivelmente mais elevadas que durante o período anterior, o que é uma nova prova, in loco, da boa saúde do capitalismo nessa época. (Idem)
E na medida em que, nesse artigo, nós temos proposto objetivos que não se limitam ao estritamente econômico, mas, além disso, a colocar em relevo as mudanças profundas na vida da sociedade devido à irrupção da guerra, é importante dar conta do estado de ânimo das amplas massas às vésperas desse acontecimento, assim como a orientação adotada pelos revolucionários.
A ameaça da guerra e o movimento operário
A aproximação do fim deste período próspero do desenvolvimento capitalista era previsível, porém poucos tinham consciência do cataclismo que se preparava.
Engels, 20 anos antes já havia mencionado como uma possibilidade trágica: "Se a guerra explode apesar de tudo, o único certo é que haverá entre quinze e vinte milhões de homens armados que acabarão liquidando-se mutuamente, devastando a Europa inteira como nunca antes havia ocorrido; esta guerra deve provocar ao instante a vitória do socialismo ou transtornará até tal ponto a antiga ordem das coisas que a antiga sociedade capitalista parecerá mais absurda que nunca. Nesse caso a revolução socialista será retardada quem sabe dez ou quinze anos, porém somente para triunfar com uma vitória mais rápida e mais radical" (O socialismo na Alemanha em Die neue Zeit, 1891-1892).
Foi sobretudo a ala esquerda da IIª Internacional a que levou o combate para armar a Internacional e o proletariado, na nova situação, contra a ala oportunista que abandonava progressivamente cada dia mais os princípios da luta proletária. Um dos momentos essenciais daquela batalha política foi o congresso internacional de Stuttgart em 1907, durante o qual Rosa Luxemburgo, tirando lições da experiência da greve de massas na Rússia de 1905, vincula a questão da guerra imperialista com a questão da greve de massas e a revolução proletária: "eu pedi para falar, disse Rosa Luxemburgo, em nome das delegações russa e polonesa para recordar a vocês que devemos extrair nesse ponto [a greve de massas na Rússia e a guerra, NDLR], a lição da grande Revolução russa... A Revolução russa não só surgiu como resultado da guerra [NLDR: a guerra russo-japonesa]; também serviu para colocar fim à guerra. Sem ela, o czarismo teria continuado com toda certeza..." (Citado por B.D. Wolfe, Lênin, Trotski, Stálin, Calmann-Levy, 1951 - .Tradução nossa)
A Esquerda fez aprovar uma emenda da maior importância à Resolução do congresso. Apresentada por Rosa Luxemburgo e Lênin: "No caso em que a guerra exploda apesar dos seus esforços, as classes trabalhadoras deverão lutar por um final rápido das hostilidades e tentar com todas as suas forças explorar a crise econômica e política causada pela guerra com a finalidade levantar o povo e acelerar assim a abolição do domínio da classe capitalista" Citado em El conflicto del siglo)
Em 1912, o congresso de Basiléia da IIª Internacional reafirma esta posição diante das ameaças cada vez mais fortes da guerra imperialista na Europa: "Que os governos burgueses não se esqueçam de que a guerra russo-japonesa colocou em movimento as forças revolucionárias da Rússia. Para os proletários, é criminoso matar-se uns aos outros pelos lucros capitalistas, as rivalidades dinásticas e os tratados diplomáticos." (Citado na "Resolução sobre a posição em direção das correntes socialistas e a conferência de Berna" Primeiro Congresso da Internacional Comunista, Pierre Broué, EDI, 1974 - Tradução nossa)
Uma nova época da história europeia e universal
O imperialismo se apresenta como um dos fatores mais importantes da evolução econômica e social dos estados capitalistas europeus e, depois, da sua decadência. Dada a grande intensidade das investidas imperialistas, os fatores que acabariam finalmente por fazer eclodir o conflito mundial continham também uma violência incomparável. Essa guerra iria marcar o início de uma nova época da história europeia e universal. O século anterior, o século da expansão capitalista entre Waterloo[12] e Sarajevo [13], não havia conhecido guerras capazes de obstaculizar o desenvolvimento do capitalismo, nem sequer de influenciá-lo seriamente. A maioria dos conflitos sangrentos daquele tempo só teve um caráter periférico, e se desenvolveu muito longe dos grandes centros capitalistas. Única exceção foi a guerra de 1870-71, que no final das contas foi relativamente breve e só constituiu uma interrupção momentânea da progressão capitalista. Desde 1914, essa situação vai sofrer uma modificação fundamental que, por sua vez, vai comprometer o caráter tradicional da guerra. A Primeira Guerra Mundial significou um corte importante na evolução do capitalismo. (p. 208) como foi sublinhado por Rosa Luxemburgo:
O entendimento de Rosa Luxemburgo no texto que acabamos de citar é semelhante ao de Lênin. Este escrevia em 10 de abril de 1917: "Depois de ter alcançado o capitalismo sua forma madura, o imperialismo originou necessariamente a guerra imperialista. Esta guerra tem conduzido toda humanidade à beira do abismo e ameaça assim arruinar toda civilização" (Lênin, obras completas, edição alemã, vol XX, p. 209 - tradução nossa). A Internacional comunista será ainda mais explícita. O primeiro ponto da "Carta Convite" (janeiro de 1919) ao seu congresso de fundação declara: "O período atual é o da decomposição e da queda de todo o sistema capitalista mundial, e será o da queda da civilização europeia em geral, se não for derrubado o capitalismo com suas contradições insuperáveis." Sua plataforma sublinha: "Nasceu uma nova época: a do desmoronamento do capitalismo, da sua queda interna. É a época da revolução comunista do proletariado." ("Plataforma da Internacional Comunista", P.Broué, Idem).
A guerra iria converter-se em uma guerra de fábricas e indústrias. Nessa fase de prosperidade triunfal do capitalismo, iria tomar uma forma cada vez mais "total", contrariamente às guerras da época napoleônica. (El conflicto del siglo)
O impacto da guerra no estado de ânimo das massas
A gigantesca expansão econômica dos anos precedentes havia consolidado ainda mais o sistema capitalista na Europa, conferindo-lhe uma estabilidade social cada dia maior. Porém, a guerra iria sacudir gravemente o dito sistema. (Idem)
O simples fato que ela tivesse ocorrido, estremeceu de cima abaixo o sistema capitalista, não somente para os trabalhadores socialistas que desde muito haviam se levantado contra ela por princípio, como também para a maioria da população europeia. Não era em absoluto necessário fazer sua a argumentação socialista, apontando como primeiro responsável pela guerra o antagonismo causado pela expansão capitalista e imperialista, para constatar que o capitalismo não tinha sido capaz de impedir uma guerra que acabava de opor uns contra os outros os países mais avançados na via do desenvolvimento capitalista. (Idem)
Centenas de milhões de europeus haviam despertado à vida consciente em uma época em que o capitalismo tinha prosseguido um desenvolvimento contínuo durante um período correspondente a várias gerações. Todo um estilo de vida havia se derivado dessa longa continuidade, que havia colocado a vida daqueles homens sob os signos do progresso e da paz a tal ponto que esses valores identificavam-se, conscientemente ou não, com o próprio sistema capitalista. (Idem)
As abomináveis devastações da guerra minaram assim os fundamentos da fé no sistema capitalista e na sua identificação com o progresso. (Idem)
A evolução consecutiva da Primeira Guerra Mundial provou que a decadência e o esgotamento do capitalismo podiam implicar a decadência de toda sociedade, incluída a classe operária. (Idem)
Essa guerra significou, pois, para toda Europa uma mudança decisiva, a grande fratura da história contemporânea. Toda a sociedade burguesa foi sacudida até seus alicerces quando essa identificação do capitalismo com o progresso, vista até então como algo natural e evidente, foi negada pelos próprios fatos de forma tão evidente que quase ficou ridículo pensar e falar de semelhantes ideias. Diante de semelhante espetáculo, a geração do pós-guerra se sentiu separada não somente por anos ou dezenas de anos, mas como por um abismo intransponível da geração precedente que havia crescido antes da guerra, na época em que o desenvolvimento indefinido do capitalismo parecia um movimento natural e irreversível. (Idem)
Para erradicar das lembranças a recordação da Primeira Guerra Mundial, foram necessárias várias gerações de paz e de progressos econômicos contínuos, porém o período de entre-guerras não aportou nem paz duradoura nem novo desenvolvimento econômico; pelo contrário, outras novas catástrofes acabaram caindo em cima de centenas de milhões de europeus que já haviam perdido sua antiga confiança na ordem estabelecida por causa da guerra.
A Primeira Guerra Mundial foi a manifestação mais violenta das contradições insuperáveis do capitalismo nunca vista até então
As potências europeias lutaram durante mais de quatro anos jogando na fogueira todas suas forças e até as últimas reservas. No final da guerra, sua produção sofre uma redução (mais de um terço), algo sem paralelo em toda história do capitalismo. (Idem) Na realidade, a redução da produção causada na Europa pela Primeira Guerra Mundial foi mais importante do que durante todas as crises do século anterior. (Idem) A Primeira Guerra Mundial, que se manifestou como um obstáculo brutal ao desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, é na realidade o produto do conflito entre essas forças produtivas e as relações de produção, o mundo sendo doravante demasiado estreito para garantir uma extensão das principais potências capitalistas.
Conservando ainda seus territórios coloniais, a Europa pôde, assim que terminou a guerra, retomar com eles suas antigas relações econômicas. Porém, seus esforços lhe permitiram apenas manter o que já possuía. Não podia tratar-se já de uma nova expansão ou de uma melhora das posições europeias ultramarinas. Entretanto, uma nova expansão colonial teria sido indispensável para garantir a posição internacional da Europa. (Idem) Apesar de terem ultrapassado a Europa ou ameaçado-a na sua posição mundial, nem os Estados Unidos nem o Japão tiveram a capacidade de impor ao mundo capitalista um crescimento duradouro comparável ao período 1850-1914.
Assim, pois, a Primeira Guerra Mundial abre brutalmente a fase de decadência do capitalismo caracterizada pela existência de um obstáculo permanente ao desenvolvimento das forças produtivas (e não a uma interrupção do seu desenvolvimento). As duas décadas de prosperidade que seguiram a Segunda Guerra Mundial, não foram, na realidade, mas que uma exceção sobre a qual haveremos de retomar brevemente neste artigo.
A Primeira Guerra Mundial, por si mesma, já significou um freio brusco ao desenvolvimento das forças produtivas, sem que por isso se tivesse manifestado na forma de uma crise econômica aberta. Inclusive explode em pleno auge da prosperidade capitalista, o que pôde fazer alguns pensar, contrariamente ao conjunto da vanguarda revolucionária da época, que não significava necessariamente a entrada nessa fase da vida do capitalismo, a da sua decadência, dominada pela permanência de contradições insuperáveis. Na realidade, para além da exacerbação das rivalidades entre as grandes potências, a Primeira Guerra Mundial tem sua origem em uma das contradições fundamentais do capitalismo, o caráter necessariamente limitado dos mercados extracapitalistas. Embora naquela época, não houvesse globalmente escassez de tais mercados, garantir o seu acesso era, no entanto, uma necessidade vital para todas as potências capitalistas, cujo preço devia ser pago através da guerra.
Não se produz, depois da guerra, uma expansão mais ampla do capitalismo mundial, nem sequer uma extensão igual a do período do pré-guerra, mas um estancamento do centro do capitalismo no seu conjunto, inclusive com certa regressão. (Idem)
O período de entre-guerras oferece a imagem de um duplo estancamento:
Durante o século anterior à Primeira Guerra Mundial, as tendências essenciais da evolução do capitalismo combinavam uma gigantesca extensão externa com um movimento crescente de concentração industrial. O circuito capitalista integrava sem cessar novos territórios, alguns quase desabitados, outros submetidos todavia a formas de vida econômicas pré-capitalistas, até fazer que a parte da população mundial que trabalhava e produzia segundo métodos capitalista passasse de 10% nos anos 1850 a 25 e 30% em 1914. (Idem) O cessar da expansão imperialista não afetou, no entanto, da mesma maneira todos os países capitalistas. Em nenhum momento da história do capitalismo a evolução havia seguido exatamente as mesmas direções e o mesmo ritmo em todos os países envolvidos, e não é de se estranhar que essas diferenças subsistissem no período entre-guerras. Com efeito, embora a expansão europeia se encontrasse paralisada, Japão e Estados Unidos continuaram ampliando suas zonas de influência econômica. (Idem)
Chega a crise de 1929, que se caracteriza por uma redução geral da produção, a mais forte jamais registrada em toda história do capitalismo, pela baixa catastrófica dos intercâmbios exteriores e por um desemprego muito elevado; e além do mais é uma crise marcada, por sua vez, pelo seu caráter industrial e agrário. É esse novo fenômeno específico da crise de 1929 que nunca havia se produzido durante as crises do século XIX. (Idem)
A extraordinária progressão capitalista continuou quase sem interrupções desde meados do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, durante o tempo todo que subsistiram as condições que a permitissem. Essas condições já não prevaleceram durante o período de entre-guerras, porém a guerra não foi a verdadeira causa do seu desaparecimento.
A opinião europeia considerou a Grande Guerra como a responsável principal de uma crise excepcionalmente grave que tanto afetou à época o velho continente. Com efeito, a Europa havia sofrido mais que qualquer outra parte do mundo as consequências desastrosas do conflito. Entretanto, era quase ridículo afirmar que a Primeira Guerra havia sido também a causa decisiva da amplitude da crise norte-americana. O cessar da expansão dos Estados Unidos através do seu próprio território nacional não tem nada a ver com a guerra. Com a guerra ou sem ela, a "fronteira" havia se alcançado. A guerra tampouco era responsável de que, pela primeira vez na história norte-americana, a população rural diminuiu, não só relativamente, como em números absolutos; nem do cessar, também da paragem sem comparação na história dos Estados Unidos do crescimento do proletariado industrial. A guerra tampouco foi a causa do atraso técnico que deixou para trás a produção industrial da Inglaterra em relação com a dos Estados Unidos e Alemanha; esta evolução já havia se esboçado muito antes de 1914. A guerra não foi a causa da paralisia industrial e comercial dos países coloniais explorados pelo imperialismo europeu; nesse âmbito, a responsabilidade incumbia à política imperialista tal como havia se praticado antes da Primeira Guerra Mundial, a qual conheceu mudanças apenas entre os dois conflitos.
Em outras palavras, ao haver cessado quase por completo sua expansão, o capitalismo europeu se viu obrigado a buscar novo equilíbrio. O capitalismo estadunidense, por seu lado, também tinha que encontrar novas válvulas de segurança, já que sua expansão através do seu próprio território havia terminado e a expansão mais além das suas fronteiras nacionais não bastava para fazer frente ao incremento de uma produção em pleno auge. Nos Estados Unidos como na Europa, o capitalismo já não estava em condições de solucionar tais problemas.
Stemberg analisa a crise dos anos trinta como a incapacidade do capitalismo para sincronizar, naquela época, o aumento da produção e do consumo: "A prova que consistia em sincronizar, sobre a base da economia do lucro capitalista e sem expansão externa importante, por um lado o aumento da produção e da produtividade, e, por outro lado, o aumento do consumo, fracassou. A crise foi o resultado desse fracasso" (El conflito del siglo). É essa uma expressão de Stemberg muito ambígua que faz pensar que tal sincronização seria possível sob o capitalismo, a qual é, por outra parte, contraditória com outras ideias do seu livro sobre o período histórico anterior à crise dos anos trinta. Tal consideração decorre de uma concessão ao Keynesianismo.
Após quase duas décadas de prosperidade durante os anos 60 e 70 [14], uma prosperidade em parte real, em parte aparente, a crise volta em 1967. Contrariamente ao que se produziu na crise de 29, a classe dominante desta vez não esperou quatro anos para reagir. Recorreu imediatamente ao crédito.
Logo depois da Segunda Guerra Mundial, a burguesia havia sistematizado o recurso ao crédito. Assim, após haver tocado o fundo em 1953-1954, a dívida total estadunidense volta a se incrementar lenta, porém firmemente a partir de meados dos anos cinqüenta. Esse endividamento, ao criar um mercado artificial, serve de substituição aos últimos mercados pré-capitalistas importantes ainda existentes, mas em processo de esgotamento. O endividamento e as sobras de mercados pré-capitalistas contribuíram, para dar as saídas necessárias à atividade econômica sustentada dos anos 1950-60.
Desde finais dos anos setenta, houve recessões declaradas oficialmente que afetaram os Estados Unidos em 1969, 1973, 1980, 1990 e 2001.[15] A solução à qual tem recorrido sempre a burguesia norte-americana para enfrentar essas dificuldades é ilustrada perfeitamente pela curva do endividamento que vai subindo fortemente a partir dos anos setenta e desmedidamente a partir dos anos noventa. E todas as burguesias do mundo têm atuado na realidade da mesma maneira.
Esses quarenta últimos anos se resumem a uma sucessão de recessões e a uma subida exponencial da dívida mundial. Cada novo endividamento serve para criar artificialmente as saídas mercantis necessárias para uma retomada da atividade econômica, para sair da recessão. De modo que a própria realidade das medidas adotadas pela burguesia diante das suas crises, desde quarenta anos, encarrega-se de responder à pergunta seguinte do artigo Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual? (que se dirige a nós e igualmente a todos aqueles que defendem a teoria Luxemburguista da acumulação): "Como é possível o modo de produção capitalista se reerguer de uma crise se a premissa mais fundamental [para quem adota a teoria Luxemburguista da acumulação] para a sustentação, no caso, o mercado, não existe como a premissa [tendo em conta de que, segundo esses mesmos analistas, está cada vez mais saturado]?" Repetimos, as premissas em questão existiram em abundância sob a forma de mercados extracapitalistas durante todo o período 1850-1914; quando se esgotaram, em finais dos anos cinqüenta, um mercado artificial baseado no endividamento os substituiu. Para a burguesia é hoje muito mais difícil continuar da mesma maneira e isso é o que explica que entramos em uma nova fase da crise aberta nos finais dos anos sessenta.
O endividamento não é uma solução mágica e sim é, ao contrário, um círculo vicioso: os capitalistas produzem mais mercadorias do que o mercado pode absorver; logo o crédito cria uma demanda artificial; os capitalistas vendem suas mercadorias e voltam a investir na produção o lucro assim obtido; é necessário, então, novos créditos para comprar as novas mercadorias.
Desse modo, não só se acumulam dívidas, como também, além do mais, em cada novo ciclo, as novas dívidas devem ser cada vez maiores para manter uma idêntica taxa de crescimento, por ter se ampliado a produção.
Desde 1966, o endividamento é cada vez menos eficaz para gerar crescimento, de modo que o volume da dívida mundial é cada vez mais desproporcional em relação à riqueza real da economia mundial. Isso é o que significa o fato de que o endividamento se constitui em um percentual cada vez maior do PIB, agora inclusive superior a 100% em alguns países. Esse percentual é, na realidade, ainda mais importante se compararmos o endividamento não com o PIB mundial, mas com a riqueza real mundial que exclui na coluna de ingressos das contas do PIB tudo relativo a gastos "improdutivos" (como a indústria de armamentos), quer dizer, tudo relacionado com uma produção que não pode incorporar, de uma forma ou de outra, um novo ciclo da produção.
Além disso, durante os últimos vinte anos, uma parte crescente das receitas da economia real, passou a inflar as bolhas especulativas (a bolha Internet, a das Telecomunicações, dos bens imóveis...). Isso se deve a que se apresenta como mais rentável e menos arriscado especular na bolsa do que investir na produção de mercadorias que têm maiores dificuldades para se vender.
Um endividamento massivo, que afeta o conjunto dos protagonistas econômicos, aumenta os riscos de quebra de um número crescente desses, do estouro de todas as bolhas especulativas e de recessão da economia. Em tais circunstâncias, características do período atual, torna-se muito mais difícil a obtenção de novos créditos em quantidade suficiente para manter a economia à tona e, mais ainda, para reativá-la. Por isso o endividamento, embora permitisse adiar o estouro de uma crise aberta nos finais dos anos sessenta, foi preparando, ao mesmo tempo, as condições de cataclismos econômicos futuros.
Quando nós sublinhamos a consequência da insuficiência dos mercados no surgimento das crises, o artigo Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual?, por sua parte, alega a insuficiência taxa de lucro desde meados dos anos sessenta: "fica muito claro que a manutenção das taxas de acumulação e do produto deixadas pela situação por volta do ano de 1966 só poderiam ser sustentadas com uma taxa de lucro no mínimo igual à que vigia nesses anos, e que, portanto, a taxa de lucro decaída não era adequada para arrastar a pletora de capital físico existente, alcançada por volta de 1966 e herdada da fase de boom da onda longa do pós-guerra." Por outro lado, o artigo toma em conta os dados estatísticos que indicam uma taxa de lucro em crescimento a partir dos anos oitenta (sem nunca conseguir igualar as taxas de lucro de meado dos anos sessenta). E explica essa situação pela política da burguesia destinada a atrasar a tendência decrescente da taxa de lucros mediante uma exploração acrescentada da classe operária e pela fuga dos capitais do setor produtivo para o da especulação onde os lucros são maiores: "Note-se que os lucros permanecem em elevação não obstante a produtividade estar em forte queda durante praticamente todo o período entre os anos 1960 a 2003 - sobretudo nos anos pós-1981 -, o que só pode significar que o crescimento dos lucros advindos no caso do processo produtivo deve ser creditado principalmente à coleta da mais-valia absoluta - de que resulta que os maiores componentes dos lucros elevados no período dos anos pós-1981 são provenientes da exploração da mais-valia absoluta e das operações especulativas com capital fictício - ainda que uma parcela dos lucros acumulados durante esse mesmo período de disjunção a que fizemos referência vão ser aplicados em efetiva acumulação nos anos de boom de parte da década de 1990, sendo que nesse caso os lucros realizados se devem, também, como é sabido, às tecnologias da informática."
Essa análise merece alguns comentários. Um aumento da taxa de lucro concomitantemente com uma diminuição da taxa de acumulação, como assim ocorre a partir dos anos 1980 é típico de uma insuficiência de saídas para a produção. Embora cada mercadoria vendida produza mais lucros, o estreitamento do mercado tem por consequência a obtenção de uma massa de lucros menor, em todo caso insuficiente para manter o nível da acumulação mediante novas inversões.
Essa evidente constatação invalida, ao nosso modo de ver, a tese do caráter determinante da taxa de lucro, sem por isso negar sua realidade e sua importância, em relação, precisamente, com a insuficiência do mercado. Com efeito, inclusive com uma taxa de lucro em baixa, como assim ocorreu depois dos meados dos anos sessenta, continua sendo determinante, em última instância, a questão do mercado, pois é a este que incumbe proporcionar saídas em maior quantidade para assim compensar uma taxa de lucro menor. Isso era possível na fase de prosperidade do capitalismo entre 1850 e 1914. Isso se tornou muito mais difícil mais tarde, na fase de decadência do capitalismo, mesmo mediante a criação de um mercado artificial. Em qualquer caso, a melhor taxa de lucro com a qual a burguesia poderia sonhar só produzirá um efeito reduzido diante de um mercado que, como hoje, depende inteiramente do fluxo de crédito, um crédito cada vez maior em relação com a riqueza real da economia, e cuja mobilização é, portanto, cada vez mais difícil.
Para o artigo Por que a burguesia mundial não acaba de vez com a crise atual?, o que caracteriza plenamente a decadência do capitalismo é a existência de uma bolha de acumulação: "Como a mais-valia relativa deixou de ser a fonte principal e como se registra um descolamento acentuado entre a taxa de lucro e a acumulação, só resta uma explicação plausível para o movimento de capitais nesse período: a taxa de lucro volta a crescer em função da desqualificação da forca de trabalho e da acumulação financeira, e esta acumulação - acumulação-bolha -, é que vai caracterizar o período de decadência máxima de toda a ordem do capital."
Uma coisa é certa: quanto mais se afunda o capitalismo na decadência, tanto mais se enfrenta o sistema com contradições inextrincáveis. É por isso que, a nosso parecer, falar de "período de decadência máxima" não tem sentido, posto que a cada instante desde que se abriu esse período histórico, a decadência é mais avançada de que no momento anterior e menos de que no seguinte. Quanto a caracterizar a entrada de cheio na decadência pela existência de uma bolha de acumulação, se é essa a ideia do artigo, isso significa, no nosso entendimento, subestimar todas as consequências das mudanças que acarretaram o estouro da Primeira Guerra Mundial na vida da sociedade, e especialmente, o fato de que o período iniciado por essa guerra tornou possível e necessária a revolução para evitar a barbárie generalizada e o final da humanidade. Enquanto a queda da sociedade na sua decadência, até alcançar um "nível máximo" de contradições não é em nada sinônimo de fortalecimento das condições materiais favoráveis para a revolução, como demonstram as catástrofes de todo tipo que já estão colocando em perigo a sobrevivência da humanidade e são o produto de quase um século de decadência. Porém, isso é outro debate.
[1] Essa compreensão se baseia dentre outras coisas no fato de que a guerra, longe de constituir um fenômeno isolado da vida da sociedade, sempre foi considerada pelos marxistas como uma expressão perfeita das contradições do modo de produção capitalista, e em particular da sua base econômica.
[2] Consideramos já ter contribuído com esta explicação, em particular através da publicação do artigo, Respuesta a CWO, las contradicciones fundamentales del capitalismo en la Revista internacional n° 127. Vários extratos e citações desse artigo não traduzido para o Português foram recolhidas neste texto.
[3] Aqui não podemos mas que dar uma resenha muito parcial desses debates. Para uma informação mais exaustiva sobre o tema, aconselhamos a leitura do livro Crisis y teoría de las crisis (1974) de Paul Mattik. Membro da Esquerda comunista que militou no KAPD durante a revolução alemã, após ter emigrado para os Estados Unidos em 1926, militara no IWW e escrevera muitos textos políticos inclusive sobre as questões econômicas. A esse respeito, indicamos obras conhecidas: Marx e Keynes - os limites da economia mista publicado em 1969 e Crise e teorias das crises. Mattick faz basicamente resultar a crise do capitalismo da queda da taxa de lucro. Nesse sentido, diverge da interpretação Luxemburguista das crises, a qual, sem negar a queda da taxa de lucro, insiste essencialmente na necessidade de que uma parte dos lucros capitalistas se realize fora da esfera das relações de produção do sistema para que este possa desenvolver-se. É de se assinalar a capacidade de Mattick para resumir magistralmente em Crisis y teoría de las crisis as contribuições à teoria das crises dos sucessores de Marx, de Rosa Luxemburgo a Grossmann, passando por Tougan Baranowsky sem esquecer Pannekoek. Seus desacordos com Rosa Luxemburgo não o impediram em absoluto em dar conta de maneira totalmente objetiva e inteligível dos trabalhos da grande revolucionária.
[4] O livro IV foi compilado por Kautsky baseando-se nas notas deixadas por Marx. Exatamente como fez Engels com os livros II e III. No entanto, essa denominação de livro IV não significa necessariamente que os documentos que contém foram escritos por Marx posteriormente aos do livro III.
[5] Deve-se, entretanto, assinalar que passagens de Marx preparam alguns desenvolvimentos feitos ulteriormente por Rosa Luxemburgo. Encontram-se notadamente nos Gründrisse ou na parte do livro III de O Capital dedicada à analise da contradição da queda da taxa de lucro e são citados neste texto no séio do capítulo relativo ao papel dos mercados extracapitalistas no desenvolvimento do capitalismo.
[6] "Assim que o quantum de mais-trabalho extraível está objetivado em mercadorias, a mais valia está produzida. Mas com essa produção de mais-valia está concluído apenas o primeiro ato do processo de produção capitalista, o processo direto de produção. O capital absorveu tanto e tanto trabalho não-pago. Com o desenvolvimento do processo, que se expressa na queda da taxa de lucro, a massa de mais valia assim produzida se infla enormemente. Agora vem o segundo ato do processo. O conjunto da massa de mercadorias, o produto global, tanto a parte que substitui o capital constante e o variável, quanto a que representa a mais valia, precisa ser vendido. Se isso não acontece ou só acontece em parte ou só a preços que estão abaixo dos preços de produção, então o trabalhador é certamente explorado, mas sua exploração não se realiza enquanto tal para o capitalista, podendo estar ligada a uma realização nula ou parcial da mais-valia extorquida, e mesmo uma perda parcial ou total de seu capital. As condições de exploração direta e as de sua realização não são idênticas. Divergem não só no tempo e no espaço, mas também conceitualmente. Umas estão limitadas pela força produtiva da sociedade, outras pela proporcionalidade dos diferentes ramos da produção e pela capacidade de consumo da sociedade. Esta última não é, porém, determinada pela força absoluta de produção nem pela capacidade absoluta de consumo; mas pela capacidade de consumo com base nas relações antagônicas de distribuição, que reduzem o consumo da grande massa da sociedade a um mínimo só modificável dentro de limites mais ou menos estreitos. Além disso, ela está limitada pelo impulso à acumulação, pelo impulso à ampliação do capital e à produção de mais-valia em escala mais ampla. Isso é lei para a produção capitalista, dada pelas contínuas revoluções nos próprios métodos de produção, pela desvalorização sempre vinculadas a elas do capital disponível, pela luta concorrencial geral e pela necessidade de melhorar a produção e de ampliar sua escala, meramente como meio de manutenção e sob pena de ruína. Por isso, o mercado precisa ser constantemente ampliado, de forma que suas conexões e as condições que as regulam assumam sempre mais a figura de uma lei natural independente dos produtores, tornando-se sempre mais incontroláveis. A contradição interna procura compensar-se pela expansão do campo externo da produção. Quanto mais, porém, se desenvolve a força produtiva, tanto mais ela entra em conflito com a estreita base sobre a qual repousam as relações de consumo" (O Capital, Volume III Tomo 1 Ed. Abril Cultural; 1984; pg 185).
[7] O desenvolvido por Rosa não é senão o que Marx explicou sempre em todos os seus trabalhos econômicos, e isso desde o princípio. No seu opúsculo Trabalho assalariado e capital, por exemplo, dirá: "Essas (as crises) se fazem mais frequentes e mais violentas, e só pelo fato de que à medida que cresce a massa de produção e, portanto, a necessidade de mercados mais extensos, o mercado mundial vai reduzindo-se mais e mais e restam cada vez menos mercados novos a explorar, pois cada crise anterior submete o comércio mundial um mercado não conquistado ou um mercado que o comércio só explorava superficialmente" (Ed. La Pléiade, Économie I : 228:; Tradução nossa)
[8] Fritz Sternberg. Economista marxista e socialista alemão. Participou no Congresso contra o imperialismo de Bruxelas de 1929. Judeu, teve de fugir em 1933, encontra-se com Trotsky na França e se exila nos Estados Unidos em 1939. Obtém a cidadania Norte-americana em 1948. Seus livros, que desenvolvem as teses de R. Luxemburgo, são bem recebidos pelo trotskista Pablo. A partir de 1954, retorna à Europa como conselheiro do sindicalismo alemão.
[9] Para não sobrecarregar nosso texto, não fizemos distinção da nossa própria análise as muito numerosas contribuições de Stemberg, ou pela qualidade da exposição, ou para separarmos explicitamente desse autor criticando idéias que não compartilhamos.
As passagens relativas a outros autores citados na própria obra de Stemberg trazem a marca distintiva de uma citação.
[10] Não há de se esquecer, no entanto, que o território em questão foi também se expandindo mediante compras (Luisiania em 1803, Alaska em 1867) e guerras. A guerra contra o México (1846-1848) e o tratado de Guadalupe Hidalgo implicou na anexação do Texas e, mais tarde da Califórnia. O Tratado de Oregon (1846) estabeleceu a linha fronteiriça entre Estados Unidos e Canadá ao oeste das Rochosas. No final, em 1898 se produziu a anexação do Havaí e em 1912 o ingresso do Arizona na união. Além do mais, e sobretudo, o deslocamento da "fronteira" para o Oeste se fez à custa da usurpação das terras das tribos indígenas e da matança dos seus integrantes. (fonte Wikipedia)
[11] Esse testemunho tem um grande valor, pois ele é de um político pouco propenso em geral a dar por inevitáveis o impulso imperialista e, seu resultado, a Guerra Mundial. Embora a explicação do imperialismo como expressão da acumulação do capital fique mais clara em alguns marxistas que em outros (ler particularmente nosso artigo sobre o imperialismo, Revista Internacional no 19, 4o trimestre de 1979), todos refutavam a tese de Hobson, de Kautsky e demais que consideravam o imperialismo como uma simples "política" escolhida pelo capitalismo, ou melhor, por frações particulares do capitalismo. Essas teses vinham acompanhadas logicamente da ideia de que não era possível demonstrar que o imperialismo era uma má política, dispendiosa e de pouco alcance, e que se podia convencer os setores mais intelectualizados da burguesia de que seria mais proveitoso para eles uma política generosa, não imperialista. Tudo isso abria claramente as portas a todo tipo de receitas reformistas, pacifistas, destinadas a fazer acreditar na possibilidade de um capitalismo menos brutal e menos agressivo .
[12] A batalha de Waterloo teve lugar em 18 de junho de 1815. Terminou com a vitória decisiva dos exércitos dos aliados compostos principalmente por britânicos, alemães (tropas de Hannover, de Bismark, de Nassu) e holandeses, comandados pelo duque de Wellington, e o dos prussianos, comandado pelo marechal Blucher, opostos todos ao exército francês denominado "Exercito do Norte" comandado pelo imperador Napoleão Iº (fonte Wikipédia)
[13] Em 28 de junho de 1914, em Sarajevo, Gavrilo Princip, sérvio da Bósnia, nacionalista yugoslavo, membro do grupo Jovem Bósnia (Mlada Bosna), mata o arquiduque Francisco-Fernando, herdeiro do império austro-húngaro, e a sua esposa a princesa de Hohenberg, no momento em que a sua ascensão ao trono parecia iminente. O atentado de Sarajevo é considerado como o acontecimento desencadeante da Primeira Guerra Mundial.
[14] Entre 1950 e 1967, o capitalismo conhece uma fase de crescimento importante do PIB em alguns quantos países, a qual se denominou algumas vezes "As Trinta Gloriososas". O objetivo desse artigo não é analisar as causas desse tipo de parênteses no marasmo econômico do século XX. Na CCI está se desenvolvendo hoje um debate para entender melhor os fundamentos daquele período de prosperidade. Debate que começamos a publicar na nossa imprensa (ler "Debate interno en la CCI - Las causas del período de prosperidad consecutivo a la Segunda Guerra Mundial" na Revista internacional n° 133, 2o trimestre de 2008, e nos n° 135, 136, 137, 138 y 141 da referida Revista internacional).
[15] Fonte : https://www.nber.org/cycles.html [52]
Capitalista não gosta de crise; capitalista que se preza tem horror à crise; capitalista de verdade sonha com um desenvolvimento "sustentável" no qual a acumulação da riqueza não sofra nenhuma interrupção; capitalista para valer sonha com um sistema no qual a sua classe poderia dispor da energia vital de seus empregados num crescendo sem nenhum problema e sem qualquer interrupção; o mundo dos sonos de um bom capitalista seria aquele no qual ele pudesse acumular sem qualquer solução de continuidade e aborrecimento. Por que, então, as crises, contrariando as expectativas e sonhos dos senhores do capital ocorrem, se instalam, arrebentam massas de capital, levam bancos e empresas à falência, fazem entrar pelo ralo do sistema massas de lucro crescentes, enquanto governos, economistas e empresários, atônitos uns, verdadeiras baratas tontas, outros, não conseguem reverter uma crise, pelo menos nos prazos, nas condições e nas circunstâncias ditados pelos discursos oficiais?
De início, porque uma coisa é a decisão tomada individualmente por cada empresário capitalista, e outra muito diferente são as decisões tomadas pelo conjunto da classe capitalista. Numa unidade empresarial capitalista existe uma racionalidade tal que cada capitalista pode muito bem agir: 1) determinando que tipo de mercadoria (e em que quantidade) vai produzir e; 2) arregimentando os objetos e meios de trabalho necessários à produção de mercadorias. Para esclarecer, com um exemplo, vejamos o caso de produzir pneus para carros: os engenheiros desenham o modelo de pneu que a fábrica deve produzir; o conselho deliberativo da empresa, tomando por base sondagens de mercado ou acionando dispositivos políticos para assegurar as vendas de suas mercadorias, estipula o número de pneus a serem produzidos; o departamento de compras providencia a aquisição das matérias-primas, matérias auxiliares e meios de trabalho necessários para a produção dos pneus; o departamento de "recursos humanos" contrata o batalhão de trabalhadores que vai imprimir movimento à produção; o departamento de engenharia procede aos testes de resistência do tipo de pneu produzido, etc.; e, no dia estipulado, se as condições "atmosféricas" são favoráveis - ou então, se o mercado está de "bom humor"-, o departamento de vendas despacha a massa de mercadorias para os comerciantes autorizados venderem ao consumidor final. A operação total foi coberta de êxito - motivo de sobra para mais uma comemoração: bravos! Prêmios podem ser distribuídos, sem faltar a célebre plaquinha com a foto de um trabalhador - o mais "bem comportado" de todos - e com o velho e desbotado bordão nela gravado: "operário padrão".
Isso porque cada empresário capitalista, em "condições normais de temperatura e pressão", age segundo determinações de uma única vontade, a sua. O fato é que a produção de sua empresa integra centenas ou milhares de atos de trabalho de seus inúmeros trabalhadores, todos eles atos teleológicos de trabalho[1], sendo que a soma de atos teleológicos de trabalho de centenas ou milhares de trabalhadores no âmbito de sua fábrica funciona como um grande e conexo ato teleológico de trabalho do conjunto da empresa.
Já no conjunto da economia social, a teleologia desaparece para dar lugar à causalidade - o que equivale a dizer que as leis que regem o conjunto da economia já não são as simples leis que regem cada capital privado, porém leis que derivam da totalidade do sistema; leis que negam racionalidade ao sistema; leis que obrigam a que o resultado das inúmeras decisões planejadas dos milhares de capitalistas individuais não obedeçam, no conjunto da produção social - vale dizer, da produção enquanto modo de produção capitalista -, a nenhum objetivo ou plano previamente estipulado por uma ação coordenada; leis que imprimem um movimento cego - daí o caráter anárquico do modo de produção capitalista - e que constituem, em ultima instância, o espaço onde se batem todas as contradições inerentes à ordem do capital, de que resultam as crises capitalistas.
Eis, numa visão resumida, o motivo pelo qual nenhum capitalista individual pode escapar da crise e também porque nem a classe capitalista pode debelar uma crise num tempo qualquer e independentemente de um processo de maturação da própria crise enquanto processus. A crise traz consigo, portanto, uma disposição mais uma vez dialética, no sentido de que combina um certo grau de determinismo com um outro que dá lugar à intervenção consciente das classes nela envolvidas - tanto da burguesia, no sentido de superar a crise e arremeter a economia para um novo ciclo de crescimento, quanto do proletariado, no sentido oposto. O êxito na disputa entre essas duas classes vai depender de uma certa ordem de condições e circunstâncias, entre as quais a própria dimensão da crise e a capacidade de organização de uma classe diante da outra de arregimentar meios para impor o seu projeto de classe.
Estamos diante de um aparente paradoxo: dizíamos mais acima que não existe um movimento teleológico no conjunto do movimento do modo de produção capitalista, e agora dizemos que as duas classes podem conduzir o sistema social como um todo para objetivos e um projeto seu. Não existe paradoxo algum nesta afirmação, de vez que qualquer um dos dois projetos de classe, que venha a reunir as condições de êxito, só pode ser realizado - um, o da burguesia, pela contrarrevolução, outro, o do proletariado, pela revolução - a partir das possibilidades que emanam das contradições dadas pelo mesmo sistema em crise. Uma sociedade que se move por leis e pelo império da necessidade (causalidade) cega aponta tendências que, se bem compreendidas, e a depender de condições e circunstâncias dadas, podem ser potencializadas. Em poucas palavras, a sociedade capitalista que evolui à base de leis cegas, portanto sem obedecer, como totalidade, a nenhuma "intenção", a nenhum plano previamente traçado, dá lugar, por conta das imensas contradições sociais que armazena e que explode nas ocasiões de crise, a duas ordens de possibilidades antitéticas: a de uma reposição das premissas da reprodução do capital num outro patamar ou, ao contrário, a de uma ruptura que signifique a derrocada da (des)ordem do capital. Pelo menos era assim que o capitalismo vinha-se desenvolvendo até aqui.
Se a burguesia é a classe que reúne as condições de vantagens sobre o proletariado, ela pode, como na maioria das vezes pôde, reunir forças e meios, acionados e coordenados pelo (seu) Estado e (seus) governos, para, num tempo dado de maturação de tais esforços - que não é o tempo demagogicamente propalado pelas suas elites "bem pensantes" - disparar contratendências à crise (entre as quais o arrocho salarial, a queima do capital excedente desvalorizado, entre outras) e, tateando, sair dela inaugurando um outro ciclo de crescimento.[2] Se, do lado oposto, dada uma situação de crise grave - numa reconhecida situação revolucionária [3] -, a burguesia já não pôde ou já não pode estar com a iniciativa, e esta esteve ou venha a estar com um proletariado consciente, mobilizado, organizado e bem dirigido com base num projeto de classe, como foi o caso da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, então, em tais circunstâncias, é a classe operária a que pode ultrapassar a crise do modo de produção, mas dessa vez não para reabrir mais um ciclo de reprodução do capital, mas para declarar e praticar a sua ruptura inaugurando, pela via revolucionária, um outro modo de produção e de existência social.
Quando então, diante de uma crise de superprodução, a iniciativa está com a burguesia, quais as premissas sobre as quais dá-se início a uma superação que é - em se tratando de uma saída da crise do ponto de vista do capital - a inauguração de um novo ciclo de acumulação do capital? A situação, em tais estágios, tem sido aproximadamente esta: esgotadas as contratendências, que até então evitavam a precipitação da taxa de lucro, esta se encontra agora, num patamar crítico; ela caiu até um nível irrisório - um nível que não pode mais assegurar a mobilização do acervo de capital super-acumulado -, por conta, em primeira mão, de um movimento da produção, que paralisa a taxa de mais-valia e a taxa de lucro do conjunto da economia e, em segunda mão, como resultado ainda por efeito, em ultima instância, do movimento da mesma produção, da ausência do mercado no qual as mercadorias deveriam poder ser realizadas. Afinal de contas, super-acumulação é um estado no qual a plataforma da produção de mercadorias acumulou capital em excesso, para uma demanda social dada. As duas pontas, assim dispostas, fecham o cerco e dão passagem ao momento da crise de superprodução.
Sempre existiu no quadro pelo qual a burguesia tem conseguido dar início a um ciclo de crescimento, uma enorme massa de capital excedente sem função, ocioso, desvalorizado, sucateado combinado com o desemprego massivo de trabalhadores e, consequentemente, com um mercado consumidor tão enrugado que se coloca com um grave bloqueio à realização (venda) da massa de mercadorias disponíveis para troca. Partindo, portanto, do movimento autônomo da produção e completado pela contração do mercado (causada pelo desemprego e pelo rebaixamento dos salários), as mercadorias não podiam, como não podem, escoar, e, não sendo vendidas, portanto, sobrando nos estoques das empresas, determinam, no limite, uma queda da massa e da taxa de lucro (não realizados) que se tornam incapazes de sustentar a continuidade do processo de reprodução ampliada do capital. Aqueles analistas - em especial os que seguem a teoria luxemburguista da acumulação do capital - que colocam o mercado como a premissa mais decisiva da acumulação, não conseguem dar uma explicação convincente do porquê de o capital conseguir abrir caminhos para a retomada do crescimento num quadro no qual o mercado se encontra mais restringido. Como é possível o modo de produção capitalista se reerguer de uma crise se a premissa mais fundamental para a sustentação, no caso, o mercado, não existe como a premissa?
A história das crises capitalistas não deixa dúvidas a esse respeito: a retomada dos ciclos de acumulação do modo produção capitalista se dá não pelo mercado em si mesmo, mas, também aqui, por um movimento que tem sua gênese na produção. Sempre que foi possível um novo ciclo, esse se deu pela retomada da taxa de mais-valia [4] e, consequentemente, da taxa de lucro [5] em condições de máximo desemprego e de um mercado consumidor em baixa. Para tal, a burguesia teve de criar novos arranjos tecnológicos - nomeadamente do capital fixo [6] -, adquirir, por preço mínimo, as empresas que não conseguiam manter-se no jogo da concorrência, contratar trabalhadores pagando salários aviltados e, ocupando, num primeiro momento, o espaço de mercado deixado pelo capital que foi retirado da arena da concorrência à força. É, portanto, dentro dos limites do modo de produção capitalista, sem que haja necessidade de apelar para artifícios situados fora dele, como "mercados extra-capitalistas" e outras miragens, que se apresentam e são superadas as premissas de seus momentos de crise e de superação. Uma vez repostas as condições para uma retomada da taxa de lucro e, complementarmente, de um mercado inicial, o movimento de retomada da reprodução ampliada (que leva no seu bojo, pelo aumento da atividade econômica e da diferenciação da divisão social do trabalho, à ampliação e à diferenciação do mercado consumidor) se dá mediante investimentos novos em regime de reforço mútuo entre os Departamentos I e II da economia. Dessa maneira é posto em marcha um novo ciclo que, mais adiante, repetirá mais outra crise sob condições mais graves ainda.
Posto isso, podemos avançar um pouco mais em nossa investigação ao mesmo tempo teórica e empírica. Afirmamos aqui, categoricamente, que existem situações nas quais as contradições acumuladas foram tão longe que o capital não mais encontrava meios com os quais pudesse reverter uma crise - nestes casos, o momento da subjetividade "normal" era, como segue sendo, totalmente anulado pelo da ação imperativa da ruptura, que coloca a questão da decisão num outro plano: no do embate entre o socialismo e a barbárie. Com isso, o momento da subjetividade contrarrevolucionária pelos meios "pacíficos" avança para o terreno da luta de classe em estado de paroxismo. É exatamente o que está começando a acontecer nos dias atuais.
Desde os anos 1960-70 o capital deixou de ter na acumulação produtiva o ancoradouro privilegiado de seus investimentos; desde então, o capital reorienta os seus lucros para a esfera financeira, a qual acumula capital-dinheiro como nunca acumulou, tanto em volume como em duração, em toda a sua história. Já faz quatro décadas que essa situação, que noutros tempos era uma situação passageira, se prolonga até a derrocada presente; já faz quatro décadas que a acumulação produtiva se mantém numa linha de queda tendencial só, sendo que agora a linha de queda se precipita brusca e perigosamente para baixo apontando para uma depressão inusitada. Olhemos para as figuras 1, 2 e 3 mais abaixo.
Figura 1
Queda da taxa de crescimento
Tendência a longo prazo, 1970-99
Variação anual real do Produto Mundial Bruto (em %)
Elaborado com base em: FMI, 1997; Banco Mundial, 1998, 2000; IFRI-Ramses.
Figura 2
Taxas de crescimento do Pib real dos Estados Unidos
1961-2000* (em %)
*Crescimento real do PIB no ano 2000: estimativa da OCDE (OCDE, 1999).
Fontes: OCDE, 1998 e 1999; IFRI-Ramses 98; CPE, 1999
Figura3
Elas exibem a tendência de queda sistemática (a linha de queda está representada nos gráficos pela seta) das economias mundial e norte-americana desde os anos 1960, quando a crise atual teve inicio, até o ano 2007. Os gráficos revelam uma linha tendencial de queda do PIB em torno da qual ocorrem picos alternadamente para cima e para baixo - nos dois casos movimentos que não conseguem nivelar-se ao pico alcançado nos "anos dourados" - e as durações mínimas, contrariando as alcançadas nas crises anteriores. A ultima figura confirma a tendência de queda do produto bruto mundial registrada na figuras 1 e 2 nos anos recentes-até o ano de 2007. Acerca da tendência que ele evidencia, comenta Jorge Beinstein, que no-lo fornece:
O leitor pode observar, que, enquanto o produto bruto mundial cai sistemática e regularmente, os produtos financeiros derivados se movimentam no sentido oposto e com forte crescimento, fato que corrobora a tese central desse artigo de que os elevados níveis de produto, dos lucros e as taxas de lucro-que ainda confundem alguns analistas-não passam de bolhas sem a contrapartida de valor real, aspecto que será abordado mais adiante neste mesmo artigo. Vejamos agora a Figura 4, a seguir.
Figura 4:
Taxa bruta de lucro nos Estados Unidos
(Fonte dos Dados: OCDE, 2002).
Tomemos os dados da economia norte-americana, que é, pela sua condição de epicentro da acumulação e da crise, a mais representativa das tendências do conjunto da economia mundial. Observa-se que a evolução do PIB no mundo (Figura 1) tem a mesma estrutura do PIB dos EUA. A taxa bruta de lucro nos Estados Unidos declinou fortemente da segunda metade dos anos 1960 aos anos iniciais da década de 1980, quando recuou, no intervalo, em 70 pontos, ou seja, da referência 170 para 100 do mesmo referencial. Passou a crescer, a partir daí, até o ano de 1996, quando então ocorreu uma nova desaceleração, passando por uma nova subida, entre 2001 e 2005, voltando a experimentar a queda brusca que culminou com a avalanche depressiva de agora. Como o gráfico deixa meridianamente claro, o derradeiro pico para cima de peso da taxa de lucro aconteceu em torno dos anos que vão de 1966 a 1968, correspondendo ao ultimo pico para cima do embalo dos "anos de ouro", e que não mais será repetido. De fato, o segundo pico para cima, já situado no processo de crise atual, é muito mais baixo do que o pico dos anos 1960. Nos anos que vão de 2001 a 2005 um novo pico para cima ocorreu, porém, como o que o antecedeu, também não alcançou a performance anterior. Depois desse pico do ano de 2005, que não aparece no gráfico, já se sabe: a tendência à queda, assinalada pelas posições declinantes verificadas entre 1968 e 1996 e entre 1996 e agora, revela um movimento de desaceleração que inclina a linha de queda tendencial para patamares de uma depressão que certamente é muito mais larga e profunda do que a dos anos 1920-1930 - malgrado os escorchantes expedientes de expropriação da mais-valia (em parte da mais-valia relativa[8], com o emprego da informática e da robótica, em parte, da mais-valia absoluta, resultante do arrocho salarial e da super-exploração do trabalho pelo capital às expensas da reestruturação produtiva e das reformas neoliberais implantados, que ganham velocidade nomeadamente a partir dos anos 1990). A mesma tendência de queda da taxa de lucro se confirma se observarmos o aparecimento dos picos para baixo experimentados pela economia ianque: o pico para baixo, experimentado no ano de 1981, é mais forte do que o último deixado pelos anos 1960-1970 e o que está sendo experimentado agora é muito mais grave do que os que lhe antecedem. Recapitulando: tomando-se o índice 140 para representar a taxa de lucro no ano de 1960, a taxa de lucro atinge o seu máximo, 170, entre os anos de 1963 e 1966. O segundo pico para cima, de apenas 130 (40 pontos mais abaixo do que lhe antecede), ocorrerá em 1972, um terceiro, algo em torno de 120 (50 pontos abaixo), entre os anos de 1975 e 1978, outro dos mesmos 120, entre os anos 1987 e 1990, e um no entorno de 130 (40 pontos abaixo do pico de 170 dos "anos dourados"), entre os anos de 1996 e 1999.
Os movimentos de picos para cima da taxa de lucro média da economia americana, que ocorrem entre esses marcos definidores do processo geral de queda da taxa de lucro - como os que acontecem entre 1984 e 1996 e entre 2001 e 2005 - não conseguem, todavia, se igualar aos níveis alcançados nos anos 1960. Isso tem uma implicação muito importante, a saber: mantida constante a correlação entre a taxa de lucro e a taxa de acumulação - no caso em questão essa correlação se manteve aproximadamente constante durante um certo tempo (Figura 4), para um nível dado da pletora de capital acumulado num determinado momento, verbi gracia, o momento do último pico dos anos 1960, com a referência do índice máximo de 170, da escala da Fig. 3 -, a isso deve corresponder um nível determinado da taxa de lucro, e se essa taxa de lucro não consegue se nivelar, ex-post, à mais alta taxa de lucro anteriormente verificada, ou seja, à que correspondeu ao maior nível do PIB e da acumulação, então não restam dúvidas de que as taxas de lucro alcançadas pela economia americana pós-anos 1970 foram insuficientes para mobilizar a enorme massa de trabalho morto[9] acumulado do pós-guerra até os anos 1963-1966, sobretudo a parte fixa do mesmo, representada por uma quantidade de máquinas e instalações industriais jamais de longe imitada por qualquer época anterior em toda a história da humanidade.
Ademais, nos 20 anos, transcorridos entre 1961 e 1981, a capacidade instalada da economia permaneceu constante, porque, como se sabe, o capital fixo, o componente decisivo do capital constante, não se evapora e nem foi ampliado posteriormente em nenhum momento - ainda que possa padecer de uma certa e relativa "velhice". Por outro lado, a estreita correlação existente entre as taxas de lucro, da acumulação e do produto se mantém solidária na queda durante esses 14 ou 15 anos (os dados levam a supor que a mais-valia arrecadada era ainda convertida basicamente na acumulação produtiva). Ora, com base nesses pressupostos, fica muito claro que a manutenção das taxas de acumulação e do produto deixadas pela situação, por volta do ano de 1966, só poderiam ser sustentadas com uma taxa de lucro no mínimo igual à que vigia nesses anos, e que, portanto, a taxa de lucro decaída não era adequada para arrastar a pletora de capital físico existente, alcançada por volta de 1966 e herdada da fase de boom da onda longa do pós-guerra. O que ocorre é que esse tipo de análise tem de considerar a que níveis de produto e acumulação uma determinada taxa de lucro deve corresponder - e fica evidente que, depois de armazenar um máximo de capital fixo no ano 1966, ao que corresponderam as mais elevadas taxas de acumulação e do produto mantidas pela mais elevada taxa de lucro, os lucros realizados em todos os anos posteriores não se colocaram no nível necessário para assegurar a atividade dos "anos dourados".
Não é por outro motivo, lembrado seja, que em momento algum a economia americana e mundial deixou de operar com uma margem de capacidade ociosa nada desprezível. [10] A primeira façanha é muito mais fácil do que a segunda, porque pode ser alcançada com uma taxa de lucro menor, mas a segunda exige muito mais. É aqui que se percebe com maior nitidez o quão insuficiente tem sido a taxa de lucro para manter a reprodução ampliada do capital à escala. Ora, a bem da verdade, nem mesmo a proeza mais fácil foi realizada pela economia americana ou pela economia mundial - ou seja, nem para um crescimento que aproveitasse a cobertura da capacidade ociosa se obteve uma taxa de lucro adequada.
Tomemos, para análise, os dados da Figura 4, fornecidos pela OCDE.
Figura 5
Nela estão correlacionadas quatro tendências que cobrem as performances dos lucros, da acumulação, do PIB e da produtividade nas vastas conjunturas que ocorrem nos últimos 50 anos, incluindo o período de boom que antecede à crise dos finais dos anos 1960 e inícios da década de 1970. Duas tendências se manifestam de modo diferenciado: a primeira, já analisada nos parágrafos anteriores, acontece no início da fase recessiva do ciclo de onda longa do pós-guerra, que, como se pode ver pelos dados, ocorre numa estreita correlação entre as quedas nos quatro itens (a queda do produto está estreitamente relacionada com as quedas da produtividade, da acumulação e dos lucros); a segunda passa a acontecer a partir do ano de 1981, quando se verifica claramente uma crescente disjunção entre as performances em tela, principalmente entre os lucros e a acumulação. Analisemos com vagar os dados. Em todos os anos que vão de 1981 a 2001, o crescimento dos lucros se sobrepõe ao dos demais fatores[11]. Os lucros crescem inclusive nos intervalos de tempo de 1989 a 1991 e de 2000 a 2003, nos quais os elevados lucros obtidos não se traduzem em acumulação. Surgem as inarredáveis perguntas: Por que a taxa de lucro cai? Por que se dá tal disjunção? Para onde foram os lucros? Por que não foram convertidos numa acumulação regular e sistemática que fundamentasse um novo ciclo de acumulação duradouro, etc.?
A que se deveu a queda da taxa de lucro nos EUA, no período em questão? Considerando que, conforme explicou Mandel inúmeras vezes, o consumo matem-se em alta em todas as vésperas da detonação de uma crise, e que, por conseguinte, a baixa do consumo só acontece algum tempo depois, quando é grande o desemprego e o decréscimo dos salários, infere-se que não há porque buscar a causa da primeira queda da taxa de lucro numa suposta retração da demanda solvável, mas em outro campo. Considerando também que não é a queda do ritmo da acumulação e do produto-valor que causa a queda da taxa de lucro, mas, ao contrário, é a queda da taxa de lucro que acarreta a queda da taxa de acumulação e do produto-valor - termos nos quais a taxa de lucro é que é variável independente -, somos obrigados a buscar a causa da queda da taxa de lucro tanto fora do mercado como dos dois fenômenos logo acima analisados. Só existe uma única causa para explicar o declínio da taxa de lucro, e esta queda deve ser creditada à taxa de mais-valia - que cai exatamente quando a composição orgânica do capital[12] se encontra no nível máximo e em circunstâncias nas quais a produtividade está em baixa. De maneira que é na taxa de salário que se deve buscar a explicação dos fatos.
Figura 6: movimento dos salários nos EUA
Examinemos, portanto, o movimento dos salários na economia norte-americana no período em tela e conforme é apresentado na Figura 5. Note-se que os lucros permanecem em elevação, não obstante a produtividade estar em forte queda durante praticamente todo o período entre os anos 1960 a 2003 - sobretudo nos anos pós-1981 -, o que só pode significar que o crescimento dos lucros advindos no caso do processo produtivo deve ser creditado principalmente à coleta da mais-valia absoluta, além de operações especulativas com capital fictício - ainda que uma parcela dos lucros acumulados durante esse mesmo período de disjunção a que fizemos referência vão ser aplicados em efetiva acumulação nos anos de boom de parte da década de 1990, sendo que, neste caso, os lucros realizados se devem, também, como é sabido, às tecnologias da informática. Depois do ano de 2000, a disjunção aumenta bruscamente. Em suma, em todos esses anos os lucros cresceram mais do que os demais fatores e em todos eles foram logrados combinando mais-valia absoluta, em primeiro plano - o que não parece ser nenhuma blasfêmia, em se tratando de épocas de re-estruturação produtiva e neoliberalismo extremos -, com mais-valia relativa em segundo plano, e, muito provavelmente num plano maior, operações financeiras com capital fictício (lucros advindo das operações D - D').
Voltemos à Figura 5, que dá uma ideia da involução dos salários no período em tela. Comparando as figuras 4 e 5, pode-se observar algumas inferências que ilustram e corroboram nossos argumentos. Num primeiro plano estão as posições antitéticas dos movimentos dos salários e dos indicadores analisados nos parágrafos anteriores. Com efeito, a grande contração dos salários, encontrada entre os anos 1966 e 1971 - anos que estão situados na crise da década de 1970 -, está na base do boom verificado nos derradeiros anos da onda longa 1945-1975. Quando, a partir dos anos 1971-72, a fase recessiva toma impulso, os salários seguem uma tendência de alta, o que só pode ser explicada pela queda da taxa de mais-valia relativa em função da queda da produtividade, que é forte também, motivo de sobra para a aplicação de duas grandes contratendências: a reestruturação produtiva e o neoliberalismo .
O mais notável é que os salários sofrem enorme queda nos anos pós-1981, atingindo queda máxima no ano de 1996. Como a produtividade estava em queda - que atinge o maior grau nos anos 1990, 2000 e 2001 -, a coleta de mais-valia relativa também estava em declínio, e aí só existe uma inferência a ser tirada da análise dos fatos: a taxa de lucro se eleva, dos anos 1991 em diante, por intermédio da coleta da mais-valia absoluta e por conta dos lucros realizados na esfera da especulação. Não existe mistério algum nisso, de vez que é nesse período que entra em cena com o máximo vigor a dobradinha reestruturação produtiva/neoliberalismo, dando vazão à máxima desregulamentação dos mercados financeiros e das relações trabalho-capital. Os dados falam por si sós: é nos anos entre 1990 e 1996 que os salários sofrem a queda mais brusca de todos os anos cobertos pelos dados, como é também nesses anos que a acumulação atinge seu ponto máximo no período 1983-2003. Como a mais-valia relativa deixou de ser a fonte principal e como se registra um descolamento acentuado entre a taxa de lucro e a acumulação, só resta uma explicação plausível para o movimento de capitais nesse período: a taxa de lucro volta a crescer em função da desqualificação da força de trabalho e da acumulação financeira, e esta acumulação - acumulação-bolha -, é que vai caracterizar o período de decadência máxima de toda a ordem do capital.
Agora vem a outra pergunta: para onde foram essas massas de lucro, sobretudo depois dos anos 2001-2005, quando a disjunção entre lucros e acumulação produtiva atingiu o estado de paroxismo? Não é necessário ser nenhum Keynes para "adivinhar" o paradeiro dessa massa de lucros; basta consultar os anais da assim chamada "crise do subprime" para conhecer os endereços dos sorvedouros de tais lucros - os endereços dos hedge funds, dos bancos e instituições financeiras que praticaram uma monumental orgia napoleônica com trilhões de dólares que abandonaram a economia real na busca de lucro fácil.
Agora a última pergunta se impõe: por que esses lucros não foram investidos na economia real? É preciso convir que os trilhões de dólares circulados - que inflam os verdadeiros lucros constituídos de valor-trabalho - na ciranda financeira não só não existiram sempre como podem ter crescido a partir da transferência de uma massa inicial oriunda dos ramos produtivos nos quais os investimentos não compensavam mais e que cresceram a partir da dinâmica do próprio setor financeiro (cuja dinâmica obrigou a emissão de moeda em quantidades astronômicas) e que finalmente corresponderam, como se sabe, em bolhas de "valor" puramente fictício. Nada do que aconteceu - que é, como cremos, o que acabamos de descrever - nega, antes confirma, a tese de que tudo isso aconteceu por conta de uma crise que resulta da queda da taxa de lucro da economia produtiva mundial, que se deu por conta do brutal crescimento da composição orgânica do capital, pelo estiolamento das contratendências disparadas pelo capital, que tornou essas taxas de lucro incompatíveis alavancas da continuidade da reprodução ampliada do capital pós-anos 1970 - combinada com a retração do mercado de consumo resultante da extrema concentração da renda, das políticas neoliberais e do desemprego que a própria crise produz e reproduz como resultado e pressuposto.
Há, pois, em suma, quatro décadas que o capital, lançando mãos da reestruturação produtiva, vem tentando explorar mais-valia e, não obstante esse brutal empenho, não consegue arremeter sinalizando um ciclo de onda longa como o anterior (de 1945 a 1975). Durante essas décadas, o máximo que ele tem conseguido são ciclos de curta duração, cada vez menores, que logo se esgotam, deixando atrás de si problemas cada vez maiores para os quais não tem logrado nenhuma solução: desemprego estrutural, rebaixamento extremo dos salários em condições de trabalho precaríssimas, violência atingindo níveis e dimensões absolutamente sem paralelo em toda a história, etc., etc. Ou seja, aquela recuperação dos níveis de emprego, dos salários, de algumas modalidades de assistência social que, de certa forma, voltava a existir a cada novo ciclo de expansão, desde os anos 1970, não se vê mais.
O que está na base dessa manifesta incapacidade do capital de recuperar a economia? Podemos reiterar a linha de entendimento que desenvolvemos no presente escrito e que pode ser resumidamente apresentada nos seguintes termos: a) do lado da produção, o trabalho morto (capacidade física de produção) acumulado até a crise dos "anos dourados" atingiu tal ordem de grandeza e, em posição antitética, o trabalho vivo (o exército de trabalhadores ativos) tornou-se tão insuficiente para mobilizá-lo que, por um lado, já não pode mais oferecer massas e taxas de mais-valia compatíveis com uma robusta taxa de lucro compatível com a mobilização da força produtiva acumulada; b) do lado do mercado, já se coloca com um espaço de longe insuficiente para absorver a torrente de mercadorias que a economia mundial está fisicamente em condições de ofertar. Em função desse malogro, o capital transfere-se para a acumulação-bolha, que também não constitui uma saída e que, pelo contrário, coloca-o numa berlinda muito incômoda: a crise estrutural do capital. Esta contradição, prenunciada por Marx, não resulta de um condicionamento técnico, pois o que está na sua raiz é o grau a que levou uma produção que possui uma vasta dimensão social em confronto com o caráter privado que ostenta. Noutras palavras, o que está no centro desta, que se coloca como a contradição central da produção capitalista hoje, é a insuperável contradição entre as imensas forças produtivas e as relações de produção de um capitalismo que amarga seus piores momentos de decadência em curso.
É esse conflito que faz com que o capital não reencontre a saída que um bando de alegres literatos de quinta categoria vive a apregoar; que faz com que os bilhões de dólares lançados na conta de bancos e empresas falidas sejam vorazmente engolidos pelo dragão da crise, sem nem de longe apontar para "o fortalecimento do crédito ao consumidor e ao produtor", como é reiteradamente anunciado. Para esses resta um lembrete que ficaria muito bem se colocado no umbral da moradia que se situa na Avenida Pensilvânia, número 1600, Washington D.C.: acta est fabula.
[1] Um ato teleológico é exatamente um ato que comporta um objetivo traçado conscientemente e a escolha conexa de meios cuja disposição faculta a objetivação daquilo que se previu. Se, para esclarecer com um exemplo, um engenheiro da empresa em questão percebe que uma determinada máquina já está demodé, e que ele tem condições de desenhar uma nova máquina para substituí-la, ele pode retirar-se para o seu ateliê e, mediante um ato teleológico de trabalho, desenhar a máquina em apreço, construí-la e instalá-la no lugar da outra. Todavia, uma vez instalada, a nova máquina vai, agora com todo o aparato e toda a ação produtiva da fábrica, ser lançada na produção e na circulação de mercadorias do conjunto da economia - onde sua liberdade teleológica já perdeu sentido e se vê envolta num vendaval ditado por leis cegas num sistema onde impera a anarquia da produção.
[2] Um ciclo contém dois momentos que se opõem, um de boom, outro de recessão, o que equivale dizer que um ciclo tem início quando a crise anterior é vencida e se abre um processo de recuperação, e que o ciclo se conclui quando a economia atinge seu estado máximo de recessão e está novamente apta para inaugurar um outro ciclo.
[3] A descoberta conceitual de uma situação revolucionária pertence a Lênin (a teoria em apreço encontra-se principalmente no seu livro A Bancarrota da Internacional Comunista) e quer significar um momento no qual, esgotadas as contratendências aplicadas pelo capital no sentido de debelar a crise, advém uma situação de acentuada perda de controle econômico e social por parte do conjunto da burguesia, que passa a se encontrar relativamente paralisada, e por um amplo e profundo movimento das massas proletárias no sentido que aponta para uma insurreição. Uma situação revolucionária não é ainda uma insurreição e muito menos uma revolução, porque se, de um lado, o proletariado ainda não conseguiu armar-se de um projeto e de uma direção firme, então, a burguesia pode ainda repor-se e desmanchar uma situação revolucionária, na maioria das vezes pela repressão generalizada, e reconfigurar a sua dominação de classe.
[4] Taxa de mais-valia, ou taxa de exploração, é um índice que relaciona a massa de mais-valia (m) com as despesas com a força de trabalho (v), incluindo salários e outras despesas com o trabalhador. A massa de mais-valia é o montante do valor produzido pelo trabalhador, que não lhe é repassado, e que, permanecendo retido no cofre do patrão capitalista, vai formar a fonte de lucro da persona do capital. Aos gastos com o trabalho dá-se o nome de capital variável (v). A taxa de mais-valia é representada por m/v. Se uma taxa de mais-valia é de 100%, significa que m é igual a v ou que m/v é igual a 1/1, ou ainda que, para cada salário pago, o patrão fica com uma mais-valia que equivale a um salário pago.
[5] Taxa de lucro é outro indicador que relaciona a massa de mais-valia, ou seja, a massa de valor do trabalho não pago - aquele valor que o capitalista recebe de graça do trabalhador, que é por ele explorado - com a soma do capital total aplicado. A taxa de lucro é representada por uma fração que tem como numerador a massa de mais-valia (m) e como denominador a soma do capital constante (c) com o capital variável (v). Tl= m/(c+v). Se a Tl é de 20%, isso significa que para cada 100 unidades de valor que o capitalista investiu em compras de matérias-primas, máquinas, etc. e salários, ele recebeu 20 de graça. Como 20% equivale a 1/5, isso significa que, para cada 5 tostões aplicados na produção, ele recebeu um tostão de graça do trabalhador.
[6] A soma do capital-dinheiro gasta com meios de produção (matérias-primas, máquinas, instalações, etc) denomina-se capital constante. À parte dos componentes físicos, representada pelas matérias-primas, matérias auxiliares e insumos em geral, dá-se o nome de capital circulante, enquanto que àquela parcela representada pelas máquinas e instalações em geral designa-se capital fixo.
[7] Beinestein, JORGE - Rostos da crise: reflexões sobre o colpso da civilização burguesa - https://www.resistir.info/ [53]. 2009.
[8] Mais-valia, mais valia absoluta e mais-valia relativa. Já vimos o que é a mais-valia: aquela parcela do valor criado pelo trabalhador que é retida pelo capitalista e que será a fonte do lucro do capital. Quando o incremento da mais-valia é obtido pelo mero prolongamento da jornada de trabalho ou pela intensificação do ritmo do trabalho, tem-se a coleta da mais-valia absoluta. Quando esse incremento resulta do emprego de tecnologia, isto é, em função do aumento da produtividade do trabalho, tem-se a coleta da mais-valia relativa. O limite da coleta da mais-valia absoluta é de natureza física: num caso, porque a jornada de trabalho não pode ultrapassar do seu nível teórico, de 24 horas, no outro, porque a velocidade do ritmo de trabalho pode levar o trabalhador à mais completa exaustão. Já o limite da coleta da mais-valia relativa é dado pelo esgotamento do padrão tecnológico, que pode ser ultrapassado por um outro padrão tecnológico novo e superior.
[9] Trabalho morto e trabalho vivo. O trabalho com o qual o padeiro está produzindo pão é trabalho vivo, ao passo que as matérias-primas, o forno e as instalações industriais que esse mesmo trabalhador manipula para a produzir "o pão nosso de cada dia"- que foram produzidos fora da padaria e em outras ocasiões por outros trabalhadores -, é trabalho morto. No valor do pão estão computados os valores das matérias-primas, da depreciação das máquinas e instalações industriais da padaria (que representam trabalho morto), mais os que correspondem aos salários dos padeiros e da mais-valia (que representam trabalho vivo), sendo que o valor-soma do trabalho morto é valor que é transferido pelo padeiro ao valor do pão, enquanto que o trabalho vivo, com o qual o padeiro transforma aquelas matérias-primas , etc., em pão, é valor novo - que se divide em duas partes: valor-salário e valor-mais-valia.
[10] A exceção se faz basicamente no caso da China, que alargou todas as fronteiras de capital fixo implantadas, criando e reproduzindo uma capacidade instalada recorde a cada ano - mas que, não obstante influir em alguma medida, não o faz com a força de decisão dos EUA. Nem mesmo o Brasil, que é comumente citado, junto com a Índia e a mesma China, como a trinca de "super-emergentes" debutantes e candidatos a fazer parte da "Comissão de Frente" do "Bloco dos 20", logrou eliminar uma capacidade ociosa que está posta praticamente desde o "Milagre", o que não quer dizer que não tenha reposto parcelas desse volumoso capital fixo na base de tecnologias mais atuais (é perfeitamente possível "modernizar" uma parcela do capital instalado sem que se tenha absorvido a capacidade ociosa da totalidade desse capital, fato que apenas agrava a pressão da composição orgânica do capital sobre a taxa de lucro). Deixamos de mencionar a situação da Índia, a tal respeito, por não dispormos de dados. No que se refere à China, as previsões e os indícios apontam para a formação de algum nível de ociosidade no seu aparelho produtivo, a julgar pela desaceleração da atividade econômica desse país.
[11] Uma ressalva importantíssima: como a contabilidade nacional, elaborada pelas instituições estatísticas burguesas, incluem no PIB o "valor" - como dizem, o "produto" - das transações financeiras e, no cálculo dos lucros, os ganhos efetuados com os juros, segue que os lucros anunciados, que devem incluir também os juros ganhos com capital fictício, os lucros obtidos no processo de circulação do capital - D - M...P... M' - devem ser menores ainda. Tais lucros possuem uma bolha puramente especulativa, o que não passa de mais uma malandragem dos economistas burgueses. Em suma, os lucros que são formados de valor-trabalho devem ser muito menores, o que só faz dar mais consistência às nossas análises.
[12] Composição orgânica do capital. Ela se expressa por c/v, sendo c o conjunto de gastos efetuados com os componentes físicos do capital constante - ou seja, com matérias-primas, matérias auxiliares, máquinas, instalações (edifícios, etc.) - e v o conjunto de gastos efetuados com capital variável (salários e outras formas de pagamento feitas aos trabalhadores no âmbito da fábrica). Para ilustrar, uma c/v = 100%, ou de 1/1, significa que para cada tostão gasto com o trabalho, o capitalista gasta 1 tostão com máquinas, etc.; para uma c/v de 10.000%, ou 10.000/10 = 1000/1 significa que para cada 1 tostão gasto efetuado com salários, etc., o capitalista gasta 1.000 tostões com máquinas, equipamentos, etc. A tendência da c/v é se elevar, ou seja, é de que os capitalistas gastem crescentemente mais com máquinas, etc., do que com trabalhador; ou por outra, com a elevação da c/v opera-se a substituição de trabalho humano por máquinas, vale dizer, de trabalho vivo por trabalho morto. Elevando-se a c/v, eleva-se, portanto, a produtividade; porém, por motivos cuja explicação ultrapassaria o espaço disponível num artigo pequeno como o que o leitor tem em mãos (poderemos discutir a questão numa outra oportunidade), o crescimento da composição orgânica do capital, c/v, resulta numa queda tendencial da taxa de lucro - que constitui um dos movimentos mais importantes e decisivos para o funcionamento do capitalismo, sobretudo das crises do referido modo de produção. Basta observar a relação c/v para se concluir que uma proporção muito avantajada do c em relação ao v implica numa brutal capacidade produtiva no contraponto de um reduzido número de trabalhadores, ou, o que é a mesma coisa, que um pequeno número de trabalhadores pode representar, a um só tempo, uma massa de fornecedores de mais-valia e de consumidores de mercadorias muito menor do que seria necessário para alavancar o movimento da massa de trabalho morto acumulado - problema que está na raiz das crises de superprodução do sistema capitalista.
É nosso propósito expor através do artigo a seguir, A Revolução Russa: expressão mais avançada de uma onda revolucionária mundial, nossos comentários críticos sobre o texto intitulado As ambigüidades da Revolução Russa: Lênin e a revolução, publicado na Revista Germinal da OPOP [1] (que publicaremos mais adiante)
O interesse de discussões polêmicas acerca da Revolução Russa é óbvio desde que se reconheça que esta primeira tentativa revolucionária mundial constitui, para a classe operária, uma fonte considerável de ensinamentos e, por conta disso, um patrimônio inestimável com vistas à preparação para próximos enfrentamentos revolucionários. É nitidamente em tal perspectiva que se inscrevem o artigo da OPOP e nossas considerações críticas a propósito do mesmo.
Do nosso ponto de vista, o artigo faz uma abordagem do ponto de vista realmente proletário das questões essenciais colocadas pela Revolução Russa. Embora em nosso artigo formulemos observações e até criticas quanto à maneira de colocar certas questões e quanto às respostas feitas a estas, consideramos que este texto merece ser objeto de um debate para além das nossas duas organizações no seio do meio revolucionário. Mantemos este ponto de vista sobre este artigo apesar do mesmo conter uma conclusão inapropriada, em total contradição com seu método global. Com efeito, esta última convida o leitor, para entender melhor a degeneração da Revolução Russa, a estudar "processos similares (na China, em Cuba e na Nicarágua, em todo o Leste europeu, na Ásia e na África)" (destacado por nós) que, ao mesmo tempo, são justamente qualificados pelo artigo de "verdadeiras aberrações ditatoriais (...) em nome do "socialismo" e da "ditadura do proletariado"". O problema reside exatamente nisso, pois os exemplos dados nunca corresponderam a revoluções proletárias (nem sequer burguesas), mesmo que o discurso da propaganda burguesa e, em particular, de suas frações trotskistas e maoístas insistam em afirmar tal caráter. Portanto, não podem ser qualificados como similares à Revolução Russa.
[1] http\\opopssa.info
Só um ponto de vista resolutamente internacionalista, que exclua qualquer possibilidade de construção do socialismo num só país, pode fornecer um quadro que permita analisar a Revolução Russa e, em particular, sua tragédia, quando a revolução mundial - que não conseguia se expandir - a colocou num isolamento trágico, confrontada a contradições insuperáveis. A revolução avançava cada vez mais para um beco sem saída quando as medidas adotadas para poder "se manter" eram entendidas por Lênin (entre outros) e apresentadas como parte das premissas para a construção de uma sociedade socialista. É esta situação que o artigo da OPOP apresenta da seguinte maneira:
Voltaremos a falar, mais adiante, sobre a caracterização desta sociedade "não-socialista numa forma hoje difícil de imaginar", mas desde já entendemos necessário expor a visão do artigo da OPOP quanto ao laço que estabelece entre a degeneração da Revolução Russa e as especificidades da Rússia nessa época.
O artigo toma o contexto russo como ponto de partida de sua análise da Revolução Russa e o caracteriza da seguinte maneira:
O artigo não faz só considerar que o contexto russo é a causa do que ele chama de "as ambigüidades da Revolução Russa", mas também, de maneira totalmente contraditória com seu reconhecimento da impossibilidade do socialismo num só país, deduz que o contexto russo vai em grande medida determinar o destino da revolução neste país:
Trata-se aqui de um equívoco do artigo que não avalia exaustivamente que a ditadura do proletariado isolada num só país é levada necessariamente a degenerar. Será que existe atrás deste equívoco a ideia de que se a revolução tivesse acontecido num país avançado (como Alemanha, por exemplo) e tivesse permanecido isolada, então não teria conhecido um fim semelhante àquele da Revolução Russa?
Seria um erro, pois, isolada, a revolução tem que enfrentar as tentativas do capitalismo em esmagá-la, o que significa que na zona em que o proletariado conseguiu tomar o poder, mantém-se uma série de características da sociedade capitalista: produção de armas que afeta o poder de consumo da classe operária e as possibilidades de desenvolvimento das condições materiais do comunismo, além da existência de um exército que, mesmo sendo "vermelho", continua sendo uma instituição de idêntica natureza ao existente no capitalismo: uma máquina destinada a perpetuar de maneira organizada e sistemática a matança e a coerção. Pode-se facilmente entender a gravidade das ameaças que tais necessidades implicam para o poder proletário. E tudo isso vale tanto para um país avançado como para um país atrasado. Com efeito, um país fortemente industrializado é muito mais dependente do mercado capitalista mundial do que os menos desenvolvidos ou industrializados e não é absurdo pensar que, isolada num país como a Alemanha, a revolução teria sido derrotada ou teria degenerado de forma ainda mais rápida do que na Rússia. [1]
Na sua carta de despedida aos operários suíços em 8 de Abril de 1917, Lênin expõe sua visão do processo revolucionário que se desenvolve na Rússia:
Coube ao proletariado russo a grande honra de inaugurar a série das revoluções engendradas como uma necessidade objetiva colocada pela guerra imperialista. Mas a ideia de considerar o proletariado russo como um proletariado revolucionário eleito entre os operários dos demais países nos é absolutamente alheia... Não são qualidades particulares, mas unicamente condições históricas particulares que fizeram dele, talvez em um tempo muito rápido, a ponta de lança do proletariado revolucionário mundial". (Tradução nossa a partir do francês)
A Primeira Guerra Mundial é um acontecimento de alcance mundial e histórico, que colocou pela primeira vez na história a alternativa "socialismo ou barbárie", que conferiu à onda revolucionária seu caráter internacional. A Rússia foi a linha de frente desta. Lênin, para convencer da necessidade da insurreição, destaca a responsabilidade do proletariado russo em relação ao futuro da revolução mundial:
Quase um ano após a tomada do poder na Rússia, Lênin continua unido à perspectiva da revolução mundial:
Este entendimento do lugar da Revolução Russa na revolução mundial também constitui a base da corajosa determinação demonstrada posteriormente para defender a ditadura do proletariado na Rússia contra todas as tentativas da reação interna e internacional visando derrotá-la através das armas e sufocá-la economicamente. Resistir: isso era uma responsabilidade, um dever em relação ao futuro da revolução mundial. De fato, a queda da ditadura do proletariado na Rússia teria aberto a via à repressão de todos os focos revolucionários na Europa, antes deles tivessem tempo para amadurecer e desembocar em novas insurreições vitoriosas. Assim, a derrota da ditadura do proletariado na Rússia teria significado, com certeza, a derrota da onda revolucionária mundial.
Segundo nossa opinião, o artigo da OPOP não destaca suficientemente a importância dada pelos bolcheviques de labutar na perspectiva da revolução mundial. Podem existir várias explicações para isso sobre as quais não vamos especular visto que uma entre elas é óbvia.
O artigo é muito claro sobre o fato que a revolução na Rússia precisa da revolução mundial:
Mas, ao mesmo tempo, parece ignorar o movimento real da classe operária quando da Revolução Russa que se caracterizava por uma crescente simultaneidade, em particular entre os países europeus. Isso é demonstrado pela seguinte passagem do artigo da OPOP, para quem as condições de uma simultaneidade das lutas operárias só estão dadas agora, pela primeira vez, o que em outros termos significa que tal simultaneidade não se manifestava no momento da primeira onda revolucionária mundial.
Poder-se-ia ter a tentação de afirmar que o artigo da OPOP está "atrasado em uma revolução", pois o panorama que esboça para o agora corresponde exatamente a uma resolução do partido bolchevique adotada em abril de 1917:
Poderia nos opor que a análise atual da OPOP a propósito do período pós-Primeira Guerra é correta enquanto não era o caso da análise dos bolcheviques. Mas isso seria não levar em conta a própria realidade, assim como dos ajuizados comentários emitidos pelos homens políticos da burguesia dessa época que confirmam a visão dos bolcheviques:
Ou tambèm:
Seria incorreto dizer que o artigo da OPOP expressa desinteresse acerca da questão da expansão da revolução mundial no momento da Revolução Russa, pois menciona a criação da Terceira internacional. O problema é que esta última não é entendida como a consequência do movimento real da classe operária, mas sim como uma iniciativa desesperada de Lênin, com o objetivo reverter o curso desfavorável da dinâmica da luta de classe e afastar os operários da influência da social-democracia:
O artigo da OPOP não percebe que foram justamente as maiores expressões da luta de classe que permitiram a fundação da Terceira Internacional, as quais se colocaram em oposição radical às políticas nacionalistas e reformistas dos partidos da Segunda Internacional, mesmo que nem sempre com plena consciência disso.
A Revolução Russa cumpriu plenamente a tarefa que a história tinha especificamente lhe entregado, isto é, a derrubada da burguesia na Rússia. Ao mesmo tempo, lutou com toda energia para a extensão da revolução mundial, através do apoio material e político aos diferentes movimentos nos países europeus, na Alemanha em particular, através do apoio à IC, etc.
Iniciar a transição das relações capitalistas de produção para o socialismo dependia da vitória da revolução em escala internacional. Pela própria impossibilidade de construir na Rússia relações de produção livres das leis do capitalismo, o poder político da classe operária neste país se exercia necessariamente sobre uma sociedade em que as relações de produção eram claramente capitalistas. O artigo da OPOP aproxima-se de tal caracterização na medida em que, ao rejeitar claramente a ideia de uma sociedade em curso de transformação para o comunismo, fala como vimos de uma "sociedade não-socialista numa forma hoje difícil de imaginar".
Não é unicamente o atraso da Rússia que explica as medidas de natureza capitalista que foram adotadas nos primeiros anos do poder dos sovietes. A título de exemplo, podemos lembrar as medidas que teriam sido tomadas na Alemanha para expropriar a burguesia em caso de vitória proletária, isto é, aquelas do programa da Liga Spartakus e do KPD (Partido Comunista da Alemanha). São muito parecidas com as tomadas na Rússia e, entre elas, encontramos especificamente: o confisco de todas as fortunas e rendas dinásticas em benefício da coletividade; a anulação de todas as dívidas do Estado e demais dívidas públicas, assim como os empréstimos de guerra na exceção das subscrições inferiores a certo nível fixado pelo conselho central dos conselhos de operários e soldados; a expropriação da propriedade imobiliária, de todas as empresas agrícolas, grandes ou médias; a formação de cooperativas agrícolas socialistas com uma direção unificada e centralizada para o todo país, as pequenas empresas campesinas permanecendo nas mãos daqueles que as exploram até estes aderirem voluntariamente às cooperativas socialistas; a expropriação de todas as fortunas a partir de certo nível fixado pelo conselho central dos conselhos de operários e soldados.
Neste sentido, as medidas econômicas instauradas na Rússia para enfrentar uma situação desastrosa e a necessidade de manter a aliança com o pequeno campesinato eram inevitáveis e não se pode culpar os bolcheviques de tê-las praticado. Os efeitos de algumas dentre elas poderiam ter sido facilmente revertidos, numa perspectiva de desenvolvimento da revolução mundial (as medidas da NEP), mas dificilmente para outras (a distribuição da terra aos camponeses).
Limitar-nos-emos aqui, propositalmente, aos erros indicados pelo artigo da OPOP, com o intuito de discuti-los. [7]
A. O capitalismo de Estado
Não constitui em nada um passo adiante na edificação de uma sociedade socialista, como o demonstrou, depois, a realidade da URSS, tão capitalista como os países democráticos. Esses últimos também, aplicaram medidas de tipo capitalismo de Estado como, por exemplo, as nacionalizações na França e na Grã-Bretanha, notadamente depois da Secunda Guerra Mundial.
É absolutamente válido criticar os bolcheviques por terem apresentado o capitalismo de estado e as nacionalizações, como etapas necessárias à transição para o comunismo [8]; ou seja, por pretenderem que a "competição econômica com o oeste" comprovava a grandeza da produtividade socialista. Achamos este aspecto bem analisado no artigo da OPOP. Para ilustrar sua postura, este se apóia sobre citações de Lênin muito significativas e, na sua argumentação, encontramos, entre outras, a passagem seguinte:
O artigo da OPOP reconhece a inevitabilidade de recuos táticos no plano econômico, ao mesmo tempo em que lamenta que alguns entre eles tenham contribuído em "afastar o horizonte socialista":
Do nosso ponto de vista, as medidas de liberação do comércio interno da NEP, por exemplo, não entram nessa categoria. O grande erro dos bolchevique, segundo nosso juízo, vamos repeti-lo, foi ter pensado e feito acreditar que algumas medidas, tomadas no plano econômico como "o comunismo de guerra", tinham um caráter progressista, quando, na realidade, eram apenas medidas de capitalismo de estado. É também certo sublinhar, como faz o artigo da OPOP, que algumas entre estas medidas favoreceram o ascenso no Estado de figuras carreiristas do antigo regime.
Assim, o artigo da OPOP destaca também que o próprio Lênin descrevia a utilização de especialistas técnicos burgueses como um "passo para trás" em relação aos princípios da Comuna, pois, para ganhá-los para o poder soviético, deviam ser comprados através de um salário muito superior ao salário médio de um operário. Compartilhamos também a crítica das medidas enunciadas dentro do discurso de Lênin pronunciado em abril de 1918 no comitê central do partido bolchevique (publicado depois sob o título As tarefas imediatas do poder dos sovietes) com o objetivo de fazer aplicar uma disciplina no trabalho e desenvolver a produtividade para reconstruir uma economia arruinada. A propósito disso, Lênin proclama-se a favor da direção de um só homem nas fábricas onde o movimento dos comitês de fábrica era forte e disputava o poder das direções da fábrica, antiga ou nova. Aqui também a defesa por Lênin da "ditadura individual" dos diretores de fábrica não excluía absolutamente em nada o desenvolvimento amplo das discussões, concentrações de massa, sobre a política global; e segundo ele "Esta subordinação pode, com uma consciência e uma disciplina ideais dos participantes no trabalho comum, recordar mais a suave direção de maestro". (As tarefas imediatas do poder dos sovietes) [9]
B. Ditadura do proletariado ou do partido e do Estado?
O artigo da OPOP caracteriza claramente este problema da Revolução Russa onde a ditadura do proletariado é cada vez mais identificada, de maneira equivocada, àquela do partido e da burocracia no seio do Estado, tendo Lênin responsabilidade nesta confusão:
Logo a partir de 1918, aparece claramente, como a OPOP põe em evidência, que o poder político da classe operária estava sendo corroído e abafado pelo aparelho de Estado:
O artigo da OPOP vai mais além do que esta última explicação de Lênin para quem a incapacidade dos comunistas em dirigir o Estado na boa direção resulta do fato que estes são minoritários no seio desta instituição. Constata, com efeito, que o estado constitui o espaço privilegiado da formação de uma nova classe burguesa, processo em que o partido está implicado:
Para nós, e voltaremos mais adiante sobre este assunto, a crescente identificação do Partido Bolchevique com o Estado soviético teve como consequência, para o primeiro, a perda progressiva da capacidade em se auto-criticar assim como criticar o curso geral da revolução.
A. Quem devia tomar o poder na Russia?
Considerando esta questão, o artigo da OPOP destaca vários fatores na origem da tomada do poder pelo Partido Bolchevique:
Concordamos com o artigo da OPOP para constatar que a ditadura do partido e do Estado constituiu um fator da degeneração interna da ditadura do proletariado na Rússia.
Entretanto, quando se trata de explicar porque o partido chegou ao poder, discordamos globalmente com as causas evocadas pela OPOP, sendo todas circunstanciais, com exceção a seguinte que, segundo nossa opinião, aproxima-se mais da realidade: "os próprios bolcheviques não tinham uma ideia clara acerca do caráter da sociedade pós-Outubro". Efetivamente, isso é um fato pertinente ao conjunto do movimento operário nessa época e que, sobre a questão do poder, expressava-se através da ideia errada, decorrente do esquema burguês da revolução, de que a tomada do poder político pelo proletariado consistia de fato na tomada do poder pelo seu partido. Este tinha, então, como função trazer o socialismo à classe, o que constitui uma visão totalmente alheia a esta fundamentação do marxismo: "A emancipação da classe operária só pode ser a obra da própria classe operária". Tal erro era mais ou menos compartilhado pelo conjunto das correntes da Segunda Internacional, inclusive aquelas de esquerda, incluindo Rosa Luxemburgo. Está presente até nos escritos do KAPD em 1921.
O que a experiência russa evidenciou é que cabe ao proletariado, no seu conjunto, assumir sua ditadura, sem delegá-la a seu partido e preservando sua autonomia de classe em relação ao Estado que surge inevitavelmente dentro de uma sociedade ainda dividida em classes. Para mais explicações considerando nossa posição sobre "o Estado no período de transição", aconselhamos a leitura de alguns artigos publicados em nosso site em português [10].
Queremos agora examinar a ideia do artigo segundo a qual os bolcheviques teriam substituído a classe no exercício do poder por conta do fato que esta "não estava preparada para dirigir o Estado pós-revolucionário por via dos Sovietes". O artigo volta a desenvolver essa mesma ideia em outra passagem:
É óbvio que o período de dualidade de poder que antecede a revolução constitui uma oportunidade para a classe operária efetuar uma aprendizagem política considerando, por exemplo, vários aspectos: encarregar-se da gestão da sociedade; adquirir uma compreensão crescente dos meios a sua disposição como classe revolucionária (seu número, sua unidade e sua consciência) e das tarefas que lhe cabem para transformar o mundo, começando pela derrubada da burguesia; conseguir uma compreensão política maior para identificar as manobras que o inimigo de classe tem a capacidade de conceber e desenvolver para mistificar e enfraquecer o proletariado. Todos esses aspectos são importantes, mas, durante este período, o primeiro enunciado não é, de longe, o mais decisivo. Com efeito, pensamos que é um erro pensar, como no artigo da OPOP, que uma melhor preparação da classe operária para gerir a sociedade teria lhe permitido resistir melhor à pressão da burocracia. Adquirir a capacidade de limitar, o mais que for possível, a tendência da burocracia em corroer a ditadura do proletariado decorre de questões políticas da maior importância:
Apesar de ter sido muito importante, a experiência da Comuna de Paris foi insuficiente para permitir ao proletariado internacional, notadamente através de sua vanguarda, tirar as lições necessárias sobre as relações entre a ditadura do proletariado e todas as formas organizacionais que surgem durante o período de dualidade de poder e que se mantém depois dela: conselhos operários, dentro dos quais se organiza a classe operária, e sovietes territoriais, que reúnem o conjunto da população não exploradora convencida da necessidade da revolução, de quem o Estado será a emanação, depois da tomada do poder.
Todas essas questões novas e fundamentais poderiam ter sido resolvidas no calor de uma revolução triunfante se expandindo ao conjunto dos principais países industrializados (do mesmo modo que Lênin tinha sido capaz de escrever O Estado e a Revolução[11] na véspera da tomada do poder na Rússia). Não foi o que aconteceu. A imaturidade das condições subjetivas da revolução pesou de maneira determinante, não só na Rússia, mas no conjunto do proletariado como vamos constatar mais adiante.
B. A imaturidade das condições subjetivas da revolução
Para o artigo da OPOP, a perspectiva de uma revolução proletária na Rússia foi colocada demasiadamente tarde:
Apesar de compartilhar a ideia subjacente a esta passagem, a existência de um atraso nas condições subjetivas da revolução, não podemos nos contentar com a formulação do artigo da OPOP, segundo a qual nenhuma concepção indo mais além da revolução burguesa tinha se manifestado na Rússia antes de 1917. Com efeito, tal formulação não permite dar conta da dinâmica do desenvolvimento da consciência durante os 12 anos que antecederam 1917.
Os acontecimentos de 1905 na Rússia, com o surgimento dos sovietes, tinham constituído uma experiência considerável que permitiu o esclarecimento da questão das formas de organização da luta revolucionária, mas também impulsionaram uma reflexão sobre as etapas da revolução proletária na Rússia.[12] Num primeiro momento, o soviete de deputados era concebido por Lênin como a forma da "ditadura democrática dos operários e camponeses", devendo assumir as tarefas da revolução burguesa. A teoria de Lênin era, neste momento, no melhor dos casos, o produto de um período em que se torna cada vez mais óbvio que a burguesia russa não era uma força revolucionária, mas também em que não se tinha ainda clareza que havia chegado o período da revolução internacional. Quanto a Trotsky, concordava com os bolcheviques em dizer que a revolução tinha ainda tarefas burguesas a cumprir, as quais não podiam ser realizadas pela burguesia. Mas pensava que os interesses do proletariado o levariam não somente a tomar o poder para si próprio, mas também a tomar medidas econômicas e socialistas. Entretanto, para ele, tal esquema só tinha sentido no contexto de uma revolução socialista internacional. Em várias ocasiões, depois de 1905, Lênin aderiu à tese desenvolvida por Trotsky. As teses que escreve em abril de 1917 (conhecidas sob o nome de Teses de abril) concebem de maneira central a Revolução Russa como parte da revolução socialista mundial. Elas armam o partido contra a utilização pelos "leninistas ortodoxos" da fórmula sem substância de "ditadura democrática dos operários e camponeses", que utilizaram como pretexto a seu deslize para menchevismo puro.
De maneia geral, o artigo da OPOP não parece contextualizar o fato que, no momento em que se desenvolve a primeira onda revolucionária mundial, os revolucionários devem então enfrentar uma situação histórica totalmente inédita caracterizada em particular pelas seguintes necessidades:
Por não ter sido capaz de levar em conta a amplidão das dificuldades encontradas pelo proletariado mundial, o artigo não tem obviamente a possibilidade de poder avaliar os passos de gigante efetuados pelo mesmo para enfrentá-las. O proletariado mundial e suas vanguardas revolucionárias dispuseram, como vimos, de um tempo muito curto para entender, através da experiência prática e da teoria, todas as mudanças do novo período antes da revolução acontecer na Rússia. Depois desta, a aprendizagem continua na prática, na Europa em particular, visivelmente através da confrontação com a social-democracia e aos sindicatos. Sem esses avanços muito importantes, obtidos no fogo da luta, a fundação da Internacional Comunista não teria sido possível. E podemos dizer, sem risco de erro, que a continuação da dinâmica de extensão da revolução mundial teria fortalecido mais ainda no plano teórico tais avanços efetuados no plano prático. Em lugar disso, o retrocesso da onda revolucionária mundial implicou em um recuo importante da vanguarda sobre um conjunto de questões essenciais e impediu o esclarecimento das questões totalmente novas colocadas na Rússia relacionadas ao exercício da ditadura do proletariado. Nenhuma dentre essas questões podia ser resolvida na própria Rússia, como dizia Rosa Luxemburgo na sua brochura A Revolução Russa:
"Eis o que é essencial e duradouro na política dos bolcheviques. Nesse sentido, o que permanece seu mérito histórico imperecível é que conquistando o poder político e colocando o problema prático da realização do socialismo abriram o caminho ao proletariado internacional e fizeram progredir consideravelmente o conflito entre capita l e trabalho no mundo inteiro. Na Rússia, o problema só podia ser posto. Não podia ser resolvido na Rússia, ele só pode ser resolvido em escala internacional. E, nesse sentido, o futuro pertence em, toda parte, ao "bolchevismo"."[13]
As posturas adotadas pela IC quando do seu Congresso de fundação são o reflexo do enorme passo à frente dado pelo proletariado durante os anos antecedentes, como testemunha este slogan do seu manifesto: "Sob a bandeira dos Sovietes operários, da luta revolucionária pelo poder e da ditadura do proletariado, sob a bandeira da terceira internacional, operários do mundo, uni-vos!". [14]
Mas em 1920, no segundo congresso da mesma internacional, a direção do Partido Bolchevique tinha voltado para as "táticas" do passado. A esperança da revolução estava se enfraquecendo rapidamente e o Partido Bolchevique defendia então as 21 condições de admissão à Internacional, incluindo o reconhecimento das lutas de libertação nacional, da participação eleitoral, do entrismo nos sindicatos, quer dizer um retorno ao programa social-democrata que era totalmente inadaptado à nova situação. O partido russo passou a ser a direção preponderante da IC. E, sobretudo, a direção bolchevique conseguiu isolar os comunistas de esquerda: a esquerda italiana com Bordiga, os camaradas ingleses em torno de Sylvia Pankhurst, e Pannekoek, Gorter e o KAPD (que foi expulso no terceiro congresso). Os bolcheviques e as forças dominantes da Internacional trabalhavam a favor de uma aproximação com forças que eles mesmos denunciavam dois anos antes por traição; conseguiram efetivamente abortar todas as tentativas para criar as bases de princípio para a fundação de partidos comunistas na Inglaterra, na França ou em outros lugares, graças a suas manobras e calúnias contra a esquerda comunista. Estas ações abriram o caminho para a "Frente Única" (com a social-democracia) de 1922 até o 4° congresso e, enfim, da defesa da pátria soviética e do "socialismo num só país".
A questão da degeneração da Revolução Russa é, antes de tudo, uma questão da derrota internacional do proletariado. A contrarrevolução triunfou na Europa antes de se desenvolver totalmente no seio da Revolução Russa.
Como sublinha justamente o artigo da OPOP, "o poder de Estado dos conselhos operários (...) liquidado e já substituído pela burocracia" é um sinal claro da degeneração da revolução. O artigo assinala de maneira inequívoca um elemento importante dessa degeneração: a revolta de Kronstadt e seu esmagamento pelo exército vermelho[15].
Ao contrário da tese trotskista de uma burocracia cuja natureza de classe não seria burguesa, encabeçando um "Estado operário degenerado" que não seria capitalista, a burguesia retomou o poder na Rússia. Mas isso aconteceu não pela derrubada do poder dos sovietes e pela reintrodução dos métodos de produção capitalista (que na realidade nunca foram eliminados), notadamente a propriedade privada dos meios de produção, mas através da degeneração interna do poder soviético. Com efeito, como a Esquerda Comunista tinha evidenciado há muito tempo [16] e como também o artigo da OPOP menciona, não são as formas jurídicas de propriedade que determinam o caráter de uma classe, mas as relações sociais de propriedade. A burguesia na Rússia era coletivamente proprietária dos meios de produção.
O que na realidade degenerou na Rússia, foi a ditadura do proletariado e não o socialismo, pois não houve nenhum avanço em direção a este. A classe operária progressivamente perdeu o poder em favor de uma nova burguesia proveniente da burocracia, como o evidencia justamente o artigo da OPOP:
A propósito das tentativas de recuperação das grandes figuras revolucionárias, Lênin expressava-se nesses termos:
Assim os stalinistas não hesitaram em falar de um Lênin "nacional-russo". Os exemplos são muitos em que a burguesia, em particular suas frações de esquerda, foi rápida para transformar em verdades eternas erros do movimento operário, muitas vezes encarnados por grandes figuras deste. Ao contrário deste procedimento, há aquele dos revolucionários, para quem não existe revolucionários infalíveis. A responsabilidade de todas as gerações de revolucionários é de se apoiar sobre a herança das experiências e teorizações das gerações passadas, e de passar pelo crivo da crítica os erros passados para tirar deles um máximo de ensinamentos. A Revolução Russa, em particular, deve ser o objeto de tal método, pois a próxima tentativa revolucionária não poderá vencer se as lições essenciais das quais é portadora não forem assimiladas no seio das amplas camadas do proletariado mundial. Isso é fundamentalmente o procedimento adotado pelo artigo da OPOP:
É de maneira totalmente legítima que a OPOP coloca a questão de saber qual papel puderam desempenhar figuras como Lênin, Trotsky, no processo de degeneração:
Se erros dos revolucionários, entre os quais Lênin, efetivamente favoreceram o curso degenerescente da Revolução Russa, como desenvolve amplamente o artigo, este tem cuidado para fazer uma clara distinção entre erros ou recuos impostos pela situação e o procedimento do stalinismo fazendo destes erros a linha diretriz de sua política, de abandono do internacionalismo em benefício notadamente de alianças com potências imperialistas:
O fracasso da onda revolucionária mundial e a degeneração da Revolução Russa engendraram a pior contrarrevolução que o proletariado jamais tinha sofrido antes. Como já vimos, o artigo da OPOP compartilha altamente esta preocupação de tirar as lições do passado para preparar as vitórias do futuro. O problema é que o método que propõe é frágil quando apresenta como revoluções proletárias eventos em que a classe operária de maneira nenhuma se mobilizou para seu próprio projeto revolucionário, mas que constituíram oportunidades para a burguesia desacreditar a própria ideia de revolução de projeto comunista:
Não é inútil lembrar alguns critérios que permitem caracterizar uma revolução proletária e que, até agora, foram reunidos apenas durante a primeira onda revolucionária de 1917-23:
a) A onda revolucionária não pode ser limitada a um país, mas deve considerar, a diferentes graus, os países mais desenvolvidos. Isso é o ABC do marxismo tal como é exposto nos Princípios Básicos do Comunismo em que Engels explica porque a revolução comunista será necessariamente mundial:
b) A onda revolucionária resulta necessariamente de uma dinâmica da classe operária caracterizada pelo desenvolvimento de sua combatividade e sua consciência em escala internacional;
c) Ela é assinalada pela formação de um partido comunista internacional e pelo surgimento dos conselhos operários.
Nenhum destes critérios foi satisfeito, obviamente, nos exemplos de "revolução" apresentados pelo artigo da OPOP. Vamos examinar detidamente três entre esses exemplos de "revolução": na China, em Cuba e na Nicarágua, em que a única luta que houve foi entre frações rivais da burguesia.
A. A China
Segundo a história oficial, uma revolução popular teria triunfado na China em 1949[19]. Esta ideia, sustentada tanto pela democracia ocidental como pelo maoísmo, faz parte da monstruosa mistificação edificada quando da contrarrevolução stalinista considerando a pretendida criação de "Estados socialistas" no mundo depois da formação a URSS.
A China conheceu, durante o período de 1919 até 1927, um grandioso movimento da classe operária, parte integrante da onda revolucionária internacional que sacudiu o mundo capitalista nessa época; entretanto, este movimento terminou em um massacre do proletariado.
Enquanto os melhores elementos revolucionários do Partido Comunista Chinês eram perseguidos e executados, a fração mais stalinista deste partido, à qual pertencia Mao Tsé-Tung, especialmente encarregado das relações entre o Partido Comunista e o Kuomintang, apoiava o banho de sangue em nome da política de colaboração com a burguesia progressista chinesa que correspondia às necessidades do Estado russo.
Desde então privado de base proletária, enquanto continuava sua política antiproletária pregada pelo Comintern nos centros operários, o Partido Comunista começou a teorizar, notadamente através dos escritos de Mao, o "papel revolucionário" do campesinato, refletindo assim a transformação radical da sua própria natureza de classe. Ele se tornou, assim, o defensor dos camponeses, mas também das camadas da pequena burguesia e da burguesia hostis ao autoritarismo do novo dono da China, Chiang Kai-shek. Os novos quadros do partido eram seletivamente escolhidos por Stálin, que utilizava o Partido Comunista Chinês como ferramenta da expansão imperialista russa e como meio de pressão e negociação com o Kuomintang. A afluência massiva para o Partido Comunista Chinês de elementos contrarrevolucionários, de aventureiros de todo tipo, de pequeno burgueses e burgueses em ruptura com Chiang Kai-shek, conferiu-lhe a fisionomia de um verdadeiro escoadouro fétido de maquinações e manobras, onde diversos bandos se enfrentavam violentamente pelo controle do partido.
O episódio da Grande Caminhada, longe de constituir o episódio heróico de "resistência comunista" sob a direção do "grande timoneiro" Mao, teve como objetivo essencial a unificação dos inúmeros focos de guerrilha então existentes na China sob um comando único e centralizado, com a finalidade de constituir um exército burguês digno deste nome para crédito do grande irmão stalinista que controlava estritamente seus quadros. Para isso, as massas de camponeses pobres foram recrutadas e utilizadas como bucha de canhão: a gloriosa Grande Caminhada, que durou de outubro 1935 até outubro 1936, causou algumas centenas de milhares de mortos entre eles. E se foi a linha do grandioso comandante Mao que ganhou, foi, sobretudo, graças à sua capacidade de utilizar as brigas entre seus rivais que, às vezes, ele mesmo suscitava, para assentar seu poder no seio de um "Exército Vermelho" chinês.
Mas pelo menos uma coisa era certa: todos esses bandos, os do Partido Comunista Chinês ou os do Kuomintang, estavam unidos sobre o essencial, a defesa do capitalismo chinês. Assim, quando do conflito entre a China e o Japão em 1936, o Partido Comunista Chinês, novamente aliado com o Kuomintang, destacou-se mais uma vez como principal provedor de bucha de canhão da guerra imperialista. Em 1941, quando o exército alemão entrou na URSS, Stálin, ameaçado em duas frentes de guerra, assinou um pacto de não agressão com o Japão. A consequência imediata disso foi a ruptura do Partido Comunista Chinês com Moscou e a vitória da linha maoísta contra a linha pró-russa no seio deste partido. O Partido Comunista Chinês vai então colaborar numa aliança com o Kuomintang às ordens dos Estados Unidos quando estes últimos entraram em guerra contra o Japão em 1942. De 1943 a 1945, os grandes expurgos anti-stalinistas alcançaram o auge no seio deste partido e o maoísmo tornou-se, a partir deste momento, a doutrina oficial do mesmo.
Os historiadores e intelectuais burgueses alimentam um mito em torno do Maoísmo, "comunismo ao molho chinês", levado por Mao Tsé-Tung, apresentado mentirosamente como um entre dos fundadores do Partido Comunista Chinês, aquele que ia instaurar o "socialismo" neste grande país. Os ideólogos da burguesia apresentam a chegada do "grande timoneiro" ao poder na China como o produto de uma "revolução popular, camponesa e operária", mas a realidade é radicalmente diferente: o Partido Comunista Chinês chegou ao poder como consequência de sórdidas negociações imperialistas. Com efeito, ao empreender seu retorno ao colo de Moscou, contra os Estados Unidos e depois dos acordos de Yalta, o Partido Comunista Chinês irá conseguir eliminar definitivamente seu rival direto, o Kuomintang, em 1949 e fundar a "República Popular Chinesa".
B. Cuba
Guevara se uniu ao grupo cubano de Fidel Castro em 1955 no México, que estava refugiado nesse país depois de uma tentativa abortada de derrubada do ditador cubano, Batista, apoiado durante muito tempo pelos Estados Unidos. Depois de uma série de peripécias, o grupo se instala na Sierra Maestra de Cuba até a derrota de Batista, no início de 1959. Na realidade, o êxito da operação da derrubada de Batista por Castro e Guevara se beneficiou, de fato, do apoio dos EUA e da compreensão de uma parte da direita, que tinha começado a ficar incomodada seriamente com o nível de corrupção do regime.
O núcleo ideológico desse grupo era o nacionalismo. O "marxismo" não foi mais que um conjunto de circunstâncias a uma "resistência anti-ianque" exacerbada, por muito que alguns de seus elementos, o próprio Guevara entre eles, se considerassem "marxistas". O Partido Comunista cubano, que anteriormente tinha apoiado a Batista, mandou um de seus dirigentes, Carlos Rafael Rodríguez, ao encontro de Castro em 1958, alguns meses antes da vitória castrista.
Essa guerrilha não foi de maneira alguma a expressão de sabe-se lá que revolta camponesa e, menos ainda, da classe operária. Foi a expressão militar de uma fração da burguesia cubana que queria derrubar a fração no poder para ocupar seu posto. Não houve nenhum "levante popular" na tomada do poder pela guerrilha castrista. Aparece, como tantas vezes ocorreu na América Latina, como uma troca de uma camarilha militar por outra formação armada, no que as camadas exploradas e pobres da população da ilha, alistadas ou não pelos combatentes da guerrilha, não desempenharam nenhum papel relevante a não ser o de lançar saudações aos novos donos do poder. [20]
C. Nicarágua
A denominada "Revolução Nicaraguense" ou "Revolução Sandinista" é o resultado da confrontação entre frações da burguesia nicaraguense, que se identificavam, uma a favor e outras contra, a ditadura somozista, que governou o país por mais de 40 anos com apoio aberto dos Estados Unidos.
Durante a ditadura somozista, ocorre uma série de divisões nas fileiras dos liberais e conservadores; ambos terminam apoiando ou acomodando-se ao lado da ditadura. Os partidos e organizações de oposição que se constituíram durante o período da ditadura eram fundamentalmente antisomozistas e, na sua maioria, antiamericanos, devido ao apoio incondicional dos EUA à ditadura dos Somoza.
Durante os anos da década de 1950 tem início a formação de organizações de esquerda contra a ditadura, que se consideravam forças independentes de liberais e conservadores, várias delas no meio estudantil. No início dos anos 1960, inspirados pelo triunfo da "revolução cubana" e da Frente de Libertação da Argélia, formam o embrião do que logo viria ser a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). A FSLN retoma as bandeiras de luta de Sandino, baseadas na defesa da pátria, o nacionalismo e o imperialismo norteamericano, incorporando elementos "socialistas" da "revolução cubana". O "programa histórico da FSLN" de 1969 define da seguinte maneira os objetivos da Frente: "A FSLN é uma organização político-militar cujo objetivo é a tomada do poder político mediante a destruição do aparato militar e burocrático da ditadura e o estabelecimento de um governo revolucionário baseado na aliança operário-camponesa e o concurso de todas as forças patrióticas ainti-imperialistas e antioligárquicas do país". [21]
Com efeito, a FSLN se transformou no braço armado das forças burguesas e pequeno-burguesas que se opunham às forças do capital nicaraguense que apoiavam a ditadura. Na medida em que a ditadura somozista perdia força, mergulhava na corrupção e acentuava a repressão, crescia em popularidade a FSLN; desde a metade dos anos 1970, várias forças e personagens do capital nicaraguense (a exemplo de Joaquin Chamorro) começam a fazer uma oposição mais acentuada ao somozismo e dão um apoio mais aberto à FSLN, que derrota as forças somozistas em 1979.
Uma vez no poder, os sandinistas adotam uma série de medidas de expropriações e nacionalizações, e instauram um regime capitalista de Estado com o apoio da URSS e de Cuba. Assim, as novas elites sandinistas no poder passam a fazer parte da classe burguesa nicaraguense.
Como vimos ao longo deste artigo, a OPOP e a CCI compartilham de um quadro comum de análise da Revolução Russa, baseado antes de tudo no internacionalismo proletário, que nos permite discutir as lições a serem tiradas da maior experiência do proletariado mundial. Entretanto, esta ideia exposta rapidamente no final do artigo da OPOP e segundo a qual teriam acontecido revoluções outras proletárias além da Revolução Russa, aparece como um tipo de aberração emprestada de ideólogos da esquerda do capital, quer seja de origem stalinista, trotskista ou dos promotores do "Socialismo do Século 21". Tal ideia, que não percebe claramente o caráter único da Revolução Russa e da onda revolucionária mundial da qual é produto, resulta a nosso ver de uma reflexão insuficiente sobre a natureza particular da revolução proletária. Por conta disso, a OPOP tende em colocar sua análise da revolução na Rússia sobre o mesmo plano que qualquer conflito para o poder no seio da sociedade burguesa. O que está em jogo, se quisermos comparar essas situações, não é a procura de traços comuns entre movimentos genuinamente burgueses e a revolução proletária, mas ao contrário saber identificar as características diferentes que permitirão não só evitar confundi-los mas, sobretudo, ter a capacidade de distingui-los sem a menor ambiguidade. Estamos, obviamente, dispostos a continuar o debate sobre este tema.
[1] Para mais informação sobre esta questão ler em nossas páginas em espanhol o artigo Octubre de 1917, principio de la revolución proletária, nos números 12 [54] e 13 [55] da Revista internacional.
[2] A crise amadureceu (texto distribuído aos membros do comitê central, do comitê de Petersburgo, de Moscou e dos sovietes; Outubro de 1917). Fonte : https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/09/29-1.htm [56]
[3] /content/5/o-stalinismo-nao-e-crianca-da-revolucao-mas-encarnacao-da-contra-revolucao [57]
[4] E.H.Carr; História da Rússia Soviética - A revolução Bolchevique Vol. I; Ed. Afrontamento/Porto, 1977. Pg. 103.
[5] E.H. Carr - História da Rússia Soviética - A revolução Bolchevique Vol.III; Ed. Afrontamento / Porto, 1984. Pg. 145.
[6] Idem, pg 143.
[7] O que não significa que estimaríamos como secundários outros erros de Lênin sobre a questão da autodeterminação nacional em particular.
[8] Entretanto não se deve pensar que Lênin era tão cego que não pudesse diferenciar qualitativamente a simples expropriação da burguesia (em particular quando isso toma a forma da estatização) e a construção real de novas relações socialistas. Sobre esta questão, ele tem pontualmente razão quando, no seu livro Esquerdismo: doença infantil do comunismo, ele recusa críticas provenientes de certas posturas de Esquerdas pela fraqueza de sua argumentação, que leva, por exemplo, alguns (como foi o caso de Bukharin) a confundir a estatização quase completa da propriedade e até da distribuição, que aconteceu durante o período do comunismo de guerra, com o comunismo autêntico. Para nós, se compartilhamos esta precisão de Lênin, concordamos, entretanto, com as críticas das Esquerdas, sobretudo a seguinte proveniente do grupo de Ossinski: "Se o próprio proletariado não sabe criar os requisitos necessários da organização socialista do trabalho, ninguém pode fazer em seu lugar e ninguém pode obrigá-lo a fazer. O bastão, suspenso acima da cabeça dos operários, encontra-se-á nas mãos de uma força social que ou está sob a influência de outra classe social ou sob o poder dos sovietes; mas, naquele caso, o poder dos sovietes será obrigado a procurar o apoio de outra classe (por exemplo, o campesinato) e, agindo assim, destruiria ele mesmo a ditadura do proletariado. O socialismo ou a organização socialista do trabalho só pode ser estabelecido pelo próprio proletariado; do contrário, outra coisa totalmente diferente será colocada em seu lugar: o capitalismo de Estado" (Sobre a construção do comunismo, Kommunist n° 2, abril 1918). Para mais informações sobre este assunto, aconselhamos a leitura da nossa Revista internacional n° 99, "La comprensión de la derrota de la Revolución Rusa (1) [58]", na série El comunismo no es un bello ideal... e do nosso livro em russo, inglês e em breve em francês, A esquerda comunista russa.
[9] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/04/26.htm [59]
[10] O período de transição do capitalismo ao comunismo (https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/per%C3%ADodo_de_transi%C3%A7cao_do_capitalismo_ao_comunismo [41]) e, particularmente, O estado no período de transição (https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_per%C3%ADodo_de_transicao [42])
[11] Ler nosso artigo de La Revista Internacional n° 91 El comunismo no es un bello ideal...; "«El Estado y la revolución» (Lenin) - Una brillante confirmación del marxismo [60]"
[12] Ler nosso artigo de La Revista internacional n° 90, El comunismo no es un bello ideal...; "1905: la huelga de masas abre la puerta a la revolución proletaria [61]"
[13] Rosa Luxemburg, A revolução Russa. Ed. Vozes. Pág. 98.
[14] www.moreira.pro.br/docsocintercent.htm [62]
[15] Ler nosso artigo, da Revista Internacional n° 3, "Las enseñanzas de Kronstadt [63]".
[16] Ler nosso artigo de La Revista Internacional nº 131 [64] La experiencia rusa - Propiedad privada y propiedad colectiva [65].
[17] Lênin, O Estado e a Revolução. Cáp 1; seção 1.
[18] Obras Escolhidas em três tomos, Editorial Avante! https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/11/principios.htm [39]
[19] A este propósito, recomendamos a leitura da série de artigos, China 1928-1949: eslabón de la guerra imperialista nos números 81 [66] e 84 [67] da Revista internacional e o artigo El maoísmo: un engendro burgués no número n° 94.
[20] Leia nosso artigo Che Guevara: mito e realidade; https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/Che_Guevara_mito_e_realidade_uma_correspondencia [68]
Nenhum homem, mesmo ocupando lugar de destaque na galeria dos maiores e mais reconhecidos gênios da humanidade, foi, é, ou será infalível; mesmo que esteja, por merecimento inconteste, entre gente do calibre de Aristóteles, Newton, Darwin, Einstein, Engels e Marx; mesmo que esse homem se chame Vladimir Ilich Lênin! À primeira vista, a ressalva parece tola, porque a sua obviedade, que resulta da condição humana, soa, quando posta de manifesto, como uma aberração ou crime de lesarevolução inafiançável ao ouvido de muitos - referimo-nos aos espíritos de papagaios de pirata que pululam nas fileiras das mais diversas "escolas" do marxismo - para quem um "bom dogma" é, em se tratando da "defesa" dos "interesses da revolução", sempre preferível à verdade clara. Pois que, infelizmente, temos, nas nossas fileiras, muitos da nefanda espécie dos venerandos Jorges,[1] para quem a opção de uma "sublime recapitulação" ganha status de infalível alternativa na defesa de questionamentos que poderiam pôr em risco os sólidos alicerces do Credo.
A respeito da condição humana, não há muito o que dizer, salvo uma ligeira digressão, apenas para que a alusão ao termo não passe como um velho chavão tão ao gosto de uma literatura medíocre que, por absoluta falta de seriedade e de assunto, tece combinações do tipo "condição", "essência" ou "natureza" humanas para não dizer absolutamente nada acerca de coisa alguma. Aqui, ao contrário do padrão medíocre, o termo recebe conotação teórica precisa e contextualizada, para caracterizar o pensamento humano como um processo que se faz à base de acercamentos e sujeito a tensões de elevado e variado calibre - mais ainda em se tratando do trabalho intelectual de um Lênin durante toda a sua vida política. Tampouco existe, em se falando de Lênin, credo algum, e a maior prova de respeito que se possa ou que se deva dar a esse homem único é a que consiste em revelar seus acertos e erros, uns e outros grandes e generosos, uns e outros resultantes da tentativa, entre as mais honestas e dramáticas vistas na História, consistente em abrir espaço à inteligência dos desafios da revolução por entre ambiguidades que brotavam de um período e de um terreno social acentuadamente refratários a um processo que, não obstante, não podia comportar qualquer recusa; até porque, no caso em questão, o mundo dos revolucionários seria muito monótono, pobre e ausente de motivação, se a Comuna de Paris e a Revolução de 1917 não tivessem acontecido.
Se o que os revolucionários, que se colocam na perspectiva dos interesses históricos do proletariado - que são, sem medo de errar, os pressupostos da sobrevivência da própria humanidade -, desejam e necessitam é conhecer o curso completo e final do revés da Revolução Russa, devem deixar de lado a atitude pueril e sumamente amadorista, que consiste em afirmar - simplificando um pouco, para dar a ênfase devida - que tudo "ia bem" na Revolução Russa enquanto Lênin estava no leme e até que Stálin e sua troupe aparecessem implantando a ditadura da burocracia no lugar da ditadura do proletariado. Esses revolucionários devem aprender a encarar abertamente e com coragem as travas e ambiguidades da Revolução Russa, conhecer e reconhecer as ambiguidades dos grandes revolucionários que, pela posição que nela ocupavam, acabavam por incluir nas suas formulações políticas, nos seus desenhos estratégicos, táticos e organizativos essas ambiguidades, para poder aquilatar com justeza o que aconteceu e o que não deve acontecer no futuro - o que não quer dizer que os revolucionários do futuro estejam isentos de novas e também imensas ambiguidades.
Os fatores objetivos e subjetivos de uma revolução necessária
Para se ter uma visão ampla e segura de um processo tão complexo e difícil como a revolução russa, sobretudo no que diz respeito ao seu revés, é conveniente que o resumamos a alguns traços bem gerais, traços que, muito próximos de sua essência, possam revelar, da maneira mais nítida possível, os revezes de uma Revolução que se perdeu por uma combinação de erros políticos e processos sociais incontornáveis, uma revolução que, junto com a Comuna de Paris, foi, pelo propósito e significado que encerrava, a mais importante da História - mais importante que a própria Revolução Francesa.
A revolução russa contou com fatores objetivos e subjetivos, enunciado óbvio, mas que tem de ser colocado a título de método na abordagem ao tema. Como toda revolução, não nasceu do nada, mas de um processo geral que as massas viveram, sobre o qual aprenderam e ao qual reagiram com iniciativas que foram potencializadas pela direção revolucionária - a direção do POSDR e, particularmente, de Lênin, aquele que, entre os demais dirigentes bolcheviques, teve a visão mais penetrante sobre o estado de ânimo das massas, das suas possibilidades e de seus limites.
Entre os fatores objetivos estavam a crise do sistema feudal e de sua superestrutura, a opressão do Estado czarista, a crise econômica e a Primeira Guerra Mundial. A revolução russa foi, pois, em grande medida, decorrência da Primeira Guerra Mundial, na medida em que as massas, extenuadas ao limite, tiveram condições de avaliar as contradições e a crise do antigo regime com maior nitidez; e o partido bolchevique soube traduzir esse estado de ânimo em palavras de ordem que soavam fundo num front maciçamente camponês, com a bandeira da paz e da terra aos camponeses.
Pelo menos desde a emancipação dos servos, a economia feudal estava estagnada; pelo menos desde a década de 1860 tem início a ação de grupos terroristas, nomeadamente o Narodnik (Vontade do Povo), mais tarde Partido Social-Revolucionário. Eram organizações voltadas para a defesa dos camponeses.
Anos 1890Década de 1890: início e avanço da industrialização, embora ainda assente em poucas cidades da vasta Rússia camponesa e feudal. Dessa social e territorialmente reduzida industrialização capitalista nasceram uma burguesia e um proletariado urbano, envoltos numa ampla economia com traços feudais e de base camponesa. É em tal contexto que a sociedade russa assume uma tessitura social altamente desigual e combinada: uma Rússia feudal e camponesa de um lado e, de outro, uma Rússia com uma indústria, uma burguesia e um proletariado fabril nascentes. A década de 1890 trouxe também as greves operárias, o partido Kadet (Democrata Constitucional), da burguesia, a introdução das idéias marxistas e, em 1897, o Partido Marxista Russo dos Trabalhadores Socialdemocratas de Lênin, Martov e Plekhanov.
O contexto social e histórico da Rússia, que vai perdurar até depois da Revolução de 1917, inclusive em muito determinando, em última instância, seu caráter e seus desdobramentos, era, então, basicamente o seguinte: a) uma sociedade com fortes traços estruturais e culturais feudais; b) um predomínio quase absoluto do campesinato, no âmbito das classes oprimidas, que vai exercer influência fundamental sobre o caráter (ambíguo) e os desdobramentos da revolução; c) um proletariado combativo, mas reduzido e apenas concentrado em algumas poucas cidades. Já desses traços vai depender, numa grande medida, o destino da Revolução de outubro de 1917.
Em face do exposto - ainda que numa apresentação sumária -, uma primeira conclusão pode ser adiantada: uma vasta estrutura econômica ainda portadora de traços feudais; uma cultura camponesa atrasada, também encharcada dos mesmos traços feudais, e um campesinato, portanto, impossibilitado de uma concepção e de uma ação socialista. Isso era mais do que suficiente para travar o movimento da revolução em direção ao socialismo - o proletariado, em minoria e ainda jovem e inexperiente, não tinha acumulado forças, salvo em alguns reduzidos espaços, sobretudo Petrogrado e Moscou, para imprimir seu selo à Revolução. Essa era uma séria limitação da revolução, que só poderia ser superada na perspectiva de um processo revolucionário em cadeia e à escala, pelo menos nos principais países europeus, de cujo único âmbito - internacionalista - poderia retirar o oxigênio que sua maturação haveria de exigir para se completar. Na ausência de tal perspectiva, por ter sido forçada a uma busca estéril, isolada, do socialismo num só país, a revolução na Rússia não pôde oferecer aos dirigentes revolucionários mais do que um terreno apinhado de dificuldades abissais que se refletiam numa recorrente ambiguidade conceitual da política bolchevique pós-Revolução. Essa limitação está na base das muitas peripécias das formulações, iniciativas e propostas de Lênin, não só estratégicas (como saber qual o caráter da revolução e do Estado pós-revolucionário) como táticas - que se refletiram até mesmo, ou principalmente, no interior do Soviete de Petrogrado, o qual esteve nas mãos dos mencheviques e socialistas revolucionários até as vésperas de Outubro.
De 1905 a 1917O caráter dual da Revolução de 1905 deriva basicamente de uma ambiguidade, digamos, estrutural. Esse mesmo caráter vai estar presente também nas revoluções de fevereiro e de outubro de 1917: uma revolução burguesa incapaz de avançar como tal e uma revolução operário-camponesa que também não pôde avançar no sentido do socialismo. Uma tal revolução só teria êxito se houvesse acontecido um pressuposto: a revolução socialista, pelo menos na Europa ocidental, que a tirasse do isolamento e que a ajudasse a suprir grande parte de suas deficiências e contradições. Uma revolução que é travada nos termos aqui colocados e que vai dar lugar a uma formação que não será de um capitalismo privado nem do socialismo - e cujo caráter final, resgatado por uma nova maneira de reprodução do capital, vai ser reforçado com outros ingredientes mais adiante analisados.
A Revolução de Fevereiro não teve na burguesia russa uma classe à altura da tarefa que, por principio, era sua: a de imprimir uma solução radical burguesa que polarizasse trabalhadores e camponeses - até porque estava envolvida pelos trabalhadores dirigidos pelos bolcheviques e por uma guerra da qual as massas trabalhadoras estavam desgastadas ao extremo. A burguesia russa não tinha uma proposta de revolução burguesa radical capaz de oferecer liberdade política aos trabalhadores, terra aos camponeses e independência em relação aos capitais estrangeiros e à própria aristocracia czarista.
O Soviete de Petrogrado era a alma da revolução, porém, a rigor, não pôde sustentar uma saída socialista para ela. Esse soviete foi a plataforma sobre a qual agiam os líderes das organizações revolucionárias: socialistas-revolucionários, mencheviques e bolcheviques. Só muito tarde os bolcheviques lograram ser maioria nesse quartel-general da revolução; somente com atraso puderam assimilar uma concepção - incompleta, acima de tudo - socialista para a revolução dentro dos limites do Soviete de Petrogrado, com seu raio de ação curto para a escala de uma Rússia muito grande e atrasada e sua formação incompleta e tardia. Também os sovietes levavam o selo do atraso numérico e qualitativo da sociedade.
1917
Até abril de 1917 não se tinha avançado para uma concepção que fosse além de uma revolução burguesa - inclusive no POSDR. Lênin, também premido pelas mesmas limitações do caráter da sociedade russa, só avançou para uma proposta socialista - na verdade sempre eivada de ambiguidades, dentro das quais seu pensamento se movia - a partir de abril. Suas posições eram então e por muito tempo ambíguas; todas elas, na verdade, determinadas pelo caráter da sociedade e de sua estrutura de classes.
O atraso das formulações e do ensinamento aos operários organizados nos sovietes pode ser aquilatado pelo fato de que, no I Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, reunido em junho de 1917, a apenas quatro meses da Revolução de Outubro, os bolcheviques eram minoria. Destarte, os bolcheviques, que eram os únicos dirigentes capazes de passar à vanguarda da classe operária, acantonada nos principais sovietes da Rússia revolucionária, careciam de uma concepção que fosse (além da mera organização insurrecional) necessária para contemplar uma formação que os capacitasse à indeclinável tarefa do exercício do Poder, e não puderam preparar a vanguarda da classe nesse sentido - o que certamente explica porque o proletariado russo não se impôs às invectivas da burocracia na usurpação do Poder que deveria ser seu.
Não deixa de ser sintomático que Lênin, em pleno mês de outubro, ao lançar a proposta da tomada do poder com a palavra de ordem "todo o poder aos sovietes", encontrasse forte resistência na própria direção do Partido, fato que, por si só, já revelava uma ambiguidade na compreensão das tarefas da revolução, no centro mesmo daquilo que era a direção revolucionária do proletariado para a revolução socialista.
Ocorre, já depois da Revolução de Outubro, o II Congresso geral dos Sovietes. e os bolcheviques, agora em maioria, passam "o poder aos sovietes", coisa que não encontrava eco na realidade concreta, posto que os sovietes não tinham escala em número e nem em qualidade para exercer - como de qualquer maneira fizeram os comunnards em 1871 - o poder socialista.
1918
As mesmas ambiguidades permanecem e estão presentes na preparação da Assembleia Constituinte, que, na verdade, se opõe ao Soviete. Só em março de 1918 a Assembleia se reúne, mas, com ampla maioria de mencheviques, SRs e outras forças, põe em perigo a revolução e então se resolve, a partir do Soviete de Petrogrado, cassar a AC. Ou seja, essa anulação é feita pela força de um soviete, mas esse mesmo soviete não terá escala para arcar com todas as responsabilidades daí decorrentes - age sem escala qualitativa e quantitativa para dobrar o terreno muito amplo de ambiguidades da revolução vitoriosa.
A outra já mencionada necessidade para a vida do socialismo na URSS foi a revolução em escala mundial, internacional e internacionalista, que foi tentada, que manteve a expectativa, mas que terminou não vingando - e aqui, as causas são muitas, entre as quais a falta de uma IC e de partidos marxistas, sem as traições de grande parte de suas direções, que não prepararam os operários de seus países para intervirem numa conjuntura favorável. Essa lacuna vai colocar a Revolução de Outubro, isolada, numa relação de contradição consigo própria. Estava de certa forma em andamento aquela que era de fato a maior ambiguidade entre as muitas que pontilharam a saga da revolução russa: a tentativa frustrada de manter, em circunstâncias de isolamento, uma sociedade não-socialista numa forma hoje difícil de imaginar (qual?), ou tentar o impossível: construir o socialismo num só país. As difíceis circunstâncias da época levaram, passo a passo, ato a ato, a Revolução de Outubro - que se colocava como uma necessidade social - para a segunda alternativa.
O isolamento da revolução russa também levou, na falta de um apoio vindo dos trabalhadores da Alemanha e de outros países europeus, o Governo Bolchevique a se armar, sozinho, para defender-se das invasões. E aí temos em decorrência mais duas ambiguidades: o Poder deixa de ser da classe para ser do Partido e a Guarda Vermelha, com cerca de 10 mil homens, exército popular, cede lugar ao Exército Vermelho, um exército nos moldes burgueses com chefes trazidos do exército anterior e formado de 5 milhões de homens dirigidos por 30 mil oficiais do passado - um exército profissional e com disciplina centralizada e de ferro.
Como é fácil de ver, cada ambiguidade nova resulta de outras acumuladas e aumenta o volume de ambiguidades que afastam, cada vez mais, a URSS de uma ditadura do proletariado para tornar-se uma ditadura do partido e da burocracia sobre o proletariado. Poder Soviético passou a ser apenas um nome que encobria um enorme revés. O Partido Bolchevique toma o Poder porque: a) depois de tentar a aliança com os mencheviques e os socialistas revolucionários percebe que tais partidos estavam com a contrarrevolução; b) a classe operária também não estava preparada para dirigir o Estado pós-revolucionário por via dos Sovietes; c) os bolcheviques compreenderam que não tinham quadros, entre comunistas e operários, para ocupar cargos no Estado pós-revolucionário; d) os próprios bolcheviques não tinham uma ideia clara acerca do caráter da sociedade pós-Outubro;. e) a ajuda revolucionária esperada da Europa socialista-revolucionária não veio, porque a revolução mundial, esperada com convicção, não aconteceu. Assim, as difíceis circunstâncias - internas e externas - que cercaram a revolução, principalmente depois da tomada do Poder, jogaram o Poder nas mãos do Partido que teve de dividi-lo com a burocracia. Tudo isso já não era, na prática, uma tentativa malograda de salvar - e, na verdade, de construir - o "socialismo num só país"? Como se sabe, o Exército Vermelho, sob a direção de Trotsky, rechaçou inúmeras investidas tanto de fora para dentro como do interior da própria Rússia, mas aí certamente o que se tentava salvar não era mais o socialismo, mas uma outra coisa que precisa ser definida, até porque as tentativas de defini-la feitas, principalmente, por Lênin e Trotsky não contribuíram para elucidá-la; muito ao contrário reforçaram equívocos conceituais que, respaldados pela autoridade intelectual, moral e política desses seus formuladores, se mantêm até hoje na espera de uma solução convincente.
O acúmulo de ambiguidades, sob o peso das quais a revolução batia em retirada, funcionava como uma inexorável fonte de novas ambiguidades, numa espécie de efeito-cascata. Vejamos mais lances desse desesperado processo, em cujo centro debatia-se o próprio Lênin tentando atalhos, soluções provisórias, sempre com a perspectiva de ceder para aliviar tensões e pressões fatais para a revolução, com o firme propósito de reverter cada uma e todas as derrotas temporárias, num futuro que a cada passo ficava mais incerto e distante. Em 1919, ele tenta reverter o cenário comunista mundial dominado pela II IC, criando a III IC, com a qual pensava ganhar o proletariado para uma revolução à escala mundial, mas a III IC nasceu frágil e não conseguiu cumprir a tarefa - e acabou sendo, mais tarde, a chancelaria para o Poder burocrático. Nesse ínterim, os trabalhadores europeus estavam nas mãos das direções patrióticas, nacionalistas, e a onda do movimento operário estava, por volta de 1921, em refluxo. A invasão da Polônia, autorizada pelo próprio Lênin na esperança de um apoio dos trabalhadores poloneses para uma revolução ali, foi um fiasco e uma derrota.
A reação não tardou. A guerra civil foi posta em movimento. Partidos burgueses desalojados, mencheviques, SRs, anarquistas instigaram a reação. O ano era 1918. Tudo isso, produto da situação anterior, levou a economia à desorganização. A I Guerra Mundial, a formação de um exército profissional e a guerra civil desorganizaram a economia. Transportes em pane; as reservas de matérias-primas em baixa; fome e frio assolavam a população. Todo esse impasse levou o governo a tomar mais uma medida de adiamento -ou dissolução, talvez este seja o melhor termo - do "socialismo". Aí ocorreu o "comunismo de guerra" - um nome já de si muito estranho. A escassez de alimentos era o maior problema. Os camponeses não aderiram aos apelos do partido e os alimentos tiveram de ser confiscados. Problemas também com a indústria. Operários que ocupavam cargos não estavam habilitados: a recorrência aos "especialistas", com altos salários, não pôde ser evitada. Como se pode ver, a velha ordem se imiscuía nas entranhas da nova, e as velhas relações, recriadas com selo novo. Dizem-nos historiadores creditados que após três anos de revolução, a população de Moscou estava reduzida a 55% e a de Petrogrado, a cerca de 43%.
1921
A essa altura, o controle operário da produção foi trocado pela obediência e a repressão cegas. Foi implantada a "militarização do trabalho". Mais e mais ambivalências. O "comunismo de guerra" não podia mais continuar, e, no início de 1921, foi abandonado e substituído pela NEP. Mas, antes que isso acontecesse, o "comunismo de guerra" deixou seus "saldos": uma inusitada centralização da economia e do poder e a substituição da distribuição pelo mercado por mecanismos diretos para o consumo - uma espécie de "economia natural". A primeira, que já fora implantada antes, teve continuidade, a segunda, não deu certo. Ademais, a concentração, que foi aplicada na indústria, não deu certo no campo. No que tange à economia "natural", ela, que estava combinada com a política de requisições, não deu certo - e aí não se teve outra alternativa senão recorrer a mais uma ambiguidade: o incentivo capitalista, com comércio a dinheiro; o camponês rico, o kulak, para além do que lhe era requisitado, podia levar um excedente ao mercado - e o kulak tornou-se um pequeno capitalista. Recuperou-se o direito de contratar mão-de-obra e de arrendar a terra. A NEP era vista pelo próprio Lênin como mais uma parada forçada a ser revista num certo futuro, não estabelecido por antecipação.
Diante de tal quadro, era inevitável que surgissem movimentos de oposição, nascidos até mesmo dentro de espaços sociais emblemáticos da Revolução de Outubro, como foi o caso da revolta dos marinheiros do Kronstadt, amotinados, reclamando, entre outras coisas, eleições livres nos sovietes, mas que foram esmagados pelo próprio Exército Vermelho. Uma tal medida, drástica ao extremo, não podia ser vista com simpatia pelos trabalhadores que já se encontravam isolados de qualquer participação na estrutura do Poder... "Soviético". Essa medida, tomada com o assentimento do próprio Lênin, talvez seja a maior das ambiguidades de toda a Revolução.
1922
Um poder centralizado, que emergia do enfrentamento a todas as incursões e a todos os desafios, em continuação com o "comunismo de guerra" e a NEP, era agora corroborado pela necessidade de reconstrução da economia nacional. Essa centralização vai constar do novo texto constitucional da Rússia (o primeiro fora aprovado em julho de 1918, acompanhado da criação do Conselho dos Comissários do Povo): a República Soviética Federal Socialista Russa (RSFSR). Entre 1920 e 1922 foram incorporadas à RSFSR, com convênios e com a força, as repúblicas socialistas ou não-socialistas da Ucrânia, Bielo Rússia, Geórgia, Armênia e Azerbaijão. O poder desse conjunto estava concentrado em Moscou. Em 1922, congressos da RSFSR, Ucrânia, Bielo Rússia e Transcaucásia ratificaram a centralização e criaram a URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A aprovação de uma constituição para o conjunto foi estabelecida pelo Segundo Congresso dos Sovietes, em janeiro de 1924 - que seguia, em geral, as linhas da Constituição da RSFSR. Por sua vez, o Partido tornou-se uma máquina centralizadora com um Politburo de 5 membros, mais forte do que o próprio Comitê Central - e esse Politburo passou a ser, na prática, "o órgão supremo de elaboração da política da URSS". Contactos para abrir caminhos de acesso a trocas comerciais foram abertos com as Inglaterra e com a Alemanha e, à medida que a expectativa da revolução mundial caía, a diplomacia avançava. Acordos militares secretos, para benefício mútuo, que visavam a produção de material bélico, foram assinados - com, inclusive, treinamento militar por especialistas alemães ao Exército Vermelho.
A essa altura o comércio ressurgia, prostitutas podiam ser vistas nas ruas, a instituição da gorjeta reapareceu, o trabalho assalariado se alastrava. Tem início a era Stálin. Todavia, antes de tecer alguma considerações acerca das relações entre as duas eras, a "era Lênin" e a "era Stálin", faz sentido passar a vista no torturante esforço intelectual de Lênin tentando compreender e definir, por entre um denso e contraditório cipoal de ambiguidades - que se mostraram, depois, letais para a revolução e a ditadura do proletariado -, o caráter e as tarefas que a revolução em processo estavam a exigir.
1918
O regime saído da Revolução de Outubro não era ainda socialismo, mas uma fase de transição para o socialismo. Em 1918, eram essas as "estruturas socioeconômicas" existentes na Rússia, segundo Lênin: "1) Patriarcal, quer dizer, uma economia camponesa natural em grau considerável; 2) Pequena produção mercantil (compreende a maioria dos camponeses que vendem seu trigo); 3) Capitalismo privado; 4) Capitalismo de Estado; 5) Socialismo" (In, O Infantilismo de Esquerda e a Mentalidade Pequeno-Burguesa).Nelas, predominava "o elemento pequeno-burguês camponês".
Na fase do "comunismo de guerra", quando houve a "liquidação da burguesia privada" e a apropriação estatal dos meios de produção, o campesinato e os operários já haviam sido despojados dos seus órgãos de administração direta, quando, por meio de uma inusitada centralização das decisões, foram também eliminados os próprios conselhos de empresa, substituídos por via da nomeação direta dos diretores de fábrica pelo governo "socialista", Lênin afirmava que já se havia dado importantes passos na direção do comunismo e distinguia três formas básicas de "economia social": o capitalismo (com a burguesia), a pequena produção mercantil (basicamente os camponeses) e o comunismo (o proletariado). A ideia de uma aproximação do comunismo substituiu, temporariamente, a de um "capitalismo de Estado". Em 1920, o "comunismo de guerra" tinha-se tornado num fracasso contundente e Lênin titubeava entre ambiguidades. Como falar de avanço para o comunismo numa sociedade mal saída de uma revolução, sem a necessária transição - postulada por Marx (Critica ao Programa de Gotha) e pelo próprio Lênin (O Estado e a Revolução) - na qual o poder de Estado dos conselhos operários tinha sido liquidado e já estava substituído pela burocracia? Mesmo assim, Lênin considerava que aquela forma de poder inclinava-se para o comunismo e que a este faltavam apenas "condições materiais". Lênin estava a confundir aquela centralização burocrática com Poder socialista: confundia um Poder do partido e da burocracia com "ditadura do proletariado" (já beirando o comunismo) - de um proletariado que já não se encontrava no poder; uma "ditadura do proletariado, na qual as milícias operárias tinham sido desfeitas e substituídas por um Exército (Vermelho) regular; numa realidade sumamente problemática na qual ocorriam rebeliões camponesas, greves operárias em Petrogrado e a revolta dos marinheiros do Kronstadt. São suas estas palavras (1922): "Esta crise interna trouxe à luz o descontentamento de uma parte considerável dos camponeses e também dos operários. Foi a primeira vez, e espero que seja a última, que largas massas de camponeses estiveram contra nós, não de modo consciente, mas instintivo."
1920 - 1921- 1922
Lênin reconhece um erro na pretensão de passar diretamente para a produção e distribuição comunista e, por meio de um recuo, instaura a NEP. O erro de Lênin, que não é um erro qualquer, consiste em ter confundido traços forçados (logrados por via coercitiva) na produção e na circulação com comunismo, quando não se poderia falar de comunismo, muito menos com tais métodos ou com conquistas obtidas tão rapidamente e descoladas da questão do poder efetivo - sem transição socialista alguma. Há algo mais do que mero economicismo nisso tudo...
Lênin reconhece o fracasso do "comunismo de guerra"- "[...] Cometemos um erro ao decidir passar diretamente para a produção e a distribuição comunista [...]"- e reconhece a volta ao capitalismo numa extensão considerável. Não há como negar: Lênin estava em total desacordo com o que Marx escrevera em Crítica ao Programa de Gotha e consigo próprio em O Estado e a Revolução. Mas Lênin não pensava num capitalismo privado, mas num novo tipo de capitalismo de Estado. Como acontecia com muitos outros "recuos táticos"- tomados sob a pressão de fatos na verdade intransponíveis, e que mais na frente haveriam de ser revertidos -, pensava, novamente, num capitalismo de Estado, que se combinava com traços socialistas. Em 1921, no livro O Imposto em Espécie, ele retoma as ideias de 1918 - às mesmas "estruturas econômicas" que havia identificado na Rússia em 1918. O "elemento socialista" estava no setor estatal da economia - e isso independentemente da questão do Poder das comissões e dos conselhos operários dentro e fora das empresas. E o capitalismo de Estado? O capitalismo de Estado era, na versão de Lênin, um regime onde a primazia estava com a produção mercantil, no qual o setor estatal era minoritário, mas o Poder estava representado pela "ditadura do proletariado" - por um Estado que, nesse contexto, era "um Estado verdadeiramente revolucionário" e representava "inevitável e inexoravelmente a marcha para o socialismo". Parece óbvio que Lênin estava teórica e historicamente equivocado. Teórica e politicamente equivocado porque aquele já não era um Estado proletário, social e historicamente, porque as relações de produção capitalistas não tinham desaparecido nem mesmo no âmbito do setor estatal da economia (confusão entre relações sociais de produção e forma de propriedade).
Na obra O Imposto em Espécie, Lênin identifica os seguintes traços constitutivos do Capitalismo de Estado, que estava a existir na URSS: a concessão (a capitalistas privados, inclusive estrangeiros), a cooperativa, (a pequenos produtores, principalmente camponeses) a comissão (ao comerciante para vender a produção estatal e recolhimento dos produtos do pequeno produtor)) e o arrendamento (de empresas, terras etc. estatais a capitalistas privados). O Capitalismo de Estado era então uma sociedade na qual havia um pequeno setor estatal, a primazia da produção mercantil, a propriedade privada (inclusive arrendada), ou seja, uma sociedade majoritariamente capitalista, controlada por um "Estado proletário" revolucionário - um Estado, diga-se de passagem, que não era proletário e não representava, portanto, nenhuma ditadura do proletariado.
Nesse mesmo ano de 1922, Lênin considera que "o elemento pequeno-burguês (campesinato) é o principal inimigo e que o proletariado está impregnado dessa ideologia e também ‘desclassificado' (fora de sua base de classe), debilitado, disperso etc. Eis a que ficou reduzida a ‘ditadura do proletariado'"!!
Tentando apropriar-se do fato pelo conceito, Lênin tentava, no "Relatório Político ao Comitê Central ao XI Congresso", caracterizar esse capitalismo de Estado da seguinte maneira:
Mas, não são menores as ambivalências do grande Lênin ao tentar compreender a natureza do Estado que dirige. No texto citado mais atrás ele assim define aquele Estado: "Este capitalismo de Estado está conectado com o Estado. E o Estado é a classe operária, é a parte mais avançada dos trabalhadores, é a vanguarda. Nós somos o Estado". No mesmo texto, noutra passagem, encontramos uma surpreendente definição, hoje sabidamente falsa - como tem-na demonstrado Mészáros - que constitui um lamentável equívoco teórico e político, consistente em confundir-se supressão da propriedade privada com superação da relação-capital:
Em "Sobre o Programa do Partido, Informe ao VIII Congresso do PC(b)", de março de 1919, referindo-se aos sovietes, ele afirmara: "Sendo por seu programa órgão da administração exercida pelos trabalhadores, são na prática órgãos da administração para os trabalhadores, exercida pela camada do proletariado que constitui a vanguarda e não pelos trabalhadores em seu conjunto."
Numa outra passagem mais ambígua ainda, fazendo uma alusão ao Partido, no texto "Sobre o Sindicato", de 1920, ele chega a afirmar que
"A ditadura do proletariado [...] só pode ser exercida por uma vanguarda que tenha absorvido as energias revolucionárias da classe [..]) Tal é o mecanismo básico da ditadura do proletariado e a essência da transição do capitalismo para o comunismo.", mas, no Imposto em Espécie, já citado, ele, em alusão ao mesmo Partido, assume uma definição desconcertante: "[...] o contingente avançado do proletariado só representa uma pequena parte de todo o proletariado que, por sua vez, não representa mais do que uma pequena parte de toda a massa da população." Num escrito de 1922, "Condições para a Admissão de Novos Membros no Partido", ele escreve:
Ou seja, a política proletária não foi absorvida respectivamente pelo conjunto da classe, pelo conjunto do segmento mais avançado da classe - a vanguarda da classe -, também não pelo conjunto do Partido, erroneamente visto, em passagens anteriores, como a vanguarda de uma classe incapaz de reconhecê-la conscientemente como tal - resultando que tal política proletária só existia na cabeça de uma Velha Guarda que, se desfeita, perderia as condições de impor sua política. Num outro texto de 1921, se reportando a uma polêmica mantida com Bukharin, que o havia criticado, ele - como fazia sempre que era convencido de seus erros - escreve:
Tratando da burocracia que avançava em todas as instâncias do Estado e da sociedade inteira, algumas formulações feitas por Lênin podem fornecer mais e maiores lições. Porém, façamos um breve parêntesis para lembrar que a formulação "Estado Operário com deformações burocráticas" é um conceito que vai ser empregado por Trotsky para caracterizar o Estado parido da Revolução de Outubro durante todo o tempo em que viveu. Voltemos a Lênin. Numa passagem de um texto de novembro de 1922, "Cinco anos de Revolução Russa e as Perspectivas da Revolução Mundial. Relatório ao IV Congresso da IC", ele escreve:
Até aqui, para Lênin, a burocracia encontra-se arraigada no tecido estatal, mas não na cúpula. Porém, numa passagem de um outro texto, escrito apenas um mês depois do mesmo ano de 1922, nas angustiantes análises feitas por Lênin a tal respeito, ele, agressivo com os próprios camaradas do partido, dessa vez já vê a coisa muito pior:
Agora, Lênin começa a notar que a burocracia, que apenas um mês atrás tinha corroído apenas a larga esfera do funcionalismo do Estado, na verdade encontrava-se instalada em parte da cúpula, nada menos do que na alta esfera ministerial, a esfera do Comissariado do Povo, onde, como se vê, uma outra prática da democracia operária, que a Comuna de Paris implantou e fez valer nos seus dois meses de existência - a revogabilidade dos cargos - , também inexistia, anulada pela imunidade (fato e termo incompreensíveis nas circunstâncias reais e conceituais da ditadura do proletariado) da alta esfera do poder burocrático. São sintomáticas algumas colocações feitas por Lênin ainda nos finais do ano de 1922, tais como:
Ou este, no qual o aparelho de Estado era
Mas, se todos esses pareceres de Lênin preocupam, preocupam muito mais alguns outros que, nas mãos de Stálin e entourage, vão ser assumidos não só sem critica, mas apesar da critica e, sobretudo, contra toda crítica, que constituem uma justificativa para o afastamento dos operários do mecanismo do poder. Vejamos esta longa passagem de um texto escrito por Lênin ("Discurso no III Congresso Pan-Russo dos Trabalhadores de Transporte de Água", de março de 1920):
E desta ilação, constante de um texto de 1922, "Papel e Funções dos Sindicatos", sempre feita a contragosto e em função de pressões socialmente ambíguas, que vai, nas mãos de Stálin & Cia., receber o selo não de uma ação transitória e provisória, mas, ao contrário, um atestado de permanência definitiva:
Ou ainda: "[...] o trabalho deve ser organizado de um novo modo; novos meios de estimular as pessoas a trabalhar e a observar a disciplina no trabalho devem ser encontrados." (In, "Discurso no III Congresso Pan-Russo dos Sindicatos", 1920).
Ou mais nesta, de uma contundência a toda prova: "[...] Poderes ditatoriais e direção unipessoal não são contraditórios com a democracia socialista" (Ibidem).
Portanto, premido pelas ambiguidades do processo material da revolução russa, Lênin estava a justificar o injustificável, ou seja, colocar os interesses da produção na frente da legitimação dos operários no poder - uma postura teórica indefensável, uma postura política abominável, de todo modo uma herança a mais que vai ser assumida pela cúpula do capitalismo de Estado sem qualquer constrangimento depois de encerrada a era Lênin. Na sua obra O Estado e a Revolução, escrito dois meses antes da revolução, Lênin, no encalço de posições de Engels e Marx a respeito do Estado pós-revolucionário, como um exercício para compreender a constituição do Estado socialista, que haveria de ser montado na Rússia logo depois, afirmava, com convicção e brilhantismo, que o Estado Comuna, a ditadura da classe operária sobre a burguesia, teria de ser erguido sobre os escombros do Estado burguês quebrado, eliminado, liquidado pela violência revolucionária do proletariado, naquilo que define a essência do poder da burguesia, ou seja, a burocracia e o exército regular, profissional e aquartelado. Todavia, o que se nota, nas próprias palavras de um Lênin abafado pelos descaminhos do socialismo, é que esse par de instituições, com ele o essencial do poder político da burguesia permaneceram, por conta das inúmeras ambiguidades postas em relevo no nosso artigo. Adeus milícias, adeus Estado mínimo e em extinção, adeus revogabilidade dos cargos, adeus controle direto da produção pelos operários, adeus poder operário de Estado.
Até aqui está visto, portanto, ao contrário do que se diz nas fileiras da maioria dos assim chamados "partidos comunistas", que: a) ao desaparecerem as perspectivas da revolução simultânea em vários países, o que se tentava mesmo era salvar (= construir) o socialismo num só país, tentativa a que o próprio Lênin se jogou com todas as suas energias; b) dessa ausência maior - a única que poderia assegurar as condições de maturação de uma sociedade não-socialista, saída de um solo social imaturo para tal, até o ponto em que o socialismo pudesse ser implantado, de fato, na Rússia pós-revolucionaria -, portanto, dessa ambiguidade maior, combinada com outras tantas que se apresentavam paridas de uma realidade refratária ao socialismo, os bolcheviques foram atolados em concessões em série, tomadas como recuos táticos a serem revertidos em etapas posteriores, mas que, infelizmente, num conjunto no qual essas coisas se integravam cumulativamente, se tornaram irreversíveis, levando os bolcheviques, incluindo o maior deles, a caírem em formulações igualmente ambíguas que não só não davam mais soluções, mas, exatamente, só contribuíam com o afastamento do horizonte socialista; c) resulta que posturas atribuídas a Stálin, como a ideia do socialismo num só país, ou a fórmula tão utilizada por Trotsky de um "Estado operário com distorções burocráticas", entre outras, não eram em nada estranhas ao próprio Lênin; d) a supressão da propriedade privada era confundida com a morte da relação-capital, ao tempo em que velhas relações voltavam à ordem do dia e se combinavam com outras saídas da nova configuração social que recuperava, isto sim, a mesma relação-capital na forma de um Estado pós-capitalista; e) a Revolução Russa estava estiolada desde que saiu do casulo, por força de referidas ambiguidades, e, ao fim e ao cabo, resultou que no lugar do proletariado e seus conselhos estava mandando uma burocracia - que permeava o Estado, o Exército, as empresas -, para além dela um poder fortemente concentrado no Partido, ou então, como o próprio Lênin afirmou, no lugar do partido uma exígua Velha Guarda de veteranos bolcheviques, e assim por diante.
B/Diante de ambiguidades de tal escala, que obrigavam os dirigentes do Partido - Lênin em especial -, diante de inarredáveis pressões dos fatos, a abrirem mãos de conquistas a duras penas alcançadas, com o propósito de recuperá-las quando as tormentas sociais se transformassem em situações mais sólidas e favoráveis, o que diferenciava os dois estilos - a saber: o estilo Lênin e o estilo Stálin - que se fizeram hegemônicos no processo pós-revolucionário?
Colocando inicialmente o problema no plano dos estilos de direção, que estava posto no processo de construção da ditadura do proletariado, há, a nosso juízo, uma diferença que é essencial - uma diferença que revela, de um lado, um revolucionário autêntico e impar, que perseguia, com a máxima dureza, no terreno do debate aberto e leal, ideias e concepções adversárias e, de outro, um indivíduo grosseiro, que se cercou do que havia de pior nas fileiras do Partido, que perseguia, no lugar das ideias, as cabeças dos oposicionistas que as portavam. De fato, enquanto Lênin, de um lado, ao tentar escapulir de uma ambiguidade - por exemplo, lançar mão da NEP, com o claro revés, calculado, de fortalecer o capitalismo no campo, para resolver o desafio iminente do problema do abastecimento, ou de transformar a Guarda Vermelha num Exército regular e profissional, sujeito a uma disciplina burguesa, para dar conta da contrarrevolução nos dois planos, o interno e o externo -, agia na esperança de retomar o curso desviado da revolução, Stálin, do outro lado, tomava como um dado a tendência cumulativa dos desvios, que já configuravam uma sociedade não-socialista, jamais questionando o desencadear dos fatos e, para justificar uma ação política genuinamente revisionista, não titubeava em cometer as mais ousadas e grosseiras adulterações e falsificações, as mais hediondas perseguições aos adversários oposicionistas e celebrar os mais abjetos acordos internacionais com governos imperialistas - como o ato de dissolução da III IC (e de qualquer Internacional), desde que estivesse em questão a sua sagrada tarefa de "construção do socialismo num só pais", a Rússia. Nas mãos de Stálin e dirigentes seus, um marxismo coagulado e torpe figurou como a superestrutura ideológica do capitalismo de Estado que eles assumiram sem questionar e tentando, à base das mais grosseiras fraudes teóricas e políticas, justificar.
C/Mas uma análise que incida sobre os dois estilos básicos dos dirigentes que estavam à testa dos destinos da Revolução Russa tem, decerto, certa relevância, mas ela só pode ser verdadeiramente eficaz para uma concreta compreensão de referido processo se compreendida como parte de uma abordagem das determinações de classes que estavam no centro das ambiguidades atrás ressaltadas. E aqui é forçoso esclarecer em que planos a análise das determinações de classe pode e deve ser realizada. Num primeiro plano está a necessidade da identificação das classes sociais que estavam ativadas nos desdobramentos da própria Revolução; no outro, essas classes faziam suas intervenções na tessitura da sociedade , na mesma Revolução, procurando incliná-la para o âmbito de seus interesses.
De todo o exposto no curso da análise levada a efeito acerca das ambiguidades da revolução é possível concluir que a classe social - uma burguesia de Estado -, que acabou prevalecendo nos desdobramentos do processo da revolução russa, foi constituída de uma complexa combinação dos caracteres e dos respectivos interesses dos seguintes segmentos sociais: a) de um lado os camponeses ricos, aqueles que, no mínimo, se beneficiaram e que, por conseguinte, se desenvolveram com interesses específicos com a NEP; b) os militares, sobretudo os que, contados em torno de algumas dezenas de milhares, passaram a ocupar postos de comando no Exército Vermelho; c) todo um corpo de funcionários, originários do Estado czarista, que foram resgatados e cooptados para pôr em andamento o Estado pós-revolucionário; d) de suma importância, e não poucos, os membros do próprio Partido, que se tornaram parte da burocracia e no conjunto diluíram sua fisionomia comunista, trocando-a pela fisionomia de uma burguesia de Estado. São essencialmente esses segmentos que vão ser a um só tempo resultado e agentes do processo de transformação da ditadura do proletariado numa ditadura de uma burocracia que culminou com uma burguesia de Estado à testa da qual estavam Stálin e sua entourage.
Demais, torna-se necessário compreender como se deu o processo concreto da viragem em questão e, acima de tudo, como e porque o próprio Partido - nele incluindo os próprios Lênin, Trtosky e demais membros que, de alguma forma e em alguma medida compartilhavam, a tal altura do andamento do processo, da orientação geral de Lênin-tornou-se mediador da nova estrutura de Poder que tomava corpo a partir da insurreição de Outubro. Por tudo o quanto foi visto, é óbvio que seria um disparate supor que homens como Lênin, Trotsky, Bukharin ou Sverdlov pudessem ser responsabilizados por uma intervenção conscientemente deliberada no sentido da desmontagem da ditadura do proletariado em proveito da ditadura do partido e da burocracia sobre o proletariado. Mas também não se pode omitir que a intervenção, que se viram obrigados a levar a efeito, como homens de partido, diante das gigantescas ambiguidades paridas do próprio processo da revolução, terminou por se constituir como mediação do referido processo. As ambiguidades nasciam da combinação de problemas sociais objetivos que emergiam das entranhas de uma sociedade material que, política e ideologicamente resistia, nas circunstâncias dadas, ao desenvolvimento da ditadura do proletariado. Na medida em que cada intervenção posta em prática pelo Partido era acionada como um necessário recuo - embora apenas um recuo tático, para aqueles dirigentes - e produzia um reforço dos interesses e das respectivas posições de classes da amálgama vista mais atrás, esses segmentos ganhavam contornos adicionais de burguesia de Estado e, normalmente, a partir de cada nova posição assim alcançada, aumentavam seu poder de fogo na desmontagem em curso da ditadura do proletariado e no consequente reforço do capitalismo de Estado. Esses obstáculos que se colocavam como dados outros diante da ação geral do Partido - como as reações de certas esferas do campesinato - nasceram não como obstáculos, mas como fatores ativos da revolução, tornando-se obstáculos exatamente quando a própria revolução, em sua marcha progressiva, teve de colocar em questão certos interesses dessas esferas do campesinato. Entre alguns dos obstáculos gerais ao curso da revolução, que se constituíram como pressões objetivas - por exemplo, a crise de abastecimento, que levou ao "comunismo de guerra" e, depois, à NEP - e as posições crescentemente articuladas dos referidos segmentos de classe interessados na volta dos mecanismos de mercado e do Poder, havia uma relação dialética de simultaneidade, nunca um sistema de causa e efeito linear. Pois é exatamente no âmbito das contradições objetivas dessa dialética que a ação do Partido, operando a contragosto de Lênin e parceiros seus, funcionava como mediação. Diante da pressão dessas forças de resistência, o Partido mediava com um recuo tático provisório, que implicava num fortalecimento das posições de classes dos segmentos mais atrás relacionados; posições essas que, uma vez fortalecidas, agiam, no retorno, no fortalecimento dos referidos processos objetivos, cavando ainda mais o fosso existente entre a realidade pós-revolucionária e a perspectiva da ditadura do proletariado. Esses recuos, como foi visto, acumulavam-se num crescendo até que, no limite, resultaram na consolidação de um capitalismo de Estado que, já na década de 1920, era um sistema social completo, com uma classe social formada, com um Estado correspondente, à testa do qual o stalinismo, como direção e ideologia adequada, assumiu-o de ponta a ponta.
D/
Diante de tudo o que acaba de ser exposto, uma pergunta se impõe: haveria alguma alternativa? Positivamente, qual? É bom ter essas limitações claras em mente para não embarcarmos em formulações fáceis, como: a) o stalinismo pegou uma ditadura da classe e, traindo a revolução, deu início, após a morte de Lênin, ao capitalismo burocrático de Estado; b) Lênin, Trotsky, Bukharin teriam feito diferente. Para avaliarmos melhor, indaguemos: diante das circunstâncias de isolamento, interno e externo, do país, do partido e da própria revolução, qual a saída que poderia evitar a via stalinista de cristalização de uma ordem do capital pós-capitalista? Uma saída que colocasse a revolução russa num caminho que desse lugar ao socialismo, quando as condições da realidade mundial se fizessem presentes? Teria sido possível uma tal forma de sociedade de transição?Por quanto tempo?
Como todas as experiências de tentativas de revoluções socialistas em condições de imaturidade para tais, e nas condições de ausência de simultaneidade de socialismos em nações que os fizessem brotar de capitalismos desenvolvidos, não puderam evitar o malogro, tornando-se invariavelmente sociedades reprodutoras do capital. O avanço dessa compreensão necessária e impostergável para o destino da humanidade passa pelo estudo dos processos similares ao da Revolução Russa (na China, em Cuba e na Nicarágua, em todo o Leste europeu, na Ásia e na África) - para inclusive entender como tentativas não bem sucedidas puderam e ainda podem chegar a situações nas quais se configuram e podem-se configurar verdadeiras aberrações ditatoriais, a exemplo do que aconteceu, em nome do "socialismo" e da "ditadura do proletariado", na própria China, na Coreia do Norte, na Romênia, etc.
E/
Devemos levar em conta, no presente e no futuro, duas ordens de preocupações que podem evitar erros e marchas forçadas como os que aconteceram até aqui: de um lado, que a História oferece, pela primeira vez, no plano objetivo, a possibilidade de revoluções socialistas simultâneas, inclusive em países capitalistas desenvolvidos, fato novo que poderá combinar, na base de um internacionalismo proletário autêntico, a ajuda mútua de nações pós-revolucionárias, sobretudo a dos países desenvolvidos, onde o socialismo já pode florescer imediatamente às revoluções, aos países atrasados, em que as revoluções se coloquem como necessidades, mas em circunstâncias nas quais o socialismo ainda não possa ser construído de imediato. A outra coisa a ser levada em conta é o fato, reiteradamente posto em manifesto por Stivan Mészáros, baseado em Marx, de que o que tem de ser superado não é só o capitalismo mas toda a vida e a sobrevida do capital, o que deve compreender que não basta suprimir a propriedade privada dos meios de produção para que o socialismo possa se desenvolver como tal, mas o próprio capital como fator de exploração, dominação, controle e articulação de toda uma ordem de metabolismo social.
(Junho de 2009)
[1] Famoso personagem de O Nome da Rosa, de Umberto Ecco, que justificava de modo extremado a defesa dos postulados do pensamento agostiniano, portado pela Igreja, contra as invectivas de monges que, afirmando princípios aristotélicos, induziriam o "rebanho infectado a duvidar de Deus."
Na Grécia a revolta é imensa e a situação social explosiva. Neste exato momento, o Estado grego lança ataques terríveis contra o proletariado. Todas as gerações de trabalhadores e todos os setores são atingidos em cheio. Os trabalhadores do setor privado, os funcionários públicos, os desempregados, os aposentados, os estudantes precários... ninguém está a salvo. Toda classe trabalhadora está ameaçada de naufragar na miséria.
Diante desses ataques, o proletariado não tem deixado de reagir. Os trabalhadores estão saindo às ruas para lutar, mostrando assim que não estão dispostos a aceitar sem resistência os sacrifícios exigidos pelo capital.
Porém, até o momento esta luta não consegue desenvolver-se, tornar-se massiva. Os trabalhadores da Grécia vivem momentos difíceis. Que fazer quando todos os meios de comunicação e todos os políticos afirmam que não há mais remédio além de apertar o cinto para salvar o país da falência? Como resistir ao rolo compressor do Estado? Que métodos de luta empregar para construir uma relação de forças favorável aos explorados?
Todas estas questões não se referem unicamente aos trabalhadores que vivem na Grécia, mas aos de todo o mundo. Além do mais, não se deve ter nenhuma ilusão, a tragédia grega é uma antecipação do que espera os trabalhadores em todas as partes. De fato, já foram anunciadas oficialmente "medidas de austeridade à grega" em Portugal, na Romênia, no Japão e na Espanha (onde o governo acaba de rebaixar o salário dos funcionários em 5% em média, além de outras medidas!). Todos esses ataques simultâneos revelam uma vez mais que os trabalhadores, qualquer que seja a nacionalidade, fazem parte de uma mesma classe que tem em todas as partes os mesmos interesses e os mesmos inimigos. A burguesia faz com que o proletariado arque com os pesados grilhões do trabalho assalariado, porém seus laços unem a todos os trabalhadores, de pais em pais, acima das fronteiras.
Na Grécia, atualmente, são nossos irmãos de classe os que são atacados e têm buscado dolorosamente lutar. Sua luta também é nossa.
Solidariedade com os trabalhadores da Grécia!
Uma mesma classe um mesmo combate!
Rejeitemos todas as divisões que a burguesia tenta nos impor. Ao velho princípio das classes dominantes - "dividir para reinar melhor" - contraponhamos o chamamento de agrupamento do proletariado: Proletários de todos os países! Uni-vos!
Na Europa, a burguesia em cada país trata de fazer os trabalhadores acreditarem que vão ter de apertar o cinto por culpa da Grécia. A falta de escrúpulos dos governantes gregos, que haviam deixado que o país vivesse do crédito durante décadas e além do mais haviam manipulado as contas públicas, apontoa que a crise teria por causa principal de uma crise de confiança internacional no euro. Todos os diferentes governos utilizam esse pretexto enganador para justificar, um após outro, a necessidade de reduzir os déficits e a adoção de planos de rigor draconianos.
Na Grécia, todos os partidos oficiais, começando pelo Partido "Comunista", estimulam os sentimentos nacionalistas: "as potências estrangeiras são as responsáveis pelos ataques", "Abaixo o FMI e a União Européia", "Abaixo a Alemanha"; esses são os slogans lançados nas manifestações pela esquerda e extrema esquerda, que assim ignoram voluntariamente o capital grego.
Nos Estados Unidos, se as bolsas caem, seria por causa da instabilidade da União Européia; se as empresas fecham, seria por causa da debilidade do Euro, que afeta o dólar e as exportações.
Ou seja, cada burguesia nacional acusa o vizinho e exerce sobre o proletariado que explora esta chantagem infame: "aceitem os sacrifícios, senão o país se debilitará e os concorrentes se aproveitarão". A classe dominante tenta inocular o nacionalismo, verdadeiro veneno para as lutas, nas veias proletárias.
Esse mundo dividido em nações concorrentes não é o nosso. Os proletários não têm nada a ganhar atrelando-se ao capital do país onde vivem. Aceitar agora os sacrifícios em nome da "defesa da economia nacional", significa preparar outros sacrifícios mais difíceis ainda para o amanhã.
Se a Grécia está "a beira do abismo", se a Espanha, a Itália, a Irlanda e Portugal estão prontos para seguirem o mesmo caminho, se a Inglaterra, a França, a Alemanha ou os Estados Unidos estão em plena tormenta econômica, é porque o capitalismo é um sistema moribundo. Todos os países estão condenados a afundar irremediavelmente nesse marasmo. Há 40 anos a economia mundial está em crise. As recessões se sucedem uma às outras. Apenas uma fuga desesperada no endividamento tem permitido ao capitalismo obter, até agora, um pouco de crescimento. Resultado: hoje os estabelecimentos, as empresas, os bancos, os Estados, todos estão superendividados. A quebra da Grécia é a caricatura da quebra geral e histórica desse sistema de exploração.
A burguesia quer nos dividir, contrapomos com a nossa solidariedade!
A força da classe trabalhadora é sua unidade!
Os planos de austeridade anunciados constituem um ataque frontal e generalizado às nossas condições de vida. A única resposta possível é um movimento massivo dos trabalhadores. É impossível fazer frente a isso lutando a partir da empresa, da escola ou da administração isolados por grupos. Lutar massivamente é uma necessidade, sob pena de sermos todos derrotados e condenados à miséria.
E o que fazem os sindicatos, essas instituições rotuladas de "especialistas oficiais da luta"? Organizam greves em múltiplos locais de trabalho... sem buscar nunca que se unifiquem. Mantêm ativamente o corporativismo, opondo particularmente os trabalhadores do setor público e do privado. Levam os operários a passear em jornadas de "mobilização" estéreis. São de fato os "especialistas da divisão dos trabalhadores"! Inclusive se empenham a fundo em destilar o nacionalismo. Um só exemplo: o slogan mais proclamado nas manifestações da GSEE (Confederação Geral dos Trabalhadores da Grécia) desde meados de março tem sido... "Compre produtos gregos!"
Acompanhar os sindicatos significa sempre ir ao encontro da divisão e da derrota. Os trabalhadores têm que se encarregar de tomar suas lutas, organizando por si mesmos as assembléias gerais e decidindo coletivamente as palavras de ordem e as reivindicações, elegendo delegados revogáveis a qualquer momento e enviando delegações massivas para discutir com os trabalhadores dos centros mais próximos, das fábricas, das universidades, dos centros administrativos, dos hospitais..., para incentivá-los a aderir ao movimento.
Dispensar os sindicatos, atrever-se a tomar o controle das lutas, dar o passo de ir em busca dos nossos irmãos de classe..., tudo isso pode parecer enormemente difícil. E esse é um dos freios atuais ao desenvolvimento da luta. O proletariado tem uma falta de confiança em si mesmo: não tem ainda consciência da força que representam suas formidáveis capacidades. Até o momento, a violência dos ataques que são realizados pelo capital, a brutalidade da crise econômica, a falta de confiança do proletariado em si mesmo, atuam como fatores paralisantes. As respostas proletárias, inclusive na Grécia, estão ainda bem longe do que a gravidade da situação exige. No entanto, o futuro pertence à luta de classes. Diante dos ataques, a perspectiva é o desenvolvimento de movimentos cada vez mais massivos.
Alguns nos perguntam: "Por que empreender essas lutas? Aonde vai nos levar? Já que o capitalismo está falindo, realmente não é possível nenhuma reforma e, portanto, não há alternativa". E, de fato, dentro desse sistema de exploração, não há nenhuma saída. Mas negar-se a sermos tratados como cachorros e lutar coletivamente, significa lutarmos pela nossa dignidade, tomar consciência de que a solidariedade existe nesse mundo de exploração e que a classe trabalhadora é capaz de fazer viver esse sentimento humano inestimável. Então começa a aparecer a possibilidade de outro mundo, um mundo sem fronteiras nem pátria, sem exploração nem miséria, um mundo feito para a humanidade e não para o lucro. A classe trabalhadora pode e deve ter confiança em si mesmo. É a única capaz de construir esta nova sociedade e reconciliar a humanidade consigo mesma, passando "do reino da necessidade ao reino da liberdade" (Marx).
O capitalismo é um sistema em falência...
Porém outro mundo é possível: o comunismo!
Corrente Comunista Internacional (24 de maio de 2010)
Panfleto distribuído em escala internacional.
Este artigo antecipou o que ia acontecer nos dias 10 e 24 de fevereiro: jornadas de greve com a participação massiva da classe operária que não quer mais sofrer os ataques violentos por parte do estado, com sindicatos que manobram para dividir os operários e esterilizar o descontentamento que vai se desenvolvendo.
A situação na Grécia é importante, pois constitui uma espécie de teste para a burguesia européia e até mundial. Muitos Estados vão ter que assumir, como o Estado grego, os mesmos ataques frontais contra as condições de vida da classe operária. Se tais medidas drásticas de austeridade conseguissem ser tomada neste país, significaria um sinal positivo para uma série de ataques através do mundo. É a razão pela qual, as burguesias francesa e alemã em particular trazem sua esperteza em termos de enquadramento da classe operaria. Ajudam o governo de Papandreu para controlar o terreno da luta pela intervenção dos sindicatos. Estes, ao anteciparem e organizarem jornadas de ação, esperam chegar a canalizar o descontentamento que se desenvolve.
Há um ano, houve três semanas de lutas massivas nas ruas da Grécia depois da morte de um jovem anarquista, Alexandros Grigoropoulos. Mas o movimento nas ruas, nas escolas e universidades teve grandes dificuldades para coordenar-se com as lutas nos locais de trabalho. Só houve uma greve, a dos professores primários, que, por uma manhã, apoiou o movimento. Apesar de que houve um período de agitação massiva e inclusive uma greve geral, ficou muito difícil estabelecer uma autêntica coordenação.[1]
No entanto, após o fim do movimento, as ações dos trabalhadores na Grécia continuaram até os dias atuais. Assim, o Ministro do Trabalho Andreas Lomberdos viu-se obrigado a advertir a burguesia internacional. Disse que as medidas programadas dentro dos três próximos para se levantar da crise da dívida nacional, que está ameaçando a continuidade da Grécia na zona euro, poderiam levar ao derramamento de sangue. "Não podemos fazer muito para evitar isso", acrescentou. O governo Papandreu tem falado em abrir conversações com todos os partidos e formar um governo de emergência nacional, uma das tarefas seria suspender os artigos da Constituição que garante o direito de reunião pública, de manifestações e greve.
Antes que o governo tentasse por em prática as medidas brutais para reduzir o déficit orçamentário de 12,7% para 2,8% até 2012, houve uma onda de lutas. Durante os últimos meses, estiveram em greve os trabalhadores portuários, os trabalhadores da Telecom, os garis, os médicos, enfermeiras, os professores das creches e escolas primárias, os taxistas, os trabalhadores da siderurgia e os empregados municipais. Nos dias 4 e 5 de fevereiro, houve uma greve de 48 horas de funcionários das alfândegas e fiscais que fecharam os portos e fronteiras. Ao mesmo tempo que camponeses realizavam bloqueios em alguns locais. As motivações imediatas de cada uma dessas lutas parecem diferentes, porém na realidade são todas respostas aos ataques que o Estado e o capital estão obrigados desenvolver para tentar fazer com que a crise seja paga pelos trabalhadores.
Antes do programa de austeridade ter sido promovido (e aprovado pela União Europeu), o Primeiro Ministro Papandreu advertiu que suas medidas iriam ser "dolorosas". Isto não produziu nenhuma graça para os bombeiros e outros trabalhadores do setor público que em 29 de janeiro desfilaram por Atenas expressando ruidosamente sua ira contra "o programa de estabilidade".
O plano de governo prevê durante três anos congelamento total dos salários dos trabalhadores do setor público e a redução de 10% dos abonos salariais. Estima-se que isso equivale a uma redução salarial entre 5 e 15%. Os funcionários que se aposentarem não serão substituídos, há uma previsão de aumentar a idade de aposentadoria para reduzir os custos da Seguridade Social.
O fato de que o Estado se vê obrigado a realizar ataques ainda mais graves contra a classe trabalhadora que, como vemos, não está calada, revela a profundidade da crise na Grécia. O ministro Lomberdos tem dito muito claramente que essas medidas "só poderão ser aplicadas de forma violenta". No entanto, esses ataques contra todos os trabalhadores, ao mesmo tempo, podem fazer que esses comecem a lutar de forma comum por reivindicações comuns.
Ao examinar atentamente o que fazem os sindicatos na Grécia, dá para perceber que sua ação tem como objetivo manter as lutas divididas. Nos dias 4 e 5 de fevereiro, houve uma greve oficial de 48 horas dos funcionários da alfândega e dos impostos que fecharam os portos e pontos de passagem nas fronteiras, enquanto alguns camponeses mantiveram seu blocagem. Em uma manchete bastante exagerada, o jornal inglês, The Independent (5/02/2010) alerta "As greves colocam a Grécia de joelhos" e descreve-as como "a primeira expressão de uma esperada erupção de greves barulhentas".
Os encarregados de impedir que as greves "coloquem a Grécia de joelhos" são os Sindicatos. Se examinarmos cuidadosamente o que estão programando como "lutas", podemos ver que suas ações estão destinadas a manter a divisão mais extrema: uma convocatória de greve no setor público em 10 de fevereiro com caminhada ao parlamento sob a chancela do sindicato ADEDY, porém em 11 de fevereiro, a greve é convocada pelo sindicato estalinista PAME, finalmente para o dia 24 de fevereiro, o maior sindicato do país -GSEE- convocou uma greve, somente no setor privado!
Com esse labirinto de ações divididas e dispersas, a classe operária não colocará de joelhos o Estado grego! O Jornal Financial Times de 05/02/2010 sublinha que os "os sindicatos tem reagido moderadamente aos planos de austeridade do governo o que reflete uma atitude de boa disposição em fazer sacrifícios para superar a crise econômica", embora ao mesmo tempo identifique "uma reação violenta contra o programa de austeridade do governo por parte dos sindicatos". Essa dupla linguagem dos sindicatos revela sua inquietação diante da crescente indignação da classe operária. Na realidade os sindicatos não se esquecem de repente de apoiar o governo socialista mas sabem que, com o desenvolvimento da cólera na classe operária, se não programarem algumas ações "de força" existe a possibilidade de que os operários comecem a desmascarar a peça teatral que sempre interpretam: diante dos operários mostram-se bastante radicais porém nas audiências governamentais e patronais dobram o pescoço e dizem sim a tudo. Até agora, os sindicatos mostraram uma imagem radical deles, romperam o "diálogo" com o governo no tema das pensões e programaram greves de uma ou dois dias em datas diferentes.... Está claro que a vontade dos sindicatos, em sintonia com as necessidades do capital nacional, é acordar toda ordem de sacrifícios, porém têm de levar em conta a reação da classe operária.
Para desenvolver sua luta, os trabalhadores não somente têm que desconfiar das manobras sindicais, também tem de ter em conta outros falsos amigos. O KKE (Partido Comunista Grego), por exemplo, que tem alguma influência, difamou o movimento há um ano qualificando os manifestantes de "provocadores" e "agentes secretos das forças estrangeiras"! Mas agora, de repente, tem mudado o discurso e proclama que "os trabalhadores e os agricultores tem direito de recorrer a todos os meios de luta para defender seus direitos". Outras forças de esquerda como os trotskistas tentam desviar o ódio operário para setores particulares do capital: gritam muito contra os fascistas e contra a influência do imperialismo americano, para que os trabalhadores não vejam que seu inimigo é todo o capital nacional e todos os imperialismos.
Os operários só podem construir sua solidariedade de classe, tomar consciência da sua força e desenvolver a confiança neles mesmos a partir das suas próprias lutas, desenvolvendo suas próprias formas de organização, estendendo e unificando seus combates. Tem de estar nas ruas fazendo parte de uma luta e uma organização coletivas. Em contrapartida, individualmente diante de um televisor vendo o espetáculo provocado por alguma bomba não adquirem nenhuma força nem nenhuma consciência, apenas um sentimento de passividade e de impotência. O som de uma assembléia massiva de trabalhadores, através da qual estes controlam e estende sua luta, provoca mais medo à classe dominante que o ruído de algumas bombas.
[1] Para ter um conhecimento desse movimento e as lições que aportou ver na Revista Internacional nº 136 "Las revueltas de la juventud en Grecia confirman el desarrollo de la lucha de clases [70]". Ver também: Grécia : uma declaração de trabalhadores em luta (https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2008/Grecia_uma_declaracao_de_trabalhadores_em_luta [71]); e Solidariedade com o movimento dos estudantes na Grécia (https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2008/Solidariedade_com_o_movimento_dos_estudantes_na_Grécia [72])
Nosso camarada Jerry Grevin, militante há muitos anos da seção dos Estados Unidos (EUA) da CCI, faleceu repentinamente vítima de um infarto do miocárdio em 11 de fevereiro de 2010. Sua morte prematura é uma trágica perda para nossa organização e para todos aqueles que o conheceram: sua família perdeu um marido, pai e avô querido e carinhoso; seus companheiros de trabalho na universidade onde ensinava perderam um estimado colaborador; seus camaradas militantes da CCI, na sua seção e em todas as demais do mundo, perderam um camarada muito querido e totalmente dedicado à luta comunista.
Jerry Grevin nasceu em 1946, no Brooklyn, no seio de uma família operária da segunda geração de imigrantes judeus. Seus pais estavam imbuídos de um espírito crítico que os levaram primeiro a entrar e depois sair do Partido Comunista dos EUA. O pai de Jerry ficou profundamente impactado pela destruição de Hiroshima e Nagasaki, da qual foi testemunha como membro das forças de ocupação Americana ao final da IIª guerra mundial; embora nunca tivesse falado dessa experiência e seu filho somente soube dela muito tempo depois, Jerry estava convencido de que isso havia aprofundado o espírito antipatriótico e antibelicista que herdou dos seus pais.
Uma das melhores qualidades de Jerry, que nunca perdeu, era sua ardente e firme indignação diante de todas as formas de injustiça, opressão e exploração. Desde muito cedo tomou parte energicamente das grandes causas sociais da sua época. Participou nas grandes manifestações contra a segregação e a desigualdade racial organizadas pelo CORE (Congress of Racial Equality) no sul dos EUA. Isso implicava em grande coragem, considerando que os ativistas e os manifestantes eram habitualmente golpeados e inclusive assassinados; e Jerry, considerando que era judeu, não era só um lutador contra os preconceitos raciais, mas ele mesmo era objeto desses preconceitos [1].
Para sua geração, especialmente nos EUA, o outro assunto vital do momento era a oposição à guerra do Vietnã. Exilado em Montreal no Canadá, Jerry foi impulsor de um dos vários comitês que se organizaram como parte do Second "Underground Railroad" [2] que surgiu para ajudar aos desertores do exército americano para sair dos EUA e continuar uma nova vida no exterior. Empreendeu essa atividade, não como um pacifista, mas com a convicção de que a resistência à ordem militar podia e devia ser parte da luta de classes mais ampla contra o capitalismo; foi assim que participou durante pouco tempo de uma publicação militante: Worker and Soldier (Operário e Soldado). Muitos anos depois, Jerry teve oportunidade de acessar uma cópia cuidadosamente censurada do seu prontuário do FBI: seu tamanho e detalhes - o arquivo foi regularmente atualizado enquanto ele foi militante da CCI - deram-lhe muita satisfação e induziram da sua parte comentários cáusticos dirigidos aos que pensam que a polícia e os serviços de inteligência não "prestam atenção" aos pequenos e insignificantes grupos de militantes atuais.
Quando do seu retorno aos EUA nos anos 70, Jerry encontrou trabalho como técnico em telefonia em uma das maiores companhia do ramo. Eram tempos turbulentos de luta de classes, já que a crise começou a ser sentida, e Jerry participou nas lutas, as grandes e as pequenas, no seu local de trabalho, ao mesmo tempo que participava em uma publicação chamada Wildcat, que reivindicava da ação direta e que era a publicação de um grupo que tinha o mesmo nome. Apesar de ter se decepcionado com o imediatismo de Wildcat e sua falta de perspectivas mais amplas - foi a busca dessa perspectiva que o levou a juntar-se à CCI -, esta experiência direta, na base, associada com seus poderes de observação brilhante e uma atitude de compreensão para com as fraquezas e os preconceitos de seus colegas de trabalho, deu-lhe um profundo conhecimento sobre como a consciência se desenvolve concretamente na classe trabalhadora. Como militante da CCI, muitas vezes, exemplificou sua argumentação política, com imagens da sua própria experiência.
Uma delas descrevia um incidente no sul dos EUA, onde o grupo de companheiros telefônicos ao qual pertencia tinha sido deslocado para um trabalho. Um operário negro do grupo era perseguido pela direção por um suposto delito leve; os de Nova York tomaram sua defesa o que provocou uma grande surpresa dos seus companheiros do Sul: "Por que se preocupar?", perguntavam, "é só um negro". A isso, um dos operários de Nova York respondeu energicamente que a cor não importava, que os operários eram todos operários em conjunto, e que tinham que defender-se um ao outro contra os patrões. "Mas o realmente notável", dizia Jerry, "é que esse tio, que era o mais decidido na defesa do operário negro, era conhecido no grupo de companheiros como um racista, que havia se mudado para Long Island para evitar viver em um bairro negro. Isso mostra claramente como a luta de classes e a solidariedade de classes constituem o único antídoto real ao racismo".
Outra história que gostava de contar era a do seu primeiro encontro com a CCI. Citamos as palavras de tributo pessoal de um camarada: "Como o ouvi dizer um milhão de vezes, trata-se de quando encontrou pela primeira vez um militante da CCI numa época em que descrevia-se como "um jovem imediatista e individualista" (como definia a si mesmo), que escrevia artigos só e os distribuía, e se deu conta de que a paixão revolucionária sem organização só pode ser uma ardente chama efêmera da juventude. Foi então quando o militante da CCI lhe questionou: "ok, você escreve e é marxista; porém o que você faz pela revolução?". Jerry contava constantemente essa história depois da qual não pôde dormir a noite toda. Porém foi uma noite em claro que foi muito frutífera". Muitos teriam se desmotivado diante do comentário abrupto da CCI, porém não Jerry. Pelo contrário, esta história (que contava divertindo-se diante do seu próprio estado de espírito de então) revela outra faceta do caráter de Jerry: sua capacidade de aceitar a força dos argumentos e mudar de idéia quando se sentia convencido por posições divergentes - uma inestimável qualidade para o debate político, que é a sabedoria de uma verdadeira organização política proletária.
Assim também, a contribuição de Jerry à CCI é inestimável. Seu conhecimento do Movimento Operário na América era enciclopédico; sua pena ágil e seu verbo animado tornaram viva essa história para nossos leitores nos seus muitos artigos para nossa imprensa dos EUA (Internationalism) e para a Revista Internacional. Também tinha uma notável compreensão da vida política e da luta de classes atual nos EUA, e seus artigos da atualidade, tanto na nossa imprensa como em nossos boletins internos, têm constituído aportes importantes para nossa compreensão da política da maior potência imperialista mundial.
Igualmente importante foi sua contribuição a vida interna e à integridade organizacional da CCI. Durante muitos anos, foi um pilar da nossa seção norte-americana, um camarada com o qual se podia sempre contar, quando as coisas se colocavam difíceis, para afrontá-las.. Durante os desalentadores anos 90, quando o mundo inteiro -mas talvez especialmente EUA- estava atolado na propaganda sobre a "vitória do capitalismo", Jerry nunca perdeu sua convicção na necessidade e na possibilidade de uma revolução comunista, nunca deixou de comunicar com seus próximos ou os raros novos contatos da seção. Sua lealdade à organização e aos seus camaradas foi inquebrantável, tanto mais quanto que, como colocava ele mesmo, era a participação na vida internacional da CCI o que lhe dava coragem e lhe permitia "carregar as baterias".
Em um plano mais intimo, Jerry era também um homem extraordinariamente divertido e um conversador particularmente dotado. Podia manter - e freqüentemente o fazia- uma platéia de amigos ou camaradas rindo durante horas sem parar, geralmente com histórias tiradas da sua própria observação da vida. Embora suas anedotas às vezes fossem dirigidas para a classe patronal ou a classe dominante, nunca eram cruéis ou prejudiciais. Pelo contrário, revelavam sua afeição e simpatia pelo gênero humano e ao mesmo tempo a habilidade rara demais para rir das suas próprias debilidades. Esta abertura para os demais era sem dúvida uma das qualidades que faziam de Jerry um eficaz (e estimado) professor - uma profissão a qual chegou já tarde na vida, quando tinha mais de quarenta anos.
Nosso tributo a Jerry estaria incompleto se não mencionássemos sua paixão pela música Zydeco (um gênero musical cuja origem vem dos negros da Luisiana, que ainda o interpretam). O dançador de Brooklyn era conhecido nos festivais de interior de Louisiana e estava orgulhoso de poder ajudar as novas bandas desconhecidas a poder encontrar lugares e uma audiência para tocar em NYC. Isso era típico de Jerry: entusiasta e enérgico em tudo que empreendia, aberto e cálido para com os demais.
A perda de Jerry se faz ainda mais sentida, porque seus últimos anos foram os mais felizes para ele. Estava encantado por ser avô de um neto que adorava. Politicamente via o desenvolvimento de uma nova geração de contatos ao redor da seção nos EUA da CCI e havia se lançado ao trabalho de correspondência e discussão com sua energia de costume. Essa dedicação começou a dar seus frutos nos Days of Discussion (Jornadas de Discussão) que aconteceram em Nova York apenas algumas semanas antes da sua morte, e que reuniu jovens camaradas de todo os Estados Unidos, muitos dos quais se encontravam pela primeira vez. Jerry estava encantado e considerava essa reunião, com todas as esperanças que representava para o futuro, um dos momentos culminantes da sua atividade militante. Assim, é conveniente deixar a última intervenção sobre Jerry para dois jovens camaradas que participaram nos Days of Discussion: Para JK "Jerry era um camarada de toda confiança e um amigo próximo... Os conhecimentos de Jerry sobre a história do Movimento Operário nos Estados Unidos; a profundidade da sua experiência pessoal nas lutas dos anos 70 e 80 e seu compromisso para manter viva a chama da Esquerda Comunista nos Estados Unidos nos anos difíceis que seguiram a chamada "morte do comunismo" são incomparáveis". Para J "Jerry foi uma espécie de mentor político para meu último ano e meio. E era também um amigo muito querido (...) Sempre tinha vontade de falar e ajudar aos camaradas mais jovens a aprender como intervir e compreender as lições históricas do Movimento Operário. Sua memória viverá em todos nós, na CCI e no restante da classe operária".
CCI
[1] Em um caso famoso em 1964, aconteceu um evento de uma triste repercussão: três jovens ativistas pelos direitos civis (James Chaney, Andrew Goodman e Michael Schwernwr) foram assassinados por policiais e membros da Ku Klux Klan. Dois ativistas eram judeus de Nova York.
[2] O nome de "Underground Railroad" (trem clandestino) era uma referência à rede de esconderijos e ativistas anti-escravistas que ajudava os escravos que escapavam para ir para o norte dos EUA e para o Canadá.
Publicamos a seguir documentos relativos a essa luta massiva dos trabalhadores na França contra os planos de austeridade que a burguesia quer nos impor. O que a caracterizou foi a determinação crescente por parte do proletariado em não aceitar essa lógica do capital em crise, o que se expressou notadamente através do caráter massivo das manifestações de rua, e uma maior abertura à propaganda dos revolucionários. Mais uma vez, as manobras sindicais acabaram por derrotar a luta, mas é só uma batalha que foi perdida e não a guerra de classes. Muitas lições devem ser tiradas para que possamos ficar mais fortes na próxima vez.
O artigo Marchar atrás dos sindicatos é, simplesmente, caminhar para a derrota expõe a dinâmica do movimento, em ligação e comparação com outros movimentos de importância que o antecederam e explicita como os sindicatos, em cumplicidade com o governo, aturam para fazer com que a luta se esgote.O movimento contra as mudanças nas oposentadorias já dura oito meses. Milhões de operários e funcionários de todos os setores têm se manifestado constantemente nas ruas. Ao mesmo tempo, desde o início de setembro, aqui e acolá aconteceram greves mais ou menos radicais, expressando uma insatisfação crescente e profunda. Esta mobilização na França, a primeira grande batalha desde a crise que sacudiu o sistema financeiro mundial em 2007-2008, não é só uma resposta à reforma das aposentadorias, mas, por sua amplitude e profundidade, é também uma clara resposta à violência dos ataques sofridos nos últimos anos. Por trás dessa reforma e dos ataques simultâneos que a acompanham e de outros em preparação, o que há é a queda mais grave na pobreza, na insegurança e na miséria mais sombria de todos os proletários e outras camadas da população. E esses ataques não vão cessar já que a crise econômica é inevitável. Está claro que esta luta anuncia outras e que se situa na continuidade daquelas que se desenvolveram na Grécia e na Espanha contra as medidas drásticas de austeridade impostas.
Entretanto, apesar da massividade impressionante da resposta, o governo não tem cedido diante dela. Pelo contrário, tem se mantido firme; dizendo que apesar da implacável pressão das ruas, seu compromisso de impor esses ataques terá continuidade futuramente; argumentando cinicamente a "necessidade" dessas medidas em nome da "solidariedade" entre as gerações. O que todo mundo sabe é que o que Sarkozy nos conta é uma grande mentira no limite da provocação.
Todavia, no momento em que se escreve este artigo o movimento retrocede e é um fato que a burguesia vai levar adiante a reforma. Porque isso? Como é que esta reforma passou, enquanto atacou com tal dureza nossas condições de vida e trabalho, e contra a qual toda população tem se expressado com força toda sua indignação e sua oposição, vai ser aprovada?
Porque o governo tinha certeza que os sindicatos, que sempre aceitaram o princípio da "reforma necessária" das aposentadorias, poderiam controlar a situação [1].
Comparemos esta situação com o movimento de 2006 contra o Contrato do Primeiro Emprego. Este movimento, que os meios de comunicação trataram desde o seu início, com o maior desprezo, como uma "revolta estudantil" sem futuro, acabou fazendo recuar o governo, que não teve outro remédio senão retirar o CPE.
Em primeiro lugar, porque os estudantes haviam se organizado em assembleias gerais, abertas a todo mundo, sem distinção de categorias ou setores, público ou privado, para trabalhadores com emprego e desempregados, etc. Este impulso de confiança nas capacidades da classe operária e na sua força, de profunda solidariedade na luta, criou uma dinâmica de extensão do movimento e lhe proporcionou uma massividade na qual envolvia todas as gerações. Desta maneira, enquanto nas assembleias gerais se desenvolviam debates e discussões profundas que não se limitavam a tratar dos problemas dos estudantes, no curso das manifestações, os próprios trabalhadores se mobilizaram, cada vez em maior número, com os universitários e os estudantes do ensino médio.
Contudo, também por causa da determinação e do espírito de abertura dos estudantes, ao arrastar partes da classe operária à luta aberta, conseguiram que os sindicatos não os derrotassem com suas manobras. Pelo contrário, enquanto os sindicatos, concretamente a CGT, se empenhavam em colocar-se à frente das manifestações para ter controle, em muitas ocasiões os estudantes do ensino médio e os universitários passaram por cima dos estandartes sindicais para deixar totalmente claro que não estavam dispostos a permanecer em segundo plano de um movimento que eles mesmo tiveram a iniciativa. Mas acima de tudo afirmavam sua vontade de controlar a luta por si mesmos, junto à classe operária, e de não se deixar manipular pelas centrais sindicais.
Um dos aspectos que mais inquietava a burguesia é que as formas de organização adotadas pelos estudantes em luta, assembleias gerais soberanas que elegiam seus comitês de coordenação e estavam abertas a todos, se estenderam como uma mancha de óleo entre os assalariados, se esses decidiam entrar em combate; igualmente, os sindicatos de estudantes sempre ficaram muito discretos. Não é casual que, no processo deste movimento, Thibault (líder sindical da CGT) afirmasse em mais de uma ocasião que os assalariados não tinham que receber lições dos estudantes sobre como devem se organizar e que, se estes têm suas assembleias gerais e suas coordenações, os assalariados tem os sindicatos e confiam, acima de tudo, neles.
Em tal contexto de determinação, cada vez mais comprovada, e diante do perigo de transbordamento dos sindicatos, Villepin tinha de soltar as rédeas; era o único recurso defensivo da burguesia que corria o risco de ser ultrapassado.
Por outro lado, agora, no movimento contra a reforma das aposentadorias, os sindicatos apoiados ativamente pela policia e pela mídia, desenvolveram os esforços necessários para ficar na primeira fila diante do que ocorria, para se organizar e atuar em conformidade.
Foi visto, desde o primeiro momento, o truque de dividir os trabalhadores com FO (Force Ouvrière) convocando manifestações no seu reduto, enquanto a intersindical, que organizou a jornada de ação de 23 de março, preparava, após negociar com o governo, a "armação" para fazer a reforma passar, com duas outras jornadas de ação nos dias 26 de maio e 24 de junho, justamente nas vésperas das férias de verão. Sabe-se que, habitualmente, convocar um dia de luta nessa época do ano é dar o tiro de misericórdia na classe operária para passar imediatamente um ataque de maior importância. Infelizmente, para a burguesia e os sindicatos, nesta última jornada de luta houve uma mobilização que não esperavam: mais que o dobro do que esperavam de operários, desempregados e precarizados, nas ruas. E, diferentemente das jornadas de lutas anteriores, nas quais segundo a imprensa se via certo desânimo, a ira e a exasperação dominavam o sentimento dos assistentes no dia 24 de junho.
Pressionados pela insatisfação evidente e porque começava a se desenvolver entre os operários a consciência do que significava esta reforma para as nossas condições de vida, os sindicatos viram-se obrigados a organizar outra jornada de ação, no dia 17 de setembro, após essa sua ladainha da unidade sindical; desde então, nenhum tem deixado de chamar jornadas de ação que várias vezes chegaram a reunir nas manifestações em torno de três milhões de trabalhadores.
Entretanto, essa unidade da "intersindical" foi uma armadilha montada para fazer a classe operária acreditar que os sindicatos estavam decididos a organizar uma ampla ofensiva contra a reforma e que se dotaram dos instrumentos para isso: jornadas de ação uma após as outras, nas quais se poderá ver e escutar, até aborrecer, os seus líderes de braços dados, bombardeando com os seus discursos sobre a "continuidade" do movimento e outras mentiras. O que temiam acima de tudo era que os trabalhadores se liberassem do aparelho de enquadramento sindical e eles mesmos se organizassem. Assim o expressou Thibault, secretário geral da CGT, que enviou uma mensagem ao Governo em uma entrevista ao Diário Le Monde de 10 de setembro: "Pode-se chegar a um bloqueio, a uma crise social de envergadura; é possível, porém não fomos nós que assumimos este risco", e deu o seguinte exemplo para explicar melhor o que estava em jogo e que os sindicatos deviam enfrentar: "Vimos uma PME (Pequena Média Empresa) na qual 40 trabalhadores de 44 estão fazendo greve. É um sinal. Quanto mais a intransigência dominar, mais a idéia de fazer greves repetidas estará presente nas cabeças"
Em outros termos, se os sindicatos não estão presentes, os próprios operários não só se organizam por eles mesmos, como também decidem o que querem fazer e farão massivamente. E é precisamente contra isto que as centrais sindicais e particularmente a CGT se dedicam com zelo exemplar. Como o fazem? Ocupando o terreno no campo social e nos meios de comunicação, impedindo com determinação qualquer expressão de solidariedade operária. Em resumo, uma propaganda intensa por um lado e, por outro, uma hiperatividade destinada a esterilizar e encaminhar o movimento para falsas alternativas com a finalidade de dividir e encaminhá-lo com mais facilidade para a confusão e a derrota.
O bloqueio das refinarias de petróleo é um exemplo evidente de como os aparatos sindicais fazem seu trabalho. Quando entram em luta os operários deste setor, diretamente confrontados através de medidas drásticas de redução de pessoal, cuja combatividade já era muito forte e entre os quais crescia a vontade de manifestar sua solidariedade ao conjunto da classe contra a reforma das aposentadorias, a CGT intervém transformando este alento de solidariedade numa greve que repele os operários. O fato certo é que o bloqueio das refinarias nunca é decidido em verdadeiras assembleias gerais, onde os trabalhadores expressam realmente seus pontos de vista e os discutem, mas por trás de uma série de manobras -os líderes sindicais são especialistas nesse trabalho- que vão apodrecendo as discussões e vão acabando em ações estéreis. Apesar do estreito cerco sindical, alguns operários desse setor têm tentado entrar em contato e estabelecer laços com operários de outros setores. Porém, globalmente atrelados nas engrenagens do lema "bloqueio até as últimas consequências", a maioria dos operários das refinarias são mantidos presos nessa lógica sindical dos "encerramentos nas fábricas", autêntico veneno utilizado contra o desenvolvimento do combate. Apesar de que os operários das refinarias tivessem como objetivo reforçar o movimento, ser um dos braços armados para fazer o Governo retroceder, o bloqueio dos depósitos, tal e como se desenvolveu sob a batuta sindical, tem se revelado como o que foi concebido: uma arma da burguesia e seus sindicatos contra os operários. Ao mesmo tempo, a imprensa burguesa tem deixado claro a todo momento seus ressentimentos e vertido, por editoriais e artigos, seu fel em abundância, criando um ambiente de pânico e agitando a ameaça de uma escassez generalizada de combustíveis, não só para isolar os operários das refinarias como para fazer impopular a greve; acusando-os de "tomar como refém as pessoas para impedir que cheguem ao trabalho ou saíssem de férias". Os trabalhadores deste setor ficaram, assim, isolados, fisicamente, enquanto queriam contribuir com sua luta solidária na construção de uma relação de forças que favorecesse a retirada da reforma. Este bloqueio particular se voltou contra eles mesmos e contra o objetivo que haviam se proposto inicialmente.
Houve numerosas ações sindicais semelhantes em setores como os de transporte e especialmente concentradas em regiões com poucos operários; quer dizer, ali onde era imprescindível para os sindicatos acabar com qualquer risco que implicasse extensão e colocação em prática da solidariedade. Necessitavam deixar visível diante dos expectadores que eram eles quem orquestrava as lutas mais radicais e que "regiam a orquestra" nas manifestações, quando na realidade estavam deteriorando a situação.
Como se lê num panfleto que a Assembleia Geral Interprofissional difundiu, com data de 6 de novembro: "A força dos trabalhadores não consiste unicamente em bloquear, aqui ou ali, algum depósito de petróleo ou alguma fábrica. A força dos trabalhadores está em reunir-se nos seus locais de trabalho sem distinção de trabalho, empresa, categoria,... e decidir todos juntos".
Por todas as partes têm-se visto os sindicatos agrupados em alguma "intersindical" para promover melhor seus simulacros de unidade, celebrar simulacros de assembleias gerais sem verdadeiro debate, circunscritas nas preocupações mais corporativas, enquanto publicamente pretendiam ter a vontade de combater "por todos" e "todos juntos", mas,... cada um organizado no seu local, atrás do seu chefete sindicalista, tudo fazendo para impedir que se formassem delegações massivas para buscar a solidariedade dos trabalhadores das empresas mais próximas geograficamente.
Em contrapartida, não apareceram na mídia os numerosos Comitês ou Assembleias Gerais interprofissionais (AG inter-pros) [2] que se formaram neste período, onde os objetivos perseguidos foram e continuam sendo organizar-se fora dos sindicatos, desenvolverem discussões realmente abertas a todos os proletários e ações autônomas nas quais toda classe operária possa reconhecer-se e implicar-se massivamente.
Os sindicatos não tem sido os únicos a obstaculizar ou impedir a possibilidade de uma mobilização dessas características, pois a polícia de Sarkozy, famosa pela sua pretensa debilidade e seu caráter anti-esquerda, tem sabido ser o auxiliar indispensável dos sindicatos com suas provocações em mais de uma ocasião. Um exemplo: os incidentes na Plaza Bellacour de Lyon onde a presença de um punhado de "provocadores" (possivelmente manipulados pela polícia) serviu de pretexto para uma violenta repressão policial contra centenas de jovens estudantes cuja maioria só buscava ir, ao final de uma manifestação, para discutir com os trabalhadores.
Aqui se vê o que a burguesia teme particularmente que contatos se estabeleçam se desenvolvam e multipliquem o máximo possível nas filas da classe operária, jovens, ativos ou desempregados.
Hoje, o movimento está a caminho de se esgotar e é necessário tirar as lições deste fracasso.
A primeira constatação é que os aparatos sindicais são os que permitiram que passasse o ataque aos operários; o que não é algo conjuntural. Eles são os que fizeram o trabalho sujo. Por isso, todos os "especialistas em conflitos", os sociólogos, o governo e o próprio Sarkozy, lhes felicitam por seu "sentido da responsabilidade". Sem dúvida, a burguesia pode felicitar-se de ter sindicatos "responsáveis", capazes de quebrar um movimento tão amplo e ao mesmo tempo fazer crer que fizeram todo o possível para ajudá-lo e que se desenvolva. Ao mesmo tempo, são os mesmos aparatos sindicais que conseguiram asfixiar e marginalizar as autênticas expressões da luta autônoma da classe operária e de todos os trabalhadores.
No entanto, este fracasso tem dado numerosos frutos. Apesar de todos os esforços e meios empregados pelo conjunto das forças da burguesia para tampar as brechas por onde aflora a ira da classe trabalhadora, não conseguiram levar para a derrota um só setor, como ocorreu em 2003 [3] na luta contra as aposentadorias do setor público. Com efeito, essa terminou em um duro retrocesso dos trabalhadores do Ensino Público após numerosas semanas em greve.
Este movimento está em via de acabar, porém "o ataque só começou. Perdemos uma batalha, mas não perdemos a guerra. A burguesia nos declara a guerra de classes e ainda estamos em prontidão para combater" (Panfleto intitulado Ninguém pode lutar, decidir e ganhar em nosso lugar", assinado pelos trabalhadores fixos e precarizados da Assembleia Geral Interprofissional da Gare de l'Est e de Ille de France (Paris); citado aqui acima). Para defendermos, não temos outra opção senão a de estender e desenvolver massivamente nossas lutas, tomando-as em nossas próprias mãos.
"Tomar a confiança em nossas próprias forças" deverá ser a consigna de amanhã.
Ww (6 de novembro de 2010)
[1] Todos os partidos de esquerda, que se somaram à mobilização para não entrar em total descrédito, estavam também de acordo com a imperiosa necessidade atacar a classe operária neste ponto, visto que, assim, haviam votado uma lei neste sentido.
[2] Consideramos esses últimos como autênticas expressões das necessidades da luta operária. Não tem nada a ver com as Coordenadoras, criadas e dirigidas pelos sindicatos e as organizações esquerdistas, e que nós denunciamos em repetidas ocasiões quando do movimento dos ferroviários em 1986 ou do movimento no setor de saúde em 1988.
[3] Ver Révolution Internationale (RI) nº335, 336 e 337
Diante da determinação de Sarkozy, suas mídias e o estado policial em aniquilar a luta atual e em desacreditá-la através de provocações as mais infames, nós, desempregados, aposentados, trabalhadores efetivos e precarizados, estudantes:
Afirmemos nossa unidade e tomemos nossas lutas em nossas próprias mãos!
A mobilização e o entusiasmo nesta última terça feira foram gigantescos. Temos o número, precisamos agora desenvolver a consciência do que podemos realmente vencer e impor a vontade das grandes massas só ao tomar nossas lutas em mãos próprias, através da discussão mais ampla, a fusão de todos os setores, o apoio dos estudantes, dos precários, dos desempregados, que:
Realizemos sem mais espera Assembléias Gerais abertas à participação de todos, decidamos ações comuns para estender massivamente a luta e a solidariedade!
Compartamos a experiência dos últimos piquetes e bloqueios, enviemos delegações massivas em apoio, coordenemos nossos esforços. Não já é tempo de propagar a luta nos setores mais massivos? Thales, Airbus? Nossa única violência é de querer generalizar a greve. A verdadeira violência é o Estado que a produz ou provoca.
Solidariedade com todas as vitimas da repressão!
Outros compartilham esta luta que travamos: na Espanha ou na Grécia, por exemplo. Em todos os países, a classe operária sofre as exigências do capital e sua sede irrefreável de acumulação.
Os proletários de todos os países esperam nossa vitoria para suas lutas futuras!
Encontremo-nos para compartilhar informações e perspectivas de luta na AG ao final da manifestação, mas também todas as noites desta semana neste lugar: Bolsa do trabalho, Praça Saint-Sernin. 18h00.
Pamfleto redigido por aposentados, desempregados, trabalhadores e estudantrse reunidos diante da Bolsa do trabalho. O dia 20 de outubro 2010.
saint-sernin.internationalisme.fr
Por iniciativa de trabalhadores ferroviários da estação do Leste e professores do mesmo distrito em Paris, se reuniram em 28 de setembro e 5 de outubro uma centena de assalariados (ferroviários, da educação, dos correios, de pequenas empresas do setor agro alimentar, da informática,...) de aposentados, desempregados, estudantes, sindicalizados ou não, trabalhadores imigrantes legalizados ou não, para discutir sobre as aposentadorias e mais amplamente sobre os ataques que todos sofremos e das perspectivas para fazer este governo recuar.Já fomos milhões que manifestaram e fizeram greve durante as últimas jornadas de ação. O governo permanece em não querer recuar. Só um movimento de massa será capaz de obrigá-lo a fazer isso. Esta idéia está caminhando através das discussões em torno da greve ilimitada, geral, prolongável a cada dia, de bloqueio da economia,....A forma que tomará o movimento somos nós que decidiremos. Cabe a nós construí-lo nos nossos lugares de trabalho com comitês de greve, em nossos bairros através de assembléias gerais soberanas. Devem reunir mais largamente possível a população trabalhadora, coordenada em escala nacional com delegados eleitos e revogáveis. Cabe a nós decidir os meios de ação, as reivindicações.... E a ninguém mais.Deixar decidir em nosso lugar os Chérèque (secretário geral da CFDT, Confederação Francesa do Trabalho, sindicato de obediência social-democrata), Thibault (secretário geral da CGT, Confederação Geral do Trabalho, maior sindicato na França, ligado ao Partido Comunista antes do afundamento do stalinismo) e Cia, é preparar novas derrotas. Chérèque está a favor de “42 anuidades” (de trabalho antes de se aposentar em lugar das 40 com que a reforma quer acabar). Não se pode confiar mais em Thibault que não reivindica o cancelamento da lei, que também bebia champanhe com Sarkozy enquanto milhares entre nós estavam sendo demitidos, e não fazia nada para impedir que fossemos derrotados separadamente. Não temos mais confiança nos pretendidos “radicais”. O radicalismo de Mailly (Força operária, outro sindicato social-democrata) é de apertar a mão de Aubry (secretária geral do partido socialista) na manifestação enquanto o partido socialista vota a favor das “42 anuidades”. Quanto a Sud-Solidários (o sindicato mais radical), à CNT (Confederação Nacional do Trabalho, sindicato anarquista reformista) ou a extrema-esquerda (Luta Operária – organização trotskista mais a esquerda na França; o NPA – Novo Partido Anticapitalista) não oferecem outra perspectiva que a unidade sindical. Quer dizer a unidade com aqueles que querem negociar recuos.Se hoje eles apóiam a greve “prolongável a cada dia” é, sobretudo, para evitar em ser superados. O controle das nossas lutas serve de barganha para eles para ser admitidos na mesa de negociações... por quê? Como é escrito na carta assinada por sete organizações sindicais incluindo da CFTC (Confederação dos trabalhadores Cristãos) até Sud-Solidários, para “fazer ouvir o ponto de vista das organizações sindicais na perspectiva de definir um conjunto de medidas justas e eficazes para assegurar a perenidade do sistema de aposentaria atual por repartição”. Será que se pode acreditar só um instante que pode haver um entendimento com aqueles que quebram nossas aposentadorias desde 1993, aqueles mesmo que empreenderam a demolição metódica das nossas condições de vida e de trabalho?A única unidade capaz de fazer este governo e as classes dominantes recuarem é de unir-se, setor público / privado, assalariados e desempregados, aposentados e jovens, sindicalizados ou não, trabalhadores imigrantes legalizados ou não, na base nas assembléias comuns e ao controlar nossas lutas próprias.Pensamos que cancelar a lei sobre as aposentadorias é uma exigência mínima. Isso não basta. Centenas de milhares de trabalhadores idosos sobrevivem já com menos de 700 euros por mês, enquanto centenas de milhares de jovens sem trabalho conseguem sobreviver só com o RSA (pensão mínima que se pode receber quando acaba a indenização de desemprego) e isso quando têm direito a ele. Para milhões entre nós, o problema crucial já é de poder comer, alojar-se e cuidar de sua saúde. Disso não queremos.Sim, os ataques às aposentadorias são a árvore que esconde a floresta. Desde o início da crise, as classes dirigentes com ajuda do estado jogam para a rua centenas de milhares de trabalhadores, suprimem milhares de postos nos serviços públicos. E isso só é um começo. A crise continua e os ataques contra nós vão se tornar mais e mais violentos. Para poder enfrentar isso, sobretudo, não devemos confiar em nenhum instante nos partidos de esquerda (PS, PCF, Partido de Esquerda – situado à esquerda do partido socialista). Sempre geriram lealmente os negócios da burguesia sem nunca questionar a propriedade privada industrial e financeira assim como a grande propriedade fundiária. Em relação a isso, vemos que na Espanha como na Grécia é a esquerda no poder que organiza a ofensiva do capital contra os trabalhadores. Para nossas aposentadorias, a saúde, a educação, os transportes e para não morrer de fome, os trabalhadores deverão apoderar-se das riquezas produzidas. Nesta luta, devemos nos apresentar não como os defensores de interesses categoriais e sim como defensores de toda a população trabalhadora, inclusive os pequenos camponeses, marinheiros pescadores, pequenos artesãos, pequenos comerciantes, que é jogada na miséria com a crise do capitalismo. Devemos arrastá-los e nos colocar a cabeça de todas as lutas para melhor atacar o capital. Quer sejamos assalariados, desempregados, precários, trabalhadores imigrantes ilegais, e qualquer que seja a nossa nacionalidade, é toda a população trabalhadora que está no mesmo navio.
Marcamos a assembléia intercategorial geral para discutir isso.
Publicamos a seguir um conjunto de textos relativos ao período de transição do capitalismo ao comunismo.
Publicamos a seguir um conjunto de textos relativos ao período de transição do capitalismo ao comunismo, centrados sobre duas questões essenciais:
Problemas do período de transição
O tema do período detransição exige a maior prudência. A quantidade de questões que se coloca éenorme, porém sobretudo a novidade dos problemas que se colocam ao proletariadoimpede que se elabore antecipadamente os planos da sociedade futura. Marx já senegava "dar receitas para as encruzilhadas do futuro" e RosaLuxemburgo insistia que "só temos pontos indicativos, e são essencialmentenegativos"
É claro que aexperiência histórica da classe (a Comuna de Paris em 1871, 1905, 1917-1923) eda contrarrevolução nos oferece luzes acerca desses problemas no sentido deprecisá-los, porém essas precisões consideram o quadro geral e não é a maneiradetalhada de resolver os problemas. O que podemos fazer é ver o marco geral naqual se colocam.
A) A história do homem viu uma sucessão de sociedadesestáveis ligadas a modos de produção e, portanto, a relações sociais estáveis.Essas sociedades se baseiam em leis econômicas dominantes inerentes a elas, estavamcompostas por classes sociais fixas, e se fundavam nas superestruturasapropriadas. Conhecemos a sociedade escravista, a "asiática", afeudal e o capitalismo.
B) O que distingue os períodos de transição dessassociedades estáveis, é a decomposição das estruturas antigas e a formação denovas, ambas ligadas ao desenvolvimento das forças produtivas e que favoreceramo surgimento de novas classes, novas idéias e instituições que lhescorrespondem.
C) O período de transição não tem modo de produção próprio,é uma mescla, na qual se combinam elementos do antigo modo e do novo. É operíodo durante o qual se desenvolve lentamente os germes do novo modo deprodução em detrimento do antigo até produzir o seu desaparecimento e criar onovo modo dominante de produção.
D) Entre duas sociedades estáveis, e isso também valeráentre o capitalismo e o comunismo, é imprescindível um período de transição. Oesgotamento das condições do velho mundo não significa automaticamente que hajaamadurecido e se tenha alcançado as condições da nova sociedade. Ou seja, adeterioração da antiga sociedade não implica automaticamente a maturação danova, mas só é a condição dessa maturação.
E) Decadência e período de transição são então duasnoções distintas. Todo período de transição pressupõe a decomposição do velhomundo cujos modo e relações de produção chegaram ao limite extremo dedesenvolvimento. Porém, toda decadência não significa necessariamente que tenhaque existir um período de transição que constitui uma superação, para um modode produção mais avançado.
Por exemplo, oesgotamento do modo asiático não abriu o caminho para sua superação por outromodo de produção social. Igualmente, a Grécia antiga não tinha as condições históricaspara a superação do escravismo. Também foi o mesmo para o Egito antigo.
Para que possamosressaltar o caráter do período de transição do capitalismo para o comunismo e oque distingue este período de todos os que antecederam, temos de apoiarmos emuma idéia fundamental: um período de transição resulta do próprio caráter danova sociedade que vai surgir. Então é necessário por em evidência asdiferenças fundamentais que distinguem a sociedade comunista das demais.
A) Todas as sociedades anteriores (exceto o comunismoprimitivo) estavam divididas em classes.
B) Todas se baseavam na propriedade e na exploração dohomem pelo homem.
C) Todas as sociedades de classe se fundamentavam nainsuficiência do desenvolvimento das forças produtivas em relação às necessidadesdos homens. Por isso estão dominadas por forças naturais e sócio-econômicascegas. A humanidade está alienada à natureza e, consequentemente, às forçassociais às quais ela deu a luz.
D) Todas as sociedades passadas arrastaram vestígiosanacrônicos dos sistemas econômicos, das relações sociais, das idéias e preconceitosdas que as antecederam. Isso se deve a que todas elas se baseavam napropriedade privada e na exploração do trabalho. Por isso uma nova sociedade declasse podia nascer e desenvolver-se no marco da antiga.
Por isso a novasociedade pode, enquanto vencedora, conter no seu interior e acomodar-se comvestígios da antiga sociedade derrotada, das antigas classes dominantes, atépode associá-las ao poder político. Assim foi como puderam subsistir nocapitalismo relações escravistas ou feudais, e que a burguesia compartilhoudurante bastante tempo seu poder com a nobreza.
E) Todas as sociedades anteriores não só estavamdivididas em classe, como também se fundavam necessariamente em divisõesgeográficas regionais ou políticas nacionais. Isso se deve, sobretudo, às leisdo desenvolvimento desigual que permitem que a evolução da sociedade, mesmo se orientandoglobalmente numa mesma direção, seja realizada de forma relativamente independente e separada e nos seus diversos setores e com defasagens que podemalcançar séculos. Esse desenvolvimento desigual, por sua vez, é devido aopequeno desenvolvimento das forças produtivas: há uma relação direta entre essenível de desenvolvimento e a dimensão na qual se realiza. Só é mediante asforças produtivas desenvolvidas pelo capitalismo que pela primeira vez nahistória existe uma interdependência real no mundo inteiro.
F) Ao estar baseadas na propriedade privada, na divisãoem classes e zonas geográficas, a produção das sociedades anteriores vainecessariamente para a produção de mercadorias com tudo que isso implica nonível de concorrência e da anarquia da produção e do consumo, reguladosunicamente pela lei do valor através do mercado e do dinheiro.
G) Por ser sociedades divididas em classe e, por tanto,em interesses antagônicos as sociedades anteriores não podiam sobreviver senãocriando um órgão especial aparentemente por cima das classes, porémdeterminando pela sua própria conservação e a dos interesses da classedominante: o ESTADO.
Característicasdos períodos de transição
O período de transiçãopara o comunismo está impregnado constantemente pela sociedade da qual nasce(pré-história da humanidade), e também pela sociedade da qual o período detransição é portador (a nova história da sociedade humana). Isso é o quedistingue o período de transição para o comunismo de todos os períodos detransição anteriores.
A) Os períodos de transição anteriores
Até agora, os períodosde transição tiveram em comum o de ter se desenvolvido no próprio seio daantiga sociedade. O reconhecimento e a proclamação definitiva da novasociedade, sancionados (reconhecimento e proclamação são sancionados) pelosalto da revolução, vem ao cabo do processo transitório. Isso por duas razões:
B)O período de transição para o comunismo
a) Por ser uma ruptura total com a exploração e a divisão dasociedade em classes, a transição para o comunismo exige uma ruptura radicalcom a antiga sociedade e só pode desenvolver-se fora dela .
b) O comunismo nãotem um modo de produção submetido a leis econômicas cegas opostas aoshomens, mas está baseado na organização consciente da produção permitida pelaabundância de forças produtivas que não pode oferecer a antiga sociedadecapitalista.
C) O que distingue o período de transição para o comunismo
Em conseqüência do quedissemos podemos tirar algumas conclusões:
I) O período de transição para o comunismo não pode iniciar-se senãofora do capitalismo. A maturação das condições do socialismo exige previamentea destruição da dominação política, econômica e social da burguesia sobre asociedade.
II) O período de transição só pode ser aberto em escala mundial
III) Contrariamente aos períodos de transição precedentes, asinstituições essenciais do capitalismo, Estado, polícia, exército, diplomacia,não podem ser utilizados tal como são pelo proletariado.
IV) A abertura do período de transição caracteriza-se em conseqüênciaessencialmente pela derrota política do capitalismo e o triunfo da dominaçãopolítica do proletariado.
Osproblemas do período de transição
A) A generalização mundial da revolução é a condiçãoprévia à abertura do período de transição. Dessa generalização depende toda aquestão das medidas econômicas e sociais; a propósito destas devemosparticularmente nos acautelar de "socializações", isoladas em umpaís, uma região, uma fábrica ou qualquer grupo de homens. Ainda depois doprimeiro triunfo do proletariado, o capitalismo mantém sua resistência através daguerra civil. Durante esse período, tudo depende da destruição da força docapitalismo. Esse primeiro objetivo condiciona a evolução do futuro.
B) Uma única classe éportadora do comunismo: o proletariado. Outras podem ser arrastadas na luta queleva o proletariado contra o capitalismo, porém como classes não podem serprotagonistas ou portadoras do comunismo. É por isso que temos de destacar uma tarefaessencial: a necessidade que tem o proletariado de não confundir-se nemdissolver-se com as demais classes. Durante o período de transição, enquantoclasse revolucionária historicamente responsável pela tarefa de criar umasociedade sem classes, o proletariado só pode assumi-la se afirmando comoclasse autônoma e politicamente dominante da sociedade. Ele só tem um programado comunismo que tenta realizar e para isso haverá de conservar em suas mãostoda a força política e toda força armada: tem o monopólio das armas.
Para levar isso acabo ele tem estruturas organizadas, os Conselhos Operários, baseados nas fábricas,e o Partido revolucionário.
A ditadura do proletariado podedessa maneira ser resumido assim:
C) Quais são as relações do proletariado com as demaisclasses da sociedade?
I) Em relação à classe capitalista e aos antigos dirigentes da sociedadecapitalista (deputados, altos funcionários, exército, polícia, igreja...),supressão de qualquer direito cívico e exclusão de qualquer vida política;
II) Em relação aos camponeses e os artesãos, constituídos por produtoresindependentes e não assalariados e que são a maior parte da sociedade, oproletariado não poderá eliminá-los totalmente da vida política, como também davida econômica. Terá necessariamente que buscar um modus vivendi com essas classes, enquanto desenvolvaa seu respeito uma política de dissolução e de integração nas filasproletárias.
Embora a classetrabalhadora tenha a obrigação de tomar em conta essas classes na vidaeconômica e administrativa, não deverá dar-lhes possibilidade de umaorganização autônoma (imprensa, partido, etc.). Essas classes e camadas sociaisnumerosas terão que ser integradas em um sistema de administração soviéticoterritorial. Seus membros se integrarão na sociedade como cidadãos, não comoclasses.
III) Em relação às classes sociais que têm no capitalismo atual um lugarparticular como as profissões liberais, os técnicos, os funcionários públicos,os intelectuais (o que é chamado de "nova classe média") a atitude doproletariado será baseada sobre os critérios seguintes:
D) A sociedade transitória continua sendo uma sociedade dividida emclasses e, como tal, faz surgir necessariamente essa instituição própria atodas as sociedades divididas em classe: o Estado.
Com todas as amputaçõese medidas de precaução que se haverá de impor a essa instituição (funcionárioseleitos e revogáveis, salários iguais ao dos operários, unificação entre legislativoe executivo, etc.) e que reduzem esse Estado a um semi-Estado, nunca há de seperder de vista seu caráter histórico anticomunista e, portanto, antiproletário,essencialmente conservador. O Estado continua sendo o guardião do status quo.
Reconhecermos ainevitabilidade dessa instituição que o proletariado terá que utilizar como ummal necessário, tanto para acabar com a resistência da classe capitalistaderrubada, como para preservar um marco administrativo e político unido a umasociedade que continua dividida por interesses antagônicos.
Também temos querechaçar categoricamente a idéia de transformar esse estado em bandeira e motordo comunismo. Por conta do seu próprio caráter ("burguês por essência"segundo Marx), esse estado continua sendo essencialmente um órgão deconservação do status quo e um freio para o comunismo. Não pode então seridentificado com o comunismo nem a classe que o leva em si, o proletariado. Pordefinição, essa é a classe mais dinâmica da história visto que carrega odesaparecimento de todas as classes, inclusive ela mesma. Por isso, aindautilizando o Estado, o proletariado expressa sua ditadura não através dele, massobre ele. Por isso, igualmente, o proletariado não há de reconhecer o menordireito a essa instituição de intervir através da violência dentro da classetrabalhadora nem em arbitrar as discussões e a atividade dos organismos daclasse: conselhos e partido revolucionário.
Sem ter a pretensão de fazer umplano detalhado dessas medidas, podemos já prever as linhas gerais:
Esta parte contêm três textos. O primeiro evidencia os ensinamentos que se pode tirar da experiência da revolução rússa, notadamente: "A derrota da revolução russa foi, em última instância, produto da derrota da revolução mundial e não da ação do Estado. Entretanto, nesse combate contra a contrarrevolução, a experiência pôs em evidência que o aparato do Estado e sua burocracia não eram nem o proletariado nem também a ponta de lança da sua ditadura... menos ainda uma instituição à qual a classe operária em armas deveria se submeter em nome de uma suposta 'natureza proletária'."
Os dois textos posteriores constituem contribuições contraditórias dentro de um debate que ocorreu na CCI nos anos 70, a propósito da natureza do Estado de transição:
I - Introdução
Antes da experiência da Revolução na Rússia, os marxistas tinham uma concepção da relação entre proletariado e Estado durante o período de transição do capitalismo ao comunismo que era relativamente simples em sua essência.
Sabia-se que esta transição deveria começar com a destruição do poder político da burguesia e que essa fase não fazia mais que preceder à sociedade comunista, preparando-a, sociedade que, por sua vez, não teria nem classes, nem poder político, nem Estado. Sabia-se que no curso desse movimento, a classe operária teria que instaurar sua ditadura sobre o resto da sociedade. Sabia-se também que durante este período que contém ainda todos os estigmas do capitalismo, em particular pela subsistência da penúria material e das divisões da sociedade em classes, subsistiria inevitavelmente um aparato do tipo estatal. Sabia-se, por fim, sobretudo graças a experiência da Comuna de Paris de 1871, que este aparato não podia ser o Estado burguês "conquistado" pelos operários, mas que seria, na forma e conteúdo, uma instituição transitória, essencialmente diferente de todos os Estados que tinha existido até então. Porém, a respeito do problema da relação entre a ditadura do proletariado e este Estado, entre a classe operária e esta instituição produto das heranças do passado, acreditava-se que era possível resolver o problema com uma ideia simples: ditadura do proletariado e este Estado do período de transição são uma única e mesma coisa, classe operária e Estado são idênticos. De certo modo, acreditava-se que, durante o período de sua ditadura, o proletariado poderia fazer sua a célebre fórmula de Luís XV: "O Estado sou eu".
Dessa forma, no Manifesto Comunista se descreve este Estado como "o proletariado organizado em classe dominante": do mesmo modo, na crítica ao Programa de Gotha, Marx escrevia: "Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado." [1]
Mais tarde, às vésperas de outubro de 1917, Lênin, em pleno combate contra a social-democracia, que se comprazia na lama da primeira carnificina mundial ao participar dos governos dos Estados burgueses beligerantes, voltava a defender com força esta ideia no O Estado e a Revolução: "os marxistas proclamam a necessidade de o proletariado se apoderar do poder político, destruir totalmente a velha máquina do Estado e substituí-la por uma nova, consistindo na organização dos operários armados..." [2]
Ou também: "A revolução consiste em que o proletariado demole o "aparelho administrativo" e o aparelho do Estado inteiro, para substituí-lo por um novo, isto é, pelos operários armados" [3].
Dessa visão resultava naturalmente que o Estado do período de transição não podia ser outra coisa que a expressão mais acabada, mais eficaz, da classe operária e do seu poder. Tudo parecia bastante simples na relação entre Estado e proletariado visto que era uma única e mesma coisa. A burocracia estatal? Não existiria ou seria um problema sem maior importância visto que os próprios operários (até uma cozinheira, dizia Lênin) assumirão sua função. Imaginar seriamente a possibilidade de um antagonismo, de uma oposição, entre classe operária e Estado sobre o terreno econômico? Impossível!
Como poderia o proletariado fazer greve contra o Estado considerando que o Estado seria ele mesmo? Como poderia o Estado, por seu lado, tentar impor algo contrário aos interesses econômicos da classe operária visto que é sua emanação direta? Imaginar um antagonismo a nível político pareceria ainda mais improvável: Não devia o Estado ser o instrumento mais acabado da ditadura do proletariado? Como poderia expressar forças contrarrevolucionárias visto que, por definição, devia ser a ponta de lança do combate do proletariado contra a contra-revolução?
A Revolução Russa desmente categoricamente esta visão demasiada simples, mas que inevitavelmente predominava no movimento operário internacional que, com exceção da Comuna de Paris, não havia enfrentado nunca realmente os problemas do período de transição em toda sua complexidade.
Assim, logo após a tomada do poder em outubro de 1917, proclama-se o "Estado proletário"; os melhores operários, os combatentes mais experientes foram colocados à frente dos principais órgãos do Estado; se proibiram as greves; se prometeu aceitar todas as decisões dos órgãos do Estado como expressão das necessidades globais do combate revolucionário; finalmente, escreveu-se nas leis e na própria carne da revolução nascente a identidade tão proclamada entre Estado e classe operária.
No entanto, desde os primeiros momentos, os imperativos da subsistência social começaram a contradizer sistematicamente os fundamentos de tal identificação. Diante das dificuldades que tinha de enfrentar a revolução russa progressivamente sufocada pelo seu isolamento internacional, o aparato do Estado passou a ser não um corpo idêntico aos "operários armados" nem a encarnação mais global da ditadura do proletariado, mas, pelo contrário, um corpo de funcionários muito distinto do proletariado e uma força cujas tendências inatas não conduziam à revolução comunista e sim, ao contrário, ao conservadorismo. A burocratização dos funcionários encarregados da organização da produção, da distribuição, da manutenção da ordem, etc. se desenvolveram desde os primeiros meses sem que ninguém, nem mesmo os primeiros responsáveis do partido Bolchevique à frente do Estado - ainda que o combatessem - nada puderam fazer contra ela, e, sobretudo, sem que se pudesse reconhecer nessa burocracia estatal uma força contrarrevolucionária visto que era "o Estado proletário".
Tanto a nível econômico quanto político foi se criando progressivamente uma separação entre a classe operária e o que se supunha que era "seu" Estado. Já nos finais do ano de 1917, acontecem greves econômicas em Petrogrado; em 1919 correntes operárias comunistas de esquerda começam a denunciar a burocracia estatal e sua oposição aos interesses da classe operária; em 1920-21, no fim da guerra civil, esses antagonismos explodiram abertamente nas greves de Petrogrado de 1920 e na insurreição de Krondstadt de 1921, reprimida pelo Exército Vermelho. Resultado, no combate pela manutenção do seu poder, o proletariado na Rússia não encontrou no Estado o instrumento que esperava mas, ao contrário, uma força de resistência que se transformou rapidamente no principal protagonista da contrarrevolução.
A derrota da revolução russa foi, em última instância, produto da derrota da revolução mundial e não da ação do Estado. Entretanto, nesse combate contra a contra-revolução, a experiência pôs em evidência que o aparato do Estado e sua burocracia não eram nem o proletariado nem também a ponta de lança da sua ditadura... menos ainda uma instituição à qual a classe operária em armas deveria se submeter em nome de uma suposta "natureza proletária".
É certo que a experiência do proletariado na Rússia achou-se condenada à derrota a partir do momento em que não conseguiu estender-se mundialmente. É justo dizer que a potência do antagonismo Estado-proletariado foi uma manifestação da debilidade do proletariado mundial e da inexistência das condições materiais para um desenvolvimento verdadeiro da ditadura do proletariado. Porém, novamente seria criar ilusões ao acreditar que só a amplitude dessas dificuldades explica esse antagonismo e que, em melhores condições, a identificação entre ditadura do proletariado com o Estado do período de transição seria válida. O período de transição é uma fase em que o proletariado enfrenta uma dificuldade importante: estabelecer novas relações sociais enquanto, por definição, as condições materiais para o desenvolvimento daquelas estão somente instaurando sob a ação revolucionária dos operários em armas. Esta dificuldade desenvolveu-se na Rússia sob suas formas mais extremas, porém nem por isso deixa de ser essencialmente a mesma a que encontrará o proletariado amanhã. A importância das barreiras que encontrou a ditadura do proletariado na Rússia não faz dessa experiência uma exceção que confirmaria a regra da identidade proletariado-Estado do período de transição, mas, pelo contrário, um fator que permitiu colocar em evidência, sob suas formas mais agudas, a inevitabilidade e a natureza do antagonismo que opõe a força revolucionária proletária à instituição de manutenção da ordem durante o período de transição.
Desde sua constituição, a CCI, continuando os trabalhos da Esquerda Italiana ("Bilan") entre as duas guerras e os do grupo "Internationalisme" nos anos 40, tem empreendido a complexa e indispensável tarefa de retomar, revisar e completar a compreensão revolucionária da relação entre Estado e proletariado durante o período de transição, à luz da experiência russa (ver os números 1, 2, 3 e 6 da Revista Internacional).
Dentro do marco desse esforço, publicamos aqui, por uma parte, a carta de um companheiro que reage criticamente às teses desenvolvidas sobre este tema na resolução adotada pelo II Congresso de "Revolution Internationale", seção na França da CCI (ver a Revista Internacional nº 6) e, por outra parte, uma resposta às críticas da carta.
CCI
[1] Fonte: https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm#i1 [74]
[2] O Estado e a Revolução (Cáp. VI, 3)
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/index.htm [75]
[3] Idem. (Cáp. VI, 3)
O marxismo, na medida em que é conhecimento cientifico da sucessão dos modos de produção e das formas sociais de produção no passado, é também previsão das etapas e das características fundamentais e indissociáveis da última forma social - o comunismo - que sucederá a que hoje vivemos. As formas econômicas se transformam segundo um processo ininterrupto na história da sociedade humana. No entanto, este processo se traduz na forma de períodos de convulsões e de lutas, durante as quais o enfrentamento político e armado das classes rompe as barreiras que impedem o nascimento e o desenvolvimento acelerado da nova forma; é o período de luta pelo poder, cujo fim é uma ditadura da força de amanhã sobre a de ontem (ou o inverso, até uma nova crise). O revisionismo socialista da penúltima guerra pretendia apagar a teoria de Marx e Engels sobre a ditadura. Corresponde a Lênin o mérito de ter voltado a colocá-la no caminho em "Estado e a Revolução", onde ao restaurar completamente o marxismo, leva até as últimas conseqüências o dever teórico da destruição do Estado burguês. Lênin, em perfeita conformidade com a doutrina marxista, coloca, pois, o marco que permite distinguir as fases sucessivas na transição do capitalismo ao comunismo.
O proletariado conquistou o poder político e, como todas as demais classes no passado, impõe sua própria ditadura. Ao não poder abolir de uma vez só as demais classes, o proletariado as põe fora da lei. O que quer dizer que o Estado proletário controla a economia que contém, ainda que em constante declínio, não só uma distribuição mercantil como também formas de apropriações privadas dos produtos e dos meios de produção tanto individuais como associados. Ao mesmo tempo, com suas intervenções despóticas, abre o caminho que leva à fase inferior do comunismo. Pode-se, portanto, comprovar que, contrariamente ao que dizia R. sobre uma pretendida complexidade da concepção do Estado e do seu papel na teoria de Lênin, a essência dessa concepção é muito simples: o proletariado, ao alçar-se em classe dominante, cria seu próprio órgão de Estado, diferente dos precedentes pela forma, porém que conserva essencialmente a mesma função: opressão das demais classes, violência concentrada contra elas para que triunfem seus interesses históricos enquanto classe dominante, embora estes coincidam a longo prazo com os da humanidade.
Nesta fase, a sociedade dispõe já de produtos em geral repartindo-os entre seus membros segundo um plano estabelecido de repartição oficialmente determinada. Para isto, já não se necessita intercâmbio mercantil nem de moeda: a distribuição é feita centralmente sem intercâmbio de equivalentes. Nesta fase, o trabalho não só é obrigatório, tem que contabilizar também o tempo efetivamente realizado com certificados que o comprove: os conhecidos "bônus de trabalho" tão discutidos que têm a característica de não poder ser acumulados, de maneira que qualquer tentativa de acumulação só pudesse ser uma perda, com uma parte do trabalho efetuado que não recebe nenhum equivalente. A lei do valor deixa de existir porque "a sociedade não lhe atribui nenhum valor aos produtos" (Engels). A este segundo estágio sucede o comunismo superior, sobre o qual não vamos nos estender.
Com já vimos, o marxismo coloca, no início da fase de transição e como premissa necessária, a revolução política violenta da qual surge inevitavelmente a ditadura de classe. Será pelo exercício desta ditadura que, com intervenções despóticas apoiadas pelo monopólio das forças armadas, o proletariado atualizará as profundas "reformas" que destruirão até o último vestígio da forma capitalista.
Até aqui, parece que não há nenhuma divergência. As dificuldades começam quando se afirma que "o Estado tem uma natureza histórica anticomunista e antiproletária" e "essencialmente conservadora" e que, portanto, sua "ditadura (a do proletariado) não pode encontrar em uma instituição conservadora por excelência sua própria expressão autêntica e total" (RI nº.17 p.33). Aqui o anarquismo (e perdoem-me a brutalidade das palavras), depois de ter sido expulso pela porta, entra pela janela. De fato, aceita-se a ditadura do proletariado, porém se esquece que o Estado e ditadura, ou poder exclusivo de uma classe, são sinônimos.
Antes de criticar mais especificamente algumas afirmações do texto a que nos referimos, quero recordar as linhas fundamentais da teoria marxista sobre o Estado. Cada Estado se define, segundo Engels, por um território preciso e pela natureza da classe dominante. Define-se, pois, por um lugar, a capital onde se reúne o governo, que para o marxismo, é o "comitê de administração dos interesses da classe dominante". Na fase que vai do poder feudal ao poder burguês, se forma a teoria política - típica da mistificação burguesa - que em todas as revoluções históricas, tem dissimulado a natureza da passagem do feudalismo e capitalismo. A burguesia na sua consciência mistificada afirma que destrói o poder de uma classe não para substituí-la por outra classe, mas para construir um Estado que funda seu próprio poder sobre a ordem e a harmonia entre as exigências de "todo um povo". Porém em todas as revoluções, uma série de fatos evidenciaram a robustez e a dinâmica revolucionária marxista baseada nas classes, visto que a ditadura de uma classe vem sempre acompanhada da violação da liberdade das demais e também de violências exacerbadas contra seus partidos, até chegar ao terror, fato que também é inseparável das revoluções puramente burguesas.
Um dos primeiros atos que tem de cumprir é a demolição do antigo aparato de Estado que a classe que tomou o poder deve empreender sem vacilações. São essas lições que tirou Marx da Comuna de Paris, a qual, ao instalar-se no "Hotel de Ville", opôs o Estado ao Estado armado, afogou no terror (antes que fosse afogada por sua vez)- para os indivíduos da classe inimiga. E "se houve erro não foi o de ter sido demasiado ferozes, foi o de não haver sido o suficiente".
Dessa importante experiência do proletariado, Marx tirou o ensinamento fundamental, o qual não podemos renunciar, de que as classes exploradoras necessitam da dominação política para manter a exploração: e que o proletariado necessita dela para suprimi-la por completo. A destruição da burguesia não é realizável senão através da transformação do proletariado em classe dominante. Isto quer dizer que a emancipação da classe trabalhadora é impossível dentro dos limites do Estado burguês. Este tem que ser derrotado na guerra civil, e seu funcionamento destruído. Após a vitória revolucionária, tem que surgir outra forma histórica, a ditadura do proletariado, que abrirá o caminho para o período histórico em que surge a sociedade socialista e se extingue o estado.
Depois dessa breve afirmação das que são para mim as bases da doutrina marxista do Estado e da passagem de um sistema social a outro e, mais especificamente, do capitalismo ao comunismo, vou deter-me no texto da resolução relativo ao período de transição. O que salta aos olhos de tal documento é antes de tudo o caráter contraditório de certas afirmações.
Se de um lado se afirma (§ 2) "que a tomada o poder político geral na sociedade por parte do proletariado precede, condiciona e garante a continuidade da transformação econômica e social", não se toma em conta o fato de que tomar o poder político significa instaurar uma ditadura sobre as demais classes e que o Estado é e foi sempre o órgão (com diferenças nas suas características: funcionamento, divisão dos poderes, representação, segundo o modo de produção e as classes cujo domínio representa) da ditadura de uma classe sobre as demais.
Além disso, quando afirma (§ 7) que "toda esta organização estatal exclui categoricamente qualquer participação das classes e camadas sociais exploradoras que se verão privadas de todo direito político e civil", não dá conta de que todas as características justas deste Estado, expressas nos demais pontos do mesmo parágrafo, e, sobretudo, as características já citadas sobre a representação política de uma só classe, não são simples diferenças formais, mas que destroem todas as afirmações que servem para identificar o Estado da burguesia e, por isso, dão uma base à identidade "que tanto se trata de combater" entre Estado e ditadura do proletariado.
Porém, sobre que bases se chega a afirmar a necessidade absoluta para o proletariado de não identificar sua própria ditadura e o Estado do período de transição? Principalmente porque se afirma (§ 8) que o Estado é uma instituição conservadora por excelência. Isto beira o anti-historicismo do anarquismo e sua oposição de princípio ao Estado. Os anarquistas tiram sua conclusão da necessidade de libertar-se de sua Senhoria "a Autoridade". "Revolution Internationale" claro que não chega a esse ponto, porém, exatamente como os anarquistas, julga o Estado conservador e reacionário em qualquer época social, em qualquer área geográfica, qualquer que seja a direção para a qual se orienta, e, portanto, qualquer que seja a dominação de classe, de que é expressão, independentemente do período histórico durante o qual essa dominação se exerce.
Nada tem a ver isso com o marxismo. Para o marxismo, o estado é antes de tudo uma instituição diferente segundo as épocas históricas, tanto por suas características formais como por suas funções próprias. De fato, o materialismo do marxismo nos ensina, se nos referimos à história, que no passado e nas fases revolucionárias, era só uma classe conquistar o poder, esta estabiliza o tipo de organização estatal que melhor corresponde à defesa dos seus interesses de classe. O Estado assumia então a função revolucionária que tinha a classe - então revolucionária - que o havia instituído. Quer dizer: facilitar, com suas intervenções despóticas -depois de haver destruído pelo terror a resistência das velhas classes- o desenvolvimento das forças produtivas, varrendo os obstáculos que entorpecem seu caminho, estabilizando e impondo com o monopólio das forças armadas um marco de leis e de relações de produção que favoreçam esse desenvolvimento e respondendo aos interesses da nova classe no poder. Por exemplo, para citar só um, o Estado francês de 1793 assumiu uma função eminentemente revolucionária.
Expressa-se outro raciocínio no mesmo parágrafo do ponto C: "o Estado do período de transição conserva ainda todos os estigmas de uma sociedade dividida em classes". Esse é um raciocínio muito estranho, visto que tudo que emana da sociedade capitalista conserva seus estigmas. Não somente o Estado, como também o proletariado organizado nos Sovietes, pois foi desenvolvido e foi educado sob a forte influência da ideologia conservadora do sistema capitalista. Só o partido, embora não constitua uma ilha de comunismo dentro do capitalismo, está menos marcado por esses estigmas visto que nele se fundem "Vontade e consciência que se convertem em premissas da ação, como resultado de uma colaboração geral histórica" (Bordiga). (Essas afirmações podem parecer sumárias, porém as esclarecerei em outra ocasião).
Para concluir quero me deter sobre a profunda contradição a que conduz essa visão. Na realidade, afirma (§8 ponto C): "sua dominação (do proletariado) sobre a sociedade é também dominação sobre o Estado e só pode assumi-la através sua ditadura de classe". Quero responder com as palavras clássicas de Lênin que, em "O Estado e a Revolução", sublinha mais uma vez a essência da doutrina marxista do estado: "O fundo da doutrina de Marx sobre o Estado só foi assimilado pelos que compreenderam que a ditadura de uma classe é necessária, não só a toda sociedade dividida em classes, em geral, não só ao proletariado vitorioso sobre a burguesia, mas ainda em todo o período histórico que separa o capitalismo da "sociedade sem classes", do comunismo. As formas dos Estados burgueses são as mais variadas; mas a sua natureza fundamental é invariável: todos esses Estados se reduzem, de um modo ou de outro, mas obrigatoriamente, afinal de contas, à ditadura da burguesia. A passagem do capitalismo para o comunismo não pode deixar, naturalmente, de suscitar um grande número de formas políticas variadas, cuja natureza fundamental, porém, será igualmente inevitável: a ditadura do proletariado" [1]
Portanto, do ponto de vista marxista, o Estado se define como um órgão (diferente na forma e nas estruturas segundo os períodos históricos, as sociedades de classes e a direção de classe em que atua) por meio do qual se exerce a ditadura do proletariado, dispondo do monopólio da força armada.
Por isso, não faz sentido falar de um Estado que esteja submetido a uma ditadura que vem de seu exterior e que não pode intervir de maneira despótica na realidade econômica e social para orientá-la rumo a certa direção de classe.
E.
A crítica formulada pelo companheiro E. está apoiada essencialmente sobre duas idéias .: a primeira consiste no rechaço da afirmação de que "o Estado é uma instituição conservadora por excelência"; a segunda, na reafirmação da identidade Estado e ditadura do proletariado durante o período de transição, posto que o Estado é sempre Estado da classe dominante. Vejamos, assim, de mais perto o conteúdo desses argumentos.
E. escreve: "...se afirma (na resolução de RI) que o Estado é uma instituição conservadora por excelência. Isto beira o anti-historicismo do anarquismo e sua oposição de princípio ao Estado. Os anarquistas tiram sua conclusão da necessidade de libertar-se de sua Senhoria "a Autoridade". Revolution Internationale claro que não chega a esse ponto, porém, exatamente como os anarquistas, julga o Estado conservador e reacionário em qualquer época social, em qualquer área geográfica, qualquer que seja a direção para a qual se orienta, e, portanto, qualquer que seja a dominação de classe, de que é expressão, independentemente do período histórico durante o qual essa dominação se exerce".
Antes de ver porque o Estado é efetivamente "uma instituição conservadora por excelência" responderemos ao argumento polêmico que consiste em identificar nossa posição com a dos anarquistas.
Nossa concepção sofreria de um "anti-historicismo anarquista" porque destaca uma característica da instituição estatal (seu caráter conservador) independentemente da "área geográfica", "da dominação de classe da qual é a expressão", e "do período histórico durante o qual esta dominação é exercida". Porém, em que destacar as características gerais de uma instituição ou de um fenômeno através da história, independente das formas específicas que esta possa conhecer segundo o período, seria típica de um "anti-historicismo"? Então, o que é saber utilizar a história para compreender a realidade se não é antes de mais nada saber destacar as leis gerais que se verificam através de diferentes períodos e condições específicas? O marxismo é, por acaso, "anti-histórico" quando diz que desde qua a sociedade está dividida em classes "a luta de classes é o motor da história", qualquer que seja o período histórico e quaisquer que sejam as classes?
Pode-se ressaltar a necessidade de distinguir em cada Estado da história (Estado Feudal, Estado burguês, Estado do período de transição, etc.) o que é particular, específico. No entanto, como é possível compreender essas particularidades se não se sabe em relação a quais generalidades elas se definem? O fato de destacar as características gerais de um fenômeno no curso da história, através de todas as formas particulares - por diferentes que sejam - que tenha tomado segundo os períodos, é não só o próprio fundamento de uma análise histórica como também a condição principal para poder compreender em que consiste as especificidades de cada expressão particular do fenômeno.
A partir de um ponto de vista marxista, pode-se ter a tentação de colocar em causa a veracidade da lei geral que destacamos sobre a natureza conservadora do Estado, porém de nenhum modo atacar o fato em si de querer reconhecer a característica histórica geral de uma instituição. Do contrário se nega a possibilidade de toda análise histórica.
Depois nos diz que nossa posição se assemelha à do anarquismo pelo fato de constituir uma "oposição de princípio ao Estado". Recordemos em que consiste esta oposição de princípio dos anarquistas ao Estado: rechaçando a análise da história em termos de classe e do determinismo econômico, os anarquistas não compreenderam nunca o Estado como produto das necessidades de uma sociedade dividida em classes, mas como um mal em si que, igual à religião e ao autoritarismo, está na base de todos os males da sociedade ("Estou contra o Estado porque o estado é maldito", dizia Louise Michel). Pelas mesmas razões, consideram que, entre o capitalismo e o comunismo, não há nenhuma necessidade do período de transição e, menos ainda, de Estado: o Estado poderá e deverá ser "abolido", "proibido" por decreto no dia seguinte à insurreição geral.
O que há de comum entre esta visão e a que afirma que o Estado, produto da divisão da sociedade em classes, tem uma essência conservadora visto que tem como função de frear e manter o conflito entre as classes dentro da ordem e da estabilidade social? Se sublinhamos o caráter conservador dessa instituição não é para preconizar uma indiferença "apolítica" do proletariado com relação a ele ou para propagar ilusões sobre a possibilidade de fazer desaparecer a instituição estatal com um decreto de proibição embora a divisão de classes subsista, mas para ressaltar porque o proletariado, longe de se submeter incondicionalmente à autoridade desse Estado durante o período de transição - como o preconiza a idéia que no Estado se veja a encarnação da ditadura do proletariado -, deve, ao contrário, submeter esse aparato, em uma relação de força permanente, à sua própria ditadura de classe. O que há de comum entre essa visão e a dos anarquistas que rechaçam em bloco o Estado, período de transição e, sobretudo, a necessidade da ditadura do proletariado?
Assimilar essa análise à visão anarquista é falar por falar com argumentos de polêmica irrelevantes.
Entretanto, chegamos ao problema de fundo: Por que o Estado é uma instituição conservadora por excelência?
A palavra conservador significa por definição o que - ou aquele que - se opõe a toda inovação, o que - ou aquele que - é resistente a toda mudança ou transtorno do estado de coisas existente. Pois bem, o Estado, qualquer que seja, é uma instituição cuja função essencial não é mais do que a manutenção da ordem, a manutenção da ordem existente. Ele é o resultado da necessidade em toda sociedade dividida em classes de se dotar de um órgão capaz de manter pela força uma ordem que não é capaz de existir de maneira espontânea, harmoniosa, pelo fato da sua própria divisão em grupos sociais, com interesses econômicos antagônicos. Por isso, constitui a força à qual tem de opor-se toda ação que tende a transtornar a ordem social e, portanto, toda ação revolucionária.
Na famosa formulação de Engels em A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, explicando a necessidade à qual corresponde o Estado e a função decorrente, encontra-se claramente afirmado este aspecto essencial do papel dessa instituição: amortecer o choque entre classes, mantendo nos limites da ordem. E, algumas páginas mais adiante: "o Estado nasceu da necessidade de frear os antagonismos de classe".
Quando se sabe que a força que cria os transtornos revolucionários não é outra senão a luta de classes, quer dizer, esse "conflito", essa "oposição" que o Estado tem como função "amortecer", é fácil compreender porque o Estado é uma instituição essencialmente conservadora.
Nas sociedades de exploração onde o Estado é abertamente o guardião dos interesses da classe economicamente dominante, o papel conservador do Estado frente a todo movimento que tende ameaçar a ordem econômica existente, da qual o Estado é sempre, junto com a classe dominante, beneficiário, fica muito evidente. No entanto, esta característica conservadora não está menos presente no Estado do período de transição ao comunismo.
A cada passo dado pela revolução comunista (destruição do poder político da burguesia em um ou vários países, logo no mundo inteiro, coletivização de novos setores da produção, desenvolvimento da coletivização da distribuição nos centros industriais e logo em regiões agrícolas avançadas, em seguida nas atrasadas etc.), a cada uma dessas etapas e enquanto o desenvolvimento das forças produtivas não haja alcançado um grau de desenvolvimento suficiente capaz de permitir que cada ser humano possa participar realmente em uma produção coletivizada em escala mundial e receber da sociedade "segundo suas necessidades", até que a humanidade não tenha alcançado esse estágio de riqueza que poderá permitir desfazer-se por fim de todos os sistemas de racionamento da distribuição dos produtos e unificar-se em uma comunidade humana sem divisões, a cada passo a sociedade deverá dotar-se de regras de vida, de leis sociais estáveis e uniformes que lhe permitam viver de acordo com as condições de produção existentes, sem ver-se por isso desgarrada por conflitos internos entre as classes que subsistem, enquanto se espera o passo seguinte para frente.
Pelo fato de que se trata de leis que expressam ainda um estado de penúria, isto é, um estado no qual o bem estar de uns tende a fazer-se em detrimento dos demais, trata-se de leis que - mesmo instaurando "a igualdade na penúria" - exigem, para ser aplicadas, um aparato de coerção e de administração que as impunha e que faça ser respeitadas pelo conjunto da sociedade. Este aparato é o Estado.
Se durante o período de transição, fosse decidido, por exemplo, distribuir gratuitamente os bens de consumo no que seriam os centros de distribuição, enquanto a penúria continua ainda atormentando a sociedade, haveria quem sabe alguns milhares de pessoas que poderiam, no primeiro dia, servir-se segundo as suas necessidades - os primeiros que chegarem aos centros - mas, pelo menos, outras tantas pessoas estariam sujeitas a passar fome. No período de escassez, distribuir, embora seja de maneira igualitária, impõe a instauração de regras de racionamento e, com elas, o "funcionário": O estado de "vigilantes e de contadores" de que falava Lênin.
A função deste Estado não é uma função revolucionária embora a ordem política existente seja a da ditadura do proletariado. Sua função intrínseca é, no melhor dos casos, a de estabilizar, regularizar, institucionalizar as relações sociais existentes. A mentalidade do burocrata do período de transição (pois não há Estado sem burocratas) não se caracteriza pela sua audácia revolucionária, longe disso. Sua mentalidade tende inevitavelmente a ser a de todos os funcionários: a manutenção da ordem, a estabilidade das leis que se encarrega de fazer aplicar... e, na medida do possível, a defesa dos seus interesses de privilegiado. Quanto mais dura a penúria que faz indispensável a existência desse Estado, , mais aumenta a força conservadora desse aparato e, com isso, a tendência para um ressurgimento de todas as características da velha sociedade.
Em A Ideologia Alemã, Marx escrevia: "esse desenvolvimento das forças produtivas (...) é um pressuposto prático absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos gêneros necessários recomeçariam e toda velha imundície acabaria por restabelecer" (A Ideologia Alemã - Primeira Parte - Artigos, rascunhos, textos prontos para impressão e anotações referentes aos capítulos "I. Feuerbach" e "II. São Bruno" Ed. Boitempo.1ª Edição. Pag.38 nota C)
A revolução russa onde o poder do proletariado ficou isolado, condenado à pior penúria, foi a trágica demonstração através da prática, desta visão. Porém ao mesmo tempo mostrou que a " velha imundície" ressuscitava primeiro e antes de tudo no mesmo lugar onde se acreditava que se encontrava a encarnação da ditadura do proletariado: no Estado e sua burocracia.
Citemos um testemunho dos mais significativos, visto que foi um dos principais defensores da identidade entre ditadura revolucionária do proletariado e Estado do período de transição, Leon Trotsky:
(A Revolução Traída; Tradução nossa)
Claro, o próximo movimento revolucionário não conhecerá seguramente condições materiais tão desastrosas como foram as da Rússia. Entretanto, a necessidade de um período de transição, um período de luta contra a indigência e a penúria em escala mundial não será menos inevitável que a subsistência de uma estrutura estatal. O fato de dispor de um maior potencial de forças produtivas para empreender a criação das condições materiais da sociedade comunista constitui um elemento fundamental para o definhamento do Estado e, portanto, da sua força conservadora sob a ditadura do proletariado. Mas nem por isso esta característica é eliminada. Assim, continua sendo de primordial importância que o proletariado consiga assimilar as lições da experiência russa e saiba ver no Estado deste período não a encarnação suprema da sua ditadura mas um órgão que deverá ser submetido pela sua ditadura e a respeito do qual deverá manter a sua autonomia organizativa.
Mas, diz a nós, a história mostra que o Estado tem uma função revolucionária quando a classe que o estabelece é também revolucionária:
Não se trata aqui de brincar com as palavras. "Assumir uma função revolucionária" por um lado e "estabilizar um marco de leis e de relações que respondam aos interesses da nova classe no poder" pelo outro, não descreve a mesma coisa. A partir do momento em que a luta de uma classe revolucionária consegue estabelecer uma relação de força na sociedade a seu favor, é evidente que o marco jurídico, a instituição que tem como função a de estabilizar as relações de forças existentes na sociedade, traduz obrigatoriamente este novo estado de fato em leis e em intervenções do executivo para fazê-las aplicar. Toda ação política de envergadura em uma sociedade dividida em classes tem, pois, como corolário uma estrutura estatal e só pode atingir sua meta se, cedo ou tarde, consegue concretizar-se ao nível de leis e da ação do Estado. Por exemplo, foi assim que o Estado de 1793 na França legalizou medidas revolucionárias impostas de fato pelas forças revolucionárias: execução do rei, lei sobre os suspeitos e instauração do Terror contra os elementos reacionários, requisições e racionamentos, confisco e venda dos bens dos imigrantes, imposto sobre os ricos, "descristianização" e fechamento das igrejas, etc.... Da mesma forma, o Estado dos sovietes na Rússia tomou medidas revolucionárias tais como a instauração do poder dos sovietes e da destruição do poder político da velha classe, organização da guerra civil contra os exércitos brancos, etc.
Mas, pode-se dizer por isto que o Estado assumiu a função revolucionária das classes que o instauraram?
O problema que se coloca é o de saber se esses fatos demonstram que o Estado é conservador apenas na medida em que quando a classe dominante também é conservadora, e ao contrário, revolucionário quando esta última é revolucionária. Em outras palavras, o Estado não teria nenhuma tendência conservadora ou revolucionária intrínseca. Seria simplesmente a encarnação institucional da vontade da classe dominante politicamente ou, para repetir uma fórmula de Bukárin sobre o Estado e o proletariado, durante o período de transição:
Vejamos, pois, esses acontecimentos mais de perto. Iniciamos por: "O Estado francês de 1793, é o mais radical por suas medidas, de todos os Estados burgueses da história" (carta de E.) (Trataremos da Revolução Russa no ponto seguinte).
O Estado de 93 é o da Convenção Nacional, instaurada nos finais de 92 depois da destruição da Monarquia pela Comuna Insurrecional de Paris e o terror imposto por esta: a Convenção sucedia o Estado da Assembléia Legislativa que havia "organizado" as guerras revolucionárias, mas cuja existência se viu ameaçada pela queda do trono e pelo poder real da Comuna Insurrecional que o Estado tentou em vão dissolver (em 1º de setembro, a Assembléia Legislativa proclamou a dissolução da Comuna, mas teve que rever sua decisão nessa mesma noite).
A Assembléia Legislativa, por sua vez, sucedia a Constituinte que, depois de ter declarado abolidos os direitos senhoriais e adotado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, havia se negado a proclamar a deposição do rei.
Antes de ver como foram tomadas as famosas medidas radicais de 93, observamos já que os acontecimentos que vão desde a conquista do poder pela burguesia em 89 ao advento da Convenção três anos depois (setembro de 92) não tem nada a ver com a descrição simplista que nos oferece o camarada E.
"No passado e nas fases revolucionárias, era só uma classe conquistar o poder, esta estabiliza (sic) o tipo de organização estatal que melhor corresponde à defesa dos seus interesses de classe". (Alterei a Carta de E. em consequëncia) OK
Na realidade, foi só a burguesia conquistar o poder político em 1789, começa um processo longo e complexo no qual a classe revolucionária longe de "estabilizar" o Estado que acabava de instaurar, vê-se obrigada a colocá-lo sistematicamente em questão para poder levar a cabo sua missão revolucionária.
Foi só o Estado ter consagrado uma nova relação de força instaurada pelas forças vivas da sociedade (por exemplo, a abolição dos direitos feudais pela Constituinte depois dos acontecimentos de julho de 89 em Paris) que logo o marco institucional, que se encontra estabilizado por esse ato, revela-se insuficiente e se transforma em freio para os novos desenvolvimentos da mudança revolucionária (negação da Constituinte em pronunciar a deposição do rei e repressão por esta dos movimentos populares nesse sentido).
Se de 89 a 93, a Revolução necessitou de três formas estatais (tendo conhecido, cada uma, diferentes governos), é precisamente porque nenhum desses Estados conseguiu "assumir a função revolucionária da classe que os instituiu". Cada novo passo adiante da Revolução toma, assim, a forma de uma luta, não só contra as classes do velho regime, como também contra o Estado "Revolucionário" e sua inércia legalista e conservadora.
Nem mesmo o ano de 1793 marcou uma "estabilização do tipo de organização estatal que melhor respondesse a defesa dos interesses da burguesia". Corresponde, ao contrário, ao apogeu da desestabilização da instituição estatal. Teve que esperar Napoleão, os seus códigos jurídicos, a sua reorganização da administração e seus "Cidadãos! A revolução é ligada aos princípios que a iniciaram, e acabou", para que verdadeiramente possa começar a se falar de estabilização [1].
E como poderia ser de outro modo? Como uma classe verdadeiramente revolucionária poderia tratar, no próprio momento do combate, o representante da "manutenção da ordem" (embora seja a sua) senão a chutes para tirá-lo das suas preocupações administrativas e suas formalidades jurídicas com que tenta, segundo a expressão de Engels, "amortizar o choque (entre classes), mantê-lo dentro dos limites da ordem"?
Acreditar que a instituição estatal pode ser "a encarnação material" da vontade revolucionária de uma classe é tão absurdo como imaginar que uma revolução posa desenvolver-se de maneira ordenada. É pedir a um órgão cuja função essencial é a de assumir a estabilidade da vida social, que encarne o espírito de subversão ao qual tem precisamente como tarefa afogar as forças vivas da sociedade; é pedir a um corpo de burocratas que tenham o espírito de uma classe revolucionária. Uma revolução é a explosão formidável das forças vivas da sociedade que tomam diretamente em suas mãos o destino do corpo social, transtornando sem respeito nem titubeios toda instituição (mesmo criada por ela) que entrave seu movimento. A potência de uma revolução se mede assim, em primeiro lugar, pela capacidade da classe revolucionária não se deixar aprisionar no pelourinho legal das suas primeiras conquistas, em saber ser tão impiedosa com as insuficiências dos seus primeiros passos como com as forças do velho regime. A superioridade política da revolução burguesa na França em relação à da burguesia inglesa residiu precisamente na sua capacidade de não se deixar paralisar pelo fetichismo do Estado e ter conseguido transtornar incessantemente e sem piedade sua própria instituição estatal até suas últimas conseqüências.
Porém, chegamos ao famoso Estado francês de 1793 e às suas medidas, considerando que constitui precisamente, por um lado, o exemplo proposto pelo camarada E. para demonstrar as supostas capacidades revolucionárias da instituição estatal e, por outro, uma das mais evidentes ilustrações da impotência desta instituição nesse terreno.
Na realidade, as grandes medidas revolucionárias do período de 1793 não foram tomadas por iniciativa do Estado, mas contra ele. Sua realização se deve à ação direta das frações mais radicais da burguesia parisiense, apoiadas e muitas vezes arrastadas pela enorme pressão do proletariado dos subúrbios da capital.
A Comuna Insurrecional de Paris, o organismo constituído durante os acontecimentos de 9-10 de agosto de 1792 pelos elementos mais radicais da burguesia que dispunham da força de burgueses armados dos subúrbios, da Guarda Nacional e dos Sectionnaires armados do subúrbio e que se apoiavam, sobretudo, no impulso das massas populares, é, portanto, expressão direta do movimento revolucionário que impôs primeiro à Assembléia Legislativa e depois à Convenção (que provocou a instauração das eleições pelo sufrágio universal indireto e 90% de abstenções por parte de eleitores aterrorizados) as medidas mais radicais da revolução. Foi ela que provocou a queda do Rei em 10 de Agosto de 1792, quem prendeu a família real no templo no dia 13, foi ela que impediu sua própria dissolução pelo Estado da Assembléia Legislativa, ela quem instaurou diretamente os tribunais revolucionários e o terror dos dias de Setembro de 1792; foi ela que, em 1793, impõe à Convenção a execução do rei, a lei sobre os suspeitos, a proscrição dos Girondinos, o fechamento das igrejas, a instauração oficial do Terror, etc. E, para colocar em evidência seu caráter de força viva distinta do Estado, impôs ainda à Convenção a prevalência de Paris como "guia da Nação e tutor da Assembléia", o direito de intervenção direta do "povo", se fosse necessário, contra "seus representantes" e, por fim, "o direito a insurreição"!
O exemplo de Cromwell na Inglaterra que dissolve pela força a Assembléia e manda colocar um cartaz na porta da entrada: "Aluga-se", traduz a mesma necessidade.
Se os acontecimentos de 92-93 demonstram algo, não é, portanto, que a instituição estatal é tão revolucionária como o é a classe que o domina, mas ao contrário que:
Como foi dito no início desse ponto: "assumir uma função revolucionária" e "estabilizar um marco de leis e de relações que respondem aos interesses da nova classe no poder" não quer dizer a mesma coisa. A diferença entre as duas, nas fases revolucionárias, a história resolve com uma relação de forças entre a verdadeira força revolucionária, a verdadeira classe em si e sua expressão jurídica, o Estado.
Até agora temos tratado a natureza conservadora do Estado permanecendo sobre o terreno histórico geral. Voltando para o domínio do período de transição ao comunismo, veremos até que ponto este antagonismo entre revolução e instituição estatal, oculto ou episódico nas revoluções do passado, toma na revolução comunista um caráter muito mais profundo e irreconciliável.
O companheiro E. nos diz:
Deixemos de lado o argumento polêmico que consiste em tratar nossa posição como anarquista: já falamos disso. E vejamos porque o proletariado não pode encontrar em uma instituição conservadora sua "expressão autêntica e total".
Vimos como durante o curso da revolução burguesa há momentos em que, pela tendência conservadora que se expressava nas primeiras formas do seu próprio Estado, a burguesia viu-se obrigada, através das suas frações mais radicais, a tomar uma distância real com respeito a esta instituição e impor sua ditadura "despótica" não só sobre as outras classes da sociedade, como também sobre o Estado que acabava de instaurar.
No entanto, esta oposição entre burguesia e Estado não podia ser mais do que momentânea. A meta das revoluções burguesas, por muito radicais e populares que fossem, não pode jamais ser outra coisa que o reforço e a estabilização de uma ordem social da qual ela é a beneficiária. Por maior que possa ser sua oposição à velha classe dominante, não desestabiliza a sociedade e a instituição estatal senão para estabelecê-la melhor mais tarde, uma vez afirmado o seu poder político em uma nova ordem estável na qual possa sem freios desenvolver sua força de classe exploradora.
Deste modo o furacão revolucionário de 1793 foi sucedido pela submissão da Comuna Insurrecional de Paris ao governo do Comitê de Saúde Pública de Robespierre, mais tarde pela execução do mesmo Robespierre pela "reação de Thermidor" para acabar com o Estado forte de Napoleão, no qual Estado e burguesia voltaram a se encontrar fraternalmente entrelaçados em um desejo absoluto de ordem e estabilidade.
Na verdade, quanto mais se consolida e se desenvolve o sistema da burguesia, mais esta última se reconhece inteiramente no seu Estado, garantia absoluta e conservador de seus privilégios. Quanto mais conservadora se torna a burguesia, mais se identifica com sua polícia e administrador.
Muito diferente acontece com o proletariado. A meta da classe operária no poder não é nem manter a sua existência como classe nem conservar o Estado, produto da divisão da sociedade em classes. Seu objetivo declarado é o desaparecimento das classes e, por conseguinte, do Estado. O período de transição ao comunismo não é um movimento para a estabilização do poder proletário, mas, pelo contrário, para o seu desaparecimento. Disso resulta não que o proletariado não deva firmar sua ditadura sobre o conjunto da sociedade, mas que utiliza esta ditadura para transtornar permanentemente o estado de coisas existente. Esse movimento de transtorno é permanente até o comunismo: toda estabilização da revolução proletária constitui para ela um retrocesso e uma ameaça de morte. A famosa sentença de Saint-just: "os que fazem uma revolução pela metade, cavam sua própria sepultura" se aplica ao proletariado pelo fato da sua natureza de classe explorada, mais que toda classe revolucionária da história.
Contrariamente à idéia de Trotsky que, incapaz de reconhecer no desenvolvimento da burocracia depois de 1917 a força da contrarrevolução, falava de um "Thermidor proletário", não há "Thermidor" para a revolução proletária. Thermidor foi para a burguesia uma necessidade que correspondia à busca de uma estabilização do seu poder. Para o proletariado, toda estabilização constitui não uma meta, um êxito, mas uma debilidade, e a médio prazo, um retrocesso da sua obra revolucionária.
O único momento no qual a estabilização das relações sociais poderia corresponder com os interesses do proletariado, seria na sociedade sem classes, o comunismo. Porém, nesse momento já não haverá nem proletários, nem ditadura do proletariado, nem Estado. É por isso que o proletariado não poderá encontrar jamais nesta instituição, cuja função é a de "amortecer o conflito entre as classes" e estabilizar o estado de coisas existentes, "sua expressão autêntica e total".
Ao contrário do que acontecia para a burguesia, o desenvolvimento da revolução proletária se mede não com o reforço da instituição estatal, mas com a dissolução desta na sociedade civil, a sociedade dos produtores.
No entanto, a atitude do proletariado no curso da sua ditadura em relação ao Estado - não identificação, organização autônoma em relação a ele e o exercício da sua ditadura sobre ele - se distingue da burguesia instalada não só porque para o proletariado a dissolução do aparato estatal é uma necessidade como também - e de outro modo esta necessidade não seria mais que um desejo irrealizável - porque é uma possibilidade.
Dividida pela propriedade privada e pela concorrência, sobre as quais se funda sua dominação econômica, a burguesia não pode engendrar por muito tempo corpos organizados que encarnem seus interesses de classe fora do Estado. O Estado é, para a burguesia, não só o defensor da sua dominação com relação às demais classes, como também o único laço de unificação dos seus interesses. Na divisão de milhares de interesses privados e antagônicos da burguesia, só o Estado constitui uma força capaz de expressar os interesses do conjunto da classe. É por isso que, como não podia evitar em certos momentos, a ação autônoma das suas frações mais radicais contra o Estado - tanto na França como na Inglaterra -, não podia também prolongar muito tempo este estado de coisas, sem correr o risco de perder toda a unidade política e, por conseguinte, toda a força (ver o destino reservado à Comuna Insurrecional de Paris e os seus dirigentes logo após terminarem sua brilhante ação revolucionária).
O proletariado não conhece esta impotência. Como não tem interesses antagônicos no seu seio e como encontra na sua unidade autônoma a principal força da sua ação, o proletariado pode existir unificado e potente sem ter de recorrer a um árbitro armado por cima dele. Sua representação como classe se encontra em si mesmo, nos seus próprios órgãos unitários: os Conselhos Operários.
São esses conselhos os que devem e podem constituir o único e verdadeiro órgão da ditadura do proletariado. É neles e só neles que a classe operária encontra "sua expressão autentica e total"
O companheiro E. faz suas as posições de Lênin em O Estado e a Revolução, baseado, por sua vez, nos escritos e na experiência prática passada do movimento proletário. Mas o faz simplificando ao extremo esta posição, esquecendo o contexto político no qual foi definida e, evidentemente, deixando de lado a experiência mais importante da ditadura do proletariado: a Revolução Russa.
Segundo E., o maior e mais rico momento da história do combate proletário não teria alterado absolutamente em nada as formulações dos revolucionários antes de Outubro. O resultado é uma simplificação grosseira das inevitáveis insuficiências da teoria revolucionária antes de 1917, em um terreno onde a única experiência existente até então tinha sido a da Comuna de Paris.
E. escribe:
É certo que a essência da função do Estado sempre foi a manutenção da opressão das classes exploradas pela classe exploradora. No entanto, quando se trata de transpor esta idéia para a análise do período de transição ao comunismo, esta simplicidade é mais que insuficiente. E isto por duas razões principais:
Em O Estado e a Revolução, Lênin colocou em primeiro plano esta concepção simples do Estado por causa da polêmica que tinha com a social-democracia. Esta última, para justificar sua participação no governo do Estado burguês, pretendia ver no Estado (no Estado burguês em particular) somente um órgão de conciliação entre as classes: disso deduzia que ao participar e ao desenvolver a influência eleitoral dos partidos operários, poderia converter-se em ferramenta do proletariado para o advento do socialismo. Lênin recordou com força que o Estado em uma sociedade dividida em classes tinha sido sempre o Estado da classe dominante, o aparato de manutenção do poder desta última, sua força armada contra as demais classes.
O pensamento de uma classe revolucionária e, com mais razão, a de uma classe revolucionária explorada, não pode desenvolver-se jamais em um ambiente de investigação científica pacífica. Como é a arma de um combate global, só pode expressar-se em oposição violenta à ideologia dominante que trata de demonstrar permanentemente a sua falsidade. É a razão pela qual não se encontrará nunca um texto revolucionário que não tenha, de uma ou outra maneira, a forma de uma crítica ou de uma polêmica. Até mesmo as passagens mais "científicas" do Capital estão redigidas com ânimo de combate crítico contra as teorias econômicas da classe dominante. Por isso, tem que saber, quando se remete aos escritos revolucionários, situá-los permanentemente dentro do combate em que se integram. Se for viva, a polêmica conduz inevitavelmente a polarizar o pensamento sobre aspectos mais importantes da realidade, pois são os mais importantes em tal combate em particular. Porém o que é essencial em uma discussão não o é automaticamente em outra. Repetir de maneira idêntica as fórmulas e as preocupações expressas em textos que tratam de um problema particular para aplicá-las assim como estão, sem voltar a colocá-las dentro do seu contexto, a outros problemas fundamentalmente diferentes, conduz, na maioria das vezes, a cometer aberrações em que o que podia ser uma simplificação necessária em uma polêmica, se transforma, transportada para outro contexto, em um absurdo teórico. Por isso, a exegese é sempre um freio para a teoria revolucionária.
Transportar assim como estão as lições tiradas do combate contra a participação da social-democracia no Estado burguês e seu rechaço da ditadura do proletariado, aos problemas colocados pela relação entre a classe operária e o Estado do período de transição para o comunismo, é um exemplo desse tipo de erro. Erro constantemente cometido tanto por Marx e Engels como por Lênin e todos os revolucionários que forjaram sua união no fogo do combate contra a traição da socialdemocracia durante a Primeira Guerra Mundial. Se este erro era compreensível antes de outubro de 1917, hoje já não é mais.
A experiência da revolução russa pôs em evidência até que ponto a relação entre o proletariado no poder e o Estado é diferente da relação que existia entre o Estado e as classes exploradoras.
Ao exercer sua ditadura, o proletariado se afirma como classe dominante na sociedade. Porém, aqui "dominante" não tem nada a ver com o conteúdo que tinha esse termo nas sociedades do passado. O proletariado é classe dominante politicamente, porém não economicamente. Não só a classe operária não pode explorar nenhuma outra classe da sociedade, mas continua sendo até certo ponto, classe explorada.
Explorar economicamente uma classe é levar uma vantagem do seu trabalho, em detrimento da sua própria satisfação. É amputar de uma classe uma parte do fruto do seu trabalho, privando-a assim da possibilidade de gozar deste. Pois bem, depois da tomada do poder pelo proletariado, a situação econômica da sociedade conhece as duas características seguintes:
Nessas condições, a marcha para o comunismo implica um esforço de produção enorme, de maneira que se permita, por um lado, a maior satisfação possível das necessidades humanas, e por outro lado (e em relação com a primeira necessidade) a integração no processo produtivo (ao seu nível de tecnicidade mais elevados) da imensa massa da população que é improdutiva, seja (nos países desenvolvidos) porque ocupava funções improdutivas sob o capitalismo, seja (e é o caso da grande maioria no terceiro mundo) porque o capitalismo não havia conseguido integrá-las na produção social. Ora, quer seja agir para aumentar a produção de bens de consumo ou para produzir meios de produção que permitam integrar as massas improdutivas (o campesinato indigente do Terceiro Mundo não será integrado à produção socializada com arados de madeira ou de aço mas com os meios industriais mais avançados... que terá de criar), este esforço, portanto, recai essencialmente sobre o proletariado.
Enquanto subsistir a penúria no mundo e enquanto o proletariado continuar sendo uma fração da sociedade (isto é, enquanto sua condição não tenha se estendido a toda população do planeta), o proletariado produzirá um excedente de bens (de consumo e de produção) do qual só será beneficiado a longo prazo. A partir desse ponto de vista, portanto, o proletariado não só não é classe exploradora, como continua sendo classe explorada.
Nas sociedades passadas, o Estado tendia a identificar-se com a classe dominante e a defesa dos seus privilégios na medida em que esta classe era economicamente dominante, ou seja, se beneficiava da manutenção das relações de produção existentes. A tarefa do Estado de manutenção da ordem é, em uma sociedade de exploração, inevitavelmente a manutenção da exploração e, portanto, dos privilégios do explorador.
Entretanto, durante o período de transição ao comunismo, a manutenção das relações econômicas existentes, pode se constituir, em certos aspectos e a curto prazo, um meio para impedir um retrocesso em relação aos passos já dados pelo proletariado (e é nesse aspecto que o Estado é inevitável durante o período de transição), representa ao mesmo tempo a manutenção de uma situação econômica na qual o proletariado suporta o peso da subsistência e do desenvolvimento do conjunto da sociedade. Ao contrário do que acontecia nas sociedades nas quais a classe politicamente dominante era uma classe que se beneficiava diretamente da ordem econômica existente, no curso da ditadura do proletariado, a convergência entre Estado e classe politicamente dominante perde todo fundamento econômico. Além disso, como um órgão que expressa as necessidades de coerência da sociedade e da necessidade de impedir que os antagonismos entre as classes se desenvolvam, o Estado tende inevitavelmente a opor-se, a nível econômico, aos interesses imediatos da classe operária. A experiência russa na qual se viu o Estado exigir do proletariado um esforço de produção sempre maior em nome da necessidade de satisfazer as exigências de troca com os camponeses ou com as potências estrangeiras, pôs em evidência, através da repressão das greves operárias (desde os primeiros meses da revolução), até que ponto esse antagonismo podia ser determinante nas relações entre proletariado e Estado.
É por isso também que o proletariado no poder não pode reconhecer no Estado, como afirmava Bukhárin, "a encarnação material da sua razão coletiva", mas um instrumento da sociedade que não se submeterá ao seu poder "automaticamente" - como era o caso para as classes exploradoras logo após ter assegurado sua dominação política definitivamente - mas que terá ao contrário que submeter sem trégua ao seu controle e a sua ditadura, se não quiser vê-lo voltar-se contra ele, como na Rússia.
Mas, no último argumento do camarada E., é-nos dito que um Estado submetido a uma ditadura que é exterior a ele não pode ter os meios de cumprir seu papel. Esqueceríamos que, se Estado e ditadura de uma classe não são idênticos, não há ditadura real.
É verdade que não pode ter a ditadura de uma classe, qualquer que seja esta, sem que exista na sociedade uma instituição de tipo estatal: por um lado, porque a divisão da sociedade em classes implica a existência de um Estado e, por outro lado, qualquer poder de classe precisa da existência de um aparelho, que expressa, através de um conjunto de leis e meios de constrição, seu poder na sociedade: o Estado. É verdade que um Estado que não dispõe de um poder real não seria um Estado. Mas é errado que a ditadura de classe é idêntica ao Estado e que "um Estado que esteja submetido a uma ditadura que lhe é exterior não faz sentido".
A situação de dualidade de poder (o de uma classe, por um lado, e do Estado, por outro - o primeiro exercendo sobre o segundo) já se produziu - como o temos visto - na história, em particular durante as grandes revoluções burguesas. E, por todas as razões que já vimos, ela se imporá como uma necessidade durante o período da ditadura do proletariado.
O certo é que tal dualidade não pode eternizar-se sem arrastar a sociedade dentro de uma contradição inextrincável na qual consumiria a si mesma. Constitui uma contradição viva que deve inevitavelmente ser resolvida. Mas a maneira como se resolve difere fundamentalmente conforme se trata da revolução burguesa ou da revolução proletária.
No primeiro caso, esta dualidade de poder se resolve rapidamente com uma identificação do poder da classe dominante com o poder do Estado que surge do processo revolucionário, reforçao e investido do poder supremo sobre o conjunto da sociedade, inclusive sobre a classe dominante. No caso da revolução proletária, entretanto, resolve-se na dissolução do Estado e na apropriação de todos os destinos da vida social pela própria sociedade.
Esta é uma oposição fundamental que se traduz por características na relação entre classe dominante e Estado na revolução proletária, diferentes das da revolução burguesa, não só pela forma como também pelo conteúdo.
Para entender melhor essas diferenças, é necessário tratar de apresentar as linhas gerais das formas do poder do proletariado durante o período de transição que podem ser esboçadas a partir da experiência histórica do proletariado. Sem querer empenhar-se em definir os detalhes institucionais de tal período, porque uma das maiores características dos períodos revolucionário é que todas as formas institucionais tendem a apresentarem-se como formas vazias que as forças vivas da sociedade preenchem e transbordam segundo a necessidade dos seus enfrentamentos, embora seja possível destacar os seguintes eixos mais gerais:
Como emanação dessas instituições, ergue-se todo o aparato de Estado com, por um lado, os que se encarregam de manter a ordem: "vigilantes" e exército durante a guerra civil e, por outro, o corpo de funcionários encarregados da administração e da gestão da produção e da distribuição.
Este aparato de guardas e de funcionários poderá ser mais ou menos importante, mais ou menos fundido com a própria população à medida que avança o processo revolucionário, porém seria ilusório ignorar a inevitabilidade da sua existência em uma sociedade que conhece ainda as classes e a penúria.
A ditadura do proletariado sobre o Estado do período de transição é a capacidade da classe operária em manter o armamento e a autonomia dos seus Conselhos em relação ao Estado e em impor a este (aos seus órgãos centrais e a seus funcionários) sua vontade.
A dualidade de poder que resulta tende a se resolver à medida que o conjunto da população seja integrada ao proletariado e seus conselhos e que a abundância se desenvolva, a função dos guardas e outros funcionários desaparecerá, "a administração dos homens irá cedendo lugar a administração das coisas" pelos próprios produtores. O poder do proletariado vai se desenvolvendo no mesmo movimento que a diminuição do poder dos funcionários do Estado e a absorção pelo proletariado do conjunto da humanidade transforma seu poder de classe em ação consciente da comunidade humana.
Contudo, para que este processo seja levado a cabo, é necessário não só que as condições materiais do seu desenvolvimento se encontrem reunidas (em particular a extensão mundial da revolução, o desenvolvimento das forças produtivas), mas também que o proletariado, força motriz essencial desse processo, saiba conservar e desenvolver a autonomia e a força do seu poder sobre o Estado.
Longe de ser um absurdo, esta ditadura dos conselhos operários, à qual está submetido o Estado e que "é exterior a ele", representa, de fato, o próprio movimento de definhamento do Estado.
A Revolução Russa não conheceu as condições materiais de tal desenvolvimento, porém pelas dificuldades enormes com as quais tropeçou, ela colocou em evidência o conteúdo das tendências intrínsecas do aparato estatal, visto que o papel desse último foi se ampliando até seus limites máximos por causa dessas mesmas dificuldades.
Justamente depois de Outubro de 1917, existiam na Rússia tanto os Conselhos Operários, protagonistas de Outubro, como os conselhos de Estado, os Soviets e seu aparato estatal em desenvolvimento. Entretanto, convencidos de que o Estado não podia ser distinto da ditadura do proletariado, os Conselhos Operários se transformaram em instituições estatais integrando-se no aparato do Estado. Com o desenvolvimento do poder da burocracia, provocado pela ausência de todas as condições materiais para o desenvolvimento da revolução, a oposição entre Estado e proletariado não demorou a aparecer à luz do dia. Acreditou-se poder resolver o antagonismo colocando no aparato do Estado, no lugar de funcionários, o maior número de operários mais determinados e mais experimentados, os membros do partido. O resultado não foi uma proletarização do Estado, mas uma burocratização dos revolucionários. Ao final da guerra civil, o desenvolvimento do antagonismo entre a classe operária e o Estado desembocou na repressão pelo Estado das greves de Petrogrado em 1920, em seguida da repressão à insurreição de Kronstadt que reivindicava, dentre outras coisas, medidas contra a burocracia e a revogação dos delegados aos Soviets.
Não se trata de deduzir aqui que se o proletariado tivesse conservado a autonomia dos seus Conselhos em relação ao Estado e soubesse impor sua ditadura ao Estado em vez de ver neste sua "encarnação material", a revolução teria triunfado definitivamente na Rússia.
Não foi a incapacidade de resolver os problemas das suas relações com o Estado o que provocou o fracasso da revolução na Rússia, mas a derrota da revolução nos outros países que a condenou ao isolamento. No entanto, sua experiência com relação a este problema crucial não foi nem inútil nem "um caso particular" sem significado para o conjunto do movimento histórico. A experiência russa foi fundamental para aclarar este problema complexo que permanecia particularmente confuso na teoria revolucionária. Não só trouxe com os Conselhos Operários e a organização soviética uma resposta prática ao problema das formas do poder proletário, como também permitiu resolver o que tinha revelado contraditório na experiência da Comuna de Paris: desde Marx e Engels até Lênin que, por um lado, afirmava que o Estado era a encarnação da ditadura do proletariado e, por outro lado, tirava, da experiência da Comuna de Paris a lição de que o proletariado tinha que tomar precauções contra os "efeitos nocivos" (Engels) desse Estado, submetendo todos seus funcionários ao controle do proletariado: redução dos seus rendimentos ao nível de um operário e revogabilidade a qualquer momento dos funcionários do Estado pelo proletariado. Se o Estado é idêntico a ditadura do proletariado, por que este teria que desconfiar de seus efeitos nocivos? Como poderia ter a ditadura de uma classe efeitos contrários aos seus próprios interesses?
De fato, a necessidade de distinguir claramente entre ditadura do proletariado e Estado, como também poder ditatorial da primeira sobre o segundo, encontra-se já em germe (se não como intuição pelo menos como necessidade teórica) nos textos dos revolucionários antes de 1917. Como, por exemplo, em O Estado e a Revolução, Lênin chega a falar de uma distinção entre algo que seria "o Estado de funcionários" e outra coisa que seria "o Estado dos operários armados": "Enquanto não se tenha chegado a fase "superior" do Comunismo, os socialistas exigem que a sociedade e o Estado exerçam o mais rigoroso controle sobre a medida do trabalho e a medida do consumo; porém este controle, tem de começar pela apropriação dos capitalistas, e deve ser exercido não pelo Estado de funcionários, mas pelo Estado de operários armados" (Tradução nossa; O sublinhado é nosso)E em outra passagem da mesma obra, na qual Lênin compara a economia do período de transição e a organização dos correios no capitalismo, afirma a necessidade de que o órgão de funcionários seja controlado pelo de operários armados: "Toda a economia nacional organizada como Correios, de maneira que os técnicos, os vigilantes, os contadores recebam, como todos os demais funcionários, um salário que não exceda os "salários dos operários", sob o controle e a direção do proletariado armado: esta é nossa meta imediata." (Tradução nossa; O sublinhado é nosso).
A Revolução Russa mostra tragicamente até que ponto o que parecia uma contradição teórica no pensamento revolucionário expressava na realidade uma contradição real entre a ditadura do proletariado e o Estado do período de transição; fez aparecer à luz do dia até que ponto "o controle e a direção do proletariado armado" sobre o Estado é uma condição sine qua non da ditadura do proletariado.
O companheiro E. acredita, sem dúvida, que se mantém fiel ao esforço teórico do proletariado tal e como se concretiza antes de Outubro de 1917 e, em particular em O Estado e a Revolução de Lênin, a quem defende de maneira intransigente. Mas é trair o espírito desse esforço defender uma posição que quase por princípio se nega a colocar em julgamento as lições teóricas à luz da experiência mais importante da ditadura do proletariado.. Para concluir, não podemos mais do que recordar o que Lênin escrevia precisamente em O Estado e a Revolução acerca do que deve ser a atitude dos revolucionários neste terreno:
R. V.
[1] E ainda: o Estado francês conhecerá os fortes abalos contra a Restauração que seguiu o Império de Napoleon e aqueles de 1848.
A Revista Internacional da CCI já abordou várias vezes a questão do período de transição do capitalismo ao comunismo. Tem publicado mais de dez textos nos quais se evoca particularmente o problema colocado pelas relações entre a ditadura do proletariado e o Estado durante o período de transição. A idéia de uma não identidade entre essas duas noções, tal como aparece nos textos seguintes: "Problemas do período de transição" e "A Revolução Proletária" (nº1), "O Período de Transição" e "Contribuição ao Estudo da questão do Estado" (nº6), "Apresentação dos projetos de Resolução do 2º Congresso da CCI de RI" e "A Esquerda Comunista na Rússia" (nº8), "As confusões políticas da CWO" (nº10), "Projeto de Resolução sobre o Período de Transição do 2º Congresso da CCI" e "Estado e Ditadura do Proletariado" (nº11), idéia que tem sido constantemente considerada como escandalosa e "absolutamente alheia ao marxismo" por uma quantidade de elementos revolucionários que em seguida nos apresentam a célebre citação de Marx, extraída da sua Crítica do Programa de Gotha, segundo a qual, durante o Período de Transição, "o Estado não pode ser outra coisa que a ditadura revolucionária do proletariado".
O texto que publicamos aqui é uma contribuição a mais sobre este tema. Propõe-se particularmente estabelecer que a não identidade entre Estado e Ditadura do proletariado não é nada "anti-marxista" mas pelo contrário, para além da refutação de certas fórmulas de Marx e Engels, inscreve-se perfeitamente dentro do método marxista.
No centro da teoria do Estado de Marx, encontra-se a noção da extinção do Estado.
Na sua crítica da filosofia do Estado de Hegel, com a qual começa sua vida de pensador e de militante revolucionário, Marx combate não só o idealismo de Hegel segundo o qual o ponto de partida de todo o movimento seria a idéia (convertendo sempre "a idéia em sujeito e o sujeito real propriamente dito em predicado") [1]; denuncia também veementemente as conclusões dessa filosofia, que faz do Estado um mediador entre o homem social e o homem universal político, o conciliador da divisão entre o homem privado e o homem universal. Ao constatar a oposição crescentemente conflituosa entre a sociedade civil e o Estado, Hegel quer que a solução dessa contradição se encontre na autolimitação da sociedade civil e na sua integração voluntária no Estado, posto que, segundo ele, "é somente no Estado que o homem tem uma existência conforme a razão" [2] e "tudo o que é o homem se deve ao Estado, e é nele onde reside seu ser. Todo seu valor, toda sua realidade espiritual, é devida ao Estado" [3] A essa delirante valorização do Estado que faz de Hegel seu maior apologista, Marx opõe: "somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas "forces propres" como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana" [4], ou seja, do Estado.
Na obra de elaboração política e teórica de Marx se encontrará presente desde o princípio a finalidade, ou seja, a tomada de posição frontal e contra o Estado, produto, manifestação e fator ativo da alienação da humanidade. Ao fortalecimento do Estado e a absorção por este da sociedade civil de Hegel, Marx opõe resolutamente a extinção do Estado como sinônimo da marcha para a emancipação da humanidade, e essa noção fundamental será desenvolvida e enriquecida ao longo da sua vida e da sua obra.
Essa oposição radical ao Estado e o anúncio da sua extinção possível e inevitável não são produto do gênio pessoal de Marx, embora seja nele que essas idéias encontram uma análise rigorosa e uma demonstração coerente. Foram na realidade da época que essas problemáticas se apresentaram e é nessa mesma realidade que os primeiros germes da resposta começam a aparecer com o nascimento e a luta de uma nova classe histórica: o proletariado. Por maiores que tenham sido sua contribuição e o seu mérito, Marx não fazia nada além de tornar teoricamente compreensível o movimento do proletariado que estava se desenvolvendo na realidade.
Ao mesmo tempo que combatia o idealismo e a apologia do Estado de Hegel, Marx rechaçava igualmente todas as teorias "racionalistas" que tratavam de fundar o Estado sobre a "razão crítica" ou aquelas que de Stirner a Bakunin, condenavam-no em nome de um princípio moral.
Produto histórico do desenvolvimento das forças produtivas e da divisão do trabalho - que fazem explodir a antiga sociedade comunista primitiva -, a nova sociedade, que se funda sobre a propriedade privada e sua divisão em classes antagônicas, faz surgir necessariamente essa instituição superestrutural que é o Estado.
Manifestação de uma situação histórica na qual a sociedade entrou em um estado de contradições e de antagonismos irredutíveis [5], o Estado é ao mesmo tempo a instituição indispensável para manter certa coesão, uma ordem social, para impedir que a sociedade se destruía completamente em lutas estéreis e para impor pela força às classes exploradas à submissão a dita ordem. Essa ordem é a dominação econômica de uma classe exploradora na sociedade cujo guardião é o Estado, e é através dele que a classe exploradora, economicamente dominante, chega à dominação política da sociedade. O Estado é, portanto, sempre a emanação das classes exploradoras e, em regra geral, da classe econômica e imediatamente predominante; é dessa classe que o Estado é originário e da qual uma fração se especializa na função estatal.
Do que acabamos de dizer depreende-se que a função fundamental do Estado é a de ser guardião da ordem econômica estabelecida.
Quando surgem novas classes exploradoras que representam as novas forças produtivas que vão se desenvolvendo no seio da sociedade até chegar ao ponto de entrar em contradição com as relações de produção existentes e exigir que essas mudem totalmente, é o Estado que elas enfrentam, o Estado que representa a última fortaleza de proteção da velha sociedade. A dinâmica revolucionária encontra-se sempre na sociedade civil, nas novas classes que surgiram, porém nunca no Estado como tal. É, portanto, principalmente um instrumento de conservação social. Dizer que o Estado é às vezes conservador e outras vezes revolucionário segundo a situação da classe que o domina, colocar em um mesmo nível esses dois momentos, dizer que são paralelos, é escamotear o problema do que constitui o caráter fundamental do Estado, sua função essencial. Mesmo quando a classe revolucionária conquista pela força o Estado, e, ao reconstruí-lo, o adapta às suas necessidades e interesses, isto não altera a natureza essencialmente conservadora do Estado, nem lhe dá uma nova natureza revolucionária. E isto, por duas razões:
Alguns, ao referir-se a tal ou qual ato ou acontecimento esporádico, geralmente advindo durante momentos de crises sociais e de revoluções, acreditam poder afirmar que o Estado goza de uma natureza dupla: conservadora e revolucionária simultaneamente. Assim foram citados como exemplo os atos da Convenção e do Terror dirigidos contra a aristocracia feudal, a guerra interna e externa durante os anos da Revolução Francesa, o apoio que deu em certos momentos a monarquia à burguesia na França e também a política de Pedro o Grande, na Rússia, etc. A essas objeções, podemos opor várias observações:
I. "As exceções confirmam a regra".
II. Não se pode ver e compreender o curso da história e suas leis fundamentais referindo-se a acontecimentos isolados da mesma maneira que não se pode medir as distâncias entre as galáxias com um centímetro.
III. Não é nosso objetivo estudar e dar uma explicação detalhada de cada acontecimento um por um (isso seria fenomenologia), mas explicar como se encandeiam globalmente, destacar as leis e o sentido geral de tais acontecimentos.
IV. O que estudamos aqui é o Estado na história e não a história do Estado. Não estudamos cada momento, cada dia da sua própria existência que corresponde a uma era histórica bem determinada e limitada: a era da sociedade dividida em classes. Durante toda essa era histórica, o Estado tem como função fundamental manter a ordem social existente. Manter, entreter, guardar, são todas expressões que significam dizer conservar em oposição a criar. É o sentido passivo oposto ao sentido ativo; o estático oposto ao dinâmico.
V. Contra quem o Estado tem que defender a ordem existente? Quem, que forças ameaçam a ordem social? [6] Resposta possível: as antigas classes dominantes.
Essas antigas classes foram derrotadas e vencidas antes de tudo no terreno econômico. A revolução não faz mais que consagrar e não determinar sua queda. É por isso que os marxistas podiam falar das revoluções políticas dessa era, como "revoluções palacianas" visto que a verdadeira transformação já havia se operado nas entranhas da sociedade, na sua realidade profunda e na sua estrutura econômica.
Outra constatação importante: não é nunca a partir do Estado existente que se desencadeia o movimento da revolução; embora seja política, a revolução parte da sociedade civil contra o Estado. E isso porque não é o Estado que revoluciona a sociedade, mas a sociedade revolucionada quem modifica e adapta o Estado.
O novo Estado que surge depois do acontecimento que é a revolução, pode dedicar-se a atos espetaculares contra os membros da antiga classe dominante, porém esses atos não chegam nunca muito adiante, nem duram muito tempo. A antiga classe dominante continua subsistindo e seus membros continuam ocupando, durante muito tempo, um lugar importante no aparato do Estado e, frequentemente, um lugar preponderante. Isto prova que a antiga classe dominante não representa essa ameaça pretendidamente decisiva e contra a qual se operaria o fortalecimento do novo Estado - que o converteria em revolucionário. Isso é uma superestimação enorme, amplamente desmentida pela história.
A ameaça fundamental da ordem existente não vem das classes derrotadas mas das classes oprimidas e das novas classes históricas ascendentes. São elas que (as primeiras de maneira constante, as segundas potencialmente) representam essa ameaça mortal contra a qual a ordem existente necessita do Estado, essa força concentrada de coerção e de repressão para sua defesa.
O Estado não é tanto uma barreira contra o passado quanto contra o futuro. Isso é o que converte sua defesa do presente (conservadorismo) em algo mais próximo do passado (reacionário) que do futuro (revolucionário) Nesse sentido, pode-se dizer que se as classes são as representantes das forças produtivas em desenvolvimento, o Estado, por sua parte, é o defensor das relações de produção. A dinâmica histórica vem sempre das primeiras, as travas, das segundas.
VI. Enquanto aos exemplos do papel supostamente progressivo - e até "revolucionário"- da monarquia francesa, ou o de Pedro, o Grande, na Rússia etc. , é evidente que o Estado se vê obrigado a efetuar atos progressistas, não porque isto seja inerente a sua natureza progressista, mas apesar da sua natureza conservadora, sob a pressão das novas forças progressistas, porque não pode ignorar completamente as pressões que vêem da sociedade civil.
Foi um fato que a supressão da vassalagem e o desenvolvimento da industrialização capitalista na Rússia fizeram-se sob o regime dos czares, assim como a industrialização na Alemanha sob o dos Junkers da Prússia, e na França sob o bonapartismo. Isso não converte esses regimes e Estados em forças revolucionárias; os dois últimos -o da Alemanha e o da França- provinham diretamente da contrarrevolução de 1848-52.
VII. Com relação ao argumento sobre a dupla natureza do Estado - contrarrevolucionária e revolucionário simultaneamente - não apresenta mais seriedade do que aquele avançado para defender os sindicatos: teriam ao lado da sua natureza burguesa, também uma natureza operária pelo fato de que em tal ou qual ocasião adotam a defesa de tal ou qual operário. Com esse raciocínio, poderia se falar também da dupla natureza dos policiais considerando que, de vez em quando salvam alguém que está na iminência de se afogar. Tem que se acreditar que cada vez que se trate de raciocinar e que não se sabe raciocinar, recorre-se naturalmente ao argumento da "dupla natureza".
Essas tantas observações não acrescentam nada de substancial, mas se impõem para demonstrar a futilidade das objeções e fazem quem sabe um pouco mais preciso nosso pensamento sobre a natureza e a função conservadora do Estado.
É importante aqui ter cuidado em não se comprazer na confusão e no ecletismo: "o Estado é tão conservador como revolucionário". isso pode conduzir a inverter os elementos e abrir a porta que conduz diretamente ao erro de Hegel que faz do Estado o sujeito do movimento da sociedade.
A tese da natureza conservadora do Estado e antes de tudo da sua própria conservação, relaciona-se dialética e estreitamente com a outra tese que lhe é oposta, a que diz que a emancipação da humanidade se identifica com a extensão do Estado. Uma esclarece a outra. Se escamotearmos ou se deixarmos em um segundo plano a primeira tese, ofusca-se e escamoteia-se igualmente a teoria e a realização da necessária extinção do Estado.
A não compreensão da noção da natureza conservadora do Estado tem como corolário inevitavelmente a não insistência na noção marxista fundamental da extinção do Estado. As implicações não poderão deixar de ser ainda mais perigosas.
O que é, no entanto mais importante e que nos interessa aqui em primeiro lugar é o de fazer ressaltar que o Estado - tanto o novo quanto o antigo - não é nem pode chegar a ser por definição o portador do movimento de extinção do Estado. Pois bem, vimos que a teoria do Estado de Marx identifica o movimento de extinção do Estado com o da emancipação da humanidade e, considerando que o Estado não é portador da sua própria extinção, disso deriva que, pela natureza mesma, o Estado não pode nunca ser o motor nem tampouco o instrumento da emancipação humana.
A teoria do Estado de Marx coloca também em evidência a tendência inerente do Estado e "da fração da classe dominante que agrupa e que se constitui em corpo separado, de "libertar-se" da sociedade civil, de separar-se dela e de alçar-se por cima da sociedade" (Engels). Embora nunca consiga realizar-se completamente e embora continue sempre defendendo os interesses gerais da classe dominante, essa tendência é sem dúvida uma realidade e abre o caminho para novas contradições, antagonismos e alienações que Hegel já havia percebido e destacado e que Marx afirma igualmente: sobretudo, a oposição crescente entre o Estado e a sociedade civil com todas as suas implicações. Esta tendência explica cada vez mais as múltiplas perturbações sociais, as convulsões na própria classe dominante, as diferentes variedades de forma do Estado que existem em uma mesma sociedade e suas relações particulares com o conjunto da sociedade. Esta tendência a tornar-se independente da sociedade faz da autoconservação uma preocupação maior do Estado e reforça ainda mais sua natureza conservadora.
Com o desenvolvimento, através da sucessão de sociedades, da divisão da sociedade em classes, reforça-se e desenvolve-se o Estado cujos tentáculos vão abraçando todas as esferas da vida social. Sua massa numérica cresce proporcionalmente. A manutenção dessa enorme massa parasitária se faz extraindo uma parte cada vez maior da produção social. Através de impostos diretos e indiretos - arrecadados não somente dos ingressos das massas trabalhadoras, mas também dos lucros dos capitalistas - o Estado entra em conflito de interesses até com sua própria classe, que exige que o Estado seja forte... porém também barato. Para os homens do aparato do Estado, essa hostilidade exterior e seus próprios interesses , provocam um reflexo de defesa e solidariedade, um espírito de corpo que os une em uma verdadeira casta separada.
De todos os campos de atividade do Estado, a coerção e a opressão pertencem especificamente a ele. Dispõe para isso, de maneira exclusiva, das forças armadas. A coerção e a opressão são a razão de ser do Estado, de seu próprio ser. É um produto específico dessas e as reproduz sem cessar, ampliando-nas e aperfeiçoando-nas. A cumplicidade nos massacres e no terror constitui assim o cimento mais forte da sua unidade.
Com o capitalismo chegou-se ao ponto culminante de toda longa história das sociedades divididas em classes. Se esse longo período histórico, impregnado de sangue e sofrimentos foi o tributo inevitável que a humanidade teve que pagar para desenvolver suas forças produtivas, essas últimas já alcançaram hoje um desenvolvimento tal que este tipo de sociedade ficou caduco; a própria sobrevivência da sociedade dividida em classes se converteu na maior trava ao desenvolvimento das forças produtivas e chega a colocar em perigo a existência da própria humanidade.
Com o capitalismo, a exploração e a opressão alcançaram o paroxismo porque o capitalismo é o resumo condensado de todas as sociedades de exploração do homem pelo homem que tem se sucedido. O Estado, no capitalismo, concluiu seu destino ao converter-se nesse monstro horroroso e sangrento que conhecemos hoje. Com o Capitalismo de Estado, realizou a absorção da sociedade civil, converteu-se no gerente da economia, o patrão da produção, o amo absoluto e indiscutível de todos os membros da sociedade, da sua vida e de suas atividades, desencadeando terror, semeando a morte e dirigindo a barbárie generalizada.
A Revolução Proletária difere radicalmente de todas as revoluções anteriores na história. Se todas as revoluções tiveram em comum que foram determinadas e que exprimiram a rebelião das forças produtivas contra as relações de produção da ordem existente, aquelas que fundamentam a revolução proletária expressam não só a necessidade de um desenvolvimento quantitativo como colocam a necessidade de uma mudança qualitativa fundamental do curso na história. Todas as antigas modificações que intervieram no desenvolvimento das forças produtivas ficam contidas na era histórica da penúria, que exige a inevitável exploração da força de trabalho. As mudanças que essas modificações operam não conduzem para uma diminuição da exploração, mas, ao contrário, para um aumento da exploração, para uma exploração mais racional, mais eficaz das massas, cada vez mais numerosas, da população. Acarretam uma expropriação maior dessas com relação aos instrumentos de trabalho e do produto do seu trabalho.
No movimento dialético da história humana, essas modificações pertencem todas a um único e mesmo período: o da negação da comunidade humana, o da antítese. Essa unidade fundamental faz com que as diferentes sociedades que se sucederam nessa era aparecem - por diferentes que sejam - como uma progressão na continuidade. Sem essa continuidade, não se pode compreender nem explicar acontecimentos tão contraditórios como incompreensíveis à primeira vista, tais como:
Assim se explica que as revoluções nesta era aparecem como uma simples transmissão da máquina do Estado de uma classe exploradora a outra classe exploradora e que, muito freqüentemente, as transformações sociais se fizeram sem revolução política.
A questão é muito diferente com a revolução proletária. Com efeito, a revolução proletária não se situa em continuidade com as soluções aos problemas colocados pela penúria, mas com o fim da penúria das forças produtivas; o problema que se coloca não é "como explorar mais eficazmente?", mas "como suprimir a exploração?". Não é "como assumir o fortalecimento da opressão?", mas "como destruí-la para sempre?". Não é a continuidade da negação, mas a negação da negação e a restauração da comunidade humana a um nível mais elevado. A revolução proletária não pode reproduzir as características das revoluções anteriores como as que acabamos de mencionar porque se situa em ruptura total, em oposição radical com elas e isso tanto no seu conteúdo como nas suas formas e meios.
Uma das características fundamentais da revolução proletária é - em oposição às revoluções anteriores e levando em conta o grau alcançado pelo desenvolvimento das forças produtivas - que as transformações necessárias não poderão realizar-se com muita defasagem temporal entre os diferentes países; exigem, como teatro de operações, o mundo inteiro. A revolução proletária é internacional ou não é; Uma vez que tenha começado em um país tem que estender a todos os países ou sucumbirá mais ou menos a curto prazo. As outras revoluções eram a obra de classes minoritárias e exploradoras contra a maioria das classes trabalhadoras; a revolução proletária é a da imensa maioria dos explorados contra uma minoria. Ao ser a emancipação da imensa maioria para o interesse da imensa maioria, não pode realizar-se sem a participação ativa e constante da imensa maioria. Não pode de nenhuma maneira tomar as revoluções passadas como modelo, visto que, desde qualquer ponto de vista, é seu oposto.
A revolução proletária está chamada a transformar de cima abaixo todas as estruturas, todas as relações existentes começando com a destruição total das superestruturas do Estado. Contrariamente às revoluções anteriores que não fazem mais que arrematar a dominação econômica da nova classe, a revolução do proletariado - uma classe que não tem nenhum sustentáculo econômico - é o primeiro ato político que abre e assume, pela violência revolucionária, o processo da transformação total da sociedade.
Como está colocado em evidência em O Manifesto Comunista, a burguesia não só criou as condições materiais da revolução, como engendrou a classe que será seu coveiro, o sujeito da revolução: o proletariado. O proletariado é o portador dessa revolução radical porque constitui "uma classe com raízes radicais", uma classe que é "a negação da sociedade", que segundo os termos de Marx, encarna todos os sofrimentos da sociedade, classe que não foi afetada de modo particular, mas em "si mesma" como tal, uma classe que não tem nada a perder salvo suas cadeias e que não pode emancipar sem emancipar toda humanidade. É a classe produtiva e do trabalho associado por excelência. É por isso que o proletariado é a única classe portadora da solução das contradições insuperáveis e insuportáveis das sociedades divididas em classes. A solução de que é portador o proletariado é o comunismo. A profundidade dessa transformação histórica e a impossibilidade de toda medida que vá nessa direção dentro do capitalismo, que fazem da revolução sua condição primeira, tornam igualmente indispensáveis a substituição da dominação da classe capitalista pela do proletariado para assumir a marcha para o comunismo. A ditadura está incontestavelmente ligada ao fato da dominação, mas é muito mais que isso. "A ditadura -escreve Lênin- significa um poder ilimitado que se apóia não na lei, mas na força" [7]. A idéia da força relacionada à ditadura não é nova; o que nos parece aqui interessante é a primeira parte dessa frase que contém a idéia de um poder "ilimitado". Lênin insistirá bastante "... esse poder não reconhece nenhum outro poder, nenhuma lei, nenhuma norma, venha de onde vier" [8]. Particularmente interessante é esta outra passagem onde faz ressaltar a idéia da ditadura do proletariado, em um sentido mais amplo que a mera força; "esta pergunta é habitualmente colocada por aqueles que encontram pela primeira vez a palavra ditadura em uma acepção nova para eles. As pessoas estão acostumadas a ver somente o poder policial e a ditadura policial. Parece-lhes estranho que possa existir uma ditadura que não seja policial" [9]. É o poder dos sovietes tão exaltado por Lênin e que criou "...novos órgãos de poder revolucionário; sovietes de operários, de soldados, de ferroviários, de camponeses; novas autoridades nas cidades e no campo, " e que não se apoiavam nem na "força das baionetas" nem na do "comissariado da polícia" e não tinha nada a ver como os velhos instrumentos de força" [10]. Não se baseava essa ditadura na força e na coerção? Claro que sim, porém o importante é saber distinguir sua nova qualidade. Embora a ditadura das antigas classes se dirigia essencialmente contra o futuro, contra a emancipação humana, a ditadura do proletariado é "a do povo no que diz respeito à opressão que exercem os órgãos policiais e de todo tipo do antigo poder". É por isso que pode e deve apoiar-se sobre outra coisa que a mera força:
Temos aqui, não a descrição da sociedade comunista, na qual já não existe mais nenhum problema de poder, sim do período revolucionário onde a questão do poder ocupa um lugar central. É desse poder da ditadura do proletariado do que se trata. Encontramos aqui, na pena de Lênin, o que é e o que deve ser a ditadura do proletariado e voltamos a encontrar a própria essência da noção marxista da extinção do Estado. É nesse sentido que Engels podia escrever: "Querem saber, senhores, o que é a ditadura do proletariado? Vejam a comuna".
A ditadura do proletariado é o poder ilimitado da classe para exercer livre e plenamente suas atividades criativas, é tomar a responsabilidade "sem intermediário" seu destino e o de toda sociedade, arrastando atrás de si as outras classes e camadas trabalhadoras. Esse poder, o proletariado não pode delegar a nenhuma formação particular sem se autosabotar, sem renunciar a sua emancipação porque "a emancipação do proletariado só poderá ser obra do próprio proletariado".
A classe capitalista assim como as outras classes exploradoras na história, unidas pela exploração, se dividem em frações hostis umas as outras, com interesses divergentes, e não podem encontrar sua unidade senão no comando de uma fração particular, a que assume a função do Estado. O proletariado não conhece no seu seio interesses divergentes e hostis. Sua unidade é encontrada na sua meta: o comunismo e na sua organização unitária de classe: os conselhos operários. É de si mesmo e em si mesmo onde obtém sua unidade e sua força. Sua consciência lhe é ditada pela sua existência. Não há nenhuma mediação entre o seu ser e sua consciência. O processo de tomada de consciência se manifesta com o aparecimento no seu seio, de correntes de pensamentos e organizações políticas. Essas podem ser às vezes portadoras de ideologias de classes alheias a ele ou ao contrário manifestações importantes e fundamentais de uma verdadeira tomada de consciência dos seus interesses históricos. O Partido Comunista representa, é certo, a fração mais consciente da classe, porém não pode nunca pretender ser a própria classe, nem substituí-la no cumprimento das suas tarefas históricas. Nenhum partido, nenhum Partido Comunista, pode reclamar algum "direito" de direção, nem algum poder particular de decisão na classe. O poder de decisão é atributo exclusivo da organização unitária da classe e dos seus órgãos eleitos e revogáveis, um poder que não se pode nunca alienar a nenhum outro organismo, sem correr o risco de alterar gravemente o funcionamento da organização da classe e o cumprimento das suas tarefas. É por isso que é inconcebível que os órgãos de direção sejam confiados, ainda que sejam por voto, a tal ou qual grupo particular. Isso será reproduzir no seio do proletariado o modo de funcionamento e da própria prática das classes não proletária.
Todas as formações políticas que se situam dentro do marco do reconhecimento da autonomia da classe com relação às demais classes e seu poder ilimitado a hegemonia na sociedade, devem ter plena liberdade de ação e de propaganda dentro da classe e da sociedade, porque "uma das condições da tomada de consciência da classe e a livre circulação é confrontação de idéias no seu seio" (Marx).
Para alguns essa concepção da ditadura do proletariado contém ares de "democratismo". Da mesma maneira que adotam a revolução burguesa como modelo da revolução proletária, adotam a ditadura da burguesia como modelo da ditadura do proletariado. Porque a ditadura da burguesia é o Estado e nada mais que o Estado, acreditam que o Estado que surge inevitavelmente durante o Período de Transição, depois da vitória da revolução proletária, é a ditadura do proletariado, e não fazem nenhuma distinção entre uma e outra. Sua atenção não se detém nunca sobre o simples fato seguinte: enquanto a burguesia não tem outra organização unitária da sua classe além do Estado, o proletariado, por sua vez, cria essa organização unitária que congrega o conjunto da sua classe: os conselhos, para fazer sua revolução e para mantê-la depois, sem dissolvê-la no Estado. O poder ilimitado desses conselhos, ou seja, a ditadura do proletariado que se exerce sobre toda a vida da sociedade; inclusive sobre o semi-Estado do período de transição. Não entendem absolutamente nada à noção marxista de semi-Estado ou Estado-Comuna e, da ditadura do proletariado, só levam em conta a palavra genérica "ditadura", que identificam com um Estado forte, com o Estado-terrorista. Por outro lado, identificam a ditadura da classe com a ditadura do Partido, ao ser esse último quem dita sua lei, pela força, à classe. Essa visão pode ser resumida assim: um partido único se apodera do Estado, exerce o terror para submeter a organização unitária do proletariado, os conselhos e todo o sistema soviético da sociedade do período de transição. Esse tipo de ditadura do proletariado se parece como duas gotas d'água ao tipo perfeito de Estado capitalista totalitário: o Estado stalinista e o Estado fascista.
Os supostos argumentos sobre o rechaço de toda referência a maioria-minoria, convertidos em uma questão ridícula de 49% e 51%, são puro malabarismos sofistas, fraseologia oca, um radicalismo de exibição que esconde o verdadeiro problema. O problema não é que a maioria tenha obrigatoriamente razão por conta de ser maioria, mas compreender que a revolução proletária não pode ser a obra de uma minoria da classe. Isto não é uma questão de formalismo, mas da essência, do próprio conteúdo da revolução, isto é, que a classe "organiza suas próprias forças como força social" (Marx) e já não as separa como força exterior, independente dela. Levar a cabo a revolução é, portanto, inseparável da participação efetiva e ilimitada das imensas massas da classe, da sua atividade e organização. É nisso que consiste antes de tudo a ditadura do proletariado. Isso não tem, portanto, nada a ver com o fortalecimento de um Estado onipotente, mas com sua debilitação, um Estado amputado desde o seu nascimento pela vontade e o poder ilimitado do proletariado.
A ditadura do proletariado é correlativa com o conceito da extinção do Estado, tal e qual o marxismo, de Marx a Lênin no Estado e a Revolução o defenderam sempre. Não é o Estado que faz e exerce a ditadura, mas é a ditadura do proletariado quem suporta a existência ainda inevitável de um semi-Estado e se encarrega do processo da sua extinção.
A diferença entre os marxistas e os anarquistas não reside em que os primeiros conceberiam um socialismo com um Estado e os segundos uma sociedade sem Estado. Sobre esse ponto, existe um acordo total. É mais com os pseudo-marxistas da social-democracia, herdeiros de Lassalle, que conjugavam o socialismo com o Estado, com os quais existe essa diferença, e é fundamental (cf. A crítica do Programa de Gotha" de Marx e O Estado e a Revolução" de Lênin. O debate com os anarquistas era sobre seu não reconhecimento de um período de transição inevitável e sobre o fato de que, como bons ideólogos, ditavam à história um salto imediato e direto, do capitalismo à sociedade comunista [12].
É absolutamente impossível abordar o problema do Estado depois da revolução se não tiver compreendido antes que entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista está situado o período de transformação revolucionária da primeira para a segunda [13], se não tiver compreendido porque esse período está situado não antes, mas depois da revolução vitoriosa, nem no que consiste seu caráter radical com relação aos períodos análogos no passado, nem ao fato que depois de ter destruído a dominação da classe capitalista, subsistem na sociedade classes com imensas massas trabalhadoras que são profundamente anticapitalistas sem ser por isso pró-comunistas e que é impossível mantê-las apartadas da vida política e da participação ativa na organização da sociedade.
É só partindo desses dados objetivos das exigências da realidade histórica e não partindo do Estado em si, que pode se compreender:
Examinemos esses pontos mais de perto:
I. Seu surgimento inevitável
a) Mais que em outras revoluções, o proletariado terá que lutar contra a resistência mais feroz e rebelde por parte da classe capitalista vencida. Tem que se sublinhar que para o ato da revolução, isto é, desalojar a classe capitalista da sua posição dominante e destruir o aparato de Estado, o proletariado não o alcança apoiando-se estritamente sobre seu poder de classe, quer dizer suas organizações, sem necessidade de nenhum tipo de Estado. A força ardente da revolução desmoraliza e desorganiza o exército permanente composto na sua maioria de operários e camponeses, dos quais uma grande parte passa para o lado da revolução. Porém uma vez vencida, a burguesia na sua cólera desenfreada de revanche, centuplica sua resistência, reagrupa suas forças, reconstitui um exército selecionado de voluntários raivosos e de mercenários e, no seu terror, desata uma guerra contrarrevolucionária sem piedade. Diante de tal tipo de guerra campal, conduzida segundo as leis da arte militar, o proletariado não pode contentar-se em opor suas massas em armas; vê-se obrigado a construir um exército regular, com a incorporação não só dos operários, mas do conjunto da população. Guerra, represálias, coerção sistemática contra as maquinações da contrarrevolução, essas são as primeiras determinações do surgimento da instituição estatal.
Por mais importantes que sejam as razões da luta militar e as necessidade da coerção contra os manejos contrarrevolucionários da classe capitalista, embora cheguem a ocupar durante a guerra civil um lugar de primeira ordem, seria, no entanto, um erro simplista acreditar que são essas as razões essenciais, menos ainda a razão única, do surgimento do Estado. O simples fato de que o Estado se mantenha e dure muito depois da guerra civil é uma prova suficiente.
No mesmo sentido, é importante recordar a diferença que existe entre os outros Estados do passado, para os quais a coerção estava essencialmente dirigida contra as classes ascendentes -e, portanto, duradouras- enquanto elas se arranjassem com as antigas classes dominantes, e o Estado do período de transição para o qual é exatamente o contrário, nenhuma coerção se impõe contra classes ascendentes que não existem, mas unicamente contra as antigas classes com as quais não pode haver nenhuma colaboração.
b) A sociedade no período de transição é ainda uma sociedade dividida em classes. O marxismo e a história ensinam que nenhuma sociedade dividida em classes pode subsistir sem um Estado, não como mediador, mas como instituição indispensável para manter a coesão necessária, para impedir que a sociedade sucumba e se destrua.
Além do mais, é indispensável e possível que o proletariado retire todo poder político dos membros da velha classe - classe muito minoritária; seria um disparate e do mais prejudicial - e, de todas maneiras, impossível-, excluir as grandes massas das classes não proletárias, porém não exploradoras, da vida política e social. Todos os problemas econômicos, políticos, culturais, da vida imediata da sociedade interessam e concernem essas massas. O proletariado não pode, nas suas transformações revolucionárias, ignorar sua existência nem exercer sobre elas uma coerção sistemática. Com relação a essas massas, o proletariado não pode ter mais que uma política de reformas, de propaganda e de incorporação à vida social, sem por isso dissolver a si mesmo nem abdicar diante de sua missão e com relação a sua hegemonia que é a ditadura do proletariado.
Essa incorporação necessária dessas massas adquire a forma de uma instituição particular que é o Estado-comuna e que ainda é um Estado. É essencialmente a existência dessas classes, sua lenta dissolução e a necessidade imperiosa de incorporá-las o que torna inevitável o surgimento do Estado no período de transição ao socialismo.
c) Tem que se acrescentar às duas razões mencionadas acima as necessidades de centralização e de organização da produção, da distribuição, das relações com o mundo exterior, etc, em resumo, toda a administração das coisas e da vida pública, completamente transtornada pela revolução e que a sociedade não aprendeu nem é capaz ainda de separar do governo dos homens.
Essas três razões se conjugam para atuar com força como fatores determinantes para o ressurgimento do Estado depois da revolução
II. A diferença fundamental desse Estado com os demais tipos de Estado
Engels escrevia, ao analisar a Comuna de Paris, que não era propriamente um Estado. Desejando por em evidência as diferenças profundas com o Estado clássico, Marx, Engels, Lênin, atribuíram nomes diferentes: Estado-Comuna, semi-Estado, Estado popular, ditadura democrática, ditadura revolucionária, etc. Todos esses nomes se referem, e destacam, às características específicas que o diferencia com o Estado no passado.
a) Este estado distingue-se antes de tudo pelo fato de que, pela primeira vez, é o Estado das classes exploradas e não das classes exploradoras. É o Estado de uma maioria com os interesses da maioria contra uma minoria. Existe, não para a defesa de novos privilégios, mas para destruir os privilégios. Exerce a violência não para oprimir, mas para impedir a opressão. Não é um corpo que se eleva acima da sociedade, mas que está ao seu serviço. Seus membros e seus funcionários não são nomeados, mas eleitos e revogáveis, seu exército permanente é substituído pelo armamento geral do povo; substitui a opressão por um máximo de democracia, isto é, de liberdades de opinião e de expressão e, acima de tudo, é um Estado em extinção. Mas continua sendo um Estado, ou seja, continua governando os homens, porque é a instituição de uma sociedade ainda dividida em classes, embora seja a sua última forma.
b) Este Estado do período de transição não será, segundo Lênin, um Estado como outro "tal e como o criou em todas as partes a burguesia, desde as monarquias constitucionais até as Repúblicas mais democráticas" mas conforme os "ensinamentos da Comuna de Paris" e a análise que dela fizeram Marx e Engels". "Eis aqui o tipo de Estado que necessitamos. Eis aqui o caminho que temos de seguir para que seja impossível que se restabeleçam uma polícia ou um exército separados do povo".
Lênin não confunde esse Estado com a ditadura do proletariado porque esse Estado é somente "a ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses pobres". "Claro, dizia Lênin, a democracia é também uma forma de Estado que terá que desaparecer quando este desapareça também, porém isso não sucederá senão quando se passe ao socialismo definitivamente vitorioso e consolidado, ao comunismo integral".
E Lênin precisa o papel do proletariado depois de haver "destruído" o Estado burguês: "o proletariado deve organizar todos os elementos explorados da população para que eles mesmos tomem diretamente em mãos os órgãos do poder do Estado, formando eles mesmos as instituições desse poder".
Essas linhas foram escritas em Março de 1917, apenas um mês depois da revolução de Fevereiro. Esse tema da tomada do poder do Estado "em mãos de todos os elementos explorados da população", encontraremos desenvolvidos em dezenas de artigos de Lênin, e particularmente no Estado e a Revolução. E podemos repetir com ele: "esse é o tipo de Estado que necessitamos" e que a revolução faz surgir.
III. A necessidade de uma atitude ativa por parte do proletariado para a limitação progressiva das funções e com vistas a extinção do Estado
Acabamos de ver a enorme distância que separa o Estado do período de transição - que deixou de ser, segundo Engels, um Estado propriamente dito - de todos os demais. E, no entanto, segundo o mesmo Engels, "é uma praga" que herda o proletariado e contra o qual Engels se encarrega de colocar o proletariado em guarda. Como podemos entender isso?
Marx e Engels colocaram em evidência as medidas que a Comuna de Paris sentiu necessidade de tomar contra esse semi-Estado, particularmente ao tornar revogável em todo momento qualquer eleição e ao limitar a remuneração dos eleitos e funcionários ao salário médio de um operário, para limitar suas tendências nocivas. Lênin não parava de recordar e de se referir a essas medidas, mostrando assim a importância que dava aos graves perigos de burocratização que corria esse tipo de Estado-Comuna.
A Comuna de Paris, que se limitou somente a uma cidade, e durou só dois meses, teve apenas tempo de manifestar os aspectos perigosos desse semi-Estado. Não se pode senão admirar ainda mais a perspicácia política de Engels, que logrou, nessas condições, descobrir e advertir sobre os perigos, sobre o caráter de praga do Estado pós-revolucionário.
A Revolução de outubro em um país imenso, com uma população de mais de cem milhões de habitantes e com uma duração de vários anos, acabará sendo o terreno para uma experiência muito distinta. A experiência confirmou tragicamente, mais além do que tivesse conseguido imaginar até no pesadelo mais horrível, as advertências de Engels contra essa praga.
Quando enumerávamos, segundo Marx, Engels e Lênin, as caracteríticas distintivas desse Estado, era bem mais o que tinha de ser em vez do que é por si mesmo. Por si mesmo, o Estado do período de transição contém todos os defeitos herdados de todos os Estados que o precederam. Cabe ao proletariado ser o mais vigilante com relação a ele. O proletariado não pode evitar o surgimento, nem evitar a obrigação de utilizá-lo, porém, para isso, terá que amputar seus aspectos mais nocivos para que possa lhe ser útil para seus próprios fins; e isso terá de fazer desde o momento em que surge esse estado.
O Estado não é portador nem agente ativo do comunismo. Nada mais é que uma trava. Reflete o estado presente da sociedade e, como todo Estado, tende a manter, conservar o status quo. O proletariado, portador do movimento de transformação social, obriga o Estado a atuar nessa direção. Não pode obrigá-lo a fazê-lo mais que controlando-o a partir de fora, dispensando-o, despojando-o, tanto quanto as condições permitirem, de suas funções para garantir assim o processo de extinção.
O Estado tende sempre a crescer de maneira descomunal. Por isso oferece um terreno de predileção para toda escória de oportunistas e arrivistas e a toda classe de parasitas e recruta facilmente seus personagens de alto escalão entre os resíduos e vestígios da antiga classe dominante em decomposição. É isso o que comprova Lênin quando fala do Estado como reconstituição do antigo aparato de Estado czarista. Essa máquina de Estado, como constatava Lênin, "tende a escapar de nosso controle e gira no sentido contrário do que queremos". É também Lênin que, indignado, não encontrava palavras suficientemente fortes para estigmatizar os enormes abusos e os vexames de todos os tipos que os representantes do Estado faziam a população sofrer . E não dizia respeito somente à antiga canalha czarista que infestava o aparato do Estado como também o pessoal recrutado entre os comunistas para quem Lênin criou o nome "Komtchvanstva" (patifes comunistas).
Tais manifestações não podem ser combatidas se as considerarmos simplesmente como acidentais. Para combatê-las eficazmente, é necessário ir até o fundo das coisas, reconhecer que se originam nessa praga que é a sobrevivência inevitável dessa superestrutura que é o Estado. Não se trata de lamentar, de erguer os braços ao céu e de inclinar-se, impotente diante de tal "fatalidade". O determinismo não é uma filosofia do fatalismo; não se trata tampouco de pretender que, por simples vontade, a sociedade pode escapar da necessidade do surgimento do Estado. Isso seria cair no idealismo. Porém se temos que reconhecer que o Estado se impõe a nós como uma "exigência da situação" (Lênin), como uma necessidade, é importante não converter essa necessidade em virtude, não se colocar a fazer a apologia do Estado e vangloriá-lo. O marxismo reconhece o Estado como uma necessidade, porém também como uma praga e coloca diante do proletariado o problema das medidas que há de se tomar para assegurar sua extinção.
De nada serve acoplar de mil maneiras as palavras "Estado" e "Proletariado" e "operário". Os problemas não se resolvem em mudar o nome, o que se faz é se iludir e agravar ainda mais a confusão. O Estado proletário é um mito. Lênin o rechaçava, recordando que era um "governo de operários e de camponeses com uma deformação burocrática". É uma contradição em termos e uma contradição na realidade. A grande experiência da Revolução Russa o atesta. Cada momento de cansaço, cada debilidade, cada erro do proletariado tem imediatamente como conseqüência o reforço do Estado e, inversamente, cada vitória, cada reforço do Estado, se faz suplantando um pouco mais o proletariado. O Estado se alimenta com a debilitação do proletariado e sua ditadura de classe. A vitória do primeiro é a derrota do segundo.
De nada serve querer converter a organização unitária do proletariado - os conselhos operários - em Estado. Proclamar que o Comitê Central dos conselhos operários é o Estado, provém tanto da astúcia dos promotores de tal idéia, como da sua ignorância dos verdadeiros problemas que se colocam na realidade. De que serve dar ao conselho o nome de Estado se segundo essa idéia são sinônimos e são a mesma coisa? Por amor ao belo nome de "Estado"? Esses astutos com fraseologia radical já ouviram alguma vez falar que os conselhos operários são uma praga ou da necessidade da sua extinção? Ao proclamar que o conselho é o Estado, excluem e proíbem toda participação das classes trabalhadoras não proletárias que é, como vimos, a razão principal do surgimento do Estado; essa posição é impossível e absurda ao mesmo tempo [14]. E se, para se salvar desse absurdo, quer fazer participar essas classes e camadas nos conselhos operários, são então esses últimos os que serão alterados e que perdem sua natureza de organização unitária autônoma do proletariado.
Deve-se igualmente rechaçar uma estruturação do Estado sobre a base de uma composição dos diferentes corpos sociais (operários, camponeses, profissionais liberais, artesãos, etc.) organizados separadamente. Isto seria institucionalizar sua existência e tomar como modelo o Estado corporativista de Mussolini. É perder de vista que não estamos diante de uma sociedade com um modo de existência fixo, mas em um período de transição. São como membros da sociedade que toda população não exploradora participa da vida social e nos sovietes territoriais e é somente o proletariado - porque é ele portador do futuro comunista - quem, ademais, participa de maneira hegemônica na vida social e a dirige, organizado como classe nos seus conselhos operários.
Sem entrar em detalhes de modalidade, podemos reter como princípios a estrutura seguinte da sociedade do período de transição:
Resta-nos ainda afirmar que o Partido político não é um órgão de Estado. Durante muito tempo, os revolucionários viveram com essa ótica, o que evidenciava a imaturidade da situação objetiva e sua própria falta de experiência. A experiência da Revolução Russa mostrou a caducidade dessa visão. A estrutura do Estado baseada nos partidos políticos é própria do Estado Burguês e, mais especificamente, da democracia burguesa. A sociedade do período de transição não delega seu poder a partidos, ou seja, a corpos especializados. O semi-Estado desse período tem como estrutura o sistema dos sovietes, isto é, uma participaqção constante e direta das massas na vida e no funcionamento da sociedade. É com essa condição que as massas podem, a todo momento, revogar seus representantes, substituí-los e exercer um controle permanente sobre eles. A delegação de poder a partidos - quaisquer que sejam - é voltar a introduzir a divisão entre o poder e a sociedade e, por conseguinte, resulta em uma trava tremenda a sua emancipação.
Além do mais, como demonstrou a experiência da revolução de Outubro, a obra ou a participação do Partido do proletariado no Estado altera profundamente suas funções. Sem entrar na discussão sobre a função do partido e suas relações com a classe -essa é outra discussão-, basta aqui mencionar que simplesmente que as razões contingentes e as razões de Estado terminam sempre por prevalecer para o partido, identificando-o ao Estado e separando-o da classe, até que chegue a opor-se a ela.
Conclusão: uma coisa deve ficar clara de uma vez por todas. Quando falamos de autonomia, trata-se da autonomia da classe com relação ao Estado. O Estado por sua parte, tem que estar subordinado à classe. A tarefa do proletariado é a de garantir a extinção do Estado. A primeira condição para isso é a não identificação da classe com o Estado.
M.C (1978)
[1] Marx, Crítica da Filosofia do Estado de Hegel.
[2] "Essa essência é a própria união da vontade subjetiva e da razão: isto é, o todo moral, o Estado" (Hegel, Georg Wilhelm Friedrich - Filosofia da história; pg. 29 Ed. Universidade de Brasília)
[3] "É preciso saber que tal estado é a realização da liberdade, isto é, da finalidade absoluta, que ele existe por si mesmo; além disso, deve-se saber que todo valor que o homem possui, toda realidade espiritual, ele só tem mediante o Estado" (Idem)
[4] Marx, A questão Judaica. https://www.marxists.org/portugues/marx/1843/questaojudaica.htm [76]
[5] "... o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil" (Karl Marx, A Miséria da Filosofia - Global Editora, coleção Bases. Vol 46; 1985)
[6] Excluímos aqui voluntariamente as ameaças externas, ou seja, de país para país, que é um problema que existe, porém que, nesse caso, não faria mais que estorvar e ofuscar a clareza do texto e o que queremos colocar claro aqui: o papel do Estado na evolução das sociedades.
[7] Lênin, A vitória dos Cadetes e as Tarefas do Partido Operário. (28/03/1906)
[8] Idem
[9] Idem
[10] Idem
[11] Idem
[12] Como acontece muitas vezes com o idealismo, é radical em especulações abstratas só para cair mais facilmente na prática concreta nos piores oportunismos, o que não deixou de suceder com os anarquistas. Seu "anti-estatismo" feroz pós-revolucionário, fundamentado sobre uma ignorância voluntária das exigências da situação histórica, os conduziu diretamente a integrar-se e em defender ainda mais ferozmente o Estado burguês "republicano" na guerra da Espanha de 1936-1939.
[13] "Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado" Marx, Crítica do Programa de Gotha
[14] Em um erro desse tipo caiu a Oposição Operária quando reivindicava que se pusesse o Estado nas mãos dos sindicatos, e foi com razão que Lênin a qualificava de anarco-sindicalista
Em 2 de março de 1919, na sessão inaugural do Primeiro Congresso da Internacional Comunista, Lênin assinalava que o "sistema de sovietes" (Conselhos Operários em russo) havia deixado de ser algo completamente desconhecido para as grandes massas e tornou-se um termo enormemente popular e, sobretudo, havia se convertido em uma prática cada vez mais generalizada; assim, por exemplo, citava um telegrama recém chegado da Inglaterra que dizia "o governo inglês recebeu o soviete de delegados operários de Birmingham e prometeu-lhe reconhecer os Sovietes como organizações econômicas." [1]
Hoje, 90 anos depois, companheiros de diferentes países nos escrevem perguntando o que são os conselhos operários, reconhecendo que é um tema que apenas conhecem e sobre o qual gostariam de possuir elementos de juízo. O peso da mais forte contrarrevolução da história, as dificuldades de politização da sua luta que vem arrastando a classe operária desde 1968, a falsificação ou, mais, o silêncio sepulcral que os meios de comunicação e de cultura impõem sobre as experiências históricas do proletariado, fazem que termos como soviete ou conselho operário que tão familiares eram para as gerações operárias de 1917-23, sejam considerados pelas gerações atuais como algo estranho ou mencionado com um significado radicalmente diferente do que tiveram em sua origem [2].
Nesse sentido, o objetivo dessa série de artigos é contribuir em responder a perguntas muito simples: O que são os conselhos operários? Por que surgiram? Responderam a quais necessidades históricas? Continuam sendo válidos em nossa época atual? Que lições podemos tirar deles? Para responder essas perguntas, nos apoiaremos na experiência histórica de nossa classe, considerando-a tanto nas revoluções de 1905 e 1917 como em debates e contribuições teóricas de militantes
[1] Os 4 primeiros congressos da Internacioal Comunista, tomo I. Fonte: https://www.moreira.pro.br/docsocintercent.htm [77]
[2] A palavra "soviete" se vincula hoje ao feroz regime de capitalismo de Estado que imperou na antiga URSS e "soviético" aparece como sinônimo do imperialismo russo durante o grande período da Guerra Fria (1945-1949).
[3] Ler o artigo em espanhol: https://es.internationalism.org/rint141-consejos [78]
Por que os Conselhos Operários surgem em 1905 e não em 1871 com a Comuna revolucionária de Paris? [1]
O surgimento dos Conselhos Operários na Revolução Russa de 1905 só pode ser compreendido se se analisar conjuntamente 3 fatores: as condições históricas do período, as experiências de luta que o proletariado estava desenvolvendo e a intervenção das organizações revolucionárias.
Quanto ao primeiro fator, o capitalismo estava no auge de sua evolução, mas, ao mesmo tempo, mostrava sinais cada vez mais evidentes do início do seu declínio, especialmente no campo imperialista. Trotsky, em seu livro 1905 Balance e Perspectivas [2], em cujo estudo vamos nos apoiar, assinala que: "O capitalismo, ao impor a todos os países seu modo de economia e de comércio, havia convertido o mundo inteiro em um único organismo econômico e político" [3], porém isso precisamente: "desde o início dos acontecimentos, dá um caráter internacional e abre uma grande perspectiva: a tarefa de emancipação política que dirige a classe operária russa elevará a si mesma a um patamar até hoje desconhecido na história, colocará em suas mãos forças e meios colossais e lhe possibilitará, pela primeira vez, a começar com a destruição internacional do capitalismo, para o qual a história criou todas as condições objetivas prévias" [4]. Produtos desse novo período, já se tinha produzido movimentos massivos e greves gerais nos diferentes lugares do mundo antes de 1905: greve geral na Espanha em 1902, na Bélgica em1903 e na própria Rússia em diferentes momentos.
O segundo fator: Os conselhos operários não surgem do nada, não são o produto de uma tempestade repentina em um céu imaculadamente azul. Nos anos anteriores, acontecem numerosas greves na Rússia a partir de 1896: greve geral dos operários têxteis de São Petersburgo em 1896 e 1897; as grandes greves que, em 1903 e 1904, sacudiram todo o sul da Rússia etc. Todas elas são outras tantas experiências nas quais apontavam novas tendências de mobilizações espontâneas, de criação de organizações de luta completamente novas que já não correspondiam às formas tradicionais de luta sindical, preparando assim o terreno para as lutas de 1905:
"Mas se conhecermos um pouco da evolução política interna do proletariado russo, até ao estágio atual da sua consciência de classe e da sua energia revolucionária, não deixaremos de relacionar a história do presente período de luta de massas com as greves gerais [de 1896 e 1897] de São Petersburgo. Estas são importantes no problema da greve de massas, visto que já contêm em germe todos os princípios elementares das greves posteriores". [5]
Quanto ao terceiro fator, os partidos proletários (os bolcheviques e outras tendências) não haviam feito, evidentemente, nenhuma propaganda prévia sobre o tema dos sovietes, pois, de fato, seu aparecimento os surpreendeu; muito menos haviam criado estruturas organizadas "intermediárias" que os fossem preparando. Entretanto, seu trabalho incansável de propaganda contribuiu em grande medida para o surgimento dos sovietes. É o que Rosa Luxemburgo põe em relevo quando escreve sobre movimentos espontâneos como o da greve dos têxteis de São Petersburgo em 1896 e 1897: "Vemos já se delinearem todas as características de uma futura greve de massas: em primeiro lugar, o fato que desencadeou o movimento foi fortuito, e mesmo acessório, a explosão foi espontânea. Mas no modo como o movimento foi desencadeado manifestaram-se os frutos da propaganda conduzida em vários anos pela social-democracia." [6] E, com relação a isso, Rosa esclarece de maneira rigorosa qual é o papel dos revolucionários: "A social-democracia não tem poder para determinar a priori a ocasião e momento em que poderão desencadear-se as greves de massas na Alemanha porque está fora do seu poder fazer gerar situações históricas por meio de simples resolução de Congresso. Mas está no seu poder, e é seu dever precisar a orientação política dessas lutas, quando se produzem, e traduzi-las numa tática resoluta e conseqüente." [7]
Esta análise global permite compreender a natureza do grande movimento que sacudiu a Rússia durante 1905 e que entra em sua etapa decisiva nos últimos 3 meses do referido ano, de outubro a dezembro, durante os quais se generaliza o desenvolvimento dos conselhos operários.
O movimento revolucionário de 1905 tem sua origem imediata no memorável "Domingo Sangrento" de 22 de janeiro de 1905 [8]. O movimento tem um primeiro refluxo em março de 1905 para ressurgir por distintas vias em maio e julho [9]. No entanto, durante este período, toma forma de uma sucessão de explosões espontâneas com um nível muito débil de organização. Porém, a partir de setembro, a questão da organização geral da classe operária passa para o primeiro plano: entramos em um estágio de crescente politização das massas em cujo seio se percebem os limites da luta imediata reivindicativa, mas também a exasperação da situação política causada tanto pela atitude brutal do czarismo como pelas vacilações da burguesia liberal [10].
Vimos o solo histórico no qual nascem os primeiros sovietes. Porém, qual é sua origem concreta? É o resultado da ação deliberada de uma minoria audaz? Ou, pelo contrário, surgiram mecanicamente das condições objetivas?
Como havíamos dito, a propaganda revolucionária realizada desde alguns anos contribuiu no surgimento dos sovietes e Trotsky desempenhou um papel de primeira importância no soviete de São Petersburgo, porém o nascimento dos sovietes não foi, entretanto, o resultado direto nem da agitação nem das propostas organizativas dos partidos marxistas (divididos, naquela ocasião, em bolcheviques e mencheviques), menos ainda nasceram da iniciativa de grupos anarquistas como é apresentado por Volin [11] no seu livro A Revolução Desconhecida[12]. Volin situa a origem deste primeiro soviete entre meados ou final de fevereiro de 1905. Sem duvidar da verossimilhança dos fatos é importante assinalar que esta reunião -que ele próprio qualifica de "privada" - pode ser um elemento a mais que contribuiu com o processo que levaria ao surgimento dos sovietes porém não constituiu seu ato fundacional.
Costuma-se considerar o soviete de Ivanovo-Vosnesenk o primeiro ou um dos primeiros [13]. No total foram identificados entre 40 e 50 sovietes e também outros tantos de soldados e camponeses. Anweiler insiste nas suas origens heterogêneas: "Seu nascimento se fez através de outros organismos anteriores (comitês de greve ou assembléias de deputados, por exemplo), e sem mediação alguma de organizações locais do Partido Social-Democrata. As fronteiras entre o puro e simples comitê de greve e o conselho de deputados operários, verdadeiramente digno desse nome, eram frequentemente imprecisas; só foi nos centros principais da revolução e da classe trabalhadora (exceto São Petersburgo) como Moscou, Odessa, Novorossisk e na bacia do Donets, onde os conselhos possuíam uma forma de organização claramente definida" [14].
Assim, a paternidade dos sovietes não pertence a um personagem ou minoria específicos, porém isso não significa que nasceram do nada, por geração espontânea. Foram, fundamentalmente, a obra coletiva da classe operária: múltiplas iniciativas, inumeráveis discussões, propostas que surgiam aqui e acolá, tudo nas linhas da evolução dos acontecimentos e com a intervenção ativa dos revolucionários, acabou dando lugar aos sovietes. Afinando mais nesse processo podemos identificar dois fatores determinantes: o debate de massas e a radicalização crescente das lutas.
O amadurecimento da consciência das massas que se observa desde setembro de 1905 cristaliza-se no desenvolvimento de uma gigantesca vontade de debater. A propagação de discussões palpitantes nas fábricas, universidades, bairros, acaba por ser um fenômeno "novo" que aparece significamente durante o mês de setembro. Trotsky recolhe alguns testemunhos: "Um dos paradoxos políticos mais espantosos dos meses de outono de 1905 era o fato de que dentro dos muros das universidades ocorriam reuniões populares perfeitamente livres enquanto o ilimitado terror de Trepov [15] reinava nas ruas" [16]. Estas reuniões são freqüentadas cada vez mais massivamente por operários, "‘o povo' enchia os corredores, as salas de aula e os salões. Os operários iam diretamente das fábricas para a universidade", assinala Trotsky, que em seguida, acrescenta: "A agência telegráfica oficial, horrorizada com o aspecto do público concentrado no salão de reuniões da Universidade Vladimir, informou que, além dos estudantes, a multidão consistia em ‘uma profusão de pessoas estranhas de ambos os sexos, estudante de escolas secundárias, adolescentes das escolas privadas da cidade, operários e um populacho diverso'" [17].
Porém não se trata de um "populacho diverso" como afirma com desprezo a agência de notícias, mas de um coletivo que discute e reflete de maneira metódica, ordenada, observando uma grande disciplina e uma maturidade reconhecidas inclusive pelo cronista do jornal burguês Russ (Rússia), como é citado por Trotsky: "Sabem o que mais me espantou numa das reuniões da universidade? Uma ordem extraordinária exemplar. Imediatamente depois de eu ter chegado, anunciou-se uma pausa no salão de reuniões e fui passear pelos corredores. Um corredor universitário é parecido a uma rua. Todas as salas de aula que davam para o corredor estavam cheias de gente e em seu interior estavam ocorrendo reuniões independentes. O próprio corredor estava lotado: inúmeras pessoas caminhavam de um lado para o outro. (...) Poderia pensar-se que se tratava de uma recepção, só que um pouco mais séria do que costumam ser. No entanto, este era o povo: o povo real, autêntico, com as mãos enrijecidas pelo árduo trabalho manual, com essa cor terrosa que se obtém quando se passam os dias em lugares insalubres e mal arejados. [18].
Esse mesmo espírito é observado desde maio na cidade industrial citada anteriormente de Ivanovo-Vosnesensk: "as assembleias plenárias se celebravam todas as manhãs às nove horas. Uma vez terminada a sessão (do Soviete) começava a assembleia geral dos operários, que examinava todas as questões relacionadas com a greve. Prestava-se conta da marcha dessa última, das negociações com os patrões e as autoridades. Depois da discussão, eram submetidas à assembleia geral as proposições preparadas pelo Soviete. Imediatamente, os militantes dos partidos pronunciavam discursos de agitação sobre a situação da classe operária e o comício continuava até que o público se cansasse. Então, a multidão entoava hinos revolucionários e a assembleia se dissolvia. Assim se repetia todos os dias" [19].
Uma pequena greve na gráfica Sitin de Moscou que havia se iniciado em 19 de setembro ia acender a mecha da greve geral massiva de outubro em cujo seio se generalizaria os Sovietes. A solidariedade com os impressores de Sitin levou a greve a mais de 50 gráficas moscovitas e a celebração em 26 de setembro de uma reunião geral de tipógrafos que adotou o nome de Conselho. A greve se estende a outros setores: padarias, metalúrgicas e têxteis. A agitação ganhou as estradas de ferro, por um lado, e os impressores de Petersburgo, de outro, que se solidarizaram com os companheiros de Moscou.
Inesperadamente, outra frente de organização aparece: uma Conferência de representantes ferroviários sobre as Caixas de Assistência se inicia em Petersburgo em 20 de setembro. A Conferência lança um chamamento a todos os setores operários e não se limita a essa questão, mas coloca a necessidade de se reunirem operários dos distintos ramos e de propor reivindicações econômicas e políticas. Animada pelos telegramas de apoio recebidos de todo o país, a Conferência convoca uma nova reunião para o dia 9 de outubro.
Pouco depois, em 3 de outubro, "uma reunião dos deputados operários dos setores das gráficas, mecânica, marcenaria, fumo e outros, adotou a decisão de formar um conselho geral (soviete) de todos os trabalhadores de Moscou" [20].
A greve dos ferroviários que se iniciou espontaneamente em algumas linhas se generaliza a partir do dia 7 de outubro. Nesse marco, a reunião convocada para o dia 9 se transforma em "congresso de delegados de São Petersburgo do pessoal ferroviário, formularam-se as palavras de ordem da greve ferroviária e imediatamente foram despachados por telégrafo a todas as linhas. Essas palavras de ordem eram: jornada de oito horas, liberdades civis, anistia, assembléia constituinte". [21]
As reuniões massivas na universidade tinham produzido um intenso debate sobre a situação, as experiências vividas, as alternativas para o futuro, mas em outubro a situação se modifica: esses debates, sem desaparecer, amadurecem na luta aberta e esta, por sua vez, começa a dotar-se de uma organização geral que não somente dirige a luta como também integra e multiplica o debate massivo. A necessidade de se agrupar e se reunir, de unificar os diferentes focos grevistas tinha sido colocado de maneira especialmente aguda pelos operários de Moscou. Adotar um programa de reivindicações econômicas e políticas, de acordo com a situação histórica e com as possibilidades reais da classe operária, tinha sido o aporte do congresso ferroviário. Debate, organização unificada, programa de luta, esses foram os três pilares sobre os quais vão se levantar os sovietes. É, portanto, a convergência das iniciativas e propostas dos diferentes setores da classe operária o que lhe dá origem e de maneira alguma o "plano" de uma minoria. Nos sovietes se personifica o que 60 anos antes, no Manifesto Comunista, parecia uma elaboração utópica: "Todos os movimentos tem sido até agora realizado por minorias ou em proveito de minorias. O movimento proletário é um movimento independente da imensa maioria em proveito da imensa maioria".
Este Soviete fazia o seguinte chamamento: "A classe trabalhadora teve de recorrer à última e poderosa arma do movimento operário mundial: a greve geral. [...] Dentro dos próximos dias ocorrerão na Rússia acontecimentos decisivos. Esses acontecimentos determinarão por muitos anos o destino da classe operária; diante desses acontecimentos devemos encontrar-nos em plena disponibilidade, unidos por nosso soviete comum [...]" [24].
Essa passagem manifesta a visão global, a ampla perspectiva, que tem o órgão recém nascido da luta. De forma simples expressa uma visão claramente política e, em coerência com o ser profundo da classe operária, se vincula com o movimento operário mundial. Esta consciência é por sua vez expressão e fator ativo da extensão da greve para todos setores e para todo o país, praticamente generalizada desde 12 de outubro. A greve paralisa a economia e a vida social, porém o Soviete cuida para que isso não conduza a uma paralisia da própria luta operária como assinala Trotsky: "quando eram necessários boletins da revolução abria-se uma gráfica; utilizava-se o telégrafo para enviar instruções sobre a greve. Era permitida a passagem de trens que transportavam delegados grevistas." [25]. A greve "demonstrou, onde foi possível fazê-lo, que não se tratava simplesmente de interrupção temporária de trabalho, de um protesto passivo de braços cruzados. A greve se defendeu e, na sua defesa, passou à ofensiva. Em algumas cidades do Sul ergueram-se barricadas, tomaram-se lojas de armas e se ofereceu uma resistência, senão vitoriosa, ao menos heróica." [26]
O Soviete é o teatro ativo de um debate em torno de 3 eixos:
Nas condições de 1905 estão questões que podiam ser somente colocadas mas não podiam ser resolvidas. Será a revolução de 1917 a que vai dar a resposta. Porém a capacidade desenvolvida em 1917 é impensável sem os grandes combates de 1905.
Geralmente, imagina-se que perguntas como aquelas colocadas acima só podem ser o monopólio de pequenas mesas de "estrategistas da revolução". No entanto, no marco dos Sovietes são objeto de um debate massivo com a participação e contribuições de milhares de operários. Estes pedantes que consideram os operários incapazes de se ocupar de tais assuntos encontrariam provas de como eles falam desses temas com a maior naturalidade, transformam-se em especialistas apaixonados e comprometidos que derramam, no cadinho de organização coletiva, suas intuições, sentimentos, conhecimentos, construídos durante longos anos. Como o evocava Rosa Luxemburgo em sentido figurado: "Nas condições da greve de massas, o honrado pai de família se transforma em revolucionário romântico".
Se no dia 13 havia apenas 40 delegados na reunião do Soviete, nos dias seguintes o número de assistentes se multiplicou. O primeiro ato de toda fábrica que se declara em greve é eleger um delegado ao qual se dota de uma credencial conscientemente adotada pela assembléia. Há setores que vacilam, os trabalhadores têxteis de São Petersburgo, ao contrário dos seus colegas moscovitas, somente se unem a luta no dia 16. no dia 15, o Soviete... "O soviete tinha elaborado todos os tipos de métodos, desde as reivindicações verbais até a coerção violenta, para introduzir na greve os não-grevistas. Mas não foi necessário recorrer a métodos extremos. Quando uma solicitação verbal não tinha efeito, era suficiente que aparecesse em cena um grupo de grevistas - às vezes só uns poucos homens - e o trabalho era interrompido imediatamente" [27].
As reuniões do soviete eram uma antítese do que é um parlamento burguês ou uma reunião acadêmica universitária. "Não houve gestos de grandiloquência, essa úlcera das instituições representativas. As questões a debater - a expansão da greve e as exigências que se apresentariam à Duma - eram de natureza puramente prática e se discutiram brevemente, com energia e como se fossem questões comerciais. A gente sentia que cada átomo de tempo tinha razão de ser. A mínima tendência para a retórica era firmemente refreada pelo presidente, com a severa aprovação dos assistentes." [28].
Este debate vivo e prático, profundo e concreto, de uma só vez, expresava uma transformação da consciência e psicologia social dos operários porém, ao mesmo tempo, constituía um poderoso fator no desenvolvimento daquelas. Consciência como compreensão coletiva da situação social e de suas perspectivas, da força concreta das massas em ação e dos objetivos que deviam adotar, como percepção de quem são os amigos e quem são os inimigos, como esboço de uma visão do mundo e de seu futuro. Mas, ao mesmo tempo, psicologia social como fator distinto, embora concomitante com o anterior, que se expressa na atitude moral e vital dos operários que manifestam uma solidariedade contagiosa, uma empatia para com os demais, uma capacidade de abertura e aprendizagem, uma entrega desinteressada à causa comum.
Esta transformação espiritual parece utópica e impossível aos que unicamente vêem os operários sob a ótica da normalidade cotidiana onde aparecem como robôs atomizados, sem iniciativa nem sentimento coletivo, deslocados pelo peso da concorrência e da rivalidade, porém a experiência da luta massiva e no seio da formação dos conselhos operários mostra como isso constitui o motor de tal transformação, como disse Trotsky: "o socialismo não se propõe a tarefa de desenvolver uma psicologia socialista como condição prévia do socialismo, mas criar condições de vida socialistas como condição prévia de uma psicologia socialista" [29].
As Assembleias Gerais e os Conselhos eleitos por elas e responsáveis diante delas se transformaram no cérebro e no coração da luta por sua vez. Cérebro porque milhares e milhares de seres humanos pensam em voz alta e decidem após um silêncio de reflexão. Coração porque esses seres deixam de se ver como gotas perdidas em um oceano de pessoas desconhecidas e potencialmente hostis para se converter em parte ativa de uma vasta comunidade que integra a todos e a todos faz sentir fortes e respaldados.
Partindo desse sólido cimento, o Soviete situa o proletariado como um poder alternativo frente ao Estado burguês. Converte-se em uma autoridade socialmente cada vez mais reconhecida. "Na mesma medida em que se estendia a greve de outubro, o soviete se colocava cada vez mais na frente política. Sua importância crescia, literalmente, de hora em hora. O proletariado industrial foi o primeiro a unir-se à sua volta. [...] A União dos Sindicatos, que aderiu à greve desde 14 de outubro, viu-se obrigada a colocar-se sob a autoridade do soviete quase desde o início. Numerosos comitês de greves [...] adaptaram suas ações às decisões do soviete". [30]
Muitos autores anarquistas e conselhistas tem apresentado os Sovietes como os portadores de uma ideologia federalista consistente na autonomia local e corporativa que se oporia ao centralismo supostamente "autoritário e castrador" próprio do marxismo. Uma reflexão de Trotsky responde a estas objeções: "O papel de São Petersburgo na revolução russa não pode ser comparado de forma nenhuma ao de Paris na Revolução Francesa. A natureza econômica primitiva da França (e, em particular, dos meios de comunicação) e a centralização administrativa permitiram que Revolução Francesa se localizasse - na realidade - dentro dos limites de Paris. A situação era totalmente diferente na Rússia. O desenvolvimento capitalista criou na Rússia tantos centro independentes de revolução quantos centros industriais haviam; estes, sem perder a independência e a espontaneidade de seus movimentos, estavam estreitamente ligados entre si". [31]
Aqui vemos de maneira prática o significado da centralização proletária que está situada na antítese do centralismo burocrático e castrador próprio do Estado e, em geral, das classes exploradoras que existiram na história. A centralização proletária não parte da negação da iniciativa e da espontaneidade criadora de seus diferentes componentes mas, ao contrário, contribui com todas as suas forças para o seu desenvolvimento. Como acrescenta Trotsky: "As estradas de ferro e o telégrafo descentralizavam a revolução apesar do caráter centralizado do Estado, mas, ao mesmo tempo, levaram a unidade a todas as suas manifestações dispersas. Se como resultado de tudo isso reconhecemos que São Petersburgo deu as palavras de ordem na revolução, isto não significa que a revolução estivesse concentrada na Perspectiva Nevsky ou em frente do Palácio de Inverno, mas só que as palavras de ordem e métodos de luta de São Petersburgo encontraram um poderoso eco revolucionário em todo o país." [32].
O Soviete era a coluna vertebral dessa centralização massiva: "devemos reconhecer o Conselho (Soviete) dos Deputados Operários como a pedra angular de todos esse acontecimentos. - prossegue Trotsky - Não só porque foi a maior organização de trabalhadores que se viu na Rússia até esse momento; não só porque o Soviete de São Petersburgo serviu como modelo para Moscou, Odessa e outras cidades; mas, acima de tudo, porque essa organização proletária de base exclusivamente classista foi a organização da revolução como tal. O soviete foi o eixo de todos os acontecimentos, todas as linhas se dirigiam na sua direção, todo apelo para a ação emanava dele." [33]
Até o fim de outubro de 1905, via-se claramente que o movimento tinha chegado a uma encruzilhada: ou a insurreição ou o esmagamento.
Não é o objetivo desse artigo analisar os fatores que conduziram ao segundo dilema [34], é certo que o movimento acabou em uma derrota e que o regime czarista - dono novamente da situação - empreendeu uma repressão sem misericórdia. Porém a maneira como o proletariado travou a batalha de forma feroz e heróica mas plenamente consciente, foi exitosa em preparar o futuro. A dolorosa derrota de dezembro de 1905 preparou o futuro revolucionário de 1917.
Nesse desenlace, teve um papel decisivo o Soviete de São Petersburgo que fez todo o possível para preparar em melhores condições o enfrentamento inevitável. Formou patrulhas operárias de caráter inicialmente defensivo - contra as expedições punitivas das Centúrias Negras organizadas pelo Czar mobilizando o lixo da sociedade -, constituiu depósito de armas e organizou milícias, às quais deu treinamento.
Mas, ao mesmo tempo, e tirando lições das insurreições operárias do século XIX [35], o Soviete de São Petersburgo colocou que a questão chave estava na atitude da tropa, pela qual o grosso dos seus esforços se concentrou em ganhar os soldados para sua causa
Assim, os chamamentos e panfletos dirigidos ao exército, os convites à tropa para que assistissem às sessões do Soviete, não caiam no vazio. Respondiam a certo grau de amadurecimento do descontentamento dos soldados que desembocou no motim do encouraçado Potemkin - imortalizado pelo famoso filme - ou na sublevação da guarnição de Kronstadt em outubro.
Em novembro de 1905, o Soviete convocou uma greve massivamente acompanhada cujos objetivos eram diretamente políticos: a retirada da lei marcial na Polônia e a abolição do Tribunal Militar especial encarregado de julgar os marinheiros e soldados de Kronstadt. Esta greve que incorporou setores operários que até então nunca haviam lutado provocou uma induvidável simpatia entre os soldados. No entanto, simultaneamente, mostrou o esgotamento das forças operárias e a atitude majoritariamente passiva de soldados e camponeses, especialmente nas províncias, o que acarretou no fracasso da greve.
Outra contribuição do Soviete à preparação do enfrentamento foram duas medidas aparentemente paradoxais que tomou em outubro e novembro.
Quando perceberam que a greve de outubro entrara em descenso, o Soviete propôs às assembleias operárias que todos os operários retornassem ao trabalho na mesma hora. Esse fato constituiu uma impressionante demonstração de força que colocava em evidência a determinação e a disciplina consciente dos operários. A operação voltou a se repetir diante do declínio da greve de novembro. Era uma maneira de preservar as energias para o enfrentamento geral demonstrando ao inimigo a firmeza e unidade inquebrantável dos combatentes.
A burguesia liberal russa ao perceber a ameaça proletária cerrou fileiras com o regime czarista com o que este se sentiu fortalecido e empreendeu uma perseguição sistemática aos sovietes. Logo se pode comprovar que o movimento operário nas províncias estava em refluxo. Ainda assim o proletariado de Moscou lançou a insurreição que durou 14 dias de violentos combates.
O esmagamento da insurreição de Moscou constituiu o último ato de 300 dias de liberdade, fraternidade, organização, comunidade, protagonizados pelos "simples operários" como gostavam de lhes chamar os intelectuais liberais. Durante os dois meses esses "simples operários" levantaram um edifício simples, de funcionamento ágil e rápido, que alcançou em pouco tempo um poder imenso, os Sovietes. Mas com o final da revolução, pareciam ter desaparecido sem deixar rastro, pareciam sepultados para sempre... À exceção das minorias revolucionárias e grupos de operários avançados ninguém falava qualquer coisa sobre isto. No entanto, em 1917 reapareceram na cena social de maneira universal e com força irressistível. Veremos tudo isso no próximo artigo.
C. Mir 05/11/09
[1] Apesar de Marx reconhecer na Comuna "a forma enfim encontrada da ditadura do proletariado" e que apresenta notáveis elementos anunciadores do que logo serão os Sovietes, a comuna parisiense se vincula mais com as formas organizativas de democracia radical próprias de massas urbanas durante a revolução francesa: "A iniciativa para a proclamação da Comuna partiu do Comitê Central da Guarda Nacional, que ocupava o primeiro posto no sistema de conselhos de delegados militares e que havia se formado nas distintas unidades. O órgão de base, clube dos batalhões, elegia um conselho da legião, que enviava 3 representantes ao comitê central de 60 membros. Além do mais estava prevista uma assembleia geral dos representantes das companhias, que se reuniam uma vez ao mês" (do livro Los Soviets en Rusia, Oskar Anweiler, p. 19 ed. espanhola Editorial Zero. 1975)
[2] A edição em português da Global Editora difere da edição espanhola, pois esta última inclui dois livros: o livro 1905 e o livro Balance y Perspectivas. Enquanto a edição em português tem apenas o livro 1905, que foi lançado aqui com o título de A Revolução de 1905. Desta edição foram retiradas as citações deste artigo e traduzimos diretamente do espanhol as que se referem ao livro Balance y Perspectivas. Em algumas citações da edição em português, que consideramos alterar o sentido do texto, fizemos adaptações para melhor passar o que o autor queria passar com base nas edições espanhola e francesa.
[3] Trotsky, 1905 Balance e Perspectivas, p. 211, t. II Ed.espanhola Editorial Ruedo Ibérico - tradução nossa
[4] Idem.
[5] Rosa Luxemburgo: Greve de massas, partido e sindicatos. Ed. Kairós; p. 23
[6] Rosa Luxemburgo: Greve de massas, partido e sindicatos. Ed. Kairós; p. 24.
[7] Rosa Luxemburgo: Greve de massas, partido e sindicatos. Ed. Kairós; p. 65.
[8] Não podemos desenvolver uma crônica do que se passou. Ver "I - Hace 100 años, la revolución de 1905 en Rusia [79]".
[9] O livro Greve de massas, partido e sindicatos, de Rosa Luxemburgo, descreve e analisa de forma muito clara a dinâmica do movimento, com seus altos e baixos, momentos de pico e bruscos refluxos.
[10] Dentro da situação mundial de apogeu e começo do declínio capitalista, a situação russa se encontrava aprisionada pela contradição entre o freio que o czarismo feudal representava ao desenvolvimento capitalista e a necessidade da burguesia liberal de se apoiar nele, não só como aparato burocrático de seu desenvolvimento, mas como baluarte repressivo contra a emergência impetuosa do proletariado. Ver o livro de Trotsky anteriormente citado.
[11] Volin, militante anarquista que sempre foi fiel ao proletariado e denunciou a Segunda Guerra Mundial através de uma postura internacionalista.
[12] "uma tarde, em minha casa, onde Nossar falava [Nossar foi o primeiro presidente do Soviete de São Petersburgo em outubro de 1905] e, como sempre, muitos operários, apareceu entre nós a idéia de criar um organismo operário permanente, espécie de comitê, ou melhor, de conselho que acompanhasse o desenvolvimento dos acontecimentos, serviria de vínculo entre todos os operários, lhes informaria a situação e, se fosse o caso, poderia reunir em torno dele as forças operárias revolucionárias" (La Revolución desconocida - Libro primero, p. 63. Ed. Espanhola).
[13] Surgiu em 13 de maio de 1905 nessa cidade industrial de Ivanovo-Vosnesensk, no centro da Rússia. Para maiores detalhes ler o artigo da Revista Internacional nº 122 sobre 1905 (2ª parte).
[14] Oskar Anweiler, Los soviets en Rusia.
[15] General czarista famoso pela sua brutal repressão das lutas operárias.
[16] Trotsky, A Revolução de 1905. Ed. Global; p. 97.
[17] Idem, p. 98.
[18] Idem, p. 98.
[19] Andrés Nin, Los Soviets en Rusia, p. 17. Tradução nossa
[20] Trotsky, op. cit., p. 101.
[21] Idem, p. 102.
[22] O sentido da palavra deputados aqui não é o mesmo dos deputados que o parlamento burguês elege a cada 2, 4, 6 ou 8 anos, período que depende de país para país. O sentido da palavra deputado no presente texto refere-se ao deputado ou delegado operário eleito por uma base de operários. Estes deputados ou delegados operários eram responsáveis perante a base que o elegeu e podiam ser destituídos a qualquer momento por ela.
[23] Idem, p. 118.
[24] Citado por Trotsky, p. 118.
[25] Idem, p. 103.
[26] Idem, p. 108
[27] Idem, p. 120.
[28] Idem, p. 121.
[29] Trotsky, 1905 Balance e Perspectivas,, p. 207, t. II. Edição espanhola - tradução nossa
[30] Idem, p. 123.
[31] Idem, p. 116. Há uma modificação feita por nós para ficar mais fiel aotexto original. A última frase da citação da edição em português era: "estes, embora independentes, estavam intimamente ligados entre si". Comparando com as traduções espanhola e francesa, adaptamos para: "estes, sem perder a independência e a espontaneidade de seus movimentos, estavam estreitamente ligados entre si".
[32] Idem, p. 116. Há uma modificação feita por nós. Na edição em português usa-se "fora do Palácio de Inverno". Comparando com as traduções espanhola e francesa, adaptamos para: "em frente do Palácio de Inverno".
[33] Idem, p. 117.
[34] Consultar especificamente o artigo da Revista Internacional nº123 sobre "1905 e o papel dos Sovietes (3ª parte) [80]".
[35] Sobretudo os combates de barricadas cujo esgotamento soube ver Engels na famosa "Introdução" a A Luta de classes na França de Marx. Esta "Introdução", escrita em 1895, se tornou famosa porque a crítica que Engels fazia aos combates de barricada foi utilizada pelos oportunistas na Social-Democracia para aprovar o rechaço da violência e o emprego exclusivo de métodos parlamentaristas e sindicalistas.
O propósito desta série é responder a uma pergunta que é feita por muitos companheiros (leitores e simpatizantes), sobretudo entre os jovens: O que são os conselhos operários? No artigo anterior desta Série [1] vimos como nasceram pela primeira vez na história ao calor da Revolução de 1905 na Rússia e como a derrota desta levou ao seu desaparecimento. Neste segundo artigo, veremos como reapareceram com a Revolução de fevereiro de 1917, e de que maneira, cederam o poder à burguesia graças à traição de antigos partidos revolucionários -mencheviques e socialistas revolucionários (SR) - que os estavam sabotando a partir de dentro, como se foram distanciando da vontade e da consciência crescente das massas operárias até o extremo de converter-se em julho de 1917 em ponto de apoio da contrarevolução [2].
Oskar Anweiler na sua obra Os sovietes na Rússia [3] destaca como entre dezembro de 1905, momento da derrota da revolução, até 1907, houve numerosas tentativas de fazer reviver os sovietes. Em Petrogrado, na primavera de 1906, se constituiu um Conselho de desempregados que enviou delegados às fábricas agitando pela reconstituição do Soviete de tal maneira que, no verão de 1906, houve uma reunião que aglutinou 300 delegados, mas que não chegou a nenhuma conclusão dada a dificuldade para retomar a luta. O Conselho foi se descompondo ao enfraquecer cada vez mais a mobilização até seu desaparecimento total no verão (2º trimestre) de 1907. Em Moscou, Jarkov, Kiev, Poltava, Ekaterinoslav, Baku, Batum, Rostov e Kronstadt surgiram igualmente conselhos de desempregados que tiveram uma existência mais ou menos efêmera ao longo de 1906.
Em 1906-07 apareceram esporadicamente sovietes em cidades industriais do Ural. Mas foi em Moscou onde, no verão de 1906, se realizou uma tentativa mais séria de constituir sovietes. Uma greve iniciada em julho se estendeu rapidamente a numerosos centros de trabalho e imediatamente os operários elegeram delegados que em número de 150 lograram reunir-se constituindo um Comitê executivo que fez chamamento a extensão da greve e à formação de sovietes de bairros. No entanto, as condições não eram as de 1905, o governo, ao constatar que a mobilização em Moscou não encontrava eco, desatou uma forte repressão que acabou com a greve e com o recém reconstituído soviete.
Os sovietes desapareceram do cenário social até 1917. Este desaparecimento surpreende muitos companheiros que se perguntam: como é possível que os mesmos operários, que em 1905 haviam participado de forma tão entusiasta dos sovietes, os abandonaram no esquecimento? Como entender que a "forma" Conselho que havia demonstrado tanta eficácia e força em 1905 desaparecesse como um passo de mágica durante 12 anos?
Para responder a essa pergunta temos de evitar fazê-la a partir do ponto de vista da democracia burguesa que considera a sociedade como uma soma de indivíduos "livres e soberanos", tão "livres" para formar conselhos como para participar das eleições. Então. Como é possível que milhões de cidadãos que em 1905 "escolheram" constituir-se em sovietes, "escolham" renunciar a eles durante longos anos?
Semelhante ponto de vista, não pode entender que a classe operária não é uma soma de indivíduos "livres e autodeterminados", mas uma classe que somente consegue se expressar, atuar e se organizar quando, mediante a luta, impõe sua ação coletiva. Esta não é o resultado de uma soma de "decisões individuais", mas da concatenação de fatores objetivos (a degradação das condições de vida e a evolução geral da sociedade, a preocupação diante do futuro que esta depara) e subjetivos (a indignação provocada pela inquietude pelo futuro, as experiências de luta e o desenvolvimento da consciência de classe animada pela intervenção dos revolucionários). A ação e a organização da classe operária constituem um processo social, coletivo e histórico que traduz uma evolução das relações de força entre as classes.
Além do mais, esta dinâmica da luta de classes deve, por sua vez, situar-se no contexto histórico que permitiu o surgimento dos sovietes. Enquanto que no período histórico de apogeu do sistema -especialmente, durante essa "idade do ouro" que se estende entre 1873 e 1914- o proletariado pode constituir grandes organizações de massas (os sindicatos, em particular) que tinham uma existência permanente e que constituíam o requisito para levar lutas à vitória, no período histórico que se abre com a Primeira Guerra Mundial, a decadência do capitalismo, a organização geral da classe operária se constitui na luta e para a luta e desaparece com ela se não for capaz de ir até o final: até o combate revolucionário pela destruição do Estado burguês.
Em tais condições, o "ganho" que podem obter as lutas não pode refletir-se como em um livro de contabilidade, através de resultados ativos e passivos que se pode consolidar ano após ano, nem pode se refletir em uma organização de massas permanente. Pelo contrário, os "ganhos" se plasmam em fatores abstratos (consciência adquirida, enriquecimento do programa histórico proletário com as lições da luta, perspectiva para o futuro...), que se conquistam em grandes momentos de agitação para acabar desaparecendo do conhecimento imediato das amplas massas até se recuar no pequeno universo de minúsculas minorias, de maneira que pode se criara ilusão de ótica de que nunca tenha existido.
Assim ocorreu com os sovietes: entre 1905 e 1917 terminaram reduzidos a uma "idéia" que orientava a reflexão e os combates políticos de um punhado de militantes. Mas, ao contrário do que pensam os pragmáticos que só valorizam aquilo que se pode tocar e ver, essa "idéia" tinha uma poderosa força material. Em 1907, Trotsky escrevia: "Está fora de dúvida que a nova próxima investida da revolução trará consigo em todos os lados a criação de conselhos operários" [4]. De fato, os grandes protagonistas da Revolução de fevereiro foram os sovietes.
As minorias revolucionárias, especialmente os bolcheviques depois de 1905, defenderam e propagaram a ideia de constituir sovietes. Estas minorias mantiveram a chama da memória coletiva da classe operária. Por esta razão, quando eclodiram as greves de fevereiro que rapidamente tomaram uma grande amplitude, houve numerosas iniciativas e chamamentos para constituir sovietes. Anweiler sublinha que: "este pensamento nasceu tanto nas fábricas em greve como também nos círculos intelectuais revolucionários. Testemunhos presenciais informam que em algumas fábricas desde 24 de fevereiro eram eleitos homens de confiança para um soviete que estava se organizando" [5].
Quer dizer, a ideia que durante longo tempo esteve reduzida a pequenas minorias foi amplamente assumida na prática pelas massas em luta.
Por outro lado, o Partido bolchevique contribuiu significativamente para o surgimento dos sovietes. Esta contribuição não se baseou em um esquema organizativo prévio ou em impor uma cadeia de organizações intermediárias que ao fim desembocaria na formação de sovietes, mas em algo muito diferente, como veremos, vinculado a um ferrenho embate político.
No inverno de 1915, quando começaram a surgir algumas greves, sobretudo em Petrogrado, a burguesia liberal havia concebido um meio de atrelar os operários à produção de guerra mediante a proposta de eleições nas empresas para formar um "Grupo Operário" dentro dos Comitês industriais de guerra. Os mencheviques propuseram a participação e obtiveram uma ampla maioria, trataram de utilizar o "Grupo Operário" como um canal para apresentar reivindicações. Ou seja: reivindicavam uma "organização operária" totalmente vendida ao esforço de guerra, como já estavam os sindicatos em outros países europeus.
Os bolcheviques se opuseram a essas propostas. Lênin, em outubro de 1915, disse: "estamos contra a participação nos comitês industriais de guerra que ajudam a levar a guerra imperialista reacionária" [6]. Os bolcheviques chamavam à eleição de comitês de greve e o comitê do partido de Petrogrado propôs que: "os representantes das fábricas, eleitos baseados no sistema representativo proporcional em todas cidades, devem formar o Soviete de Deputados de toda Rússia" [7].
Em um primeiro momento, os mencheviques com sua política de eleições ao Grupo Operário controlaram ferrenhamente a situação. As greves que aconteceram no inverno de 1915 e as muito mais numerosas que eclodiram na segunda metade de 1916 permaneceram sob a égide do Grupo Operário menchevique, embora aqui ou acolá se formassem efêmeros comitês de greve. Todavia, a semente acabou frutificando em fevereiro de 1917.
A primeira tentativa de constituir um Soviete se realizou em Petrogrado em uma reunião improvisada celebrada no palácio Táuride em 27 de fevereiro. Os participantes não eram representativos; havia membros do partido menchevique e do Grupo Operário junto com alguns representantes bolcheviques e elementos independentes. Ali surgiu um debate muito significativo que colocava em jogo duas opções totalmente opostas: os mencheviques pretendiam que a reunião se autoproclamasse "Comitê provisório do Soviete", o bolchevique Chliapnikov... "(...) se opôs fazendo notar que isso não podia ser feito na ausência de representantes eleitos pelos operários. Pediu que os convocassem urgentemente e a assembléia lhe deu razão. Decidiu-se acabar a sessão e lançar convocatórias aos principais centros operários e os regimentos que se levantaram" [8].
A proposta teve efeitos fulminantes. Na mesma noite de 27, começou a circular por numerosos bairros, fábricas e quartéis. Operários e soldados estavam em alerta acompanhando muito de perto o desenrolar dos acontecimentos. No dia seguinte ocorreram numerosas assembléias nas fábricas e nos quartéis, uma após outra a decisão era a mesma: constituir um soviete e eleger um delegado. Pela tarde, o palácio Táuride estava lotado de delegados de operários e soldados. Sukhanov, nas suas Memórias [9], descreve a reunião que ia tomar a decisão histórica de constituir o Soviete: "no momento de iniciar a sessão havia uns 250 deputados, porém novos grupos entravam sem cessar no salão" [10], fala da eleição da presidência da reunião e de como ao eleger a ordem do dia, a sessão foi interrompida por diferentes delegados dos soldados que queriam transmitir as mensagens das suas respectivas assembléias de regimento. Resume uma delas: "Os oficiais desapareceram. Não queremos servir mais contra o povo, nos associaremos a nossos irmãos os operários, todos unidos para defender a causa do povo. Daremos nossas vidas por isso. Nossa assembléia geral pediu-nos que os saudemos". Ao que acrescenta Sukhanov: "e com uma voz sufocada pela emoção, entre as ovações da assembléia estremecida, o delegado acrescentou: Viva a Revolução!" [11]. A reunião constantemente interrompida pela chegada de novos delegados que queriam transmitir a posição dos seus representados, foi abordando sucessivamente as questões: a constituição de milícias nas fábricas, a proteção contra saques e contra ações das forças czaristas. Um delegado propôs a criação de uma "Comissão literária" que redigisse um chamamento dirigido a todo o país, a qual foi aprovada por unanimidade [12]. A chegada de um delegado do regimento de Semionofsky - famoso por sua fidelidade ao Czar e seu papel repressivo em 1905 - provocou uma nova interrupção. O delegado proclamou: "Camaradas e irmãos, vos trago a saudação de todos os homens do regimento Semionofsky. Todos até o último decidimos unirmos ao povo". Isso criou.. "... uma corrente de entusiasmo romântico que envolveu toda a assembléia" [13]. A assembléia organizou um "estado maior da insurreição" ocupando todos os pontos estratégicos de Petrogrado.
A assembléia do soviete não aconteceu no vazio. As massas estavam mobilizadas. Sukhanov assinala o ambiente que rodeava a sessão: "A multidão era muito compacta, dezenas de milhares de homens vieram saudar a revolução. Os salões do palácio não tinha sido capaz de conter mais pessoas e, nas portas, os cordões da Comissão Militar conseguiam conter a uma multidão mais numerosa ainda" [14].
Em 24 horas o Soviete era dono da situação. O triunfo da insurreição em Petrogrado provocou a extensão da revolução a todo país. "A rede de Conselhos operários e de soldados em toda Rússia formava a coluna vertebral da revolução. Com sua ajuda a revolução havia se estendido como uma trepadeira por todo o país" [15].
Como ganhou forma essa enorme "trepadeira" que imediatamente ocupou todo o território russo? Existem diferenças entre a formação dos Sovietes em 1905 e em 1917. Em 1905, a greve eclodiu em janeiro e as sucessivas ondas de greve não deram lugar a nenhuma organização massiva salvo algumas exceções. Os sovietes começaram a constituir-se tardiamente, em outubro. Em contrapartida, em 1917, a luta mesma criou os sovietes desde o próprio início. Os chamamentos de 28 de fevereiro do Soviete de Petrogrado caíram em solo fértil. A espantosa rapidez com que se formou em menos de 24 horas já revela de per si que a vontade de amplas camadas de operários e soldados era a constituição do Soviete.
As assembléias eram cotidianas. E não se limitavam a eleger o delegado para o Soviete. Frequentemente o acompanhavam ao local da reunião geral em comitiva massiva. Por outro lado, formavam-se paralelamente sovietes de bairro. O próprio soviete havia lançado um chamamento a constituí-los, porém nesse mesmo dia os operários do combativo bairro de Vyborg, uma concentração proletária nos arredores de Petersburgo, haviam se adiantado formando um soviete de distrito e lançando um combativo chamamento a constituí-los por todo o país. Seu exemplo foi imitado nos dias seguintes por outros bairros populares.
Do mesmo modo, as assembléias nas fábricas formaram imediatamente conselhos de fábrica. Estes, embora surgidos para necessidades reivindicativas e de organização interna do trabalho, não se restringiam a isso e estavam fortemente politizados. Anweiler reconhece que: "Os conselhos de fábrica adquiriram no transcurso do tempo uma sólida organização em São Petersburgo o que em certa medida representava uma concorrência a respeito ao Conselho de deputados operários. Associaram-se aos conselhos de rayon (bairros), cujos representantes elegiam um Conselho central com um comitê executivo à frente. Dado que abarcavam aos trabalhadores diretamente no seu local de trabalho, cresceu seu papel revolucionário na mesma medida em que o Soviete [de São Petersburgo] se convertia em uma instituição duradoura e começava a perder seu estreito contato com as massas"[16].
A formação de Sovietes se extendeu como um rastro de pólvora por toda Rússia. Em Moscou, "em 10 de março tiveram lugar as votações para a eleição de delegados nas fábricas e o Soviete celebrou sua primeira sessão elegendo um Comitê Executivo de 30 membros. No dia seguinte, formou-se o Conselho definitivamente; foram fixadas normas de representatividade, votaram-se em delegados para o Soviete de Petrogrado e se aprovou a formação do novo governo provisório (...) A marcha triunfal da revolução que se propagou de São Petersburgo a toda Rússia estava acompanhada de uma onda revolucionária de atividade organizativa em todas as camadas sociais que encontrou sua mais forte expressão na formação de Sovietes em todas as cidades do Império, desde a Finlândia até o oceano Pacífico" [17].
Embora se ocupassem de assuntos locais, sua principal preocupação eram problemas gerais: a guerra mundial, o caos econômico, a extensão da revolução a outros países e tomaram medidas para concretizá-la. Há de se destacar que o esforço de centralizar os sovietes veio fundamentalmente "de baixo" e não a partir de cima. Citamos anteriormente como o Soviete de Moscou decidiu enviar delegados ao Soviete de São Petersburgo, considerado de maneira natural como o centro de todo o movimento. Anweiler assinala que: "os conselhos de operários e soldados de outras cidades mandavam os seus delegados a São Petersburgo ou mantinham observadores constantes no soviete"[18]. Desde meados de março surgiram iniciativas de congressos regionais de sovietes. Em Moscou aconteceu uma conferência dessa índole entre 25-27 de março com participação de 70 conselhos operários e 38 de soldados. Na bacia do Donets em uma conferência similar se juntaram 48 sovietes. Tudo isso culminou com a celebração de uma primeira tentativa de Congresso de sovietes de toda Rússia que ocorreu de 29 de março a 3 de abril e que reuniu delegados de 480 sovietes.
O "vírus organizativo" contagiou os soldados que, fartos da guerra, desertavam dos campos de batalha, se amotinavam, expulsavam os oficiais e decidiam voltar para casa. Diferente de 1905 onde apenas houve sovietes de soldados, agora esses proliferavam em regimentos, encouraçados, bases navais, arsenais... Os soldados constituíam um conglomerado de classes sociais sendo principalmente camponeses e em menor medida operários. No entanto, apesar da heterogeneidade reinante, uniram-se majoritariamente ao proletariado. Como assinala um historiador e economista burguês Tugan-Baranovski: "Não foi o exército quem desencadeou a insurreição, foram os operários. Não foram os generais, mas soldados que se dirigiram à Duma [19] do Império. E os soldados apoiaram os operários não por obtemperar docilmente às ordens dos seus oficiais, mas... porque eles sentiam-se aparentados pelo sangue aos operários, como classe trabalhadora, como eles próprios." [20] .
A organização soviética ganhou lentamente o campo até se fazer mais ampla a partir de maio de 1917, onde a formação de Sovietes Camponeses começou a agitar as massas habituadas a serem tratadas como bestas durante séculos. Era também uma diferença fundamental a respeito de 1905 onde se havia dado alguns levantes camponeses totalmente desorganizados;
Que toda Rússia se visse coberta por uma gigantesca rede de Conselhos é um fato histórico de enorme transcendência. Como assinala Trotsky: "Se olharmos para os séculos passados, a passagem do poder para as mãos da burguesia parece seguir uma regra definida: em todas as revoluções precedentes, nas barricadas lutavam operários, pequenos camponeses, pequenos artesãos, certo número de estudantes; os soldados tomavam partido; a seguir, a burguesia bem abastecida, que tinha prudentemente observado os combates de barricadas pela janela, recolhia o poder." [21] ,porém desta vez não foi assim, as massas deixaram de "trabalhar para os outros" e se dispuseram trabalhar para si mesma através dos conselhos. Seu trabalho ocupava todos os assuntos da vida econômica, política, social e cultural.
As massas operárias estavam mobilizadas. A expressão dessa mobilização era os sovietes e, ao redor deles, uma imensa rede de organizações do tipo soviético (conselhos de bairros e conselhos de fábrica), rede que se nutria, ao mesmo tempo que impulsionava, de uma impressionante multiplicação de assembléias, reuniões, debates, atividades culturais... Operários, soldados, mulheres, jovens, se entregavam a uma atividade fervorosa. Viviam em uma espécie de assembléia permanente. Interrompia-se o trabalho para assistir a assembléia da fábrica, ao soviete da cidade ou de bairro, a concentrações, comícios, manifestações. É significativo que após a greve de fevereiro apenas houve greves em momentos muito determinados ou em situações pontuais ou locais. Contrariamente a uma visão restritiva, a ausência de greves não significava desmobilização. Os operários estavam em luta permanente, mas a luta de classes, como dizia Engels, constitui a unidade que forma a luta econômica, a luta política e a luta ideológica. E as massas operárias estavam entregues simultaneamente a essas três dimensões do seu combate. Ações massivas, manifestações, concentrações, debates, circulação de livros e jornais, as massas operárias russas, haviam tomado em suas mãos seu próprio destino e encontravam no seu interior reservas inesgotáveis de pensamento, iniciativas, investigação, tudo era abordado sem descanso em amplos fóruns profundamente coletivos.
O Governo provisório, camuflado por trás dos sovietes, continuava sua política de guerra e não se preocupava em resolver os graves problemas que afligiam os operários e camponeses. Isto conduzia os sovietes à inoperância e ao desaparecimento, como pode se constatar através das declarações de dirigentes social-revolucionários: "Os sovietes não representam nenhum governo frente à Assembléia constituinte nem muito menos estão ao mesmo nível que o Governo provisório. São conselheiros do povo na sua luta e são conscientes que representam somente uma parte do país e só gozam da confiança daquelas massas populares por cujos interesses lutam. Por isso os sovietes têm evitado sempre tomar o poder nas suas próprias mãos e constituir um governo" [25].
Um setor da classe operária começou a tomar consciência desta armadilha já desde os primeiros dias de março. Houve acalorados debates em alguns sovietes, conselhos de bairro e comitês de fábrica sobre a "questão do poder". Porém nesse momento a vanguarda bolchevique recuava, pois seu Comitê Central [26] havia adotado uma resolução de apoio crítico ao Governo provisório apesar da forte oposição que provocou em diferentes secções do partido [27].
O debate se intensificou em março. "O comité de Vyborg juntou numa reunião política milhares de operários e de soldados que, quase unanimemente, adoptaram uma resolução sobre a necessidade da tomada do poder pelo Soviete. O comité de Vyborg celebrava comícios com milhares de operários e soldados, nos quais se votava, quase por unanimidade, resoluções que faziam ressaltar a necessidade de que o Soviete tomasse o poder. [...] A resolução de Vyborg, por causa do seu sucesso, foi imprimida e colada em cartazes. Mas o comitê de Petrogrado proibiu essa resolução " [28].
A chegada de Lênin em abril transformou radicalmente a situação. Lênin, que desde seu exílio suíço via com inquietude as notícias que chegavam fragmentadas da vergonhosa conduta do Comitê Central do Partido bolchevique, havia chegado às mesmas conclusões que o Comitê de Vyborg. Nas suas Teses de Abril formulou claramente que: "A peculiaridade do momento atual na Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau necessário de consciência e organização, para a sua segunda etapa, que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato." [29] . [Fonte: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm] [81]
Muitos autores não enxergam esta intervenção decisiva de Lênin como uma manifestação clara do papel de vanguarda do partido revolucionário e de seus militantes mais destacados, mas que, pelo contrário, a consideram um ato de oportunismo político. Segundo eles, Lênin aproveitou a ocasião de utilizar os sovietes como plataforma para conquistar "o poder absoluto" e trocou a jaqueta de "ferrenho jacobino" pela roupagem anarquista do "poder direto das massas". De fato, um antigo membro do partido lhe alfinetou: "Durante muitos anos, o lugar de Bakunine na revolução russa ficou livre: agora, ele foi tomado por Lênin." [30].
Esta lenda é radicalmente falsa. A confiança de Lênin no papel dos Sovietes vinha de longe, extraía das lições que havia tirado da Revolução de 1905, em um projeto de resolução que propôs ao IVº Congresso do Partido (abril 1906) escreveu que: "À medida que os conselhos operários representam núcleos do poder revolucionário, sua força e significado dependem totalmente da força e da vitória do levante", para acrescentar em seguida que: "este tipo de organizações está condenada ao fracasso, se não se apóiam no exército revolucionário e derrotem os poderes estatais (quer dizer, se convertem em um governo provisório revolucionário)" [31].
Em 1915 voltava a insistir na mesma idéia: "Conselhos de delegados operários e instituições parecidas devem ser considerados como órgãos de insurreição, como órgãos de poder revolucionário. Estas instituições somente podem ser de interesse seguro em relação ao surgimento da greve massiva política" [32].
Lênin, no entanto, era consciente de que o combate não tinha feito mais do que começar: "Somente lutando contra esta inconsciência confiante (e pode-se e deve-se lutar contra ela apenas ideologicamente, pela persuasão fraternal, apontando para a experiência da vida) podemos libertar-nos do desencadeamento de frases revolucionárias reinantes e impulsionar verdadeiramente tanto a consciência do proletariado como a consciência das massas, como a sua iniciativa audaz e resoluta à escala local" [33]. Isso se comprovou amargamente no primeiro Congresso dos sovietes de toda Rússia. Convocado para unificar e centralizar a rede dos diferentes tipos de sovietes espalhados por todo o território, adotou resoluções que não só iam contra a revolução, mas presumia-se um golpe moral nos próprios sovietes. Nos meses de junho e julho salta à plena luz um grave problema político: a crise dos sovietes, seu afastamento da revolução e das massas.
A situação geral era de completo desajuste: fechamento de indústrias e aumento considerável do desemprego, paralisia dos transportes, perda de colheitas no campo, racionamento geral. E no exército se multiplicavam as deserções e as tentativas de confraternização com os soldados da frente inimiga. O bando imperialista da Entente (França, Inglaterra e agora Estados Unidos) pressionava o Governo provisório para que empreendesse uma ofensiva geral contra as frentes alemãs. Complacentes com essas pressões, os delegados mencheviques e social-revolucionários fizeram o Congresso dos sovietes adotar uma resolução em apoio à ofensiva militar embora uma importante minoria -não só bolcheviques- estivesse contra. O Congresso rechaçou uma proposta de aprovação da jornada de trabalho de 8 horas e jogou abaixo propostas favoráveis aos camponeses. Em lugar de ser expressão da luta revolucionária se convertia em porta voz do combate da burguesia contra o ascenso da revolução.
O conhecimento das sucessivas resoluções do Congresso -especialmente a que aprovava a ofensiva guerreira- provocou uma profunda decepção nas massas. Percebiam que seu órgão escapava-lhes das mãos, porém começaram a reagir. Sovietes de bairro de São Peterburgo, o Soviet da vizinha cidade marítima de Kronstadt e diversos conselhos de fábrica e comitês de vários regimentos propuseram uma grande manifestação em 10 de junho cujo objetivo era pressionar o Congresso para que mudasse sua política e se orientasse para a tomada completa do poder expulsando os ministros capitalistas.
A resposta do Congresso foi proibir temporariamente as manifestações argüindo o "perigo" de um "complô monárquico". Os delegados do Congresso foram mobilizados para se dirigirem às fábricas e regimentos para "convencer" os operários e soldados. O depoimento de um delegado menchevique publicado em Izvestia, órgão do Soviete de Moscou, é eloqüente: "Durante toda a noite, a maioria do Congresso, mais de quinhentos dos seus membros, sem pregar olho, por equipas de dez, percorreram as fábricas, as oficinas e os quartéis de Petrogrado, exortando os homens a absterem-se de manifestar. O Congresso, num bom número de fábricas e de oficinas e também numa certa parte da guarnição, não gozou de qualquer autoridade ... Os membros do Congresso foram acolhidos muitas vezes de maneira pouco amistosa, por vezes mesmo com hostilidade, e frequentemente foram repelidos colericamente." [34].
A frente burguesa compreendeu a necessidade de salvar seu trunfo principal -o sequestro dos sovietes- contra a primeira tentativa séria das massas por recuperá-los. Mas o fez - com seu maquiavelismo congênito - utilizando como bode expiatório os bolcheviques, contra os quais lançou uma furiosa campanha. No congresso de cossacos que se celebrava ao mesmo tempo que o Congresso dos sovietes, Miliukov designava: "os bolcheviques como os piores inimigos da revolução russa." (...) "É tempo de acabar com esses senhores.". [35] O Congresso cossaco decidiu: "apoiar os sovietes ameaçados. Nós cossacos jamais nos separaremos dos sovietes". A principal força repressiva do czarismo cerrava fileiras com os sovietes! Como disse Trotsky: "Contra os bolcheviques, os reaccionários estavam prontos a marchar mesmo com o Soviete para melhor o abafar a seguir" [36]. O menchevique Liber traçou claramente o objetivo quando disse no Congresso: "se queres que a massa que está com os bolcheviques os siga, rompam com o bolchevismo".
A violenta contraofensiva burguesa aconteceu numa situação em que as massas, no seu conjunto, eram ainda politicamente débeis. Os bolcheviques compreenderam e propuseram o cancelamento da manifestação de 10 de junho, o qual foi aceito com relutância em alguns regimentos e nas fábricas mais combativas.
Ao chegar a notícia ao Congresso dos sovietes, um delegado propôs que se realizasse a manifestação "verdadeiramente soviética" para o 18 de junho. Miliukov analisa assim essa convocatória: "Depois de pronunciar no Congresso dos sovietes discursos de tom liberal, depois de ter impedido a manifestação armada de 10 de junho, os ministros socialistas tiveram a sensação de que tinham, ido demasiado longe na sua aproximação ao nosso campo. Se assustaram e deram uma viragem para os bolcheviques". Trotsky o corrige justamente: "Não era precisamente uma viragem para os bolcheviques, mas algo muito distinto: uma tentativa de viragem para as massas contra o bolchevismo" [37].
Porém o tiro saiu pela culatra. Os operários participaram massivamente na manifestação de 18 de junho, com cartazes que exigiam todo poder aos sovietes, reclamando a saída de todos os ministros capitalistas, o fim da guerra, chamamento à solidariedade internacional... Os manifestantes seguiam massivamente as orientações bolcheviques e reivindicavam tudo ao contrário do que foi pedido pelo Congresso
A situação continuou se agravando. A burguesia russa, assessorado por seus aliados da Entente, encontrava-se metida em um beco sem saída. A famosa ofensiva militar estava se tornando um fiasco. Os operários e os soldados queriam uma mudança radical da política dos sovietes. Mas nas províncias a situação não estava tão clara e no campo, apesar da progressiva radicalização, a grande maioria estava com os socialistas revolucionários e com o Governo provisório.
Era o momento para a burguesia de perpetrar uma emboscada para as massas de São Petersburgo para levá-las a um enfrentamento prematuro que permitisse assentar um duro golpe na vanguarda do movimento e desta forma abrir as portas a contrarrevolução.
As forças burguesas estavam se reorganizando. Tinha se formado um "soviete de oficiais" cuja missão era organizar forças de elite para abater militarmente a revolução. Alentada pelas democracias ocidentais, as centúrias negras czaristas voltavam a levantar a cabeça. A velha Duma funcionava - segundo palavras de Lênin - como uma fábrica contrarrevolucionária sem que os líderes social-traidores dos sovietes lhe pusessem nenhum obstáculo.
Uma série de hábeis provocações foi tecida para jogar os operários de São Petersburgo na armadilha de uma insurreição prematura. Por um lado, o partido cadete retirou seus ministros do Governo provisório de tal forma que este ficou unicamente composto por "socialistas". Era uma forma de convidar aos operários que reivindicassem a tomada imediata do poder e se lançassem, portanto, à insurreição. A Entente colocou um claro ultimato ao Governo provisório no sentido de "eleger": os sovietes ou um governo constitucional. No entanto, a mais violenta provocação foi a ameaça de deslocar os regimentos mais combativos da capital para as regiões fronteiriças.
Quantidades numerosas de trabalhadores e soldados de Petersburgo morderam o anzol. A partir de vários sovietes de bairro, de fábrica e de regimento convocaram uma manifestação armada para o dia 4 de julho. O eixo da manifestação era a tomada do poder pelos sovietes. Isso mostrava como os operários compreendiam que não havia mais saída a não ser a revolução. Porém, ao mesmo tempo, pretendiam que os encarregados de exercer o poder fossem os sovietes tal e como estavam constituídos na ocasião: com a maioria de mencheviques e socialistas revolucionários cuja única preocupação era mantê-los submetido à burguesia. Produziu-se um cenário muito conhecido: um velho operário desafiando a um membro menchevique do Soviete: "por que não tomais o poder de uma vez?", uma cena significativa das ilusões persistentes no seio da classe operária. Era como pedir à raposa que cuidasse do galinheiro, tudo isso mostrava a insuficiência na consciência das massas e as ilusões que ainda as debilitava. Os bolcheviques não morderam a isca e alertaram da armadilha em curso. Entretanto, não o fizeram desde uma posição de suficiência, colocados em um pedestal a partir do qual dizer às massas o quanto estavam equivocadas. O que fizeram foi colocarem-se à frente da manifestação, estar com os operários e soldados, contribuir com todas suas forças para que a resposta massiva fosse firme, mas não se dirigisse para um confronto decisivo onde a derrota estava mais que garantida [38].
A manifestação se recolheu ordenadamente e não se lançou ao assalto revolucionário. O massacre foi evitado resultando em um triunfo das massas frente ao futuro. Porém a nível imediato, a burguesia não podia retroceder, tinha que apostar fortemente na via da contraofensiva. O Governo provisório, inteiramente constituído por ministros "operários", desencadeou uma brutal repressão ocupando-se especialmente dos bolcheviques. O partido foi declarado fora da lei, numerosos militantes aprisionados, toda sua imprensa fechada, Lênin teve de passar para a clandestinidade.
Graças a um esforço difícil e heróico, o Partido bolchevique contribuiu decisivamente para evitar a derrota das massas, da sua dispersão e da ameaça de debandada por causa da sua desorganização. O Soviete de São Petersburgo, em contrapartida, apoiado pelo Comitê executivo eleito no recente congresso soviético, se colocou claramente ao lado do Governo provisório. Avalizou a repressão e a perseguição de operários combativos. Adotou, uma após outra, resoluções repressivas. O Soviete havia chegado ao máximo da sua ignomínia.
A organização das massas em conselhos operários desde fevereiro de 1917 significou, para elas, a possibilidade de desenvolver sua força, sua organização e sua consciência para o assalto final contra o poder da burguesia. O período seguinte, chamado o período de dualidade de poder entre o proletariado e burguesia, foi uma fase crítica para as duas classes antagônicas que podia ter desembocado, tanto para uma como para outra, em uma vitória política e militar sobre a classe inimiga.
Durante todo esse período, o nível de consciência das massas, débil ainda em comparação com as necessidades de uma revolução proletária, era uma brecha que a burguesia tentaria utilizar para fazer abortar o processo revolucionário em gestação. Para isso dispunha de uma arma tão perigosa quanto prejudicial. A da sabotagem a partir de dentro, realizado por forças burguesas com cara "operária" e "radical". Esse cavalo de Tróia da contrarrevolução era formado naquele tempo, na Rússia, pelos partidos "socialistas" Menchevique e o SR.
No início, muitos operários alimentavam ilusões com relação ao Governo provisório, vendo-o como uma emanação dos sovietes, quando era, na realidade, seu pior inimigo. Quanto aos mencheviques e socialistas revolucionários, dispuseram de uma grande confiança entre as grandes massas, as quais conseguiram enganar com seus discursos radicais, sua fraseologia revolucionária. Isso lhes permitiu dominar politicamente a grande maioria dos sovietes. Graças a essa posição de força se dedicaram a esvaziá-los da sua substância revolucionária para colocá-los a serviço da burguesia. E se não lograram êxito foi porque as massas mobilizadas permanentemente, faziam sua própria experiência, o que as levou, com o apoio do Partido bolchevique, a derrubarem a máscara dos mencheviques e socialistas revolucionários na medida em que esses iam assumindo cada dia mais as orientações do Governo provisório sobre questões tão fundamentais como a guerra e as condições de vida.
No próximo artigo veremos como desde o fim de agosto de 1917, os sovietes conseguiram renovar-se e converter-se realmente em plataforma para a tomada do poder, o que culminou no triunfo da Revolução de outubro.
C.Mir 08-03-10
[1] Ver: https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_que_sao_os-Conselhos_Oper [82]ários
[2] Tanto para conhecer em detalhes de como se desenvolveu a revolução russa como para ver o papel decisivo desempenhado pelo partido bolchevique existe muito material. Destacamos: A História da Revolução Russa de Trotsky (2 volumes), Dez dias que abalaram o mundo de John Reed, nosso folheto sobre a Revolução Russa (Outubro de 1917) e diferentes artigos da nossa Revista Internacional, nºs 71, 72, 89, 90 e 91
[3] Este autor é altamente anti-bolchevique, mas narra de maneira fidedigna os fatos e reconhece com equanimidade os aportes bolcheviques, o que contrasta com os juízos sectários e dogmáticos que, de vez em quando, ele aplica.
[4] Citado por Oskar Anweiler, Los sovietes en Rusia, p. 96. Tradução nossa.
[5] Ibidem, p. 110.
[6] Ibid., p. 105.
[7] Ibid., p. 106.
[8] Gerald Walter, Vision d'ensemble de la Révolution russe (Visão do conjunto da Revolução Russa), p. 83, edição francesa, tradução nossa.
[9] Publicadas em 1922 em 7 volumes, dão o ponto de vista de um socialista independente, colaborador de Gorki e dos mencheviques internacionalistas de Martov. Embora esteve em discordância com os bolcheviques apoiou a Revolução de Outubro. Esta citação e as seguintes correspondem ao compêndio das Memórias publicadas em espanhol. Tradução nossa.
[10] Segundo Anweiler, op. cit., havia uns mil delegados no final de sessão e, nas sessões seguintes, chegou a ter 3000.
[11] Ibid., p. 54.
[12] Esta comissão proporia a edição permanente de um periódico do Soviete, Izvestia (Notícias) que apareceria regularmente a partir de então.
[13] Citado por Anweiler, op. cit.
[14] Ibid., p. 56.
[15] Ibid., p. 124
[16] Ibid., p. 133.
[17] Ibid., p. 121.
[18] Ibid., p. 129
[19] Duma: Câmara de Deputados na Rússia.
[20] Citado por Trotsky na História da Revolução Russa. Fonte:: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap08.htm [83]
[21] Trotsky, op. cit..Fonte: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap09.htm [84].
[22] Partido Constitucional Democrata (KD), ou Cadete, era o partido da grande burguesia constituído apressadamente em 1905. Seu chefe foi Miliukov, eminência parda da burguesia russa à época.
[23] Trotsky relata como a burguesia estava atada à paralisia e como os chefes mencheviques utilizaram seu controle sobre os sovietes para lhe entregar o poder incondicionalmente de tal maneira que Miliukov "não se preocupava em dissimular sua satisfação e sua agradável surpresa"(Memórias de Sukhanov),).
[24] Este advogado, muito popular nos círculos operários de antes da Revolução, terminou sendo nomeado chefe do Governo Provisório, dirigindo as diferentes tentativas para acabar com os operários. Suas intenções são reveladas pelas memórias do embaixador inglês da época: "Kerenski me pediu paciência assegurando-me que os sovietes acabariam morrendo de morte natural. Pouco a pouco iriam cedendo suas funções aos órgãos democráticos de administração autônoma".
[25] Citado por Anweiler, op. cit., p. 151.
[26] Era constituído por Stálin, Kamenev e Molotov. Lênin continuava exilado na Suíça e só tinha meios de contatar com o partido.
[27] Em uma reunião do Comitê do Partido de São Petersburgo, celebrada em 5 de março, o seguinte projeto de Resolução apresentado por Chliapnikov foi derrotado: "A tarefa do momento é formar um Governo provisório revolucionário que nasça da união dos conselhos de operários, soldados e camponeses. Como preparação para a completa conquista do poder central é imprescindível consolidar o poder dos conselhos de operários e soldados;" (Citado por Anweiler, op Cit., P. 156)
[28] Trotsky, op. cit., Fonte: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap15.htm [85]
[29] Nesse artigo não podemos abordar o conteúdo dessas Teses que são muito interessantes. Para tanto veja: "As teses de abril, farol da revolução proletária" (Fonte: https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/revolucao_mundial_teses_ab... [86])
[30] Trotsky, op. cit. Fonte: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap15.htm [85]
[31] Citado por Anweiler, op. cit., p. 88.
[32] Ibid., p. 92.
[33] Lênin, As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução (Projecto de Plataforma do Partido Proletário. Fonte: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/23.htm [87]
[34] Citado por Trotsky em História da Revolução Russa.Fonte: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap22.htm [88]
[35] É prova do cinismo típico da burguesia que seu chefe de então na Rússia fale em nome da "Revolução Russa"!
[36] Trotsky, op. cit. Fonte: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap22.htm [88]
[37] Ambas citações estão na página 412 do volumem I da História da Revolução Russa.
[38] Para uma análise mais detalhada deste episódio, remetemos ao leitor ao capítulo "As jornadas de Julho - O partido faz abortar uma provocação da burguesia" da nossa brochura Outubro de 1917: https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/revolucao_russe_partitdo.htm [89] .
A série O que são os conselhos operários? se propõe a responder a pergunta analisando a experiência histórica do proletariado. Não se trata de elevar os sovietes a um modelo infalível que simplesmente deveria ser copiado, mas que buscamos compreendê-los tanto nos seus erros como nos seus acertos para armar com a luz dessas lições as gerações atuais e futuras.
No primeiro artigo, vimos como nasceram com a Revolução de 1905 na Rússia [1], e no segundo como constituíram a peça vital da Revolução de fevereiro de 1917 e como entraram em uma profunda crise em junho-julho de 1917 até tornar-se reféns da contrarrevolução burguesa. [2]
Nesse terceiro artigo, veremos como foram recuperados pela massa de trabalhadores e soldados, que conseguiram, assim, tomar o poder em outubro de 1917.
Tanto nos processos naturais como nos processos sociais, a evolução nunca se faz em linha reta, mas através de contradições, convulsões, contratempos dramáticos, passos atrás e saltos adiante. Tudo isso se acentua muito mais com o proletariado, classe que por definição está privada da propriedade dos meios de produção e que não dispõe de nenhum poder econômico. Sua luta segue uma marcha convulsiva e contraditória, com passos atrás, com aparentes perdas do que parecia adquirido para sempre, com grandes momentos de apatia e desmoralizações.
Após a revolução de fevereiro, os operários e soldados pareciam ir de êxito em êxito, a influência do bolchevismo crescia sem cessar, as massas – sobretudo as da região de Petrogrado – se orientavam para a revolução. Esta parecia amadurecer como uma fruta.
Contudo, o mês de julho colocou em destaque esses momentos de crises e encruzilhada tão típicos da luta proletária. "Os operários e os soldados de Petrogrado, que no próprio impulso para a frente,esbarraram de um lado, com a falta de clareza e com as contradições dos próprios objetivos e, de outro lado, com o atraso das províncias e do front, sofreram uma derrota direta". [3]
A burguesia se aproveitou para empreender uma furiosa ofensiva: os bolcheviques foram caluniados como "agentes da Alemanha" [4], foram aprisionados em massa, organizou bandos paramilitares que os agrediam nas ruas, boicotavam seus comícios, assaltavam seus locais e imprensas. Fizeram-se presentes as terríveis Centúrias Negras czaristas, os círculos monárquicos, as associações de oficiais. A burguesia – com aval da diplomacia inglesa e francesa – aspirava à destruição dos sovietes e à implantação de uma ditadura feroz. [5]
A revolução iniciada em fevereiro estava em um ponto onde o espectro da derrota aproximava perigosamente: "Muita gente acreditou que, naquele momento, a Revolução houvesse chegado a um ponto morto, em verdade, porém, era a própria Revolução de Fevereiro que dera tudo se si, até o fundo. Semelhante crise interior da consciência das massas, combinada com a repressão e com a calúnia, conduziu às perturbações e aos recuos e, em alguns casos, mesmo, ao pânico. Os adversários tornaram-se atrevidos. Na massa a crise fez subir à superfície tudo o que existia de atrasado, de inerte e de descontente, em conseqüência das comoções e das privações". [6]
Contudo, nesse momento difícil, os bolcheviques constituíram uma fortaleza essencial das forças proletárias. Perseguidos, caluniados, não cederam nem empreenderam uma debandada, embora tenha havido duros debates nas suas fileiras e um bom número de militantes se tenha afastado do partido. Seus esforços se centraram em tirar lições da derrota e, sobretudo, a principal delas: porque os Sovietes estavam seqüestrados pela burguesia e corriam perigo de desaparecer?
De fevereiro a julho, tinha se mantido uma situação de dualidade de poder: por um lado, os Sovietes, porém diante dele, o poder do Estado burguês não tinha sido derrubado e tinha ativos suficientes para restabelecer-se plenamente. Os acontecimentos de julho tinham feito saltar pelos ares o equilíbrio impossível entre ambos, os sovietes e o poder do Estado: "O Estado-Maior General e os altos comandos do exército, com a ajuda consciente ou semiconsciente de Kérenski, que até os socialistas-revolucionários mais destacados chamaram agora Cavaignac [7], tomaram de facto o poder estatal nas mãos, passando a metralhar as unidades revolucionárias das tropas na frente, a desarmar as tropas e os operários revolucionários em Petrogrado e em Moscovo, a sufocar e esmagar Níjni-Nóvgorod, a prender os bolcheviques e a fechar os seus jornais não só sem julgamento mas mesmo sem decreto do governo. (...) a verdadeira essência da política da ditadura militar, que hoje domina na Rússia e é apoiada pelos democratas-constitucionalistas e os monárquicos, consiste em preparar a dispersão dos Sovietes". [8]
Lênin demonstrava igualmente como os mencheviques e os socialistas-revolucionários, "traíram definitivamente a causa da revolução ao pô-la nas mãos dos contra-revolucionários e ao converterem-se a si próprios e aos seus partidos e aos Sovietes em folha de parreira da contra-revolução". [9]
Em tais condições, "todas as esperanças de um desenvolvimento pacífico da revolução russa se desvaneceram definitivamente. A situação objetiva é esta: ou a vitória da ditadura militar até ao fim ou a vitória da insurreição armada dos operários, (...) A palavra de ordem da passagem de todo o poder aos Sovietes foi a palavra de ordem do desenvolvimento pacífico da revolução possível em Abril, em Maio, em Junho e até 5-9 de Julho". [10]
No seu livro Os sovietes na Rússia, Oskar Anweiler, utiliza essas análises para demonstrar que: "com isso se proclamou pela primeira vez, em uma formulação apenas camuflada, o objetivo da conquista do poder único pelos bolcheviques, o qual, até agora, sempre tinha aparecido oculto atrás do lema de "Todo poder aos sovietes"". [11]
Aparece aí a famosa e reiterada acusação da "utilização tática dos bolcheviques para conquistar o poder absoluto". No entanto, uma análise do artigo que Lênin escreveu em seguida demonstra que suas preocupações eram radicalmente diferentes das que Anweiler lhe atribui: buscava como tirar os sovietes da crise na qual se debatiam, como poderiam sair do poço que os levava ao seu desaparecimento.
No artigo A Propósito das Palavras de Ordem, Lênin se pronunciava de forma inequívoca: "É precisamente o proletariado revolucionário que, depois da experiência de Julho de 1917, tem de tomar ele próprio nas suas mãos o poder de Estado — sem isso é impossível a vitória da revolução. (...) Nesta nova revolução poderão e deverão surgir os Sovietes, mas não os Sovietes atuais, não os órgãos de um espírito de conciliação com a burguesia, mas os órgãos de uma luta revolucionária contra ela. É certo que também então seremos pela construção de todo o Estado segundo o tipo dos Sovietes. Não se trata da questão dos Sovietes em geral, mas da questão da luta contra a contra-revolução atual e contra a traição dos Sovietes atuais". [12] De maneira ainda mais precisa afirma que "começa um novo ciclo, no qual entram não as velhas classes, não os velhos partidos, não os velhos Sovietes, mas classes, partidos e Sovietes renovados pelo fogo da luta, temperados, instruídos, reconstituídos pelo curso da luta". [13]
Esses escritos de Lênin participavam de um tempestuoso debate nas fileiras do Partido bolchevique que se cristalizou no VI Congresso do Partido celebrado entre 26 de julho a 3 de agosto na mais rigorosa clandestinidade e com Lênin e Trotsky ausentes pois eram particularmente procurados pela polícia. No mencionado Congresso se expressaram três posições: uma, desorientada pela derrota de julho e pela deriva dos sovietes, que preconizava abertamente "deixá-los de lado" (Stálin, Molotov, Sokolnikov); outra que advogava por manter sem mais nada o velho lema "Todo poder aos sovietes"; uma terceira que propugnava apoiar-se em organizações "de base" (conselhos de fábricas, sovietes locais, sovietes de bairros) para reconstituir o poder coletivo dos operários.
Esta última provou ser a posição correta. Desde meados de julho as organizações soviéticas "de base" iniciaram um combate pela renovação dos sovietes.
No segundo artigo da série vimos que ao redor dos sovietes, as massas se organizaram em uma gigantesca rede de organizações soviéticas de todo tipo que expressavam sua unidade e sua força. [14] A cúpula da rede soviética – os sovietes de cidade – não flutuava sobre um oceano de passividade das massas, pelo contrário, estas tinham uma intensa vida coletiva concretizada em milhares de assembleias, conselhos de fábricas, sovietes de bairro, assembleias interdistritais, conferências, encontros, comícios... Sukhanov [15] nos dá uma ideia do ambiente reinante na Conferência de Conselhos de Fábrica de Petrogrado: "Em 30 de maio se iniciou no Salão Branco uma Conferência dos comitês de fábrica e de outros estabelecimentos da capital e arredores. Aquela conferência foi preparada "na base"; seu plano tinha sido aperfeiçoado em locais de trabalho sem nenhuma participação dos organismos governamentais encarregados das questões do trabalho, nem sequer dos órgãos do soviete (...) A Conferência era realmente representativa: operários vindos dos locais de trabalho participaram em grande número e ativamente das suas tarefas. Durante dois dias, aquele parlamento operário discutiu sobre a crise econômica e o desastre do país". [16]
Inclusive nos piores momentos após as jornadas de Julho, as massas lograram conservar essas organizações, as quais não se viram tão afetadas pela crise como "os grandes órgãos soviéticos": O Soviete de Petrogrado, o Congresso dos sovietes e seu Comitê Executivo Central, o CEC.
Duas razões concomitantes explicam essa diferença: em primeiro lugar, as organizações soviéticas de "baixo" eram convocadas sob o impulso das massas que, intuindo problemas ou perigos, propunham uma assembleia e em poucas horas conseguiam realizar. Muito diferente era a situação dos órgãos soviéticos de "cima": "Na mesma medida que o trabalho do Soviete começou a funcionar bem, perdeu em grande parte o contato com as massas. As sessões plenárias que eram celebradas quase que diariamente nas primeiras semanas, foram poucas e a assistência dos deputados era cada vez menos assídua. O comitê executivo do Soviete visivelmente ia ficando fora do controle dos deputados". [17]
Em segundo lugar, mencheviques e socialistas-revolucionários se concentraram no corpo burocrático dos grandes órgãos soviéticos. Sukhanov descreve o ambiente de intrigas e manobras que dominava o Soviete de Petrogrado: "O Presidium do Soviete que tinha sido na sua origem um órgão de procedimento interno, passou a substituir o Comitê Executivo nas suas funções, a suplantá-lo. Além disso, se reforçou como um organismo permanente e bastante oculto que recebeu o nome de "Câmara das Estrelas". Ali se encontravam os membros do Presidium e uma espécie de camarilha composta de amigos de Tchkheidzé e Tsereteli. [18] Esse último se converteu em um dos responsáveis do ditatorialismo no seio do Soviete". [19]
Em contrapartida, os bolcheviques faziam uma intervenção ativa e cotidiana nos órgãos soviéticos de base. Sua presença era muito dinâmica, e com frequência eram os primeiros a propor assembleias e debates, para a adoção de resoluções capazes de dar expressão à vontade e ao avanço das massas.
Em 15 de julho, uma manifestação de operários das grandes fábricas de Petrogrado se concentrava diante do edifício do Soviete de Petrogrado denunciando as calúnias contra os bolcheviques e exigindo a libertação dos presos. Em 20 de julho, a assembleia da fábrica de armas de Sestroretsk pedia o pagamento dos salários que não foram pagos em decorrência da sua participação nas jornadas de julho e, atendida a reivindicação, dedicava esse dinheiro para financiar a imprensa contra a guerra. Trostky afirma como, em 24 de julho, "uma assembleia dos operários de 27 empresas do bairro de Peterhoff votaria uma resolução de protesto contra o Governo irresponsável e contra a política dele,contra-revolucionária". [20]
Trotsky destaca outro fato: em 21 de julho chegaram a Petrogrado delegações de soldados do front. Estavam fartos dos sofrimentos que ali viviam e da repressão que os oficiais haviam colocado em prática contra os mais destacados. Dirigiram-se ao Comitê Executivo do Soviete, que não lhes deram a menor atenção. Vários militantes bolcheviques os aconselharem a entrar em contato com fábricas e regimentos de soldados e marinheiros. A acolhida foi radicalmente distinta: lhes receberam como algo próprios, os escutaram, lhes proporcionaram comida e local para dormir.
Trotsky assinala que "em uma conferência que não fora convocada pelos dirigentes, mas organizada pela base, participaram delegados de 29 regimentos do front, de 90 fábricas de Petrogrado, marinheiros de Kronstadt e guarnições dos arredores. No centro da conferencia encontravam-se delegados vindos das trincheiras; entre eles estavam também alguns jovens oficiais. Os operários ouviam os homens do front avidamente, procurando não perder uma palavra sequer daquilo que diziam. Aqueles narrava de que modo a ofensiva e as conseqüências dela devoravam a Revolução. Obscuros soldados, que não eram absolutamente agitadores, descreviam em conversas simples, o ramerrão cotidiano da vida do front. Esses detalhes era perturbadores, porquanto demonstravam claramente, a subida à tona de tudo o que havia de mais detestável no antigo regime", e acrescenta em seguida: "Se bem que, dentre os delegados do front, os socialistas-revolucionários estivessem, inegavelmente, em maioria, foi adotada, quase unanimemente, uma violenta resolução bolchevique: houve apenas 4 abstenções. A resolução adotada não permaneceria letra morta: uma vez separados, os delegados contariam a verdade, diriam de que modo foram afastados pelos líderes conciliadores e de que maneira foram recebidos pelos operários". [21]
O Soviete de Kronstadt – uma dos locais de vanguarda da revolução – também se fez ouvir: "A 20 de julho, um meeting realizado na praça da Ancora, exigiu a entrega do poder aos sovietes, o envio dos Cossacos, dos guardas-civis e dos policiais para o front, a abolição da pena de morte, a admissão em Tsarskoe Selo, de delegados de Kronstadt para verificarem se Nicolau II, na prisão, estava sendo suficientemente e rigorosamente fiscalizado, o deslocamento dos “batalhões da morte”, a confiscação dos jornais burgueses, etc...". [22] Em Moscou, os conselhos de fábrica tinham decidido celebrar sessões comuns com os comitês de regimentos e no final de julho uma Conferência de conselhos de fábricas com assistência de delegados dos soldados adotou uma resolução de denúncia do Governo e de petição de "novos sovietes para substituir o Governo". Na Eleição em primeiro de agosto, 6 dos 10 conselhos de bairro de Moscou passaram a ter maioria bolchevique.
Diante dos aumentos dos preços praticados pelo Governo e os contínuos fechamentos de fábricas pelos patrões, as greves e manifestações massivas começaram a proliferar. Delas participavam setores operários até então considerados como "atrasados" (papeleiros, coureiros, borracheiros e porteiros).
Na secção operária do Soviete de Petrogrado, Sukhanov relata um fato significativo "decidiu criar um Presidium que antes não tinha e aquele Presidium terminou composto por bolcheviques". [23]
Em agosto se celebrou em Moscou uma Conferência Nacional cuja pretensão era, como denuncia Sukhanov: "obrigar os Sovietes a desaparecer diante da vontade de todo o resto da população, reivindicando uma política de união nacional (...) liberar o governo da tutela de toda uma série de organizações operárias, camponesas, zimmerwalianas, semi-alemãs, semi-judias e outros grupos de bandidos". [24]
Os operários perceberam o perigo e numerosas assembleias votaram moções propondo a greve geral. O Soviete de Moscou, rejeitou, no entanto, por 364 votos contra 304, mas os sovietes de bairro protestaram conta essa decisão, "as fábricas reclamaram, imediatamente, a realização de novas eleições ao Soviete de Moscou que, não somente se deixava distanciar das massas, como também caira em grave antagonismo com elas. No Soviete de bairro de Zamoskvoretsky, subúrbio de Moscou, de acordo com os Comitês de fábrica, exigiu-se que os deputados que marchariam "contra a vontade da classe operária", fossem substituídos, e isto se decidiu por 175 votos contra 4 e com 19!". [25] Mais de 400.000 operários foram à greve, a qual se estendeu para outras cidades como Kiev, Kostrava e Tsatarin.
O que relatamos não são só alguns fatos significativos, pontas do iceberg de um processo muito amplo que mostra uma viragem a respeito das atitudes predominantes de fevereiro a junho, ainda marcadas por muitas ilusões e uma mobilização mais limitada aos centros de trabalho, bairros ou cidades:
A burguesia sente que os dividendos obtidos em julho correm perigo de virar fumaça. O fracasso da Conferência Nacional de Moscou foi um duro revés. As embaixadas inglesa e francesa apressam em tomar medidas "decisivas". Nesse contexto surge o "plano" do golpe militar do general Kornilov [26]. Sukhanov destaca que: "Miliukov, Rodzianko [27] e Kornilov,todos eles, compreenderam! Cheios de estupor colocaram-se a preparar com toda urgência, mas em segredo, sua ação. No entanto, para enganar, arregimentaram a opinião contra uma próxima empresa dos bolcheviques". [28]
Não podemos fazer, aqui, uma análise de todos os pormenores da operação .[29] O importante é que a mobilização gigantesca das massas de operários e soldados consegue paralisar a máquina militar desencadeada. E o que se tem que destacar é que esta resposta se faz desenvolvendo um esforço de organização que dará um impulso definitivo à regeneração dos sovietes e seu encaminhamento para a tomada do poder.
Na noite de 27 de agosto, o Soviete de Petrogrado propôs a formação de um comitê militar revolucionário para organizar a defesa da capital. A minoria bolchevique aceitou a proposição, porém acrescentaram que tal órgão "devia se apoiar nas massas de operários e soldados". [30] Na sessão seguinte, os bolcheviques fizeram uma nova proposição que foi aceita relutantemente pela maioria menchevique, "a distribuição de armas nas fábricas e bairros operários" [31], coisa que mal fora anunciada aconteceu que "nos bairros, segundo a imprensa operária, formaram-se imediatamente "filas impressionantes de homens desejosos de participarem do contingente da Guarda Vermelha". Abriram-se cursos de instrução para o manejo do fuzil e para o tiro. Soldados treinados foram chamados para desempenharem o papel de monitores. A partir do dia 29, formaram-se companhias em quase todos os bairros. A Guarda Vermelha declarou-se pronta a lançar em ação, imediatamente, um efetivo de 40.000 fuzis (...) A gigantesca empresa de Putilov tornou-se centro da resistência no bairro de Peterhof. Foram criados, apressadamente, companhias de combate. O trabalho na fábrica prosseguia, ininterrupto noite e dia: ocupavam-se na montagem de novos canhões destinados a formarem divisões proletárias de artilharia". [32]
Em Petrogrado, "os sovietes do bairro uniram-se estreitamente e decidiram declarar a conferência intercantonal aberta em sessão permanente; tomaram a iniciativa de introduzir os respectivos representantes no estado-maior formado pelo Comitê-Executivo; resolveram criar uma milícia operária; decidiram estabelecer o controle do soviete de bairro sobre os comissários do Governo, e organizar equipes volantes destinadas à detenção dos agitadores contra-revolucionários". [33]
Essas medidas "significavam que aqueles sovietes atribuíam a eles próprios, não somente consideráveis funções do Soviete de Petrogrado. (...) A entrada dos bairros de Petrogrado na arena da luta modificou, instantaneamente, a direção e a amplitude desta última. A experiência permitiu que se descobrisse de novo a inesgotável vitalidade da organização soviética: paralisada de cima pela direção dos conciliadores, reanimava-se ela, no momento crítico, na base, sob impulso das massas". [34]
Essa generalização da auto-organização das massas se estendeu por todo o país. Trotsky recolhe o caso de Helsingfors, onde "a assembleia geral de todas as organizações soviéticas, criou um comitê revolucionário que enviou comissários à casa do general-governador, à kommandantur [comando], à contra-espionagem e a outras instituições muito importantes. E desde então ordem alguma era digna de crédito sem que estivesse assinada pelos comissários.Os telégrafos e os telefones foram colocados sob controle" [35], mas ali aconteceu algo muito significativo: "no dia seguinte, cossacos da tropa apresentaram-se ao Comitê e declararam que todo o regimento era contrário a Kornilov. E pela primeira vez, representantes dos cossacos foram introduzidos no Soviet". [36]
O esmagamento do golpe de Kornilov produziu um salto espetacular na correlação de forças entre as classes: O Governo Provisório de Kerensky tinha sido um zero à esquerda. Os únicos protagonistas foram as massas e, sobretudo, o reforçamento e revitalização geral dos seus órgãos coletivos. A resposta a Kornilov "era o ponto de partida de uma transformação radical de toda a conjuntura, a revanche sobre as jornadas de julho. O Soviete poderia renascer!". [37]
O jornal do Partido Cadete [38], Retch, não se equivocava quando assinalava: "Nas ruas já apareceram multidões de operários armados que aterrorizam os pacíficos habitantes. Nos Sovietes, os bolcheviques exigem energicamente a liberdade dos seus camaradas prisioneiros. Todo o mundo está convencido de que uma vez terminado o movimento do general Kornilov, os bolcheviques, rechaçados pela maioria do Soviete, empregarão toda sua energia para obrigar o Soviete a seguir o caminho, embora seja parcialmente, de seu programa". Retch, contudo, equivocava-se em uma coisa: não foram os bolcheviques os que obrigaram o Soviete a seguir seu programa mas que foram as massas que obrigaram os sovietes a adotar o programa bolchevique.
Os operários tinham ganho uma enorme confiança em si mesmos e queriam aplicar na renovação total dos sovietes. Cidade após cidade, soviete após soviete, em um processo vertiginoso, as velhas maiorias social-traidoras foram excluídas e novos sovietes com maioria de bolcheviques e de outros agrupamentos revolucionários (socialistas revolucionários de esquerda, mencheviques internacionalistas, anarquistas) emergiam após debates e votações massivas.
Sukhanov descreve assim o estado de ânimo de operários e soldados: "impulsionados pelo instinto de classe e, em certa medida, pela consciência de classe, pela influência ideológica organizada dos bolcheviques; cansados da guerra e do peso que dela originava; desapontados pela esterilidade da revolução que não lhes havia dado em nada ainda; irritados contra os proprietários e os governantes que gozavam, eles sim, de todos os lucros; desejosos, enfim, de fazer uso do poder conquistado, ansiavam engajar na batalha decisiva". [39]
Os episódios dessa reconquista e renovação dos sovietes são intermináveis. "Na noite de 31 de agosto para 1 de setembro, ainda sob a presidência do próprio Cheidze, o Soviete [de Petrogrado] votou a favor da concessão do poder aos operários e aos camponeses. Os membros da base das frações conciliadoras apoiaram, quase que unanimemente, a resolução dos bolcheviques. A moção de Tseretelli, que concorria com a dos bolchevique, obteve apenas uns 15 votos. O presidium conciliador não podia acreditar no que via. A direita exigiu votação nominal que se prolongou até 3 horas da madrugada. Afim de não votar, abertamente, contra os próprios partidos, muitos delegados retiraram-se. E, entretanto, apesar de todos os meios de pressão, a resolução dos bolcheviques obteve, na contagem final 279 votos contra 115. Era de fato de grande importância. Era o começo do fim. Atordoado, o presidium declarou que renunciava ao cargo". [40]
Em 2 de setembro, uma conferência de todos os sovietes da Finlândia adotou uma resolução a favor da entrega do poder aos sovietes por 700 votos contra 13 que se opuseram e 36 abstenções. A Conferência Regional de Sovietes de toda Sibéria aprovou uma resolução no mesmo sentido. O Soviete de Moscou também o fez em uma dramática sessão em 5 de setembro, onde se aprovou uma moção que mostrava sua desconfiança para com o Governo Provisório e para com o Comitê Executivo Central. "A 8 de setembro,a resolução dos bolcheviques foi adotada pelo soviete dos deputados operários de Kiev, pela maioria de 130 votos contra 66, se bem que a fração bolchevique oficial não contasse com mais de 95 membros" .[41] Pela primeira vez, o Soviete de deputados camponeses da província de Petrogrado elegia como delegado um bolchevique.
O momento culminante desse processo foi a histórica sessão do Soviete de Petrogrado de 9 de setembro. Inumeráveis reuniões em fábricas, bairros e regimentos tinham preparado esta. Cerca de 1000 delegados participaram de uma reunião onde a mesa propôs revogar a votação de 31 de agosto. Finalmente a votação alcançou um resultado que supunha o rechaço definitivo da política dos social-traidores: 519 votos contra a revogação e pela tomada do poder pelos sovietes, 414 a favor da mesa e 67 abstenções.
Poderia se pensar, enfocando as coisas de maneira superficial, que a renovação dos Sovietes consistiu em uma simples mudança de maiorias de social-traidores para bolcheviques.
É certo – e trataremos detidamente no próximo artigo dessa série – que na classe operária e, portanto, nos seus partidos, pesava ainda fortemente uma visão contaminada pelo parlamentarismo, segundo a qual a classe operária elegia "representantes que trabalhavam em seu nome", porém é importante compreender que o dominante na renovação dos sovietes não foi isso, mas:
1) A renovação surgiu da enorme rede de reuniões dos sovietes de base (conselhos de fábrica, conselhos de bairro, comitês de regimento, reuniões conjuntas). Após o golpe de Kornilov, essas reuniões se multiplicaram infinitamente. Cada sessão do soviete unificava e dava expressão resolutiva a um sem fim de reuniões preparatórias.
2) Esta auto-organização das massas foi impulsionada de maneira consciente e ativa pelos sovietes renovados. Enquanto os sovietes anteriores se autonomizavam e só realizavam raras sessões massivas, os novos realizavam sessões abertas diariamente. Enquanto os anteriores temiam e inclusive desautorizavam as assembleias em fábricas e bairros, os novos as convocavam continuamente. Ao redor de cada debate significativo, cada decisão importante, o soviete chamava a realizar reuniões "na base" para adotar uma posição. Diante da 4ª coalizão do Governo Provisório (25 de setembro), "além da resolução do Soviete de Petrogrado negando-se a sustentar a nova coalizão, uma onda de concentrações se estendeu através das duas capitais e no interior. Centenas de milhares de operários e de soldados, protestando contra a formação do novo Governo burguês, se comprometeram a desatar contra ele uma luta decidida exigindo o poder para os sovietes". [42]
3) Foi espetacular a multiplicação de congressos regionais de sovietes, que desde meados de setembro percorre como um rastro de pólvora todos os territórios russos. "Durante essas semanas se realizaram numerosos congressos de sovietes locais e regionais, cuja composição e transcurso refletiam o ambiente político das massas. Característica da rápida bolchevização foi o desenvolvimento do Congresso de Conselhos de deputados operários, soldados e camponeses de Moscou nos primeiros dias de outubro. No início das deliberações, a resolução apresentada pelos social-revolucionários contra a passagem do poder aos sovietes levou 159 votos contra 132. Mas, em outra votação, três dias depois, a fração bolchevique ganhou 116 votos, com 97 contra. Em outros congressos de conselhos foram aceitas, também, as resoluções bolcheviques, que exigiam a tomada do poder pelos sovietes e a destituição do Governo provisório. Em Ekaterinburgo reuniram-se em 13 de outubro 120 delegados de 56 conselhos do Ural, dentre eles 86 bolcheviques. Em Saratov, O Congresso Territorial da zona do Volga rechaçou uma resolução dos mencheviques e social revolucionários e adotou no seu lugar uma bolchevique". [43]
Porém é importante precisar dois elementos que nos parecem fundamentais.
O primeiro é que a maioria bolchevique respondia a algo mais que uma mera delegação de voto em um partido. O partido bolchevique era o único partido claramente partidário não só da tomada do poder como também da forma concreta de fazê-lo: uma insurreição conscientemente preparada que derrubaria o Governo Provisório e desmontaria o poder do Estado. Enquanto os partidos sociais-traidores anunciavam que queriam obrigar que os sovietes cometessem o harakiri [suicídio], enquanto outros partidos revolucionários faziam propostas irrealistas ou vagas, somente os bolcheviques tinham claro que "Os sovietes são reais unicamente "como órgãos de insurreição, como órgãos do poder revolucionário". Fora disso, os sovietes não são mais que um mero joguete que só pode produzir apatia, indiferença e decepção entre as massas, que estão legitimamente fartas da interminável repetição de resoluções e protestos". [44]
Portanto, era natural que as massas operárias depositassem sua confiança nos bolcheviques não tanto para lhes dar um cheque em branco, mas como instrumento do seu próprio combate que estava chegando no momento culminante; a insurreição e a tomada do poder.
"O campo da burguesia se alarmou no final com razão. O movimento das massas transbordava visivelmente; a efervescência nos bairros operários de Petrogrado era evidente. Não se escutava mais que os bolcheviques. Diante do famoso Circo Moderno, onde iam falar Trotsky, Volodarsky, Lunatcharsky, eram vistas filas intermináveis e multidões sem fim que o amplo edifício não podia conter. Os agitadores convidavam a passar dos discursos para os atos e prometiam o poder ao soviete no mais breve futuro". [45] Assim refletia Sukhanov, embora adversário dos bolcheviques, o ambiente reinante em meados de outubro.
Em segundo lugar, os fatos que se acumulam em setembro e outubro revelam uma mudança importante na mentalidade das massas. Como vimos no artigo anterior da série, a palavra de ordem "Todo poder aos Sovietes" enunciada timidamente em março, argumentada teoricamente por Lênin em abril, massivamente proclamada nas manifestações de junho e julho, tinha sido, até então, mais uma aspiração do que um programa de ação conscientemente assumido.
Uma das razões do fracasso do movimento de julho era que a maioria reivindicava que os sovietes "obrigassem" o Governo Provisório a ter "ministros socialistas".
Esta divisão entre soviete e Governo revelava ainda uma evidente incompreensão da tarefa da revolução proletária que não é a de "eleger um governo próprio" e, portanto, conservar a estrutura do velho Estado, mas a de derrubar o Estado e exercer o poder diretamente. E na consciência das massas – embora, como veremos em um próximo artigo, as confusões e a quantidade de problemas novos ainda eram consideráveis – se vislumbrava uma compreensão muito mais concreta e precisa da palavra de ordem de "Todo poder aos Sovietes".
Trotsky destaca como ao ter perdido o controle do Soviete de Petrogrado, os sociais-traidores empreenderam todos os meios que estavam a sua disposição, concentrando-se no seu último reduto: o CEC. "O Comitê-Executivo-Central suprimira, em tempo desejado, os dois jornais que o Soviete de Petrogrado tinha criado, todos os serviços de direção, todos os recursos financeiros e técnicos compreendendo as máquinas de escrever e os tinteiros. Grande número de automóveis que, desde as jornadas de Fevereiro, tinham sido colocadas à disposição do Soviete foram sem exceção, entregues ao Olimpo conciliador. Os novos dirigentes não tinham mais nem caixa, nem jornal, nem objetos de secretaria, nem meios de transporte, nem canetas , nem lápis. Nada além das paredes nuas e a ardente confiança dos soldados e dos operários. E isso era perfeitamente suficiente." [46]
Desde os primeiros dias de outubro uma avalanche de resoluções de sovietes de todo o país reivindica a realização do Congresso dos Sovietes, adiada constantemente pelos social-traidores, com objetivo de materializar a tomada do poder.
Esta orientação é uma resposta tanto à situação na Rússia como à situação internacional. Na Rússia as revoltas camponesas se estendem a quase todas as regiões, a tomada de terras é generalizada; nos quartéis os soldados desertam e retornam às suas aldeias mostrando um crescente cansaço diante de uma situação de guerra que não oferece nenhuma solução; nas fábricas os operários têm de fazer frente à sabotagem da produção por parte de empresários e quadros superiores; em toda sociedade se impõe a ameaça da fome pelo total desabastecimento e um custo de vida que aumenta sem parar. E na frente de guerra internacional crescem as deserções, a insubordinação das tropas, as confraternizações entre soldados de ambos os lados; na Alemanha uma onda de greves varre o país, na Espanha em agosto de 1917 eclode uma greve geral. O proletariado russo necessita tomar o poder não só diante dos problemas insolúveis do país, mas para abrir uma fenda por onde possa se desenvolver a revolução mundial contra os sofrimentos terríveis causados por três anos de guerra.
A burguesia vira suas armas contra a ascensão revolucionária das massas. Em setembro, tentou-se a realização de uma Conferência Democrática que fracassa novamente como a de Moscou. Por sua vez, os social-traidores retardam tudo quanto for possível o Congresso dos Sovietes com objetivo de manter dispersos e desorganizados os sovietes de todo país e evitar que se unifiquem na tomada do poder.
Mas a arma mais terrível, e que se torna explicita cada vez mais, é a tentativa de sabotar a defesa de Petrogrado, para que o exército alemão esmague o ponto mais avançado da revolução. Era algo que já tinha ensaiado o "patriota" Kornilov em agosto quando deixou Riga [47] revolucionária abandonada para a invasão das tropas alemãs que "restauraram a ordem" sangrentamente. A burguesia que faz da defesa nacional seu santo e seu pior veneno contra o proletariado, quando vê seu poder ameaçado pelo inimigo de classe não hesita nenhum segundo em se aliar com seus piores rivais imperialistas.
Ao redor dessa questão da defesa de Petrogrado as discussões do Soviete conduziram para a formação de um Comitê Militar Revolucionário com delegados eleitos do Soviete de Petrogrado, da Secção de soldados do referido soviete, do Soviete de Delegados da Esquadra Báltica, da Guarda Vermelha, do Comitê Regional de Sovietes da Finlândia, da Conferência de Conselhos de Fábrica, do Sindicato ferroviário e da organização militar do Partido bolchevique. À frente desse Comitê foi eleito Lasimir, um jovem e combativo membro dos socialistas-revolucionários de esquerda. Os objetivos desse comitê uniam a defesa de Petrogrado com a preparação do levante armado, dois objetivos que: "até então se excluíam reciprocamente, agora se aproximavam na realidade; ao tomar o poder nas suas mãos, o Soviete tomava para si a defesa de Petrogrado". [48]
A isso, se somou, no dia seguinte, a convocatória de uma Conferência Permanente de toda guarnição de Petrogrado e da região. Com esses dois organismos, o proletariado criava os meios para a insurreição, passo necessário e imprescindível para a tomada do poder.
Em um capítulo da nossa brochura Outubro de 1917, colocamos em evidência como – ao contrário das lendas negras tecidas pela burguesia que apresenta Outubro como um "golpe de estado bolchevique" – a insurreição foi obra dos sovietes e mais concretamente do de Petrogrado [49]. Foram o Comitê Militar Revolucionário (CMR) e a Conferência Permanente de guarnições, os órgãos que prepararam passo a passo e minuciosamente a derrubada armada do Governo Provisório, última cabeça do Estado Burguês. O CMR obrigou o Quartel General do Exército a submeter à sua assinatura qualquer ordem ou decisão por menor que fosse, com o que o paralisou totalmente. Em 22 de outubro, em uma dramática assembleia, o último regimento recalcitrante – o da Fortaleza Pedro e Paulo – aceitou se submeter ao CMR. Em 23 de outubro, em uma emocionante jornada, milhares de assembleias de operários e soldados se comprometiam definitivamente com a tomada do poder. O xeque-mate foi executado pela insurreição de 25 de outubro, a qual ocupou os centros de comunicação, e dessa maneira, colocou as condições para que no dia seguinte o Congresso dos Sovietes de toda Rússia assumisse a tomada do poder. [50]
No próximo artigo dessa série, veremos os enormes problemas que os sovietes tiveram que enfrentar após a tomada do poder.
[1]Ver Por que os conselhos operários nascem em 1905?. Em: < https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/Por_que_os_conselhos_operarios_nascem_em_1905 [90]>
[2]Ver A revolução de outubro (de fevereiro a julho de 1917): renascimento e crise dos sovietes. Em:< https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/A_revolucao_de_outubro_fevereiro_julho_1917 [91]>
[3]Trotsky, Leon. História da Revolução Russa. Ed. Paz e Terra; 3ª ed. 3v. Cap. XI – As massas expostas aos golpes. Vol 2. p. 620.
[4]Ver uma refutação muito documentada em Trotsky, op. cit., no Capítulo IV – O mês da grande calúnia. Vol 2. p. 489.
[5] O General Knox, chefe da missão inglesa, dizia: "Não sinto interesse algum pelo governo de Kerenski, é demasiado débil; o que faz falta é uma ditadura militar, se necessita dos cossacos, esse povo tem necessidade do chicote". Assim se expressava o representante do governo da "mais antiga democracia" (Trotsky, op.cit., Cap.IX – A sublevação de Kornilov. Vol 2. p. 592).
[6]Trotsky, op.cit., Cap XI – As massas expostas aos golpes. Vol 2. p 627.
[7]Cavaignac: general francês (1802-1857) que foi o verdugo da insurreição dos operários parisienses em junho de 1848.
[8] Lênin, A Situação Política (Quatro Teses) [92], 23 de julho de 1917. Fonte:www.marxist.org [93].
[9] Ibidem.
[10] Ibid.
[11] Anweiler, Os Soviets na Rússia, p. 180. Tradução nossa. Ver referência a este autor e livro na nota 3 do artigo anterior da série.
[12] Lênin, A Propósito das Palavras de Ordem. Tradução nossa.
[13] Ibid.
[14] Ver no artigo anterior desta série: Março 1917: toda Rússia ocupada por uma enorme rede de sovietes <https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/A_revolucao_de_outubro_fevereiro_julho_1917 [91]>.
[15] Nicolas Sukhanov, menchevique internacionalista, cisão de esquerda do menchevismo onde militava Martov. Ele publicou suas Memorias em 7 volumes. Há uma versão condensada que foi publicada em francês, inglês e espanhol. As citações que utilizamos provém da edição francesa: La Révolution russe, Editions Stock, 1965.
[16]Sukhanov, op. cit.. p. 210. Tradução nossa.
[17] Anweiler, op. cit., p. 115. Tradução nossa.
[18] Proeminentes membros do Partido menchevique.
[19] Sukhanov, op. cit., p. 210. Tradução nossa.
[20] Trotsky, op.cit., Cap. XI – As massas expostas aos golpes. p. Vol 2. 629.
[21] Ibid., p. 630.
[22] Ibid., p. 631.
[23] Sukhanov, op. cit.., p. 306. Tradução nossa.
[24] Ibid., p. 310.
[25]Trotsky, op.cit., Cap. VI – Kerensky e Kornilov. Vol 2. p. 538-539.
[26] Kornilov: militar muito incompetente que tinha se destacado pelas suas constantes derrotas na frente de guerra, foi elevado a "herói patriótico" após as Jornadas de Julho e exaltado por todos os partidos burgueses.
[27] Rodzianko e Miliukov foram os principias dirigentes dos partidos burgueses.
[28] Sukhanov, op. cit.., p. 312. Tradução nossa.
[29] Trotsky, op.cit.. Pode ser consultado, no volume 2 desta obra, os capítulos 5, "A contra-revolução levanta a cabeça", cap. 6 "Kerensky e Kornilov", cap. 8, "O complô de Kerensky" e cap. 9, "A sublevação de Kornilov".
[30] Sukhanov, op. cit.., p. 317. Tradução nossa.
[31] Ibid..
[32]Trotsky, op. cit., Cap. X – A burguesia mede-se com a democracia. Vol 2. p. 602-603.
[33] Ibid.. p. 601.
[34] Ibid., p. 601. Sublinhado nosso.
[35] Ibid., p. 604.
[36] Ibid., p. 604.
[37] Sukhanov, op. cit., p. 314. Tradução nossa.
[38] Cadete: Partido Constitucional-Democrata, principal partido burguês da época.
[39] Sukhanov, op. cit., p. 330. Tradução nossa.
[40] Trotsky, op.cit. Cap. XII – Maré montante. Vol 2. p. 659-660.
[41] Ibid., p. 660.
[42] Sukhanov, op. cit., p. 351. Tradução nossa.
[43] Oskar Anweiler, op. cit., página 192. Tradução nossa. Nas páginas seguintes faz uma recordação dos numerosos congresos regionais que cobriam praticamente todo o império e decidiram na sua maioria a tomada do poder.
[44] Lênin, Teses para o Relatório para a Conferência de 8 de outubro da Organização de Petrogrado. 8 de outubro de 1917. Fonte: < https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1917/oct/04.htm [94] > Tradução nossa.
[45] Sukhanov, op. cit., p. 364. Tradução nossa.
[46] Trotsky, op.cit. Cap. XII – Maré montante. Vol 2. p. 662.
[47] Capital da Estônia, na época parte do império russo.
[48] Trotsky, op.cit. Cap. IV - O Comitê Militar Revolucionário. Vol 3. p. 784.
[49] Veja o capítulo “A conquista dos sovietes pelo proletariado” da nossa brochura Outubro de 17, o começo da revolução mundial. Link: <https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/revolucao_russe_outubro_17_soviete [95]>.
[50] No capítulo “A insurreição de Outubro, uma vitória das massas operárias” desenvolvemos uma análise detalhada de como é a insurreição do proletariado que não tem nada a ver com uma revolta ou uma conspiração, quais são suas regras e o papel indispensável que o Partido do proletariado tem nela. Veja: <https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2007/revolucao_russa_outubro_1917.htm [96]>.
É surpreendente a defasagem que existe na situação atual entre, por um lado, a indignação que tem origem no dilúvio de ataques aos trabalhadores e, por outro lado, o interesse ainda muito pequeno para a questão da revolução. Na realidade, como já evidenciamos, atualmente a classe operária não acredita na possibilidade da revolução, ao contrário do que prevalecia no período posterior a 1968. Vamos colocar em evidência nesta apresentação que a revolução é possível e necessária, rememorando o que ela é, segundo o marxismo, e também respondendo às objeções mais frequentes colocadas contra a ideia de revolução.
Em que consiste esta nova sociedade?
Será uma sociedade isenta de penúria, de miséria, fronteiras, e guerra; uma sociedade em que as necessidades humanas serão atendidas. Será a associação livre dos produtores, isto é, daqueles que, através de seu trabalho, produzem as riquezas. Isto será o comunismo, onde o desenvolvimento de cada um será a condição do desenvolvimento de todos. O trabalho deixará de constituir um sofrimento e uma fonte inesgotável de aborrecimento para se tornar um fator de desenvolvimento dos seres humanos. Findo o sacrifício de uma vida presa pela especialização excessiva dentro da mesma atividade, pois, como dizia Marx: "na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de atividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico" (A Ideologia Alemã; Feuerbach. Oposição das Concepções Materialista e Idealista). Obviamente, deve-se reter disso a ideia básica, e não o fato que terá caçadores na sociedade comunista. Se houver, será nos museus.
Qual será base material desta nova sociedade?
A abundância, quando o reino da necessidade constituiu até o momento o fundamento das sociedades de classe e de exploração.
Como tal abundância será possível?
Desde quando os homens não produziram mais segundo os métodos das comunidades primitivas, a produtividade do trabalho ampliou-se consideravelmente com as sociedades de classes. Particularmente, sob o capitalismo. Este desenvolveu, muito mais que todas as sociedades que o antecederam, tudo que contribui na produção dos meios de produção e de consumo: as máquinas, a tecnologia, as ciências, etc. De fato, o nível atual de produtividade do trabalho pode ser medido pelo fato de que o trabalho de uma porcentagem bastante reduzida da população mundial pode ser suficiente para alimentar o conjunto desta população.
Hoje, está evidente que, se as capacidades produtivas fossem orientadas diferentemente, a fome no mundo seria erradicada e se necessitaria trabalhar muito menos para satisfazer nossas necessidades. Uma exemplificação disso: em 2008, 100 000 pessoas morriam de fome diariamente, num contexto em que a agricultura estava em condição de alimentar o dobro dos 6 bilhões de seres humanos do planeta (segundo um relatório da ONU - feito por Jean Ziegler, relator geral). Mas querer realizar tudo isso sob o capitalismo é utópico.
O que pode permitir que o capitalismo seja substituído por outra sociedade?
Certamente não será obra da burguesia. Não haverá uma transição harmoniosa do capitalismo para o comunismo. A classe dominante da sociedade capitalista, aquela que extrai suas riquezas através da exploração do proletariado nunca se decidirá abandonar o sistema de exploração que garante sua posição privilegiada na sociedade. Individualmente, elementos burgueses poderão apoiar ou se juntar ao combate por outra sociedade. Mas isso nunca será o caso da classe burguesa como um todo.
O motor da transformação social é uma classe que, além de não ter nenhum interesse próprio a defender neste sistema, é:
E para derrubar o capitalismo e levar a cabo seu projeto de classe revolucionária, esta classe dispõe da força necessária que lhe conferem o seu número, sua concentração e o fato de produzir o essencial das riquezas da sociedade.
Assim, o capitalismo desenvolveu as forças produtivas que podem permitir a abundância e também criou a classe revolucionária que será seu coveiro, a classe operária.
O que poderia fazer com que a humanidade queira transitar do capitalismo para o comunismo?
Tal transformação não será empreendida pela humanidade como um todo, apesar dela ser vítima do sistema atual e de ter interesse na sua derrubada. É a classe revolucionária que é o motor da revolução.
Na realidade, é a necessidade que constitui a base da mudança revolucionária. Como todas as sociedades de exploração que antecederam o capitalismo, este será levado a padecer de suas contradições insuperáveis se não for substituído por outro sistema que seja resultado da superação das ditas contradições. Para sintetizar isso, podemos dizer que este sistema produz, não pela satisfação das necessidades humanas, mas pelo lucro. As riquezas que ele acumula em um pólo da sociedade fundamentam a possibilidade da abundância para todos. O problema é que, ao mesmo tempo, tal fenômeno é acompanhado por um empobrecimento incessante, imposto a uma maioria cada vez mais numerosa. Desse modo, o proletariado é levado a se insurgir contra a sua condição, tendo em vista a perspectiva da transformação da sociedade.
Desse modo, a revolução não é produto de um imperativo moral, e sim da necessidade, embora não sejam poucas as razões morais e humanas para acabar com este sistema.
A etapa atual da crise iniciada no final dos anos 60 constitui a concretização gritante do caráter insuperável das contradições capitalistas.
Porque a revolução proletária é indispensável para a instauração de uma nova sociedade?
Neste plano, existe diferenças importantes com a revolução burguesa. Enquanto os métodos de produção capitalistas conseguiram emergir sob o feudalismo, não pode existir "ilhotas" de comunismo no seio do capitalismo, qualquer que seja o tamanho delas. Há várias causas para isso:
Será que a transformação comunista é possível num país só, ou num conjunto de países, onde a classe operária conseguiu tomar o poder?
Ao contrário do capitalismo, o socialismo não pode se desenvolver progressivamente de um país a outro. Só pode existir em escala mundial ao acionar o conjunto das forças produtivas e das redes de circulação dos bens criados pelo capitalismo. É por isso que a revolução deve intervir nessa escala para permitir a transformação socialista. O poder do proletariado isolado dentro de um país, ou até um conjunto de países, continua sendo dominado pelas leis do capitalismo, quaisquer que sejam as medidas adotadas.
Porque esta classe revolucionária, depois de ter cumprido sua revolução, não faria como as antigas classes dominantes que, depois de ter estabelecido seu poder, se tornaram exploradoras?
As outras classes revolucionárias do passado não se tornaram exploradoras depois de ter tomado o poder. Antes disso já existiam enquanto classes exploradoras.
Cabe à classe revolucionária derrubar a velha sociedade, cabe a ela também liderar a transformação revolucionária com o objetivo da edificação da nova sociedade. Esta classe revolucionária apresenta uma diferença infinita com relação às demais classes revolucionárias do passado: ela é, pela primeira vez na história, a classe explorada. Ao abolir sua exploração, extingue toda exploração. Por isso que sua vocação não pode ser emancipar-se sozinha, e sim emancipar o conjunto da humanidade.
Será que não existe o risco de ver a próxima revolução seguir o mesmo curso que a Revolução Russa, ou seja, a degeneração?
Não existe nenhuma fatalidade assegurando que a revolução possa acontecer, que seja vitoriosa e, depois, que a transformação das relações sociais rumo o comunismo seja levada a cabo.
Se a revolução na Rússia degenerou, não é, sobretudo, por conta de seus erros, mas do isolamento internacional no qual se encontrou com o refluxo da onda revolucionária mundial da qual foi o produto. Não é somente a construção do socialismo que é impossível num único país, mas até o poder do proletariado não pode ser assegurado por muito tempo ao ficar isolado só em um país. Em tais circunstâncias, só pode tender à degeneração. Com efeito, o poder proletário existe unicamente para assumir uma função bem definida: estender a revolução em escala mundial e iniciar a transformação das relações sociais de produção. Se não existe a possibilidade de realizar estes objetivos, por conta de uma correlação de forças desfavorável em escala internacional, então este poder é submetido à pressão crescente do capitalismo mundial: ofensivas militares e diplomáticas para asfixiá-lo; concorrência econômica mundial; etc. Foi o que aconteceu com a Rússia dos sovietes.
Será que o fato de tomar o poder já não seria corruptor por si só, constituindo-se, assim, num grande fator de degeneração?
O poder político do proletariado é exercido em escala mundial através da sua organização em Conselhos Operários. Esta forma de organização, que surgiu espontaneamente pela primeira vez na Rússia em 1905, é a única forma de organização que permite à classe operária pensar e atuar como um todo unido, e isso apesar da imensurável heterogeneidade que pode existir no seu seio. Sua força é baseada em duas características essenciais:
É a única forma de organização capaz de levar em conta a evolução acelerada da consciência no seio da classe operária que caracteriza as fases revolucionárias ou pré-revolucionárias.
Isso é a ditadura do proletariado, depois da tomada do poder.
Além disso, o poder proletário cria as bases do seu próprio desaparecimento, pois seu alvo é dirigir a transformação revolucionária paraa construção de uma sociedade sem classes sociais, sem Estado, sem poder político sobre a sociedade. É, portanto, o único poder político na história que não tem como objetivo sua própria perpetuação.
Entretanto, nada do que dissemos constitui uma garantia contra a degeneração, esta tendo origem enquanto resultado obrigatório de um retrocesso duradouro da revolução em escala mundial.
Será que não existe o risco da revolução provocar um banho de sangue?
Se a revolução não acontecer ou não for vencedora, não é um simples banho de sangue que vamos conhecer, mas milhares de banhos de sangue. Na realidade, a incapacidade do proletariado derrubar este sistema fará com que a situação atual de crise histórica do capitalismo se expressará através de guerras ainda mais mortíferas, de uma deterioração agravada do meio ambiente e pela explosão e generalização da miséria sob todas suas formas. Tudo isso tornará a vida na terra um verdadeiro inferno, até uma impossibilidade.
Ao estar destinada a abolir a ditadura de classe da burguesia, a revolução será necessariamente violenta, mas será uma violência libertadora, tendo em vista permitir o advento de um mundo livre da barbárie. Se tomarmos o caso da Revolução Russa, o número de vítimas resultado da insurreição de 1917 foi irrisório em comparação ao número de mortos diários na Primeira Guerra Mundial, da reação branca organizada pelo capitalismo mundial contra a Revolução Russa ou ainda a contrarrevolução stalinista. Além disso, foi a primeira onda revolucionária mundial e, particularmente, a revolução na Alemanha que obrigou a burguesia a colocar um ponto final à primeira matança mundial, na medida em que a continuidade da guerra constituía um solo fértil à radicalização das massas e, portanto, à revolução.
Por outro lado, para fabricar uma imagem diabólica da revolução, a burguesia utiliza situações que não têm nada ver com esta, mas que, pelo contrário, são diretamente expressões da ação de frações da burguesia: a contrarrevolução stalinista, a pretendida revolução maoísta, o terror de Pol Pot no Camboja, etc.
Realmente, será que é possível a revolução?
Sim. Não é a derrota da primeira tentativa revolucionária mundial que pode afirmar o contrário.
De fato, a ditadura do proletariado na Rússia era a expressão mais avançada de uma onda revolucionária mundial. Esta última envolveu nada menos que o proletariado alemão, a fração mais avançada do proletariado mundial, e que durante mais de três anos desenvolveu uma luta sem tréguas contra a burguesia.
Infelizmente, foi derrotado e sua derrota significou, consequentemente, a derrota da onda revolucionária mundial e a degeneração da Revolução Russa. Por outro lado, uma vitória da revolução na Alemanha teria aberto a possibilidade da extensão da revolução na Europa central e, depois, na Europa ocidental e no mundo.
Para concluir, a revolução proletária é possível, existem as condições para ela ter êxito, mas não existe nenhuma certeza quanto a este resultado. A única coisa da qual podemos ter certeza é que a manutenção da ordem social atual, sem que haja uma revolução mundial, só pode desembocar, a longo prazo, na impossibilidade de sobreviver neste mundo; em outros termos: significa o fim da humanidade. É essa alternativa que traduz a palavra de ordem histórica, colocada pelo movimento operário quando da primeira onda revolucionária mundial de 1917-23: "Socialismo ou Barbárie".
Recebemos em 3 de Março de 2010, em nosso site espanhol, um comentário relativo à situação dos moradores dos bairros operários e populares da aglomeração de Concepción, depois do terremoto de fim de fevereiro. Ao contrário da propaganda da mídia em escala internacional que desacreditou o comportamento da população local, acusando-a de ter cometido "escandalosos saques", este texto restabelece a realidade dos fatos colocando em relevo o espírito autenticamente proletário de solidariedade e ajuda mútua que animou os operários na redistribuição dos bens, opondo-a à ação predadora dos bandos armados contra os quais a população tentou se encarregar e de organizar sua própria defesa.
* * *
(Por um camarada anônimo)
Seria muito bom que, possuindo vocês este meio de difusão, pudessem dar conta do que está passando em Concepción e seus arredores, assim como em outras zonas afetadas pelo terremoto. Já se sabe que desde o primeiro momento muita gente aplicou o maior senso comum e dirigiram aos centros onde se armazenam as provisões, apropriando-se não mais do que o que necessitavam. Isso é lógico, racional, necessário e inevitável, tanto que até parece algo absurdo colocar ao menos em discussão. Houve uma organização espontânea (especialmente em Concepción) das pessoas que repartiu leite, pães e água de acordo com as necessidades de cada um, considerando o número de filhos de cada família especialmente. A necessidade de pegar os produtos disponíveis era tão óbvia, tão poderosa a determinação do povo em exercer o seu direito à sobrevivência, que até os policiais terminaram ajudando as pessoas pegar os alimentos do Supermercado Líder de Concepción, por exemplo. E quando tentaram impedir que as pessoas fizessem a única coisa que podiam fazer, as instalações em questão simplesmente foram incendiadas, pois é igualmente lógico que se toneladas de alimentos irão apodrecer em lugar de ser devidamente consumidos, é melhor que esses alimentos queimem, evitando assim perigosos focos de infecção. Estes "saques" permitiram milhares de pessoas subsistir durante algumas horas, na escuridão, sem água potável e sem a menor esperança de que alguém mais venha em sua ajuda.
Pois bem, no decorrer de algumas horas a situação mudou drasticamente. Por toda área urbana começou a atuação de bandos bem armados e dirigindo bons carros, que se dedicaram a saquear não só pequenos estabelecimentos, mas moradias particulares e grupos de casas. Seu objetivo era roubar os escassos bens que as pessoas tinham conseguido recuperar dos supermercados, assim como seus utensílios domésticos, o dinheiro ou o que havia. Em algumas áreas de Concepción, esses bandos saquearam as casas, depois incediaram-nas e fugiram. Os vizinhos, que de início se encontravam sem a menor defesa, começaram a organizar-se para poder se defender, fazendo rondas de vigilância, levantando barricadas para proteger suas passagens, e em alguns bairros coletivizando os mantimentos para assegurar a alimentação de todos moradores.
Com esse breve relato dos fatos ocorridos nas horas recentes não pretendo "completar" o quadro informativo proporcionado por outros meios. Quero chamar atenção sobre o conteúdo que encerra essa situação crítica e o sentido que contém a partir de um ponto de vista anticapitalista. O impulso espontâneo das pessoas para apropriar-se do necessário para sua subsistência, sua tendência a dialogar, compartilhar, procurar colocar-se de acordo e atuar juntos, a tendência comunitária atuando de uma forma ou de outra em nosso entorno. Todos nós podemos ver ao nosso redor esta tendência comunitária natural. Em meio ao horror vivido por milhões de trabalhadores e suas famílias, este impulso para viver em comunidade tem emergido como uma luz no meio das trevas, relembrado-nos que nunca é tarde para voltar a nós mesmos. Diante dessa tendência orgânica, natural, comunista, que tem animado o povo durante essas horas de perplexidade, o Estado tornou-se pálido revelando-se o que de fato é: um monstro frio e impotente. Assim, a brusca interrupção do ciclo insano de produção e consumo, deixou o patronato a mercê dos acontecimentos, obrigado a aguardar agachado o restabelecimento da ordem. Em suma, uma verdadeira lacuna na sociedade, da qual poderia emergir as fontes do mundo novo que habita no coração da gente comum. Era necessário então, urgentemente, restabelecer a todo custo a velha ordem de rapina, do abuso e da apropriação. Porém foi feito não a partir das mais altas esferas, mas do próprio solo da sociedade de classes: os encarregados de fazer voltar as coisas ao seu estado, isto é, de impor pelas forças das relações de terror que permitem a apropriação privada capitalista, foram as máfias do narcotráfico entrincheiradas nas cidades, os mais arrivistas dentre os arrivistas, filhos da classe trabalhadora aliados com elementos burgueses para ascender às custas do envenenamento dos seus irmãos, do comércio sexual das suas irmãs, da avidez consumista de seus próprios filhos. Mafiosos: significa dizer, capitalistas em estado puro, predadores do povo montados em caminhonetes 4x4 e armados com pistolas automáticas, dispostos a intimidar e despojar os seus próprios vizinhos ou os habitantes de outros bairros, com a finalidade de monopolizar o mercado negro e ganhar dinheiro fácil, ou seja, poder. O fato de que seus crimes vergonhosos estão sendo usados pela mídia para colocar em pânico a já desmoralizada população, justificando assim a militarização do país, demonstra que esses elementos mafiosos são aliados naturais do Estado e da classe capitalista. Que outro cenário poderia ser mais propício para nossos amos políticos e empresariais, que veem nessa crise catastrófica nada mais que outra boa oportunidade para fazer bons negócios extraindo lucros mais elevados de uma força de trabalho submetida pelo medo e o desespero.
Da parte dos adversários dessa ordem social, não tem nenhum sentido cantar as loas ao saque sem precisar o conteúdo social de tais ações. Não é o mesmo de uma massa de pessoas em alguma medida organizada, ou pelo menos com um propósito comum, pegando e repartindo os produtos que necessitam para subsistir... que alguns bandos armados saqueando a população com objetivo de lucrar em benefício próprio. O certo é que o terremoto de Sábado 27/02 não só golpeou terrivelmente a classe trabalhadora e destruiu as infraestruturas existentes. Também transtornou seriamente as relações sociais nesse país. Em questão de horas, a luta de classes emergiu em toda sua crueza diante dos nossos olhos, quem sabe demasiado acostumados às imagens televisivas para poder captar a essência dos fatos em curso. A luta de classes está aqui, nos bairros reduzidos a escombros na sombra, crepitando e rangendo no próprio chão da sociedade, em que estão enfrentando-se em um choque mortal duas classes de seres humanos que no final se encontram frente a frente; de um lado os homens e mulheres sociais que se buscam entre si para ajudarem-se e para compartilhar; e de outro os antissociais que os saqueiam e atiram neles para iniciar sua própria acumulação primitiva de capital. Cá estamos nós, os seres opacos e anônimos de sempre presos em nossas vidas cinzentas de explorados, de vizinhos e parentes, porém dispostos a estreitar laços com quem compartilhamos a mesma desapropriação. Lá estão eles, poucos, porém dispostos a despojar-nos pela força do pouco ou nada que podemos compartilhar. De um lado o proletariado do outro o capital. Assim tão simples. Em muitos bairros dessa terra devastada, a essas horas da madrugada as pessoas começam organizar sua autodefesa diante dos bandos armados. A essa hora começa a tomar forma material a consciência de classe daqueles que são obrigados, brutalmente e num abrir e fechar de olhos, compreender que suas vidas lhes pertence, e que ninguém virá em sua ajuda.
Nunca anteriormente tinha sido tão evidente a falência desse sistema. Como também nunca antes tinha se planejado tal quantidade de planos de ataques massivos contra a classe trabalhadora. Mas, que desenvolvimento pode-se esperar da luta de classes?
A crise das "subprimes" de 2008 desembocou em uma crise de dimensão mundial que levou a uma queda da atividade econômica como não tinha acontecido desde 1929.
Não foram novas as medidas tomadas pela burguesia para evitar que esse colapso fosse ainda mais brutal e profundo. Não diferiram das que sucessivamente foram aplicadas desde o início dos anos 1970, recorrendo cada vez mais ao crédito. Mais uma vez, todos os recordes de um monstruoso endividamento mundial foram alcançados. Mas hoje a magnitude da divida é tão ampla que se torna comum falar da fase atual da crise econômica como "a crise da dívida".
A burguesia tem provavelmente escapado momentaneamente do pior. Não é menos verdade que não aconteceu nenhuma recuperação, e além disso, vários países correm o risco sério de insolvência, com taxas de endividamento superiores a 100% do PIB. Dentre esses países figuram a Grécia, a Espanha (a 4ª economia da zona do euro), Islândia. E se a Inglaterra não apresenta as cifras de endividamento dos citados acima, os especialistas não deixam de advertir a existência de sinais muito inquietantes em relação a este país. Quanto aos demais (EUA, França...) não estão muito atrás.
Em tal situação, a insolvência de um país que se torna incapaz de cumprir os prazos de pagamento da sua dívida pode desencadear uma reação em cascata que conduz à insolvência de outros muitos agentes econômicos (bancos, empresas, outros países,...).
Assim, por exemplo, o não pagamento da dívida grega deixaria em uma posição muito comprometedora vários bancos na França.
Diante do grau de gravidade alcançado pela crise de superprodução, a burguesia não dispõe mais do que uma única solução: endividar-se ainda mais. Isto não só faz atrasar a deflagração dos problemas, como também é uma política cada vez mais difícil de colocar em prática e que comporta riscos crescentes de se transformar em uma repetição, muito mais devastadora, da crise dos "subprimes".
Tudo isso torna ainda mais evidente os fundamentos históricos da crise econômica. Para sustentar a demanda, a burguesia tinha incitado o endividamento doméstico e muitos entre eles foram totalmente arruinados. Isso implicou pelos bancos perdas financeiras muito importantes que resultaram em numerosas falências bancárias. Os estados tiveram que socorrer o sistema bancário. E quem vai socorrer os Estados agora ameaçados de insolvência? Ninguém. Eles constituem o último baluarte financeiro do mundo capitalista.
Diferentemente do que acontecia no passado, a burguesia não pode ocultar atualmente a realidade da sua crise. Tudo o que consegue, e nem sequer plenamente, é desviar a responsabilidade do sistema pelos problemas econômicos, focalizando a atenção no "comportamento antissocial" dos especuladores. E é certo que alguns desses aparecem como repugnantes abutres. Mas isso não é a raiz do problema.
A loucura financeira, ou seja, o endividamento ilimitado e a especulação a todo custo tem sido promovida pelo capitalismo como meio para adiar o momento da recessão. Resultado: o endividamento e a especulação hoje estão profunda e inseparavelmente acoplados à existência do sistema. O verdadeiro problema tem sua origem no próprio seio do capitalismo que é incapaz de sobreviver se não conseguir novas e cada vez mais massivas injeções de crédito.
E quais remédios prepara hoje a burguesia diante da crise do endividamento? Os planos de austeridade. Na Grécia, a burguesia está tentando aplicar um desses. Outro está em preparação na Espanha. Na França são anunciados ataques relacionados às aposentadorias, etc.
Vão trazer uma nova recuperação econômica? Vão trazer uma recuperação, mesmo momentânea, do nível de vida que tanto se deteriorou nos últimos dois anos da crise?
A burguesia mundial não pode deixar "afundar" um país como a Grécia sem que os credores deste tenham que enfrentar um risco análogo. Por outro lado, a única ajuda que pode trazer para este país constitui num novo lote de créditos com taxa de juros "aceitáveis". Exige para isso, em retorno, garantias de rigor orçamentário. O "socorrido" deve demonstrar que não vai representar um saco sem fundo que venha tragar a ajuda internacional. Assim, exige-se da Grécia que "reduza seu ritmo vida" para que diminua o ritmo de aumento tanto do déficit como do endividamento. Assim, a condição para que o mercado de capitais volte a confiar novamente na Grécia é que se ataquem ao extremo as condições de vida da classe trabalhadora.
Não é o menor paradoxo que a confiança que a comunidade internacional está disposta a outorgar a Grécia dependa da capacidade deste país para reduzir o ritmo de crescimento do seu endividamento e não de rebaixá-lo a zero, o que, por outro lado, seria impossível. Isto significa que a solvência de um país diante do mercado mundial de capitais depende de que o aumento do seu endividamento não seja "elevado demais". Em outras palavras um país declarado insolvente por causa do seu endividamento, pode converter-se em solvente mesmo quando esse endividamento continue crescendo. Moral da história: no mundo atual "hiperendividado", a solvência não se estabelece partindo essencialmente de uma realidade objetiva, mas baseando-se em uma confiança,... sem fundamento real.
Porém os capitalistas se vêem obrigados a acreditar nisso, pois se não acreditarem também não poderiam acreditar na sustentabilidade do seu sistema de exploração. Não é simples ser capitalista nos tempos atuais!
Para manter a confiança cega no sistema, é necessário uma drástica redução do custo da força de trabalho. E vai ser aplicada em todos os países, uma vez que todos eles, embora em intensidade diferentes, enfrentam o grave problema da dívida e do déficit.
Esta política que, no marco do capitalismo, não tem alternativa real, pode evitar um pânico generalizado, e inclusive favorecer posteriormente uma pequena retomada, sustentada em pés de barro. Mas o que não conseguirá de maneira alguma é consertar o sistema financeiro mundial.
O fato de que os capitalistas devam depositar toda sua confiança nas curas pela austeridade para sair da crise, não significa que os trabalhadores devam acreditar nessas virtudes nem sequer aceitá-las.
O discurso dos exploradores de "abrir mão hoje para que o amanhã possa ser melhor" faz tempo já que deixou de iludir a maioria dos trabalhadores. Sobretudo a partir de 2000, embora possa aparecer diferenças de um país para outro.
No entanto, pode-se constatar que o recente agravamento da crise não tem se traduzido, por enquanto, em uma ampliação das mobilizações da classe operária. E mais, faz pouco mais de um ano, assistimos a uma tendência inversa. Diretamente chocada pela avalanche de ataques, a classe operária tem permanecido desamparada e reagindo apenas em certas ocasiões apenas pontuais. Mas isso não significa que esteja conformada com o destino que o capitalismo lhe reserva.
A característica de alguns ataques, sobretudo as demissões em massa, tem feito ainda mais difícil a réplica. Com efeito, diante disso, os patrões e o governo têm a seu favor o seguinte argumento decisivo: "Nós não temos nada a ver com o aumento do desemprego ou que tenha que demitir. É culpa da crise!". Além do mais, nessas condições a arma da greve se converte em algo inoperante, o que acentua ainda mais o sentimento de impotência dos trabalhadores.
Mas se é inegável que essas dificuldades têm ainda um grande peso sobre os trabalhadores, a situação não está bloqueada. Isso é demonstrado por uma evolução do estado de ânimo da classe operária e um estremecimento da luta de classes.
1) A exasperação e a raiva vão se estendendo e generalizando nas filas operárias.
São alimentadas por uma indignação profunda e intensa diante de uma situação escandalosa, cada vez mais intolerável: a própria sobrevivência do capitalismo. Esta carrega uma acentuação dos contrastes no seio de uma mesma sociedade na qual se opõem "dois mundos diferentes". Em um deles reside uma imensa maioria que sofre todas as injustiças e a miséria. No outro, habita a classe dominante com a indecente exibição do seu poder e da sua riqueza, e cujos comportamentos recordam cada vez mais os sórdidos costumes da classe dominante da decadência romana.
2) Mais diretamente existe a ideia, bastante disseminada, de que "os bancos nos jogaram em um atoleiro sem solução do qual não podemos sair".
E embora essa opinião não reflete evidentemente o fundo do problema, catalisa a raiva contra o sistema. O dito "escândalo dos bancos" enlameia o conjunto do sistema que inspira um sentimento de rechaço cada vez maior entre os trabalhadores. Os partidos da esquerda, que cumprem a função de enquadrar ideologicamente o proletariado, devem tentar se adaptar a esse rechaço do capitalismo. Assim verificamos como o PC francês não tem encontrado melhor conclamação do que "Saiamos do capitalismo". Isso sem nos dizer como fazê-lo nem aonde ir depois.
3) O reaparecimento de lutas de maior amplitude, como as que temos visto recentemente na Argélia e Turquia;
a) Na Argélia, no mês de janeiro passado ocorreu toda uma série de importantes mobilizações que, no entanto sofreu o "blackout" (a ocultação) por parte da mídia, que tem impedido a circulação de informações sobre:
b) Na Turquia, a luta dos trabalhadores da Tekel durante os meses de dezembro e janeiro passados, representou um autêntico farol para a luta dos trabalhadores daquele país, embora infelizmente, e de novo graças ao blackout midiático, foi pouco divulgada no exterior. Algumas características daquele movimento foram:
4) No coração do próprio capitalismo, enquanto o enquadramento sindical mais potente e sofisticado permite ainda evitar explosões de lutas tão importantes como as que ocorreram na Argélia e Turquia, também assistimos apesar disso a um reativação da combatividade. Na França, por exemplo, desde o início do ano tem acontecido manifestações e greves tanto no setor público como no setor privado: na educação, nos hospitais, nas refinarias, entre os controladores aéreos, nas lojas Ikea, na Philips (eletro-domésticos).
5) Agitação nas universidades nos Estados Unidos que começou na Califórnia. Houve uma série de movimentos de ocupação que agora vai além da Califórnia.
6) Vemos também como reaparecem certas características fundamentais da luta de classes que caracterizaram algumas mobilizações a partir do ano de 2003. E ressurgem de forma mais explícita. É o caso em particular, da solidariedade operária, que tende novamente a impor-se como uma virtude da luta, depois de ter sido tanto desnaturalizada e depreciada nas lutas dos anos 1990. Esta solidariedade se expressa hoje através de iniciativas - ainda muito minoritárias - que buscam unir em uma só luta, trabalhadores de distintas empresas, setores, etnias ou nacionalidades.
A solidariedade desemboca no internacionalismo na prática, Como vimos nas lutas dos operários da Tekel na Turquia, mas também em Vigo (Espanha), onde:
7) A manutenção durante duas semanas de um autêntico blackout sobre as lutas sociais na Grécia contra as medidas contidas no plano de austeridade. Isso diz muito do terror da burguesia diante da propagação em escala internacional da determinação operária em não se deixar ser esmagado e em desenvolver um combate apesar de todas as dificuldades. Através da imprensa fomos inteirados de que em fevereiro aconteceram movimentos de greves com uma participação estimada em 90%. Por outras fontes sabe-se que existe uma desconfiança muito grande para com os sindicatos. Por outro lado, vimos também mobilizações importantes em outros países como Espanha (onde a seção da CCI interveio com um panfleto), e mais recentemente em Portugal.
Entramos já em uma situação em que, além das demissões nas empresas em dificuldades, vamos ver como os Estados vão ter de assumir um ataque frontal contra a classe trabalhadora para fazer pagar o custo da dívida. O responsável direto desses ataques, o Estado nesse caso, é muito mais facilmente identificável de que no caso das demissões. Isso é um fator que favorece o desenvolvimento da luta de classes, sua unidade e sua politização visto que é o guardião supremo dos interesses do capital, o Estado, que aparece claramente como o primeiro defensor dos interesses do conjunto da classe capitalista contra toda classe trabalhadora.
Todos os elementos, presentes e potenciais, da situação atual, constituem os ingredientes para a explosão de futuras lutas massivas. A aplicação por parte da burguesia dos planos de austeridade previstos nos diferentes países será uma fonte de experiências de lutas e de lições para toda classe operária. O que vai fazer com que a explosão seja possível vai ser a acumulação da exasperação e da indignação entre os trabalhadores. Aí qualquer evento poderá servir de detonante, qualquer "pretexto" poderá acender o pavio.
A exploração ideológica da queda do stalinismo, que se apoiou sobre a maior mentira do século: a identificação dos regimes stalinistas com o socialismo, deixou seqüelas que ainda estão marcadas nos trabalhadores.
A burguesia colocou sobre a mesa uma esmagadora "evidência": "O comunismo não funciona. Veja como os povos que o experimentaram, abandonaram-no, correram para os braços do capitalismo". E isso conduziu uma grande maioria dos trabalhadores a se afastar de um projeto de sociedade alternativa ao capitalismo.
A situação que resultou disso é, a partir desse ponto de vista, muito diferente da qual vivemos no fim dos anos 1960. Nessa época, o caráter massivo das lutas operárias, sobretudo experiências como a imensa greve de maio de 1968 na França ou o "outono quente" na Itália, evidenciava que a classe operária podia representar uma força de primeira magnitude na sociedade. A idéia de que poderia chegar a derrubar a capitalismo não constituía uma utopia, diferentemente do que acontece hoje.
A dificuldade para desenvolver lutas massivas que já demonstrou o proletariado desde o fim dos anos 1980, é o resultado de uma perda de confiança em si mesmo que a nova retomada da luta de classes a partir do ano de 2003 não conseguiu dissipar.
Só o desenvolvimento de lutas massivas pode permitir ao proletariado recuperar a confiança nas suas próprias forças e poder colocar de novo sua própria perspectiva de classe.
Mas, por mais importante que possa ser essa etapa futura da luta de classes, não significará também o desaparecimento de todas as vacilações no proletariado para se engajar decididamente no caminho para a revolução.
Na realidade, Marx já tinha assinalado, no início de 1852, que a revolução proletária segue um curso difícil e tortuoso, muito diferente do característico das revoluções burguesas que "como as do século XVIII se precipitam vertiginosamente de êxito em êxito" [i].
Essa disparidade, entre a burguesia revolucionária e o proletariado, no tocante à dinâmica da luta de classes, deriva das diferenças entre as condições da revolução burguesa e as da revolução proletária.
A tomada do poder político por parte da classe capitalista constituiu o ponto de chegada de todo um processo de transformação econômica que tinha ocorrido no seio da sociedade feudal. É assim que as antigas relações de produção feudais tinham sido progressivamente suplantadas pelas relações de produção capitalista. E foram essas, precisamente, as que permitiram à burguesia uma potente alavanca para sua conquista do poder político.
O processo da revolução proletária é completamente diferente. As relações de produção comunista, dado que não são relações mercantis, não podem desenvolver no seio da sociedade capitalista, dominada por relações mercantis e dirigida pela burguesia.
Uma vez que é a classe explorada do modo de exploração capitalista e que é, por definição, privada de todo meio de produção, a classe operária não dispõe nem pode dispor, na sociedade capitalista, de alavancas econômicas nas quais possa se apoiar para a conquista do poder político.
Contrariamente ao capitalismo que podia ir suplantando o feudalismo, o primeiro ato da transformação comunista da sociedade deve consistir em um ato consciente e deliberado: a tomada do poder político em escala mundial pelo conjunto da classe operária organizada em conselhos operários.
É evidente que a imensidão dessa tarefa provoca vacilações e dúvidas.
Essa é a razão pela qual os revolucionários têm a responsabilidade de comprometer-se plenamente favorecendo a capacidade da classe operária para dar a seus combates sua dimensão histórica, ou seja, concebê-los como um momento do grande combate histórico do proletariado contra a exploração e pela sua abolição.
[i] Essa idéia de "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", foi retomada por sua vez por Rosa Luxemburgo quando escreveu que "a revolução [proletária] é a única forma de "guerra" (...) na qual a vitória final se obtém através de uma série de "derrotas", (...) até agora as revoluções,... só nos deram derrotas, porém esses fracassos inevitáveis, são precisamente, a pré-condição reiterada da vitória final."
Assassinos! Capitalismo, seus estados, a burguesia, são todos assassinos. Milhares e milhares de pessoas acabam de morrer apenas por causa desse sistema desumano.
Terça-feira, 16h53, hora local, um terremoto de magnitude 7 na escala de Richter devastou o Haiti. A capital, Porto Príncipe, cidade miserável com cerca de dois milhões de habitantes, foi simplesmente exterminada. O saldo é terrível. E aumenta a cada hora que passa. Quatro dias depois do desastre, hoje, sexta-feira 15 de janeiro, a Cruz Vermelha estima entre 40000 e 50000 mortes e "uma enorme quantidade de feridos graves". Segundo essa associação, pelo menos três milhões de pessoas foram diretamente afetadas pelo terremoto [1]. Em poucos segundos, 200 000 famílias perderam suas "casas", construídas na maior parte com restos de todos os tipos de material. Também desmoronaram como um castelo de cartas grandes edifícios. As estradas, já em mau estado, o aeroporto, e os velhos trilhos de trem,... não sobrou nada.
A causa deste desastre é indignante. O Haiti é um dos países mais pobres do mundo onde 75% das pessoas sobrevivem com menos de US $ 2 por dia e 56% com menos de um dólar! Nesse pedaço de ilha assolado pela pobreza, obviamente, nunca se construiu nada para suportar terremotos. Entretanto, é bastante conhecido que o Haiti é uma zona sísmica. Agora todos aqueles que afirmam que este terremoto tenha sido de uma violência excepcional estão mentindo. O professor Eric Calais, em um curso de geologia no país em 2002, explicou que a ilha é atravessada por "falhas que podem alcançar magnitudes entre 7,5 e 8 graus" [2]. Autoridades políticas do Haiti também foram oficialmente informadas desse risco, tal como evidenciado por este trecho retirado do Ministério de Minas e Energia (no âmbito do Ministério das Obras Públicas): "Todos os séculos passados foram marcados por, pelo menos, um grande terremoto em Hispaniola (nome espanhol da ilha, agora separada em dois países, o Haiti e a República Dominicana. nota da redação): destruição de Porto Príncipe em 1751 e 1771, destruindo Cap Haïtien 1842, 1887 e 1904, terremoto no norte do país, com grandes estragos em Port de Paix e Cap Haïtien, terremoto de 1946 no nordeste da República Dominicana, ao qual se somou um tsunami na região de Nagua. Aconteceram grandes terremotos no Haiti, e, no futuro continuará acontecendo à escala de dezenas ou centenas de anos: é uma evidência científica." [3] (sublinhado nosso). E, diante de semelhante "evidência científica", que medidas foram tomadas? Nenhuma! Em março de 2008, para não ir muito longe, um grupo de geólogos alertou para o risco elevado de terremotos de grande escala nos próximos dois anos e inclusive alguns cientistas se reuniram várias vezes em maio desse ano com o governo haitiano [4]. Nem o Estado do Haiti, nem qualquer dos Estados que hoje derramam lágrimas de crocodilo e agora se dedicam a conclamar a "solidariedade internacional" com os Estados Unidos e a França na liderança, nunca tomaram a menor precaução para evitar esse drama previsível. Edifícios construídos no Haiti são tão frágeis que não é preciso nem mesmo um terremoto para desintegrar-se: "Já em 2008, em uma escola em Petionville foram enterrados, sem qualquer explicação geológica, cerca de 90 crianças" [5].
Já que é tarde demais, Obama e Sarkozy podem anunciar uma "grande conferência internacional" para "a reconstrução e desenvolvimento", como podem os Estados chinês, inglês, alemão ou espanhol enviar seus pacotes e suas ONGs que querem, mas eles vão continuar sendo criminosos com as mãos sujas de sangue.
Se hoje o Haiti é tão pobre, se a sua população tem carência de tudo, se falta infra-estrutura, é porque, há mais de 200 anos, a burguesia local e as grandes burguesias espanhola, francesa e americana estão em competição por recursos e pelo controle do pequeno pedaço de terra. Através de seu jornal The Guardian, a burguesia britânica usa a ocasião para sublinhar a responsabilidade flagrante dos seus rivais imperialistas: "Esta ‘nobre comunidade internacional' que vemos hoje, se atropelando para acudir ao Haiti com a sua "ajuda humanitária" é em grande medida responsável pelos erros terríveis que hoje tenta atenuar. Desde o dia em que, em 1915, os Estados Unidos invadiram e ocuparam o país, todos os esforços [...] foram sabotados deliberadamente e pela violência do governo dos Estados Unidos e seus aliados. O próprio governo de Aristide [...] foi a última vítima, derrubado em 2004 por um golpe de Estado com o apoio internacional durante o qual milhares de pessoas perderam a vida [...] Na realidade, desde o golpe de 2004, quem governa no Haiti é a comunidade internacional. Esses países que agora correm para a sua cabeceira votaram sistematicamente ao longo dos últimos cinco anos contra qualquer ampliação do mandato da ONU, além de sua finalidade essencialmente militar. Os projetos que previam usar parte desse ‘investimento' para reduzir a miséria e promover o desenvolvimento da agricultura foram bloqueados, segundo as tendências a longo prazo a que continuam dominando a distribuição de ‘ajuda' internacional". [6]
E isso é apenas parte da verdade. Estados Unidos e França, há décadas, estão lutando pelo controle da ilha com base em golpes, manobras e corrupção da burguesia local, que contribuem para o aumento da pobreza, e da violência, e das milícias armadas que aterrorizam incessantemente os homens, mulheres e crianças.
Por tudo isso, o circo da mídia atual com a "solidariedade internacional" é intolerável e repugnante. É uma competição para ver qual estado vai fazer mais publicidade sobre as "suas" ONGs e as "suas" remessas. Vamos assistir qual vai oferecer a melhor imagem de vidas que "suas" equipes de socorro conseguirão resgatar dos escombros! Pior ainda, sobre os escombros e cadáveres, a França e os Estados Unidos continuam a travar uma guerra implacável de influência. Com a justificativa da ajuda humanitária, enviam suas frotas para a área tentando tomar o controle das operações, sob o pretexto de "a necessária coordenação da ajuda por um maestro."
Como ocorre em todos os desastres, todas as declarações de apoio a longo prazo, todas aquelas promessas de reconstrução e desenvolvimento continuam a ser letra morta. Durante dez anos, na seqüência de uma série de terremotos, foram:
E, a cada vez, a "comunidade internacional" se comove e envia um auxílio miserável; mas nunca fez investimento efetivo para melhorar a situação, a construção de edifícios a prova de abalos sísmicos, por exemplo. A ajuda humanitária, o socorro real às vítimas, as atividades de prevenção não são rentáveis para o capitalismo. A ajuda humanitária, quando disponível, só serve para fazer uma cortina de fumaça ideológica, dando a impressão de que este sistema pode ser humano, quando isso é apenas uma desculpa para justificar o envio de tropas e ganharem influência em uma região do mundo.
Basta um único exemplo para destacar a hipocrisia burguesa de ajuda humanitária e solidariedade internacional dos Estados: o ministro francês da imigração, Eric Besson, acaba decretar a suspensão "temporária" das expulsões de imigrantes haitianos que vivem sem documentos.
O horror que atinge as pessoas que vivem no Haiti cria um imenso sentimento de tristeza. A classe trabalhadora vai, como em cada tragédia, reagir positivamente ao apelo de ajuda. E demonstrará mais uma vez que tem um coração que bate pela humanidade, que a sua solidariedade não conhece fronteiras.
Acima de tudo, no entanto, um horror semelhante deve reforçar a raiva e a combatividade da classe trabalhadora. Os verdadeiros culpados dos 50 000 mortos no Haiti, não são nem a natureza ou nem o destino, mas o capitalismo e os seus estados, ou o que é o mesmo, os abutres imperialistas.
Publicado por Révolution Internationale, 15 de janeiro de 2010
[1] Página WEB de Libération (diário francês), https://www.liberation.fr/monde/0101613901-pres-de-50-000-morts-en-haiti... [97].
[2] No blog "sciences" (ciências ) de Libération (https://sciences.blogs.liberation.fr/home/2010/01/s%C3%A9isme-en-ha%C3%A... [98]).
[3] https://www.bme.gouv.ht/alea%20sismique/Al%E9a%20et%20risque%20sismique%... [99]
[4] Ver o artigo "Cientistas alertaram em 2008 sobre o perigo de terremoto no Haiti" em: Yahoo Mexico (Assiociated Press de 15/01/2010)
[5] Página Web de Courrier International (https://www.courrierinternational.com/article/2010/01/14/requiem-pour-po... [100]).
[6] Página Web de PressEurop (https://www.presseurop.eu/fr/content/article/169931-bien-plus-quune-cata... [101])
Em 14 de dezembro de 2009, milhares de trabalhadores nas empresas Tekel [1] de dezenas de cidades na Turquia, deixaram as suas casas e famílias para viajar para Ancara. Trabalhadores da Tekel fizeram essa viagem, a fim de combater as terríveis condições a que os obriga a ordem capitalista. Esta luta honrosa dos trabalhadores da Tekel que se arrasta há mais de um mês levou a ideia de uma greve em que todos os funcionários participassem. Ao fazer isso, os trabalhadores da Tekel começaram a liderar o movimento em todo o país. O que vamos tentar dar conhecimento aqui é a história do que aconteceu na luta da Tekel. Não se deve esquecer que o que relatamos, não diz respeito apenas aos trabalhadores da Tekel, mas aos trabalhadores em todo o mundo. Nós apresentamos os nossos sinceros agradecimentos aos trabalhadores da Tekel, por ter nos proporcionado escrever este artigo impulsionando as lutas da nossa classe para frente, por sua luta decidida e explicar o que aconteceu, as suas experiências e pensamentos.
Nós pensamos que seria útil conveniente explicar o que provocou os trabalhadores da Tekel a se lançarem nesta luta. Os trabalhadores da Tekel estão lutando contra a política do "4-C" do Estado turco. O Estado já o tem aplicado a dezenas de milhares de trabalhadores, que não estão sob as condições da Tekel, as condições do "4-C". Estas condições estão se estendendo rapidamente para dezenas de milhares de trabalhadores, incluindo os trabalhadores da fábrica de açúcar que serão as próximas vítimas. Além disso, muitos setores da classe trabalhadora sofreram ataques similares, sob diferentes nomes e outros ataques são esperados por aqueles que ainda não foram atacados. Então o que é o "4-C"? Trata-se de uma prática de "proteção" promovida pelo Estado turco, quando aumentou o número de trabalhadores que perderam os seus empregos devido às privatizações. Inclui, além de uma forte redução no salário, que os funcionários públicos sejam transferidos para diferentes setores do Estado sob condições terríveis. O pior das condições introduzidas pela política do "4-C" é a que dá aos chefes de empresas estatais poder absoluto sobre os trabalhadores. Assim, o salário, que é determinado pelo estado e que já significa um corte de salário enorme para os trabalhadores, é apenas o limite máximo a pagar. Ele pode ser reduzido pelos gestores de empresas estatais de forma arbitrária. Além disso, a fixação do horário de trabalho é completamente abolida para aqueles que vão trabalhar em condições introduzidas pela política do "4-C" que dá aos chefes das empresas estatais o poder de obrigar os trabalhadores a permanecer no trabalho pelo tempo que decidirem, quando eles quiserem, arbitrariamente, até o trabalhador completar a tarefa atribuída. Os trabalhadores não recebem qualquer pagamento em troca por este tempo "extra" de trabalho após o horário regular ou durante as férias. Sob esta política, os chefes têm o poder de demitir os trabalhadores de forma arbitrária, sem serem obrigados a pagar indenização. Além disso, o período em que os trabalhadores possam ser empregados em um ano é somente entre três e dez meses, e não é pago nada nos meses que são colocados em disponibilidade e a duração do seu trabalho também é determinada arbitrariamente pelos patrões. Apesar disso, os trabalhadores são proibidos de procurar um segundo emprego, mesmo que eles não estejam trabalhando nesse período. Também não é paga a previdência social dos trabalhadores no âmbito da política de "4-C" e os planos de assistência à saúde estão sendo extintos. Privatizações e, igualmente, a política do "4-C" começaram há muito tempo. Nas empresas da Tekel, inicialmente, só os ramos de cigarros e de álcool eram privatizadas, e esse processo levou ao fechamento de fábricas de tabaco. Acreditamos que está claro que o problema não é só as privatização. Pensamos evidentemente que o capital privado, que está tomando os postos de trabalho e o Estado, que é capital estatal, ao querer explorar os trabalhadores, submetendo-os às mais inimagináveis condições de exploração, estão unidos nesse ataque. Nesse sentido, podemos dizer que a luta dos trabalhadores da Tekel nasce dos interesses de classe de todos os trabalhadores e representa uma luta contra a ordem capitalista como um todo.
Parece também que temos de explicar a situação do movimento da classe trabalhadora na Turquia, no período em que os trabalhadores da Tekel lançaram sua luta. Em 25 de Novembro de 2009, tinha ocorrido um dia de greve organizada pelo KESK, o DISK e o Kamu-Sen [2]. Como dissemos, os trabalhadores da Tekel viajaram a Ancara, em 14 de dezembro, várias semanas após esta greve de um dia. Na mesma semana em que os trabalhadores da Tekel chegaram a Ancara, ocorriam outras duas lutas de trabalhadores. A primeira foi as manifestações dos bombeiros que iam ser demitidos do trabalho no início de 2010 e a segunda foi a greve de um dia dos trabalhadores ferroviários em protesto contra a demissão de alguns de seus companheiros pela participação na greve de 25 de novembro. A polícia de choque, vendo que as lutas de classes estavam aumentando, atacou brutalmente bombeiros e trabalhadores ferroviários. Os trabalhadores da Tekel não foram tratados de forma diferente. Além disso, o número de trabalhadores ferroviários que perderam o emprego por ter participado na greve foram quase cinquenta. Vários trabalhadores foram presos. Demorou algum tempo para que os bombeiros se recuperassem de tais ataques. Quanto aos trabalhadores ferroviários, infelizmente eles não conseguiram se recuperar até agora. O que põe os trabalhadores da Tekel na vanguarda em dezembro foi o fato de que eles conseguiram lutar contra as medidas repressivas do Estado e souberam manter a sua luta viva e ativa.
Como começou a luta de Tekel? Existia já uma forte minoria que queria lutar desde o 5 de dezembro, em uma cerimônia de abertura presidida pelo primeiro-ministro Tayyip Erdoğan[3]. Trabalhadores da Tekel, com seus familiares, se postaram inesperadamente na frente de Erdoğan, durante a cerimônia, para perguntá-lo o que iria acontecer com eles. Interromperam seu discurso dizendo que "os trabalhadores da Tekel estamos esperando para que nos dê uma boa notícia." Erdoğan disse em resposta: "Infelizmente, elementos como estes estão aparecendo na Turquia há algum tempo. Estes elementos querem ganhar dinheiro sem trabalhar, deitados. Acabou a época de ganhar dinheiro sem fazer nada (...) Acham que o estado é uma mina inesgotável e quem não aproveita dela são porcos. Isto é como eles vêem este problema. Não é a nossa forma de ver. Aqui está a sua compensação senhorial. Se vocês quiserem, podemos usá-los no âmbito do "4-C", caso contrário saiam e estabeleçam as suas próprias empresas. Nós também dissemos o seguinte: temos um acordo com o seu sindicato. Falei com eles e lhes disse "Vocês tem tempo, mas façam o que for preciso". Embora tivessem um acordo, o processo veio ao fim e passaram um ano ou dois. Eles ainda estão aqui dizendo coisas como "queremos manter os nossos empregos e continuar da mesma forma, queremos manter os mesmos direitos em outros lugares." Não!, já conversamos sobre isso. Dez mil trabalhadores da Tekel nos custam quarenta trilhões em um mês." [4]. Erdoğannão tinha idéia do tipo de problema que estava se metendo. Os trabalhadores, a maioria dos quais já havia apoiado o governo antes, agora estavam furiosos. Eles discutiram como iniciar uma luta dos trabalhadores nos locais de trabalho. Um trabalhador de Adıyaman [5] explica um processo como este em um artigo que ele escreveu e que foi publicado em um jornal esquerdista: "Esse processo estimulou os colegas que não estavam envolvidos na luta por menor que fosse (...). Eles começaram a ver a verdadeira face do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), através das palavras do primeiro-ministro. A primeira coisa que fizeram foi desistir de continuarem sendo membros do seu partido. Nas discussões que começaram em nossos locais de trabalho, decidimos proteger os nossos postos de trabalho todos juntos" [6]. O sindicato [7] com o qual Erdoğan disse que tinha feito acordos e que não tinha tomado medidas sérias para defender os empregos, convocou uma reunião em Ancara. Como resultado, os trabalhadores viajaram para a capital.
As forças do Estado organizaram um ataque astuto contra os trabalhadores desde o início. A tropa de choque parou os ônibus que transportavam os trabalhadores, e declarou que não iria permitir a passagem dos trabalhadores das cidades curdas, onde as fábricas Tekel estão concentradas, mas só os trabalhadores do Ocidente e das regiões do Mediterrâneo, Anatólia Central e do Mar Negro. O objetivo foi colocar os trabalhadores curdos e demais trabalhadores uns contra os outros e, assim, dividir o movimento da classe em linhas étnicas. Esta manobra na realidade derrubou duas máscaras do governo: o da unidade e harmonia e o da Reforma curda [8]. Os trabalhadores da Tekel não caíram nessa armadilha da polícia. Com os trabalhadores de Tokat [9] dirigindo-lhes, os trabalhadores de fora das cidades curdas protestaram contra esta posição da polícia e insistiram com determinação que todos os trabalhadores entrassem juntos na cidade e que ninguém seria deixado para trás. A polícia de choque, incapaz de calcular a posição que o governo iria adotar, teve que permitir que os trabalhadores entrassem juntos na cidade. Este incidente fez com que trabalhadores provenientes de diferentes cidades, regiões e etnias estabelecessem laços profundos no terreno da classe. Em seguida a este incidente, os trabalhadores do Ocidente, do Mediterrâneo, Anatólia Central e regiões do Mar Negro expressaram a força e a inspiração que tomaram da resistência, da determinação e da consciência dos trabalhadores curdos contribuíram em grande medida para a sua participação na luta e aprenderam muito desses trabalhadores. Os trabalhadores da Tekel tinham obtido a sua primeira vitória ao entrar na cidade.
Em 15 de dezembro, os trabalhadores da Tekel começaram seu protesto contra a sede nacional do Partido da Justiça e Desenvolvimento, em Ancara. Um trabalhador que chegou nesse dia, explica o que aconteceu: "Nós marchamos para a sede nacional do Partido da Justiça e Desenvolvimento. Acendemos uma fogueira no meio da noite em frente do edifício e esperamos até as dez horas da noite. Quando fazia frio demais, fomos para o Ginásio Atatürk. Havia cinco mil de nós. Utilizamos nossos tapetes e papelões e passamos a noite lá. Pela manhã, a polícia nos empurrou para o Parque Abdi İpekçi e nos cercou. Alguns dos nossos companheiros marcharam até a sede do Partido novamente. Quando estávamos à espera no parque, quisemos ir reunir com nossos companheiros e os que esperavam em frente da sede do partido queriam vir com a gente: a polícia nos atacou com gás lacrimogêneo. Às 7 horas da noite conseguimos reunir com os nossos companheiros no parque. Tínhamos caminhado durante quatro horas. Passamos a noite no parque, na chuva." [10]. Além disso, o ataque brutal por parte da polícia ocorreu em 17 de Dezembro. A polícia de choque, obviamente, agindo sob ordens e talvez para compensar a impossibilidade que tiveram de impedir que trabalhadores curdos entrassem na cidade, quando chegaram, atacaram os trabalhadores no parque com grande violência e ódio. O objetivo era dispersar os trabalhadores. No entanto, havia algo de que as forças estatais não foram capazes de calcular: a capacidade dos trabalhadores para a auto-organização. Os trabalhadores, dispersados pela polícia, conseguiram organizar sem o auxílio de qualquer burocrata sindical e realizaram uma manifestação massiva em frente à sede do sindicato Türk-Iş [11] na parte da tarde. No mesmo dia, os trabalhadores, sem ter qualquer local para permanecer, ocuparam dois andares do edifício Türk-Iş. Nos dias seguintes ao 17 de dezembro, as manifestações dos trabalhadores da Tekel ocorreram na pequena rua em frente à sede do sindicato Türk-Iş no centro de Ancara.
A luta entre os trabalhadores da Tekel e a Administração da Türk-Iş marcou os dias seguintes a essa data até o Ano Novo. Na verdade, mesmo no início da luta, os trabalhadores não confiavam nos líderes sindicais. Eles tinham enviado dois trabalhadores de todas as cidades com sindicalistas em todas as negociações. O objetivo disso era de que todos os trabalhadores fossem informados sobre o que realmente estava acontecendo. Ambos os sindicatos Tek Gıda e o Türk-Iş e o governo esperavam que os trabalhadores da Tekel fossem desistir dentro de poucos dias diante do frio congelante do inverno em Ancara, da repressão policial e das dificuldades materiais. As portas do edifício Türk-Iş foram fechadas, como era esperado, em um curto espaço de tempo para impedir os trabalhadores de entrarem no edifício. Contra isso, os trabalhadores iniciaram uma luta com a finalidade de utilizar os banheiros do prédio e que as mulheres trabalhadoras pudessem descansar no prédio. Essa luta resultou em uma vitória para os trabalhadores. Os trabalhadores não tinham intenção de retornar. Um apoio significativo da classe trabalhadora em Ancara e, acima de tudo, de estudantes com base proletária foi dado aos trabalhadores da Tekel no que diz respeito às dificuldades materiais de encontrar lugares para alojar: talvez uma pequena parte da classe trabalhadora em Ancara, mas mesmo assim importante, se mobilizou para hospedar os trabalhadores da Tekel em suas casas Ao invés de desistir e voltar, os trabalhadores da Tekel reunidos diariamente na pequena rua em frente ao edifício Türk-Iş, começaram a discutir como fazer avançar a sua luta. Não demorou muito para que os trabalhadores percebessem que a única solução para superar o seu isolamento era estender a sua luta para o resto da classe trabalhadora.
Neste contexto, os trabalhadores militantes de todas as cidades que viram que os sindicatos Gıda Tek e Türk-Iş não iam fazer qualquer coisa por eles, trataram de construir um comitê de greve, com o objetivo principal de transmitir as suas exigências para a organização sindical. Dentre essas exigências foram a criação de uma barraca de campanha de greve e que o Ano Novo seria comemorado coletivamente pelos trabalhadores com uma manifestação em frente ao prédio do Türk-Iş. Os líderes do sindicato se opuseram à iniciativa tomada pelos trabalhadores. Depois de tudo para que necessitavam do sindicato se os trabalhadores passaram à frente para assumir o controle de sua luta em suas próprias mãos! Esta atitude foi uma ameaça velada: os trabalhadores que foram isolados temiam a possibilidade ficarem sozinhos se o sindicato retirasse o seu apoio. Deste modo, o comitê de greve foi abolido. No entanto, a vontade dos trabalhadores para assumir o controle de sua luta em suas próprias mãos permaneceu. Rapidamente, os trabalhadores fizeram esforços para estabelecer ligação com os trabalhadores da fábrica de açúcar que em breve serão confrontados com as mesmas condições do "4-C". Eles foram para os bairros dos trabalhadores e nas universidades onde foram convidados para explicar a sua luta. Enquanto isso, os trabalhadores continuaram a sua luta contra a administração do Türk-Iş que não apoiava os trabalhadores de nenhuma maneira. O dia em que se reuniu a Comissão Executiva do Türk-Iş, os trabalhadores forçaram as portas da sede do sindicato. Os policiais foram mobilizados para proteger Mustafa Kumlu, presidente do sindicato dos filiados ao Türk-Iş. Os trabalhadores começaram a gritar slogans como "Venderemos a quem nos vende", " Türk-Iş a seu dever, a greve geral", "Kumlu, demita-se". Kumlu não ousou enfrentar os trabalhadores até ter anunciado uma série de ações, incluindo greves que aconteceriam a cada semana, começando por uma greve de uma hora e duplicando o tempo a cada semana e uma manifestação em frente a Türk-Iş realizada todas as semanas. Temia por sua vida. Inclusive depois da declaração de Kumlu de uma série de ações, os trabalhadores continuaram a não confiar no sindicato Türk-Iş. Quando um trabalhador da Tekel de Diyarbakır[12] disse em uma entrevista que ele deu: "Não acataremos qualquer decisão tomada pela administração do sindicato para por fim a luta e recuar. E se houver uma decisão do sindicato de terminar a luta sem que haja um ganho como fizeram no ano passado, estamos pensando em esvaziar o prédio de Türk-Iş e, em seguida, queimá-lo", expressou [13]. Expressou os sentimentos de muitos outros trabalhadores da Tekel.
Türk-Iş voltou de novo sobre o seu plano de ação quando a primeira greve de uma hora contou com a participação de 30% de todos os sindicatos. Os líderes sindicais ficaram aterrorizados, como o próprio governo, de ver a luta generalizada. Depois da calorosa manifestação do Ano Novo em frente ao prédio do Türk-Iş, organizou-se uma votação secreta entre os trabalhadores para decidir se continuavam ou regressavam para casa. 99% votaram a favor da continuação da greve. Ao mesmo tempo, um novo plano de ação, sugerido pelo sindicato, começou a ser discutido: depois de 15 de Janeiro, haveria um protesto de três dias, seguido de uma greve de fome de três dias e três dias de jejum completo. Uma manifestação com a participação massiva também devia ocorrer, como a administração do Türk-Iş prometeu. Os trabalhadores inicialmente pensaram que uma greve de fome fosse uma boa idéia. Como já estavam isolados, não queriam serem esquecidos e ignorados e pensavam que uma greve de fome poderia evitar isso. Também acreditavam que estavam atolados na frente da sede da Türk-Iş e sentiram a necessidade de fazer alguma coisa. A greve de fome poderia atuar como intimidação para o sindicato, eles pensavam.
Um dos textos mais significativos escritos por trabalhadores da Tekel foi publicado nesses dias. Trata-se de uma carta escrita por um trabalhador de Batman [14] para os trabalhadores das fábricas de açúcar: "A nossos honrados irmãos e irmãs trabalhadores e da fábrica de açúcar. Hoje, a notável luta desenvolvida pelos trabalhadores da Tekel é uma oportunidade histórica para aqueles cujos direitos foram retirados. Para não perder esta oportunidade, a sua participação na nossa luta nos faria mais felizes e mais fortes. Meus amigos, gostaria de avisar especialmente que de longa data os sindicalistas prometem a vocês a esperança de que "vão ocupar-se deste assunto". No entanto, como já passamos por este mesmo processo, sabemos que estas são pessoas que não têm nenhum interesse vital a defender. Pelo contrário, são de vocês que serão retirados os direitos e o direito ao trabalho. Se você não participarem na luta, hoje, amanhã será tarde demais. Essa luta só terá êxito se estiverem nela e não temos qualquer dúvida ou falta de confiança a este respeito. Porque estamos certos de que se os trabalhadores estão unidos e agirem como um só corpo, não há nada que eles não possam alcançar. Neste sentido, eu saúdo vocês com a minha profunda confiança e meu mais profundo respeito, em nome de todos os trabalhadores da Tekel." [15]. Essa carta não só pediu aos trabalhadores do açúcar que aderissem à luta, também expressa muito claramente o que tinha acontecido aos trabalhadores da Tekel. Ao mesmo tempo, expressa a consciência compartilhada por vários deles que eles não estavam lutando só por eles mesmos, mas por toda a classe trabalhadora.
Em 15 de janeiro, os trabalhadores da Tekel vieram a Ancara para participar de um protesto. Foram quase 10 000 na Praça de Sakarya. Alguns membros de suas famílias tinham vindo com eles. Os trabalhadores tiveram de pedir licença para tratamento de saúde e saída de férias para vir a Ancara e a maioria deles deviam voltar várias vezes para renovar suas licenças de férias. Quase todos os trabalhadores da Tekel estavam presentes [16]. Planejamos um evento com uma grande afluência para o sábado 16 de Janeiro. A polícia temia este evento, pois poderia dar à luz a generalização e extensão massiva da luta. A possibilidade de que os trabalhadores chegassem no sábado para a manifestação passando a noite e todo o domingo com os trabalhadores da Tekel poderia levar à formação de laços fortes e massivos. Portanto, a polícia insistiu que a manifestação começasse no domingo e Türk-Iş, em uma típica manobra, debilita um pouco mais a manifestação prevenindo que os trabalhadores das cidades curdas não viessem. Tinham também calculado que passar duas noites no inverno congelado em Ancara, sentados imóveis na rua, romperia a resistência e força dos trabalhadores. Vimos na manifestação de 17 de janeiro que este cálculo foi um erro grave.
Ela começou calmamente. Os trabalhadores que se reuniram em Ancara e vários grupos políticos começaram a marchar às 10 horas da estação para Praça Sihhiye. Na manifestação, assistida por dezenas de milhares de trabalhadores, em primeiro lugar, um trabalhador da Tekel, em seguida, um bombeiro e um trabalhador do açúcar tomaram a palavra sobre um palco. A explosão de raiva ocorreu depois. Depois dos operários, Mustafa Kumlu se instalou na tribuna. Kumlu, que nunca se preocupou com as lutas ou as condições de vida dos trabalhadores da Tekel, fez um discurso completamente moderado, conciliador e vazio. Türk-Iş tinha feito um esforço especial para manter os trabalhadores fora do palco e colocado os metalúrgicos na frente, que não estavam cientes do que estava acontecendo com eles. Porém os da Tekel, pedindo-lhes para deixá-los passar, conseguiram ir direto para a tribuna. Durante todo o discurso de Kumlu, fizeram todo o possível para interrompê-lo com suas palavras de ordem. O insulto final aos trabalhadores foi o anúncio de que após o discurso de Kumlu, Alişan, um cantor pop, que tinha nada a ver com o movimento, ia fazer um show Os trabalhadores tomaram a palavra e começaram a gritar suas palavras de ordem e, apesar dos dirigentes sindicais mandarem baixar o som, os trabalhadores que tinham vindo para a manifestação pegaram o microfone. A esta altura, o sindicato perdeu o controle completamente. Eram os trabalhadores que controlavam. Os dirigentes sindicais, no palco, por um lado, começaram a fazer discursos radicais e, por outro, tentavam expulsar os trabalhadores. Como eles não conseguiram, eles tentaram confrontar uns contra os outros e atacaram os estudantes e trabalhadores que vieram a apoiá-los. O sindicato também tentou dividir os trabalhadores que estavam em Ancara desde o início da luta daqueles que tinham chegado recentemente e tentou abordar aqueles que vieram para oferecer ajuda. No final, os dirigentes sindicais tentaram fazer descer aqueles que ocuparam o palanque, e convenceram o grupo a voltar rapidamente para frente do prédio de Türk-Iş. O fato de que os discursos sobre greves de fome e jejuns foram colocados na frente para derrubar os slogans sobre a greve geral é, a nosso ver, interessante. Em qualquer caso retornar para o edifício do Türk-Iş foi suficiente para extinguir a ira dos trabalhadores. Slogans como "greve geral, resistência geral", "Türk-Iş não deve abusar da nossa paciência" e "liquidaremos quem nos trai" era gritado agora diante do edifício. Poucas horas depois, um grupo de cerca de 150 trabalhadores começaram a derrubar a barricada feita por burocratas diante das portas do prédio e o ocuparam. Os trabalhadores da Tekel que procuravam Mustafa Kumlu no edifício começaram a gritar "Inimigo dos trabalhadores, lacaio do AKP", quando chegaram à porta da sala de Kumlu. Após a manifestação em 17 de janeiro, os esforços para estabelecer um comitê de greve reapareceram entre os trabalhadores. Este comitê foi composto por trabalhadores que não pensavam que uma greve de fome era uma maneira adaptada para fazer avançar a luta e que era necessário, ao contrário, estender esta. O esforço para formá-lo era conhecido por todos os trabalhadores e apoiado por uma ampla maioria. Aqueles que não sustentavam ativamente, tampouco estavam contra. Entre as tarefas atribuídas ao Comitê, em vez de transmitir suas reivindicações aos sindicatos, o objetivo era o de fazer a comunicação e a auto-organização nas fileiras dos trabalhadores. Como o anterior Comitê de greve, este era composto inteiramente por trabalhadores e completamente independente dos sindicatos. A mesma determinação de auto-organização dos trabalhadores da Tekel permitiu que centenas pudessem ser incorporadas à manifestação de trabalhadores do setor da saúde que estavam em greve em 19 de Janeiro. No mesmo dia, quando tinha sido permitido apenas uma centena de trabalhadores participarem de uma greve de fome de três dias, 3 000 trabalhadores se juntaram a eles, apesar do sentimento geral entre os trabalhadores que esta greve de fome não era apropriada para fazer avançar a luta. A razão apresentada foi que eles não queriam deixar seus companheiros fazer esta greve de fome sozinhos, que queriam, por solidariedade, comprometer-se com eles e compartilhar o que iam atravessar.
Embora os trabalhadores da Tekel tenham feito reuniões periódicas com eles nas cidades de onde eles vinham, uma assembléia geral com todos os trabalhadores participantes não tinha sido possível. Dito isto, desde 17 de Dezembro, a rua em frente ao edifício do Türk-Iş tinha tomado o caráter de uma assembléia geral, informal, mas regular. A Praça Sakkarya nesses dias estava cheia com centenas de trabalhadores de diferentes cidades, discutindo a forma de desenvolver a luta, como estendê-la, o que fazer. Outra característica importante da luta foi como os trabalhadores de diferentes regiões étnicas conseguiram se unificar contra a ordem capitalista, apesar das provocações do regime. O slogan "Trabalhadores curdos e turcos unidos", lançado a partir do início da luta, exprimiu isso muito claramente. Na luta da Tekel, muitos trabalhadores da região do Mar Negro dançaram o Şemame, e muitos curdos fizeram a dança do Horon pela primeira vez em sua vida. [17]. Outro aspecto importante da abordagem dos trabalhadores da Tekel foi a importância que deram à extensão da luta e da solidariedade dos trabalhadores, e isso apoiado não sobre a estreita base do nacionalismo, mas sobre a qual inclui o apoio mútuo e a solidariedade dos trabalhadores em todo o mundo. Por isso, os trabalhadores da Tekel evitaram que facções da oposição da classe dominante se servissem da luta para seus próprios objetivos, pois não tinham confiança nelas. Estiveram atentos a forma como o Partido Republicano do Povo. [18] (CHP Cumhuriyet Halk Partisi) atacava os trabalhadores despedidos de Kent AS [19], como o Partido do Movimento Nacionalista [20] (MHP Milliyetçi Hareket Partisi) desempenhou seu papel no agravamento da política oficial e antioperária. Um trabalhador expressa essa consciência muito claramente: "Nós entendemos o que todos nós somos. Os que votaram a favor da lei de privatização nos dizem como compreendem hoje a nossa situação. Até agora, eu sempre votei a favor do Partido do Movimento Nacionalista. É só nessa luta que eu tenho encontrado revolucionários. Eu estou nesta luta porque eu sou um trabalhador. Os revolucionários estão conosco. O Partido do Movimento Nacionalista e o Partido Republicano do Povo fazem cinco minutos de discurso aqui e depois saem. Tinham alguns entre nós que os amavam quando eles vinham aqui. Agora, a situação já não é a mesma." [21]. O exemplo mais surpreendente dessa consciência se viu quando os operários da Tekel impediram de falar os fascistas de Alperen Ockları [22], a mesma organização que havia atacado os operários de Kent AS que se manifestavam no parque Abdi İpekçi porque eram curdos. A luta da Tekel se constituiu também em um importante apoio aos bombeiros que haviam sido atacados brutalmente depois da sua primeira manifestação, dando-lhes ânimo para retomar a luta. De maneira geral, os operários da Tekel deram a esperança não somente aos bombeiros como também a todos os setores da classe operária na Turquia. Permitiram aos operários da Turquia sair do sono em que estavam depois de anos, para unir suas lutas às lutas operárias do mundo inteiro. Representam as sementes da greve de massas, como as que se tem visto sacudir o mundo nesses últimos anos, do Egito a Grécia, Bangladesh a Espanha, Inglaterra a China.
Esta luta está em curso, e pensamos que ainda não é tempo de tirar todas as lições. É difícil prever o que esperar desta luta, aonde irá. Que resultados obterão com duas opções contrárias: De um lado, a idéia de uma greve de fome e de um jejum total colocada pela frente, por outro, a idéia de um Comitê de greve colocado em marcha pelos operários que não acham adaptada a greve de fome para a luta e querem ao contrário ampliá-la; de um lado, os burocratas de Türk-Iş que fazem parte do Estado e, por outro lado, os operários que querem uma greve geral. Dito isso, devemos firmar o pé no fato de que, qualquer que seja a saída, a atitude notável dos operários da Tekel deixará lições inestimáveis para toda classe operária.
Gerdûn (20 de Janeiro de 2010)
[1] Tekel é a companhia que teve o monopólio de Estado de todas as empresas de produção de álcool e tabaco.
[2] Respectivamente, a Confederação de Esquerda dos Sindicatos de Operários do Setor Público, a Confederação de Sindicatos de Trabalhadores Revolucionários e, mais importante, a Confederação de Sindicatos de Empregados Públicos, conhecida pelas suas simpatias pró-fascistas.
[3] Primeiro Ministro, também dirigente do Partido da Justiça e do desenvolvimento, o AKP (Adalet ve Kalkınma Partisi).
[4] https://www.cnnturk.com/2009/turkiye/12/05/erdogana.tekel.iscilerinden.p... [102]
[5] Cidade do Curdistão turco.
[6] https://www.evrensel.net/haber.php?haber_id=63999 [103]
[7] Teca Gıda-İş, Sindicato de Operários da Alimentação, do Álcool e do Tabaco, membro da central sindical Türk-İş.
[8] A "Reforma curda""reforma Curda" é uma tentativa do Estado turco para encontrar uma solução para o problema colocado pela guerrilha Curda no leste do país, flexibilizando as leis anticurdas (por exemplo: suprimindo as proibições contra a utilização da língua Curda). Esta "reforma" recentemente foi desconsiderada pela proibição em dezembro de 2009 do Partido Curdo DTP (Veja também o artigo no nosso site em inglês "Turkey: Debates on the Kurdish Reform in the Wolf’s Lair [104]").
[9] Região conhecida tradicionalmente pelo seu nacionalismo e seu apoio ao partido no poder.
[10] https://www.evrensel.net/haber.php?haber_id=63999 [103]
[11] Confederação dos sindicatos turcos, a mais antiga e a maior confederação de sindicatos na Turquia que tem uma história totalmente infame. Foi constituída sob a influência dos Estados Unidos nos anos 50 segundo o modelo da AFL-CIO e, posteriormente, se caracterizou pela sabotagem das lutas operárias
[12] Conhecida por ser a capital não oficial do Curdistão. Diyarbakır é uma metrópole do Curdistão turco.
[13] https://www.kizilbayrak.net/sinifhareketi/haber/arsiv/2009/12/30/select/... [105]
[14] Cidade do Curdistão turco.
[15] https://tr.internationalism.org/ekaonline-2000s/ekaonline-2009/tekel-isc... [106]
[16] Aproximadamente 9 000 dos 10 000 da empresa.
[17] O Şemame é uma dança curda muito conhecida, e o Horon é outra dança também muito conhecida da região do Mar Negro da Turquia.
[18] O partido nacionalista de esquerda, Kemalista, tranquilizador, membro da Internacional Socialista, extremamente chauvinista.
[19] Os operários do município de Esmirna (İzmir), uma metrópole da costa do Mar Egeu. Esses operários foram despedidos pelo Partido Republicano do Povo que controlava o município onde trabalhavam e depois foram brutalmente atacados pela polícia quando manifestaram contra o dirigente do partido.
[20] O principal partido fascista.
[21] https://www.kizilbayrak.net/sinif-hareketi/haber/arsiv/2009/12/30/select... [107]
[22] Bando de assassinos vinculado ao Grande Partido da União (BBP, Büyük Birlik Partisi), uma dissidência fascista radical do Partido do Movimento Nacionalista.
A "cultura do debate" não é uma novidade, nem para o movimento operário, nem para a CCI. Entretanto, a evolução histórica obriga a nossa organização – desde a mudança de século - a voltar a essa questão e examiná-la com maior atenção. Duas evoluções principais nos obrigaram a fazê-lo: a primeira é a aparição de uma nova geração de revolucionários e, a segunda, a crise interna que atravessamos em princípios deste novo século.
Foi, acima de tudo, o contato com uma nova geração de revolucionários o que obrigou a CCI a desenvolver e cultivar mais conscientemente sua abertura para o exterior e sua capacidade de diálogo político.
Cada geração é um elo na história da humanidade. Cada uma delas se defronta com três tarefas fundamentais: recolher a herança coletiva da precedente, enriquecer essa herança sobre a base de sua própria experiência, transmiti-la à geração seguinte para que esta vá mais longe que a anterior.
Não é nada fácil levar a cabo essas tarefas, é um difícil desafio. E isto é igualmente válido para o movimento operário. A velha geração deve entregar sua experiência. Mas também leva em si as feridas e os traumatismos de suas lutas; conheceu derrotas, decepções, teve que encarar e tomar consciência de que uma vida não é frequentemente suficiente para construir aquisições duradouras da luta coletiva [1]. Isto requer o ímpeto e a energia da geração seguinte, mas também as novas questões que são colocadas a ela e sua capacidade para ver o mundo com novos olhos.
Mas inclusive se as gerações necessitam-se mutuamente, sua capacidade para forjar a unidade necessária entre si não é algo dado automaticamente. Quanto mais a sociedade se afasta de uma economia tradicional natural, quanto mais constante e rapidamente o capitalismo "revoluciona" as forças produtivas e a toda sociedade, mais difere a experiência de uma geração e a da seguinte. O capitalismo, sistema da concorrência por excelência, também instiga as gerações a combater uma contra a outra na luta de todos contra todos.
Nesse marco, nossa organização começou a se preparar para a tarefa de forjar esse vínculo entre gerações. Mas o que deu à cultura do debate um significado especial para nós mais que essa preparação foi o encontro com a nova geração na vida real. Encontramo-nos diante de uma geração que dá a esta questão muito mais importância que a que lhe deu a geração de "1968". O primeiro indício de importância dessa mudança, ao nível da classe operária em seu conjunto, deu-nos o movimento massivo de estudantes na França contra a "precarização" do emprego na primavera de 2006. Foi impressionante a insistência, especialmente nas assembléias gerais, em que o debate fora o mais livre e amplo possível, ao contrário do movimento estudantil do final dos anos 1960, marcado frequentemente pela incapacidade de levar adiante um diálogo político. A diferença procede acima de tudo do fato do meio estudantil estar hoje muito mais proletarizado que o de 40 anos atrás. O debate intenso, em uma escala mais ampla, sempre foi uma marca importante dos movimentos proletários de massas e foi também característico das assembléias operárias da França de 1968 ou da Itália de 1969. Mas o novo de 2006 era a mentalidade aberta da juventude em luta, para as gerações anteriores e sua avidez por aprender da experiência destas. Esta atitude é muito diferente da do movimento estudantil do final dos anos 60, especialmente na Alemanha (possivelmente a expressão mais caricata da mentalidade de então), onde um dos slogans era: "Os maiores de 30 anos aos campos de concentração!" [2] Essa ideia se concretizava na prática com as vaias mútuas, a interrupção violenta das reuniões "rivais", etc. A ruptura da continuidade entre as gerações da classe operária é uma das raízes do problema, pois as relações entre gerações são o terreno privilegiado, sempre, para forjar a atitude para o diálogo. Os militantes de 1968 consideravam a geração de seus pais ou como uma geração que se "vendeu" ao capitalismo, ou (na Alemanha ou Itália, por exemplo) como uma geração de fascistas e criminosos de guerra. Para os operários, que tinham suportado a horrível exploração da fase que seguiu a 1945 com a esperança de que seus filhos vivessem melhor que eles, era uma decepção amarga ouvir como seus filhos acusavam-nos de "parasitas" que viviam da exploração do Terceiro Mundo. Mas também é verdade que a geração dos pais daquela época tinha perdido, ou não tinha conseguido adquirir, a aptidão para o diálogo. Aquela geração foi brutalmente mortificada e traumatizada pela Segunda Guerra Mundial e a Guerra fria, pela contrarrevolução fascista, stalinista e socialdemocrata.
Ao contrário, 2006 na França anunciou algo novo e muito fecundo [3]. Porém, já há alguns anos antes, essa preocupação da nova geração vinha anunciada por minorias revolucionárias da classe operária. Essas minorias, assim que apareceram na arena da vida política, já chegaram armadas com suas próprias críticas ao sectarismo e ao rechaço do debate. Entre as primeiras exigências que essas minorias expressaram estava a necessidade de debater, não como um luxo, mas sim como requisito imperioso, a necessidade dos que participam levem a sério os outros e aprendam a escutar; a necessidade, também, de que na discussão as armas sejam os argumentos e não a força bruta, nem apelar à moral ou à autoridade dos "teóricos". A respeito do meio proletário internacionalista, aqueles camaradas criticaram, em geral e com toda a razão, a ausência de debate fraterno entre os grupos existentes, o que lhes chocou enormemente. De entrada rechaçaram o conceito de que o marxismo seria um dogma que a nova geração deveria adotar sem espírito crítico [4].
A nós, surpreendeu-nos a reação da nova geração para com a CCI. Os novos camaradas que iam às nossas reuniões públicas, os contatos do mundo inteiro que iniciaram uma correspondência conosco, os diferentes grupos e círculos políticos com os quais discutimos, disseram-nos repetidamente que tinham comprovado a natureza proletária da CCI tanto em nosso comportamento, especialmente em nosso modo de levar as discussões, como em nossas posições programáticas.
Qual é a origem dessa preocupação na nova geração? A nosso parecer, é o resultado da crise histórica do capitalismo, hoje muito mais grave e mais profunda que em 1968. Esta situação exige a crítica mais radical possível do capitalismo, a necessidade de ir à raiz mais profunda dos problemas. Um dos efeitos mais corrosivos do individualismo burguês é a maneira com que destrói a capacidade de discutir e, especialmente, de se escutar e aprender uns dos outros. O diálogo é substituído pelo "falatório", onde quem ganha é o que mais grita (como nas campanhas eleitorais burguesas). A cultura do debate é o meio principal de desenvolver, graças à linguagem humana, a consciência, arma principal do combate da única classe portadora de um futuro para a humanidade. Para o proletariado é o único meio de superar seu isolamento e sua impaciência e de encaminhar-se para a unificação de suas lutas.
Outra preocupação atual se baseia na vontade de superar o pesadelo do stalinismo. Com efeito, muitos militantes que hoje estão em busca de posições internacionalistas procedem de um meio influenciado pelo esquerdismo ou diretamente procedente de suas filas; apresentar caricaturas da ideologia e do comportamento burguês decadentes como se fossem "socialismo" é o objetivo do esquerdismo. Esses militantes tiveram uma educação política que lhes têm feito acreditar que a troca de argumentos é "liberalismo burguês" e que "um bom comunista" é alguém que "fecha o bico" e faz calar sua consciência e suas emoções. Os camaradas que estão hoje decididos a rechaçar os efeitos desse produto moribundo da contrarrevolução compreendem cada dia melhor que, para isso, não só será necessário rechaçar as posições desse produto, mas também sua mentalidade. E assim, contribuirão para restabelecer uma tradição do movimento operário que podia ter acabado por desaparecer por causa da ruptura orgânica provocada pela contrarrevolução [5].
A segunda razão essencial que levou a CCI a reavaliar a questão da cultura do debate foi nossa própria crise interna, no início deste século, caracterizada pelo comportamento mais repulsivo nunca antes visto em nossas filas. Pela primeira vez desde sua fundação, a CCI teve que excluir não a um, mas vários de seus membros [6]. No princípio dessa crise interna, apareceram dificuldades em nossa seção na França, expressando-se divergências de opinião sobre nossos princípios organizativos de centralização. Não há razão para que divergências como essas, por si mesmas, causem uma crise organizativa. E não era essa a razão. O que provocou a crise foi a negativa em debater e, sobretudo, as manobras para isolar e caluniar - ou seja, atacar pessoalmente - os militantes com quem não se estava de acordo.
Depois dessa crise, nossa organização se comprometeu a ir ao fundo das coisas, às raízes mais profundas da história de suas crises e cisões. Já publicamos contribuições sobre alguns aspectos [7]. Uma das conclusões a que chegamos é que certa tendência ao monolitismo tinha desempenhado um papel de primeira importância em todas as cisões que vivemos. Assim que apareciam divergências havia alguns militantes que afirmavam que era impossível trabalhar com outros, que a CCI se tornou uma organização stalinista, ou que já estava degenerando. Essas crises surgiam, assim, diante de algumas divergências que, na maioria das vezes, podiam perfeitamente existir no seio de uma organização não monolítica e, de qualquer maneira, deviam ser discutidas e esclarecidas antes que fosse necessária uma cisão.
A repetição de procedimentos monolíticos é surpreendente em uma organização que se apoia especificamente nas tradições da Fração italiana, a qual sempre defendeu que, fossem quais fossem as divergências sobre os princípios fundamentais, o esclarecimento mais profundo e coletivo devia preceder qualquer separação organizativa.
A CCI é a única corrente da Esquerda comunista de hoje que se situa especificamente na tradição organizativa da Fração italiana (Bilan) e da Esquerda comunista da França (GCF). Contrariamente aos grupos procedentes do Partido Comunista Internacionalista (PCInt) fundado na Itália no fim da Segunda Guerra Mundial, a Fração italiana reconheceu o caráter profundamente proletário das demais correntes internacionais da Esquerda comunista que surgiram em oposição à contrarrevolução stalinista, especialmente as Esquerdas alemã e holandesa. Nunca rechaçou essas correntes como "anarco-espontaneístas" ou "sindicalistas revolucionários", mas aprendeu delas tudo o que pôde. De fato, a crítica principal que a Fração italiana fez contra o que acabaria sendo a corrente "conselhista", era o sectarismo expresso no rechaço desta às contribuições da Segunda Internacional e do bolchevismo em particular [8]. E foi desta forma que a Fração italiana manteve, em plena contrarrevolução, a compreensão marxista segundo a qual a consciência de classe se desenvolve coletivamente e nenhum partido, como também nenhuma tradição, podem proclamar a posse de seu monopólio. Disso se deduz que a consciência não pode se desenvolver sem um debate fraterno, público e internacional [9].
Essa compreensão essencial, e que continua sendo uma parte da herança principal da CCI, não é, entretanto, fácil de ser posta em prática. A cultura do debate só pode se desenvolver na contracorrente da sociedade burguesa. Como a tendência espontânea no capitalismo não é, de forma alguma, o esclarecimiento das ideias, mas a violência, a manipulação e a luta para obter uma maioria (cujo melhor exemplo é o circo eleitoral da democracia burguesa), a infiltração dessa ideologia nas organizações proletárias sempre traz consigo germes de crise e de degeneração. A história do Partido Bolchevique o ilustra perfeitamente. Enquanto o partido foi a ponta de lança da revolução, os debates mais vivos e dinâmicos eram uma de suas forças principais. Em contrapartida, a proibição de verdadeiras frações (depois do massacre de Kronstadt em 1921) foi o indício e fator ativo de sua degeneração. Do mesmo modo, a prática de uma "coexistência pacífica" (ou seja, de total ausência de debate) entre as posições conflitivas, que já tinha sido uma característica no processo de fundação do Partido Comunista Internacionalista, ou a teoria de Bordiga e seus adeptos sobre as virtudes do monolitismo só podem ser entendidas no contexto de derrota histórica do proletariado em meados do século XX.
Se as organizações revolucionárias querem cumprir seu papel fundamental de desenvolvimento e da extensão da consciência de classe, a cultura da discussão coletiva, internacional, fraterna e pública é absolutamente essencial. É certo que isso requer um elevado nível de maturidade política (e, mais em geral, de maturidade humana). A história da CCI exemplifica o fato de que essa maturidade não se adquire em um dia, mas que é o produto do desenvolvimento histórico. A nova geração de hoje tem um papel essencial a desempenhar nesse processo que está amadurecendo.
A capacidade de debater é uma característica essencial do movimento operário. Mas ele não a inventou. Nesse âmbito, como em tantos outros tão fundamentais, a luta pelo socialismo foi capaz de assimilar o melhor das aquisições pela humanidade e adaptá-las a suas próprias necessidades. E, assim, essa luta transformou essas qualidades elevando-as a um nível superior.
Fundamentalmente, a cultura do debate é uma expressão do caráter social da humanidade. É a emanação do uso especificamente humano da linguagem. O uso da linguagem como meio de trocar informações é algo que a humanidade compartilha com muitos animais. O que a distingue do resto da natureza, nesse plano, é sua capacidade de desenvolver e trocar argumentos (vinculada ao desenvolvimento da lógica e da ciência) e alcançar o conhecimento dos outros (desenvolvvimento da empatia, vinculada, entre outras coisas, ao desenvolvimento da arte).
Consequentemente, essa qualidade não é nova, pelo contrário. É anterior à sociedade de classes e, sem dúvida, desempenhou um papel decisivo no desenvolvimento da espécie humana. Engels, por exemplo, menciona o papel das assembléias gerais entre os gregos na época de Homero, nas tribos germânicas ou entre os iroqueses da América do Norte, fazendo um elogio especial à cultura do debate destes [10]. Infelizmente, apesar dos trabalhos de Morgan nessa época e de seus colegas do século XIX e de seus sucessores, não possuímos dados suficientes sobre os primeiros passos, possivelmente os mais decisivos, nesse âmbito.
O que sabemos, em compensação, é que a filosofia e os primórdios do pensamento científico começaram a prosperar ali onde a mitologia e o realismo ingênuo - par antigo ao mesmo tempo contraditório e inseparável - foram questionados. Esses dois modos de compreensão são prisioneiros da incapacidade de compreender mais profundamente a experiência imediata. Os pensamentos que os primeiros homens formaram apoiando-se em sua experiência prática eram necessariamente religiosos, pelo fato da sua própria natureza. "A grande questão fundamental de toda filosofia, em particular da filosofia moderna, é a da relação entre o pensamento e o ser. Desde os remotíssimos tempos em que o homem, mergulhado na mais completa ignorância sobre seu próprio organismo, e excitado pelas aparições que sobrevinham em seus sonhos, chegou à ideia de que seus pensamentos e suas sensações não eram funções de seu corpo - e sim de uma alma especial que morava nesse corpo e o abandonava na hora da morte; desde essa época, o homem teve forçosamente que refletir sobre as relações dessa alma com o mundo exterior. Se, no momento da morte, ela se separava do corpo e continuava a existir, não havia razão alguma para atribuir-lhe também uma morte separada. Surgiu assim a ideia da imortalidade da alma: uma ideia que, nessa época de desenvolvimento, não aparecia absolutamente como um consolo, mas como uma fatalidade contra a qual nada se podia fazer, e não raro, como entre os gregos, como uma verdadeira desgraça." [11].
Foi no marco de um realismo ingênuo em que se deram os primeiros passos de um desenvolvimento muito lento da cultura e das forças produtivas. Por sua vez, a tarefa do pensamento mágico, até contendo certo grau de sabedoria psicológica, era dar um sentido ao inexplicável e, portanto, conter os medos. Ambos foram contribuições importantes no avanço do gênero humano. A ideia segundo a qual o realismo ingênuo teria uma afinidade particular com a filosofia materialista, ou que esta teria se desenvolvido diretamente a partir daquele, é uma ideia sem base alguma.
A religião, como diz Engels, nasceu não só de uma visão mágica do mundo, mas também a partir do realismo ingênuo. Suas primeiras generalizações sobre o mundo, frequentemente audazes, têm necessariamente um caráter que lhe dá autoridade.
As primeiras comunidades agrárias, por exemplo, compreenderam rapidamente que dependiam da chuva, mas não podiam compreender minimamente as condições que a originavam. A invenção de um deus da chuva foi um ato criador para tranquilizar-se, dando a impressão de que é possível, mediante oferenda ou rezas, influir no curso da natureza. O Homo sapiens é a espécie que assegurou sua sobrevivência mediante o desenvolvimento da consciência. E ela se vê diante de um problema sem precedentes: a paralisia que frequentemente provoca o medo do desconhecido. As explicações do desconhecido não devem permitir a menor dúvida. Dessa necessidade, e como expressões mais desenvolvidas, apareceram as religiões reveladas. A base emocional dessa visão do mundo é a crença e não o conhecimento.
O realismo ingênuo não é mais que a outra face da mesma moeda, uma espécie de "divisão elementar do trabalho" mental. Tudo o que não se pode explicar em um sentido prático imediato, entra necessariamente no âmbito do misticismo. Além disso, a compreensão prática está também apoiada em uma visão religiosa, a visão animista [13] em sua origem. Nesta visão, o mundo inteiro se faz fetiche. Inclusive as técnicas que os seres humanos podem, conscientemente, produzir e reproduzir parecem se realizar graças à ajuda de forças personalizadas que existem independentemente de nossa vontade.
É evidente que em um mundo assim havia uma possibilidade muito limitada para o debate no sentido moderno da palavra. Há 2500 anos, uma nova qualidade começou a afirmar-se com mais força, pondo imediata e diretamente em dúvida o par religião e "senso comum". Desenvolveu-se a partir do antigo modo de pensar tradicional, no sentido de que este se converteu em seu contrário. Assim, o primeiro modo de pensamento dialético que precedeu à sociedade de classes (que na China, por exemplo, manifestou-se na ideia da polaridade entre o yin e o yang, o princípio masculino e o princípio feminino) transformou-se em pensamento crítico, apoiado nos componentes essenciais da ciência, da filosofia e do materialismo. Mas tudo isto era inconcebível sem que aparecesse o que nós chamamos cultura do debate. A palavra grega dialética significa, de fato, diálogo ou debate.
O que foi que permitiu esse novo procedimento? De maneira geral, foi a extensão do âmbito das relações sociais e do conhecimento. Em um nível mais global, foi a natureza cada vez mais complexa do mundo social. Como Engels gostava de repetir, o senso comum é um moço forte e vigoroso enquanto está em sua casa entre quatro paredes, mas conhece uma quantidade de apuros assim que sai pelo vasto mundo. E apareceram também os limites da religião em sua capacidade para apaziguar o medo. Na realidade, não havia eliminado o medo, apenas o havia atirado para o exterior. Mediante o mecanismo religioso, a humanidade tentou encarar o terror que a atormentaria em uma época em que não tinha outros meios de autodefesa. Mas desse modo, a humanidade transformou também seu próprio medo em uma força suplementar que a dominava.
"Explicar" o que ainda é inexplicável significa renunciar a uma investigação verdadeira. É daí que surge o conflito entre religião e ciência ou, como dizia Spinoza, entre a submissão e a investigação. No princípio, os filósofos gregos se opuseram à religião. Tales de Mileto, primeiro filósofo conhecido, já tinha rompido com a visão mística do mundo. Anaximandro, que lhe sucedeu, pedia que se explicasse a natureza a partir dela mesma.
E o pensamento grego foi também uma declaração de guerra contra o realismo ingênuo. Heráclito explicou que a essência das coisas não está escrita em cima delas. "A natureza gosta de se ocultar", dizia ele, ou, como dizia Marx: "toda ciência seria supérflua se a essência das coisas e sua forma fenomênica coincidissem diretamente." [14].
O novo método colocava em dúvida tanto a crença como também os preconceitos e a tradição que são o credo da vida cotidiana (em alemão, por exemplo, as duas palavras estão relacionadas: Glaube = crença e Aberglaube = superstição). Opõe a elas a teoria e a dialética.
O desenvolvimento das relações sociais era, evidentemente, o resultado do desenvolvimento das forças produtivas. Apareceram, pois, ao mesmo tempo que o problema - a inadequação dos modos de pensar existentes - os meios para resolvê-lo. Acima de tudo se desenvolveu a auto-confiança, especialmente, na potência do espírito humano. A ciência só pode se desenvolver quando existe a capacidade e a vontade de aceitar a existência da dúvida e da incerteza. Contrariamente à autoridade da religião e da tradição, a verdade da ciência não é absoluta, mas relativa. E assim surgem não só a possibilidade, mas também a necessidade de trocar opiniões.
Está claro que reivindicar a autoridade do conhecimento podia se apresentar somente se as forças produtivas (no sentido cultural mais amplo) tivessem alcançado certo grau de desenvolvimento. Não podia nem ao menos ser imaginado, sem um desenvolvimento correspondente das artes, da educação, da literatura, da observação da natureza, da linguagem. E isto vai paralelamente com o aparecimento, em certa fase da história, de uma sociedade de classes cuja camada dirigente separou-se da produção material. Mas esses desenvolvimentos não fizeram surgir automaticamente um método novo e independente. Nem os egípcios, nem os babilônios, apesar dos progressos científicos que aportaram à humanidade, nem os fenícios, os primeiros a desenvolver um alfabeto moderno, foram tão longe como os gregos por esse caminho.
Na Grécia, foi o desenvolvimento da escravidão o que permitiu a emergência de uma classe de cidadãos livres ao lado dos sacerdotes. Isso assentou as bases materiais que fundaram a religião (assim, podemos entender melhor a expressão de Engels no Anti-Dühring: sem a escravidão da antiguidade, não haveria socialismo moderno). Na Índia, na mesma época, o desenvolvimento da filosofia, do materialismo (chamado Lokayata) e do estudo da natureza coincidem com a formação e o desenvolvimento de uma aristocracia guerreira que se opõe à teocracia brâmane e que se apoiava, em parte, na escravidão agrícola. Como na Grécia, onde a luta de Heráclito contra a religião, contra a imortalidade e contra a condenação dos prazeres carnais estava dirigida ao mesmo tempo contra os preconceitos dos tiranos e das classes oprimidas, os novos procedimentos na Índia eram praticados por uma aristocracia. O budismo e o jainismo, surgidos na mesma época, estavam muito mais estendidos entre a população trabalhadora, mas se mantinham em um marco religioso, com sua ideia sobre a reencarnação da alma, típica da sociedade de castas que queriam se opor (e que se encontra também no Egito).
Na China, por outro lado, onde havia um desenvolvimento da ciência e uma espécie de materialismo rudimentar (por exemplo, na Lógica do Mo Ti), esse desenvolvimento foi limitado porque não existia uma casta dirigente sacerdotal contra a qual poderia terse organizado a revolta. O país estava dirigido por uma burocracia militar formada graças à luta contra os bárbaros que o rodeavam [16].
Na Grécia, existia um fator suplementar e, em muitos aspectos, decisivo, que também desempenhou um papel importante na Índia: um desenvolvimento mais avançado da produção de mercadorias. A filosofia grega não teve início na própria Grécia, mas nas colônias portuárias da Ásia menor. Produzir mercadorias implica intercâmbio não só de bens, mas também da experiência contida em sua produção. Essa produção acelera a história, favorecendo uma expressão superior do pensamento dialético. Permite um grau de individualização sem o qual o intercâmbio de ideias a um nível tão elevado é impossível. E começa a romper com o isolamento no qual até então se movia a evolução social. A unidade econômica fundamental de todas as sociedades agrícolas apoiadas na economia natural era a aldeia ou, no melhor dos casos, a região autárquica. Mas as primeiras sociedades de exploração apoiadas em uma cooperação mais ampla, frequentemente para desenvolver a irrigação, eram sempre basicamente agrícolas. Em contrapartida, o comércio e a navegação abriram a sociedade grega ao mundo. Reproduziu, mas a um nível superior, a atitude de conquista e descobrimento do mundo das comunidades nômades. A história mostra que, em certa fase de seu desenvolvimento, o aparecimento do debate público foi um fenômeno indispensável para um desenvolvimento internacional (ainda que estivesse concentrado em uma região) e, nesse sentido, tinha um caráter "internacionalista". Diógenes e os Cínicos estavam contra a distinção entre helenos e bárbaros e se declaravam cidadãos do mundo. Demócrito foi a julgamento sendo acusado de ter dilapidado uma herança com a qual se pagou viagens educativas pelo Egito, Babilônia, Pérsia e Índia. Defendeu-se lendo extratos de seus escritos, fruto de suas viagens; foi declarado inocente.
O debate nasceu respondendo a uma necessidade material. Na Grécia foi se desenvolvendo com a comparação entre as diferentes fontes do conhecimento. Comparam-se diferentes modos de pensar, diferentes modos de investigar e seus resultados, os métodos de produção, os costumes e as tradições. Descobre-se que se contradizem, confirmam-se e se completam. Combatem-se ou se completam ou ambas as coisas. Através da comparação, as verdades absolutas tornam-se relativas.
Esses debates são públicos. Ocorrem em portos, praças de mercado (os fóruns), escolas, academias. E, por escrito, enchem as bibliotecas e se estendem por todo mundo conhecido.
Sócrates - o filósofo que passou seu tempo debatendo nas praças dos mercados - encarna a essência dessa evolução. Sua preocupação principal - como alcançar um verdadeiro conhecimento da moral - já é um ataque contra a religião e os preconceitos que supõem que a resposta para tudo já existe. Sócrates declarou que o conhecimento era a condição principal para uma ética correta e a ignorância seu pior inimigo. É, pois, o desenvolvimento da consciência, e não o castigo, o que permite o progresso moral, pois a maioria dos humanos não pode ir, durante muito tempo e de maneira deliberada, contra a voz de sua própria consciência.
Mas Sócrates foi mais adiante, pondo as bases teóricas de toda ciência e toda compreensão coletiva: o reconhecimento de que o ponto de partida do conhecimento é a tomada de consciência, ou seja, a necessidade de tornar-se livre dos preconceitos. Isso abre o caminho do essencial: para a busca, para a investigação. Opõe-se vigorosamente às conclusões precipitadas, às opiniões não críticas e satisfeitas de si mesmas, à arrogância e à presunção. Acreditava "na modéstia do não conhecimento" e na paixão que brota do verdadeiro conhecimento, apoiado em uma visão e uma convicção profundas. É o ponto de partida do "diálogo socrático". A verdade é o resultado de uma busca coletiva que consiste no diálogo entre todos os alunos no qual cada um é ao mesmo tempo professor e aluno. O filósofo não é um profeta que anuncia revelações, mas sim alguém que está, junto com outros, em busca da verdade. Isto constitui um novo conceito dos dirigentes: o dirigente é o mais determinado em fazer avançar a o esclarecimento sem perder nunca de vista o objetivo final. O paralelo com a definição do papel dos comunistas na luta de classes que se faz no Manifesto comunista, é surpreendente.
Sócrates era um perito em estimular e dirigir as discussões. Fez evoluir o debate público até níveis da arte ou da ciência. Seu aluno, Platão, desenvolveu o diálogo até níveis que raramente se alcançaram posteriormente.
Na Introdução à Dialética da natureza, Engels fala de três grandes períodos na história do estudo da natureza até hoje: as "geniais intuições" dos antigos gregos e "os descobrimentos extraordinariamente importantes, mas esporádicos" dos árabes como precursores do terceiro período, "a ciência moderna" cujos primeiros passos se realizaram no Renascimento. Chama a atenção a surpreendente capacidade, "na época cultural árabe-muçulmana", para absorver e fazer uma síntese de diferentes culturas antigas e sua abertura à discussão. August Bebel cita a um testemunho presencial da cultura do debate público em Bagdad:
Bebel acrescenta: "A diferença entre a cultura árabe e a cristã era a seguinte: os árabes recolheram durante suas conquistas todas as obras que podiam servir para seus estudos e instruí-los sobre os povos e países que tinham conquistado. Os cristãos, ao ir estendendo sua doutrina, destruíam todos esses monumentos da cultura como produtos do diabo ou horrores pagãos." [18]
E conclui: "A época árabe-muçulmana foi o elo que une a cultura greco-romana e a cultura antiga em geral à cultura européia que floresceu do Renascimento. Sem aquela, esta não teria alcançado seus progressos atuais. O cristianismo era hostil a todo esse desenvolvimento cultural." [19]
Uma das razões do fanatismo e do sectarismo cego do cristianismo já foi identificado por Heinrich Heine e mais tarde confirmado pelo movimento operário: quanto mais sacrifícios e renúncias exige uma cultura, mais intolerável é a própria ideia de que esses princípios possam um dia ser postos em dúvida.
E sobre o Renascimento e a Reforma, aos quais Engels qualifica de "a mais grandiosa transformação progressista que a humanidade tinha vivido até então", também sublinha não só seu papel no desenvolvimento do pensamento, mas também no das emoções, da personalidade, do potencial humano e da combatividade.
Era uma época que: "... requeria titãs e soube engendrá-los; titãs, por seu vigor mental, suas paixões e seu caráter, pela universalidade de seus interesses e conhecimentos e por sua erudição. (...) E é que os heróis daquele tempo não viviam ainda escravizados pela divisão do trabalho, cujas consequências apreciamos tantas vezes no raquitismo e na unilateralidade de seus sucessores. Mas o que sobretudo os distingue é o fato de que quase todos eles viviam e trabalhavam sem exceção no meio do turbilhão do movimento de seu tempo, entregues à luta prática, tomando partido e brigando com outros, seja com a palavra e a pluma, seja com a espada na mão, seja empunhando a uma e outra" [20].
Se observarmos as três épocas "heróicas" do pensamento humano que desembocaram, segundo Engels, no desenvolvimento da ciência moderna, nota-se até que ponto foram limitadas no tempo e no espaço. Primeiro, começam muito tarde em relação à história da humanidade como um todo. Inclusive contando com os espaços chinês e indiano, essas fases estavam limitadas geograficamente. Tampouco duraram muito (o Renascimento na Itália e a Reforma na Alemanha só algumas poucas décadas). E eram muito escassas as frações das classes exploradoras (já, em si mesmas, muito minoritárias) que participaram de maneira ativa nesse desenvolvimento.
E duas coisas parecem surpreendentes. Primeiro, simplesmente, o próprio fato de que foi possível existir esses momentos de debate público e da ciência, e que seu impacto foi tão importante e duradouro, apesar de todas as rupturas e dos obstáculos. Segundo, até que ponto foi capaz o proletariado (apesar da ruptura na continuidade orgânica de seu movimento em meados do século XX [21], apesar de não ser possível existir organizações de massas no capitalismo decadente [22]) de manter e inclusive às vezes ampliar significativamente o debate organizado. O movimento operário manteve viva essa tradição, apesar das interrupções, durante quase dois séculos. E em certos momentos, como nos movimentos revolucionários na França, na Alemanha ou na Rússia, esse processo abrangeu milhões de pessoas. Aqui, a quantidade torna-se qualidade.
Essa qualidade não é, entretanto, unicamente o resultado de que o proletariado, nos países industrializados ao menos, seja a maioria da população. Já vimos como a ciência moderna e a teoria, depois dos memoráveis debates durante o Renascimento, foram deteriorando-se, entorpecidos em seu desenvolvimento pela divisão burguesa do trabalho. O centro deste problema é a separação entre a ciência e os produtores, uma distância impensável em outras épocas como a árabe ou a do Renascimento. "[Este processo de dissociação] se completa na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a força a servir ao capital" [23].
A conclusão desse processo descrito por Marx no rascunho de sua resposta a Vera Zasulich: "[o sistema capitalista] trava uma luta tanto contra as massas trabalhadoras como contra a ciência e contra as mesmas forças produtivas que engendra". (Tradução nossa).
O capitalismo é o primeiro sistema econômico que não pode existir sem aplicar sistematicamente a ciência à produção. Deve limitar a educação do proletariado para manter sua dominação de classe. E deve desenvolver a educação do proletariado para conservar sua posição econômica. Hoje a burguesia é cada vez mais uma classe sem cultura, atrasada, enquanto a ciência e a cultura estão em mãos ou de proletários ou de representantes remunerados da burguesia, cuja situação econômica e social se parece cada dia mais à da classe operária.
O proletariado é o herdeiro das tradições científicas da humanidade. Ainda mais que no passado, toda futura luta revolucionária proletária contribuirá necessariamente para um florescimento sem precedentes do debate público e para o início de um movimento para a restauração da unidade entre ciência e trabalho, a realização de uma compreensão global que esteja à altura das exigências da época contemporânea
A capacidade do proletariado para alcançar novos progressos já fora demonstrada com o desenvolvimento do marxismo, primeiro método científico sobre a sociedade humana e a história. Só o proletariado foi capaz de assimilar as aquisições mais elevadas do pensamento filosófico burguês: a filosofia de Hegel. As duas formas de dialética conhecidas na Antiguidade eram a dialética da transformação (Heráclito) e a dialética da interação (Platão, Aristóteles). Só Hegel conseguiu combinar essas duas formas e criar as bases para uma dialética verdadeiramente histórica.
Hegel contribuiu para uma nova dimensão ao conceito de debate atacando, como nunca antes se fez, a oposição rígida, metafísica entre o verdadeiro e o falso. No prefácio de A Fenomenología do espírito demonstrou que as fases diferentes e opostas de um desenvolvimento (como a história e a filosofia) formam uma unidade orgânica, do mesmo modo que a flor e o fruto. Hegel explica que a incapacidade para entender essa unidade deve-se à tendência a se concentrar na contradição, perdendo de vista o desenvolvimento. Ao pôr de pé a dialética, o marxismo foi capaz de absorver o mais progressista de Hegel, a compreensão dos procedimentos que levam para o futuro.
O proletariado é a primeira classe ao mesmo tempo explorada e revolucionária. Contrariamente às classes revolucionárias precedentes, classes exploradoras, sua busca da verdade não está limitada por nenhum interesse a preservar como classe. Contrariamente às classes exploradas anteriores, que não podiam sobreviver a não ser consolando-se com ilusões (especialmente religiosas), seu interesse de classe é a perda de ilusões. Como tal, o proletariado é a primeira classe cuja tendência natural, enquanto se põe a refletir e se organiza e luta em seu terreno, é uma tendência para o esclarecimento.
Os bordiguistas se esqueceram dessa característica própria e exclusiva do proletariado quando inventaram o conceito de "invariabilidade". Seu ponto de partida é correto: a necessidade de permanecer leal aos princípios de base do marxismo frente à ideologia burguesa. Mas a conclusão que diz que é necessário limitar e até abolir o debate para, assim, manter as posições de classe é um produto da contrarrevolução. A burguesia, sim, compreendeu muito melhor que o que deve ser feito, acima de tudo, para atrair o proletariado ao terreno do capital, é suprimir ou sufocar seus debates. Primeiro tentou através da repressão violenta, depois desenvolveu também outras armas muito mais eficazes como a "democracia" parlamentar e a sabotagem organizada pela esquerda do capital. O oportunismo também compreendeu isso há muito tempo. Como sua característica essencial é a incoerência, deve se ocultar, fugir do debate aberto. A luta contra o oportunismo e a necessidade de uma cultura do debate, além de não serem contraditórias, são também mutuamente indispensáveis.
Tampouco, essa cultura não exclui a confrontação apaixonada de posturas políticas divergentes. Mas isso não significa que o debate político deva ser concebido como um duelo necessariamente traumático, com vencedores e vencidos, que leve a rupturas e cisões. O exemplo mais edificante da "arte" ou da "ciência" do debate na história é o do Partido Bolchevique entre fevereiro e outubro de 1917. Inclusive em um contexto de intromissão em massa de uma ideologia alheia, as discussões eram apaixonadas, mas totalmente fraternas e fonte de inspiração para todos os participantes. Sobretudo, essas discussões tornou possível o que Trotsky chamou de "rearmamento" político do partido, o reajuste de sua política às novas necessidades do processo revolucionário, que é uma das condições da vitória.
O "diálogo bolchevique" precisa compreender que nem todos os debates têm o mesmo significado. A polêmica de Marx contra Proudhon era uma "demolição" como deve ser, pois sua tarefa era atirar ao lixo da história uma visão que se converteu em um entrave para o desenvolvimento da consciência do movimento operário. Por outro lado, o jovem Marx, ao mesmo tempo que iniciava uma luta formidável contra Hegel e contra o socialismo utópico, nunca perdeu seu imenso respeito por Hegel, Fourier, Saint Simon ou Owen, a quem fez entrar assim para sempre em nossa herança comum. Engels escreveria mais tarde que sem Hegel, não existiria o marxismo e sem os utopistas não haveria socialismo científico tal como hoje o conhecemos.
As crises mais graves do movimento operário, incluídas as da CCI, em sua grande maioria não foram provocadas pelas divergências em si, por muito importantes que fossem, mas sim pela sabotagem aberta do debate e do processo de esclarecimento. O oportunismo usa todos os meios para chegar a essa sabotagem. Não só pode minimizar divergências importantes, mas também exagerar as secundárias ou inventar divergências onde não existem. O oportunismo usa, além disso, os ataques pessoais, quando não a difamação ou a calúnia.
O peso morto que faz penetrar no movimento operário o "senso comum" cotidiano por um lado e, por outro, o respeito sem crítica, quase religioso de certos costumes e tradições, relaciona-se com o que Lênin chamava "espírito de círculo". Tinha perfeitamente razão em seu combate contra a submissão do processo de construção da organização e de sua vida política à "espontaneidade" do senso comum e suas consequências: "Mas, por que - perguntará o leitor - o movimento espontâneo, que se dirige para o sentido do mínimo esforço, conduz exatamente à dominação da ideologia burguesa? Pela simples razão de que, cronologicamente, a ideologia burguesa é muito mais antiga que a ideologia socialista, está completamente elaborada e possui meios de difusão infinitamente maiores" [25].
O característico da mentalidade de círculo é a personalização do debate, a atitude que consiste em não se centrar nos argumentos políticos, no "que se diz", mas sim em "quem o diz". Nem é necessário dizer que essa personalização excessiva é um grande obstáculo para uma discussão coletiva frutífera.
No "diálogo socrático" já se havia compreendido que o desenvolvimento do debate não é só coisa do pensamento; é também uma questão ética. Hoje, a busca de esclarescimento serve aos interesses do proletariado e sua sabotagem os danifica. Nisto, a classe operária deverá inspirar-se na frase de Lessing, alemão do século das luzes, que afirmava que se havia algo que amava mais que a verdade era a busca da verdade.
Os exemplos mais patentes da cultura do debate como elemento essencial dos movimentos proletários de massas foram dados a nós pela Revolução Russa [26]. O partido de classe estava na vanguarda desta dinâmica. As discussões no seio do partido na Rússia em 1917 eram sobre questões como a natureza de classe da revolução, se teria que apoiar ou não a continuação da guerra imperialista e quando e como tomar o poder. E, entretanto, ao longo de todo esse período, manteve-se a unidade do partido, apesar das crises políticas durante as quais estavam em jogo o destino da revolução mundial e, com este, o da humanidade.
Entretanto, a história da luta de classe proletária, especialmente a do movimento operário organizado, nos ensina que nem sempre se alcançaram esses níveis de cultura do debate. Já mencionamos a intrusão reiterada de métodos monolíticos na CCI. Não é surpreendente que isso tenha produzido frequentemente cisões na organização. Com os métodos monolíticos, as divergências não podem ser resolvidas através do debate e desembocam necessariamente em ruptura e separação. E o problema não se resolve, entretanto, com a cisão dos militantes que personificaram esses métodos de modo caricatural. A possibilidade de que esses métodos não proletários voltem a surgir indica a existência de debilidades mais estendidas sobre esta questão na própria organização. São frequentemente pequenas confusões e ideias errôneas apenas perceptíveis na vida e na discussão cotidiana, mas que podem abrir o caminho a dificuldades maiores em certas circunstâncias. Uma delas consiste na tendência a apresentar qualquer debate em termos de confrontação entre marxismo e oportunismo, de luta polêmica contra a ideologia burguesa. Uma das consequências deste modo de fazer é a de inibir o debate, dando a impressão aos camaradas que já não têm direito a se equivocar nem a expressar suas confusões ou desacordos. Outra consequência é a "banalização" do oportunismo. Se o identificarmos por toda parte (e gritamos a cada passo: "o lobo!", assim que aparece a menor divergência), provavelmente não o reconheceremos quando aparecer de verdade. Outro problema é a impaciência no debate cujo resultado é não escutar os argumentos de outros e uma tendência a querer monopolizar a discussão, a esmagar o "adversário", a convencer outros "a todo custo" [27].
O que têm em comum todos esses procedimentos é o peso da impaciência pequeno-burguesa, a falta de confiança na prática viva da compreensão coletiva no proletariado. Expressam uma dificuldade para aceitar que a discussão e a compreensão são um processo. E como todos os processos fundamentais da vida social, esse tem um ritmo interno e sua própria lei de desenvolvimento. Este corresponde ao movimento que vai da confusão para o esclarecimiento, contém erros e orientações falsas e também sua correção. Essas evoluções requerem tempo para ser profundas de verdade. Poderão ser aceleradasr, mas nunca serem evitadasprecipitar. Quanto mais ampla seja a participação nesse processo, quando mais volumosa seja a participação do conjunto da classe, mais frutífero será.
Em sua polêmica contra Bernstein [28], Rosa Luxemburgo sublinhava a contradição essencial da luta de classes: movimento no seio do capitalismo, mas que tende para um objetivo situado fora do capitalismo. Dessa natureza contraditória vêm os dois principais perigos que ameaçam o movimento. O primeiro é o oportunismo, ou seja, a abertura à influência nefasta da classe inimiga. A ordem desse desvio no caminho da luta de classes é: "o movimento é tudo, o objetivo não é nada". O segundo perigo principal é o sectarismo, ou seja, a falta de abertura para a influência da vida de sua própria classe, o proletariado. A ordem desse desvio é: "o objetivo é tudo, o movimento não é nada".
Depois da terrível contrarrevolução resultante da derrota da revolução mundial no período posterior à Primeira Guerra Mundial, foi desenvolvido no seio do movimento revolucionário a ideia falsa e funesta de que era possível combater o oportunismo com o sectarismo. Esta visão, que acabou levando à esterilização e à fossilização, era incapaz de compreender que o oportunismo e o sectarismo são as duas faces da mesma moeda, pois ambos separam o movimento e o objetivo. Sem a participação plena das minorias revolucionárias na vida real e no movimento de sua classe, o objetivo do comunismo não poderá ser alcançado.
[1] Inclusive jovens revolucionários tão amadurecidos e esclarecidos teoricamente como Marx e Engels pensavam - na época das convulsões sociais de 1848 - que o comunismo estava, mais ou menos tarde, à ordem do dia. Uma hipótese que tiveram que revisar e abandonar rapidamente.
[2] Ou como dizia a música brasileira que fez muito sucesso nessa época: "não confio em ninguém com mais de 30".
[3] A propósito disso, ler nosso artigo Teses sobre o movimento dos estudantes da primavera de 2006 na França; [https://pt.internationalism.org/icconline/2006_estudiantes_franca [108]]
[4] No campo proletário, a ideia do dogma foi teorizada pela corrente chamada "bordiguista".
[5] As biografias e memórias dos revolucionários do passado estão repletas de exemplos de sua capacidade para discutir e, especialmente, escutar. Nisto, Lênin era conhecido, mas não era o único. Um só exemplo: as lembranças do Fritz Sternberg em suas Conversations with Trotsky [Conversas com Trotsky] (redigidas em 1963). "Em suas conversações comigo, Trotsky era do mais educado. Não me interrompia virtualmente nunca, só para me pedir alguma explicação ou desenvolver uma palavra ou um conceito a maioria das vezes".
[6] Leiam-se a respeito os artigos dos números 110 e 114 da Revista internacional , "Conferência extraordinária da CCI: o combate pela defesa dos princípios organizativos" e "XV Congresso da CCI : Reforçar a organização diante dos desafios do período".
[7] Leia-se: A confiança e a solidariedade na luta do proletariado e Marxismo e ética na Revista internacional n° 111, 112, 127 e 128.
[8] Leia em nossos livros sobre a Esquerda comunista da Itália e a Esquerda comunista da Holanda.
[9] A Esquerda comunista da França manteria essa posição depois da dissolução da Fração italiana. Ver, por exemplo, a crítica do conceito do "chefe genial" reproduzida na Revista internacional n° 33 [https://es.internationalism.org/node/2182 [109]]e da noção de disciplina que considera os militantes da organização como simples executantes que não têm que discutir sobre as orientações políticas da organização, na Revista Internacional n° 34.
[10] Engels, A Origem da família, da propriedade privada e do Estado.
[11] Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Cap. II. [www.moreira.pro.br/textose27a.htm [110]]
[12] Friedrich Engels, A investigação científica no mundo dos espíritos. In: A Dialética da natureza. Tradução nossa..
[13] Visão que considera a alma como princípio ou causa de todos os fenômenos vitais.
[14] Marx, El Capital, III, 48: "A fórmula trinitaria", III. FCE, 1946, México. Tradução nossa.
[15] Friedrich Engels, A investigação científica no mundo dos espíritos. In: A Dialética da natureza, Tradução nossa.
[16] Sobre estes temas do Ásia dos anos 500 A.C., vejam-se as conferências de August Thalheimer na Universidade Sun Yat Sen em Moscou, 1927 : Einführung in den dialektischen Materiailismus [Introdução ao materialismo dialético].
[17] August Bebel, Die Mohamedanisch-Arabische Kulturepoche (1889), cap. VI, "O desenvolvimento científico, a poesia". Traduzido do alemão por nós.
[18] Ibid.
[19] Ibid.
[20] Engels, Dialética da Natureza, Introdução
[21]Devido à derrota da onda revolucionaria mundial de 1917-23 e a à contrarrevolução de quase 50 anos que a sucedeu.
[22] Ler a nossa brochura Os sindicatos contra a classe operária [/content/23/os-sindicatos-no-capitalismo-decadente [111]].
[23] Marx, O Capital. Livro I, 4ª, Nova Cultural, 2ª ed., 1985. (Cap. 14: "Divisão do trabalho e manufatura", 5 "Caráter capitalista da manufatura")..
[24] Anti-Dühring, 3ª parte: O socialismo, Noções teóricas. (Tradução nossa)
[25] Lênin, O que fazer? - (Cap. II - A espontaneidade das massas e a consciência da social-democracia). [https://www.moreira.pro.br] [112]
[26] Ver, por exemplo, o livro de Trotsky: História da revolução russa ou o de John Reed: Dez dias que abalaram o mundo.
[27] Ver a respeito o relatório sobre os trabalhos do "XVII Congresso da CCI. Um fortalecimento internacional do campo proletário" na Revista internacional n° 130. [https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/XVIII_congresso_da_CCI_ru... [113]ças_internacionalistas]
[28] Rosa Luxemburgo, Reforma ou Revolução?
Nossos leitores muito provavelmente já ouviram ou acompanharam os acontecimentos relacionados com o movimento “Occupy Wall Street” (Ocupa Wall Street – OWS). Desde meados de setembro, milhares de pessoas participaram da ocupação do Zuccotti Park em Manhattan, localizado a apenas alguns quarteirões de Wall Street. O movimento se estendeu a centenas de cidades nos Estados Unidos. Dezena de milhares de pessoas têm participado das ocupações, manifestações e assembleias gerais com um nível de auto-organização desconhecido nos EUA há décadas. A população explorada e descontente levantou a sua voz, mostrando sua indignação contra os males do capitalismo. O impacto a nível internacional do OWS também é algo a ser tomado em conta: os protestos acontecem no centro nevrálgico do capitalismo mundial, colocando sobre a mesa slogans e frustrações similares às que foram vistas na Europa e no norte da África.
Ainda assim, o futuro do movimento parece incerto. Embora muitos participantes expressem sua vontade em continuar as ocupações de forma indefinida, cada vez mais se vê claramente que a energia e espontaneidade inicial do movimento estão em refluxo, à medida que seu marco mais importante, as assembleias gerais (AG’s), vai se transformando cada vez mais em meros órgãos de aprovação da atividade dos “grupos de trabalho” e “comitês”, muitos dos quais estão dominados por ativistas profissionais, esquerdistas, etc. Embora a situação se mantenha oscilante, acreditamos que tenha alcançado um estágio em que nos permite agora realizar uma avaliação preliminar do movimento, de seu significado, e dos seus pontos fortes e fracos.
A CCI foi capaz de participar do movimento em Nova York, onde vários militantes e simpatizantes próximos têm se aproximado em várias ocasiões no Zuccotti Park para falar com os manifestantes e participar das assembleias gerais. Simpatizantes da CCI em outras localidades também nos enviaram informações das suas experiências no movimento. Foi iniciada também uma animada discussão no fórum da nossa página na internet. [1] Este artigo é uma contribuição ao debate, e ficaremos gratos aos leitores que se unirem à discussão.
Como responder aos ataques do capitalismo? A luta para encontrar o terreno de classe
Primeiramente, devemos dizer que o movimento surge da mesma fonte que as revoltas e movimentos sociais que vimos ao longo de 2011, desde o movimento na Tunísia e Egito, ao aparecimento dos “indignados” na Espanha, às ocupações em Israel, ou as mobilizações contra a austeridade e as medidas anti-sindicais em Wisconsin e outros Estados: o sentimento de frustração e desespero da classe operária, especialmente das gerações mais jovens, duramente golpeadas pelo desemprego. [2]
Vemos, portanto, uma continuidade direta entre o OWS e a vontade crescente da classe trabalhadora em responder os ataques capitalistas a nível internacional. O OWS não se trata de modo nenhum de uma campanha da burguesia para sabotar ou canalizar a luta de classe. Pelo contrário, se trata da última de uma série de movimentos, em grande parte organizados através da Internet e das redes sociais, à margem dos sindicatos e partidos majoritários, com os quais a classe operária está buscando responder aos duros ataques que está sofrendo no marco da crise histórica do capitalismo. O movimento deve, portanto, ser saudado como um sinal de que o proletariado nos Estados Unidos não está completamente derrotado e que não está disposto a sofrer ataques de forma indefinida. No entanto, também vemos distintas tendências no seio do movimento que lutam para se impor. As tendências dominantes mostram claramente uma visão reformista, enquanto as tendências mais proletárias estão encontrando muitas dificuldades para afirmar o terreno de classe sobre o qual assentar sua luta.
Em defesa da soberania das Assembleias Gerais
Talvez o aspecto mais positivo do OWS foi o aparecimento das AG’s como órgãos soberanos do movimento, o que representa um avanço com relação às mobilizações em Wisconsin, que apesar da sua espontaneidade inicial rapidamente foram tomadas pelos sindicatos e pela esquerda do Partido Democrata. [3] O surgimento das AG’s representa uma continuidade com os movimentos na Espanha, França e outras localidades, e mostra claramente a capacidade da classe operária de tomar o controle das suas próprias lutas e aprender de outras lutas a nível internacional. Nesse aspecto se trata da internacionalização das AG’s como forma de luta, um dos marcos mais destacados da fase atual da luta de classe. As AG’s são, acima de tudo, uma tentativa da classe trabalhadora em defender sua autonomia através da participação de todo o movimento no processo de tomada de decisão e de assegurar a mais ampla discussão no seio da classe.
No entanto, apesar da sua importância no movimento, está claro que as AG`s no OWS não têm sido capaz de funcionar sem um alto grau de distorção e manipulação por parte dos ativistas profissionais e dos esquerdistas, que têm controlado em grande medida os grupos de trabalho e os comitês que supostamente estão submetidos aos mandatos das AG`s. Este peso revela uma grande dificuldade para que o movimento mantivesse uma discussão aberta, e tem sido relevante para evitar que se coloque a questão de extensão do movimento para além das ocupações, para chegar a toda classe operária. O movimento 15M na Espanha encontrou problemas semelhantes. [4]
No início das ocupações, devido às insistentes manifestações da mídia para que o movimento estabelecesse suas metas e reivindicações, formou-se um comitê de imprensa com o propósito de publicar um informativo do OWS. Um dos nossos camaradas estava presente na AG quando o assunto do primeiro número do informativo – que já tinha sido publicado e feito chegar à mídia pelo comitê de imprensa – foi abordado. O sentimento generalizado na assembleia era de indignação porque o informativo foi publicado e distribuído com um conteúdo que não refletia a visão majoritária do movimento, mas que refletia a opinião política particular do autor. Adotou-se a decisão de revogar o mandato da pessoa responsável. Esta ação representou o poder da AG para se impor sobre comitês e grupos de trabalho. Tratou-se de uma expressão embrionária do “direito imediato da revogabilidade”, o membro infrator do comitê de imprensa foi prontamente removido por exceder o seu mandato.
No entanto, algumas semanas depois – pouco antes do prefeito Bloomberg ameaçar despejar os ocupantes do Zucotti Park – nosso camarada encontrou um ambiente muito distinto na assembleia. Com a ameaça de despejo da ocupação, as AG’s foram praticamente desprovidas de qualquer discussão significativa. A maioria das AG’s foi tomada por relatórios dos grupos de trabalho e dos comitês, sem nenhuma discussão. A única discussão que era permitida pelos organizadores da assembleia foi para tratar da proposta do chefe do Distrito de Manhattan de limitar a tocar baterias a duas horas por dia. Esta assembleia em nenhum momento abordou o assunto do futuro do movimento. Nem mesmo se tratou da questão de como levar a cabo uma estratégia para estender o movimento além das suas atuais limitações e diante da mais que provável expulsão de Zuccotti Park.
Nessa assembleia um dos nossos camaradas tentou propor que os participantes tivessem uma visão de futuro e vissem além dos limites do parque, para a classe operária da cidade, onde provavelmente encontraria uma boa acolhida. Disseram ao nosso companheiro que sua proposta não tinha cabimento dentro do debate da limitação de tocar baterias e que o tempo limite para as intervenções (arbitrariamente estabelecido em um minuto pelos organizadores) tinha se esgotado. Outro participante propôs criar uma delegação para falar do movimento aos estudantes em vários estabelecimentos de ensino e universidades. Sua proposta também foi rechaçada, com muitas vozes assinalando que não tinham intenção de estender o movimento e que se os estudantes quisessem apoiar a ocupação que viessem para Zuccotti Park.
Como explicar, então, a tendência que levaram os grupos de trabalho, comitês e organizadores paulatinamente tomarem o controle do movimento à medida que foi passando o tempo?
O OWS se caracterizou desde o início por certo espírito “anti-político” que se tornou útil para amortizar a discussão, evitar a confrontação de idéias e o desenvolvimento de reivindicações de classe. Isso fez possível que esquerdistas, celebridades políticas e políticos de toda ralé interviessem e falassem em nome do movimento, permitindo que a mídia possa apresentar o OWS como um incipiente “Tea Party [5] de esquerdistas”. [6]
O rechaço por quase todos os manifestantes do OWS em abordar a questão das reivindicações e dos fins, que pensamos representar um rechaço geral em abordar a questão do poder, apresenta-se como uma espécie de mistério para os revolucionários. Como entender este fenômeno, que também está presente em outros movimentos? No que diz respeito ao OWS, acreditamos que têm muito a ver com os fatores que abaixo comentaremos.
Embora seja certo que a principal força social por trás do movimento esteja nas gerações operárias mais jovens, muitos dos quais nasceram depois do colapso do stalinismo em 1989, ainda se mantêm um medo na classe trabalhadora em abordar a questão do comunismo. Embora as idéias de Marx pareçam caminhar para a recuperação em relação a sua crítica do capitalismo, ainda existe um grande medo de se ver associado a um sistema que muitos ainda acreditam que “já se tentou e fracassou”, e que está contra a finalidade de estabelecer uma “verdadeira democracia”. Embora possa ser visto muitos cartazes e slogans nas ocupações citando Marx no sentido de que o capitalismo se tornou inviável, ainda existe uma grande confusão no que diz respeito ao que pode substituí-lo. Por outro lado, a perspectiva a longo prazo é que o peso dos “pesadelos do passado” se enfraqueça e seja um obstáculo menor para aqueles que buscam o verdadeiro significado do comunismo, e das possibilidades de uma nova sociedade.
O predomínio da jovem geração
Em geral, o movimento é impulsionado pelas novas gerações operárias. Embora gerações de trabalhadores com idades mais avançadas, afetados pela destruição massiva de empregos que tem ocorrido nos EUA desde 2008, também estejam presentes no movimento, sociologicamente a força motriz desses protestos são proletários com idade entre 20 e 30 anos. A maioria estuda, porém muitos nunca tiveram um trabalho estável na sua vida. Esses jovens se encontram entre os mais duramente afetados pelo grande desemprego de longo prazo que afeta a economia norte-americana. Poucos têm experiência de trabalho, a não ser de forma precária. Sua identidade não está vinculada ao local de trabalho ou a uma profissão específica. Embora esses elementos sociológicos provavelmente os fazem mais propensos a desenvolver um sentimento de solidariedade mais amplo e abstrato, também significa que a maioria carece de experiência em lutas defendendo suas condições de vida e trabalho, estabelecendo reivindicações e fins concretos. Estando apartados do processo produtivo, tem poucas coisas concretas a defender a não ser sua dignidade como seres humanos! A necessidade de estabelecerem reivindicações e fins concretos não é, assim, algo tão evidente. Em um mundo onde não se vê um futuro claro, não é surpreendente que as gerações mais jovens encontrem dificuldades em concretizar as características da luta por um futuro. Assim, o movimento se vê preso em uma espécie de celebração do processo em si, das ocupações, tanto que o lugar de ocupação se converte em comunidade, e inclusive em alguns casos em lar. [7] Outro aspecto que não se deve esquecer é o peso do discurso político pós-moderno, especialmente daqueles que passaram pela universidade, que fomenta a desconfiança para com a “tradicional” política de classe e seu rechaço.
Dito isso, não devemos esperar que “um menino se comporte como um homem”. A mera existência de assembleias gerais é uma vitória em si mesma, e proporciona uma escola excelente onde os jovens possam adquirir experiência e aprender a combater as forças da esquerda burguesa. Tudo isso é essencial para as lutas futuras.
O OWS continua teimosamente preso no contexto e características da política e da história dos EUA. Existe pouca menção no movimento das raízes internacionais da crise e os movimentos sociais de outros países são raramente evocados. A crença dominante no movimento é que os enormes problemas aos quais se confronta a humanidade têm, de uma forma ou de outra, sua raiz no comportamento imoral dos banqueiros de Wall Street, ajudados e incitados pelos partidos políticos. A falta de regulamentação nas finanças e investimentos, a acumulação sem escrúpulos da dívida com a bolha imobiliária, a crescente influência do dinheiro privado nas campanhas eleitorais, a diferença imensa entre o 1% mais ricos da população e o resto, o fato de que Wall Street se negue a reinvestir na economia americana os bilhões de dólares obtidos em mais-valia, são as grandes queixas apresentadas pelo movimento. Além disso, a identificação da “desregulamentação do capital financeiro” como o principal problema, serviu para manter ilusões acerca do suposto papel altruísta do Estado burguês.
De forma nítida, as posições “anti-políticas” têm sido um obstáculo para que o movimento possa ir mais além e, no fim, serve para reproduzir a dominação política que tanto teme. Isso deve servir como lição para futuros movimentos. Embora o movimento tenha razão em manter distância para com aqueles que querem falar em seu nome, a classe trabalhadora não pode evitar da discussão aberta e da confrontação de idéias. Este processo de polarização, de estabelecer reivindicações e fins concretos – apesar de toda dificuldade que isso implica – não pode ser evitado, se o movimento quer avançar. No final, um movimento dominado por um extremo ecletismo ideológico, no qual todas as “proclamações seriam igualmente válidas”, a única coisa que vai assegurar é que somente aquelas posições que são aceitáveis pela burguesia progredirão. As posições de regular o capitalismo, de cobrar mais impostos dos ricos e de acabar com o domínio total do dinheiro das empresas nas eleições – são petições que compartem muitas frações da burguesia dos EUA! Não é por acaso que Obama queira financiar seu “plano de emprego” tributando mais os milionários. Há um grande risco de que as principais frações da burguesia possam dirigir o movimento em uma direção que sirva aos seus próprios interesses nas suas lutas interburguesas no contexto de uma ascensão da direita. No entanto, em última instância, a completa incapacidade da burguesia em solucionar sua crise mortal fará com que as ilusões do “sonho americano” se desmoronem, e se substituirá pelo pesadelo da vida sob o capitalismo.
Apesar de todas suas fraquezas, o movimento OWS é rico em lições para o futuro desenvolvimento da luta de classe. O surgimento de assembleias gerais – provavelmente pela primeira vez em décadas nos Estados Unidos – representa um importante passo adiante para a classe operária na sua busca para levar sua luta mais adiante dos limites demarcados pelos sindicatos e pela esquerda burguesa. Devemos, no entanto destacar que um movimento centrado em si mesmo em lugar de buscar sua extensão a toda classe trabalhadora está condenado ao fracasso, seja pela repressão, pela desmoralização ou pela posterior canalização atrás das campanhas da esquerda burguesa. Na conjuntura atual da luta de classes não nos encontramos com uma situação onde os setores da classe trabalhadora com menos experiência no trabalho coletivo são os mais combativos. Por outro lado, aqueles com mais experiência em lutas concretas na defesa das suas condições de vida e trabalho ainda se encontram desorientados pelos ataques capitalistas e indecisos acerca de como responder a esses. Muitos simplesmente se conformam em manter um emprego e recuaram diante do peso da ofensiva capitalista contra as condições de vida e trabalho;
Além disso, nos Estados Unidos as contínuas campanhas da direita para abater os sindicatos têm gerado o efeito de revitalizar em algum grau os sindicatos aos olhos dos operários, desorientando-os. [8] Até o ponto de que trabalhadores filiados a sindicatos participaram no movimento OWS majoritariamente sob a bandeira do sindicato, sendo que esses atuaram sistematicamente para separar seus membros dos ocupantes de Zuccotti Park. Vê-se claramente que sob a influência dos sindicatos, os trabalhadores desempenharam um papel de meros “seguidores” do movimento, mas sem se unirem a ele! É na luta operária para defender suas condições de vida e trabalho, no local onde a sociedade se reproduz, que os órgãos que realmente podem levar adiante a transição para uma sociedade de produtores associados – os conselhos operários – podem emergir. É no marco dessa luta onde o fato de que o capitalismo já não pode oferecer reformas duradouras pode ser descoberto, na medida em que a luta operária por suas condições de vida e trabalho se vê constantemente frustrada pela persistente crise econômica. É no local de produção onde se tornará evidente para a classe trabalhadora o fato de que a atual sociedade humana só pode se reproduzir se for unificada.
Como foi dito, não queremos minimizar as imensas dificuldades que toda classe operária se defronta na sua busca do terreno de classe e da energia necessária para responder aos ataques capitalistas. Nos primeiros embates, acreditamos que o OWS se viu envolvido no terreno retórico burguês; no entanto, no futuro será de grande valia já que mostra pinceladas de como a classe trabalhadora pode tomar o controle das suas próprias lutas.
Internationalism, 19-10-2011
[1] Veja o Fórum em inglês organizado pela CCI: https://en.internationalism.org/forum/4515/occupy-wall-street-protests [114]
[2] Confira nossos artigos sobre o movimento dos indignados, o mais recente: /content/313/mobilizacoes-dos-indignados-na-espanha-e-suas-repercussoes-no-mundo-um-movimento [115]
[3] Embora haja uma diferença de Wisconsin, onde por um momento o fantasma da greve geral esteve presente nesse Estado, pois no OWS a mobilização foi muito menos "massiva", com um grupo fixo de ocupantes e aqueles que participaram de modo irregular.
[4] Veja nosso artigo: Movimento Cidadão Democracia Real Já!: Ditadura do Estado contra as assembleias massivas [116]
[5] Movimento de direita surgido em 2009, quando realizou uma série de protestos a nível nacional contra uma série de medidas implementados pelo governo Obama.
[6] Como exemplo de como a esquerda burguesa pensa que poderia utilizar o OWS como um movimento de base de apoio para a presidência de Obama, veja o texto de Peter Beinhart "Occupy Protests' Sismic Effects": < https://news.yahoo.com/occupy-protests-seismic-effect-062600703.html [117]>
[7] Nas últimas semanas, os meios de comunicação informaram de vários casos de jovens que deixaram trabalhos mal remunerados ou faltaram a aula para participar no movimento.
[8] Veja nosso artigo sobre a recente greve em Verizon [118].
Assim, o governo de Paris mostrou-se muito firme em relação aos tunisianos que desembarcaram sobre a ilha italiana de Lampedusa, e cuja maioria quer ir à França: o ministro do Interior preveniu que serão tratados como imigrantes clandestinos convocados a serem reconduzidos ao seu país. Interrogado na Assembleia Nacional, Brice Hortefeux recordou a regra em política migratória: "Um estrangeiro em situação irregular está destinado a ser reconduzido ao seu país de origem, exceto situação humanitária específica." Pensando bem, com Hortefeux, este amigo dos "Auvergnats" [2], as situações humanitárias específicas…não existem, só há unicamente trapaceiros e aproveitadores. E para se fazer compreender mais claramente: "Não é o interesse nem da Tunísia, que o compreende perfeitamente, nem da Europa, nem da França o de encorajar e aceitar estas migrações clandestinas." Isso não vale somente para os tunisianos, porque o presidente do serviço francês de imigração e integração, Dominique Paillé, afirmou nesta quinta-feira, 24 de Fevereiro, que "os clandestinos" provenientes da Líbia também "serão reconduzidos". Não se poderá mais dizer que a burguesia francesa usa dois pesos e duas medidas! Todos mergulhados na mesma miséria e no horror capitalista, mas sem injustiça!
Mulan (26 de Fevereiro)
Revolution Internationale n°420, órgão da CCI na França.
[2] Referência à declaração racista de Hortefeux em setembro de 2009, durante a reunião do seu partido a União por um Movimento Popular (UMP, de direita) no país basco francês. Um jovem franco-argelino, Amine Benalia-Brouch, se aproximou do ministro pedindo para ser fotografado com ele, que comentou com o presidente do partido, Jean-François Cope: "Ele não corresponde em nada ao estereótipo...Quando há um deles, tudo bem. É quando há muitos deles que os problemas chegam". A declaração, gravada em um vídeo amador, teve mais de 800 mil acessos no site do Le Monde em um dia. A situação piorou quando Hortefeux tentou contradizer a declaração, dizendo primeiro que se referia ao número de fotos e depois que se referia não aos árabes e sim aos Auvergnats (ou occitanos, da Occitânia, localizada na região sul da França). Parte da imprensa explorou o caso e grupos nacionalistas occitanos utilizaram-no como comprovação do racismo anti-occitano existente na França.
Se a escolha do momento certo é a essência da comédia, então a viagem de David Cameron - há muito tempo planejada – vendendo armamentos no Golfo e no Oriente Médio não pôde funcionar melhor. Mas fornecer a carniceiros meios para atacar suas populações está longe de ser cômico.A natureza repugnante desta farsa sinistra foi reforçada ainda mais pelo seu comparecimento a uma cerimônia no Kuwait, junto ao ex-primeiro-ministro John Major, para comemorar o vigésimo aniversário da primeira Guerra do Golfo, na qual centenas de milhares de inocentes foram mortos pelo armamento mais letal das democracias avançadas.Ao mesmo tempo em que centenas, talvez milhares, eram mortos na Líbia pelas armas vendidas a Kadafi pelos governos trabalhista e conservador, Cameron, que parou brevemente para uma apressada ocasião de ser fotografado na praça Tahrir (com oito executivos da defesa e das indústrias aeroespaciais), barganhou seus bens mortais à sua clientela gângster. Em resposta às críticas Cameron, alongando palavras quase além da compreensão, disse que não fornecer armas a estes regimes árabes era "negar aos povos seus direitos básicos", "racismo" e algo não-democrático. Ao regime de Kadafi foram vendidos até muito recentemente, entre outras coisas: rifles de longa distância, granadas de gás lacrimogêneo, armas para controle de multidões, munição para armas ligeiras, granadas de efeito moral, canhões antiaéreos, morteiros, veículos blindados de transporte de tropas, aviões militares, silenciadores de armas, miras, coletes à prova de balas e tecnologia de aviação militar.Foram todos, nas palavras do Gabinete de Relações Exteriores, "cobertos por garantias de que não seriam usados na repressão aos direitos humanos". A Grã-Bretanha teve, de longe, o maior espaço na última feira líbia de armamentos e na última semana, na feira de armas em Abu Dhabi: 10% de toda a exposição mundial era britânica. O ministro Gerald Howarth, liderando a delegação, declarou: "Nós temos planos ambiciosos". Ao mesmo tempo, o porta-voz de defesa do partido trabalhista, Jim Murphy, cujo governo empreendeu guerras no Iraque, Afeganistão e vários outros "teatros", tentando fazer um ponto político, mas mostrando a unidade da burguesia britânica, disse: "O Reino Unido tem uma responsabilidade além de suas fronteiras e precisa manter a força."Foi o governo trabalhista que abraçou e fortaleceu o regime de Kadafi e conduziu vendas de armas ao Líbano, ao Iêmen, à Jordânia, à Síria, ao Kuwait, ao Iraque, ao Marrocos, a Israel, ao Qatar, à Argélia, à Tunísia, aos Emirados Árabes, a Omã, ao Barein e ao Egito. E foi o governo trabalhista que esteve envolvido em toda a investigação do tráfico de armas dentro da BAE saudita de Al-Yamanah citando "interesse nacional" [1]. Agora que os LibDems (liberais-democratas) sentiram o gosto do poder, fugiram camuflados do terreno da alta moral. A secretária de negócios Vince Cable é cúmplice dos acertos e Nick Clegg vice primeiro-ministro, aparentemente responsável pelo país quando Cameron estava fora do comércio de morte e destruição, esquiando enquanto pessoas que protestavam pelo básico, transeuntes e crianças estavam sendo assassinados pelas armas fornecidas pela Inglaterra.Os crimes e a hipocrisia destes cúmplices de massacres são ilimitados e Cameron ainda propôs vender armas aos "rebeldes líbios", para quem são o governo líbio na espera, que deve derrubar Kadafi. E ao condenar o uso de "violência excessiva" pelo regime, (que está usando as armas que forneceu para essa finalidade), a Inglaterra seguiu os chamados da suposta "comunidade internacional" por sanções e ajuda humanitária – que mostraram ser no passado armas no interesse dos imperialismos concorrentes que executam-nas.A secretária de defesa Liam Fox tem buscado "ampliadas exportações de defesa" com "o Ministério da Defesa… à frente da estratégia de crescimento das exportações conduzidas pelo governo" e o ministro do comércio, Lord Green (ao lado de Vince Cable), disse que os ministros poderiam ser "responsabilizados" se as companhias falharem em obter negócios. A única negociação de armas que foi bloqueada nos últimos dois anos foi a venda de $65 milhões em helicópteros, rifles de assalto, carros blindados e metralhadoras ao pequeno estado africano da Suazilândia. Então, o governo britânico alegou que isto era porque estas armas poderiam ser usadas para uma "possível repressão interna". Mas os documentos da embaixada dos EUA publicados por Wikileaks mostram que os americanos interromperam a venda por causa de "preocupações com o usuário final", isto é, que as armas provavelmente iriam parar no Irã. Isto não impediu a Campanha Contra o Comércio de Armas (Campaign Against Arms Trade), de saudar a manobra como uma recusa a "vender armas a um conhecido abusador dos direitos humanos". Isto quando o total de armas britânicas para a África despedaçada por guerras chegou a mais de um bilhão de libras no ano passado.A Inglaterra naturalmente, não está sozinha neste comércio mortal, todos os grandes países estão envolvidos e a venda global de armas aumentou 60% desde 2002 para totalizar $400 bilhões (com base em números oficiais) em 2009. A BAE Systems britânica foi a segunda maior companhia envolvida nesse período com seus $33.25 bilhões atrás apenas da Lockheed Martin dos EUA. Mas é o papel da Grã-Bretanha na defesa e armamento do regime de Kadafi que é particularmente nauseante nas circunstâncias atuais; festejado pelo governo trabalhista, por financiadores, por acadêmicos e pela família real, o atual governo inglês de coalizão estava prestes a continuar o trabalho de preparar Saif al-Islam Kadafi (o filho do ditador) como seu apadrinhado no regime assassino.A Rússia, entre outros, igualmente abasteceu os regimes locais com armas; e a França, competindo com os EUA e a Grã-Bretanha no mediterrâneo, Magreb e Oriente Médio, forneceu a Kadafi mísseis antitanque, telecomunicações militares e manutenção para seus caças-bombardeiros Mirage. A classe dominante francesa não tem nada a aprender da Pérfida Albion [2]. Já enviou dois carregamentos aéreos de uma suposta ajuda "humanitária" da qual o primeiro-ministro francês diz: "será o começo de uma operação em massa de apoio humanitário para as populações dos territórios libertados".Não é só fornecendo o armamento a estes regimes assassinos que a Grã-Bretanha lucra estratégica e economicamente. As várias forças especiais fornecem treinamento aos assassinos como um acessório ao comércio de armas e, de modo não surpreendente, sem ter absolutamente nenhum escrúpulo. Uma das realizações das mais notáveis do SAS (força de elite inglesa) consistia em treinar os quadros do Khmer Vermelho genocida de Pol Pot nos anos 60. Mais recentemente, foi visto o papel dos oficiais de polícia de West Mercia e de Humberside treinando os esquadrões da morte do governo de Bangladesh.E, finalmente, vale a pena recordar que as armas de destruição em massa - químicas e biológicas -, que Kadafi supostamente abandonou para retornar aos braços da "comunidade internacional" estão ainda intactas nos bunkers estatais e são uma possível ameaça a um grande número de pessoas na região.
Baboon 01/03/11
World Revolution, órgão da CCI na Grã-Bretanha
"Democracy arms Gaddafi’s brutal repression [119]".
Por WorldRevolution
[1] Os atuais vazamentos de informações diplomáticas realizados por Wikileaks revelam que a British Aerospace Systems (BAE) há pelo menos 10 anos subornou príncipes árabes (mais de 73 milhões de libras), pagando também dinheiro não declarado para seus agentes de marketing empregados pelo governo árabe. O suborno serviu como "influência" para aceitação do contrato irregular com a empresa em Al-Yamanah. O governo trabalhista pressionou o fim da investigação em 2006, com apoio saudita, o que não impediu pedidos de reabertura no início de março.
[2] Apelido depreciativo da Inglaterra atribuído pela monarquia francesa na Guerra dos Cem Anos.
Os eventos na Líbia começaram a partir de um protesto em massa contra Kadafi, inspirado pelos movimentos no Egito e na Tunísia. O impulso para a explosão de raiva em muitas cidades parece ter sido a repressão brutal das primeiras manifestações. De acordo com The Economist (26/02/11), a faísca inicial foi a manifestação em Benghazi em 15 de Fevereiro,composta por aproximadamente 60 jovens. Manifestações similares ocorreram em outras cidades e foram todas recebidas à bala. Face aos incontáveis assassinatos de jovens, milhares tomaram as ruas em batalhas desesperadas contra as forças do Estado. Estas lutas testemunharam ações de grande coragem. A população de Benghazi, ouvindo falar que os mercenários estavam circulando no aeroporto, desceu em massa até ele e sobre seus guardas e tomaram-no, apesar das grandes perdas. Em outra ação, civis apropriaram-se de escavadeiras e outros veículos e atacaram quartéis fortemente armados. A população em outras cidades expulsou as forças repressivas do Estado. A única resposta do regime era sempre mais repressão, mas esta conduziu à dissolução de boa parte das forças armadas, como os soldados e os oficiais que recusaram cumprir ordens de matar manifestantes. Um soldado matou com um tiro um oficial-comandante que deu ordem de atirar para matar. Inicialmente esta parece ter sido uma explosão genuína de raiva popular confrontada com repressão brutal e crescente miséria econômica, especialmente por parte da juventude urbana.
A profunda crise econômica e uma recusa crescente em aceitar a repressão têm sido o grande plano de fundo dos movimentos na Tunísia, Egito e em outras partes no Oriente Médio e África do Norte. A classe trabalhadora e a população em geral sofreram anos de pobreza e de exploração brutais enquanto a classe dominante acumulou vasta riqueza.
Mas por que a situação na Líbia foi tão diferente daquela na Tunísia e no Egito? Naqueles países, quando havia repressão, o principal meio para trazer o descontentamento social sob controle foi o uso da democracia. Na Tunísia, as crescentes manifestações da classe trabalhadora e da maior parte da população contra o desemprego foram desviadas quase do dia para a noite para o beco sem saída da sucessão de Ben Ali. Sob a orientação dos militares dos EUA, os militares tunisianos disseram ao presidente para lançar esta isca. No Egito, a saída de Mubarak levou mais tempo para ser alcançada, mas mesmo sua resistência assegurou que o descontentamento focalizasse somente descartá-lo. Algo importante: uma das coisas que finalmente o afastaram foi a deflagração de lutas exigindo melhores salários e condições de vida. Isto mostrou que quando os trabalhadores participavam das manifestações em massa contra o governo não tinham esquecido seus próprios interesses e não estavam dispostos a pô-los de lado em nome de "dar uma chance à democracia".
No Egito e na Tunísia as forças armadas são a espinha dorsal do Estado e podiam pôr os interesses do capital nacional acima dos interesses de pequenas associações particulares. Na Líbia as forças armadas não têm o mesmo papel. O regime de Kadafi manteve deliberadamente as forças armadas fracas por décadas, juntamente com qualquer outra parte do Estado que pudesse ser uma área de influência para seus rivais. "Kadafi tentou manter os militares fracos, porque assim eles não poderiam derrubá-lo, como ele derrubou o rei Idris" diz Paul Sullivan, um perito em África do Norte na Universidade de Defesa Nacional (National Defense University), sediada em Washington. O resultado é "militares mal treinados, dirigidos por uma liderança mal treinada que está à beira do colapso, não muito estáveis pessoalmente, e com muitas armas extras circulando ao redor." (Bloomberg 02/03/11). Isto significa que a única resposta que o regime tem para qualquer descontentamento social é a repressão despida.
A própria brutalidade da resposta estatal varreu a classe trabalhadora em uma desesperada manifestação de raiva ao ver seus filhos sendo massacrados. Mas aqueles trabalhadores que se juntaram às manifestações fizeram-no em sua maior parte como indivíduos: apesar da grande coragem que tiveram até para fazer frente às armas de Kadafi, não puderam levar adiante seus próprios interesses de classe.
Na Tunísia, como dissemos, o movimento começou entre a classe trabalhadora e os pobres contra o desemprego e a repressão. O proletariado no Egito participou do movimento depois de tomar parte em diversas ondas de lutas nos anos recentes, e esta experiência deu-lhe confiança na sua habilidade de defender seus próprios interesses. A importância desta foi demonstrada no fim das manifestações contra Mubarak, quando estourou uma onda de greves.
O proletariado líbio participou no atual conflito em uma posição fraca. Houve relatos de uma greve em um campo petrolífero. Mas é impossível dizer se houve alguma outra expressão da atividade da classe trabalhadora. Pode ter havido, mas devemos dizer que a classe trabalhadora como uma classe está mais ou menos ausente. Isto significa que a classe no início esteve vulnerável a todo o veneno ideológico gerado por uma situação de caos e confusão. A aparição da velha bandeira monarquista e sua aceitação como símbolo da revolta em uma questão de alguns dias marcam como esta fraqueza é profunda. Esta bandeira chegou com o slogan nacionalista "de uma Líbia livre". Igualmente, tem havido algumas expressões do tribalismo, com o apoio ou oposição ao regime de Kadafi sendo determinados em alguns casos por interesses regionais ou tribais; e líderes tribais usando sua autoridade para se colocar à cabeça da rebelião. Parece estar havendo igualmente uma forte presença do islamismo com o canto de "Allah Akbar" ("Deus é grande"), que está sendo ouvido em muitas manifestações.
Este pântano de ideologia exacerbou uma situação onde dezenas - se não centenas - de milhares de trabalhadores estrangeiros sentiram a necessidade de fugir do país. Por que os trabalhadores estrangeiros se alinhariam atrás de uma bandeira nacional, não importa sua cor? Um verdadeiro movimento proletário incorporaria os trabalhadores estrangeiros desde o início porque as demandas seriam comuns: melhores salários, condições de trabalho e o fim da repressão para todos os trabalhadores. Estariam unidos porque sua força seria sua unidade, sem levar em conta nação, tribo ou religião.
Kadafi fez amplo uso de todo este veneno para tentar e conseguir o apoio dos trabalhadores e da população contra a alegada ameaça erguida à sua "revolução": estrangeiros, tribalismo, islamismo, o ocidente.
A maioria da classe trabalhadora odeia o regime. Mas o perigo real e mais grave para a classe trabalhadora é seguir a "oposição". Esta "oposição", com o "Novo Conselho Nacional" que assume cada vez mais uma posição de liderança, é um conglomerado de várias frações da burguesia: antigos membros do regime, monarquistas, etc., junto com líderes tribais e religiosos. Todos levaram ampla vantagem do fato de este movimento não ter nenhuma direção proletária independente - para impor seu desejo de substituir a gerência de Kadafi do Estado líbio pelas suas próprias.
O Conselho Nacional de Ehe é claro sobre o seu papel: "O objetivo principal do Conselho Nacional é ter uma cara política... para a revolução, " "nós ajudaremos a libertar outras cidades líbias, em particular Trípoli, através de nosso exército nacional, das nossas forças armadas, parte das quais anunciou seu apoio ao povo," (Reuters África, 27/02/11) "não existe tal coisa de uma Líbia dividida" (Reuters, 27/02/11). Em outras palavras, seu objetivo é manter a ditadura capitalista atual, mas com uma cara diferente.
No entanto, a oposição não está unida. O ex- ministro da justiça de Kadafi, Mustafa Mohamed Abud Ajleil anunciou a formação de um governo provisório no fim de fevereiro com o apoio de alguns ex-diplomatas. Era sediado em Al-Baida. Esta manobra foi rejeitada pelo Conselho Nacional sediado em Benghazi.
Isto mostra que dentro da oposição há profundas divisões que eventualmente explodirão se ela conseguir se livrar de Kadafi. Ou quando estes "líderes" se digladiarem para conservar suas peles se Kadafi conseguir permanecer no poder.
O Conselho Nacional tem um rosto público melhor. É encabeçado por Ghoga, conhecido advogado pró-direitos humanos e, assim, pouco manchado por ligações com o regime, ao contrário de Ajleil. Todos tentam vender o melhor possível este grupo à população.
A mídia fez muito estardalhaço sobre os comitês que brotaram nas cidades, povoados e regiões onde Kadafi perdeu o controle. Muitos destes comitês parecem ter sido autonomeados por dignitários locais. Mesmo se alguns deles foram expressões diretas da revolta popular, podem ter sido arrastados para o enquadramento estatista, burguês, do Conselho Nacional. Os esforços do Conselho Nacional para estabelecer um exército nacional significam somente morte e destruição da classe trabalhadora - e da população no seu conjunto -, enquanto este exército luta com as forças de Kadafi. A fraternização social, que ajudou originalmente a minar os esforços repressivos do regime, será substituída por intensas batalhas em uma frente puramente militar, enquanto a população será chamada a fazer sacrifícios para assegurar a luta do exército nacional.
A transformação da oposição burguesa em um novo regime está sendo acelerada pela defesa cada vez mais aberta pelas principais potências: EUA, Grã-Bretanha, França, Itália, etc. Os gângsteres imperialistas agora se afastam de seu ex-colega Kadafi a fim de assegurar de que se uma nova equipe chega ao poder, eles possam manter alguma influência sobre ela. O apoio será para aqueles que se ajustarem com os interesses imperialistas das grandes potências.
O que aparentemente começou como uma desesperada resposta à repressão por setores da população foi usada muito rapidamente pela classe dominante na Líbia e no exterior para seus próprios fins. Um movimento que começou como uma furiosa luta para deter o massacre de jovens terminou em outro massacre de jovens, mas agora em nome de uma Líbia livre.
O proletariado dentro e fora da Líbia só pode responder aumentando sua determinação para não se deixar afundar em lutas sangrentas entre facções da classe dominante - em nome da democracia ou de uma nação livre. Nos dias e nas semanas a seguir, se Kadafi segurar firmemente o poder, o coro internacional de apoio à oposição nesta guerra civil estará cada vez mais alto. E se for derrubado, haverá uma campanha igualmente ensurdecedora sobre o triunfo da democracia, do poder do povo e da liberdade. Em ambas as formas, os trabalhadores serão convidados a se identificar com a face democrática da ditadura do capitalismo.
Phil 05/03/11
World Revolution, órgão da CCI na Grã-Bretanha.
No The Guardian de 28/02/11, com o artigo intitulado "Como os líderes ‘revolucionários' da América Latina podem apoiar Kadafi?" Mike Gonzales critica os presidentes Ortega da Nicarágua e Chávez da Venezuela, juntamente com Fidel Castro, por expressarem simpatia por Kadafi e pelo governo líbio. Diz que "não podem apoiar um regime opressivo que enfrenta agora um movimento democrático de massas vindo de baixo" quando, aparentemente, o fazem.
A natureza exata do movimento está em aberto para a discussão, mas não pode haver nenhum pseudo-debate com o fato de que o estado capitalista líbio é repressivo.
Em contraste com o regime de Kadafi, Gonzales diz que Ortega e Chávez "chegaram ao poder como resultado de uma insurreição de massas" e que ao derrubar Batista, Castro "era imensamente popular". Independente das suas rotas ao poder Ortega, Chavez e Castro são partes integrantes da classe dominante capitalista em seus países. Acontece que Ortega e Chavez passaram a ser presidentes após eleições. Entretanto, quer estejam no poder através da urna eleitoral, quer estejam através de um golpe militar como Kadafi, fazem o melhor que podem para servir seus capitais nacionais.
O que Gonzales quer ouvir é uma denúncia apaixonada da repressão líbia e expressões de solidariedade com o povo. Sua explicação para a falha de seus heróis caídos é a de que "A Líbia investiu em todos os três países e se apresentou como um poder antiimperialista." Esta é uma explicação um pouco crua, parcialmente materialista. Na realidade, todos estes líderes de esquerda proclamam suas credenciais do antiimperialistas, e reconhecem Kadafi como um dos seus, um dos patrões que podem falar como 'radicais'. Enquanto isso, a classe trabalhadora explorada e outros estratos sociais oprimidos resistem à realidade capitalista que eles dirigem.
Há uma exceção a este padrão. O presidente iraniano Ahmadinejad criticou "o mau comportamento do governo líbio para com o povo" e disse que o estado deve escutar os desejos do povo. Isto é o que líderes ‘radicais' supostamente fazem, e, se criticam outros governos sua mensagem será transmitida por seus admiradores esquerdistas.
O golpe de Kadafi de1969 parece um pouco de diferentes através dos olhos do WRP, que publica "Newsline". Referem-se a ele como "a revolução líbia, através da qual o povo líbio tomou o controle do seu país do imperialismo da Inglaterra e dos EUA em 1969." (28/02/11).
Outros esquerdistas riem do WRP por causa dos acordos e comunicados que assinou com o governo líbio, em sua lealdade servil ao estado ‘socialista' líbio e ao Iraque de Saddam Hussein (ambos deram dinheiro ao WRP), a sua defesa da execução de stalinistas no Iraque, e toda uma série de atividades sórdidas de colaboração com regimes no Oriente Médio durante o final dos anos 70 e no início dos 80. Mesmo agora, depois que todas as contribuições líbias possivelmente secaram há muito tempo, "concitamos as massas e a juventude líbias a se posicionar ao lado do coronel Kadafi para defender as conquistas da revolução líbia, e para desenvolvê-las. Isto só pode ser feito pela derrota da rebelião atual" (Newsline 23/02/11), e publica um dos maiores trechos disponíveis do discurso de Kadafi "feito ao povo líbio... para reuni-lo contra as forças internas da contra-revolução e seus apoiadores da Inglaterra e dos EUA." (idem, 24/02/11).
Mas os esquerdistas que apontam o dedo acusador ao WRP por aceitar o dinheiro do regime sangrento de Kadafi são suspeitos para dizer alguma coisa. O que o WRP era pago para fazer a maioria de grupos esquerdistas faz de graça.
Tomemos o exemplo da guerra do Vietnã. Nos anos 60 e 70 o grupo International Socialists (que se tornaram o SWP mais tarde [2], descreveu o Vietnã do Norte como um ‘estado capitalista', quando trotskistas mais ortodoxos chamaram-no de ‘estado operário deformado', e os stalinistas chamaram-no de ‘socialista'. Estas diferenças pouco afetaram a insistência unitária da esquerda na necessidade dos trabalhadores e camponeses no Vietnã sacrificarem suas vidas pelo norte capitalista contra o sul capitalista.
Na guerra de oito anos entre Irã e Iraque nos anos 80, durante a qual aproximadamente um milhão de pessoas morreu, a esquerda pôs toda a ênfase em sua propaganda no apoio dos EUA e outros ao regime iraquiano de Saddam Hussein. Pode ter havido algumas reservas sobre o regime iraniano e sua ideologia religiosa arcaica, mas o consenso à esquerda era o de que era melhor morrer pelo Irã que pelo Iraque. Naturalmente, quando o Iraque estava sob ataque dos EUA e suas ‘coalizões' os esquerdistas descobriram um Saddam defensável, mesmo que a situação da classe trabalhadora não tenha sido alterada de modo nenhum.
Durante os conflitos que desintegraram a Iugoslávia no começo dos anos 90, os esquerdistas escolheram seu campo uma vez mais. A lógica da defesa da Bósnia ou de Kosovo levou ao apoio do bombardeio de Belgrado. O apoio à Sérvia e a uma Iugoslávia unida significou apoio aos massacres empreendidos por forças ‘oficiais' e paramilitares
A bestialidade do WRP é fácil de ver, mas o ‘apoio crítico' oferecido por outros esquerdistas para várias facções da burguesia é abertamente venenoso. Com os chamados à intervenção militar na Líbia crescendo em voz alta será interessante ver a quem os esquerdistas vão se unir. A experiência passada mostra que não será com a classe trabalhadora em defesa de seus interesses.
Car 04/03/11
World Revolution, órgão da CCI na Grã-Bretanha
https://en.internationalism.org/wr/342/leftists-gaddafi [121]
[1] Workers Revolutionary Party: Partido Revolucionário dos Trabalhadores, grupo trotskista inglês ligado ao PSOL brasileiro de Heloísa Helena e Plínio de Arruda Sampaio. É importante sublinhar que atualmente no Brasil (e também no exterior), todas as organizações burguesas "radicais" grandes e pequenas declaram solidariedade ao governo líbio diante da ameaça imperialista pró-EUA: o jornal getulista-stalinista-lulista (sim, eles podem!) "Hora do Povo", a LBI, o PSTU, etc.
[2] SWP: Socialist Workers Party, Partido Socialista dos Trabalhadores, outra agremiação trotskista inglesa. Mike Gonzales é integrante deste partido
Este artigo (escrito em 1975) é uma tentativa de análise dos acontecimentos de Kronstadt e das lições que deles se pode tomar, para o desenvolvimento do movimento operário de hoje e de amanhã. Nele são desenvolvidos os pontos essenciais para que os revolucionários compreendam o que herdamos daqueles episódios. Estes pontos podem ser resumidos da seguinte forma:
1 – A revolução proletária é, por sua própria natureza histórica, uma revolução internacional. Enquanto permanecer localizada no limite de um ou vários países isolados, tropeçará com dificuldades absolutamente insuperáveis e encontrar-se-á fatalmente condenada à morte a curto ou longo prazo.
2 – Ao contrário de outras revoluções na história, a revolução proletária exige a participação direta, constante e ativa do conjunto da classe. O que significa que nunca poderá aceitar a "delegação" do poder a um partido, nem a uma fração da classe ou um corpo especializado, por mais revolucionário que seja, sob pena de iniciar um processo de degeneração que suplante toda ela.
3 – A classe operária é a única revolucionária, não só na sociedade capitalista, mas também no período de transição, enquanto sigam subsistindo as classes a nível mundial. De modo que a autonomia total do proletariado com relação a outras classes e camadas sociais seguirá sendo a condição fundamental que vai lhe permitir exercer a hegemonia e sua ditadura de classe para a instauração da sociedade comunista.
4 – A autonomia do proletariado significa que sob nenhum pretexto as organizações unitárias e políticas da classe terão que se subordinar às instituições do Estado, pois isso equivaleria à dissolução destes órgãos de classe e levaria o proletariado a abdicar de seu programa comunista, do qual é o único sujeito.
5 – A marcha ascendente da revolução proletária não é conseqüência de tal ou qual medida econômica, por mais importante que essa seja. A única garantia do avanço da revolução é o programa, a visão e a ação política e total do proletariado. Em todo esse conjunto estão compreendidas as medidas econômicas imediatamente possíveis que se ajustam ao sentido do programa.
6 – A violência revolucionária é uma arma do proletariado frente às outras classes. Sob nenhum pretexto esta servirá de critério nem instrumento dentro da própria classe, porque não é um meio de tomada de consciência. Os únicos meios através dos quais o proletariado pode tomar consciência são sua própria experiência e o exame crítico constante dela. Com isto queremos dizer que o exercício da violência no interior da classe, seja qual for sua motivação e possível intensificação imediata, só pode impedir a atividade própria das massas e ser o maior obstáculo para sua tomada de consciência, que é condição indispensável para o triunfo do comunismo.
A revolta de Kronstadt em 1921 é a pedra de toque que separa os que podem compreender o processo e a evolução da revolução proletária graças a suas posições de classe, daqueles outros que consideram a revolução como letra morta. Esses acontecimentos ressaltam de forma trágica algumas das mais importantes lições de toda a revolução russa, lições que o proletariado não pode ignorar e ainda mais no momento em que está preparando seu próximo grande levante revolucionário contra o capital.
Qualquer estudo marxista do problema de Kronstadt só pode partir da afirmação de que a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia foi proletária, um momento no desenvolvimento da revolução proletária mundial que era a resposta da classe operária internacional à guerra imperialista de 1914-18. Esta guerra foi o marco que destacou a entrada definitiva do capitalismo em seu ocaso histórico irreversível, tornando, assim, a revolução proletária uma necessidade material em todos os países. Devemos afirmar também que o partido bolchevique, que era a vanguarda da revolução de outubro, era um partido comunista proletário, uma força vital na esquerda internacional após a traição da II Internacional em 1914 e que seguiu defendendo as posições de classe do proletariado durante a Primeira Guerra Mundial e no período subsequente.
Ao contrário dos que falam da insurreição de outubro como um simples "golpe de Estado", um putsch, realizado por uma camarilha de conspiradores, nós repetimos que a insurreição foi o ponto culminante de um longo processo de luta de classes e a prova da maturação da consciência da classe operária organizada em sovietes, comitês de fábrica e guardas vermelhos. A insurreição era parte de um processo de destruição do Estado burguês e de instauração da ditadura do proletariado; os bolcheviques defenderam-na com unhas e dentes como algo que devia marcar a primeira baliza decisiva da revolução proletária mundial, da guerra civil contra burguesia. Como estava longe do espírito dos bolcheviques, naquele momento, a ideia de que a insurreição teria mais tarde como fim a "construção do socialismo unicamente na Rússia", apesar do número de erros e confusões que continha o programa econômico imediato da revolução, erros que, por outro lado, eram compartilhados na época pelo movimento operário em seu conjunto.
Só deste modo se pode esperar compreender a degeneração posterior da revolução russa. Como este problema é abordado em outro texto da revista da CCI (A degeneração da Revolução Russa [1]), limitar-nos-emos aqui a algumas observações gerais. A revolução iniciada em 1917 não conseguiu se estender internacionalmente apesar das numerosas tentativas que houve em toda Europa. A própria Rússia encontrava-se dilacerada por uma longa e sangrenta guerra civil que devastou a economia e fragmentou a classe operária industrial, coluna vertebral do poder dos sovietes. Neste contexto de isolamento e de caos interno, os erros ideológicos dos bolcheviques começaram a exercer um peso material contra a hegemonia política da classe operária, quase imediatamente depois de ter tomado o poder. No entanto, era um processo irregular. Os bolcheviques recorriam a medidas cada vez mais burocráticas na própria Rússia pelos anos 1918-20, ao mesmo tempo em que contribuíam para fundar a Internacional Comunista (IC) em 1919, com um único e claro objetivo que era acelerar a revolução proletária mundial.
A delegação do poder a um partido, a eliminação dos comitês de fábrica, a subordinação progressiva dos sovietes ao aparato de Estado, a dissolução das milícias operárias, o modo "militarizado" cada vez mais acentuado de se enfrentar as dificuldades, resultado dos períodos de tensão durante a guerra civil, a criação de comissões burocráticas, eram manifestações evidentes do processo de degeneração da revolução russa.
Estes fatos não são os únicos sinais de enfraquecimento do poder político da classe operária, mas são com toda segurança os mais importantes. Foi, sobretudo, durante a guerra civil quando se pôde observar uma acentuação do processo, embora alguns sintomas já fossem visíveis antes do período do comunismo de guerra. Uma vez que a rebelião de Kronstadt foi, em muitos aspectos, uma reação contra os rigores do comunismo de guerra, será preciso mostrar aqui com especial clareza o significado real que teve este período para o proletariado russo.
Como destaca o artigo sobre a "degeneração da revolução russa", [2] agora nós não podemos seguir mantendo as ilusões dos comunistas de esquerda daquela época, que, em sua maioria, viam no comunismo de guerra uma "verdadeira" política socialista, contra a restauração do capitalismo estabelecida pela NEP (Nova Política Econômica). O desaparecimento quase total do dinheiro e dos salários, a requisição dos cereais aos camponeses não significavam a abolição das relações sociais capitalistas, senão que eram simples medidas de urgência impostas pelo bloqueio econômico capitalista contra a República dos Sovietes e pelas necessidades da guerra civil. Quanto ao poder político real da classe operária, já vimos que aquele período esteve marcado por uma debilitação progressiva dos órgãos da ditadura do proletariado e pelo desenvolvimento de tendências burocráticas e institucionais. A direção do Partido-Estado empenhava-se em demonstrar que a organização da classe era excelente em princípio, porém, naquelas circunstâncias, era melhor subordinar tudo à luta militar. A doutrina da "eficácia" começava a minar os princípios fundamentais da democracia proletária. Baseando-se nesta doutrina, o Estado começou a instaurar uma militarização do trabalho, que submetia os trabalhadores a métodos de vigilância e exploração extremamente severos. "Em janeiro de 1920, o Conselho de Comissários do Povo, instigado principalmente por Trotsky, decretou a obrigação geral de trabalhar aplicável a todos os adultos válidos, ao mesmo tempo que autorizava o destino do pessoal militar ocioso a serviços civis." (Avrich, Kronstadt 1921. Princetown, p. 26-27. Tradução nossa)
Ao mesmo tempo, as tropas do exército vermelho reforçavam a disciplina de trabalho nas fábricas. Debilitados os comitês de fábrica, o Estado tinha via livre para introduzir a direção personalista e o Sistema Taylor de exploração, anteriormente criticado por Lênin como "escravização do homem pela máquina". Para Trotsky, "a militarização do trabalho é o método de base indispensável para a organização de nossa mão de obra". (Relatório do III Congresso dos Sindicatos de toda a Rússia. Moscou 1920. Tradução nossa). O fato de que o Estado fosse naquele momento um "Estado Operário" significava, para ele, que os trabalhadores não poderiam colocar objeções à sua total submissão ao Estado.
Mas as duras condições de trabalho das fábricas não eram recompensadas com salários elevados ou um fácil acesso aos "valores de uso". Pelo contrário, os estragos que o bloqueio e a guerra tinham feito na economia fizeram que logo aparecesse o espectro da fome. Os trabalhadores tinham que se conformar com rações cada vez mais escassas e distribuídas com frequência de modo irregular. Amplos setores da indústria deixaram de funcionar e milhares de trabalhadores foram abandonados aos seus próprios meios, ou aos de sua imaginação para sobreviver. A reação de muitos deles foi renunciar à cidade e buscar a subsistência no campo. Muitos tentaram sobreviver negociando diretamente com os camponeses, trocando frequentemente ferramentas roubadas na fábrica por alimentos. Quando o regime do comunismo de guerra proibiu a troca entre indivíduos, encarregando o Estado da requisição e distribuição de bens essenciais, muita gente só pôde sobreviver graças ao mercado negro que se difundiu em todo o país. Para lutar contra esse mercado negro o governo criou obstáculos para fiscalizar todos os viajantes que entravam ou saiam das cidades, enquanto as atividades da Cheka (polícia política) para reforçar os decretos do governo tornavam-se cada vez mais enérgicas. Esta "Comissão Extraordinária" estabelecida em 1918 para combater a contrarrevolução funcionava de um modo mais ou menos sem controle. Seus métodos impiedosos valeram-lhe o ódio geral da população.
Nem o tratamento sumário dispensado aos camponeses ganhou a aprovação universal dos trabalhadores. As estreitas relações familiares e pessoais que existiam entre muitos setores da classe operária russa e o campesinato tornavam os trabalhadores especialmente sensíveis às queixas dos camponeses sobre os métodos que costumavam utilizar os destacamentos armados enviados para a requisição de cereais, sobretudo quando estes requeriam-lhes mais do que lhes sobrava para viver, deixando-os sem os meios necessários para satisfazer suas necessidades. O resultado que deram estes métodos foi que, com freqüência, os camponeses escondiam ou destruíam suas colheitas, agravando a situação de pobreza e penúria em todo o país. A impopularidade geral destas medidas econômicas coercitivas seria exposta mais tarde no programa dos insurgentes de Kronstadt como veremos depois.
Se alguns revolucionários, como Trotsky, tinham tendência a converter a necessidade em virtude e a glorificar a militarização da vida econômica e social, outros, como Lênin, faziam prova de maior prudência. Lênin não dissimulava o fato de que os sovietes já não funcionavam como órgãos diretos do poder proletário e durante o debate sobre o problema dos sindicados em 1921 com Trotsky, defendeu a ideia de que os trabalhadores deviam defender-se por si próprios contra seu Estado, particularmente desde que, segundo Lênin, a república dos sovietes já não era somente um "Estado proletário", senão um "Estado de operários e camponeses" com profundas "deformações burocráticas". A Oposição Operária e, com certeza, outros grupos de esquerda, chegaram mais longe na denúncia destas deformações burocráticas que o Estado sofrera no período 1918-21. Mas, a maioria dos bolcheviques acreditavam sincera e firmemente que enquanto eles (o partido do proletariado) controlassem o aparato de Estado, a ditadura do proletariado seguiria existindo, apesar das massas trabalhadoras terem desaparecido temporariamente da vida política. Esta posição, fundamentalmente falsa, provocaria inevitavelmente consequências desastrosas.
Enquanto durou a guerra civil, o Estado dos sovietes seguia conservando o apoio da maioria da população, pois havia se identificado com o combate contra as antigas classes possuidoras e capitalistas. As duras privações da guerra civil foram suportadas com relativa boa vontade pelos trabalhadores e pequenos camponeses. Mas, depois da derrota dos exércitos imperialistas, muitos acreditaram que podiam esperar que as condições de vida fossem, a partir de então, menos severas e que o regime flexibilizasse um pouco o controle da vida econômica e social.
A direção bolchevique, no entanto, confrontada com os estragos que a guerra fizera na produção, mostrou-se bastante reticente em permitir ao menos o relaxamento do controle estatal centralizado. Alguns bolcheviques de esquerda, como Ossinsky, defendiam a manutenção e inclusive o reforço do comunismo de guerra, sobretudo no campo. Dessa forma, propôs um plano para a "organização obrigatória das massas para a produção" [3], sob a direção do governo para a formação de "comitês de semeadura" locais. Estes comitês teriam como objetivo o aumento da produção coletivizada e a criação de armazéns de sementes comuns, nos quais os camponeses deveriam reunir todos os grãos; o governo encarregar-se-ia da distribuição destes grãos. Todas estas medidas (pensava Ossinsky) conduziriam naturalmente à economia "socialista" na Rússia.
Os outros bolcheviques, como Lênin, começaram a pressentir a necessidade de suavizar um pouco a pressão, especialmente quanto aos camponeses, mas, no conjunto, o partido defendia com unhas e dentes os métodos do comunismo de guerra. O resultado foi que a paciência dos camponeses começou a se esgotar e no inverno de 1920-21 registraram-se vários levantes destes em todo o país. Na província de Tambov, na região média do Volga, na Ucrânia, na Sibéria ocidental e em muitas outras regiões, os camponeses organizaram-se em bandos armados muito rapidamente, para lutar contra os destacamentos de abastecimento e a Cheka. Muito frequentemente, alistaram-se em suas fileiras soldados recém licenciados do exército vermelho que lhes aportavam certas noções de estratégia militar. Em algumas regiões, formaram-se enormes exércitos rebeldes, a meio caminho entre a guerrilha e a horda de bandidos. Em Tambov, por exemplo, o exército que estava sob o comando de A. S. Antonov, chegou a contar com até 50.000 homens. Era pouca a motivação ideológica destas forças, caso com exceção do tradicional ressentimento dos camponeses contra a cidade, contra o governo centralizado e os clássicos sonhos de independência e autossubsistência que sempre teve a pequena burguesia rural. Depois do enfrentamento com as tropas camponesas de Makhno na Ucrânia, a possibilidade de um levantamento generalizado contra o poder dos sovietes era algo que atormentava os bolcheviques. Nada tem de estranho, pois, que compreendessem o levante de Kronstadt como esta ameaça que lhes fazia mais propriamente o campesinato. Esta foi, sem dúvida, uma das razões pelas quais reprimiram com tanta selvageria o levante de Kronstadt.
Quase imediatamente depois, surgiu em Petrogrado uma série de greves selvagens muito mais importantes. Tudo começou na fábrica metalúrgica de Trubochny e estendeu-se rapidamente a muitas outras grandes indústrias da cidade. Nas assembleias de fábrica e nas manifestações, adotavam-se resoluções que reclamavam um aumento das rações de alimentos e roupa, pois muitos deles passavam fome e frio. Ao mesmo tempo, iam aparecendo outro tipo de reivindicações, estas mais políticas: os operários queriam que terminassem as restrições sobre os deslocamentos para fora das cidades, a libertação dos prisioneiros da classe operária, a liberdade de expressão, etc. As autoridades soviéticas da cidade, encabeçadas por Zinoviev, responderam denunciando que as greves serviam aos propósitos da contrarrevolução e puseram a cidade sob controle militar direto, proibindo as assembleias nas ruas e ordenando o toque recolher às 11 h da noite. Sem dúvida alguma, certos elementos contrarrevolucionários como os mencheviques ou os S.R. jogaram um papel nos acontecimentos com suas teorias falaciosas sobre a "salvação", mas o movimento de greve de Petrogrado era essencialmente uma resposta proletária espontânea às condições de vida insuportáveis. Mas as autoridades bolcheviques não podiam admitir que os operários se pusessem em greve contra o "Estado Operário" e taxaram os grevistas de provocadores, preguiçosos e individualistas. Trataram também de romper a greve fechando fábricas, privando-as de suas rações e ordenando a detenção dos líderes mais destacados pela Cheka local. Estas medidas repressivas foram combinadas com concessões: assim, Zinoviev anunciava ao mesmo tempo o fim do bloqueio das estradas dos arredores da cidade, a compra de carvão no exterior para fazer frente à penúria de combustível e o projeto para acabar com as requisições de cereais. Esta mistura de repressão e conciliação conduziu os trabalhadores, já debilitados e esgotados, ao abandono da sua luta na esperança de um futuro mais promissor.
Mas o eco mais importante que o movimento de greve de Petrogrado teve foi na fortaleza próxima de Kronstadt. A guarnição de Kronstadt, um dos principais baluartes da Revolução de Outubro, havia travado uma luta contra a burocratização antes das greves de Petrogrado. Durante os anos 1920-21 os marinheiros da frota vermelha no Báltico haviam combatido as tendências disciplinares dos oficiais e as habilidades burocráticas do POUBALT (secção política da frota do Báltico, o órgão do Partido que dominava a estrutura soviética da marinha). Em fevereiro de 1921, as assembleias de marinheiros votaram moções declarando que "o POUBALT não apenas se separou das massas, mas inclusive dos funcionários ativos. Converteu-se num órgão burocrático sem nenhuma autoridade entre os marinheiros". (Ida Mett, A Comuna de Kronstadt, Solidarity pamphlet. p. 3).
Assim estavam as coisas quando chegaram notícias das greves de Petrogrado e de que as autoridades haviam declarado a lei marcial. Já havia certo estado de fermentação entre os marinheiros? O certo é que em 28 de fevereiro, enviaram uma delegação às fábricas de Petrogrado para ver o que estava acontecendo. No mesmo dia, a tripulação do cruzeiro Petropavlosk reuniu-se para discutir a situação e adotar a seguinte resolução:
"Depois de ter ouvido os representantes delegados pela Assembleia geral das tripulações dos navios com o objetivo de conhecer a situação de Petrogrado, os marinheiros decidem:1 – Organizar novas eleições para os sovietes com voto secreto e preparação prévia da livre propaganda eleitoral, já que os atuais sovietes não expressam a vontade dos operários e camponeses.2 – Exigir a liberdade de palavra e de imprensa para os operários, os camponeses, os anarquistas e os socialistas de esquerda.3 – Exigir a liberdade de reunião, de organizações sindicais e de organizações camponesas.4 – Organizar uma conferência de operários sem partido, soldados e marinheiros de Petrogrado, de Kronstadt e da província de Petrogrado para antes de 10 de março de 1921.5 – Exigir a libertação de todos os prisioneiros políticos dos partidos socialistas, operários e camponeses, soldados vermelhos e marinheiros encarcerados por terem participado dos diferentes movimentos operários e camponeses.6 – Eleger uma comissão para a revisão dos expedientes processuais dos detidos nos cárceres e campos de concentração.7 – Suprimir todos os Politotdiel (secções políticas), pois nenhum partido deve ter privilégios para a propaganda de suas ideias nem receber ajuda do Estado com este fim. Em seu lugar, serão criados círculos culturais eleitos que serão financiados pelo próprio Estado.8 – Suprimir imediatamente todos os destacamentos de controle nas estradas e vias.9 – Igualar as rações de todos os trabalhadores com a única exceção dos ofícios insalubres e perigosos.10 – Suprimir os destacamentos comunistas de combate nas unidades militares e fazer desaparecer o serviço de guarda comunista das fábricas. Em caso de necessidade destes serviços de guarda, serão designados em cada unidade, depois de consultar a opinião dos operários.11 – Dar aos camponeses completa liberdade de ação sobre suas terras e conceder-lhes o direito de possuir gado que eles mesmos criarão sem utilizar, em nenhum caso, o trabalho de pessoal assalariado.12 – Pedir a todas as unidades militares, e igualmente aos camaradas Kursantys [Nota da redação: aspirantes] que se associem à nossa resolução.13 – Exigir que a imprensa faça amplo eco de todas estas resoluções.14 – Designar um comitê volante de controle.15 – Autorizar a livre produção artesanal, sempre que não se utilize para ela pessoal assalariado."
Esta resolução converteu-se rapidamente no programa da revolta de Kronstadt. Em primeiro de março houve uma assembleia de massa na guarnição que reuniu 16.000 pessoas. Oficialmente havia sido convocada como uma assembleia da primeira e da segunda secções de cruzeiros. A ela assistia Kalinin, presidente do executivo dos sovietes de toda a Rússia, e Kouzmin, comissário político da frota do Báltico. Ainda que Kalinin tenha sido acolhido com música e bandeiras, logo ficou completamente isolado na assembleia, assim como Kouzmin. A assembleia inteira adotou a resolução do Petropavlosk, menos Kalinin e Kouzmin, que tomaram a palavra com um tom provocador para denunciar as iniciativas que haviam sido tomadas em Kronstadt. No fim, foram vaiados.
No dia seguinte, dois de março, era o dia em que o Soviete de Kronstadt devia ser reeleito. A Assembleia de 1º de março convocou, então, os delegados dos barcos, das unidades do exército vermelho, das fábricas, a uma reunião para tratar da reconstituição do Soviete. Uns 300 delegados encontraram-se na casa de cultura. A resolução do Petropavlosk foi novamente adotada, assim como os projetos para a eleição do novo Soviete apresentados em uma moção orientada a "uma reconstrução pacífica do regime dos sovietes." (Ida Mett, op. cit.) Ao mesmo tempo, os delegados formaram um comitê revolucionário provisório (CRP), encarregado da administração da cidade e da organização da defesa contra toda intervenção do governo. Considerou-se que esta última tarefa era a mais urgente, pois corriam rumores sobre um ataque imediato dos destacamentos bolcheviques, em função das violentas ameaças de Kalinin e Kouzmin. Estes últimos adotaram uma atitude tão inflexível que foram detidos com outras personalidades oficiais. Com este último ato, a situação converteu-se já num motim declarado e foi interpretado pelo governo como tal.
O CRP pôs imediatamente mãos à obra. Começou a publicar seus próprios Izvestia, cujo primeiro número declarava: "O partido comunista, senhor do Estado, separou-se das massas. Demonstrou sua incapacidade para tirar o país do caos. Inumeráveis acidentes ocorreram recentemente em Moscou e em Petrogrado, os quais demonstram claramente que o Partido perdeu a confiança dos trabalhadores. O partido não faz caso das necessidades da classe operária, porque pensa que estas reivindicações são fruto de atividades contrarrevolucionárias. Ao atuar assim, o Partido incorre em um grande erro." (Izvestia do CRP. 3 de março de 1921)
A resposta imediata do Governo Bolchevique à rebelião foi denunciá-la como mais uma faceta da conspiração contrarrevolucionária contra o poder dos sovietes. A Rádio Moscou a chamava de "complô da Guarda Branca" e afirmava possuir provas de que tudo fora organizado pelo círculo de emigrantes de Paris e pelos espiões da Entente. Ainda que estas falsificações continuem sendo utilizadas hoje em dia, já não se lhes dá muito crédito, nem sequer historiadores semitrotskistas, como Deutscher, que considera estas acusações desprovidas de fundamento real. Com certeza, todos os carniceiros da contrarrevolução, desde a Guarda Branca até os S.R. trataram de recuperar a rebelião e lhe ofereceram seu apoio. Mas, apesar da ajuda "humanitária" que chegou através da Cruz Vermelha russa, controlada pelos emigrantes, o CRP rechaçou todas as proposições feitas pela reação. Em vez disso, proclamou bem alto que não lutavam por um retorno à autocracia nem à Assembleia Constituinte, mas lutavam por uma regeneração do poder dos sovietes, liberado do domínio burocrático: "a defesa dos trabalhadores são os sovietes e não a Assembleia Constituinte" [4], declaravam o Izvestia de Kronstadt.
Quando ficou demonstrado que a ideia de um simples complô era pura ficção, os que se identificavam de uma forma não crítica com a decadência do Bolchevismo, apresentaram desculpas mais elaboradas para justificar a repressão de Kronstadt.
Em "Hue and Cry over Kronstadt" (New International. Abril 1938), Trotsky apresentou a seguinte argumentação: é certo, Kronstadt foi um dos baluartes da revolução proletária em 1917. Mas durante a guerra civil, os elementos revolucionários proletários da guarnição foram dispersados e substituídos por elementos camponeses impregnados da ideologia pequeno-burguesa reacionária. Esses elementos não podiam resistir aos rigores da ditadura do proletariado e da guerra civil, rebelaram-se com o objetivo de debilitar a ditadura e outorgar-se rações privilegiadas. O levantamento de Kronstadt não era senão uma reação armada da pequena burguesia contra os sacrifícios da revolução social e a austeridade da ditadura do proletariado". Trotsky continua dizendo que os trabalhadores de Petrogrado, ao contrário dos dândis de Kronstadt, suportaram estes sacrifícios sem se queixar e terminaram "aborrecidos com a rebelião", porque se deram conta de que "os amotinados de Kronstadt estavam do outro lado da barricada" e, portanto, haviam decidido "emprestar seu apoio aos sovietes."
Não interessa agora passar muito tempo examinando estes argumentos; os fatos que citamos os desmentem. A afirmação de que os insurgentes de Kronstadt reclamavam rações privilegiadas para eles mesmos fica desmentida se nos remetemos ao ponto 9 da resolução do Petropavlosk, que reclamava rações iguais para todos. Do mesmo modo, o retrato dos operários de Petrogrado emprestando docilmente seu apoio à repressão se desmente pela realidade das greves que precederam à revolta. Embora este movimento tivesse decaído muito no momento em que a revolta de Kronstadt estourou, importantes frações do proletariado de Petrogrado seguiram apoiando de forma efetiva aos insurgentes. Em 7 de março, dia em que começou o bombardeio de Kronstadt, os trabalhadores do arsenal reuniram-se em comício e elegeram uma comissão encarregada de lançar uma greve geral para sustentar a rebelião. Em Pouhlov, Battisky, Oboukov e nas principais empresas continuavam as greves.
Por outro lado, não vamos negar que havia elementos pequeno-burgueses no programa e na ideologia dos insurgentes e no pessoal da frota e do exército. Mas, todos os levantes proletários vêm acompanhados de uma quantidade de elementos pequeno-burgueses e reacionários, o que não mudam o caráter fundamentalmente operário do movimento. Isto foi sem dúvida o que ocorreu inclusive na insurreição de outubro, que contava com o apoio e a participação ativa de elementos camponeses nas forças armadas e no campo. A composição da assembleia de delegados de 2 de março demonstra que os insurgentes tinham uma ampla base operária. Ela era formada em grande parte por proletários das fábricas, das unidades da marinha da guarnição e do conjunto do CRP eleito pela assembleia. O CRP era formado por veteranos trabalhadores e marinheiros que haviam participado do movimento revolucionário, pelo menos desde 1917. (Veja-se a obra mencionada de Ida Mett para a análise da lista de membros deste comitê). Mas estes fatos são menos importantes que o contexto geral da revolta: esta, aconteceu no contexto da luta da classe operária contra a burocratização do regime, identificava-se com esta luta e era compreendida como um momento de sua generalização.
Os anarquistas, ideólogos da pequena burguesia, falavam de Kronstadt como sendo sua revolta. Apesar de ter havido, sem qualquer sobra de dúvida, influências anarquistas no programa dos insurgentes e em sua ideologia, as reivindicações não eram simplesmente anarquistas. Não reclamavam uma abolição abstrata do Estado, mas a regeneração do poder dos sovietes. Tampouco queriam abolir os "partidos" como tais. Embora muitos insurgentes tenham abandonado o partido bolchevique naquela época e apesar de terem sido publicadas muitas resoluções confusas sobre a "Tirania Comunista", nunca propuseram "os Sovietes sem os comunistas", como se afirmou muito frequentemente. Suas bandeiras eram de liberdade de agitação aos diferentes grupos da classe operária e "o poder aos sovietes, não aos partidos". Apesar de todas as ambiguidades que estas bandeiras comportavam, expressavam uma rejeição instintiva da ideia de partido que suplanta a classe, o qual foi um dos principais fatores que contribuíram para a degeneração do bolchevismo.
Um dos traços característicos da rebelião é que não apresentava uma análise política clara e coerente da degeneração da revolução. Tais análises deveriam encontrar expressão no seio das minorias comunistas, embora, em certas conjunturas específicas, estas minorias sejam pouco a pouco rejeitadas no que diz respeito à consciência espontânea do conjunto da classe. No caso da revolução russa, foi preciso que se passassem várias décadas de árdua reflexão na Esquerda Comunista Internacional para chegar a uma compreensão coerente do que era a degeneração. O levante de Kronstadt representava uma reação elementar do proletariado contra esta degeneração, uma das últimas manifestações de massa da classe operária russa naquela época. Em Moscou, Petrogrado e Kronstadt, os trabalhadores lançaram um pedido de socorro desesperado para salvar a revolução russa que começava a declinar.
Muitas foram as polêmicas a propósito da relação entre as reivindicações rebeldes e a NEP (Nova Política Econômica). Para stalinistas inveterados como os da Organização Comunista Inglesa e Irlandesa – B&ICO (Problema do Comunismo nº 3), foi preciso massacrar a rebelião porque seu programa econômico de troca e de livre comércio era uma reação pequeno-burguesa contra o processo de "construção do socialismo" na Rússia – socialismo significava, com certeza, a maior concentração possível de Capitalismo de Estado. Mas, ao mesmo tempo, a B&ICO defende a NEP como uma etapa rumo ao socialismo! O reverso da medalha está representado pelo anarquista Murray Bookchin que, em sua introdução à edição canadense de "A Comuna de Kronstadt" (Black Rose Book, Montreal, 1971) nos descreve o paraíso libertário que teria sido possível realizar-se simplesmente aplicando o programa econômico dos rebeldes:
Bookchin acrescenta em continuação, misteriosamente, que tal sociedade só poderia sobreviver se houvesse um forte movimento revolucionário no ocidente para apoiá-la. É de se perguntar a quem ocorre pensar que tais sonhos de vendedor de autogestão iriam representar uma ameaça para o capital mundial.
De todos os modos, esta controvérsia tem bem pouco interesse para os comunistas. Dado que a onda revolucionária havia fracassado, forçoso é reconhecer que nenhum tipo de política econômica, chame-se comunismo de guerra, autarquia, NEP ou programa de Kronstadt, poderia salvar a revolução. Por outro lado, muitas das reivindicações puramente econômicas apresentadas pelos rebeldes estavam mais ou menos incluídas na NEP. Ambos são inadequados enquanto programas econômicos e seria absurdo que os revolucionários de hoje reivindicassem troca ou livre comércio como medidas adequadas para um baluarte proletário, ainda que, em circunstâncias críticas, seja impossível eliminá-las. A diferença essencial entre o programa de Kronstadt e a NEP é a seguinte: enquanto esta última deveria ser implantada a partir de cima, pela nascente burocracia de estado, em cooperação com as direções privadas e capitalistas restantes, os insurgentes de Kronstadt propunham a restauração do poder autêntico dos sovietes e o fim da ditadura estatal do Partido Bolchevique como premissa de qualquer avanço revolucionário.
É o verdadeiro centro do problema. De nada serve discutir agora sobre a política econômica mais socialista naquele momento. Os insurgentes de Kronstadt compreendiam isso talvez menos que os bolcheviques mais ilustrados. Os insurgentes, por exemplo, falavam do estabelecimento de um "socialismo livre" (independente) na Rússia, sem insistir na necessidade de extensão da revolução em escala mundial antes de tentar realizar o socialismo.
A avaliação prudente que fez Lênin das possibilidades socialistas de progresso naquela época, embora logo tenha desembocado em conclusões reacionárias, era de fato uma aproximação que corresponderia mais à realidade que às esperanças que tinham os de Kronstadt da possibilidade de autogerir sua comuna no seio da Rússia.
Mas Lênin e a direção bolchevique, de pés e mãos atadas como estavam pelo aparato de Estado, não alcançaram compreender o que queriam dizer os insurgentes de Kronstadt de forma confusa, é certo, e com ideias mal formuladas: a revolução não pode dar um passo que seja sem que os trabalhadores a dirijam. A condição prévia e fundamental para a defesa da extensão da Revolução na Rússia era: todo poder aos Sovietes, quer dizer, a reconquista da hegemonia política pelas próprias massas operárias. Como foi sublinhado no artigo A Degeneração da Revolução Russa, esta questão do poder político é muito mais importante. O proletariado no poder pode fazer progressos econômicos importantes, ou estar obrigado a suportar regressões econômicas sem que por isso permita que a Revolução se perca. Mas, uma vez que haja desmoronado o poder político da classe, não há medida econômica que possa salvar a revolução. Justo porque os rebeldes de Kronstadt lutavam pela reconquista deste indispensável poder político proletário, os revolucionários de hoje devem reconhecer na luta de Kronstadt uma defesa das posições de classe fundamentais.
A direção bolchevique opôs uma dura resistência à rebelião de Kronstadt. Já chamamos a atenção para o comportamento provocador de Kouzmin e Kalinin na guarnição, os boatos difundidos pela Rádio Moscou dizendo que se tratava de uma tentativa contrarrevolucionária da Guarda Branca. A atitude intransigente do governo bolchevique eliminou rapidamente toda possibilidade de acordo ou de discussão. A advertência urgente que Trotsky dirigiu à guarnição pedia a rendição incondicional e sem nenhuma oferta de concessão às exigências dos insurgentes. O chamado para Kronstadt emitido por Zinoviev e pelo Comitê de Defesa de Petrogrado (o orgão que havia submetido a cidade à lei marcial depois da onda de greves) é sobejamente conhecido por sua crueldade, como demonstra a ordem dada aos soldados: "disparem como se fossem perdizes", se os rebeldes resistirem. Zinoviev organizou também a captura de reféns entre os familiares dos insurgentes, sob o pretexto que o CRP havia detido alguns oficiais bolcheviques (sem que sofressem nenhum dano). Os insurgentes consideraram estas ações como infames e negaram a se dobrar diante das ameaças. Durante o assalto, as unidades enviadas para esmagar a rebelião estiveram constantemente à beira da desmoralização. Houve inclusive casos de confraternização com os amotinados. Para "assegurar-se" da lealdade do exército, foram destacados alguns eminentes dirigentes do Partido Bolchevique, que se encontrava então em sessão, para que se dirigissem ao lugar; entre eles havia membros da Oposição Operária que queriam deixar bem claro que eles não tinham nada a ver com o levante. Ao mesmo tempo, os fuzis da Cheka estavam por trás, apontando para os soldados, como segurança complementar de que a desmoralização não se propagaria.
Quando, por fim, caiu a fortaleza, centenas de insurgentes foram exterminados, executados sumariamente ou condenados rapidamente à morte pela Cheka. Aos demais, mandaram-nos a campos de concentração. A repressão foi levada a cabo sem piedade. Para apagar todas as pegadas do levante, puseram a cidade sob controle militar. Dissolveram o Soviete e fizeram um expurgo de todos os elementos dissidentes. Até os soldados que haviam participado da repressão da revolta foram dispersos imediatamente em unidades distintas, para impedir que se propagassem os "micróbios" de Kronstadt. Medidas análogas foram tomadas com as unidades da marinha consideradas "pouco confiáveis."
O desenvolvimento dos acontecimentos na Rússia durante os anos que se seguiram à revolta tornam absurdas as declarações que pretendem que a repressão da rebelião era uma "necessidade trágica" para defender a revolução. Os bolcheviques acreditavam que defendiam a revolução contra a ameaça da reação representada pela Guarda Branca, neste porto fronteiriço estratégico. Mas, qualquer que possam ser as ideias dos bolcheviques sobre o que faziam, o certo é que, ao atacar os rebeldes, estavam atacando a única defesa real que a revolução poderia ter: a autonomia da classe operária e o poder proletário direto. Ao agir assim, comportaram-se como agentes da contrarrevolução e seus atos serviram para preparar o caminho que permitiu o triunfo final da contrarrevolução sob a forma do stalinismo.
A extrema violência com que o governo reprimiu o levante levou alguns revolucionários à conclusão de que o partido bolchevique era clara e abertamente capitalista em 1921, exatamente como os stalinistas e os trotskistas são hoje. Não queremos polemizar agora sobre o momento em que o partido se pôs irremediavelmente ao lado da burguesia e, em todo caso, rechaçamos o método que tenta encerrar a compreensão do processo histórico em um rígido esquema de datas.
Mas dizer que o Partido Bolchevique não era "outra coisa senão capitalista" em 1921 significa, de fato, que não temos nada a aprender dos acontecimentos de Kronstadt, salvo a data da morte da revolução. Afinal, os capitalistas nunca deixaram de reprimir os levantes operários e isto é algo que não temos que estar aprendendo sem cessar. Kronstadt só pode nos ensinar algo novo se o reconhecemos como um capítulo da história do proletariado, como uma tragédia no campo proletário. O problema real com o qual hão de se enfrentar hoje os revolucionários é o de saber como um partido proletário pôde chegar a agir como os Bolcheviques em Kronstadt em 1921, e como podemos estar seguros que tais coisas não se repetirão jamais. Em uma palavra, que conclusões há que tirar de Kronstadt?
A revolta de Kronstadt esclarece de um modo particularmente dramático as lições fundamentais de toda Revolução Russa, o único verdadeiramente proveitoso da revolução de outubro que fica para a classe operária.
1. A revolução proletária é internacional ou não é revoluçãoA revolução proletária só pode triunfar em escala mundial. É impossível abolir o capitalismo ou "construir o socialismo" em um só país. A revolução não será salva por programas de reorganização econômica em um país, mas somente pela extensão do poder político proletário para toda a terra. Sem isto, a degeneração da revolução é inevitável, por mais mudanças que se possa produzir na economia. Se a revolução permanece isolada, o poder político do proletariado será destruído ou por uma invasão externa, ou pela violência interna como em Kronstadt.
2. A ditadura do proletariado não é a de um partidoA tragédia da Revolução Russa, em particular a matança de Kronstadt, foi que o partido do proletariado, o Partido Bolchevique, considerou que sua função era tomar o poder de Estado e defender esse mesmo poder contra a classe operária em seu conjunto. Por isso, quando o Estado se autonomiza em relação à classe e se levanta contra ela, como em Kronstadt, os bolcheviques acreditaram que seu lugar estava no Estado que lutava contra a classe e abandonaram a classe que lutava contra a burocratização do Estado.
Hoje, os revolucionários devem afirmar como princípio fundamental que a função do partido não consiste em tomar o poder em nome da classe. Só a classe operária em seu conjunto, organizada em comitês de fábrica, milícias e conselhos operários, pode tomar o poder político e empreender a transformação comunista da sociedade. O partido deve ser um fator ativo no desenvolvimento da consciência proletária, mas não pode criar o comunismo "em nome" de uma classe. Tal pretensão só pode levar, como ocorreu na Rússia, à ditadura do partido sobre a classe, a supressão da atividade do proletariado por si mesmo, sob pretexto que "o partido é melhor".
Ao mesmo tempo, a identificação do partido com o Estado, coisa natural para um partido burguês, não pode senão arrastar os partidos proletários para a corrupção e a traição. Um partido do proletariado deve constituir a fração mais radical e avançada da classe que, por sua vez, é a mais dinâmica da história. Sobrecarregar o Partido com a administração dos assuntos de Estado, que por definição não pode mais que ter uma função conservadora, é negar todo o papel do partido e asfixiar sua criatividade revolucionária. A burocratização progressiva do partido bolchevique, sua incapacidade crescente em separar os interesses da classe revolucionária dos do Estado dos sovietes, sua degeneração em uma máquina administrativa, tudo isto é o preço pago pelo próprio partido por suas concepções errôneas de partido que exerce um poder de Estado.
3. As relações de força dentro da classe não devem existirO princípio de que nenhuma minoria, por mais culta que seja, pode exercer o poder sobre a classe operária, é paralelo a este outro: não pode haver relações de força dentro da classe operária. A democracia proletária não é um luxo que pode ser suprimido em nome da "eficácia", mas é a única garantia da boa marcha da revolução e da possibilidade que a classe tem de tirar conclusões de sua própria experiência. Ainda que algumas frações da classe estejam erradas, nenhuma outra fração (seja majoritária ou não) pode lhes impor a "linha justa". Só uma liberdade total de diálogo dentro dos órgãos autônomos da classe (assembleias, conselhos, partido, etc.) poderá resolver os conflitos e os problemas da classe. Isto quer dizer também que toda a classe deve ter acesso aos meios de comunicação (imprensa, rádio, TV, etc.) e conservar o direito de greve e julgar criticamente as diretivas que emanem dos órgãos de Estado.
Ainda que se admita que os marinheiros de Krontadt se equivocaram, a dureza das medidas que o governo bolchevique tomou era totalmente injustificada. Tais ações podem destruir a solidariedade e a coesão dentro da classe, ao mesmo tempo em que geram a desmoralização e o desespero. A violência é uma arma que o proletariado terá que utilizar necessariamente contra a classe capitalista. Seu uso contra classes não exploradoras deverá se reduzir ao mínimo, mas no interior do próprio proletariado, não pode haver lugar para ela.
4. A ditadura do proletariado não é o estadoPor ocasião da Revolução Russa existia uma confusão fundamental no movimento operário, pela qual se identificava a ditadura do proletariado com o Estado que apareceu depois da derrubada do regime czarista, quer dizer, o Congresso dos delegados de toda a Rússia dos Sovietes dos trabalhadores, soldados e camponeses.
Mas a ditadura do proletariado, funcionando através dos órgãos específicos da classe operária, como as assembleias de fábrica e os conselhos operários, não é uma instituição senão um estado de fato, um movimento da classe operária em seu conjunto. A meta da ditadura do proletariado não é um Estado no sentido proposto pelos marxistas. O Estado é esse órgão da superestrutura que surge da sociedade de classes, cuja função consiste em preservar as relações sociais dominantes, o status quo entre as classes. Ao mesmo tempo, os marxistas afirmaram sempre a necessidade do Estado em um período de transição ao comunismo, depois da abolição do poder político burguês. Por isso dizemos que o Estado russo soviético, assim como a Comuna de Paris, foi um produto inevitável da sociedade de classes que existia na Rússia depois de 1917.
Certos revolucionários defendem a ideia de que o único estado que pode existir depois da destruição do poder burguês são os conselhos operários. É certo que os Conselhos Operários têm que assegurar a função que sempre foi uma das principais características do Estado: o exercício do monopólio da violência. Mas, assimilá-los, por isso, ao Estado é reduzir o papel do Estado a um simples órgão de violência e nada mais. Quer dizer, com tais concepções, o Estado burguês de hoje estaria composto unicamente pela polícia e pelo exército, e não pelo parlamento, municípios, sindicatos e outras inumeráveis instituições que mantêm a ordem capitalista sem fazer uso imediato da repressão. Estas instituições são órgãos do Estado, pois servem para manter a ordem social existente, os antagonismos de classe dentro de um marco aceitável. Os conselhos operários, pelo contrário, representam a negação ativa desta função do Estado posto que são, antes de tudo, órgãos de transformação social radical e não órgãos do status quo.
Mas, além disso, é utópico esperar que as únicas instituições que existam no período de transição sejam precisamente os conselhos operários. O grande transtorno social que é a revolução engendra instituições de todo o tipo, não apenas da classe operária nos lugares de produção, senão da população inteira que estava oprimida pela classe capitalista. Na Rússia, os Sovietes e outros órgãos populares apareceram, não só nas fábricas, mas também em todas as partes: no exército, na marinha, nas aldeias, nos bairros das cidades. Isto não decorria unicamente de que "os bolcheviques começavam a construir um Estado que tinha uma existência separada da organização de massas da classe". (Worker’s Voice N° 14) É certo que os bolcheviques contribuíram ativamente para a burocratização do Estado, abandonando o princípio das eleições e instruindo inumeráveis comissões à margem dos sovietes; mas não se pode dizer que os bolcheviques mesmos criaram "o Estado Soviético". Foi algo que surgiu porque a sociedade devia engendrar uma instituição capaz de conter seus profundos antagonismos de classe. Dizer que só podem existir os conselhos operários é pregar a guerra civil permanente, não só entre a classe operária e a burguesia (que, com certeza, é necessária), mas também entre a classe operária e todas as demais classes e categorias. Na Rússia isto teria significado uma guerra entre os sovietes de operários e os de soldados e camponeses, o que teria sido uma terrível perda de energia e um desvio da tarefa primordial da revolução mundial contra a classe capitalista. [5]
Mas se o Estado dos Sovietes era, a partir de certo ponto de vista, o produto inevitável da sociedade pós-insurreição, podemos esclarecer numerosos e graves defeitos de estrutura e funcionamento, depois da revolução de outubro, além do fato de estar controlado pelo Partido.
a. No funcionamento real do Estado havia um abandono contínuo dos princípios fundamentais estabelecidos a partir das experiências da Comuna de 1871, e reafirmados por Lênin no "Estado e a Revolução" em 1917: que todos os funcionários fossem eleitos e com mandatos revogáveis a qualquer tempo, que a remuneração dos funcionários do Estado fosse igual à dos operários, que o proletariado estivesse permanentemente armado. Foram se multiplicando as comissões e departamentos sobre os quais a classe operária não tinha nenhum controle (conselhos econômicos, Cheka, etc.). As eleições eram adiadas, suspensas ou fraudadas. Os privilégios outorgados às personalidades oficiais gradualmente tornou-se comum. As milícias operárias foram dissolvidas no interior do exército vermelho, que não estava controlado pelos conselhos operários nem pelos soldados alistados.
b. Os conselhos operários, os comitês de fábrica e os outros órgãos do proletariado representavam uma parte, entre outras, do aparato de Estado (ainda que os trabalhadores tivessem direito de voto preferencial). Em vez de ter autonomia e hegemonia sobre todas as outras instituições sociais, estes órgãos não apenas iam sendo integrados cada vez mais no aparato geral do Estado, mas também a ele se subordinavam. O poder proletário, em lugar de se manifestar pelo canal dos órgãos específicos da classe, foi identificado com o aparato de Estado. Ainda mais, o postulado enganoso de um Estado "proletário" e "socialista" levou os bolcheviques a sustentar que os trabalhadores não podiam ter nenhum direito ou interesse diferente dos do Estado. Do que se deduzia que toda a resistência ao Estado por parte dos trabalhadores só podia ser contrarrevolucionária. Esta concepção profundamente errônea explica a reação dos bolcheviques com relação às greves de Petrogrado e ao levante de Kronstadt.
No futuro, os princípios da Comuna sobre a autonomia da classe operária não devem se tornar letra morta; o proletariado terá que defendê-los como condição fundamental de seu poder sobre o Estado. Em nenhum momento poder-se-á distrair a vigilância do aparato de Estado, porque a experiência russa, e em particular os acontecimentos de Kronstadt, demonstraram que a contrarrevolução pode aparecer de onde menos se espera, como o Estado pós-insurreição, e não só por uma agressão burguesa "externa".
Quer dizer que, para garantir que o Estado-comuna siga sendo um instrumento da autoridade proletária, a classe operária não pode identificar sua ditadura com este aparato ambíguo e pouco seguro, senão unicamente com seus órgãos de classe autônomos. Estes órgãos terão que controlar sem fraqueza o trabalho do Estado em todos os níveis, exigindo o máximo de representação de delegados dos conselhos operários nos congressos gerais dos sovietes, a unificação autônoma permanente da classe operária no interior destes conselhos, e o poder de decisão dos conselhos operários sobre todo o planejamento do Estado. Acima de tudo, os trabalhadores deverão impedir que o Estado interfira em seus órgãos próprios de classe, mas, de outro lado, a classe operária deve manter sua capacidade de exercer a ditadura sobre e contra o Estado, pela violência se for necessário. Isto significa que a classe operária deve garantir sua autonomia de classe graças ao armamento geral do proletariado. Se durante a guerra civil torna-se necessária a criação de um “exército vermelho”, regular, esta força deverá estar politicamente subordinada aos Conselhos Operários e ser dissolvida tão logo tenha se vendido à burguesia. Mas, em nenhum momento, poderão ser dissolvidas as milícias proletárias nas fábricas.
A identificação do partido com o Estado, e a do Estado com a classe, teve sua conclusão lógica quando o partido se pôs ao lado do Estado e contra a classe. O isolamento da Revolução Russa em 1921 converteu o Estado em guardião do status quo, da estabilização do capital e do submetimento dos trabalhadores. Apesar de todas as boas intenções, a direção bolchevique, que continuou esperando a aurora salvadora da Revolução mundial ainda por alguns anos, viu-se obrigada a agir, por sua implicação com a máquina estatal, como um obstáculo à revolução mundial e foi arrastada ao triunfo final da contrarrevolução stalinista. Alguns bolcheviques começaram a ver que já não era o partido o que controlava o Estado, mas era o Estado quem controlava o partido. Lênin mesmo dizia:Os últimos anos de Lênin foram uma luta sem esperança contra a burocracia nascente, com projetos triviais como o da "Inspeção Operária e Camponesa" no qual a burocracia deveria se submeter à vigilância de uma nova comissão burocrática. O que ele não podia admitir era que o chamado estado proletário havia se convertido pura e simplesmente em uma máquina burguesa, em um aparato de regulamentação das relações sociais capitalistas e, portanto, inacessível às necessidades da classe operária. O triunfo do stalinismo não foi mais que o reconhecimento cínico desta situação, a adaptação final e definitiva do Partido à sua função de capataz do Estado capitalista. Este foi o significado real da declaração do "socialismo em um só país" em 1924.
A rebelião de Kronstadt pôs o Partido diante de uma alternativa histórica de extrema gravidade: seguir dirigindo esta máquina burguesa para acabar sendo um partido do capital, ou separar-se do Estado e colocar-se ao lado da classe operária inteira em seu combate contra esta máquina, esta personificação do capital. Ao escolher a primeira alternativa, os bolcheviques, de fato, firmaram sua própria sentença enquanto partido do proletariado e impulsionaram o processo contrarrevolucionário que se manifestou em plena luz do dia em 1924. Depois de 1921, só as frações bolcheviques que tinham compreendido a necessidade de identificar-se diretamente com a luta dos operários contra o Estado podiam seguir sendo revolucionárias e capazes de participar do combate internacional dos comunistas de esquerda contra a degeneração da III Internacional. Assim, por exemplo, o Grupo Operário de Miasnikov teve um papel ativo na greve selvagem que se estendeu pela Rússia em agosto e setembro de 1923. Pelo contrário, a oposição de esquerda dirigida por Trotsky, cuja luta contra a fração stalinista situava-se sempre no interior da burocracia, não fez nada para vincular-se à luta operária contra o que os trotskistas definiam como um Estado "operário" e uma "economia operária". Sua incapacidade inicial de se separar da máquina Estado-Partido, deixava prever a evolução posterior do trotskismo como uma espécie de apêndice "crítico" da contrarrevolução stalinista.
Mas as alternativas históricas não costumam apresentar-se de modo claro no momento em que é preciso tomar a decisão. Os homens fazem sua história em condições objetivas definidas e as tradições das gerações passadas oprimem "os cérebros dos vivos como um pesadelo" (Marx). Este peso angustiante do passado esmagava os bolcheviques e somente o triunfo revolucionário do proletariado ocidental poderia aliviar este peso, permitindo aos bolcheviques, ou ao menos a uma fração apreciável do partido, dar-se conta de seus erros e serem regenerados pela inesgotável criatividade do Movimento Proletário Internacional.
As tradições da social-democracia, o atraso da Rússia, além de toda a carga do peso do Estado no contexto de uma onda revolucionária em retrocesso; todos estes fatores contribuíram para que os bolcheviques tomassem a posição que tomaram em Kronstadt. Mas não foi a direção bolchevique a única incapaz de compreender o que ali se passava. Como já vimos, a Oposição Operária no partido apressou-se a declarar-se não solidária com os levantes e a participar no assalto da guarnição. Inclusive quando a ultraesquerda russa ultrapassou o limite dos tímidos protestos da Oposição Operária e entrou na clandestinidade. Não conseguiu entender as consequências do levante e fez poucas referências ao mesmo em suas críticas ao regime.
O KAPD criticou a repressão do levante de modo incompleto e não fez nada para apoiar a rebelião. Em uma palavra, poucos comunistas compreenderam na época o significado profundo do levante e tiraram conclusões essenciais. Tudo isto é uma prova a mais de que o proletariado não aprende de um único golpe as lições fundamentais da luta de classes, mas só através da acumulação de experiências dolorosas, de lutas sangrentas e de intensa reflexão teórica. O trabalho dos revolucionários de hoje não consiste em emitir juízos morais abstratos sobre o movimento operário do passado, mas ver a si mesmos como um produto daquele movimento – um produto, com certeza, capaz de fazer uma crítica inflexível de todos os erros do movimento, mas um produto apesar de tudo. Se não for assim, a crítica do passado pelos revolucionários atuais não teria nenhuma influência na luta real da classe operária. Somente se compreendemos os acontecimentos de Kronstadt como um momento do movimento histórico da classe poderemos esperar entender as lições desta experiência para aplicá-las à prática atual e futura da classe. Então, e somente então, poderemos estar seguros de que nunca mais existirá outro Kronstadt.
C.D. WARD (Agosto 1975)
[1] Veja: < https://pt.internationalism.org/ICCOline/2008/degeneracao_da_Revolucao_Russa.html [122] >
[2] Veja: < https://pt.internationalism.org/ICCOline/2008/degeneracao_da_Revolucao_Russa.html [122] >
[3] N. Ossinsky, Gosudarstvenca regulizovanie Krest ianskogo Khoziastva, Moscou, 1920, p. 8 e 9. Tradução nossa.
[4] Pravda o Kronstadt. Praga 1921. p. 32
[5] Isto não significa que compartilhemos a visão dos bolcheviques nem a dos insurgentes de Kronstadt sobre "o poder dos operários e camponeses". Quando chegar a próxima onda revolucionária, a classe operária deverá afirmar que é a única classe revolucionária. Isso quer dizer que deve se assegurar de que é a única classe que há de se organizar durante o período de transição, dissolvendo toda instituição que pretenda defender os interesses específicos de qualquer outra classe. O resto da população terá direito de se organizar dentro dos limites da ditadura do proletariado, e será representado no Estado somente enquanto "cidadãos", pelo canal dos sovietes eleitos territorialmente. O fato de se outorgar direitos civis e voto a estes estratos sociais não significa que é atribuído poder político enquanto classe, do mesmo modo que a burguesia não dá poder político à classe operária ao lhe permitir o voto nas eleições municipais e parlamentares.
Dar uma ideia do que realmente se passou é a condição para compreender a dinâmica que está tomando a luta de classes internacional em direção a movimentos massivos da classe operária, os quais vão ajudá-la a recuperar a confiança em si mesma e a dar-lhe os meios para apresentar uma alternativa a esta sociedade moribunda. [1]
A palavra crise tem uma tradução dramática para milhões de pessoas, afetadas por uma avalanche de miséria que vai desde a crescente deterioração das condições de vida, passando pelo desemprego que se prolonga durante anos, a precariedade que torna impossível a mínima estabilidade vital, até situações mais extremas que falam diretamente de pobreza e fome. [2]
No entanto, o que mais angústia provoca é a ausência de futuro. Como denuncia a Assembleia de Encarcerados de Madri [3] em um comunicado que, como veremos, foi a centelha do movimento: "(...) nos encontramos frente a um panorama sem nenhuma esperança e sem um futuro que nos incite a viver tranquilos e podendo nos dedicar ao que cada um gosta". [4] Quando segundo a OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos), a Espanha necessitará de 15 anos para recuperar o nível de emprego de 2007 – quase uma geração inteira impedida de trabalhar – e quando dados semelhantes podem ser extrapolados para os Estados Unidos ou Grã-Bretanha, torna-se palpável até que ponto esta sociedade se precipita num turbilhão sem retorno de miséria, desemprego e barbárie.
Aparentemente, o movimento se polarizou contra "o sistema bipartidário" dominante na Espanha (2 partidos, Partido Popular – de direita – e Partido Socialista Obrero Español – de esquerda – ocupam 86% dos cargos eletivos) [5]. Este fator desempenhou um papel, precisamente em relação a essa ausência de futuro, posto que em um país onde a Direita possui uma acreditada fama de autoritária, arrogante e antioperária, amplos setores da população têm visto com inquietação como após os ataques governamentais infligidos pelos falsos amigos – o PSOE –, os inimigos declarados – o PP –ameaçam instalar-se no poder durante muitos anos sem alternativa dentro da briga eleitoral, refletindo o bloqueio geral da sociedade.
Esse mesmo sentimento foi alimentado pela atitude dos sindicatos que primeiro convocaram uma "greve geral" em 29 de setembro, que se concretizou em uma encenação desmobilizadora, e depois concertaram com o governo um Pacto Social em janeiro de 2011 que aceitava uma infame reforma das aposentadorias e fechava portas a toda possibilidade de mobilizações massivas sob sua batuta.
A esses fatores se agregou um profundo sentimento de indignação. Uma das consequências da crise é que, como foi dito na Assembleia de Valência, "(...) os poucos que têm muito são muito menos e possuem muito mais, embora os muitos que têm pouco são muito mais e têm muito menos". Os capitalistas e seu pessoal político tornam-se cada vez mais arrogantes, vorazes e corruptos, não hesitam em se apropriar de riquezas imensas, ainda que ao seu redor se espalhe a miséria e a desolação. Tudo isto faz com que se compreenda que as classes existem e que não somos "cidadãos iguais".
Diante disso, desde finais de 2010 têm surgido coletivos que propagam ideias de "ajuntar-se na rua", "atuar à margem de partidos e sindicatos", "organizar-se em assembleias"… A "Velha Toupeira" de que falava Marx preparava nas profundidades da sociedade uma maturação subterrânea que entrou em erupção em plena luz em maio! A mobilização da Juventude Sem Futuro em abril congregou 5.000 jovens em Madri. Por outro lado, o êxito de algumas manifestações de jovens em Portugal – Geração à Rasca, Geração Enrascada – que aglutinou mais de 200.000 pessoas, e o exemplo muito popular da Praça Tahrir do Egito, situaram-se entre os estímulos do movimento.
Em 15 de maio foram convocadas manifestações nas capitais das províncias por um conglomerado de mais de 100 organizações – chamado Democracia Real Já (DRY, na sigla em espanhol) [6] – dirigidas "contra os políticos" e reclamando uma "democracia de verdade".
Pequenos grupos de jovens (desempregados, precários e estudantes), inconformados com o caráter de válvula de escape do descontentamento social que pretendiam dar os organizadores, trataram de estabelecer um acampamento na praça principal em Madri, Granada e outras cidades para dar continuidade ao protesto. O DRY os desaprovou e deixou que as tropas policiais exercessem uma brutal repressão, especialmente nas delegacias de polícia. Entretanto, os atingidos se constituíram na Assembleia de Encarcerados de Madri e emitiram rapidamente um comunicado onde os tratamentos degradantes foram claramente denunciados (ver nota 4). Isto causou uma grande impressão o que estimulou numerosos jovens a engrossar os acampamentos.
Na terça-feira 17, embora o DRY quisesse encerrar os Acampamentos através de atos simbólicos de protesto, a enorme massa que afluía a eles impôs a realização de Assembleias. Na quarta e quinta-feira as Assembleias massivas se estenderam a mais de 73 cidades. Nelas foram expostas reflexões interessantes, propostas sensatas, passando em revista aspectos da vida social, política, econômica, cultural. Nada que é humano era estranho a essa imensa ágora [7] improvisada!
Uma manifestante madrilena exclamava "(...) o melhor são as Assembleias, a palavra é franqueada, as pessoas se entendem, pensa-se em voz alta, milhares de desconhecidos podem chegar a acordos comuns. Não é maravilhoso?". Contrastando com o ambiente sombrio que reina nas mesas de votação ou entusiasmo de marketing dos atos eleitorais, as Assembleias eram outro mundo: "Abraços fraternais, gritos de entusiasmo e contentamento, cânticos de liberdade, risos felizes, alegria e delírio. Um perfeito concerto despontava desta de milhares de pessoas indo e vindo através da cidade, de manhã à noite. Reinava uma atmosfera de euforia; quase se crer que uma nova e melhor vida principiara na Terra. Espetáculo profundamente comovedor, idílico e enternecedor ao mesmo tempo" [8].
Milhares de pessoas discutiam apaixonadamente em um ambiente de respeito profundo, de ordem admirável, de escuta atenta. Não apenas a indignação e a inquietação frente ao futuro as unia, mas sobretudo a vontade de compreender suas causas, daí esse esforço de debate, de análise sobre múltiplas questões, de centenas de reuniões, de criação de bibliotecas de rua... Um esforço aparentemente sem resultado concreto, mas que tem sacudido as mentes e semeado ganhos de consciência nos campos do futuro.
No terreno subjetivo, a luta da classe operária tem dois pilares: por um lado, a consciência, por outro lado, a confiança e a solidariedade. E neste caso, as Assembleias lançaram importantes sementes para o futuro, os laços humanos que foram sendo tecidos, a corrente de empatia que percorria as praças, a solidariedade e a unidade que floresciam, tinham tanta importância como tomar uma decisão ou aprovar uma reivindicação. Isso enfurecia os políticos e a imprensa que, com o típico imediatismo e utilitarismo que caracteriza a ideologia burguesa, reclamavam que o movimento resumisse suas demandas em uma "lista reivindicativa", que o DRY tratava de converter em um "Decálogo" que recolhia ridículas e desgastadas medidas democráticas, tais como as listas de candidatos abertas, as iniciativas legislativas populares e a reforma da lei eleitoral.
A resistência feroz com que se depararam essas medidas precipitadas mostrou que o movimento expressa o futuro da luta de classes. Em Madri gritava-se "(...) não vamos lentos, mas vamos muito longe". Em uma Carta Aberta às Assembleias, um grupo de Madri dizia: "(...) sintetizar o que esse protesto que estamos realizando quer, é o mais difícil. Estamos convencidos de que não será às pressas, como interesseiramente querem que façamos os políticos e todos aqueles que querem que nada mude, ou melhor dizendo, os que querem mudar pequenos detalhes para que tudo continue igual, que não será propondo de repente uma tábua de reivindicações que conseguiremos sintetizar o que queremos todos os que lutamos, não será criando uma confusão de reivindicações que nossa revolta se expressará e se fortalecerá" [9]
O esforço para conhecer as causas de uma situação dramática e de um futuro incerto, assim como, consequentemente, saber a forma de lutar, tem sido o eixo das Assembleias, daí seu caráter deliberativo que desorientou aqueles que esperavam uma luta centrada em reivindicações precisas. Igualmente a reflexão sobre temas éticos, culturais, inclusive artísticos e literários – havia intervenções em forma de canções ou poesias – criou a sensação enganosa de um movimento pequeno burguês de "indignados". Aqui devemos separar o joio do trigo. Há erva daninha na casca democrática e cidadã em que essas preocupações foram em muitas ocasiões envolvidas. As preocupações, contudo, são trigo limpo, pois apoiam a transformação revolucionária do mundo, ao mesmo tempo em que estimulam uma gigantesca mudança cultural e ética, "Mudar o mundo e mudar a vida, mudando a nós mesmos", tal é a divisa revolucionária que há mais de um século e meio Marx e Engels formularam em A ideologia alemã: "tanto para a criação em massa dessa consciência comunista quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode realizar por um movimento prático, por uma revolução; que a revolução, portanto, é necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundície e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade" [10].
As Assembleias constituíram uma primeira tentativa de resposta a um problema geral da sociedade o qual temos colocado em relevo há mais de 20 anos: a decomposição social do capitalismo. Nas Teses sobre a Decomposição, que à época escrevemos [11], assinalávamos a tendência à decomposição da ideologia e das superestruturas da sociedade capitalista e a crescente desintegração das relações sociais que as mesmas supõem. Esse conjunto que com certeza afeta a burguesia e a pequena burguesia, também atinge a classe operária, entre outras razões porque convive com esta última. Alertávamos no referido documento sobre os efeitos desse processo: "(1) a ação coletiva, a solidariedade, encontram diante de si a atomização, o "salve-se quem puder" o "cuidar de si mesmo"; (2) a necessidade de organização é confrontada à decomposição social, a desintegração das relações em que se baseia qualquer vida em sociedade; (3) a confiança no futuro e nas suas próprias forças se vê minada constantemente pela desesperança geral que invade a sociedade, o niilismo, a "ausência de futuro"; (4) a consciência, a compreensão, a coerência e unidade de pensamento, o gosto pela teoria, devem abrir um difícil caminho em meio à fuga nas quimeras, drogas, seitas, no misticismo, rechaço à reflexão e na destruição do pensamento que estão definindo a nossa época".
Contudo, o que mostram as Assembleias massivas na Espanha – como igualmente apontaram as que ocorreram durante o movimento de estudantes na França em 2006 [12] –é que os setores mais vulneráveis a esses efeitos – os jovens, os desempregados, devido a pouca experiência que até então conseguiram desenvolver de trabalho coletivo – são os que estiveram na vanguarda das Assembleias e do esforço de consciência, por um lado, e da solidariedade e empatia, por outro lado.
Por todas as razões anteriores, as Assembleias massivas têm sido um primeiro reconhecimento de tudo o que está na nossa frente. Isso pode parecer muito pouco para quem espera que o proletariado, como uma tempestade repentina em um céu azul, manifeste-se claramente e sem rodeios como a classe revolucionária da sociedade. Porém, desde o ponto de vista histórico e compreendendo as enormes dificuldades que o proletariado encontrará para alcançar esse objetivo, foi um bom começo, pois começou preparando com rigor o terreno subjetivo.
Mas isso tem sido, paradoxalmente, o Calcanhar de Aquiles do movimento "15 M", tal qual se expressou em uma primeira etapa. Por não ter nascido sobre um objetivo concreto, o cansaço, a dificuldade de ir mais além das primeiras aproximações aos graves problemas colocados, a ausência de condições para que o proletariado entrasse em luta a partir das regiões de trabalho, lançou o movimento em uma espécie de vácuo e indefinição que não podia durar muito tempo e que o DRY tentou preencher com objetivos de "reforma democráticas" supostamente "fáceis" e "realizáveis", porém na realidade utopicamente reacionários.
Durante quase duas décadas, o proletariado mundial tem realizado uma travessia do deserto caracterizada pela ausência de lutas massivas e, sobretudo, por uma falta de confiança em si mesmo e uma perda de confiança da sua própria identidade como classe [13]. Ainda que esta atmosfera viesse se rompendo desde 2003 com lutas significativas em um bom número de países e com o aparecimento de uma nova geração de minorias revolucionárias, dominava a imagem estereotipada de uma classe operária que "não se move", que está "completamente ausente".
A erupção repentina de grandes massas na cena social tinha que arcar esse peso do passado, acrescido pela presença no movimento de camadas sociais em vias de proletarização, mais vulneráveis às armadilhas cidadãs e democráticas. Isso, em conjunto com o fato do movimento não ter surgido a partir do combate contra uma medida concreta, produziu o paradoxo (que não é novo na história [14]): de que as duas grandes classes da sociedade, o proletariado e a burguesia, pareceram fugir do corpo a corpo declarado, dando a impressão de um movimento pacífico, que goza do "beneplácito de todos". [15]
Mas na verdade, a confrontação entre as classes esteve presente desde o primeiro dia. Não foi a brutal repressão sobre um punhado de jovens a primeira resposta do governo do PSOE? Não foi a rápida e apaixonada resposta da Assembleia dos Encarcerados de Madri a que desencadeou o movimento? Não foi aquela denúncia que abriu os olhos de muitos jovens que exclamaram desde então "chamam a isso democracia e não é", bandeira ambígua que uma minoria converteu em "chama a isso de ditadura e é isso mesmo"?
Para todos aqueles que acreditam que a luta de classes é uma sucessão de "emoções fortes", o aspecto "tranquilo" que manifestaram as Assembleias, levou-os a acreditar que estas não eram mais do que o exercício de um "inofensivo direito constitucional". Pode-se inclusive supor que muitos participantes acreditassem que estavam limitados a isso.
No entanto, as Assembleias massivas em praça pública, o slogan de "Tomar a praça", significam um desafio em regra da ordem democrática. O que as relações sociais capitalistas determinam e as leis santificam é que a maioria explorada "fique na sua", e se quiserem "participar" dos assuntos públicos, que utilizem o voto e o protesto sindical que a atomizam e individualizam ainda mais. Unir-se, viver a solidariedade, discutir coletivamente, começar a atuar como um corpo social independente constitui a violência mais irresistível à ordem burguesa.
A burguesia tem feito o impossível para acabar com as Assembleias. Na aparência, com a asquerosa hipocrisia que a distingue, a burguesia não parava em aplausos e acenos de cumplicidade para com os "indignados", porém os fatos – que são o que realmente conta – desmentiam essa aparente complacência.
Ante a proximidade da marcha eleitoral – o domingo 22 de maio – a Junta Eleitoral Central decide proibir as Assembleias em todo o país no sábado 21 considerado como "jornada de reflexão". À zero hora do sábado um imenso dispositivo policial cerca o Acampamento da Porta do Sol, mas rapidamente uma massa gigantesca rodeia por sua vez o cordão policial o que motivou o próprio ministro do Interior a dar a ordem de retirada. Mais de vinte mil pessoas ocupam a Praça em meio a uma grande explosão de alegria. Vemos aqui outro episódio de confrontação de classes, embora a violência explícita tenha se reduzido a alguns empurrões.
O DRY propõe a manutenção nos acampamentos, mas guardando silêncio para respeitar a jornada de reflexão e, portanto, não realizar Assembleias. Mas ninguém lhes deu importância. As Assembleias do sábado 21, formalmente ilegais, registraram os maiores níveis de assistência. Na Assembleia de Barcelona cartazes, bandeiras e gritos proclamavam que "estamos refletindo", em irônica resposta à Junta Eleitoral.
No domingo 22, dia da eleição, ocorre uma nova tentativa de acabar com as Assembleias. O DRY informa que "o objetivo foi alcançado" e que se deve pôr fim ao movimento. A resposta é unânime: "não estamos aqui pelas eleições". Na segunda 23 e na terça 24, as Assembleias chegam a seu ápice, tanto em assistência como na riqueza dos debates. Proliferam intervenções, consignas, cartazes que mostram uma apurada reflexão: "Onde está a esquerda? No fundo a direita", "Nossos sonhos não cabem nas urnas", "600 euros ao mês, isso sim é violência!", "Se não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir", "Sem trabalho, sem casa, sem medo", "Enganaram os avós, enganaram os filhos, que não enganem os netos!". Mas mostram igualmente uma consciência sobre a perspectiva: "Nós somos o futuro, o capitalismo é passado", "Todo poder às Assembleias", "Não há evolução sem revolução", "O futuro começa agora", "Continuas pensando que é uma utopia?"…
A partir desse momento de ápice, as Assembleias começam a diminuir. Em parte devido ao cansaço, mas o contínuo bombardeio do DRY para que se adotasse seu "decálogo democrático" também jogou um papel importante. Os pontos do decálogo não são neutros, pelo contrário, vão diretamente contra as Assembleias. Por agarrar-se à reivindicação mais "radical", uma Iniciativa Legislativa Popular [16], que além de supor uma interminável tramitação parlamentar, desmobiliza os mais ativos, e o mais importante, substitui o debate massivo, onde todos podem sentir-se como parte de um corpo coletivo, por ações individuais, unicamente cidadãs, de protestos fechados entre as quatro paredes do Eu [17].
A sabotagem por dentro foi reforçada pelo ataque repressivo vindo de fora, demonstrando que a burguesia não acredita de maneira nenhuma que as Assembleias sejam "um direito constitucional de reunião". Na sexta-feira 27, o Governo catalão – coordenado com o governo central – desfere um golpe de força: os "mossos de esquadra" (polícia autônoma) invadem a Praça de Catalunha de Barcelona e reprimem de modo selvagem a Assembleia, produzindo inúmeros feridos e fazendo um significativo número de prisioneiros. A Assembleia de Barcelona – até então mais orientada para reivindicações de classe – fica enredada nas típicas reivindicações democráticas: petição de demissão do conselheiro do Interior, repúdio à "repressão desproporcional" [18], reivindicação de um "controle democrático da polícia". Sua reviravolta é tão evidente que dá lugar ao veneno nacionalista e inclui nas suas demandas o "direito de autodeterminação".
Os episódios repressivos durante a semana de 5 a 12 de junho multiplicaram-se: Valência, Santiago, Salamanca... Contudo, o golpe mais brutal acontece nos dias 14 e 15 de junho em Barcelona. O Parlamento catalão discutia uma lei chamada Lei Ônibus que estipulava violentos cortes sociais principalmente na saúde e educação (entre outras medidas, 15 mil demissões na Saúde). Fora de toda dinâmica de discussão em Assembleias de trabalhadores, o DRY convoca um "protesto pacífico", que consistia em cercar o Parlamento para "impedir os deputados de votarem uma lei injusta". Trata-se da típica ação puramente simbólica dirigida à "consciência" dos deputados e não ao combate contra uma lei e as instituições que a impõe, quer dizer, o terreno democrático por excelência, que amarra os manifestantes a um falso dilema: ou a violência "radical" de uma minoria, ou o chamamento impotente e passivo da maioria.
Os insultos e o empurrão de alguns deputados dão motivo a uma histérica campanha que criminaliza os "violentos" (metendo nesse saco os que defendem posturas de classe) e chama a "defender as instituições democráticas ameaçadas". Fechando o círculo, o DRY corrobora o pacifismo para justificar que os próprios manifestantes exerçam a violência sobre os "violentos" [19], porém vai mais longe ainda: pede abertamente a entrega dos "violentos" à polícia e que os manifestantes aplaudam a polícia pelos seus "bons serviços"!
Desde o início, o movimento teve dois "espíritos": um espírito democrático, alimentado pelas confusões e dúvidas muito amplas, por seu caráter socialmente heterogêneo e pela tendência a evitar a confrontação aberta. Mas também esteve presente um espírito proletário, materializado nas Assembleias [20] e num impulso sempre presente de ir "até a classe operária".
Na Assembleia de Barcelona, trabalhadores da Telefônica, saúde, bombeiros, estudantes universitários, mobilizados contra os cortes sociais, participaram ativamente dela. Foi constituída uma "Comissão de Extensão e Greve Geral", onde havia debates muito acalorados e se organizou uma rede de Trabalhadores Indignados de Barcelona, que convocou uma Assembleia de empresas em luta no sábado 11 de junho e um novo Encontro no sábado 2 de julho. Na sexta-feira 3 de junho, desempregados e empregados realizaram em torno da Praça Catalunha uma manifestação onde se exibia uma faixa que dizia "Abaixo a burocracia sindical! Greve geral!". Em Valência, a Assembleia apoiou um protesto de condutores de ônibus e também uma manifestação de vizinhos contra os cortes no ensino. Em Zaragoza, os condutores de ônibus se uniram aos demais manifestantes com grande entusiasmo [21]. Nas Assembleias se decide pela realização de Assembleias de Bairro [22].
Não obstante, a manifestação de 19 de junho expressa outro impulso do "espírito proletário". Esta manifestação tinha sido convocada pelas Assembleias de Barcelona, Valência e Málaga com o objetivo de lutar contra os cortes sociais. O DRY tinha tentado desvirtuá-la, dando-lhe exclusivamente lemas democráticos. Isso provocou uma resistência que se concretizou em Madri com uma iniciativa espontânea de ir ao Congresso para manifestar-se contra os cortes sociais com mais de 5 mil participantes. Por outro lado, uma coordenação de Assembleias de Bairro do Sul de Madri, surgida em resposta ao fiasco da greve de 29 de setembro e com uma orientação muito similar às das Assembleias Gerais Interprofissionais criadas na França no calor do movimento do outono passado, convocou "desde os povoados e bairros de trabalhadores de Madri, vamos ao congresso, onde se decidem esses cortes sem nos consultar, para dizer "basta!" (...). Esta iniciativa nasce de uma concepção assembleísta de base da luta operária, frente àqueles que adotam decisões às costas dos trabalhadores sem submetê-las ao referendo dos mesmos. Como a luta é longa, incentivamo-lhes a organizar-se em assembleias de bairro ou locais, e em espaços de trabalho e estudo".
As manifestações de 19 de junho constituíram um novo êxito, a assistência foi massiva em mais de 60 cidades, porém ainda mais importante foi seu conteúdo. Responderam à brutal campanha "contra os violentos", expressando um amadurecimento para o qual tinham contribuído numerosos debates nos meios mais ativos [23]. A palavra de ordem mais ecoada na manifestação de Bilbao é "Violência é não chegar ao final do mês", enquanto que em Valladolid se grita "violência é também o desemprego e os despejos".
No entanto, é sobretudo a manifestação de Madri a que marca a viragem que representa o 19 de junho frente à perspectiva futura. Foi convocada por um organismo diretamente vinculado à classe operária e nascido das suas minorias mais ativas [24]. Seu lema é "Caminhemos juntos contra a crise e o Capital". Suas reivindicações: "Não aos cortes trabalhistas, de pensões ou sociais; para lutar contra o desemprego, luta operária contra a subida dos preços, para o aumento dos salários, para o aumento dos impostos aos que mais ganham, em defesa dos serviços públicos,contra a privatização da saúde, educação, ... Viva a unidade da classe operária" [25]
Um coletivo em Alicante adota o mesmo manifesto. Em Valência, um Bloco Autônomo e Anticapitalista formado por vários grupos muito ativos nas Assembleias difunde um manifesto onde se diz "Queremos uma resposta ao desemprego. Que os desempregados, os precarizados, os afetados pelo trabalho informal, se reúnam em Assembleias, acordem coletivamente suas reivindicações e que estas sejam aplicadas. Queremos a retirada da lei da reforma trabalhista e da que autoriza ERE's [26] sem controle e com indenização de 20 dias. Queremos que se retire a lei das aposentadorias, pois após toda uma vida de privações e misérias não queremos cair em mais misérias e incertezas. Queremos o fim dos despejos. A necessidade humana de uma moradia está acima das leis cegas do negócio e do máximo lucro. Dizemos NÃO aos cortes na educação e na saúde, às novas demissões que, após as recentes eleições, estão sendo preparadas nas Autarquias e Departamentos" [27].
A marcha de Madri foi organizada em várias colunas que partiram de 7 povoados ou bairros da periferia, às quais se somaram uma quantidade de pessoas cada vez maior. Essas "serpentes" recuperam a tradição operária das greves de 1972-1976 na Espanha (e igualmente na França em Maio de 68) onde, a partir de uma concentração operária – à época uma fábrica "farol" como a Standard madrilena –, os manifestantes iam agrupando massas crescentes de operários, vizinhos, desempregados, jovens, até convergir ao centro. Esta tradição reapareceu nas lutas de Vigo de 2006 e 2009 [28].
Em Madri, o manifesto lido na concentração chamava "Assembleias para preparar uma greve geral" e foi acolhido por gritos massivos de "Viva a classe operária".
As manifestações de 19 de junho produziram um sentimento de entusiasmo. Uma manifestante madrilense disse: "O ambiente era de uma autêntica festa. Caminhávamos juntos, pessoas as mais variadas e de todas as idades: dos vinte anos, aposentados, famílias com filhos, os que não estavam em nenhum dos grupos anteriores... e isso enquanto alguns vizinhos apareciam nas varandas para aplaudir. Cheguei esgotada em casa, mas com um sorriso de orelha a orelha. Não só tinha a sensação de ter participado de uma causa justa, mas que, além disso, de tê-lo feito muito bem". Outro disse: "acho muito interessante ver as pessoas em uma praça, falando de política ou lutando pelos seus direitos. Você não tem a sensação de que estamos retomando a rua?"
Após a primeira irrupção marcada por algumas Assembleias "em busca", agora se começa a buscar a luta aberta, a se vislumbrar que a solidariedade, a união, a construção de uma força coletiva, pode ser levada a cabo [29]. Começa a se desenvolver a ideia de que "Podemos ter força diante do Capital e seu Estado" e que a chave disso é a entrada da classe operária em luta. Nas Assembleias de Bairro de Madri surgiu um debate sobre a convocação de uma greve geral em outubro para "reverter os cortes sociais". Os sindicatos CCOO (Confederación Sindical de Comisiones Obreras) e UGT (Union General de Trabajadores) gritaram aos céus dizendo que essa convocação seria "ilegal" e que só eles estão autorizados a fazê-la, ao que muitos setores responderam claramente: só as Assembleias massivas podem convocá-la.
No entanto, não devemos cair na euforia. A entrada em combate da classe operária não vai ser um processo fácil. Pesam ilusões e confusões sobre a democracia, as reivindicações cidadãs, as "reformas", reforçadas pela pressão do DRY, dos políticos, dos meios de comunicação, que exploram as dúvidas existentes, o imediatismo que impele a obter "resultados rápidos e palpáveis", o medo diante da amplidão amplitude de tudo o que é colocado. Porém, o mais importante é compreender que a mobilização direta nos locais de trabalho é hoje verdadeiramente difícil, por causa da chantagem do desemprego, do risco real de que qualquer perda de remuneração, por mínima que seja, possa fazer cruzar a fronteira não tanto entre uma vida aceitável e a miséria, mas entre esta e a fome.
Os critérios democráticos e sindicais enfocam a luta de classe como uma soma de decisões individuais. Não está descontente? Não se sente pisoteado? Então porque não se rebela? A coisa seria tão simples como se cada operário apenas diante da sua consciência, da mesma maneira que quando está na cabine de votação, "decide livremente" eleger entre um ser "valente" ou um ser "covarde". Mas a luta de classes não segue esse esquema idealista e falsificador, os atos de luta são resultado de uma força e uma consciência coletivas. Estas se forjam não somente pelo mal estar que produz uma situação insustentável, senão porque se vislumbra que é possível atuar em comum e que existe um mínimo de solidariedade e determinação que o permitem.
Esse estado coletivo não aparece da noite para o dia nem é produto mecânico da navalha da miséria; é resultado de um processo subterrâneo que tem três pilares. Organização em Assembleias abertas que permitem visualizar a força de que se dispõe e o caminho para acrescentá-la. Consciência para determinar o que queremos e como podemos conseguir. Combatividade diante do trabalho de sabotagem dos sindicatos e de todos os organismos de mistificação.
Esse processo está se desenvolvendo, mas é difícil determinar quando e como vai se manifestar. Uma comparação pode talvez nos ajudar. Na grande luta massiva de Maio de 68 [30], em 13 de maio de 1968 houve uma gigantesca manifestação em Paris em apoio aos estudantes brutalmente reprimidos. O sentimento de força que aquilo gerou se traduziu de forma fulminante no dia seguinte na deflagração de numerosas greves espontâneas começando pela Renault de Cléon e em continuidade a de Paris. Mas isso não se produziu após as grandes manifestações de 19 de junho. Por quê?
Em maio de 68, a burguesia estava pouco preparada politicamente para enfrentar a classe operária, a repressão inflamou os ânimos e acabou jogando lenha na fogueira. Hoje a burguesia conta, em grande número de países, com um aparato ultrassofisticado de sindicatos, partidos, campanhas ideológicas, alicerçado precisamente na democracia, que permite um uso politicamente muito eficaz de uma repressão seletiva. A deflagração da luta requer um esforço de consciência e solidariedade muito maior que no passado.
Em maio de 68, a crise apenas dava seus primeiros passos, hoje constitui pelo capitalismo um beco sem saída. Isso intimida, torna difícil entrar em greve, inclusive por um motivo tão "simples" como o aumento dos salários. A gravidade da situação faz que as lutas sejam deflagradas porque "o copo da paciência transborda". Mas então é preciso a conclusão que "Os proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias e têm um mundo a ganhar." (Manifesto Comunista)
Apesar do caminho ser mais longo e doloroso que em maio 68, as bases que estão sendo construídas são muito mais firmes. A mais determinante é tentar se conceber como parte de um movimento internacional. Após uma etapa de "experimentos" com alguns movimentos massivos (o movimento dos estudantes na França em 2006 e as revoltas da juventude na Grécia em 2008 [31]), nos últimos 9 meses se sucedem movimentos que têm uma maior amplitude e que permitem vislumbrar a possibilidade de paralisar a mão bárbara do capitalismo: França em novembro de 2010, Grã-Bretanha em novembro-dezembro de 2010, Egito e Tunísia em 2011, Espanha em maio 2011, Grécia em 2011...
A compreensão de que o movimento "15 M" faz parte dessa cadeia internacional, tem começado a se desenvolver embrionariamente. Em uma manifestação em Valência se gritava: "Este movimento não tem fronteiras". Foram organizadas por vários acampamentos manifestações "para uma Revolução européia", em 15 de junho houve manifestações em apoio à luta na Grécia, o que voltou a se repetir em 29 de junho. Em 19 de junho, os slogans internacionalistas apareceram minoritariamente: um cartaz dizia "Feliz união mundial", outra exibia em inglês "World Revolution".
Durante anos, o que chamavam de "globalização da economia" servia à burguesia de esquerda para provocar reflexos nacionalistas, seu discurso consistia em reivindicar frente aos "mercados apátridas" a "soberania nacional", quer dizer, propunham aos operários ser mais nacionalistas que a própria burguesia! Com o desenvolvimento da crise, mas igualmente com a popularização do uso da internet, as redes sociais etc., a juventude operária começa a dar o troco contra seus promotores. Desenvolve-se a ideia de que "frente à globalização da economia há que se responder com a globalização internacional das lutas", que diante da miséria mundial a única resposta possível é uma luta mundial.
O "15 M" tem tido uma ampla repercussão internacional. As mobilizações que vêm ocorrendo na Grécia há 2 semanas seguem o mesmo "modelo" de assembleias massivas nas praças principais, cuja inspiração consciente são os acontecimentos da Espanha [32]. Segundo Kaosenlared, em 19 de junho "Milhares de pessoas de todas as idades se manifestaram neste domingo na Praça Syntagma, diante do Parlamento grego, pelo quarto domingo consecutivo em resposta a um chamado do movimento pan-europeu de "indignados" para protestar contra as medidas de austeridade".
Na França, Bélgica, México, Portugal, ocorreram assembleias regulares, contudo menores, onde a solidariedade com os indignados e a tentativa de impulsionar um debate e uma resposta, abriu passagem. Em Portugal "umas 300 pessoas, na sua maioria jovens, marcharam no domingo à tarde pelo centro de Lisboa convocados pelo movimento "Democracia Real Já", inspirado pelos "indignados" espanhóis. Os manifestantes portugueses marcharam tranquilos detrás de uma faixa na qual se podia ler "Europa desperta", "Espanha, Grécia, Irlanda, Portugal: nossa luta é internacional"." [33]
A crise mundial da dívida ilustra a realidade da crise sem saída do capitalismo. Tanto na Espanha como nos demais países há um dilúvio de ataques frontais e não se vislumbra nenhum alívio, senão novos e piores golpes nas nossas condições de vida. A classe operária necessita dar uma resposta e para isso deve se apoiar no impulso dado pelas Assembleias de maio e as manifestações de 19 de junho.
Para preparar essa resposta, a classe operária segrega no seu seio minorias ativas, companheiros que buscam compreender o que está passando, que se politizam, animam debates, ações, reuniões, assembleias, tentam convencer os que duvidam, acrescentam argumentos aos que buscam... Como vimos no início, essas minorias contribuíram para o surgimento do 15 M.
A CCI, com suas modestas forças, tem participado do movimento, tentando dar orientações. "Durante um conflito entre classes, assiste-se a flutuações importantes muito rápidas diante das quais há que saber se orientar, guiando-se pelos princípios e pelas análises. É preciso estar ao corrente do movimento, saber concretizar os "fins gerais" para responder às preocupações reais de uma luta, para poder apoiar e estimular as tendências positivas que aparecem" [34]. Temos elaborado numerosos artigos tratando de compreender as distintas fases pelas quais o movimento tem passado e fazendo propostas de marcha concreta e realizáveis: a emergência das assembleias e sua vitalidade, a ofensiva do DRY contra elas, a armadilha da repressão, o giro que representam as manifestações do 19 de junho [35].
Outra necessidade do movimento sendo o debate, estabelecemos uma rubrica na nossa Web em espanhol – Debates del "15 M [123]" – onde companheiros com diversas análises e a partir de diversas posturas está podendo se expressar.
Trabalhar junto com outros coletivos e minorias ativas tem sido outra das nossas prioridades. Temos nos coordenado com o Círculo Operário de Debate de Barcelona, com a Rede de Solidariedade de Alicante e com vários coletivos de participantes das assembléias de Valência, com os quais temos assumido iniciativas comuns.
Nas Assembleias, nossos militantes falaram sobre pontos concretos: defesa das Assembleias, orientar a luta para a classe operária, impulsionar Assembleias massivas nos centros de trabalho e estudo, rechaçar as reivindicações democráticas colocando no seu lugar a luta contra os cortes sociais. O capitalismo não pode ser reformado nem democratizado, a única possibilidade realista é destruí-lo…[36] Do mesmo modo, na medida das nossas possibilidades, participamos ativamente de Assembleias de Bairro.
Após o "15 M", a minoria que tem uma orientação de classe tem se ampliado e tornado mais dinâmica e influente. Agora, deve manter-se unida, articular um debate, coordenar-se a nível nacional e internacional. Diante do conjunto da classe deve tornar-se visível uma postura que colete suas necessidades e aspirações mais profundas: diante do engano democrático, a perspectiva que se encerra sob a palavra de ordem "Todo poder às Assembleias"; contra às reivindicações a favor de reformas democráticas, evidenciar a luta consequente contra os cortes sociais; diante das ilusórias "reformas" do capitalismo, colocar para frente a luta tenaz e perseverante na perspectiva de destruição do capitalismo.
O importante é que neste meio se desenvolva um debate e um combate. Um debate acerca das numerosas questões que têm sido colocadas no último mês: reforma ou revolução? Democracia ou Assembleias? Movimento cidadão ou movimento de classe? Reivindicações democráticas ou reivindicações contra os cortes sociais? Pacifismo cidadão ou violência de classe? Apoliticismo ou política de classe? Greve geral ou greves massivas? Sindicatos ou Assembleias? Etc. Um combate para impulsionar a auto-organização e a luta independente, mas, sobretudo, para saber captar e superar as numerosas armadilhas nas quais vão tentar nos enredar.
C.Mir (1-7-2011)
[1] Ver na Revista Internacional nº 144: Francia, Gran Bretaña, Túnez - El porvenir es que la clase obrera desarrolle internacionalmente sus luchas y sea dueña de ellas.
[2] Um responsável da Cártias espanhola, ONG eclesiástica que se ocupa da pobreza, assinalava: "Falamos já de mais de 8 milhões de pessoas em processo de exclusão e outros 10 milhões abaixo da linha da pobreza". Fonte: https://www.burbuja.info/inmobiliaria/temas/tenemos-18-millones-de-excluidos-o-pobres-francisco-lorenzo-responsable-de-caritas.230828/ [124] (tradução nossa). 18 milhões equivalem a um terço da população espanhola! Evidentemente, isto não é uma peculiaridade espanhola. Em um ano o nível de vida dos gregos retrocedeu em 8%.
[3] Falaremos dela no próximo parágrafo: As Assembleias um primeiro olhar voltado ao futuro.
[4] Ver "Comunicado de lxs detenidxs en la manifestación del 15 de Mayo de 2011 [125]" y en francés [126].
[5] Dois slogans muito repetidos eram: "PSOE-PP, são a mesma merda" e "Com rosas e gaivotas nos tomam por idiotas", a rosa é o símbolo é o símbolo do PSOE e gaivota o do PP.
[6] Para se ter uma ideia deste movimento e dos seus métodos, pode-se consultar nosso artigo Movimento Cidadão Democracia Real Já!: Ditadura do Estado contra as assembleias massivas [https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/Movimento_Cidadao_Democra... [127].
[7] Ágora é um lugar público para encontros; uma praça pública, na Grécia Antiga, que servia de comércio e para certos atos políticos e civis (pt.wiktionary.org/wiki/ágora [128])
[8] Esta citação de Rosa Luxemburgo em Greve de massas, partido e sindicatos (Kairós, 1979, p. 47), refere-se à grande greve do sul da Rússia em 1903, e vem a calhar perfeitamente com o ambiente existente nas assembleias um século depois.
[9] Ver Carta Aberta às Assembleias, "Carta abierta a las asambleas [129]".
[10] Marx e Engels, A Ideologia alemã. Ed. Boitempo, pag.42.
[11] Ver "TESIS SOBRE LA DESCOMPOSICION: La descomposición, fase última de la decadencia del capitalismo [130]".
[13] Ao nosso ver, a causa fundamental dessas dificuldades reside nos acontecimentos de 1989, que varreram os regimes do Leste, falsamente identificados como "socialistas" e que permitiram à burguesia uma campanha esmagadora sobre a "queda do comunismo", o "fim da luta de classes", o "fracasso do marxismo", etc., que afetaram duramente várias gerações operárias. Ver Dificultades creciente para el proletariado, Revista Internacional nº 60.
[14] Recordemos como, na França, entre fevereiro e junho de 1848, também acontece essa "grande festa de todas as classes sociais", o que se romperá com os enfrentamentos de junho, quando o proletariado se baterá com armas na mão contra o Governo Provisório. Igualmente, na revolução russa de 1917, de fevereiro a abril reina o mesmo ambiente de todos unidos sob a bandeira "democracia revolucionária".
[15] Salvo a extrema direita que, levada por seu irrefreável ódio antiproletário, expressava em voz alta o que as demais frações burguesas guardavam para a intimidade de seus escritórios.
[16] Possibilidade dos cidadãos, recolhendo certo número de assinaturas, possam reivindicar leis e reformas ao parlamento.
[17] A democracia se baseia na passividade e atomização da imensa maioria, reduzida a uma soma de indivíduos que quanto mais soberanos se crêem sobre seu próprio Eu, mais indefesos e vulneráveis são. Ao contrário, as Assembleias partem do postulado oposto: os indivíduos são fortes porque se apoiam sobre a "riqueza de seus laços sociais" (Marx) ao se integrar e ser parte ativa de um vasto corpo coletivo.
[18] O que permite introduzir a ideia de que existiria uma repressão "proporcional"!
[19] Pede que se for detectado um "violento" ou um "suspeito de ser violento" (sic), que seja abordado e condenado publicamente seu "comportamento".
[20] Sua origem mais remota são as reuniões de distrito na Comuna de Paris, mas é com o movimento revolucionário na Rússia de 1905 que se afirmam e, desde então, aparecem em todo grande movimento de classe sob diferentes formas e nomes: Rússia em 1917, Alemanha em 1918, Hungria em 1919 e 1956, Polônia em 1980... Na Espanha houve em Vigo em 1972 uma Assembleia Geral da cidade que se repetiu em Pamplona em 1973 e Vitória em 1976, para reaparecer de novo em Vigo em 2006. Escrevemos diferentes artigos sobre a origem das Assembleias operárias. Ver em particular a série: "O que são os Conselhos Operários? [131]".
[21] Além disso, em Cádiz a Assembleia Geral organiza um debate sobre a precariedade com grande assistência. Em Cáceres se denuncia a desinformação sobre o movimento na Grécia. Em Almeria se organiza para 15 de julho uma reunião sobre "a situação do movimento operário".
[22] Estas são uma faca de dois gumes: contém como pontos favoráveis a extensão do debate massivo em camadas mais profundas da população trabalhadora e a possibilidade – como já começou a acontecer – de impulsionar Assembleias contra Desemprego e a Precariedade, rompendo a atomização e o sentimento de vergonha que domina muitos trabalhadores precários das pequenas empresas. Mas, simultaneamente, servem para dispersar o movimento, fazê-lo perder o foco nas preocupações globais e encerrá-lo em dinâmicas civis, dão que o bairro – lugar onde convivem operários com pequena burguesia, empresários, etc. – dá mais oportunidade a esse tipo de reivindicação.
[23] Ver entre outros, Un protocolo anti-violencia en https://esparevol.foroactivo.com/t317-a-proposito-de-un-protocolo-anti-violencia [132]
[24] Na Coordenação de Assembleias de Bairros e Povoados do Sul de Madri há fundamentalmente Assembleias de trabalhadores de diversos setores, ainda que igualmente participem pequenos sindicatos radicalizados. Ver https://asambleaautonomazonasur.blogspot.com/ [133]
[25] A privatização de serviços públicos e caixas de pensões é uma resposta do capitalismo ao agravamento da crise e, mais concretamente, a que os Estados, cada vez mais endividados, vejam-se obrigados a reduzir os gastos, recorrendo para isso à degradação de serviços essenciais de maneira insuportável. No entanto, é importante compreender que a alternativa às privatizações não é a manutenção desses serviços sob a titularidade estatal. Em primeiro lugar, porque os serviços "privatizados" seguem sendo controlados por instituições estatais que subcontratam os serviços a empresas privadas. E, em segundo lugar, porque o Estado e a propriedade estatal não tem nada de "social" ou de "bem estar social". O Estado é um órgão exclusivo e excludente da classe dominante e a propriedade estatal se baseia na exploração assalariada. Este problema começou a se colocar em certos meios operários. Por exemplo, em uma reunião em Valência contra o desemprego e a precariedade. Ver kaosenlared.net/noticia/cronica-libre-reunion-contra-paro-precariedad.
[26] ERE: Expediente de Regulación de Empleo, procedimiento legal para despedir trabajadores temporal o definitivamente.
[28] Ver "Huelga del metal de Vigo: Los métodos proletarios de lucha [135]" y Vigo, los métodos sindicales conducen a la derrota, https://es.internationalism.org/node/2585 [136]
[29] O que não significa subestimar os graves obstáculos que a natureza intrínseca do capitalismo, baseada na competição até a morte e a desconfiança de todos sobre todos, opõe a este processo de unificação. Isto somente poderá realizar-se ao preço de enormes e complicados esforços baseando-se na luta unitária e massiva da classe operária, uma classe que por ser produtora coletiva e associada das principais riquezas sociais, leva em seu seio a reconstrução do ser social da humanidade.
[30] Ver la serie Mayo 68 y la perspectiva revolucionaria, primera parte "El movimiento estudiantil en el mundo en los años sesenta [137]".
[31] Ver Las revueltas de la juventud en Grecia confirman el desarrollo de la lucha de clases, "Las revueltas de la juventud en Grecia confirman el desarrollo de la lucha de clases [70]".
[32] A censura sobre o que ocorre na Grécia a nível dos movimentos de massa é total, o que dificulta a realização de uma análise. Depois da realização deste artigo, publicamos em nosso site um artigo dos companheiros do TPTG, grupo revolucionário que atua na Grecia: "Notas preliminares para un análisis del “Movimiento de asambleas populares” (TPTG, Grecia) [138]".
[33] Dados recolhidos de Kaosenlared: https://kaosenlared.net/ [139]
[34] Revista Internacional nº 20, Acerca de la intervención de los revolucionarios, respuesta nuestros censores, https://es.internationalism.org/node/2142 [140]
[35] Ver em nossa imprensa os diferentes artigos que pontuam cada um desses movimentos.
[36] Isto não era uma insistência específica da CCI, uma palavra de ordem bastante popular dizia "Ser realista é ser anti-capitalista", una bandeira sustentava "O sistema é desumano, sejamos anti-sistema".
"Vai acontecer um crack e a queda será muito violenta". "Ninguém acredita nos planos de resgate, as pessoas sabem que os mercados e as bolsas estão acabados". "Absolutamente, não cabe aos especuladores" como vamos direcionar a economia, nosso trabalho é fazer dinheiro com esse tipo de situações". "Deito-me todas as noites sonhando com uma nova recessão". "Em 1920, poucas pessoas estavam preparadas para tirar partido do crack e hoje todo mundo, e não só as elites, poderiam fazer isso ". "Esta crise econômica é como um câncer". "Tem que se preparar! Não há de se esperar que os governos solucionem nossos problemas já que não são eles os que governam o mundo e sim Goldman Sachs. Esse banco não se importa com os planos de resgate". "Eu predigo que em menos de 12 meses as poupanças de milhões de pessoas vão desaparecer e isto não será mais que o início". Esses comentários foram feitos, em 26 de Setembro, pelo especulador Alessio Rastani na rede de televisão BBC. [1] Desde então, o vídeo tem se reproduzido na Internet criando um verdadeiro escândalo. Certamente, nós compartilhamos o pessimismo do economista. Sem necessidade de prever de uma forma tão precisa o futuro, podemos afirmar sem medo, que o capitalismo vai continuar afundando, que a crise se ampliará e será cada vez mais devastadora, e que o sofrimento que traz a miséria vai alcançar uma grande parcela da humanidade.
As declarações de Alessio Rastani alimentam uma das grandes mentiras dos últimos anos, o mundo estaria arruinado devido exclusivamente ao sistema financeiro. É Goldman Sachs quem dirige o mundo. Todas as vozes antiglobalização, de esquerda e extrema esquerda gritam em uníssono: "Que horror! Esta é a causa de todos nossos males. Devemos retomar o controle da economia. Devemos por limites aos bancos e fazer parar a especulação. Devemos lutar por um Estado mais forte e mais humano!" Esse discurso é repetido sem cessar depois do fracasso do gigante bancário americano Lehman Brothers em 2008. Atualmente, até uma parte da direita clássica tem se unido a essa crítica radical do sistema financeiro e pede por mais moralização e por um maior papel do Estado. Esta propaganda nada mais é que uma farsa ideológica utilizada como ferramenta para ocultar a causa real do cataclismo atual: o fracasso histórico do capitalismo. Não é simplesmente um matiz ou uma simples questão de terminologia. Denunciar o neoliberalismo e denunciar o capitalismo é fundamentalmente diferente. Por um lado se fala da reforma desse sistema de exploração enquanto que por outro se afirma que o capitalismo não tem futuro, que deve ser destruído e substituído por uma nova sociedade. Entendemos porque a classe dominante, seus meios de comunicação e seus especialistas, investem tanta energia em assinalar a irresponsabilidade do sistema financeiro, acusando-o da situação econômica atual já que buscam desviar as reflexões em curso sobre a necessidade de uma mudança radical e, portanto, de uma revolução.
Depois de quatro anos, a cada crack da bolsa, reaparece o assunto de um "especulador irresponsável". Em janeiro de 2008, o escândalo de Jerome Kirviel foi a manchete de todos os jornais. Kirviel é julgado como responsável pela queda da Société Générale (banco francês) por ter perdido 4,82 bilhões de euros, devido a uma série de erros decorrente de má gestão. A verdadeira razão dessa crise, a explosão da bolha imobiliária dos Estados Unidos, é relegada ao segundo plano.
Em dezembro de 2008, o investidor Bernard Madoff é investigado por um desfalque de 65 bilhões de dólares. Converte-se no maior desfalque de todos os tempos e permite, pontualmente, esquecer o fracasso bancário do gigante americano Lehman Brothers.
Em setembro de 2011, o especulador Kweku Adoboli é acusado de uma fraude de 2,3 bilhões de dólares no banco suíço UBS. Esse assunto veio à luz do dia de uma forma totalmente inesperada e em meio a uma nova convulsão econômica mundial.
Evidentemente, todo mundo sabe que esses indivíduos são os bodes expiatórios. A corda puxada pelos bancos para justificar seus excessos é mais do que evidente para se deixar passar sem perceber. No entanto, esta intensa propaganda midiática permite focar toda atenção ao mundo financeiro. A imagem desses tubarões especuladores, sem escrúpulos, está fixando-se em nossas mentes até se converter em uma obsessão.
Assim, temos que refletir: como esses "diversos eventos" em si mesmos podem explicar porque a economia mundial está à beira de um colapso? Por mais indignantes que sejam essas fraudes de milhões de dólares, quando milhões de pessoas morrem de fome no mundo, por mais cínicos e vergonhosos que possam parecer os propósitos de Aléssio Rastani na BBC quando diz esperar um crack da bolsa para especular e se enriquecer, não tem nada que possa explicar a amplitude mundial da crise econômica que abarca atualmente todos os setores em todos os países. Os capitalistas, sejam banqueiros ou diretores, sempre buscaram o máximo lucro sem se preocuparem com os problemas da humanidade. Não é nenhuma novidade. O capitalismo é um sistema de exploração desumano desde o seu nascimento. A pilhagem bárbara e sanguinária das populações africanas e asiáticas nos séculos XVIII e XIX é uma prova trágica disso. A delinqüência dos especuladores e dos bancos não explica nada da crise atual. Se as fraudes financeiras provocam atualmente perdas colossais e colocam às vezes os bancos em perigo, na realidade é devido à sua fragilidade induzida pela crise e não o contrário. Se, por exemplo, o Lehman Brothers faliu em 2008, não foi por causa da sua política de investimento, mas por causa da quebra do mercado imobiliário americano durante o verão de 2007 e porque esse banco detinha um monte das obrigações sem valor. Com a crise das subprimes, as famílias americanas super-endividadas revelaram-se insolventes e todo mundo entendeu que os empréstimos contratados jamais seriam pagos.
As agências de qualificação [2] também são o fogo cruzado das críticas. No final de 2007, foram taxadas de incompetentes por terem negligenciado o peso das dívidas dos Estados. Hoje em dia, são acusadas do oposto, por dar muita importância à dívida soberana da zona do euro (Moody) e dos Estados Unidos (Standard and Poors). É verdade que essas agências têm interesses particulares, que seu juízo não é objetivo. As agências chinesas foram as primeiras em degradar a nota do estado americano, e as americanas são mais severas com a Europa do que com seu próprio país. É verdade, igualmente, que cada queda das notas de um país ou de uma empresa, é aproveitada pelos financistas para especular, o que acelera ainda mais a degradação das condições econômicas. Os especialistas falam das chamadas "profecias autorrealizáveis".
Mas a realidade é que todas as agências subestimam voluntariamente a gravidade da situação; as notas que atribuem são demasiadamente elevadas em relação à capacidade dos bancos, das empresas e de alguns Estados. O interesse dessas agências é criticar suavemente os fundamentos econômicos para não criar o pânico, pois a economia mundial é o galho onde todas se assentam. Quando baixam uma nota é porque têm essa obrigação, caso contrário ninguém acreditaria nelas. Do ponto de vista da classe dominante, é mais inteligente reconhecer algumas debilidades de seu próprio sistema para dissimular assim os problemas de fundo. Todos os que acusam as agências de qualificações o sabem perfeitamente. Se denunciam a qualidade dos termômetros, é para evitar as reflexões acerca da estranha doença que afeta o capitalismo mundial, por medo que percebamos que se trata de uma enfermidade degenerativa incurável.
Essas críticas dos especuladores e das agências de qualificação pertencem a uma campanha de propaganda muito mais ampla sobre a loucura e a hipertrofia do sistema financeiro. Como sempre, esta ideologia enganosa se apóia sobre uma parcela de verdade, já que não se pode negar que o mundo financeiro se converteu, nas últimas décadas, em um monstro gigantesco dotado de incurável obesidade e afundado no mais irracional dos comportamentos.
Existem muitíssimas provas. Em 2008, o total das transações financeiras mundiais se elevou a 2.200 trilhões de dólares, contra um PIB mundial de 55 trilhões. [3] E esses trilhões foram investidos ao longo dos anos de maneira enlouquecida e autodestrutiva. Um exemplo elucidativo é a venda a descoberto: "No mecanismo de venda a descoberto, começamos por vender um valor que não possuímos para depois voltarmos a comprá-lo. O objetivo do jogo é vender um valor a um preço e voltar a comprar a um preço inferior para tirar a diferença. O mecanismo é totalmente oposto ao de uma compra seguida de uma venda". [4] Concretamente, a venda a descoberto envolve imensos fluxos especulativos financeiros em torno de certos ativos apostando na queda dos seus preços, o que em ocasiões pode levar a um colapso do ativo visado. Isto agora se tornou um escândalo e muitos economistas e políticos nos dizem que este é o principal problema da falência da Grécia e da queda do euro. Assim, a solução é simples: proibir as vendas a descoberto e tudo voltará ótimo no melhor dos mundos. É verdade que este tipo de venda é uma loucura e que acelera a destruição de partes importantíssimas da economia. Mas é justamente isso: só faz acelerar, não é a causa! O contexto que permite essas operações em grande escala é a crise econômica. O fato de que os capitalistas apostem de maneira consciente na baixa e não na alta dos mercados revela na realidade a total falta de confiança que eles mesmos têm no futuro da economia mundial. Também é a razão pela qual há cada vez menos estabilidade e cada vez menos investimentos a longo prazo: se os investidores jogam a curto prazo fazendo operações espetaculares e retirando-se rapidamente sem se preocupar com a continuidade das empresas e das fábricas é porque não há quase nenhum setor industrial seguro e rentável a longo prazo. E é aqui onde começamos verdadeiramente chegar ao centro do problema: a economia chamada real ou tradicional está submersa em águas pantanosas há décadas. Os capitais fogem dessa esfera que é cada vez menos rentável. O comércio mundial está saturado de produtos que não podem ser vendidas, as fábricas não estão produzindo e não acumulam o suficiente. O resultado é que os capitalistas investem em especulação. Daí procede a hipertrofia do sistema financeiro, que não é mais que um sintoma da doença incurável do capitalismo: a superprodução.
Aqueles que apontam o neoliberalismo como problema concordam que a economia real está em apuros, porém não atribuem isto à impossibilidade do capitalismo continuar se desenvolvendo. Eles negam que o sistema se tornou decadente e que está em sua agonia de morte. Os ideólogos antiglobalização atribuem à destruição da indústria depois das más escolhas nas políticas dos anos 60 e, consequentemente, à ideologia neoliberal. Para eles, como para nosso especulador Alessio Rastani, é Goldman Sachs quem dirige o mundo. Lutam por um Estado melhor, por mais regulação, por uma maior política social. Partindo da crítica do neoliberalismo, mostram-nos outra ilusão: o estatismo. "Com um maior controle do Estado sobre sistema financeiro, poderíamos construir uma nova economia: mais social e mais próspera".
No entanto, um Estado com maior protagonismo não permitirá solucionar os problemas econômicos que afetam o capitalismo. Repetimos que o que mina o sistema é a tendência natural de produzir mais mercadorias do que os mercados podem absorver. Durante décadas, conseguiu evitar a paralisia da sua economia ao vender sua produção em um mercado criado artificialmente pelo endividamento. Em outros termos, o capitalismo sobrevive à base de créditos desde os anos 1960. É por isso que hoje, os particulares, empresários, bancos e Estados se afundam sob uma gigantesca montanha de dívidas e por isso que a recessão atual é conhecida como a "crise da dívida". Desde o fracasso do Lehman Brothers em 2008, o que os Estados fizeram através dos seus bancos centrais (FED [EUA] e BCE [Europa] à frente)? Injetam bilhões de dólares para evitar o afundamento. Mas de onde vem esse dinheiro? De novas dívidas! Não se faz mais do que deslocar a dívida privada para a esfera pública e assim preparar futuras falências dos Estados, como estamos observando atualmente com a Grécia. As tempestades econômicas que estão por vir podem ser de uma violência sem precedentes. [5]
"Mas se o estado não soluciona a crise, poderia ao menos nos proteger e ter uma atitude mais social", é o que a esquerda nos fala. Mas isso é esquecer um pouco rápido demais que o Estado sempre foi o pior dos patrões. As nacionalizações nunca foram uma boa notícia para os trabalhadores. Após a Segunda Guerra Mundial, a maior onda de nascionalizações que se produziu tinha por objetivo elevar o aparato produtivo destruído e aumentar o ritmo do trabalho. Na época , Thorez, secretário geral do Partido Comunista francês e vice-presidente do governo dirigido por De Gaulle (famoso general de direita), lançou o apelo à classe operária francesa, e, em particular, dos operários das empresas nacionalizadas: "Se os mineiros morrerem no trabalho, suas esposas irão substituí-los" ou "arregace as mangas para a reconstrução nacional", e "a greve é a arma dos trustes". Bemvindo no mundo maravilhoso das empresas nacionalizadas. Aqui não têm nada de inesperado nem de surpreendente. Os comunistas revolucionários têm colocado sempre em evidência desde a experiência da Comuna de Paris de 1871, o papel visceralmente anti-proletário e desumano do Estado. "O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, o capitalista coletivo Ideal. E quanto mais forças produtivas passe à sua propriedade tanto mais se converterá em capitalista coletivo e tanto maior quantidade de cidadãos explorará. Os operários continuam sendo operários assalariados, proletários. A relação capitalista, longe de ser abolida com essas medidas, se aguça". Friedrich Engels escreveu essas linhas em 1878, o que mostra que, já na época, o Estado começava a estender seus tentáculos sobre a totalidade da sociedade, a agarrar com mão de ferro toda a economia nacional, as empresas públicas e as grandes sociedades privadas. Desde então, o capitalismo de estado não tem feito mais que se reforçar: cada burguesia nacional se fortalece atrás de seu Estado para levar a guerra comercial internacional sem piedade que travam todos esses países.
Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, conheceram nesses últimos anos um êxito econômico de grande ressonância. A China, em particular, é considerada atualmente como a segunda potência econômica mundial, e muitos são os que pensam que logo destronará os Estados Unidos. Este êxito impressionante, faz os economistas esperar que este grupo de países poderia se converter na nova locomotiva da economia mundial, como o foram os Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial. Ultimamente, devido aos riscos de explosão da zona do euro, a China, se propôs a reavivar as finanças italianas. A turma dos anti-globalização vêem nisso um motivo de alegria: uma vez que a supremacia americana do neoliberalismo é vista por eles como a pior das pragas nestas últimas décadas, o crescimento do poder desses países emergentes permitiria um mundo mais equilibrado, mais justo. Esta esperança de ver o desenvolvimento dos países emergentes, compartilhada por todos os burgueses assim como os "anti- globalização", não é somente cômica, mas revela que todos estão vinculados ao mundo capitalista.
Esta esperança desaparecerá, pois há um ar de déjà-vu sobre todo esse assunto de "milagre econômico". A Argentina e os tigres asiáticos nos anos 80 e 90 e mais recentemente Irlanda, Espanha ou Islândia, foram exibidos como "milagres econômicos". E como todo milagre, a realidade acabou por se impor. Todos esses países deveram seu rápido crescimento a um endividamento desenfreado e conheceram a mesma sorte: recessão e fracasso. E ocorrerá o mesmo com os BRIC. A preocupação cresce em torno do endividamento real das províncias chinesas, sobre a desaceleração do crescimento e sobre o aumento da inflação. O presidente do fundo soberano chinês China Investment Corp, Gao Xiping, declarou "Não somos salvadores devemos salvar a nós mesmos". Mais claro que isso, impossível!
O Capitalismo não pode ser reformado. Ser realista, é admitir que só a revolução pode solucionar a catástrofe. O capitalismo, como a escravidão e a servidão, é um sistema de exploração condenado a desaparecer. Depois de ter expandido durante os séculos XVIII e XIX, e depois de conquistar o planeta, o capitalismo entrou em decadência desencadeando a Primeira Guerra Mundial. A Grande Depressão dos anos 30 e a carnificina da Segunda Guerra Mundial confirmaram a obsolescência desse sistema e a necessidade de destruir esse sistema social moribundo para que a humanidade sobreviva. Porém desde os anos 1950, não houve uma crise de magnitude da de 1929. É verdade que a burguesia aprendeu a limitar os danos e reativar a economia: o que faz alguns pensar que a crise que hoje atravessamos não é mais que um novo episódio desses tremores, e que o crescimento não tardará em voltar, como acontece desde os 60 anos. Na realidade, as recessões sucessivas em 1967, 1970-71, 1974-75, 1991-93, 1997-1998 (na Ásia) e 2001-2002 não fizeram mais que preparar o drama atual. Com efeito, em cada ocasião, a burguesia só conseguia relançar a economia mundial ao preço da abertura das comportas dos créditos. Não chegaram nunca a solucionar o problema de fundo, a superprodução crônica. Não fez mais que adiar os prazos recorrendo às dividas e atualmente o sistema está afogado por elas. Todos os setores, todos os Estados estão superendividados. Esta corrida para frente atinge os seus limites. Isto que dizer que a economia vai se bloquear e que tudo vai parar? Evidentemente que não. A burguesia continuará a se debater. Concretamente, a classe dominante tem que escolher entre duas políticas, que são como escolher entre a peste e a cólera: austeridade draconiana ou a retomada através da máquina de produzir dinheiro. A primeira leva à recessão violenta e a segunda à explosão de uma inflação incontrolável.
Doravante, a alternância de fases curtas de recessão e de longos períodos de retomada financiadas através de créditos, é uma época definitivamente passada: o desemprego vai explodir e a miséria bem como a barbárie vão se expandir de forma dramática. Pode ser que haja fases de recuperação (como em 2010), porém essas não serão mais que pequenos balões de oxigênio de muito curta duração, às quais sucederão novos desastres econômicos. Todos aqueles que pretendem o contrário são como o suicida que, depois de ter saltado do alto do Empire State Bulding, dizia em cada andar que até ali tudo ia bem. Não esqueçamos que no começo da grande depressão de 1929, o presidente americano Hoover afirmava que a prosperidade estava logo na esquina. A única incerteza é como a humanidade vai se sair disso. Vai se afundar junto com o capitalismo? Ou vai ser capaz de construir um novo mundo de solidariedade, sem classes nem Estado, sem exploração ou lucro? Como escreveu Friedrich Engels há um século: "a sociedade burguesa está diante de um dilema: ou se dirige ao socialismo ou cai na barbárie". As chaves desse futuro estão nas mãos da classe operária, de suas lutas unificadoras para os trabalhadores, desempregados, aposentados e jovens precarizados.
Pawel (29 de setembro de 2011)
[1] Fonte: "Alessio Rastani (en français) - "C'est Goldman Sachs qui dirige le monde et pas les politiques" - BBC - 26/09/2011 [141]".
[2] Chamadas também de rating, as mais famosas são Standard & Poors, Moody's, Fitch etc.
[3] Fonte: www.jacquesbgelinas.com/index_files/Page3236.htm [142].
[4] Fonte: http ://www.abcbourse.com/apprendre/1_vad.html [143]
[5] Apostar em "mais Europa" ou em "mais governo mundial" também é outro beco sem saída. O fato de vários Estados se juntarem não vai solucionar a crise. O máximo que podem chegar é abrandar o avanço da crise, enquanto suas divisões a aceleram.
Os acontecimentos estão sendo explicado a partir de fatores supostamente nacionais o que se resumiria na famosa "Spanish Revolution".
Nada mais falso e enganoso! O desencanto com a chamada "classe política" é um fenômeno mundial, é muito difícil encontrar um país onde seus habitantes confiem em seus "representantes", sejam esses ratificados no circo eleitoral ou ditatorialmente impostos. A corrupção que tem se adicionado como outra possível explicação é igualmente um fenômeno mundial do qual não há país que escape [1]. Certamente, tanto na "qualidade" dos políticos como na corrupção há distintos graus segundo os países, porém essas diferenças são as árvores que nos impedem ver o fenômeno histórico e mundial da degeneração e do apodrecimento do capitalismo.
Outras razões colocadas sobre a mesa são o desemprego massivo, especialmente entre os jovens. Tem-se falado também da precariedade, dos cortes nos gastos sociais generalizados que se têm perpetrado e se preparam para depois das eleições. Tudo isso não tem nada de espanhol. Vimos isso não só na Grécia, Irlanda ou Portugal, mas também nos Estados Unidos e Inglaterra. Mas se é verdade que esses ataques na classe trabalhadora e na grande maioria da população variam em graus diferentes segundo os países – o capitalismo é uma fonte permanente de desigualdade e agravos comparativos – é um erro colocar "se X é menos pobre que Y" quando todos tendemos a ser mais e mais pobres!
O rosto amargo do desemprego o vemos tanto em Madrid como no Cairo, tanto em Londres como em Paris, tanto em Atenas como em Buenos Aires. Torna-se absurdo e estéril buscar impetuosamente tudo o que distingue e diferencia quando o que devemos ver é tudo o que une e generaliza. Na situação atual se vê de forma cada vez mais patente o que impera é a degradação geral das condições de vida dos explorados do mundo. Todos nos vemos unificados em uma mesma queda em direção ao abismo, que não só se manifesta no desemprego, na inflação, na precariedade, na eliminação de prestações sociais, mas igualmente na multiplicação de desastres nucleares, de guerras e em um poderoso deslocamento das relações sociais acompanhada de uma crescente barbárie moral.
É evidente que a pressão da ideologia dominante, estreitamente nacionalista, tenta encarcerar o movimento que estamos vivendo nas quatro paredes da "Spanish Revolution". É certo que as dificuldades da tomada de consciência fazem com que muitos protagonistas os vejam segundo esse prisma deformado, assim, nas Assembléias é muito escassa a reflexão sobre a situação mundial, ou sobre a própria situação da imensa maioria dos trabalhadores [2]...
Porém, como é possível que falemos de um elo do movimento internacional da classe operária quando a grande maioria dos assistentes embora seja operários (desempregados, jovens trabalhadores precários, funcionários, aposentados, estudantes, emigrantes...), não se reconheçam como pertencentes à classe operária e cujo termo apenas é pronunciado nas assembleias [3]?
Diferentes fatores explicam esta dificuldade: a classe operária padece de um forte problema de identidade e de confiança em si mesma. Por outro lado, a insatisfação generalizada não afeta unicamente a classe operária, mas também amplas camadas da população oprimida e não exploradora, o que se nota através de uma proletarização de extratos sociais pequeno-burgueses ou de profissões liberais [4]. Tudo isso faz com que o movimento possa parecer, segundo uma visão superficial, como interclassista, caoticamente desviado para uma infinidade de preocupações, muito sensíveis às reinvidicações democráticas... no entanto, se o olharmos mais profundamente, o movimento pertence por inteiro ao combate internacional da classe operária. Estamos imersos em um processo de lutas massivas, as quais servirão para que o proletariado comece a tomar confiança nas suas próprias forças e comece a se ver como uma classe social autônoma capaz de propor uma alternativa a esta sociedade condenada à ruína. A falha tectônica que vai da França 2006 [5] à Grécia 2008 [6] para voltar de novo à França 2010 [7], prosseguindo com Inglaterra 2010 e continuar com o Egito-Tunísia 2011 [8], se manifesta no imenso terremoto espanhol. Estão sendo preparadas as bases para grandes terremotos sociais que acabarão abrindo a via dolorosa para a emancipação da humanidade.
Uma análise internacional e histórica é mais clara se consegue integrar os fatores particulares, nacionais ou conjunturais. Em contrapartida, jamais se pode compreender os fatos caso se parte desses fatores específicos. O movimento que estamos vivendo partiu de um protesto "contra os políticos" organizado pela Democracia Real Já (Democracia Real Ya). As manifestações de 15 de maio foram um êxito espetacular: o descontentamento generalizado, o mal estar ante a falta de futuro, encontraram nelas um canal inesperado.
Aparentemente tudo terminava aí, porém em Madrid e em Granada, ao final da manifestação, houve violentos ataques da polícia com mais de 20 detidos que foram duramente tratados nos comissariados. Os detidos se agruparam em uma Assembléia que adotou um comunicado [9], cuja difusão produziu uma forte impressão e uma fulminante reação de indignação e solidariedade. Um grupo de jovens decidiu estabelecer um acampamento na Puerta del Sol de Madrid – praça central da cidade. No mesmo domingo, o exemplo se estende a Barcelona, Granada e Valência. Um novo ato da repressão acentua os ânimos e desde então as concentrações acabaram generalizando-se a mais de 70 cidades e a afluência às mesmas foi crescendo vertiginosamente.
A terça-feira à tarde constitui um momento decisivo. Os organizadores haviam programado atos silenciosos de protesto ou inofensivas encenações lúdicas (as chamadas "performances"), mas a participação aumentava rapidamente e pedia aos gritos a realização de Assembléias. Na terça-feira às 20 horas acontecem assembléias em Madrid, Barcelona, Valência e outras cidades, mas a partir da quarta-feira a avalanche foi formidável, as concentrações se transformam em Assembléias Abertas.
Apesar de ser um símbolo, o movimento se chama de 15-M, esta convocatória não foi criada por causa dele, mas simplesmente ofereceu um primeiro invólucro. E esse invólucro é na realidade uma couraça que o aprisiona, pois lhe dá como objetivo algo tão utópico como mistificador: a "regeneração democrática" do Estado espanhol [10]. O enorme descontentamento social tenta se canalizar para o que se conhece como "Segunda Transição". Após 34 anos de democracia, a grande maioria da população está muito decepcionada, mas isto se "explica" porque "estamos padecendo de uma democracia imperfeita e limitada" por culpa do pacto que houve de fazer com os "setores inteligentes" do franquismo, é preciso, portanto, uma "segunda transição" que nos levará a uma "democracia plena".
O proletariado na Espanha é vulnerável a esta mistificação dado que a Direita espanhola é altamente autoritária, arrogante e irresponsável, fazendo desta forma pouco acreditável a "democracia realmente existente". Porém ao impulsionar o "povo" a se "rebelar contra os políticos" e a exigir uma "Democracia Real Já", a burguesia trata de ocultar que essa é a única democracia possível e não há outra.
O governo Zapatero não tem sido muito delicado diante de uma situação explosiva com mais de 40% de jovens no desemprego. Zapatero chamou de "velhacos" aos que se atreveram a duvidar das – grandes conquistas sociais!- do seu governo o que tem inflamado os ânimos de muitos jovens. Entretanto, existe algo mais profundo: o jogo democrático propunha como alternativa ao PSOE, um PP que todo mundo teme porque conhece de sobra a sua arrogância, brutalidade e reflexos autoritários. Espanha não é Inglaterra onde Cameron – apoiado pelos "modernos" liberais – gozava previamente de uma melhor imagem, aqui – embora na prática sempre seja o PSOE o que comete os piores ataques – a Direita tem uma merecida fama de inimiga das classes trabalhadoras além de representar um bando de personagens fanáticos e corruptos [11].
Uma grande maioria da população contempla assustada o panorama de passar da bestialidade dos "amigos" socialistas a maior bestialidade, se é possível, às mãos dos inimigos declarados do PP. É a confiança no jogo democrático e seus resultados eleitorais! Diante de uma situação insuportável e um futuro dos mais aterrorizantes, as pessoas tomaram as ruas. Suas próprias confusões e ilusões, assim como a propaganda democrática, fizeram com que houvesse uma forte presença nas assembléias a proposta de terminar com o bi-partidarismo. Mas se trata de algo irrealista e puramente mistificador, o mapa político espanhol é rigidamente bi-partidarista – a partir do longo período de bipartidarismo da época de Cánovas [12] – e, como tem demonstrado os resultados das eleições municipais e autônomas, tende a reforçar-se [13].
No entanto, diante dessa democracia que reduz a "participação" a eleger a cada 4 anos o político de plantão que nunca cumprirá as promessas e sempre executará o "programa oculto" do qual jamais havia falado, o movimento na Espanha tem encontrado uma arma gigantesca onde de verdade a grande maioria pode se reunir, pensar e decidir: as Assembléias multitudinárias de cidade.
Na democracia burguesa o poder de decisão é entregue a um corpo burocrático de políticos profissionais que por sua vez obedecem sem questionar as ordens do Partido, o qual não é senão um defensor e intérprete do interesse do Capital.
Em contrapatida, nas Assembléias o poder de decisão é exercido diretamente pelos participantes que pensam, discutem e decidem juntos e são eles mesmos os que se organizam para colocar em prática as decisões.
Na democracia burguesa se consagra e reforça a atomização individual, a concorrência e o encerramento de cada qual "na sua", que caracteriza esta sociedade. Por outro lado, nas Assembléias se desenvolve um pensamento coletivo, todos podem aportar o melhor de si mesmo, todos podem sentir a força e a solidariedade comum, cria-se um espaço onde gera o antídoto contra a divisão e a fragmentação da sociedade capitalista e forjar os fundamentos de uma nova sociedade baseada na abolição da exploração e das classes, na formação de uma comunidade humana mundial.
Sé é certo que a democracia burguesa representou um indiscutível progresso frente ao poder absoluto dos monarcas, a evolução do Estado desde princípios do século XX consagrou o poder absoluto de uma combinação entre o que se chama a classe política e os grandes poderes econômicos e financeiros, ou seja, o Capital em seu conjunto. Por muitas listas abertas[14] que tenha, por muitas restrições que se coloque ao bipartidarismo, o poder descansa nessa minoria privilegiada e resulta ainda mais absoluto e ditatorial que o mais absolutista dos monarcas feudais. No entanto, diferentemente deles, essa ditadura do capital se legitima periodicamente com a farsa eleitoral.
As assembléias cruzam com a tradição proletária dos Conselhos Operários de 1905 e 1917 [15] que se estenderam à Alemanha e outros países durante a onda revolucionária de 1917-23.
Que penoso é o ambiente de uma mesa eleitoral onde os "cidadãos" ficam silenciosos, como cumprindo uma obrigação de cuja utilidade duvidam e sentem uma forte culpabilidade pelo voto emitido que sempre resulta "equivocado"!
Por outro lado, que emocionante é o ambiente que estamos vendo esses dias nas assembléias! Percebe-se um grande entusiasmo e uma vontade enorme de participar. Numerosos oradores fazem uso da palavra colocando toda ordem de questões. Terminada a assembléia geral, celebram-se reuniões de comissões que se prolongam durante as 24 horas do dia. Toma-se contato, se conhece pessoas, fazem reflexões em voz alta, se repassa de cima a baixo todos os aspectos da vida política, social, cultural, econômica... Descobre-se que se pode falar, que se pode tratar coletivamente de todos os assuntos... nas praças ocupadas são montadas bibliotecas, se organiza um "banco de tempo" para dar aulas de todos os temas tanto científicos como culturais, artísticos, políticos ou econômicos. Expressam-se sentimentos de solidariedade, se escuta atentamente sem que nada diga nem imponha nada, um canal se abre para a empatia geral. De maneira ainda tímida está criando-se uma cultura do debate massiva [16], reflexões múltiplas, propostas muitas vezes interessantes, variadas idéias, parece que os assistentes querem fazer públicos seus pensamentos, seus sentimentos, depois de tanto tempo meditando na solidão e na atomização. As praças se vêem inundadas por uma gigantesca e coletiva tormenta de idéias, a massa consegue expressar o melhor e mais profundo de si mesma. Essa massa anônima de pessoas, que supostamente são os perdedores da vida, detêm capacidades intelectuais, sentimentos ativos, emoções sociais, inesperadas, imensas, profundas.
A pessoa se sente libertada e goza apaixonadamente do prazer imenso de poder discutir coletivamente. Na aparência, a torrente de pensamentos não acaba em nada. Não há propostas concretas. Porém isto não é necessariamente uma debilidade, após longos anos de opressiva normalidade capitalista onde a imensa maioria sofre a ditadura do desprezo, as rotinas mais alienantes, os sentimentos negativos de culpa, de frustração, de atomização, torna-se inevitável uma primeira etapa de explosão desordenada. Não existe outra maneira, não há planos pedantes para que o pensamento da imensa maioria possa se expressar. Tem de percorrer esse caminho – que na aparência não vai a lugar nenhum – para transformar-se a si mesma e transformar de cima abaixo o panorama social.
É certo que os organizadores apresentam uma e outra vez manifestos democráticos e nacionalistas. Em parte estão refletindo as ilusões e confusões que padece a maioria, porém, ao mesmo tempo, o curso que está seguindo o pensamento de muitos participantes vai por outras direções que se esforçam por sair à superfície. Assim, por exemplo, em Madrid uma palavra de ordem que está se tornando popular sem que tenha sido recolhida pelos alto-falantes é "Todo o poder para as Assembléias", também "sem trabalho, sem casa, sem medo", "o problema não é a democracia, o problema é o capitalismo". "Operários despertai!" Em Valência algumas mulheres diziam “Enganaram os avós, enganaram os filhos, que os netos não se deixem enganar! Ou "600 euros ao mês, isso sim que é violência!".
As assembleias foram o teatro de um debate que surgiu como uma tensão entre diferentes ênfases polarizadas em 3 eixos:
Nas Assembléias convivem duas "almas"; a alma democrática que constitui um freio conservador e a alma proletária que busca definir-se em uma abordagem de classe.
As assembléias celebradas no domingo 22 resolvem no segundo ponto de debate a continuidade do movimento, muitas intervenções dizem "não estamos aqui pelas eleições embora elas tenham sido o detonante". Com relação ao terceiro ponto, multiplicam-se as intervenções de "ir em direção à classe operária" propondo adotar reivindicações contra o desemprego, a precariedade, os cortes sociais. Do mesmo modo, foi decidido estender as Assembléias aos bairros e começam a surgir vozes pedindo sua extensão aos centros de trabalho, universidades, escritórios de desemprego... Em Málaga, Barcelona e Valência se tem colocado a realização de uma manifestação contra os cortes sociais pedindo uma nova greve geral que "seja de verdade", como reclamou um dos oradores.
A fase inicial de agora, constitui por si mesma uma grande conquista do movimento. Deveria continuar, pois significa que massas importantes de explorados começam a resistir a "viver como até então". A indignação leva à necessidade de uma regeneração moral, de uma mudança cultural, as propostas que se fazem –inclusive embora pareçam ingênuas ou peregrinas – manifestam uma ânsia, ainda tímida e confusa, de "querer viver de outra maneira".
Porém, ao mesmo tempo pode findar o movimento nesse nível sem formular alguns objetivos concretos?
É difícil responder: há duas respostas que estão lutando em silêncio, expressão das duas "almas" que dissemos antes, a democrática e a proletária. A democrática finca suas raízes na falta de confiança da classe nas suas próprias forças, o peso de camadas sociais não proletárias, mas não exploradoras, o impacto da decomposição social [18] que faz agarrar-se a batata quente de um Estado"justo" e "equitativo".
A outra via, a de estender as assembléias a centros de trabalho, centros de estudos, agências de empregos, bairros, polarizando na luta contra os efeitos do desemprego e da precariedade, em resposta aos inumeráveis ataques que temos sofrido e estão por vir. Encarna-se em um setor muito combativo. Em Barcelona trabalhadores da Telefônica, trabalhadores de hospitais, bombeiros, estudantes de universidade, mobilizados contra os cortes sociais, têm se unido às assembléias e começam a dar uma tonalidade diferente. A Assembléia central de Barcelona parece a mais distanciada das colocações de regeneração democrática. A Assembléia central de Madrid tem convocado assembléias em bairros e distritos. Em Valência houve conjunção com um protesto de motoristas de ônibus e também com uma manifestação de moradores contra os cortes no ensino. Em Zaragoza, os trabalhadores de ônibus têm se reunido aos congregados com grande entusiasmo.
Essa segunda via apresenta uma dificuldade a mais. Está claro que existe o perigo real de que a "extensão" do movimento acabe levando à sua dispersão e fechar-se em reivindicações setoriais e corporativas. Trata-se de uma contradição real. Por um lado, o movimento somente pode continuar se lograr recolher, ou ao menos começar a despertar, a participação da classe operária como tal. No entanto, tal extensão pode dar fôlego aos sindicatos para pongar no movimento em marcha e aprisionar em reivindicações localistas etc. Sem negar este perigo, cabe perguntar: O fato mesmo de tentar inclusive, embora fracasse, não proporciona as premissas de uma luta coletiva que pode ter grande força no futuro?
Qualquer que seja o rumo que tome o movimento, sua contribuição à luta internacional da classe operária torna indiscutível:
A compreensão do que está ocorrendo deve impulsionar a abandonar velhos esquemas. A Revolução Russa de 1905 mostrou claramente uma nova maneira de ação das massas. Tal evento resultou na perplexidade e posteriormente no rechaço, para acabar na traição, de muitos dirigentes sindicais e sociais-democratas, e teóricos importantes como Kautsky e Plekhanov, que se agarravam desesperadamente aos velhos esquemas da "acumulação metódica de forças" mediante um gradual trabalho sindical e parlamentar [20].
Hoje temos que evitar uma armadilha semelhante. Os fatos não sucedem tal e como poderia esperar segundo um esquema amarrado às lutas dos anos 1970 e 1980. É certo que um proletariado com dificuldades de identidade e de confiança em si mesmo, não se mostra "gritando a pleno pulmão"; é certo, também, que junto a ele se mobilizam as camadas sociais não exploradoras. O movimento de avanço para lutas massivas, para um combate revolucionário, não escorre por canais bem definidos e delimitados que deixam claro e inequívoco seu terreno de classe. Isto apresenta riscos -um proletariado ainda débil pode se sentir desorientado e confuso em meio a um vasto movimento social, poderia inclusive parecer que está completamente perdido como aconteceu na Argentina em 2001.
Isso não diminui nem um pouco o potencial do que está acontecendo:
CCI 25-05-2011
[1] A corrupção está no próprio genoma do capitalismo considerando que sua "moral" consiste em que "vale tudo" para conseguir o maior lucro. Com essa premissa congênita e no marco da agudização da crise, que propaga a máxima irresponsabilidade tanto da classe empresarial como política, a corrupção se faz inevitável em todo Estado qualquer que sejam suas leis
[2] No entanto, nas assembléias começam a surgir colocações internacionalistas. Um orador em Valência, no domingo, se proclamou "cidadão do mundo" e disse que não podíamos nos limitar a mudar a Espanha. Está se fazendo um esforço de tradução dos comunicados das Assembléias em todos os idiomas "estrangeiros" possíveis o que contrasta com a colocação inicial "espanhol". Embora seja verdade que as mobilizações fora da Espanha em numerosos países se coloca como "assunto de espanhóis no mundo", parece que algumas concentrações começam a adotar outro símbolo.
[3] Embora começa a se repetir a partir das assembléias do domingo 22.
[4] Não somente nos países do "Terceiro Mundo" (que terminologia tão anacrônica!), mas igualmente nos países centrais. Técnicos de informática altamente capacitados, advogados, jornalistas etc., se veem relegados à condição de precarizados ou freelancer em situação instáveis. Pequenos empresários se transformam em autopatrões que trabalham mais horas que um relógio...
[5] Ver Teses sobre o movimento dos estudantes da primavera 2006. [https://pt.internationalism.org/icconline/2006_estudiantes_franca [108]]
[7] Ver "Francia, Gran Bretaña, Túnez - El porvenir es que la clase obrera desarrolle internacionalmente sus luchas y sea dueña de ellas [144]"
[8] Ver O que está acontecendo no Oriente Médio [https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/O_que_esta_acontecendo_no_Oriente_Medio [145]]
[9] Ver em madrid.indymedia.org/node/17370 (O comunicado dos detidos que reflete eloquentemente o tratamento recebido).
[10] O Estado é o órgão da classe dominante. Embora se apresente sob a forma democrática sua própria estrutura se fundamenta na delegação do poder, o que não apresenta nenhum problema para a minoria exploradora que ao possuir os meios de produção tem "a carta na manga" e pode submeter os políticos profissionais aos seus interesses. Entretanto, é muito diferente para a classe operária e a imensa maioria: sua "participação" se reduz a outorgar um cheque em branco a esses senhores que – ainda que atuem com a maior honradez e renunciem a todo interesse pessoal – se vêem totalmente enredados na teia de aranha burocrática do Estado. Por outro lado, de maneira mais específica, as reformas propostas, no caso de ser tomada realmente a sério, levariam um longo tempo de trâmites parlamentares – onde podem ser facilmente desnaturalizadas – e a sua aplicação tornaria mais que incerta.
[11] É significativo que a estratégia adotada pelo candidato do PP, Rajoy, consista em não dizer absolutamente nada, mantendo um discurso vazio recheado dos mais patéticos lugares comuns, mantendo um silêncio ensurdecedor, é a única forma que tem de impedir que os votantes de esquerda se mobilizem contra ele.
[12] Após a revolução de 1868 – chamada de A Gloriosa – e os convulsivos anos que se seguiram, em 1876 se instaurou um compromisso entre o partido conservador de Cánovas e o liberal de Sagasta, que perdurou até 1900.
[13] Os pequenos partidos, nos quais muitas intervenções nas assembléias depositam esperanças, embora tenham um programa de defesa do capitalismo tão contudente como o dos grandes e de se dotar de uma estrutura interna tão burocrática e ditatorial como aqueles, não possuem nenhum papel próprio, são como uma espécie de bolsa que se inflam conjunturalmente quando algum dos grandes baixa e se comprime quando os dois grandes necessitam ocupar todo o espaço no Governo e na Oposição.
[14] Na Espanha vigora o sistema eleitoral de lista fechada. Por lista fechada, compreende-se o sistema pelo qual os partidos, antes das eleições, definem a ordem dos candidatos na lista. Assim, o eleitor vota na lista proposta pelo partido. Daí as ilusões nas listas abertas.
[15] Ver a série O que são os Conselhos Operários? [https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_que_sao_os-Conselhos_Operários [146]]
[16] Ver A cultura do debate uma arma da luta da classe. [https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/A_cultura_do_debate_uma_arma_da_luta_da_classe [147]]
[17] Expresso no Decálogo democrático aprovado pela Assembléia de Madrid: listas abertas, reforma eleitoral...
[19] Diferente do que ocorreu na França e Inglaterra onde as mobilizações tinham como eixo visível a resposta aos ataques muito duros dos governos.
[20] Diante deles Rosa Luxemburgo com Greve de massas, partido e sindicatos , ou Trotsky com Balanço e Perspectivas souberam captar as características e a dinâmica da nova época da luta de classes.
A onda de rebelião no Norte da África e no Oriente Médio não parece debilitar-se. Estamos presenciando novos desdobramentos:
Entretanto, o que parece ser o desenvolvimento mais importante da última semana é a manifestação explícita de lutas massivas de trabalhadores no Egito.
Para ilustrar isso, apoiamo-nos sobre passagens de artigos de jornalistas ou universitários que evidenciam expressões da luta de classe neste país, muito mais avançadas que os elementos de informação acessíveis pelo leitor comum dão a perceber, considerando em particular a atividade de auto-organização dos operários. Carregado por seu entusiasmo legítimo, o autor de uma passagem tende a forçar a barra quando fala da "luta revolucionária nos centros de trabalho". Segundo nós, a maduração da situação não chegou a este nível, como ilustram os limites atuais do movimento tais como as expomos no fim deste artigo.
Como Hossam-El-Hamalawy [i] explica em um artigo publicado no The Guardian [ii] no dia 14 de fevereiro, o despertar da luta operária com suas próprias demandas influiu poderosamente na decisão do Exército em livrar de Mubarak:
"Todas as classes sociais do Egito participaram do levante. Na Praça de Tahrir podia se encontrar os filhos e as filhas da elite egípcia junto com os trabalhadores, os cidadãos de classe média e os pobres da cidade. Porém o regime começou a balançar definitivamente quando as greves massivas começaram na quarta-feira, 09, [iii] o que obrigou aos militares forçarem Mubarak a renunciar porque ele pôs o regime à beira do colapso... Desde o primeiro dia do levante em 25 de janeiro, a classe trabalhadora participou os protestos. Entretanto, os trabalhadores tomaram parte como "manifestantes", mas não necessariamente como "trabalhadores" - significa dizer que não haviam atuado de maneira independente. Não tinham sido os manifestantes que haviam paralisado a economia mas o próprio governo com os contínuos toques de recolher e a decretação de fechamento de bancos e centros de negócios. Se tratava de uma espécie de greve capitalista que pretendia aterrorizar o povo egípcio. Porém quando o governo quis fazer o país voltar à normalidade a partir de 8 de fevereiro, os trabalhadores não se mostraram de acordo, discutiram sobre a situação em curso e começaram a organizar-se massivamente como um bloco independente".
Um artigo de David McNally [iv] nos dá uma idéia da amplitude que está tendo o movimento:
Poderíamos acrescentar outros numerosos exemplos: cerca de 20 mil operários de Al-Mahalla Al-Kobra, a uns 100 kms ao norte do Cairo, que após 3 dias de calma, realizaram a greve na maior fábrica têxtil do país. 150 guias turísticos que fizeram um protesto contra seus miseráveis salários, na sombra da Grande Pirâmide. Os trabalhadores bancários que exigiram a saída dos seus chefes corruptos; os motoristas de ambulância que bloquearam as ruas para exigir melhorias salariais. Milhares de trabalhadores concentraram-se ao redor da sede da ETUF (Egyptian Trade Union Federation [Federação Sindical Egípcia], Sindicato oficial) qualificando-os de "corja de ladrões" e pedindo sua dissolução ao que os bandidos do sindicato responderam com pauladas e disparos. Houve até policiais que protestaram pelo que estavam sendo obrigados a fazerem contra os manifestantes, mostrando a queda de moral nos escalões mais baixos dessa força repressiva. Sem dúvida, muitos outros exemplos poderiam ser acrescentados.
Chama atenção a observação de McNally que diz que este movimento mostra muitas das características da greve de massas que Rosa Luxemburgo havia analisado:
Como destacam tanto McNally como Hossam El-Hamalawy, a força do movimento não se adquiriu da noite para a manhã. Nos últimos 7 anos, os trabalhadores colocaram-se na primeira linha, na resistência contra a pobreza e a repressão, imposta a toda a população. Houve uma série de movimentos grevistas em 2004, 2006-7 e 2007-8 com os trabalhadores da indústria têxtil de Mahalla desempenhando um destacado e significativo papel que foram unindo outros setores. Em 2007 publicamos um artigo onde víamos germes da greve de massas nessas lutas pelo alto grau que expressaram de auto-organização e solidariedade [v]. Como sublinha Rosa Luxemburgo, a greve de massas é algo que amadurece em um período de anos, assim as greves de 1905, das quais fala, tinham fermentado em sucessivas ondas durante as duas décadas anteriores e, por sua vez, 1905 constituiu uma ponte para a revolução de 1917.
Mas, apesar de tudo que se fala de "revolução" nesses países [vi], o mais certo é que o movimento que pode conduzir a uma futura greve de massas enfrenta muitos perigos:
O caminho para a revolução ainda é muito grande e o único sentido que esta pode ter é de uma Revolução Proletária Internacional. A consciência revolucionária necessária para guiar esta revolução até a vitória só pode desenvolver-se em escala internacional e precisa da contribuição dos trabalhadores dos países capitalistas mais avançados. Mas os proletários (e outras camadas oprimidas) do Oriente Médio e do Norte da África estão aprendendo lições vitais a partir da sua própria experiência: tomar a cargo sua luta, como tem mostrado as greves que se iniciaram a partir de baixo, também os comitês de vizinhos para auto-proteção contra desmandos da escória da sociedade e da polícia, lançados pelo regime; também a "democracia direta" cotidiana que se viveu na Praça Tahrir. Como disse McNally:
"Estas formas de auto-organização popular constituem novas práticas de democracia radical. Na Praça de Tahrir, o centro nervoso da Revolução, a multidão se compromete em decisões diretas tomadas às vezes por centenas de milhares. Organizados em pequenos grupos, as pessoas discutem e debatem, enviam delegados para realizar consultas sobre as reivindicações do movimento. Como explica um jornalista [ix] "os delegados dessas mini-reuniões vão juntos examinar o ânimo dominante antes que as reivindicações potenciais sejam lidas pelo sistema de megafone. A adoção de cada proposta é feita segundo os aplausos e gritos de ânimo recebidos da multidão"".
Lições sobre como se defender coletivamente das matanças da polícia e dos assassinos do regime; sobre como confraternizar com os soldados; sobre como superar as divisões sectárias - entre xiitas e sunitas, entre muçulmanos e cristãos, entre religiosos e seculares. Lições sobre o internacionalismo, posto que a revolta se estende de um país a outro, tomando em suas reivindicações e métodos dos demais. E como definitivamente, os proletários descobrem que em todas as partes fazem frente à mesma deterioração de suas vidas, que tem à frente o mesmo sistema repressivo e o mesmo sistema de exploração.
Quem sabe o mais importante é mesmo o fato de que a classe operária afirmara-se solidariamente no momento do suposto "triunfo democrático", após a saída de Mubarak, que parecia ser o verdadeiro fim da revolta. Isso mostra a capacidade para resistir aos chamados ao sacrifício e à renúncia pelo bem da "nação" e do "povo", aquilo tudo que é o objetivo central de todas as campanhas burguesas de patriotismo e democracia. Entrevistados pela imprensa, trabalhadores no Egito tem revelado, com freqüência e da forma mais simples, o que motivava suas greves e protestos: não podiam alimentar suas famílias porque seus salários eram extremamente baixos, os preços eram altos demais e não havia trabalho muito menos para todos. Os trabalhadores enfrentam em todos os países a luta contra uma deterioração sem precedentes das suas condições de vida e não uma "reforma democrática". A classe operária só tem a luta como defesa e a perspectiva de uma nova sociedade como solução.
Amos, 16.2.11
World Revolution órgão da CCI na Inglaterra.
[i] Ver blog: arabawy.org [148]
[ii] https://www.theguardian.com/commentisfree/2011/feb/14/egypt-protests-democracy-generals [149]
[iii] Ver https://gulfnews.com/news/region/egypt/labour-unions-boost-egyptian-protests-1.760011 [150]
[iv] https://www.davidmcnally.org/?p=354 [151]
[v] Ver "Egipto, el germen de la huelga de masas [152]", também "Luchas en Egipto: una expresión de la solidaridad y la combatividad obreras [153]" e igualmente: "Amenaza de hambrunas por la inflación: Crisis capitalista y respuesta obrera [154]".
[vi] O qual pode ser defendido honestamente embora de forma equivocada ou também fazer parte do discurso mistificador do esquerdismo que sempre banaliza o conceito de revolução
[vii] Na realidade sempre ocupou. No Egito desde 1952 os presidentes são militares.
[viii] Ver o documento https://www.europe-solidaire.org/spip.php?article20203 [155] que parece um exemplo sério do movimento operário no Egito para desenvolver sua auto-organização a través de Assembléias Gerais e comitês eleitos e revocáveis, embora ao mesmo tempo expressa uma inclinação das ideais democráticas e sindicalistas. Como exemplo transcrevemos as demandas dos trabalhadores siderúrgicos:
Uma grande manifestação se somará a da Praça de Tahrir em 11 de fevereiro para unir-se a revolução e expressar as reivindicações dos trabalhadores do Egito.
Viva a Revolução!
Viva o povo do Egito!
Viva a intifada da juventude egípcia! A revolução do povo tem de pertencer ao povo!
[ix] Jack Shenker, "Cairo's biggest protest yet demands Mubarak's immediate departure", Guardian, 05 de fevereiro de 2011. [https://www.guardian.co.uk/world/2011/feb/05/egypt-protest-demands-mubar... [156]
No dia 28 de março de 2011, alguns estudantes organizados da UESB tomaram a iniciativa de convocar uma Assembléia no campus de Vitória da Conquista para analisarem um decreto estadual que feriu quase que de morte as universidades estaduais baianas, a educação pública e os serviços básicos. Deliberou-se, então, que os estudantes parariam o campus para forçar uma discussão na universidade tanto do decreto quanto da questão mais geral do sucateamento da educação e dos serviços públicos imposta pela crise mundial do capitalismo e seguida fielmente por seus variados defensores, sobretudo na Bahia.
Após nove dias de intensa mobilização, incluindo aí as paralisações, os estudantes resolveram entrar em greve, após terem pressionado os professores a iniciarem a sua no dia anterior. A capacidade de auto-organização do movimento estudantil fora das burocratizadas instituições "representativas" mostra que este tipo de organização é muito mais avançado que as caducas atividades sindicais e mesas setoriais que negociam com o Estado burguês. O movimento estudantil está, assim, de parabéns, à medida que esteve para além dos seus "mestres" na condução deste processo.
O objetivo geral do movimento grevista é a imediata revogação do decreto estadual nº 12583/11, que acelera ainda mais o processo de sucateamento das universidades baianas e dos serviços públicos em geral. No entanto, precisamos compreender as origens deste processo.
A partir do final da década de 1960, o capitalismo entrou em um período de crise que se aprofunda a cada dia. Sua expressão mais recente foi a crise iniciada em finais de 2007, que atingiu em cheio todos os países do mundo. O corte orçamentário recente feito pelo governo federal mostra claramente a farsa por trás do discurso de Lula ao anunciar que a crise chegaria ao Brasil como uma "marolinha". Tal medida, que joga o peso da crise nas costas dos trabalhadores e dos explorados, não é exclusividade do Estado brasileiro. Esta tem sido a única saída encontrada por todos os governos do mundo. Exemplos não faltam... Na França, com a reforma previdenciária que aumenta o tempo de contribuição dos trabalhadores; Na Inglaterra, com o aumento de 300% no valor das matrículas das universidades; e Na Espanha, com o corte de 5% no salário de todos os servidores públicos; etc., etc., etc.
Neste sentido, a luta dos estudantes (a maioria como futuros trabalhadores assalariados) se insere diretamente na luta da classe trabalhadora contra o capital. Os estudantes da UESB devem pensar para além do imediato, pois o decreto estadual faz parte de um problema estrutural do capitalismo que envolve toda a sociedade. A greve e a revogação do decreto não podem ter um fim em si, devem ser encaradas como um marco para o início de um processo de mobilização mais amplo.
A solidariedade dos estudantes com a luta geral dos trabalhadores gera a solidariedade dos trabalhadores com a luta estudantil. Alguns passos já foram dados nesta direção: como a panfletagem fora dos muros da universidade, nas escolas do ensino médio e em praça pública. Mas é preciso compreender que a verdadeira solidariedade é a extensão da luta. Este é o único meio de fazer retroceder a burguesia e ameaçar sua estabilidade política e econômica. Apenas a extensão da luta pode impedir a burguesia de utilizar a repressão contra o movimento. A luta setorial, isolada, é típica das burocráticas instituições "representativas" e seus cães de guarda, que tentam a todo custo despolitizar, enfraquecer e sufocar os movimentos mais combativos. Uma greve isolada, ainda que prolongada, não demonstra a vitalidade do movimento.
A greve estudantil só terá futuro na medida em que se unifique de forma solidária com a luta da classe trabalhadora. Este é um momento importante do desenvolvimento da consciência de classe rumo à revolução internacional dos trabalhadores, a única saída para as mazelas do capitalismo.
ABAIXO A PRECARIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO!
VIVA A AUTONOMIA DA LUTA ESTUDANTIL!
VIVA A LUTA INTERNACIONAL DOS TRABALHADORES!
11/04/2011
Corrente Comunista Internacional-CCI - Labuta - Oposição Operária-OPOP
Há apenas uma semana, nas praças das principais cidades da Espanha, reuniam-se milhares de pessoas em assembleias onde tomava a palavra quem quisesse fazer uso dela e falava com total confiança da falta de futuro que nos depara e que podíamos fazer frente a ele. E se escutava com respeito. Discutia-se em todas as partes, em pequenos grupos, nos bares, nos acampamentos..., diferentes gerações (jovens e aposentados). Crescia um sentimento de emoção coletiva, de unidade, de criatividade, de reflexão e debate, em um esforço para assumir a responsabilidade juntos da gigantesca tarefa de colocar uma perspectiva diante da ausência de futuro que nos oferece o capitalismo.
Hoje, vai cada dia menos pessoas às reuniões, que já não se pode chamar assembleias, onde não se permite uma discussão. Várias comissões "filtram" o uso da palavra e praticamente não se permite falar de uma perspectiva de luta social. Utiliza-se para votar ou "buscar consenso" em palavras de ordem democráticas como se fossem a expressão do movimento, quando a maioria não as conhece nem discutiram e muita gente está abertamente contra. Com a desculpa do "apoliticismo" terminam por fazer "a mesma merda" política do "PSOE e PP" [1].
O que tem acontecido? Tem razão os que dizem que desde o princípio isto era um movimento cidadão de reforma democrática, uma encenação? Ou está acontecendo um ataque contra as assembleias, uma sabotagem para acabar com o encontro massivo, a discussão e a reflexão, porque assustam e põem em tensão o Estado?
Quando dois dias depois da brutal repressão das manifestações de 15 de maio (15M), montam-se acampamentos na Praça Puerta del Sol, que servem de exemplo para outras cidades e vão se reunindo pessoas e mais pessoas nas praças, organizando discussões e assembleias, a mobilização é completamente espontânea. Mentem cinicamente os que agora, como Democracia Real Já! [DRY: ¡Democracia Real Ya!], querem atribuir a si a iniciativa do movimento. Esses mesmos "senhores cidadãos" se preocuparam muito na oportunidade de deixar claro que o movimento dos acampados não eram eles. Ou como foi dito em um texto assinado por Alguns anarquistas madrilenos: "se encarregaram de expressá-lo de maneira mais asquerosa possível: se eximindo dos incidentes após a manifestação e apontando quem cometesse falta" [2].
A acentuação dos ataques às nossas condições de vida, o desemprego, os despejos, os cortes nas prestações sociais, o exemplo da Praça Tahrir e do norte da África, das lutas contra os cortes nas aposentadorias na França, dos estudantes na Inglaterra, da Grécia, as discussões nos locais de trabalho ou em minorias, os comentários no facebook e Twitter, e, claro, a encenação da comédia parlamentar e a corrupção... Tudo isso e mais, fez que, de maneira imprevisível, explodisse o descontentamento, a indignação, desencadeando uma torrente de vitalidade, de combatividade, rompendo a normalidade democrática da passividade e do voto.
Milhares, e às vezes dezenas de milhares, de pessoas se juntaram nas praças centrais das cidades mais importantes da Espanha convertidas em Ágoras. Vinham depois do trabalho, ficavam acampados, iam com a família, se buscavam... e falavam e falavam. A palavra foi "liberada! [3] nas assembleias. Até os mais anti-Estado se davam conta de que isto não era um movimento nos moldes estatais democráticos, como disse o mesmo texto anarquista citado anteriormente: "É como se, de repente, a passividade e o caminhar de cada um por si tivesse se quebrado próximo do Km 0 [Praça da Puerta del Sol]... Nos primeiros dias, bastava um pequeno grupo de pessoas falando de algum assunto, e as pessoas aproximavam o ouvido para escutar, para intervir. Tem sido normal ver pessoas em pequenos grupos discutindo. Os grupos de trabalho e as assembleias gerais são acontecimentos massivos entre 500, 600 e 2000 pessoas (sentadas, de pé, se comprimindo para ouvir algo), etc. E fora isso essa sensação permanente de um bom ambiente, de "isto é algo especial". Tudo isso alcançou seu ponto culminante na noite de sexta para sábado, quando começou o dia de reflexão. Escutar mais de 20.000 pessoas gritar "Somos ilegais"[4] e, como crianças, sentir o prazer de infringir a lei, a verdade, impressiona" [5].
É certo que o movimento não colocou uma confrontação aberta sobre reivindicações contra o Estado democrático. De fato, cada tentativa de chegar a reivindicações concretas, se desviava para a "reforma democrática", introduzindo as palavras de ordem de Democracia Real Já! E é normal, porque falta a confiança para se lançar na luta e a compreensão sobre a perspectiva, e, sobretudo, falta a classe operária recuperar sua identidade como sujeito revolucionário e possa se colocar a frente de um assalto revolucionário. Todavia, a discussão, a reflexão e a tentativa de tomar o destino da luta em suas mãos é justamente o caminho para a confiança, o esclarecimento e a recuperação da identidade da classe operária, como tem mostrado, particularmente em Barcelona, as tentativas de setores em greve de se unir às assembleias e a convocação de manifestações unitárias por reivindicações trabalhistas em Tarrasa [6]. A verdadeira confrontação com o Estado democrático tem ocorrido nas assembleias auto-organizadas e massivas, que tem se estendido por todo o país e além.
E isso é justamente o que o Estado não podia tolerar.
Após uma primeira tentativa de frear os acontecimentos no final de semana eleitoral de 22 de maio, proibindo legalmente as concentrações, que foi ignorada pela assistência massiva em todas as praças na hora em que se devia cumprir a lei, na madrugada de Sábado, 21 de maio, a estratégia foi a de combinar a espera do enfraquecimento natural do movimento devido ao cansaço e à dificuldade de colocar uma perspectiva de luta, com a sabotagem a partir de dentro do movimento.
Quando uma semana depois das eleições municipais, o movimento começava a se enfraquecer, o Estado desencadeou em Madrid e Barcelona, uma estratégia com grande repercussão midiática.
Em Madri, deram corda às lamentações dos donos de restaurantes e "pequenos empresários" da Praça Puerta del Sol, para culpar os acampados, como se eles tivessem aumentando a crise, e apoiar uma estratégia consistindo em desmantelar as concentrações massivas para substituí-las por "pontos de informação".
Em Barcelona, a intervenção calculada da Polícia Local [7], se bem que teve o efeito de aumentar momentaneamente a participação nas concentrações [8], conseguiu desviar completamente as discussões para a reivindicação democrática de solicitar a demissão do conselheiro do Interior, Felip Puig, introduzindo o discurso da oposição contra o novo governo de direita nacionalista.
Porém tudo isso não teria o mesmo impacto sem o trabalho de sabotagem a partir do interior do movimento por parte de Democracia Real Já!.
A sabotagem a partir do interior: A ditadura de Democracia Real Já!
Nos primeiros dias, diante da avalanche de assembleias, Democracia Real Já! (DRY) não teve outro remédio a não ser ficar por detrás da cena, mas isso não significa que não tratassem de tomar posições nas comissões chave dos acampados e de difundir suas posições cidadãs de reforma do sistema, como o famoso "decálogo" ou outros do mesmo estilo; isso, sem dar a cara abertamente e defendendo o apoliticismo, que impedia que as demais opções políticas pudessem difundir suas posições políticas, embora DRY as difundisse (sem assinar) com o maior descaramento.
Os companheiros anarquistas de Madrid já detectavam este ambiente no início do movimento: "Em muitas comissões e grupos está se vendo de tudo: perdas casuais de atas, personalismos, pessoas que se aferram ao papel de porta-voz, delegados que deixam de dizer coisas nas assembleias gerais, comissões que ignoram acordos, pequenos grupos que querem manter seus negócios, etc. Muitas, seguramente, fruto da inexperiência e dos egos, outras, parecem diretamente tiradas dos velhos manuais de manipulação de assembleias".
Mas foi preciso esperar os primeiros sintomas de refluxo do movimento, para ver uma autêntica ofensiva do "movimento cidadão", encabeçado por DRY, contra as assembleias.
Na Puerta del Sol, são eles os que têm apoiado as queixas dos comerciantes e têm impulsionado o desmantelamento do acampamento, para tornar um ponto de informação". São eles os que filtram as intervenções nas assembleias, onde, agora, somente se discute as propostas das comissões, que eles controlam. Apresentam abertamente suas posições como expressão do movimento, sem que se tenha discutido nas assembleias. Convocam reuniões de coordenação das assembleias de bairro sem que essas tenham elegido delegados que representam a assembleia; ou inclusive uma assembleia de coordenação nacional para 4 de junho da qual praticamente não se ouviu falar em assembleias gerais... E a mesma dinâmica se vê em todas grandes cidades.
Em Barcelona, a liberdade de palavra foi sequestrada e as assembleias simplesmente têm de se pronunciar no escuro sobre as propostas elaboradas para elas. A discussão foi substituída por Conferências de professores intelectuais. Aqui um dos sintomas mais sensíveis da ofensiva contra as assembleias é como tem ganhado peso o nacionalismo. Na primeira semana, após 15M, milhares de pessoas abarrotavam a Praça de Catalunha e discutiam em diferentes idiomas, traduzindo-se igualmente para vários idiomas os comunicados feitos e recebidos. Nenhuma só bandeira catalã. No entanto, recentemente, foi votado para se falar exclusivamente em catalão.
Em Valência, mais do mesmo, corrigido e aumentado. Deixemos a palavra a um texto intitulado Control asambleas en Valencia [9], que circula anonimamente: "Desde o dia 27 a dinâmica interna dos acampados e as assembleias diárias tem mudado radicalmente... e nelas quase já não se pode falar de política nem de problemas sociais... Em resumo, é o seguinte: uma comissão chamada de "Participação Cidadã" e outra chamada "Jurídica", no total umas 15-20 pessoas, têm feito com controle absoluto a moderação das assembleias, são "moderadores profissionais" que se impõem também nos grupos e nas comissões... Da praça tem se retirado todos os cartazes que tinham algum conteúdo político, econômico ou simplesmente social. Agora é uma espécie de feira alternativa (...) Não há liberdade de expressão nem na praça nem na assembleia. Instauraram, nas comissões que puderam, a ditadura do sistema de "consenso de mínimos" [10] com o qual nunca se pode chegar a acordos com conteúdo (...) Foi apresentado um documento, que pretendem que se aprove hoje, chamado "Cidadão Participativo" onde, recheado de muitas coisas bonitas, se estabelece que só as comissões tenha direito de apresentar propostas às assembleias (...) Nesse papel, se estabelece que as comissões desde já, obrigatoriamente, funcionaria por consenso de mínimos (...) estabelecimento total do controle para primeiro esvaziar de conteúdo o movimento." E como se fosse pouco, hoje mesmo uma manifestação de aposentados contra as "pensões" foi convertida em um protesto contra o artigo 87-3 da Constituição; embora os aposentados gritassem "por uma pensão mínima de 800 €" e "pela aposentadoria aos 60 anos", o movimento cidadão gritava "presos desde 1978 [11]" para reivindicar uma constituição mais representativa.
Apesar disso, é Sevilha que tem sido um dos lugares onde o DRY tem se mostrado mais escancarado e tem solicitado sem restrições um cheque em branco à assembleia, para fazer e desfazer seu capricho. Inclusive se atreveram a chamar os participantes das assembleias a se integrar massivamente sob suas siglas.
É mais do que evidente que a estratégia do DRY, a serviço do Estado democrático, consiste em colocar para frente um movimento cidadão de reforma democrática, para tratar de evitar que surja um movimento social de luta contra o Estado democrático, contra o capitalismo. Entretanto, os fatos mostram que, quando o mal estar social acumulado encontra um mínimo terreno para se expressar, os chorões da democracia mais-que-perfeita são descartados sem a menor consideração. Nem DRY nem o Estado democrático podem deter o desenvolvimento do descontentamento social e da combatividade; todavia, podem tentar colocar todos os tipos de travas.
O peso contra as assembleias é uma delas. Para uma "grande minoria" (se é permitido usar o termo paradoxo), estas assembleias são uma referência de como buscar a solidariedade e a confiança, de como discutir, para tomar para si as lutas contra os terríveis ataques às nossas condições de vida.
Continuar discutindo como nas assembleias, mesmo que sejam em reuniões menores, é o caminho para preparar as lutas. Organizar assembleias massivas e abertas cada vez que haja uma luta, é o exemplo que tem de ser seguido. A sabotagem do DRY e a imposição do movimento cidadão podem fazer que uma parte dessa "minoria crescente" se desengane e pense que "foi tudo um sonho". Não pode apagar a história como o Big Brother [12], porém podem confundir a memória.
Por isso a alternativa é defender as assembleias onde ainda haja uma vitalidade; combater e denunciar a sabotagem do DRY; e chamar para continuar em cada ocasião, em agrupamentos de minorias ou em assembleias nas lutas, a dinâmica de se encarregar do debate e da luta.
Lutar contra o capitalismo é possível! O futuro pertence à classe operária!
03.06.2011
[1] "PSOE e PP é a mesma merda" é um slogan contra o "bipartidarismo" e se converteu em emblema deste movimento. [Nota do Tradutor]
[3] "Liberar a palavra" tem sido uma das palavras de ordem das recentes assembleias no movimento contra o corte nas aposentadorias na França.
[4] No domingo, 22 de maio, houveu eleiçoes locais na Espanha. La lei estipula que o sábado anterior (21) é o dia da "reflexão", que está proibida qualquer reunião ... [NdT]
[6] Cidade industrial nos arredores de Barcelona. [NdT]
[7] A burguesia na Espanha não é tão torpe em relação à confrontação com a classe operária, e menos ainda na Catalunha, e custa acreditar que, poucos dias depois a repressão das manifestações do 15M, quando surgiram as mobilizações, voltassem a cometer de novo o mesmo erro. Além disso, as patéticas declarações na TVE do porta-voz da oposição do PSC, que tachou os acampados de "elementos" e disse que estava de acordo com a desocupação, embora de outra maneira, mostra que o plano tinha sido discutido entre governo e oposição.
[8] A repressão tem sido brutal (ainda há alguns gravemente feridos ) o que impulsionou a solidariedade em diferentes assembleias.
[9] "Control de las asambleas en Valencia [158]".
[10] Sob a desculpa de canalizar para um mínimo de reivindicações que fossem consenso entre todos formou-se o tal "consenso de mínimos", que, na verdade, coincidiam com as palavras de ordem Democracia Real Já! e não foram discutidas em assembleias.
[11] Ano da entrada em vigor última Constituição da Espanha, logo depois da morte do ditador Franco.
[12] Do livro 1984, de George Orwell.
Os acontecimentos atuais no Oriente Médio e no Norte da África têm uma importância histórica, cujas conseqüências ainda estão difíceis de delimitar. Entretanto é importante desenvolver a propósito deles um marco coerente de análise. Os pontos que seguem não são esse marco em si e ainda menos uma descrição detalhada dos acontecidos, mas simplesmente alguns pontos básicos de referência para estimular a reflexão sobre esta questão. [1]
1. Nunca antes desde 1848 ou 1917-19 temos visto uma onda simultânea de revoltas tão amplas. Embora o epicentro do movimento esteja localizado no Norte da África (Tunísia, Egito e Líbia, e também Argélia e Marrocos), também tem explodido protestos contra os diferentes regimes em Gaza, Jordânia, Iraque, Irã, Iêmen, Bahrein e Arábia Saudita, e outros Estados repressivos árabes, particularmente Síria, está em estado de alerta máximo. O mesmo pode se dizer do regime stalinista na China. Também existem ecos claros dos protestos no resto da África: Sudão, Tanzânia, Zimbábue, Suazilândia... Também podemos perceber o impacto direto das revoltas nas manifestações contra a corrupção do governo e os efeitos da crise econômica na Croácia, em cartazes e slogans das manifestações dos estudantes na Inglaterra e nas lutas dos operários de Wisconsin e sem dúvida também em outros países. Isto não é para dizer que todos esses movimentos no mundo árabe são idênticos, nem pelo seu conteúdo de classe, nem por suas reivindicações, nem pela resposta da classe dominante; porém evidentemente há certo número de características comuns que tornam possível que falemos de um fenômeno global.
2. Contexto histórico no qual se desenvolvem esses acontecimentos é o seguinte:
3. A natureza de classe desses movimentos não é uniforme e varia nos diferentes países e conforme a fase do movimento. Mas, globalmente, podemos caracterizá-los como movimentos das classes não exploradoras, revoltas sociais contra o Estado. Em geral, a classe operária não tem assumido a liderança dessas revoltas, mas, sem dúvida, teve uma presença significativa e uma influência que se vê tanto nos métodos de lutas como nas formas de organização postos em prática e, em alguns casos, no desenvolvimento de lutas operárias, , como as greves na Argélia e sobretudo na grande maré de lutas no Egito, que tem sido um fator chave na decisão de expulsar Mubarak. Na maioria desses países, o proletariado não é a única classe oprimida. O campesinato e outras camadas derivadas de modos de produção ainda mais antigos, embora estejam arruinados e amplamente fragmentados por décadas de decadência capitalista, ainda possui um peso nas áreas rurais, enquanto nas cidades, onde se centraram todo o tempo as revoltas, a classe operária convive com uma numerosa classe média que está em vias de proletarização, mas ainda tem suas peculiaridades, e com uma massa de habitantes de bairros degradados, uma parte dos quais são proletários e outros pequenos comerciantes e elementos lumpenizados. Inclusive no Egito, onde está a classe operária mais concentrada e experimentada, testemunhas oculares na Praça Tahrir insistiam que os protestos haviam mobilizado a "todas as classes", com exceção dos escalões mais altos do regime. Em outros países, o peso das camadas não proletárias tem sido muito maior que na maioria das lutas nos países centrais.
4. Ao tratar de compreender a natureza de classe dessas revoltas, temos que tentar evitar dois erros simétricos: por um lado, uma identificação geral de todas as massas que têm se mobilizado com o proletariado (uma posição mais que característica do Grupo Comunista Internacional) e, por outro lado, um rechaço de que as revoltas que não são explicitamente da classe operária possam conter algo positivo. A questão que se coloca nos remete a acontecimentos anteriores, como os do Irã no fim da década de 1970, onde também vimos uma revolta popular na qual, por um tempo, a classe operária foi capaz de assumir a liderança; embora no final esta não fora suficiente para impedir a recuperação do movimento pelos islamitas. A partir de um ponto de vista mais histórico, o problema da relação entre a classe operária e as revoltas sociais mais gerais é também o problema do Estado no período de transição, que surge do movimento de todas as classes não exploradas, porém diante da qual a classe operária necessita manter sua autonomia de classe.
5. Na revolução russa, os sovietes foram engendrados pela classe operária, porém também sua forma de organização forneceu um modelo para todos os oprimidos. Sem perder o sentido da proporção – porque ainda estamos longe de uma situação revolucionária na qual a classe operária seja capaz de fornecer liderança política clara a outras camadas – podemos ver que os métodos de luta da classe operária tiveram um impacto nas revoltas sociais no mundo árabe:
Não é nenhuma casualidade que essas tendências se desenvolveram mais fortemente no Egito, onde a classe operária tem uma grande tradição de luta e em um momento crucial do movimento emergiu como uma força destacada, desencadeando uma onda de lutas que como as de 2006-7, devem ser avaliada como "germe" da futura greve de massas que contêm certo número das suas características mais importantes: a extensão espontânea das greves e das reivindicações de um ou outro setor, o rechaço intransigente dos sindicatos estatais e certas tendências à auto-organização, a luta por reivindicações econômicas junto a reivindicações políticas. E nisso podemos ver, em linhas gerais, a capacidade da classe operária de se colocar à frente como tribuno de todos os oprimidos e explorados e colocar a perspectiva de uma nova sociedade.
6. Todas estas experiências são importantes passos firmes adiante para o desenvolvimento de uma consciência genuinamente revolucionária. Porém o caminho nessa direção ainda é longo e está obstruído por muitas e óbvias ilusões e debilidades ideológicas:
7. A situação atual no Norte da África e no Oriente Médio ainda está em desenvolvimento. No momento que escrevemos, existem expectativas de protestos em Riad, apesar de que o regime saudita já decretou que todas as manifestações vão conta a Sharia (conjunto de leis mulçumanas). No Egito e Tunísia, onde a revolução supostamente já triunfou, há contínuos enfrentamentos entre os manifestantes e o estado agora "democrático", que está administrando mais ou menos pelas mesmas forças que atuavam antes que os "ditadores" se fossem. A onda de greves no Egito, que ganhou rapidamente muitas das suas reivindicações, parece está se extinguindo; mas nem a luta operária nem o amplo movimento social tem sofrido um retrocesso nesses países, e há sinais de que se desenvolve uma ampla discussão e reflexão, ao menos sem dúvida no Egito. Entretanto os fatos na Líbia têm dado um giro muito diferente. O que parece ter começado como uma genuína revolta da população, com civis desarmados assaltando com coragem quartéis militares e queimando a sede dos chamados "Comitês do Povo", especialmente no leste do país, tem se transformado rapidamente em uma "guerra civil" em toda sua dimensão e muito sangrenta, entre frações da burguesia, com as potências imperialistas espreitando a carniça. Em termos marxistas, de fato é um exemplo da transformação de uma incipiente guerra civil – no seu verdadeiro significado de uma confrontação direta e violenta entre as classes – em uma guerra imperialista. O exemplo histórico da Espanha em 1936 – apesar das diferenças consideráveis no que se refere ao balanço global das relações de forças entre as classes e o fato de que a revolta inicial contra o golpe de Franco era inequivocamente de natureza proletária – mostra como a burguesia nacional e internacional pode intervir nesse tipo de situações para defender seus interesses fracionais, nacionais e imperialistas, e para debelar qualquer possibilidade de revolta social.
8. O pano de fundo desse giro dos acontecimentos na Líbia é o atraso extremo do capitalismo líbio, que tem sido governado durante 40 anos pelo bando de Kadafi predominantemente através do aparato de terror diretamente sob suas ordens. Esta estrutura tem atenuado o desenvolvimento do exército como uma força capaz de colocar o interesse nacional acima do interesse de uma fração particular ou um líder, como vimos na Tunísia e Egito. Ao mesmo tempo, o país está desintegrado por divisões regionais e tribais, que tem desempenhado um papel chave em determinar o apoio ou a oposição a Kadafi. Uma forma "nacional" de islamismo também parece ter desempenhado um papel na revolta desde o início, ainda que originalmente a revolta foi geral e social, mais que meramente tribal ou islâmica. A indústria principal na Líbia é o petróleo. No entanto, uma grande parte da força de trabalho empregada na indústria do petróleo são imigrantes europeus e o resto do Oriente Médio, Ásia e África; embora houvesse a princípio informe de greves neste setor, o êxodo massivo de operários "estrangeiros" é um sinal claro que pouco tinha em identificarem em uma "revolução" que desfraldava a bandeira nacional. De fato, houve relatos de assédio a operários negros pelas forças "rebeldes", porque se espalharam rumores de que alguns dos mercenários pagos pelo regime para reprimir os protestos foram recrutados nos estados africanos de população negra, levantando assim suspeitas sobre todos os negros imigrantes. A debilidade da classe operária na Líbia é, portanto, um elemento crucial no desenvolvimento negativo da situação local.
9. A apressada deserção do regime de Kadafi de numerosos altos integrantes, incluindo embaixadores estrangeiros, oficiais do exército e da polícia e civis, é uma clara evidencia de que a "revolta" tem se transformado em uma guerra entre burgueses. Os comandantes militares, em particular, passaram para o primeiro plano na "regularização" das forças armadas anti-Kadafi. Mas quem sabe o símbolo mais importante destra transformação é a decisão de uma parte da "comunidade internacional" de tomar partido pelos "rebeldes". O conselho Nacional de Transição, instalado em Benghazi, já foi reconhecido pela França como a voz da nova Líbia e desde bem cedo ocorreu uma intervenção militar em pequena escala com o envio de "assessores" para apoiar as forças anti-Kadafi. Tendo intervido diplomaticamente já antes, para acelerar a saída de Ben Ali e Mubarak, Estados Unidos, Inglaterra e outras potências, se encorajaram de início ao verem abalado o regime de Kadafi: William Hague [2] [159], por exemplo, anunciou prematuramente que Kadafi estava a caminho da Venezuela. À medida que as forças de Kadafi começaram a recuperar a iniciativa, cresceram os chamamentos à imposição de uma zona de exclusão área ou a utilizar outras formas de intervenção militar. No momento em que escrevemos isto, no entanto, parece que existem profundas divisões no seio da União Européia e da OTAN, com a França e Inglaterra mais fortemente favoráveis a uma ação militar e Estados Unidos e Alemanha mais reticentes. Certamente a administração Obama não se opõe por princípio à intervenção militar; porém não o entusiasma a possibilidade de se ver metido em outra atoleiro sem solução no mundo árabe. Também é possível que algumas partes da burguesia mundial estejam avaliando se o terror em massa de Kadafi não é uma "cura" para desanimar outras expressões de descontentamento na região. Uma coisa, entretanto é segura: os acontecimentos na Líbia e na realidade todo o desenvolvimento da situação na região, tem revelado a grotesca hipocrisia da burguesia mundial. Depois de vilipendiar durante anos a Líbia de Kadafi como um caldo de cultura do terrorismo internacional (como assim era certamente), a recente mudança de atitude de Kadafi e sua decisão de desfazer-se das armas de destruição em massa em 2006, enterneceram os dirigentes de países como Estados Unidos e Inglaterra, que lutavam para justificar sua postura a respeito das supostas armas de destruição em massa de Saddam Hussein. Tony Blair, particularmente, de maneira indecente se apressou em ir abraçar o "líder terrorista louco" de antes. Só alguns anos depois, Kadafi é de novo um chefe terrorista louco e todos os que o apoiaram tem de lidar não menos rapidamente para distanciar-se dele. E isto é só uma versão da mesma história: quase todos, os recentes e atuais "ditadores árabes" gozaram do respaldo dos Estados Unidos e outras potências, que até agora tem demonstrado muito pouco interesse nas "aspirações democráticas" do povo da Tunísia, Egito, Bahrein ou Arábia Saudita. A explosão de manifestações contra o governo do Iraque imposto pelos Estados Unidos (incluindo os atuais governantes do Curdistão iraquiano), provocadas pelo aumento dos preços e da escassez de produtos básicos, que tem sido violentamente reprimida em alguns casos, exemplifica também as promessas vazias do "Ocidente democrático".
10. Alguns anarquistas internacionalistas da Croácia (pelo menos antes de começarem tomar parte nos protestos de Zagreb e em outras localidades) interviram no site libcom.org [3] [160] para argumentar porque os acontecimentos no mundo Árabe lhes pareciam um "remake" dos da Europa do leste em 1989, quando todas as aspirações de mudança se desviaram para o terminal "democracia" e que não aportaram absolutamente nada à classe operária. Esta é uma preocupação muito legítima, tendo em conta a força evidente das mistificações democráticas neste novo movimento, mas que deixa de lado a diferença essencial entre os dois momentos históricos, sobretudo no que concerne à relação de forças entre as classes em escala mundial. No momento da queda do bloco do Leste, com as campanhas que foram desencadeadas sobre a morte do comunismo e o fim da luta de classes, assim como a incapacidade da classe operária do Leste de responder no seu próprio terreno de classe, impulsionou a classe operária em escala internacional a um profundo retrocesso. Ao mesmo tempo, embora os regimes stalinistas fossem na realidade vítima da crise econômica mundial, isso não era inteiramente óbvio naquele momento, e havia ainda margem de manobra para que as economias ocidentais alentassem a ilusão de que se abria um brilhante novo amanhecer para o capitalismo. A situação atual é muito diferente. A verdadeira natureza global da crise capitalista nunca foi mais evidente, tornando muito mais fácil para os proletários em todas as partes compreender que, na essência, se defronta aos mesmos problemas: desemprego, aumento dos preços, falta de perspectiva e futuro neste sistema. E nos últimos sete ou oito anos temos visto um lento, porém genuíno ressurgimento das lutas operárias em todo o mundo; lutas conduzidas por uma nova geração de proletários, menos escaldados pelos tropeços dos anos 1980 e 1990 e que está gerando uma crescente minoria de elementos politizados também em uma escala global. Tendo em conta essas profundas diferenças, há uma possibilidade real de que os acontecimentos no mundo árabe, longe de ter um impacto negativo na luta de classes nos países centrais, seja um estímulo para seu futuro desenvolvimento:
Esses e outros elementos serão inicialmente muito mais evidentes para a minoria politizada que para a maioria de trabalhadores nos países centrais, porém a longo prazo contribuirão para a unificação real da classe operária acima das fronteiras nacionais e continentais. Nada disso, porém diminui a responsabilidade da classe operária nos países avançados, que tem sofrido anos de experiência das "delicias" da democracia e do "sindicalismo independente", cujas tradições políticas e históricas estão muito profundamente arraigadas, mesmo que não estejam generalizadas ainda, e que está concentrada no coração do sistema imperialista mundial. A capacidade da classe operária no Norte da África e no Oriente Médio de romper com as ilusões democráticas e colocar uma perspectiva distinta para as massas deserdadas da população, ainda está fundamentalmente condicionada pela capacidade dos operários nos países centrais fornecerem um claro exemplo das lutas operárias auto-organizadas e politizadas.
CCI, 11 de março de 2011
[1] Este documento foi redigido no dia 11 de março, isto é, uma semana antes da intervenção da “coalizão” na Líbia. É por isso que, embora deixe pressentir esta intervenção, não faz mensão dela.
[2] Secretário de Assuntos exteriores do atual governo da Inglaterra.
[3] Libcom é um fórum em língua inglesa de orientação anarquista onde intervêm alguns dos nossos contatos e também nossos camaradas de World Revolution e de Dunya Devrimi.
Após os motins que eclodiram em todo o país esta semana, os porta-vozes da classe dominante – o governo, os políticos, os meios de comunicações, etc. – nos pedem para participar na defesa de uma campanha destinada a apoiar seu "programa": aumento da austeridade e incremento da repressão contra qualquer um que se opunha.
Aumento da austeridade porque não tem nenhuma solução para remediar a crise econômica do seu sistema agonizante. O único que podem fazer é eliminar postos de trabalho, baixar os salários, cortar os gastos em ajuda social, pensões, saúde, educação. Tudo isso não pode significar mais do que um considerável agravamento das mesmas condições sociais que precisamente empurraram a esses motins. Condições que conduzem particularmente à crença, numa parte importante de toda uma geração, de que não têm nenhum futuro pela frente. Por isso, toda discussão séria sobre as causas econômicas e sociais dos motins tem sido denunciada como vontade de encontrar "uma desculpa" para os manifestantes. Têm-nos dito que são criminosos e que poderiam ser tratados como tais. Ponto final. Isto é muito prático porque o Estado não possui nenhuma intenção de dar dinheiro aos centros urbanos, como fez depois dos motins nos anos 1980.
Repressão acentuada porque é a única coisa que a classe dominante pode nos oferecer. Esta classe tira a máxima vantagem da preocupação das populações pelas destruições causadas pelos motins para aumentar os gastos da polícia, para equipá-la com balas de borracha, canhões de água e também para plantar a ideia de impor um toque de recolher e o exército na rua. Estas armas, junto com a maior vigilância das redes sociais na internet e a "justiça" sumária que tem se abatido sobre aqueles que são detidos depois dos motins, não só serão utilizados contra o saque e a destruição. Nossos governantes sabem muito bem que a crise não pode mais que desembocar em uma torrente de levantes sociais e lutas operárias que estão se estendendo desde a África do Norte à Espanha e da Grécia até Israel. São perfeitamente conscientes que enfrentarão movimentos de massas no futuro e que suas pretensões democráticas servem para justificar a utilização da violência contra estes movimentos, da mesma maneira que têm feito os regimes abertamente ditatoriais, como no Egito, Bahrein ou na Síria. Já foi demonstrado na luta dos estudantes na Inglaterra no ano passado.
A campanha acerca dos motins se baseia na proclamação de nossos governantes que defendem, assim, a moral da sociedade. Vale a pena considerar o conteúdo dessas declarações.
Os porta-vozes do Estado condenam a violência dos motins. Mas é este mesmo Estado que hoje exerce a violência, e em uma escalada muito maior, contra as populações no Afeganistão e na Líbia. Uma violência que todo dia é apresentada como heroica e altruísta, enquanto só serve aos interesses dos nossos governantes.
O governo e os meios de comunicação condenam os fora da lei e o delito. Porém é a brutalidade de suas próprias forças de repressão em nome da manutenção da lei e da ordem, que a polícia, em primeiro lugar, colocou fogo na pólvora com o assassinato de Mark Duggan e seu comportamento grosseiro com sua família e seus amigos que se manifestavam em frente à delegacia de polícia de Tottenham para averiguar o que havia acontecido realmente. E isto é parte de uma longa série de mortes de pessoas nas delegacias situadas em zonas semelhantes a Tottenham ou pessoas que sofrem cotidianamente o assédio policial nas ruas.
O Governo e os meios de comunicação condenam a ganância e o egoísmo dos saqueadores. Mas são eles os guardiões e os propagandistas de uma sociedade que funciona sobre a base da ganância organizada, da acumulação de riqueza nas mãos de uma pequena minoria. São eles os que nos incitam constantemente a consumir mais para realizar seus lucros, a identificar nosso valor social segundo a quantidade de mercadorias que podemos comprar. Já que este sistema só se baseia na desigualdade, que é cada vez pior, não é surpreendente que os que estão na parte inferior da escala social, que não podem possuir "coisas bonitas" – coisas cuja necessidade tem sido criada pelos próprios capitalistas – pensem que a resposta ao seu problema é tomar tudo o que podem, enquanto puderem.
Os governantes condenam esses pequenos saques enquanto eles mesmos estão envolvidos em uma vasta operação de saque em escala planetária: as empresas petrolíferas ou florestais que estão destruindo a natureza para seu lucro particular, os especuladores que engordam aumentando o preço dos alimentos, os traficantes de armas que vivem da morte e destruição, as respeitáveis instituições financeiras que lavam bilhões de euros do tráfico de drogas. Uma contrapartida essencial desse saque é que uma parte crescente da classe explorada está afundada na pobreza, no desespero e na delinquência. A diferença é que os pequenos delinquentes geralmente são castigados, enquanto os grandes criminosos não são.
Em resumo: Cadê a moralidade da classe dominante? Não existe!
A pergunta real a que está confrontada a imensa maioria que não se beneficia com esta enorme empresa criminosa, chamada capitalismo, é a seguinte: Como podemos nos defender efetivamente, no momento que este sistema, já visivelmente em colapso pelas dívidas, vê-se obrigado a nos tirar tudo?
Será que os motins que vimos no início de agosto de 2011 na Inglaterra não dão um método para combater, para tomar o controle dessas lutas, para unir nossas forças, para criar um futuro diferente para nós mesmos?
Muitos dos que participaram dos motins expressam claramente a sua ira contra a polícia e contra os proprietários da riqueza que são considerados como a causa essencial da sua miséria. Porém, quase de imediato, os amotinados expressaram os aspectos mais negativos, os comportamentos mais problemáticos, alimentados por décadas de desintegração social nos bairros urbanos mais pobres, pela moral própria das gangues, que vão buscar na filosofia dominante do "cada um por si" e "do ser rico ou morrer tentando"! Foi assim que uma manifestação, inicialmente, contra a repressão policial se degenerou em um caos francamente antissocial e em ações antiproletárias: intimidação e agressão contra indivíduos, roubo de casas comerciais nos arredores, ataques contra os condutores de ambulâncias e bombeiros, incêndios indiscriminados de edifícios, frequentemente com seus moradores ainda dentro.
Tais ações não oferecem absolutamente nenhuma perspectiva que permita se colocar contra este sistema de saques em que vivemos. Pelo contrário, só servem para ampliar as divisões entre os que sofrem neste sistema. Diante dos ataques contra os comércios e edifícios, os residentes se armaram por conta própria com tacos de beisebol e formaram "unidades de autodefesa". Outros se ofereceram como voluntários para operações de limpeza depois dos motins. Muitos se queixaram da falta de presença da polícia e pediram medidas mais enérgicas.
Quem se beneficiará dessas divisões? A classe dominante e seu Estado. Como mencionado, os que estão no poder já se muniram de uma petição popular para reforçar o aparato repressivo e policial militar, para tipificar como delito toda forma de protesto, manifestações e desacordos políticos. Os motins já estão sendo imputados a "anarquistas" e, há uma semana ou duas, a polícia de Londres (MET) cometeu o erro de publicar pesquisas sobre pessoas que militam por uma sociedade sem estado.
Os motins são um reflexo do impasse alcançado pelo sistema capitalista. Não são uma forma de luta da classe trabalhadora, são bem mais uma expressão de raiva e desespero em uma situação onde está ausente a classe operária como classe. Os saques não são um passo para uma forma de luta superior, mas um obstáculo neste caminho. Daí a frustração de uma mulher do distrito londrinense de Hackney, que foi vista por milhares de pessoas no Youtube [1], denunciando o saque, porque este impedia que as pessoas se reunissem e refletissem juntos como levar a cabo a luta: "É foda... não estamos reunidos para lutar pela defesa de uma causa. Mas vamos roubar uma sapataria?"
Se reunir e lutar por uma causa: estes são os métodos da classe trabalhadora; é a moral da luta de classes proletária, mas esses métodos correm o risco de serem engolidos pela atomização e o niilismo, a ponto de conduzir setores inteiros da classe trabalhadora a esquecerem quem são.
No entanto, existe uma alternativa. Pode-se perceber nos movimentos massivos que se desenvolveram na Tunísia, Egito, Espanha, Grécia ou em Israel com o ressurgimento de uma identidade de classe, com o ressurgimento da luta de classes. Estes movimentos, com todas suas debilidades, nos dão uma visão geral sobre uma forma distinta de levar a cabo a luta proletária: através de assembleias na rua onde todo mundo pode pedir a palavra; através de um intenso debate político onde é possível se discutir cada decisão; através de uma defesa organizada contra os ataques da polícia e dos bandidos; através de manifestações e greves de trabalhadores; através da ascensão da questão da revolução, da interrogação sobre uma forma de sociedade completamente diferente, não baseada na visão de que o homem é o "lobo do homem", mas na solidariedade entre os seres humanos, baseada na produção para satisfazer nossas necessidades reais.
A curto prazo, devido às divisões criadas pelos motins e porque, ao disseminar a mensagem segundo a qual qualquer luta contra o sistema atual está condenada a terminar em destruições gratuitas, o Estado conseguiu uma vantagem, é provável que o desenvolvimento de um real movimento de classe no Reino Unido ainda se defronte com maiores dificuldades que antes. Mas, em escala mundial, a perspectiva é a mesma: o aprofundamento na crise desta sociedade verdadeiramente doente, a resistência cada vez mais consciente e organizada dos explorados. A classe dominante na Inglaterra não poderá evitar nenhuma dessas duas realidades.
CCI (14/08/2011)
Publicamos a seguir a tradução de um panfleto distribuído no movimento na Espanha que expressa um ponto de vista entre os mais radicais existentes nas assembleias massivas que aconteceram em muitas cidades, não somente nas maiores, cuja tradução em português apareceu em diversos grupos de discussão, blogs e listas na internet.
"Que se vão embora todos!" Somos muitos os que nestes dias confluímos nas ruas para protestar. Todos nos identificamos com a rejeição dos partidos políticos, com a rejeição dos sindicatos, dos empresários… Sobretudo demo-nos conta de que chegámos ao limite. Que estamos fartos de ser os párias deste mundo. Que não suportamos mais que uns poucos encham os bolsos e vivam como reis, enquanto aos outros apertem os cintos para além de todo o limite com o fim de manter a saúde da sacrossanta economia. Que sabemos que para mudar isto temos que lutar nós mesmos, à margem de partidos, sindicatos e demais representantes que querem fazê-lo por nós. Acima de tudo, esta realidade está a exprimir uma questão fundamental que afeta o mundo inteiro: a contraposição de necessidades e interesses entre a economia e a humanidade. Isto foi entendido perfeitamente pelos nossos irmãos rebeldes no Norte da África, isto entendemo-lo hoje aqui agora que a situação já é insustentável para todos nós e saímos à rua para lutar. Aguentámos o insuportável, sofremos uma degradação das condições de vida como não acontecia há décadas. Mas finalmente dissemos basta, e aqui estamos exprimindo a nossa rejeição de todo este sistema infernal que transforma a nossa vida em mercadoria. Queremos, claro, exprimir a nossa rejeição completa da etiqueta de cidadão. Sob essa etiqueta junta-se tudo o que mexe, desde o político ao desempregado, desde o dirigente sindical ao estudante, desde o empresário mais rico até ao operário mais miserável; misturam-se condições de vida totalmente antagónicas. Para nós não se trata de uma luta de cidadãos. É uma luta de classe entre explorados e exploradores, entre proletários e burgueses como dizem alguns. Desempregados, trabalhadores, estudantes, aposentados, imigrantes… formamos uma classe social sobre a qual incidem, em maior ou menor medida, todos os sacrifícios. Políticos, banqueiros, patrões… formam a outra classe da sociedade, a que se beneficia, também em maior ou menor medida, das nossas penúrias. Quem não queira ver a realidade desta sociedade de classes vive no mundo das maravilhas. Chegados aqui, protestando em numerosas praças por todo o país, é hora de refletir, é hora de concretizar as nossas posições, de orientar bem a nossa prática. A heterogeneidade é grande, sem dúvida. Convergimos neste movimento companheiros que há muitos anos andamos na luta contra este sistema, outros que saímos pela primeira vez às ruas, uns que estão certos de querer ir até ao fim, ao tudo por tudo ("queremos tudo e agora" rezava um cartaz na Puerta del Sol), outros falam de reformar diversos aspectos da realidade, outros encontram-se desorientados, outros só querem manifestar que estão fartos do que lhes acontece… E também há quem, isto é preciso tê-lo bem presente, trata de pescar em águas turvas, quem procura canalizar este descontentamento para neutralizar a sua força aproveitando as nossas indecisões e debilidades. Desde logo, algo que discutimos entre os diversos companheiros nas ruas é que a nossa força está na rejeição, no movimento de negação do que nos impede viver. É o que forjou a nossa unidade nas ruas. Pensamos que há que avançar por aí, aprofundar e concretizar melhor a nossa rejeição. Por isso, porque a nossa força reside nessa negação, temos consciência de que não solucionaremos os nossos problemas exigindo melhorar a democracia, tal como se afirmou em certas palavras de ordem, nem sequer reivindicando a melhor democracia que possamos imaginar. A nossa força está na rejeição que estamos a manifestar à democracia real, a democracia "de carne e osso" que sofremos no dia-a-dia e que não é outra coisa que a ditadura do dinheiro.
Não há outra democracia. É uma armadilha reivindicar essa democracia ideal e maravilhosa de que nos falaram desde pequeninos. Da mesma maneira não se trata de melhorar este aspecto ou outro, pois o fundamental continuará a existir: a ditadura da economia. Trata-se de transformar totalmente o mundo, de mudá-lo de cima a baixo. O capitalismo não se reforma, destrói-se. Não há caminhos intermédios. Há que ir até ao fundo do problema, há que abolir o capitalismo. Ocupámos a rua uns dias antes da festa parlamentar, essa festa onde se elege quem executará as diretrizes do mercado. Bem, é um primeiro passo. Mas não podemos ficar por aí. Trata-se de dar continuidade ao movimento, de criar e consolidar estruturas e organizações para a luta, para a discussão entre companheiros, para enfrentar a repressão que já caiu sobre nós em Madrid e em Granada. É preciso tomar consciência de que sem transformação social, sem revolução social, tudo continuará igual. Apelamos a continuar mostrando toda a nossa rejeição ao espetáculo do circo eleitoral de todas as maneiras possíveis. Apelamos a gritar em toda a parte a palavra de ordem "Que se vão embora todos!". Mas apelamos também a que a luta continue depois das eleições do Domingo 22. A que vamos muito para lá destes dias. Não podemos deixar morrer os laços que estamos a construir. Apelamos à formação de estruturas para lutar, apelamos a que entremos em contato, a que coordenemos o combate, a lutar nas assembleias que se estão a criar fazendo delas órgãos para a luta, para a conspiração, para a discussão da luta, não para reuniões cidadãs. Apelamos a organizar-nos em todo o país para lutar contra a tirania da mercadoria. À RUA, A LUTAR! A DEMOCRACIA É A DITADURA DO CAPITALO CAPITALISMO. NÃO SE REFORMA, DESTRÓI-SE!
BLOCO "QUE SE VÃO EMBORA TODOS!" (BLOQUE "¡QUE SE VAYAN TODOS!")
email: qsevayan@yahoo.es [162]"O comunismo está morto! O capitalismo venceu porque é o único sistema que pode funcionar; É inútil e perigoso sonhar com outro tipo de sociedade!".
Essas mensagens fazem parte da gigantesca campanha que a burguesia dissemina desde a queda do bloco do Leste e dos regimes supostamente "comunistas" no início dos anos 1990. Ao mesmo tempo, em conclusão, a propaganda burguesa tenta, mais uma vez, desmoralizar a classe operária tentando persuadi-la de que daí para frente ela já não será uma força na sociedade, de que já não tem nada a dizer, que definitivamente já não existe. O ressurgimento dos combates de classe, desde 2003, desmente na prática tais mentiras. Porém, ainda assim, a burguesia não cessará, inclusive durante o curso de grandes lutas operárias, de repisar a idéia de que essas lutas de modo algum poderão atribuir-se como meta a derrubada do capitalismo e a instauração de uma sociedade que nos liberte das mazelas que esse sistema impõe à humanidade. Assim, contra todas as mentiras da burguesia, e também contra o ceticismo de alguns que pretendem ser combatentes da revolução, a afirmação do caráter revolucionário do proletariado continua sendo uma responsabilidade dos comunistas. É o objetivo desses dois artigos.
Dentre as campanhas de ataque que temos sofrido nesses últimos anos, um dos temas maiores tem sido a "refutação" do marxismo. Segundo os ideólogos a soldo da burguesia, o marxismo está falido. Sua colocação em prática e seu fracasso nos países do Leste Europeu constituíram o exemplo maior dessa falência. Na nossa imprensa, temos manifestado até que ponto o stalinismo não teve nada a ver com o comunismo tal como Marx e o conjunto do movimento operário sempre reivindicaram[1]. Quanto à capacidade revolucionária da classe operária, a tarefa dos comunistas é reafirmar a posição marxista sobre essa questão e, em primeiro lugar, recordar o que o marxismo entende por classe revolucionária.
"A história de todas as sociedades até nossos dias é a história das lutas de classes" [2]. Esse é o início de um dos textos mais importantes do movimento operário: O Manifesto Comunista. Esta tese não é própria do marxismo [3], porém uma das contribuições fundamentais da teoria comunista é o de ter estabelecido que o enfrentamento da classe na sociedade capitalista tem como perspectiva última a derrubada da burguesia pelo proletariado e a instauração do poder por este último sobre o conjunto da sociedade, tese que sempre tem sido rechaçada evidentemente pelos defensores do sistema capitalista. No entanto, se alguns burgueses do período ascendente desse sistema conseguiram descobrir (de forma incompleta e mistificada, evidentemente) certo número de leis da sociedade [4], este fenômeno não vai se reproduzir hoje em dia: a burguesia na decadência capitalista é totalmente incapaz de produzir tais pensadores. Para os ideólogos da classe dominante, a prioridade fundamental de todos os seus esforços de "pensamento" é demonstrar que a teoria marxista é incorreta (inclusive quando alguns entre esses ideólogos reivindicam algum aporte específico de Marx). A pedra angular das suas "teorias" é a afirmação de que a luta de classes não cumpre nenhum papel na história. Isso quando não trata de negar, pura e simplesmente, a existência de tal luta ou, pior ainda, quando negam a existência de classes sociais.
Mas a defesa de tais ideias não se limita somente aos defensores cegos da sociedade burguesa. Alguns "pensadores radicais", que cerram fileiras da contestação da ordem estabelecida, se juntaram aos primeiros desde algumas décadas. O guru do grupo Socialismo ou Barbárie (o inspirador do grupo Solidarity na Inglaterra), Cornelius Castoriadis, ao mesmo tempo que previa a mudança do capitalismo para um "terceiro sistema", a "sociedade burocrática", anunciou há cerca de 40 anos que o antagonismo entre burguesia e proletariado, entre exploradores e explorados, estava destinado a ceder lugar ao antagonismo entre "dirigentes e dirigidos" [5]. Mais recentemente outros "pensadores" que tiveram seu apogeu, como o professor Marcuse, afirmaram que a classe operária tinha sido "integrada" na sociedade capitalista e que as únicas forças de contestação à mesma se encontravam entre as categorias sociais marginalizadas tais como os negros nos Estados Unidos, os estudantes ou os camponeses dos países subdesenvolvidos. Portanto, as teorias sobre "o fim da classe operária", que voltam a florescer hoje em dia, são, na realidade, muito velhas: uma das características do "pensamento" da burguesia decadente, que expressa muito bem a senilidade dessa classe social, é a incapacidade de produzir a menor novidade. A única coisa que é capaz de fazer é revirar o lixo da história para tirar velhos itens que nos vende como "a descoberta do século".
Um dos meios favoritos utilizados hoje pela burguesia para escamotear os antagonismos de classe, e inclusive a realidade das classes sociais, são os "estudos" sociológicos. Graças a jogadas estatísticas, têm "demonstrado" que as verdadeiras divisões sociais não têm nada a ver com as diferenças de classe, mas com critérios como o nível de instrução, o local onde se vive, a idade, a origem étnica ou a prática religiosa [6]. Para apoiar esse tipo de afirmação, empenham-se em exibir o fato, por exemplo, de que o voto de um cidadão a favor da direita ou da esquerda depende menos da sua situação econômica que de outros critérios. Nos Estados Unidos, a Nova Inglaterra, os negros e os judeus votam tradicionalmente nos democratas, na França, os católicos praticantes, os alsacianos e os habitantes de Lyon votam tradicionalmente na direita. Esquecem-se, e não é por casualidade, de destacar que a maioria dos operários americanos jamais votam e que, nas greves, os operários franceses que vão à igreja não são necessariamente os menos combativos. De maneira geral, a "ciência" sociológica "esquece" sempre de dar uma dimensão histórica a suas afirmações. Assim empenham-se em esquecer que os mesmos operários russos que se lançaram na primeira revolução proletária do século XX, a de 1905, começaram, em 9 de Janeiro (o "Domingo Sangrento"), com uma manifestação conduzida por um sacerdote pedindo benevolência ao czar para que os livrasse da miséria [7].
Quando os especialistas em sociologia fazem referência à história, é somente para afirmar que as coisas mudaram radicalmente no último século. E, segundo eles, nessa época, o marxismo e a teoria da luta de classes podiam ter certo sentido, quando as condições de vida e trabalho dos assalariados da indústria eram efetivamente penosas. Porém, depois, os operários se "aburguesaram" e ascenderam à "sociedade de consumo" até o ponto de perder sua identidade. Da mesma forma, os burgueses de alto nível de vida e barrigudos deram lugar aos "administradores" assalariados. Todas essas considerações querem ocultar que, fundamentalmente, as estruturas profundas da sociedade não mudaram. Na realidade, as condições que no século passado deram à classe operária sua natureza revolucionária, estiveram e estão sempre presentes. O fato de que hoje em dia o nível de vida dos operários seja superior ao dos seus irmãos de classe de gerações passadas não modifica de modo algum seu lugar nas relações de produção que dominam a sociedade capitalista. As classes sociais continuam existindo e a luta entre elas continua sendo o motor fundamental do desenvolvimento histórico.
Certamente é uma ironia da história que os ideólogos oficiais da burguesia pretendam, de um lado, que as classes não desempenhem nenhum papel específico (ou seja, que elas não existam) e reconheçam, por outro lado, que a situação econômica é um problema essencial, crucial, com que se depara esta mesma burguesia.
Na realidade a importância fundamental das classes sociais se origina justamente do lugar preponderante que ocupa a atividade econômica dos homens. Uma das afirmações de base do materialismo histórico é que, em última instância, a economia determina as outras esferas da sociedade: as relações jurídicas, as formas de governo, os modos de pensar. Esta visão materialista da história manda para o espaço as filosofias que vêem os acontecimentos históricos ou como o mero fruto do azar, ou a expressão da vontade divina, ou ainda o simples resultado das paixões ou dos pensamentos dos homens. Todavia, como dizia Marx em sua época, "a crise se encarrega de fazer entrar a dialética na cabeça dos burgueses". O fato, hoje evidente, dessa preponderância da economia na vida da sociedade determina basicamente a importância das classes sociais, justamente porque estas estão determinadas, contrariamente a outras classificações sociológicas, pelo lugar ocupado nas relações econômicas. Isto sempre foi uma realidade desde a existência das sociedades de classe, mas no capitalismo se expressa com maior clareza.
Na sociedade feudal, por exemplo, a diferenciação social estava consignada nas leis. Existia uma diferença jurídica fundamental entre os exploradores e os explorados: os nobres tinham, por lei, uma condição oficial de privilegiados (isenção de impostos, recebimento de um tributo pago pelos servos, por exemplo) enquanto os camponeses, que estavam ligados a sua terra, estavam obrigados a ceder uma parte dos seus rendimentos ao senhor (ou trabalhar gratuitamente nas terras deste). Em tal sociedade, a exploração, que era facilmente medida (por exemplo, sob a forma de tributo pago pelo servo) parecia originar-se das normas jurídicas. No entanto, na sociedade capitalista, a abolição dos privilégios, a introdução do sufrágio universal, da Igualdade e da Liberdade proclamadas pelas suas constituições, não permite que a exploração e a divisão em classes se escondam atrás das diferenças de normas jurídicas. É a posse, ou a não posse, dos meios de produção [8], assim como o modo como estes são empregados o que determina, na essência, o lugar na sociedade dos seus membros e seu acesso às riquezas. Quer dizer, a filiação a uma classe social e a existência de interesses comuns com outros membros da mesma classe. De forma geral, o fato de possuir meios de produção e colocá-los a trabalhar individualmente determina a filiação à pequena burguesia (artesãos, explorações agrícolas, profissionais liberais, etc.) [9]. O fato de estar privado de meios de produção e de estar obrigado, para viver, a vender sua força de trabalho aos que os detenham e os utilizam em seu proveito para apropriar-se de uma mais-valia, determina o pertencimento à classe operária. Por fim, fazem parte da burguesia, os que detêm (no sentido jurídico ou no sentido global do seu controle, de maneira coletiva ou individual) meios de produção que, para colocá-los em movimento, utilizam o trabalho assalariado e que vivem da exploração deste último, sob a forma de mais-valia que este produz. Na essência, essa divisão em classes é hoje em dia tão presente como era no século passado. Do mesmo modo que subsistiram os interesses de cada classe e os conflitos entre esses interesses. Por esta razão, os antagonismos entre os principais componentes da sociedade, determinados pelo que constitui o quadro da mesma, a economia, continua se encontrando no centro da vida social.
Dito isso, é preciso assinalar que, apesar de os antagonismos entre exploradores e explorados constituírem um dos motores principais da história das sociedades, isso não se expressa de forma idêntica em todas elas. Na sociedade feudal, as lutas, frequentemente ferozes e de grande alcance, entre os servos e os senhores feudais não levaram nunca a uma mudança radical da mesma. O antagonismo de classe, que conduziu à derrubada do antigo regime e aboliu os privilégios da nobreza, não foi aquele que opôs esta e a classe explorada, a população serva, mas o enfrentamento entre essa nobreza e outra classe exploradora: a burguesia (Revolução Inglesa da metade do século XVII, Revolução Francesa no final do século XVIII). Do mesmo modo a sociedade escravista da antiguidade romana não foi abolida pelas classes de escravos (apesar de terem empreendido alguns combates formidáveis, como a revolta de Spartacus e dos seus no ano 73 A.C.), mas pela nobreza que chegou a dominar o ocidente cristão durante mais de um milênio.
Na realidade, nas sociedades do passado, as classes revolucionárias nunca foram classes exploradas, mas novas classes exploradoras. Evidentemente, este fato não se deve de modo algum ao azar. O marxismo distingue as classes revolucionárias (que se chamam também classes "históricas") de outras classes da sociedade pelo fato de que, contrariamente a essas últimas, elas têm a capacidade de tomar a direção da sociedade. E enquanto o desenvolvimento das forças produtivas era insuficiente para assegurar uma abundância de bens ao conjunto da sociedade, impondo a essa a manutenção de desigualdades econômicas e, portanto, de relações de exploração, só uma classe exploradora estava em condições de se impor à frente do corpo social. Seu papel histórico era o de favorecer a eclosão e o desenvolvimento das relações de produção das quais era portadora e que tinham como vocação, suplantando as antigas relações de produção que se tornaram caducas, de resolver as contradições, até então insuperáveis, engendradas pela manutenção dessas últimas.
Assim, a sociedade escravista romana em decadência estava minada pelo fato de que a "provisão" de escravos, baseado na conquista de novos territórios, chocava-se com a dificuldade que Roma tinha para controlar fronteiras cada vez mais distantes e pela incapacidade de obter por parte dos escravos a capacidade exigida pela colocação em prática de novas tecnologias agrícolas. Em tal situação, as relações feudais, nas quais os explorados não tinham uma condição idêntica à do gado (como era o caso dos escravos) [10] e estavam estreitamente interessados em uma grande produtividade do solo que trabalhavam, porque dele viviam, impuseram-se como as mais aptas para fazer a sociedade sair do marasmo em que vivia. É por isso que essas relações se desenvolveram, fundamentalmente por uma libertação crescente dos escravos (o que foi acelerado, em alguns lugares, pela chegada dos "bárbaros" dentre os quais alguns já viviam há algum tempo sob a forma de sociedade feudal).
Do mesmo modo, o marxismo (começando pelo Manifesto Comunista) insiste sobre o papel eminentemente revolucionário desempenhado pela burguesia ao longo da história. Esta classe, que aparece e se desenvolve no seio da sociedade feudal, viu crescer seu poder com relação à nobreza e à monarquia, cada vez mais dependentes dela tanto no que diz respeito a seus abastecimentos em bens de toda natureza (tecidos, móveis, especiarias, armas), como no que se refere ao financiamento dos seus gastos. Ao se esgotar a possibilidade arroteamento e de extensão das terras cultivadas foi se secando uma das fontes da dinâmica das relações de produção feudais, juntamente com a perda da sua razão de ser, no papel de protetor das populações pela nobreza (que foi inicialmente a vocação principal desta classe) por conta da constituição de grandes reinos. Assim, o controle da sociedade por essa classe perde sentido e se converte em uma trava ao desenvolvimento da referida sociedade. Isso se amplia pelo fato de que esse desenvolvimento é cada vez mais tributário do crescimento do comércio, do banco e do artesanato das grandes cidades que alcança um progresso considerável das forças produtivas.
Assim a burguesia, colocando-se à frente do corpo social, primeiro na esfera econômica e depois na esfera política, liberta a sociedade das travas que a tinham colocado no marasmo e cria as condições para o crescimento das riquezas mais formidável que a humanidade tinha conhecido. E, ao mesmo tempo, substitui uma forma de exploração, a servidão, por outra forma de exploração, o trabalho assalariado. Para isso, durante o período que Marx chama de acumulação primitiva, toma medidas de uma barbárie tamanha que podia ser comparada às impostas aos escravos, para que os camponeses se vissem obrigados a vender sua força de trabalho nas cidades (ver, a esse respeito, as páginas admiráveis do Livro I de O Capital). Essa barbárie é o anúncio da barbárie que empregara o capital para explorar o proletariado (trabalho de crianças, trabalho noturno de mulheres e crianças, jornadas de trabalho de até 18 horas, aprisionamento de trabalhadores em Workhouses, etc.) até que as lutas deste conseguissem obrigar os capitalistas a atenuar a brutalidade dos seus métodos.
A classe operária, desde seu surgimento, tem protagonizado revoltas contra a exploração. Assim, essas revoltas colocaram em evidência um projeto de mudança da sociedade, de abolição das desigualdades, de compartilhar os bens sociais. E nisso não se diferencia fundamentalmente das camadas exploradas no passado, particularmente os servos que, em algumas das suas revoltas, podiam aderir a um projeto de transformação social. Esse foi o caso durante a guerra dos camponeses no século XVI, na Alemanha, quando os explorados adotaram como porta-voz Thomas Munzer, que preconizava uma forma de comunismo [11]. No entanto, contrariamente ao projeto de transformação social de outras classes exploradas, o do proletariado não é uma simples utopia irrealizável. O sonho de uma sociedade igualitária sem donos e sem exploração que podiam acolher os escravos ou os servos era uma fantasia porque o grau de desenvolvimento econômico alcançado pela sociedade naquele tempo não permitia a abolição da exploração. Por outro lado, o projeto comunista do proletariado é perfeitamente realizável, não só porque o capitalismo criou as premissas para tal sociedade, mas porque é o único projeto que pode tirar a humanidade do marasmo em que se afunda.
Desde que o proletariado começou a propor seu próprio projeto, a burguesia o despreza, considerando-o elucubrações de profetas sem público. Quando se esforçava em ir mais além do simples desprezo, o único que podia imaginar é que os operários seriam como as demais classes exploradas de épocas passadas: que só podiam sonhar utopias impossíveis. Evidentemente a história parecia dar razão à burguesia, cuja filosofia se reduzia ao "sempre existiu pobres e ricos e sempre haverá. Os pobres não ganham nada rebelando-se: o que tem de ser feito é os ricos não abusarem da sua riqueza e se preocuparem em aliviar a miséria dos mais pobres". Os sacerdotes e as damas de caridade foram de fato os porta-vozes, e os praticantes, dessa "filosofia". O que a burguesia não queria reconhecer é que seu sistema econômico e social, nem mais nem menos que os anteriores, não podia ser eterno e que, da mesma maneira que o escravismo ou o feudalismo, estava condenado a ceder seu lugar a outro tipo de sociedade. É do mesmo modo que as características do capitalismo permitiram resolver as contradições que haviam travado a sociedade feudal (como tinha sido o caso dessa diante da antiga sociedade), as características da sociedade chamada a resolver as mortais contradições do capitalismo se originam do mesmo tipo de necessidade. Portanto, é possível definir as características da futura sociedade partindo dessas contradições.
Não podemos, por razões óbvias, no contexto desse artigo tratar em detalhes dessas contradições. Há mais de um século que o marxismo tem tratado disso de forma sistemática e nossa própria organização dedicou numerosos textos [12] ao tema. Mas, podemos resumir em linhas gerais as origens dessas contradições. Residem nas características essenciais do sistema capitalista: é um modo de produção que generalizou a troca mercantil para todos os bens produzidos, enquanto nas sociedades do passado só uma parte, muitas vezes muito pequena, desses bens eram transformados em mercadorias. Esta colonização da economia pela mercadoria afetou, inclusive no capitalismo, a força de trabalho colocada em movimento pelos homens na sua atividade produtiva. Privado de meios de produção, o produtor não tem outra possibilidade para sobreviver a não ser vender sua força de trabalho a quem detenha os meios de produção: a classe capitalista, enquanto na sociedade feudal, por exemplo, onde havia uma economia mercantil, o que artesão ou camponês vendiam era fruto do seu trabalho. Certamente é essa generalização da mercadoria o que está na base das contradições do capitalismo: a crise de superprodução encontra suas raízes no fato de que o sistema não produz valores de uso, mas sim valores de troca que devem encontrar seus compradores. É a incapacidade da sociedade em comprar a totalidade das mercadorias produzidas (embora as necessidades estejam muito longe de serem satisfeitas) onde reside essa calamidade que aparece como um verdadeiro absurdo: o capitalismo se afunda não porque produz pouco, mas porque produz em demasia [13].
A primeira característica do comunismo será, portanto, a abolição da mercadoria, o desenvolvimento da produção de valores de uso em lugar de valores de troca.
Além disso, o marxismo, e particularmente Rosa Luxemburgo, colocou em evidência que a origem da superprodução reside na necessidade de o capital, considerado como um todo, realizar-se, pela venda fora da sua própria esfera, da parte de valores produzidos correspondente à mais-valia extraída dos operários e destinada à sua acumulação. À medida que esta esfera extracapitalista se reduz, as convulsões da economia tomam formas cada vez mais catastróficas.
Assim, o único meio de superar as contradições do capitalismo reside na abolição, ao mesmo tempo que de todas as outras formas de mercadorias, da mercadoria força de trabalho, quer dizer, do salário.
A abolição da troca mercantil implica que seja abolida, igualmente, o que constitui sua base: a propriedade privada. Só se as riquezas da sociedade são apropriadas de forma coletiva poderão desaparecer a compra e a venda dessas riquezas (o que já existia, de forma embrionária, na comunidade primitiva). Tal apropriação coletiva pela sociedade das riquezas que ela produz e, em primeiro lugar, dos meios de produção, significa que já não é possível que uma parte dessa sociedade, qualquer classe social (inclusive sob a forma de burocracia de Estado), possa dispor de meios com os quais possa explorar a outra parte. Assim, a abolição do salário não pode se realizar sobre a base da introdução de outra forma de exploração, mas unicamente pode se dar sob a abolição da exploração, em todas as suas formas. Contrariamente ao passado, o tipo de transformação que hoje pode salvar a sociedade não pode se basear em novas relações de exploração. E mais, o capitalismo criou realmente as premissas materiais de uma abundância que permite a superação da exploração. Essas condições de abundância também tornam visível a existência de crises de superprodução (como assinalou o Manifesto Comunista).
A questão colocada é a seguinte: qual força na sociedade está em condições de operar essa transformação, de abolir a propriedade privada e de colocar fim a toda forma de exploração?
A primeira característica dessa classe é ser explorada, porque só uma classe assim está interessada na abolição da exploração. Nas revoluções do passado a classe revolucionária não podia ser, de modo algum, uma classe explorada, na medida em que as novas relações de produção eram necessariamente relações de exploração, exatamente o contrário do que acontece hoje. No seu tempo os socialistas utópicos (Fourier, Saint-Simon, Owen) [14] alimentaram a ilusão de que elementos da própria burguesia poderiam tomar para si a responsabilidade da revolução. Confiavam que da própria classe dominante surgiriam filantropos esclarecidos e endinheirados que, ao se dar conta da superioridade do comunismo sobre o capitalismo, estariam dispostos a financiar projetos de comunidades ideais e que o exemplo desses "benfeitores" se espalharia como uma mancha de óleo.
Mas não são os homens que fazem a história, e sim as classes, motivo pelo qual essas esperanças terminaram imediatamente frustradas. É verdade que existiram raríssimos burgueses que simpatizaram com as ideias dos utopistas [15], porém o conjunto da classe dominante, como tal, opôs-se, quando não combateu abertamente, essas tentativas que tinham como projeto seu desaparecimento.
Portanto, ser uma classe explorada não basta, como vimos, para ser uma classe revolucionária. Existem, por exemplo, ainda hoje no mundo, especialmente nos países subdesenvolvidos, uma multidão de camponeses pobres que sofrem a espoliação de uma parte do fruto do seu trabalho, que enriquece uma parte da classe dominante muito diretamente ou através dos impostos ou dos juros que devem reembolsar aos bancos e usurários com os quais se endividam. Sobre essa miséria, frequentemente insuportável, dessas camadas camponesas, levantaram-se todas as mistificações dos terceiro-mundistas, maoístas, guevaristas... Quando esses camponeses foram empurrados a pegar em armas foi como bucha de canhão de uma ou outra fração da burguesia, que uma vez alçada ao poder tem se encarregado de intensificar ainda mais essa exploração, e frequentemente de maneira ainda mais selvagem (por exemplo, a aventura do khmer vermelho no Camboja, na metade da década de 1970). O retrocesso dessas mistificações (difundidas tanto por stalinistas e trotskistas como por "intelectuais radicais", como Marcuse) é a prova mais evidente do fiasco em que resultou a pretensa "perspectiva revolucionária" do campesinato pobre. Na realidade, os camponeses, apesar de serem explorados de múltiplas formas e poderem empreender lutas - às vezes muito violentas - para limitar sua exploração, não podem nunca colocar como objetivo das suas lutas a abolição da propriedade privada, pela simples razão de que eles mesmos são pequenos proprietários, ou por viverem junto desses, aspiram chegar a essa condição algum dia [16].
Ainda quando os camponeses se dotam de estruturas coletivas para aumentar suas rendas, através de uma melhoria da sua produtividade ou da comercialização dos seus produtos, essas tomam geralmente a forma de cooperativas, o que não questiona nem a propriedade privada, nem a troca de mercadorias [17]. Em resumo, as classes e camadas sociais que aparecem como resíduos do passado (exploradores agrícolas, artesãos, profissionais liberais...) [18] que subsistem simplesmente pelo fato de o capitalismo, ainda que domine totalmente a economia mundial, ser incapaz de transformar todos os produtores em assalariados, não podem ter nenhum projeto revolucionário. Ao contrário, a única coisa com que podem sonhar é o retorno a uma mítica "idade do ouro" do passado. Por isso, a dinâmica das suas lutas específicas é sempre reacionária.
Na realidade, ao ser a abolição da exploração substancialmente idêntica à da abolição do salário, só a classe que suporta essa forma específica de exploração, ou seja, o proletariado, está em condições de desenvolver um projeto revolucionário. Só a classe explorada no seio das relações de produção capitalistas, produto do desenvolvimento dessas relações de produção, é capaz de se munir de uma perspectiva de superação destas.
O proletariado é o produto do desenvolvimento da grande indústria, de uma socialização do processo produtivo como nunca antes conheceu a humanidade. Por isso, o proletariado não pode sonhar com nenhuma volta para trás [19]. Por exemplo, ainda que a redistribuição ou a repartição das terras possa ser uma reivindicação "realista" dos camponeses pobres, seria um absurdo que os operários que fabricam, de modo associado, produtos, compostos de peças, de matérias primas e de tecnologia provenientes do mundo inteiro se propusessem a desmontar sua empresa em partes para repartir. Inclusive as ilusões sobre a autogestão, isto é, uma propriedade comum da empresa pelos que trabalham nela (versão moderna da cooperativa operária), começam a ser coisa do passado. Depois de inúmeras experiências, inclusive recentes (como a da LIP na França no começo dos anos 1970), que geralmente acabaram em enfrentamentos entre os que trabalham e os que haviam sido nomeados gerentes, a maioria dos trabalhadores é bastante consciente de que, dada a necessidade de manter a competitividade da empresa no mercado capitalista, a autogestão equivale à autoexploração. No desenvolvimento da sua luta histórica, o proletariado só pode olhar para a frente: não para a repartição da propriedade e da produção capitalistas, mas levar até o final o processo de socialização dessas, o que o capitalismo tem feito avançar de maneira considerável mas que, por sua própria natureza, não pode pode levar a cabo, ainda que concentre a propriedade nas mãos de um Estado nacional (caso, por exemplo, dos regimes stalinistas).
Para cumprir essa missão histórica, o proletariado conta com uma grande força potencial. Em primeiro lugar, porque na sociedade capitalista avançada, o essencial da riqueza social é produzido pelo trabalho da classe operária. Mesmo sendo, ainda hoje, minoritária na população mundial. Nos países industrializados, a parte do produto nacional que pode se atribuir aos trabalhadores independentes (camponeses, artesãos...) é insignificante. E isso é válido também no caso dos países atrasados onde, por outro lado, a maioria da população vive (ou sobrevive) do trabalho da terra.
Mas, em contrapartida, também por necessidade, o capital concentrou a classe operária em unidades de produção gigantescas, que não têm nada a ver com as que existiam nos tempos de Marx. Além disso, essas unidades de produção geralmente se encontram concentradas no entorno de cidades cada vez mais populosas. Esse agrupamento da classe operária, tanto nos seus lugares de residência como de trabalho, constitui uma força incomparável quando se tira proveito disso, em particular mediante o desenvolvimento da sua luta coletiva e da sua solidariedade.
Finalmente, uma das forças essenciais do proletariado é sua capacidade de tomar consciência. Todas as classes, e especialmente as classes revolucionárias, municiaram-se de uma forma de consciência. Esta, porém, era necessariamente mistificada, ou pela inviabilidade do seu projeto (por exemplo, o caso das guerras camponesas na Alemanha), ou porque se via obrigada a mentir, a ocultar a realidade daqueles que os empurrava para a ação, mas que continuaria a explorá-los (tal é o caso da burguesia e suas palavras de ordem de "Liberdade, Igualdade, Fraternidade"). O proletariado, por ser uma classe explorada e portadora de um projeto revolucionário que acabará com qualquer exploração, não tem de ocultar nem às outras classes, nem a si mesmo, os objetivos últimos da sua ação, de modo que poderá desenvolver ao longo do seu combate histórico uma consciência livre de mistificações. De fato, essa consciência pode se elevar a um nível muito superior ao que jamais pôde chegar a classe inimiga, a burguesia. O que constitui a força decisiva do proletariado, junto a sua organização em classe, é justamente essa capacidade de tomar consciência.
Na segunda parte deste artigo veremos como o proletariado atual conserva, apesar de todas as campanhas ideológicas que evocam seu "desaparecimento" ou sua "integração", todas as características que a fazem a classe revolucionária de nossa época.
FM
II. Hoje em dia, o Proletariado continua sendo a classe revolucionária
[1] Ver especialmente o artigo La experiencia rusa, propiedad privada y propiedad colectiva na Revista internacional nº 61 e a série de artigos El comunismo no es un bello ideal, sino una necesidad material a partir da Revista internacional nº 68.
[2] Marx e Engels colocaram em questão esta afirmação, esclarecendo que só era válida a partir da dissolução da comunidade primitiva, quando sua existência foi confirmada pelos trabalhos de etnologia da segunda metade do século XIX, como os de Morgan sobre os índios da América.
[3] Alguns "pensadores" da burguesia (como o político francês do século XIX Guizot, que foi chefe de governo sob o reinado de Luís Felipe) também legaram essa idéia.
[4] É válido também para os economistas "clássicos", tal como Smith ou Ricardo, cujo trabalho foi útil particularmente para o desenvolvimento da teoria marxista.
[5] Temos de dar a César o que é de César, e a Castoriadis o que lhe pertence: com grande perseverança, as previsões deste último foram desmentidas pelos fatos: não tinha "previsto" que de agora em diante o capitalismo havia superado suas crises econômicas? (ver particularmente seus artigos sobre "A dinâmica do capitalismo" no início dos anos 60 em Socialismo ou Barbárie). Não tinha anunciado ao mundo, em 1981 (ver seu livro Diante da guerra, do qual ainda esperamos a segunda parte anunciada para o outono de 1981), que a URSS havia triunfado definitivamente na "guerra fria"? ("desequilíbrio massivo a favor da Rússia", "situação praticamente impossível de recuperar pelos americanos"). Tais fórmulas tinham sido verdadeiramente bem vindas em uma época na qual Reagan e a CIA tentavam nos assustar a propósito do "império do mal". Tudo isso não impediu a mídia de continuar pedindo o ponto de vista do "especialista" frente a grandes acontecimentos da nossa época: apesar da sua coleção de erros, conserva a gratidão da burguesia pelas suas convicções e seus discursos infatigáveis contra o marxismo, convicções que são a origem dos seus fracassos crônicos.
[6] É verdade que, em muitos países, estas características camuflam parcialmente o pertencimento de classe. Assim em muitos países do Terceiro Mundo, sobretudo na África, a classe dominante recruta a maior parte de seus membros em uma ou outra etnia: todavia, isto não significa que todos os membros dessas etnias sejam exploradores, muito pelo contrário. Do mesmo modo nos EUA, os WASP ("Anglo-saxões brancos protestantes") são, proporcionalmente, os mais representados na burguesia: isto não impede a existência de uma burguesia negra (Colin Powel, ex-chefe do Estado Maior do Exército, é negro), nem de uma multidão de "pequenos brancos" de lutar contra a miséria.
[7] "Soberano, (...) viemos lhe ver para pedir tua justiça e proteção (...) Ordene e Jure satisfazê-las (nossas principais necessidades) e farás a Rússia potente e gloriosa, imprimirás teu nome em nossos corações, nos corações dos nossos filhos para sempre". Era nesses termos que foi dirigida a petição operária ao czar de todas as Rússias. É necessário esclarecer, entretanto, que esta petição também afirmava "chegamos ao limite de nossa paciência, para nós chegou o terrível momento em que a morte vale mais que afundar-se em tormentos insuportáveis (...) Se rechaças atender nossas súplicas morreremos aqui, sobre esta praça, diante do teu palácio...".
[8] Esta posse, não toma necessariamente, como vimos com o desenvolvimento do capitalismo de Estado, especialmente na sua versão stalinista, a forma de uma propriedade individual, pessoal (e transferívelcomo herança). É cada vez mais coletivamente que a classe capitalista "possui" (no sentido em que ela pode dispor, tem o benefício e controle) os meios de produção, mesmo quando estes são estatizados.
[9] A pequena burguesia não é uma classe homogênea. Existem múltiplas formas dela que não possuem, os meios materiais de produção. Assim, os atores de cinema, os escritores, os advogados, por exemplo, pertencem a esta categoria social sem que isso queira dizer que disponham de ferramentas específicas. Seus "meios de produção" residem em um saber ou em um "talento" que colocam em prática no seu trabalho.
[10] O servo não era uma simples "coisa" do senhor. Ligado a sua terra, era vendido com ela (o que é comum com o escravo). Mas existia no princípio um "contrato" entre o servo e o senhor: este último, que possuía as armas, assegurava-lhe proteção em troca do trabalho de servo em terras senhoriais ou em troca de uma parte das suas colheitas.
[11] Ver a primeira parte da série El comunismo no es un bello ideal, sino una necesidad material, na Revista internacional nº 68.
[12] Ver nossa brochura La Decadencia Del Capitalismo.
[13] Sobre esta questão, ver a 5ª parte da série El comunismo no es un bello ideal, sino una necesidad material, na Revista internacional nº 72, que mostra como a crise de superprodução expressa a quebra do capitalismo.
[14] Ver em El comunismo no es un bello ideal..., 1ª parte, na Revista internacional nº 68.
[15] Owen foi inicialmente um grande industrial têxtil e tentou em numerosas ocasiões, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, criar comunidades que se bateram contra as leis capitalistas. Contribuiu, no entanto, para o surgimento das Trade Unions, os sindicatos britânicos. Se fosse possível medir, a sorte das iniciativas dos utopistas franceses foi ainda pior. Durante anos, Fourier esperou em vão, dia após dia, em seu escritório, que se apresentasse o mecenas que financiasse sua cidade ideal. As tentativas dos seus discípulos, sobretudo nos Estados Unidos, de construção de "falanstérios", acabaram em desastrosas quebras econômicas. Por outro lado, se as doutrinas de Saint-Simon tiveram algum êxito maior, foi porque constituíram o credo de uma série de homens da burguesia, tais como os irmãos Pereire, fundadores de um banco, ou Ferdinand de Lesseps, o construtor do canal de Suez.
[16] Existe um proletariado agrícola, cujo único meio de subsistência consiste em vender, em troca de um salário, sua força de trabalho aos proprietários de terras. Esta parte do campesinato pertence à classe operária e constituirá, no momento da revolução, o destacamento avançado do proletariado no campo. No entanto, ao viver sua exploração como conseqüência de uma "desgraça" que lhe priva de herdar uma parte de terra ou que lhe atribuiu uma parcela pequena demais, o proletariado agrícola, que muito frequentemente é temporário ou empregado numa exploração familiar, tende muitas vezes a alimentar o sonho de ascender a uma propriedade ou de uma melhor divisão das terras. Só a luta, em um estágio avançado do proletariado urbano, permitir-lhe-á desfazer-se de tais fantasias, propondo como alternativa a socialização da terra, de maneira idêntica ao resto dos meios de produção.
[17] O que não é um impedimento para que, no curso do período de transição do capitalismo ao comunismo, o reagrupamento de pequenos proprietários agrícolas em cooperativas possa constituir uma etapa para a socialização da terra, sobretudo, porque isso lhes permitirá superar o individualismo característico do seu âmbito de trabalho.
[18] O que temos dito dos camponeses é mais válido ainda para os artesãos, cujo papel na sociedade tem se reduzido cada vez mais drasticamente. Quanto às profissões liberais (medicina privada, advocacia...), seu status social e sua remuneração (que a burguesia inveja em muitos casos) não os incita de maneira alguma a questionar a ordem existente. Com relação aos estudantes, que por definição ainda não têm nenhum lugar na economia, seu destino é o de dividir-se entre as diferentes classes sociais das quais eles vêm por suas origens familiares, ou às quais acabam integrando-se.
[19] No despertar do desenvolvimento da classe operária, certos setores desta, despedidos pela introdução de maquinaria, dirigirão sua revolta para a destruição dessas máquinas. Esta tentativa de voltar no tempo foi, entretanto, uma forma embrionária de luta, que desapareceu com o desenvolvimento econômico e político do proletariado.
Todos esses elementos não são novos. Fazem parte do patrimônio clássico do marxismo. No entanto, um dos meios mais traiçoeiros com os quais a ideologia burguesa tenta desviar o proletariado do seu projeto comunista é convencê-lo que estaria em vias de extinção, ou mesmo que já desapareceu. A perspectiva revolucionária fazia sentido quando os operários industriais eram a imensa maioria dos assalariados, porém com a atual redução dessa categoria, tal perspectiva tornou-se ultrapassada. Há de se reconhecer que semelhante discurso não afeta somente os operários menos conscientes, mas também alguns grupos que se reivindicam do comunismo. Razão maior para lutar com firmeza contra tais bobagens.
As "teorias" burguesas sobre o "desaparecimento do proletariado" já vem de longe. Durante algumas décadas, elas se baseavam no fato de que o nível de vida dos operários conhecia certas melhorias. A possibilidade para estes adquirirem bens de consumo, antes reservados à burguesia ou pequena burguesia, significaria o desaparecimento da condição operária. Mesmo naqueles anos, essas "teorias" não se sustentavam: quando o automóvel, o televisor ou a geladeira, graças ao incremento da produtividade do trabalho humano, se tornaram mercadorias relativamente baratas, e além do mais, se fizeram indispensáveis devido ao contexto de vida dos operários [i], o fato de possuir esses artigos não significava, absolutamente, livrar-se da condição operária, nem sequer ser menos explorado. Na realidade, o grau de exploração da classe operária nunca esteve determinado pela quantidade ou natureza dos bens de consumo que pode dispor em um determinado momento. Já faz tempo, Marx e o marxismo deram uma resposta a essa questão: em linhas gerais, o poder de consumo dos assalariados corresponde ao preço da sua força de trabalho, ou seja, à quantidade de bens necessários para a reposição da referida força de trabalho. O que o capitalista busca quando paga um salário ao operário é que este continue participando no processo produtivo e nas melhores condições de rentabilidade para o capital. Isso supõe que o trabalhador consiga não só se alimentar, se vestir-se e se alojar, como também descansar e adquirir a qualificação necessária para fazer funcionar os meios de produção em constante evolução.
A instauração do descanso remunerado e seu incremento em dias que foram instituídos ao longo do século XX nos países desenvolvidos não se devem, tampouco, a não se sabe que "filantropia" da burguesia. Tornaram-se necessários pelo impressionante aumento da produtividade do trabalho e, portanto, dos ritmos de tal trabalho e da vida urbana em seu conjunto, característico de nossos tempos. Do mesmo modo, o desaparecimento (relativo) do trabalho infantil e da ampliação da escolaridade, que é apresentada como outra manifestação do quanto a classe dominante é bondosa, se devem, essencialmente, à necessidade para o capital de dispor de uma mão de obra adaptada às exigências de uma produção de tecnologia cada vez mais complexa (embora, atualmente, isso também tem se convertido em uma camuflagem do desemprego). Além disso, no "aumento" do salário do qual tanto alardeia a burguesia, especialmente desde a Segunda Guerra Mundial, temos que levar em conta que os operários devem manter os seus filhos por um período maior que no passado. Quando as crianças iam trabalhar aos doze anos ou menos, aportava durante alguns anos uma renda extra para a família operária antes de constituir um novo lar. Com uma escolaridade até os 18 anos, esse apoio desapareceu praticamente. Dito em outras palavras, os "aumentos" salariais também foram, em grande parte, um dos meios mediante os quais o capitalismo preparou a camuflagem da força de trabalho para as novas condições da tecnologia.
Durante certo tempo o capitalismo dos países desenvolvidos produziu a ilusão de ter reduzido os níveis de exploração dos seus assalariados. Na realidade, a taxa de exploração, ou seja, a relação entre a mais-valia produzida pelo operário e o salário que recebe [ii], tem se incrementado continuamente. Isso é o que Marx chamava pauperização "relativa" da classe operária como tendência permanente no capitalismo. Durante os anos que a burguesia de alguns países europeus batizou de "Trinta Gloriosos", a exploração do operário se incrementou continuamente, por mais que isso não se tenha concretizado em uma queda do nível de vida. Mas, hoje, não se trata mais de uma pauperização relativa. Os aumentos salariais já não são possíveis hoje em dia, e a pauperização absoluta, cujo desaparecimento definitivo fora anunciado por todos os apologistas da burguesia, está ressurgindo bruscamente nos países mais "ricos". Agora que a política de todos os setores nacionais da burguesia diante da crise é a de desferir golpes e mais golpes no nível de vida dos proletários, com o desemprego, a redução drástica das prestações "sociais" e inclusive o rebaixamento do salário nominal, todas aquelas estúpidas análises sociológicas sobre a "sociedade de consumo" e o "aburguesamento" da classe operária têm se desmentido por si mesmo. Por isso, agora o discurso sobre a "extinção do proletariado" tem mudado de argumento e, cada vez mais, se apóia, sobretudo, nas modificações que têm afetado as diferentes partes da classe operária e, especialmente, a redução dos efetivos industriais, da proporção de operários "manuais" na massa total dos trabalhadores assalariados.
Semelhantes discursos se baseiam em uma falsificação grosseira do marxismo. O marxismo nunca limitou o proletariado ao proletariado industrial ou "manual". É certo que nos tempos de Marx a maioria da classe operária estava formada por operários chamados "manuais". Mas em todas as épocas existiram no proletariado setores que trabalhavam com uma tecnologia sofisticada ou que exigiam importantes conhecimentos intelectuais. Alguns ofícios tradicionais, praticados por alguns ramos profissionais, exigiam uma maior aprendizagem. Da mesma forma, ofícios, como os dos revisores de imprensa, exigiam uma preparação grande que se assemelhavam aos "trabalhadores intelectuais". E isso não impediu, em nada, que esses trabalhadores se encontrassem muito frequentemente na vanguarda das lutas operárias. De fato, essa oposição entre trabalhadores de "colarinho azul" e de "colarinho branco" é um desses recortes que agradam os sociólogos e os burgueses, que os empregam para causar divisões nas fileiras dos trabalhadores. Essa oposição não é nova, pois a classe dominante compreendeu há bastante tempo que podia enganar a muitos empregados que não pertenciam a classe operária. Na realidade, o pertencimento ou não à classe operária não depende de critérios sociológicos e, muito menos ainda, ideológicos, ou seja, da idéia de que um proletário, ou um grupo de proletários, tem de sua própria condição. São fundamentalmente critérios econômicos os que determinam tal pertencimento.
Fundamentalmente, o proletariado é a classe explorada específica das relações de produção capitalista. Infere-se disso, como já vimos na primeira parte deste artigo, os seguintes critérios: Em linhas gerais, "o fato de estar privado de meios de produção e de estar obrigado, para viver, a vender sua força de trabalho aos que os detenham e os utilizam em seu proveito para apropriar-se de uma mais-valia, determina o pertencimento à classe operária". Mas, diante de todas as falsificações que, de forma interessada, têm se infiltrado nessa questão, é necessário tornar esses critérios mais precisos.
Em primeiro lugar, cabe dizer que, se o fato de ser assalariado é condição necessária para pertencer à classe operária, não é suficiente. Do contrário os policiais, os padres, alguns diretores gerais de grandes empresas (especialmente das públicas) e até os ministros seriam gente explorada e, potencialmente, companheiros de luta daqueles que reprimem, embrutecem e fazem trabalhar e que recebem salários dez ou cem vezes mais baixos [iii]. Por isso, é indispensável destacar que uma das características do proletariado é a de produzir mais-valia. E isto significa duas coisas:
Entre o pessoal de uma empresa, por exemplo, certos executivos técnicos (e inclusive engenheiros) cujo salário não supera muito o de um operário qualificado, pertencem à mesma classe que este, enquanto aqueles cuja remuneração se aproxima muito mais à do patrão (embora não tenha uma função de enquadramento da mão de obra), não fazem parte da classe operária. De igual maneira, em alguma empresa, um ou outro "chefe de limpeza" ou "agente de segurança", cuja remuneração é na maioria dos casos mais baixa que a de um técnico e inclusive a de um operário qualificado, mas cuja função é a de um "chefe" de presídio industrial, não poderá ser considerado como pertencente ao proletariado.
Por outro lado, fazer parte da classe operária não implica necessariamente participar direta e imediatamente na produção de mais-valia. O professor que educa o futuro proletário, a enfermeira, e inclusive o médico assalariado (cujo salário é muitas vezes menor que a de um operário qualificado), que "recupera" a força de trabalho dos operários (mesmo que cure policiais, padres, dirigentes sindicais ou até ministros) pertencem sem dúvida nenhuma à classe operária assim como o cozinheiro de um refeitório de empresa. É óbvio que isso não quer dizer que seja assim também com um cacique da universidade ou da enfermeira que se estabelece por sua própria conta. É necessário esclarecer ainda que o fato de os professores, mesmo os do fundamental (cuja situação econômica, em geral, não é das mais confortáveis), seja consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, um dos transmissores dos valores ideológicos da burguesia, não os exclui da classe explorada e revolucionária como também, por exemplo, os operários metalúrgicos que fabricam as armas [v]. Além disso, podemos constatar que, ao longo de toda a história do movimento operário, os professores (especialmente os do fundamental) sempre proporcionaram grande quantidade de militantes revolucionários. Do mesmo modo, os operários dos arsenais de Kronstadt faziam parte da vanguarda da classe operária durante a revolução de outubro de 1917.
É necessário reafirmar também que a grande maioria dos funcionários públicos também pertence à classe operária. Se tomarmos o exemplo de uma empresa estatal como os Correios, não se poderia dizer que os mecânicos que fazem a manutenção dos caminhões postais ou quem os dirige, bem como os que transportam os malotes de correios, não pertençam ao proletariado. Não é difícil compreender, a partir daqui, que seus companheiros que distribuem o correio ou atendam no guichê, estejam na mesma situação. Do mesmo modo, os empregados do banco, os agentes das companhias de seguros, os funcionários subalternos da previdência social ou dos tributos, cuja situação ou condição são equivalentes aos daqueles, também pertencem à classe operária. Não se pode arguir que esses teriam melhores condições de trabalho que os operários da indústria, por exemplo, de um ajustador ou um fresador. Trabalhar um dia inteiro atrás de um guichê ou diante de uma tela de computador não é menos penoso, porque ficam com as mãos mais limpas, que operar uma máquina-ferramenta. Além disso, o caráter associado do seu trabalho, que é um dos fatores objetivos da capacidade do proletariado tanto para levar a cabo sua luta de classe como a de derrubar o capitalismo, não é, de modo algum, colocado em dúvida pelas condições modernas da produção, muito pelo contrário.
E também, com a elevação do nível tecnológico da produção, esta última passa a exigir uma quantidade crescente do que a sociologia e as estatísticas chamam de "quadros" (técnicos e inclusive engenheiros), de maneira que a maioria deles comprovam, como dissemos antes, que sua condição social, quando não seus salários, se aproximam ao dos operários qualificados. Neste caso, não se trata, de modo algum, de um fenômeno de desaparecimento da classe operária a favor das "camadas médias", mas sim de um fenômeno de proletarização dessas [vi]. Por isso, os discursos sobre o "desaparecimento do proletariado" em virtude do constante crescimento de trabalhadores de "colarinho branco" ou de técnicos em relação aos operários "manuais" da indústria não tem outro objetivo senão o de enganar e desmoralizar a ambos. É irrelevante o fato de que os autores desses discursos acreditarem neles ou não: sempre servirão eficazmente à burguesia, mesmo que eles continuem sendo tão estúpidos a ponto de não ser capaz de se perguntarem quem fabricou a caneta (ou o processador de texto) com a qual estão escrevendo suas sandices.
Para desmoralizar os operários, a burguesia não joga uma única cartada. Para os que não acreditam no "desaparecimento da classe operária", ela reserva a ideia de que "a classe operária está em crise". Um dos argumentos definitivos dessa crise seria o declínio da filiação sindical e sua influência nas últimas décadas. Não vamos desenvolver neste artigo nossa análise sobre a natureza burguesa do sindicalismo em todas as suas formas. De fato, é a própria experiência cotidiana da classe operária, da sabotagem sistemática e permanente das suas lutas por parte de organizações que pretendem defendê-la, a que se encarrega, diariamente, de demonstrar isto [vii]. É justamente essa experiência dos operários a primeira responsável por esse rechaço. E por isso mesmo tal rechaço não é nada menos que uma "prova" de uma suposta crise da classe operária, mas, ao contrário e, sobretudo, uma demonstração de um desenvolvimento da consciência de classe. Um exemplo, entre milhares, do que afirmamos é a atitude dos operários nos grandes movimentos ocorridos em um mesmo país, França, em um intervalo de 32 anos. Ao final das greves de maio-junho de 1936, em plena época da contrarrevolução que se seguiu à onda revolucionária da primeira pós-guerra mundial, os sindicatos se beneficiaram de um aumento de filiados sem precedentes. Por outro lado, no final da greve geral de maio de 1968, que foi o marco da retomada histórica dos combates de classe e do final do período contrarrevolucionário, o que se viu foi a quantidade de desfiliações dos sindicatos e a montanha de carteiras sindicais rasgadas.
O argumento da desfiliação como prova das dificuldades que teria o proletariado é um dos indícios mais seguros de que quem utiliza semelhante argumento pertence ao campo burguês. Tal argumento é parecido ao da suposta natureza "socialista" dos regimes stalinistas. A história demonstrou, sobretudo após a Segunda guerra Mundial, a amplitude dos estragos nas consciências operárias dessa mentira propalada por todos os setores da burguesia, de direita, de esquerda e de extrema-esquerda (stalinistas e trotskistas). Nesses últimos anos, podemos comprovar de que modo o colapso do stalinismo tem sido utilizado como "prova" da falência definitiva de qualquer perspectiva comunista. A maneira de utilizar a mentira da "natureza operária dos sindicatos" é, em parte, idêntica: em um primeiro momento, serve para alistar os operários atrás do Estado capitalista; em um segundo momento, faz deles um instrumento para desmoralizá-los e desorientá-los. Existe, ainda, uma diferença de impacto entre essas duas mentiras. Por não ter sido o resultado das lutas operárias, o desmoronamento dos regimes stalinistas foi possível ser utilizado com eficácia contra o proletariado; por outro lado, o desprestígio dos sindicatos é essencialmente resultado dessas mesmas lutas operárias, o que limita seu impacto como fator de desmoralização. Além disso, é por essa razão que a burguesia tem dado origem ao sindicalismo "de base", encarregado de tomar o terreno do sindicalismo tradicional. E também por essa razão tem promovido ideólogos de ares mais "radicais", encarregados de propagar o mesmo tipo de mensagem.
E é assim que vemos florescer, promovidos pela imprensa [viii], análises como a do francês Sr. Alain Bihr, doutor em sociologia e autor, entre outras produções, de um livro intitulado Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu em crise. Em si, a tese deste personagem tem muito pouca importância. Entretanto, o fato de que este esteja presente desde algum tempo pelos ambientes que se reivindicam da esquerda comunista, dentre os quais alguns não têm o menor reparo em tomar por conta própria (de maneira "crítica", isso sim) as "análises" daquele [ix], nos leva a colocar em relevo o perigo que tais análises representam.
O Senhor Bihr se apresenta como um genuíno defensor dos interesses operários. Daí não poder supor que a classe operária estaria em vias de desaparecimento. Começa afirmando, ao contrário, que: "... as fronteiras do proletariado se estendem hoje em dia muito mais longe que o tradicional "mundo operário"". Todavia, isto serve para fazer passar a mensagem central: "Mas, ao largo de quinze anos de crise, na França como na maioria dos países ocidentais, assiste-se a uma fragmentação crescente do proletariado, que, ao colocar em dúvida sua unidade, tende a paralisá-lo como força social" [x].
A intenção principal do doutor em sociologia é, assim, demonstrar que o proletariado "está em crise" e que o responsável por essa situação é a própria crise do capitalismo, causa que há de se acrescentar, evidentemente, as modificações sociológicas que afetou a composição da classe operária: "De fato, as transformações da relação salarial em curso, com seus efeitos globais de fragmentação e de "desmassificação" do proletariado, , (...) tendem a dissolver as duas figuras proletárias que forneceram seus grandes batalhões durante o período fordista de um lado, a do operário qualificado, que as transformações atuais modificaram profundamente, tendendo a extinguir as antigas categorias do operário qualificado ligadas ao fordismo, enquanto novas categorias de "qualificados" surgem ligadas aos novos processos de trabalho automatizados: de outro, a do operário especializado, ponta de lança da ofensiva proletária das décadas de 60 e 70, sendo os operários especializados progressivamente eliminados e substituídos por trabalhadores instáveis dentro desses mesmos processos de trabalho automatizados". [xi]
Deixando de fora essa linguagem pedante (que tanto enche de gozo os pequenos burgueses que se colocam enquanto "marxistas"), Bihr nos traz os mesmos tópicos com os quais nos castigaram gerações de sociólogos: a automatização da produção seria responsável pelo debilitamento do proletariado (como se pretende marxista, não diz "desaparecimento"), etc. E ele acerta o passo com aqueles quando pretende que a dessindicalização também seria um sinal da "crise da classe operária" visto que "todos os estudos efetuados sobre o desenvolvimento do desemprego e da precariedade mostram que estes tendem a reativar e reforçar as antigas divisões e desigualdades no proletariado (...). Esta fragmentação em condições tão heterogêneas tem produzido efeitos desastrosos nas condições de organização e de luta. É testemunho disso, o fracasso das diferentes tentativas do movimento sindical em organizar os precários e desempregados..." [xii]. Assim, por trás das suas frases mais radicais, atrás do seu suposto "marxismo", Bihr quer nos vender o mesmo azeite adulterado que todos os setores da burguesia vendem: os sindicatos seriam ainda hoje "organizações do movimento operário" [xiii].
Assim é o "especialista" no qual se inspira gente como GS ou publicações como Perspective Internacionaliste (PI), que acolhe com simpatia seus escritos. Certo é que Bihr, que não é estúpido, para contrabandear sua mercadoria, tem cuidado em dizer que o proletariado será capaz de superar, apesar de tudo, suas dificuldades atuais e conseguirá se "recompor". Mas a maneira como diz isso tenderia melhor a convencer do contrário: "As transformações da relação salarial lançam, assim, um duplo desafio ao movimento operário; elas o obrigam simultaneamente a se adaptar a uma nova base social (a uma nova composição "técnica" e "política" da classe) e a fazer síntese entre categorias a priori tão heterogêneas como as dos "novos qualificados" e dos instáveis, síntese muito mais difícil de se realizar do que aquela entre operários especializados e operários qualificados, durante o período fordista (...) Enfim, o enfraquecimento efetivo do proletariado, devido à sua fragmentação, provoca entre o conjunto dos proletários, um enfraquecimento do sentimento de pertencer a uma classe, e assim pode abrir caminho para a recomposição de uma identidade coletiva imaginária em outras bases" [xiv]
É assim que, com toneladas de argumentos, a maioria deles especiosos, destinados a convencer o leitor de que tudo anda mal para a classe operária, após haver "demonstrado" que as causas dessa "crise" devem ser buscadas na automatização do trabalho e no afundamento da economia capitalista e na queda do desemprego, fenômenos todos eles que continuarão se agravando, se acaba afirmando de modo lapidar e sem argumento algum que "Tudo irá melhor... talvez!. Porém é um caminho muito difícil de encarar". Se depois de ter engolido as historinhas de Bihr alguém continua pensando que o proletariado e sua luta de classe têm futuro é porque é um otimista crédulo e incorrigível. O doutor Bihr pode estar contente: com suas redes grosseiras capturou os tolos que publicam PI e que se apresentam como os autênticos defensores dos princípios comunistas que a CCI teria jogado na sarjeta.
É certo que a classe operária teve de enfrentar, nos últimos anos, uma série de dificuldades para desenvolver suas lutas e sua consciência. Nós, por nossa vez, nunca vacilamos em assinalar essas dificuldades, contrariamente às acusações dos céticos do momento (ou seja, a FECCI, que é coerente com a sua função de semeadores de confusão, mas também Battaglia Comunista, o que é menos lógico porque Battaglia pertence ao meio político do proletariado). Mas quando assinalamos essas dificuldades e baseamos em uma análise da origem delas, também temos colocado em relevo as condições que permitirão sua superação. É o mínimo que se espera dos revolucionários. Basta examinar com um pouco de seriedade a evolução das lutas operárias durante a última década para se dar conta que sua atual debilidade não se deve de modo algum à diminuição dos números de operários "tradicionais", dos de "colarinhos azuis". Na maioria dos países, os trabalhadores dos correios e telecomunicações aparecem entre os mais combativos. E o mesmo ocorre com os trabalhadores da saúde. Em 1987, na Itália, foram os trabalhadores das escolas que levaram a cabo as lutas mais importantes. Poderíamos multiplicar os exemplos que ilustram que não só o proletariado não se limita aos de "colarinhos azuis", aos operários "tradicionais" da indústria, como tampouco a combatividade operária. Nossas análises não estão enfocadas por considerações sociológicas, boas para professores de universidade ou pequeno burgueses com dificuldades para interpretar não só o "mal estar" da classe operária, como também o seu próprio.
Não podemos voltar aqui, no marco deste artigo, sobre as análises da situação internacional que fizemos nos últimos anos. O leitor poderá buscar praticamente todos os números da nossa Revista Internacional durante todo esse período e especialmente nas teses e resoluções adotadas por nossa organização desde 1989 [xv]. A CCI se deu conta perfeitamente das dificuldades pelas quais atravessa o proletariado hoje, o retrocesso da sua combatividade e da consciência no seu seio, dificuldades nas quais alguns se apóiam para diagnosticar uma "crise" da classe operária. Colocamos em evidência, especialmente, que, durante os anos 80, a classe operária se viu confrontada com o peso crescente da decomposição generalizada da sociedade capitalista, que, ao favorecer a desesperança, o sentimento de "cada um por si", a atomização, desferiu fortes golpes na perspectiva geral da luta proletária e solidariedade de classe. Isso facilitou muito especialmente as manobras sindicais para aprisionar as lutas operárias no corporativismo. Mas o peso permanente da decomposição não conseguiu até 1989 acabar com a onda de combates operários que havia iniciado em 1983 com as greves do setor público na Bélgica. Tudo isso foi uma expressão da vitalidade da luta de classe. Durante todo esse período podemos presenciar um crescente ultrapassagem dos sindicatos, os quais tiveram que ceder, cada vez mais com mais freqüência, o espaço a um sindicalismo de "base", mais radical para o trabalho de sabotagem das lutas [xvi].
Aquela onda de lutas proletárias acabaria sendo enterrada pelos transtornos planetários que vinham acontecendo desde a segunda metade de 1989. O colapso dos regimes stalinistas da Europa em 1989 foi, até hoje, a expressão mais importante da decomposição do sistema capitalista. Embora alguns, em geral os mesmos que não tinham visto nenhuma luta operária em meados dos anos 80, estimavam que esse acontecimento ia favorecer a tomada de consciência da classe operária, nós não esperamos para anunciar o contrário [xvii]. Mais tarde, especialmente em 1990/91, durante a crise e a Guerra do Golfo, e depois, com o golpe de Moscou e o desmoronamento da URSS, colocamos em relevo que esses acontecimentos também iam repercutir na luta de classe e na capacidade do proletariado para fazer frente aos ataques cada dia mais fortes que o capitalismo em crise dirige contra ele.
Por isso, as dificuldades atravessadas pela classe durante o último período não escapou, nem surpreendeu, a nossa organização. No entanto, mediante a análise das verdadeiras causas (que nada tem a ver com a necessidade mítica de "recomposição da classe operária") pudemos também destacar as razões pelas quais a classe operária possui hoje os meios para superar essas dificuldades.
É importante, a esse respeito reconsiderar um dos argumentos de Bihr que lhe é útil para dar crédito à idéia da crise da classe operária: a crise e o desemprego tem "fragmentado o proletariado", "ao ter fortalecido as antigas divisões e desigualdades" no seu seio. Para exemplificar sua tese, Bihr não hesita em carregar as cores confeccionando um catálogo de todos esses "fragmentos": "os trabalhadores estáveis e com garantias", "os excluídos do trabalho e até do mercado de trabalho", "a massa flutuante de trabalhadores precários". E nesta última categoria, o doutor Bihr divide e subdivide com fluidez: "os trabalhadores de empresas que trabalham em subcontratação", "os trabalhadores a tempo parcial", "os estagiários" e "os da economia subterrânea" [xviii]. De fato, o que o doutor Bihr nos dá como argumento não é mais que uma constatação fotográfica, a qual corresponde perfeitamente a sua visão reformista [xix]. É certo que, num primeiro momento, a burguesia tem desferido seus ataques contra a classe operária de modo seletivo para, desse modo, limitar a amplitude das suas reações. Também é certo que o desemprego, especialmente o dos jovens, tem sido um fator de chantagem sobre determinados setores do proletariado e, por isso, tem se reforçado a passividade, acentuando a ação deletéria do ambiente de decomposição social e de "cada um por si". Mas, a crise mesma e seu agravamento inexorável se encarregarão cada vez mais em nivelar por baixo a condição dos diferentes setores da classe operária. Especialmente os setores de "ponta" (informática, telecomunicações, etc.) que pareciam ter evitado a crise, hoje estão sendo atingidos em cheio por ela colocando seus trabalhadores na mesma situação que os da siderurgia e da indústria automobilística. E agora são as maiores empresas, como a IBM, as que demitem em massa. Ao mesmo tempo, e contrariamente à tendência da década passada, o desemprego de todos os trabalhadores de idade mais madura, os que têm vivido uma experiência de trabalho coletivo e de luta, aumenta hoje com maior rapidez que o de jovens, o que tende a limitar o fator de atomização que o desemprego tinha representado no passado.
Embora a decomposição seja uma desvantagem para o desenvolvimento das lutas e da consciência da classe, a quebra cada vez mais evidente e brutal da economia capitalista, com sua série de ataques que se fazem sentir nas condições de existência do proletariado, é um fator determinante da situação atual para a retomada das lutas e da tomada de consciência. Porém isso não pode ser compreendido se pensarmos, tal como afirma a ideologia reformista que se nega a ver a menor perspectiva revolucionária, que a crise capitalista provoca uma "crise da classe operária". Uma vez mais, os fatos têm se encarregado por si mesmos de destacar a validade do marxismo e a vacuidade das elucubrações dos sociólogos. As lutas do proletariado na Itália, no outono de 1992, diante de alguns ataques econômicos de uma violência sem precedentes, voltou a demonstrar, uma vez mais, que o proletariado não morreu, que não tinha desaparecido, que não renunciou à luta mesmo que, e era de se esperar, ainda não tivesse digerido os golpes recebidos nos anos anteriores. Essas lutas não são fogo de palha. Não fazem mais que anunciar (como ocorreu com as lutas operárias de maio de 1968 na França, que agora faz 25 anos), um renascimento geral da combatividade operária, uma retomada da marcha para frente do proletariado rumo à tomada de consciência das condições e dos fins do seu combate histórico pela abolição do capitalismo. E isso, agrade ou não a todos os que se lamentam, sincera ou hipocritamente, da "crise da classe operária" e da sua "necessária recomposição".
FM (fevereiro 2006)
[i] O automóvel é indispensável para ir ao trabalho e fazer compras quando são insuficientes os transportes públicos e quando as distâncias a serem percorridas não fazem senão aumentar. Uma geladeira torna-se vital, quando o único meio de adquirir alimentos a um preço acessível é comprando em um supermercado e isso não pode ser feito todos os dias. Quanto à televisão, apresentada nos seus tempos como símbolo máximo do acesso da "sociedade de consumo", além do interesse que representa como instrumento de propaganda e de embrutecimento nas mãos da burguesia (como "ópio do povo" tem substituído com muita vantagem a religião), pode ser encontrada hoje em muitas moradias nas vilas miseráveis do Terceiro Mundo, fato que diz o quanto esse produto está desvalorizado.
[ii] Marx chamava taxa de mais-valia ou de exploração a relação "pl/v", onde "pl" representa a mais-valia em valor-trabalho (a quantidade de horas da jornada de trabalho que o capitalista se própria) e "v" o capital variável, ou seja, o salário (a quantidade de horas durante a qual o operário produz o equivalente em valor ao que recebe). É um índice que permite determinar em termos econômicos objetivos, e não subjetivos, a intensidade real da exploração.
[iii] Evidentemente, esta afirmação desmente todas essas mentiras que nos contam todos os "defensores da classe operária" como os social-democratas ou os stalinistas, que tem uma longa experiência em reprimir e enganar os operários como dos gabinetes ministeriais. Quando um operário "vindo de baixo" ascende a um cargo de direção sindical, de conselheiro ou prefeito e até de deputado ou ministro, nada tem a ver com a sua classe de origem.
[iv] Evidentemente, é muito difícil determinar esse nível, pois pode variar no tempo e de um país para outro. O que importa é saber que em cada país ou conjunto de países semelhantes desde o ponto de vista do desenvolvimento econômico e da produtividade do trabalho, existe tal limite, que se situa entre o salário do operário qualificado e o do quadro superior.
[v] Para uma análise mais desenvolvida sobre trabalho produtivo e improdutivo, veja nossa brochura La decadencia del capitalismo.
[vi] Embora seja necessário assinalar ao mesmo tempo que determinada proporção de "quadros" veem um aumento da sua renda que os integra na classe dominante.
[vii] Para uma análise detalhada da natureza burguesa dos sindicatos, veja nossa brochura Os sindicatos contra a classe operária.
[viii] Por exemplo, Le Monde diplomatique, mensal francês humanista publicado também em outros idiomas, especializado na promoção de um capitalismo "de rosto humano", publica frequentemente artigos de Alain Bihr. No seu número de março de 1991, pode-se encontrar, por exemplo, um texto desse autor intitulado Régression des droits sociaux, affaiblissement des syndicats, Le prolétariat dans tous ses éclats [Redução dos direitos sociais, enfraquecimento dos sindicatos, o proletariado em todos seus fragmentos].
[ix] Por exemplo, no nº 22 de Perspective Internationaliste, órgão da chamada "Fração Externa da CCI", pode ser lida uma contribuição de GS (que não é membro da FECCI, mas que parece estar em acordo com ela em todos os pontos essenciais) intitulada A necessária recomposição do proletariado, que cita reiteiradamente o livro de Bihr para reforçar suas afirmações.
[x] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.
[xi] Alain Bihr - Da grande noite à alternativa, Cap. 4ª : ruptura do compromisso fordista , pg.100.
[xii] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.
[xiii] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.
[xiv] Alain Bihr - Da grande noite à alternativa, Cap. 5ª : A fragmentação do proletariado, pg.104.
[xv] Ver Revista internacional nº60, 63, 67, 70 e este número.
[xvi] Evidentemente, quando considera-se, como Bihr, que os sindicatos são órgãos da classe operária e não da burguesia, os progressos logrados pela luta de classes se convertem em retrocessos. E, entretanto, curioso que pessoas como os membros da FECCI, que oficialmente reconhecem a natureza burguesa dos sindicatos, prossigam nessa apreciação.
[xvii] Ver o artigo Dificultades en aumento para el proletariado na Revista internacional nº 60.
[xviii] Le Monde diplomatique, março de 1991. Tradução nossa.
[xix] Uma das frases preferidas de A. Bihr é que "o reformismo é algo muito sério para deixá-lo em mãos de reformistas". Se, por casualidade, ele acredita ser um revolucionário, queremos aqui desenganá-lo.
1. A resolução adotada pelo congresso anterior da CCI colocava em evidência, desde o início, como a realidade acertava um duro golpe e desmentia categoricamente as previsões otimistas dos dirigentes da classe burguesa no início da última década do século XX, particularmente após o desmoronamento desse "império do mal" constituído pelo bloco imperialista supostamente socialista. Citava a declaração, agora famosa, do presidente George Bush pai em março de 1991, anunciando o nascimento de uma "Nova Ordem Mundial" baseada no "respeito do direito internacional" e colocava em evidência seu caráter surrealista diante do caos crescente no qual está afundando hoje a sociedade capitalista. Vinte anos depois desse "profético" discurso, e particularmente desde o início desta nova década, o mundo mostrou uma imagem de caos como jamais tinha mostrado desde o final da Segunda Guerra Mundial. Com algumas semanas de intervalo, assistimos a uma nova guerra na Líbia que se somou a todos os conflitos sangrentos que têm atingido o planeta no último período; assistimos novos massacres na Costa do Marfim e também a tragédia que afetou o Japão, um dos países mais potentes e modernos do mundo. O terremoto que assolou parte desse país evidenciou, uma vez mais, que não existem "catástrofes naturais", mas consequências catastróficas a fenômenos naturais. Mostrou que a sociedade dispõe hoje de meios para construir edifícios que resistem aos tremores de terra e permitem evitar tragédias como a do Haiti no ano passado, mas mostrou também a imprevidência da qual é capaz um Estado tão avançado como o Japão. Em si mesmo, o terremoto fez poucas vítimas, porém o tsunami que o seguiu matou umas 30.000 pessoas em poucos minutos. Mais ainda, ao provocar um novo Chernobyl, colocou em evidência não só a falta de previsão da classe dominante, como também seu enfoque de aprendiz de feiticeiro, incapaz de dominar as forças que põe em movimento. A empresa Tepco, que explora a central atômica de Fukuyama, não é a primeira, e menos ainda, a única responsável pela catástrofe. É o sistema capitalista em seu conjunto (baseado na busca desenfreada de lucros, assim como na concorrência entre setores nacionais, e não sobre a satisfação das necessidades da humanidade) que é o responsável fundamental pelas catástrofes presentes e futuras sofridas pela espécie humana. No fim das contas, "o Chernobyl japonês" é uma nova demonstração da quebra definitiva do modo de produção capitalista, cuja sobrevivência é uma ameaça crescente para a sobrevivência da própria humanidade.
2. Evidentemente, é a crise atual do capitalismo mundial que expressa mais diretamente a falência histórica desse modo de produção. Há dois anos, a burguesia de todos os países foi tomada por um tremendo pânico diante da gravidade da situação econômica. A OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos) não vacilava em escrever: "A economia mundial é prisioneira da recessão mais profunda e sincronizada desde décadas" (Relatório intermediário de março de 2009). Quando se sabe com que moderação se expressa habitualmente essa venerável instituição, pode-se fazer uma idéia do pavor que a classe dominante sente diante da quebra potencial do sistema financeiro internacional, a queda brutal do comércio mundial (mais de 13% em 2009), a brutalidade da recessão das principais economias, a onda de quebras que golpeia ou ameaça empresas emblemáticas da indústria tais como General Motors ou Chrysler. Esse pavor da burguesia, a conduziu a convocar cúpulas do G20, como a de março de 2009 em Londres, que decidiu em particular duplicar as reservas do Fundo Monetário Internacional e a injeção massiva de dinheiro por parte dos Estados na economia, para salvar um sistema bancário moribundo e relançar, assim, a produção. O fantasma da "Grande Depressão dos anos 30" aparecia nas mentes, o que levava a mesma OCDE a conjurar esses demônios escrevendo: "Embora tenha se qualificado às vezes esta severa recessão mundial de "grande recessão", estamos longe de uma nova "grande recessão" como a dos anos 30, graças à qualidade e a intensidade das medidas que os governos adotam atualmente" (Ibid.). Porém como dizia a resolução do XVIII Congresso, "é próprio dos discursos da classe dominante hoje, esquecerem de seus discursos de ontem", e o mesmo relatório intermediário da OCDE da primavera de 2011 expressa um verdadeiro alívio com a restauração da situação do sistema bancário e a retomada da econômica. A classe dominante não pode fazer outra coisa. Incapaz de se dotar de uma visão lúcida, de conjunto e histórica, das dificuldades do seu sistema (uma vez que essa visão a conduziria a descobrir o beco sem saída definitivo no qual ele se encontra) se encontra limitada a comentar dia a dia as flutuações da situação imediata tentando encontrar nelas motivos de consolo. Entretanto, ao atuar assim, embora de vez em quando os meios massivos de informação adotam certo tom alarmista sobre o tema, está levada a subestimar o significado do fenômeno maior que tem vindo à luz do dia desde dois anos: a crise da dívida soberana de vários Estados europeus. De fato, esta quebra potencial de um número crescente de Estados, é uma nova etapa no afundamento do capitalismo em sua crise sem salvação. Esta coloca em relevo os limites das políticas pelas quais a burguesia conseguiu frear a evolução da crise capitalista durante várias décadas.
3. Agora, já são mais de quarenta anos que o capitalismo está enfrentando a crise. Maio de 68 na França e o conjunto de lutas proletárias, que se seguiram internacionalmente, alcançaram semelhante amplitude só porque estavam alimentados por um agravamento mundial das condições de vida da classe operária, agravamento resultante dos primeiros prejuízos da crise capitalista, em particular, o aumento do desemprego. Esta crise conheceu uma brutal aceleração em 1973-75 com a primeira grande recessão internacional do pós-guerra. Desde então, novas recessões sempre mais profundas e ampliadas golpearam a economia mundial até culminar com a de 2008-09 que rememorou nas mentes o fantasma dos anos 30. As medidas adotadas pelo G20 de março de 2009, para evitar uma "Grande Depressão", são significativas da política da classe dominante desde décadas atrás: podem ser resumidas pela injeção de massas consideráveis de créditos nas economias. Tais medidas não são novas. De fato, há mais de 35 anos, estão no próprio coração das políticas aplicadas pela classe dominante para tentar escapar da principal contradição do modo de produção capitalista: sua incapacidade para encontrar mercados solventes capazes de absorver sua produção. A recessão de 1973-75 foi ultrapassada pelos créditos massivos dedicados aos países do Terceiro Mundo, porém, desde início dos anos 80, com a crise da dívida desses países, a burguesia dos países mais desenvolvidos teve que renunciar a esse pulmão da sua economia. Naquele momento, foram os Estados dos países mais avançados, e, em primeiro lugar, o dos Estados Unidos, que se destacaram como "locomotivas" da economia mundial. Os "reaganomics" (política neoliberal da administração Reagan) do início dos anos 80, que tinham permitido uma retomada significativa da economia desse país, se baseavam em um aumento inédito e considerável dos déficits orçamentários enquanto Ronald Reagan afirmava que "o Estado não era a solução, mas o problema". Ao mesmo tempo, os déficits comerciais igualmente consideráveis dessa potência, permitiam que as mercadorias produzidas por outros países encontrassem saídas. Durante os anos 90, os "tigres" e "dragões" asiáticos (Cingapura, Taiwan, Coreia do Sul, etc.) acompanharam por um tempo os Estados Unidos nesse papel de "locomotiva": sua taxa de crescimento espetacular os convertia em destino importante para as mercadorias dos países industrializados. Porém, esta "história de sucesso" foi fabricada ao preço de um endividamento considerável que conduziu a esses países a maiores convulsões em 1997 da mesma maneira que a Rússia, "nova" e "democrática", que esteve em moratória, decepcionou cruelmente aos que haviam apostado no "fim do comunismo" para estimular duradouramente a economia mundial. No início dos anos 2000, o endividamento conheceu uma nova aceleração, em particular graças ao desenvolvimento espantoso dos empréstimos hipotecários na construção em vários países, particularmente nos Estados Unidos. Então esse país acentuou seu papel de "locomotiva da economia mundial", mas ao preço de um crescimento abismal das dívidas – particularmente da população norte-americana - baseada sobre todo tipo de "produtos financeiros" supostamente considerados para prevenir contra os riscos de inadimplência. Na realidade, a dispersão dos créditos duvidosos não suprimiu em nada o caráter de espada de Dâmocles apontada sobre a economia norte-americana e mundial. Muito pelo contrário, essa dispersão não fez mais que acumular "ativos tóxicos" no capital dos bancos que estiveram na origem do afundamento desses a partir de 2007 e estiveram na origem da brutal recessão mundial de 2008-2009.
4. Assim, como dizia a resolução adotada no congresso anterior: "Não é pois a crise financeira o que originou a recessão atual. Muito ao contrário, o que faz a crise financeira é ilustrar que a fuga em direção ao endividamento, que permitiu superar a superprodução, não pode prosseguir eternamente. Cedo ou tarde, a "economia real" se vinga, isto significa que a base das contradições do capitalismo, a superprodução, a incapacidade dos mercados de absorver a totalidade das mercadorias fabricadas, volta para primeira fila" [1]. E esta mesma resolução apontava, após a cúpula do G20 de março de 2009, que: "A fuga cega na dívida é um dos ingredientes da brutalidade da recessão atual. A única "solução" que a burguesia é capaz de instaurar é... uma nova corrida cega no endividamento. O G20 não pôde inventar uma solução à crise pela simples razão de que esta não tem solução."
A crise das dívidas soberanas que está se propagando hoje, o fato dos Estados serem incapazes de pagar suas dívidas, constituem uma demonstração espetacular dessa realidade. A quebra potencial do sistema bancário e a recessão obrigaram todos os Estados a injetar somas consideráveis na sua economia, ao mesmo tempo em que os lucros estiveram em queda livre devido ao retrocesso da produção. Por isso, os déficits públicos conheceram, na maioria dos países, um aumento considerável. Para os mais expostos dentre eles, como Irlanda, Grécia ou Portugal, isto significou uma situação de falência potencial; a incapacidade de pagar seus funcionários e de saldar suas dívidas. Os bancos agora se negam a conceder-lhes novos empréstimos, a menos que a taxas exorbitantes, já que não tem nenhuma garantia de que serão reembolsados. "Os planos de salvação", por parte do Banco Europeu e do Fundo Monetário Internacional, não são mais que novas dívidas cujo reembolso se acrescenta ao das dívidas anteriores. É algo mais que um círculo vicioso; é uma espiral infernal. A única "eficácia" desses planos está no ataque sem precedentes que esta representa contra os trabalhadores: contra os funcionários cujos salários e outras verbas são drasticamente reduzidos, mas também contra o conjunto da classe operária por meio de cortes tremendos na educação, na saúde e nas pensões de aposentadoria assim como através de aumentos maiores nos impostos. Porém todos esses ataques antioperários, ao reduzir massivamente o poder de compra dos trabalhadores, não poderão ser nada mais que uma contribuição suplementar para uma nova recessão;
5. A crise da dívida soberana dos PIIGS (Portugal, Islândia, Irlanda, Grécia, Espanha) não é senão uma parte ínfima do terremoto que ameaça a economia mundial.
Não é porque se beneficiam ainda, no momento da nota AAA no índice de confiança das agências de qualificação (essas mesmas agências, que até a véspera da debandada dos bancos em 2008, lhes tinham dado a nota máxima), que estão muito melhor às grandes potências industriais. No final de abril de 2011, a agência Standard and Poor’s emitia uma opinião negativa a respeito da perspectiva de um Quantitative Easing nº 3, ou seja, um terceiro plano de recuperação do Estado federal norte-americano destinado a apoiar a economia. Em outras palavras, a primeira potência mundial corre o risco de perder a confiança "oficial" quanto a sua capacidade de resgatar suas dívidas, a não ser com um dólar fortemente desvalorizado. De fato, de forma oficiosa, essa confiança começa a falhar com a decisão da China e do Japão, desde o outono passado, de comprar massivamente ouro e demais matérias primas em lugar do bônus do Tesouro americano, o que obriga hoje o Banco Federal americano a comprar entre 70 e 90% da sua emissão. E esta perda de confiança se justifica perfeitamente quando se constata o incrível nível de endividamento da economia norte-americana: em janeiro de 2010, o endividamento público (Estado federal, Estados, municípios, etc.) representa cerca de 100% do PIB, o que é apenas uma parte do endividamento total do país (que inclui também as dívidas das famílias e das empresas não financeiras) que alcança 300% do PIB. E a situação não é melhor para os demais países avançados em que a dívida total representa, na mesma data, valores de 280% do PIB para a Alemanha, 320% para a França, 470% para o Reino Unido e Japão. Neste país, só a dívida pública alcança 200% do PIB. E desde então, para todos os países, a situação só tem se agravado com os diversos planos de retomada.
Assim, a quebra dos PIIGS é só a ponta visível da falência de uma economia mundial que não pode sobreviver, desde décadas, a não ser por uma fuga desesperada em direção ao endividamento. Os Estados que dispõem da sua própria moeda como o Reino Unido, Japão e evidentemente os Estados Unidos, puderam mascarar essa falência fazendo funcionar a máquina de fazer notas a todo vapor (contrariamente aos da Zona Euro, como Grécia, Irlanda ou Portugal, que não dispõem de semelhante possibilidade). No entanto, essa trapaça permanente dos Estados, que se converteram em verdadeiros falsificadores de moedas, acompanhando seu chefe de gangue que é o Estado norte-americano, não poderá continuar indefinidamente da mesma maneira; assim como não puderam prosseguir as manobras do sistema financeiro, como ficou demonstrado na sua crise de 2008, que quase o fez implodir. Uma das manifestações visíveis dessa realidade está na aceleração atual da inflação mundial. Ao se passar da esfera dos bancos à dos Estados, a crise do endividamento não faz senão marcar o ingresso do modo de produção capitalista em uma nova fase da sua crise aguda na qual vão se agravar, ainda mais consideravelmente, a violência e a extensão das suas convulsões. Não há "saída nem luz ao fim do túnel" para o capitalismo. Este sistema não pode senão arrastar a sociedade para uma barbárie sempre crescente.
6. A guerra imperialista continua sendo a maior manifestação da barbárie para onde o capitalismo decadente está precipitando a sociedade humana. A trágica história do século XX constitui a manifestação mais evidente disso: diante do beco sem saída histórico que é seu modo de produção, diante da exacerbação das rivalidades comerciais entre os Estados, a classe dominante se dirige a uma fuga cega direcionada para as políticas guerreiras, para os enfrentamentos militares. Para a maior parte dos historiadores, inclusive para os que não se reivindicam do marxismo, fica claro que a Segunda Guerra Mundial é filha da Grande Depressão dos anos 30. Do mesmo modo, o agravamento das tensões imperialistas no final dos anos 70 e início dos anos 80, entre os dois blocos de então, o norte americano e o russo (invasão do Afeganistão pela URSS em 1979, cruzada contra o Império do Mal da administração Reagan), resultava em grande parte do retorno da crise aberta da economia no final dos anos 60. No entanto, a história tem mostrado que esse laço entre agravamento dos enfrentamentos imperialistas e crise econômica do capitalismo não é direto ou imediato. A intensificação da Guerra Fria se encerrou finalmente pela vitória do bloco ocidental e a implosão do bloco adversário, o que por sua vez gerou a própria desagregação do primeiro. Embora escapasse da ameaça de uma nova guerra generalizada que poderia ter desembocado no desaparecimento da espécie humana, o mundo não tem conseguido se colocar a salvo de explosão de tensões e enfrentamentos militares: o fim dos blocos rivais significou o fim da disciplina que conseguiam impor nos seus respectivos territórios. Desde então a arena imperialista planetária está dominada pela tentativa da primeira potência mundial em manter sua liderança no mundo e, em primeiro lugar, manter sua liderança sobre seus antigos aliados. Em 1991, a primeira guerra do Golfo já tinha colocado em evidência esse objetivo, mas a história dos 90, particularmente, a guerra na Iugoslávia, mostrou a falência dessa ambição. A "guerra contra o terrorismo mundial", declarada pelos Estados Unidos, após os atentados de 11 de setembro de 2001, pretendia ser uma nova tentativa para reafirmar sua liderança, porém seu fracasso no Afeganistão e Iraque destacou uma vez mais sua incapacidade para conseguir.
7. Esses fracassos dos Estados Unidos não desanimaram essa potência em prosseguir a política ofensiva implementada desde o início dos anos 90 e que o converte no principal fator de instabilidade do cenário mundial. Como dizia a resolução do congresso anterior: "Diante desta situação, a única coisa que Obama e sua administração poderão fazer é prosseguir a política belicista de seus predecessores... Obama previu retirar as forças norte-americanas do Iraque, mas foi para reforçar seu recrutamento no Afeganistão e no Paquistão." O que foi demonstrado recentemente com a execução de Bin Laden por um comando norte-americano em território paquistanês. É evidente que essa operação "heroica" tem uma vocação eleitoral a um ano e meio das eleições norte-americanas. Desarma particularmente as críticas dos republicanos que recriminam Obama por sua indolência na afirmação da supremacia dos Estados Unidos no plano militar; críticas que se radicalizaram com a intervenção na Líbia onde a liderança da operação tinha sido deixada em mãos da coalizão franco-britânica. Também significa que, após ter feito Bin Laden desempenhar o papel de "mal" da história durante 10 anos, já era tempo de liquidá-lo sob pena de se passar por verdadeiros impotentes. Isso permitiu também a potência norte-americana provar que ela era a única que tinha os meios militares, tecnológicos e logísticos para lograr esse tipo de operação, precisamente no momento em que França e o Reino Unido tinham dificuldades para levar a efeito sua operação anti-Kadafi. Mostrava ao mundo que não vacilaria em violar a "soberania nacional" de um "aliado", que estava disposto a estabelecer as regras do jogo em qualquer região onde considerar necessário. Por fim, conseguia obrigar a maior parte dos governos do mundo a saudar, frequentemente de mal grado, o valor dessa proeza.
8. Dito isso, o efeito logrado por Obama no Paquistão não lhe permitirá estabilizar a situação na região, particularmente no próprio Paquistão onde o menosprezo sofrido pelo "orgulho nacional" pode atiçar os antigos conflitos entre diversos setores da burguesia e do aparelho estatal. Muito menos a morte de Bin Laden permitirá aos Estados Unidos, nem a outros países comprometidos no Afeganistão, tomar o controle do país e assegurar a autoridade de um governo Karzai, totalmente minado pela corrupção e o tribalismo. Mas no geral, não permitirá, de modo algum, colocar um freio nas tendências do "cada um por si" e à contestação da autoridade da primeira potência mundial tal como continua se manifestando, como se pode ver recentemente com a constituição de uma série de alianças pontuais surpreendentes: aproximação entre Turquia e Irã, aliança entre Brasil e Venezuela (estratégica e anti-EUA), entre Índia e Israel (militar e saída do isolamento), entre China e Arábia Saudita (militar e estratégica), etc. Em particular, não poderia desanimar a China em fazer prevalecer suas ambições imperialistas que permite seu estatuto recente de grande potência industrial. É claro que esse país, apesar da sua importância demográfica e econômica, não tem, de modo algum, os meios militares ou tecnológicos, e não está próximo de ter, para se constituir como uma nova cabeça de bloco. No entanto, tem os meios de perturbar, ainda mais, as ambições norte-americanas – quer seja na África, no Irã, na Coreia do Norte ou na Birmânia – e colocar sua pedra na instabilidade crescente que caracteriza as relações imperialistas. A "nova ordem mundial" prevista há vinte anos por George Bush pai, e sonhada por este sob a égide dos Estados Unidos, só pode se apresentar, cada vez mais, como um "caos mundial", um caos que as convulsões da economia capitalista agravarão ainda mais.
9. Diante do caos que está afetando a sociedade burguesa em todos os planos (econômicos, da guerra e também do meio ambiente, como acabamos de ver no Japão), só o proletariado pode aportar uma solução, sua solução: a revolução comunista. A crise insolúvel da economia capitalista, as convulsões cada vez maiores que vão se expressar, constituem condições objetivas para esta. Por um lado, porque obriga a classe operária a desenvolver suas lutas de forma crescente diante dos ataques dramáticos que vai sofrer por parte da classe exploradora. Por outro lado, permitindo compreender que essas lutas adquiram todo seu significado como momentos de preparação do seu enfrentamento decisivo com um modo de produção – o capitalismo – condenado pela história, tendo em vista a sua derrubada.
No entanto, como dizia a resolução do Congresso Internacional anterior: "O caminho que conduz aos combates revolucionários e à derrubada do capitalismo é ainda longo e difícil. [...] Para que a possibilidade de que a revolução comunista possa ganhar um terreno significativo na classe trabalhadora, é necessário que esta possa adquirir confiança nas suas próprias forças, e isso passa pelo desenvolvimento das suas lutas massivas". De forma muito mais imediata, a resolução apontava que: "a forma principal que está tomando hoje esse ataque, os desempregos massivos, não favorece, em um primeiro tempo, a emergência de tais movimentos [...] Em uma segunda etapa, quando [a classe trabalhadora] será capaz de resistir às chantagens da burguesia, quando se imporá a ideia de que só a luta unida e solidária pode frear a brutalidade dos ataques da classe dominante, sobretudo quando esta vai tentar fazer com que os trabalhadores paguem os colossais déficits orçamentários que estão se acumulando por causa dos planos de salvação dos bancos e retomada da economia, será então que combates operários de grande amplitude poderão desenvolver-se melhor."
10. Os dois anos que nos separam do congresso anterior têm confirmado amplamente esta previsão. Nesse período, não se conheceu lutas de amplitude contra o desemprego massivo e contra o auge sem precedentes do desemprego sofrido pela classe operária nos países mais desenvolvidos. Em contrapartida, é a partir dos ataques feitos diretamente pelos governos ao aplicar planos "de enxugamento das contas públicas" que começaram a se desenvolver lutas significativas. Esta resposta ainda é muito tímida, particularmente ali onde esses planos de austeridade tomaram as formas mais violentas (países como Grécia ou Espanha, por exemplo), onde a classe operária tinha mostrado, não obstante, em um passado recente, uma combatividade relativamente grande. De certa forma, parece que a própria brutalidade dos ataques provoca um sentimento de impotência nas filas operárias, especialmente que são aplicadas por governos "de esquerda". Paradoxalmente, é lá onde os ataques parecem ser os menos violentos (por exemplo, na França), que a combatividade operária se expressou mais massivamente com o movimento contra a reforma das aposentadorias no outono de 2010.
11. Ao mesmo tempo, os movimentos mais massivos que se tem conhecido no curso do último período não vieram dos países mais industrializados, mas de países da periferia do capitalismo, principalmente de vários países do mundo árabe, e mais precisamente da Tunísia e Egito, onde, finalmente, depois de ter tentado sufocá-los através de uma repressão feroz, a burguesia teve que despedir os ditadores reinantes. Esses movimentos não eram lutas operárias clássicas como as que esses países já tinham conhecido recentemente (por exemplo, as lutas em Gafsa, na Tunísia, em 2008, ou as greves massivas da indústria têxtil no Egito, durante o outono de 2007, que encontraram a solidariedade ativa por parte de muitos outros setores). Esses movimentos têm tomado com frequência a forma de revoltas sociais nas quais se encontram associados todos os tipos de setores da sociedade: trabalhadores do setor público e do privado, desempregados, mas também pequenos comerciantes, artesãos, profissionais liberais, a juventude estudantil etc. É por isso que o proletariado, na maior parte do tempo, não apareceu diretamente identificado (como de forma distinta esteve, por exemplo, nas greves no Egito ao findar-se as revoltas), menos ainda assumindo o papel de força dirigente. No entanto, na origem desses movimentos (o que se refletia em muitas das reivindicações colocadas) se encontra fundamentalmente as mesmas coisas que estão na origem das lutas operárias nos demais países: o considerável agravamento da crise, a miséria crescente que ela provoca no conjunto da população não exploradora. E se, em geral, o proletariado não apareceu diretamente como classe nesses movimentos, sua marca estava presente nos países nos quais tem uma importância significativa, particularmente pela profunda solidariedade que manifestou durante as revoltas, por sua capacidade de evitar que se lançassem em atos de violência cega e desesperada apesar da terrível repressão que tiveram de enfrentar. Afinal de contas, se a burguesia na Tunísia e no Egito resolveu finalmente – seguindo os bons conselhos da burguesia norte-americana – despedir os velhos ditadores, foi em grande medida, devido à presença da classe operária nesses movimentos. Uma das provas, de modo negativo, dessa realidade, está na saída que tiveram os movimentos na Líbia: não a derrubada do velho ditador Kadafi, mas sim o enfrentamento militar entre frações burguesas na qual os explorados são envolvidos como bucha de canhão. Nesse país, uma grande parte da classe operária estava composta de trabalhadores imigrantes (egípcios, tunisianos, chineses, subsaarianos, bangladeshianos) cuja reação principal foi fugir da repressão que se desencadeou ferozmente desde os primeiros dias.
12. A saída beligerante do movimento na Líbia, com a participação dos países da OTAN, permitiram que a burguesia promovesse campanhas de mistificação em direção aos operários dos países avançados, cuja reação espontânea tinha sido de se sentir solidários com os manifestantes da Tunísia e do Cairo, saudando sua valentia e determinação. Em especial, a presença massiva das novas gerações no movimento, particularmente da juventude estudantil cujo futuro está feito de desemprego e de miséria, fazia eco aos recentes movimentos que animaram aos estudantes em vários países europeus no período recente: movimento contra o CPE na França na primavera de 2006, revoltas e greves na Grécia no final de 2008, manifestações e greves dos desempregados e estudantes na Inglaterra no final de 2010, os movimentos estudantis na Itália em 2008 e nos Estados Unidos em 2010 etc. Essas campanhas burguesas para desnaturalizar, diante dos olhos dos operários de outros países, o significado das revoltas na Tunísia e no Egito, foram evidentemente facilitadas pelas ilusões que continuam pesando fortemente sobre a classe operária desses países: as ilusões nacionalistas, democráticas e sindicalistas, em particular, como foi o caso em 1980-81 com a luta do proletariado polonês.
13. Esse movimento acontecido há 30 anos permitiu à CCI elaborar sua análise crítica da teoria dos "elos mais fracos" desenvolvida em particular por Lênin no momento da revolução na Rússia. A CCI colocou em relevo, se baseando nas posições elaboradas por Marx e Engels, que será dos países centrais do capitalismo e, particularmente, dos velhos países industriais da Europa, que virá o sinal da revolução proletária mundial, devido à concentração do proletariado desses países e mais ainda devido à sua experiência histórica, e que lhe fornecem as melhores armas para acabar desmontando as armadilhas ideológicas mais sofisticadas elaboradas desde há muito tempo pela burguesia. Assim, uma das etapas fundamentais do movimento da classe operária mundial no futuro está constituída não só pelo desenvolvimento das lutas massivas nos países centrais da Europa ocidental, como também pela sua capacidade para desmontar as armadilhas democrática e sindical, particularmente pela tomada em mãos das lutas pelos próprios trabalhadores. Esses movimentos serão o farol para a classe operária mundial, incluindo a classe operária da principal potência capitalista, Estados Unidos, cujo afundamento na miséria crescente, uma miséria que já afeta dezenas de milhões de trabalhadores, vai transformar o "sonho americano" em verdadeiro pesadelo.
CCI (maio de 2011)
A indignação tomou uma dimensão internacional
As consequências da crise capitalista são muito duras para a imensa maioria da população mundial: deterioração das condições de vida, desemprego prolongado durante anos, precariedade que torna impossível a mínima estabilidade vital, situações extremas de pobreza e fome.
Milhões de pessoas percebem com preocupação como se evapora a possibilidade de uma “vida estável e normal”, de “um futuro para os filhos”. Isto tem levado a uma profunda indignação, a sair da passividade, a tomar as ruas e as praças e se questionar sobre as causas de uma crise que, na sua fase atual, se prolonga há 5 anos.
A indignação tem se aprofundado pela arrogância, ganância e indiferença aos sofrimentos da maioria, com a que se comportam os banqueiros, políticos e demais representantes da classe capitalista. Mas também pela impotência que manifestam os governos diante dos graves problemas da sociedade: suas medidas só aumentam a miséria e o desemprego sem dar nenhuma solução.
O movimento de indignação se estendeu internacionalmente. Surgiu na Espanha onde o governo socialista adotou um dos primeiros e mais draconianos planos de austeridade; na Grécia, símbolo da crise da dívida soberana; nos Estados Unidos, templo do capitalismo mundial; no Egito e Israel, situados em cada uma das frentes do pior e mais arraigado conflito imperialista, o do Oriente Médio.
Apesar do efeito nocivo do nacionalismo (presença de bandeiras nacionais nas manifestações na Grécia, no Egito ou nos Estados Unidos), a consciência de que se trata de um movimento global começa a se desenvolver. Na Espanha a solidariedade com os trabalhadores na Grécia se expressa nos gritos "Atenas aguanta, Madrid se levanta" [Atenas resiste, Madrid se levanta]. Os grevistas de Oakland (EUA, novembro 2011) diziam "Solidariedade com o movimento de ocupações a nível mundial". No Egito, foi aprovada a Declaração do Cairo em apoio ao movimento nos Estados Unidos. Em Israel, se bradava "Netanyahu, Mubarak, El Assad, são a mesma coisa" e faziam contato com trabalhadores palestinos.
Atualmente o pico desses movimentos já passou e embora se despontem novas lutas (Espanha, Grécia, México) muitos se perguntam: Para que serviu essa maré de indignação? Ganhamos alguma coisa?
É necessário fazer um balanço considerando tanto o que foi positivo quanto as debilidades e limitações.
"Tomada da praça!": lema comum dos movimentos
Há décadas que não se via multidões ocupando ruas e praças para tentar lutar por seus próprios interesses, apesar das ilusões ou confusões que existem no seu seio.
Essas pessoas, os trabalhadores, os explorados, os rotulados como uns fracassados indolentes incapazes de ter iniciativas nem de fazer nada coletivamente, puderam se unir, compartilhar iniciativas e romper a passividade asfixiante à qual a normalidade cotidiana desse sistema nos condena.
Foi uma injeção de moral, o princípio do desenvolvimento da confiança na sua própria capacidade, a descoberta da força que dá a ação coletiva de massas. O cenário social está mudando. O monopólio sobre os assuntos públicos de políticos, experts, “grandes homens”, começa a ser colocado em questão por multidões anônimas que querem se fazer ouvir.
Trata-se de um frágil ponto de partida. As ilusões, as confusões, as inevitáveis altas e baixas do estado de ânimo, a repressão, os perigosos desvios impostos pelas forças de enquadramento com as quais o Estado Capitalista conta (os partidos de esquerda e os sindicatos), irão impor passos atrás, derrotas amargas. Trata-se de um caminho longo e difícil, repleto de obstáculos e onde não existe nenhuma garantia de triunfo, o próprio fato de começar a andar é a primeira vitória.
As Assembléias coração do movimento
As multidões não se limitaram à postura passiva de gritar seu mal-estar, tomaram posição ativa de se organizar em Assembleias. As Assembleias massivas materializam o lema da Primeira Internacional (1864) de que "A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores". Inscrevem-se na continuidade da tradição do movimento operário que explode na Comuna de Paris e toma sua expressão mais elevada na Rússia em 1905 e 1917, continuando na Alemanha de 1918, Hungria em 1919 e 1956 e Polônia em 1980.
Assembleias Gerais e Conselhos Operários são a forma genuína de organização da luta do proletariado e o núcleo de uma nova organização da sociedade.
Assembleias para se unificar massivamente, começando a romper as cadeias que nos atelam mais à escravidão assalariada: a atomização, o “cada um por si”, o fechamento no gueto do setor ou da categoria profissional.
Assembleias para pensar, discutir e decidir conjuntamente, tornar-se coletivamente responsáveis pelo que se decide, participando todos tanto da decisão como na execução do aprovado.
Assembleias para construir a confiança mútua, a empatia geral, a solidariedade, os quais não só são imprescindíveis para levar adiante a luta bem como serão os pilares de uma futura sociedade sem classes nem exploração.
2011 viu uma explosão da autêntica solidariedade que nada tem a ver com a hipócrita e interessada "solidariedade" que nos apregoam: manifestações em Madrid para libertar os detidos ou impedir que a polícia fizesse a detenção de imigrantes; atos massivos contra os despejos na Espanha, Grécia ou Estados Unidos; em Oakland "A assembléia de greve aprovou o envio de piquetes e ocupar qualquer empresa ou escola que punir empregados ou estudantes de qualquer forma por participar da Greve geral de 2 de novembro". Foi possível viver momentos, ainda que episódicos, onde qualquer um pudesse se sentir protegido e defendido por seus semelhantes, o que contrasta fortemente com a “normalidade” nessa sociedade que é um angustiante sentimento de falta de defesa e vulnerabilidade.
A cultura do debate: a luz que ilumina o futuro
A consciência necessária para que milhões de trabalhadores transformem o mundo não se adquire recebendo aulas magistrais ou palavras de ordem geniais de chefes iluminados, é o fruto de uma experiência de luta acompanhada e guiada por um debate massivo que analisa o vivido tendo em conta o passado, porém sempre para o futuro, pois como dizia um cartaz na Espanha "Não há futuro sem revolução".
A cultura do debate, isto é, a discussão aberta que parte do respeito mútuo e do escutar ao outro atentamente, começou a germinar não somente nas Assembléias como em torno delas: foram organizadas bibliotecas ambulantes, celebraram-se encontros, palestras, intercâmbios... Uma vasta atividade intelectual com meios precários foi improvisada nas ruas e praças. E, como as Assembléias, isto significou a retomada com a experiência passada do movimento operário.
Diante da cultura dessa sociedade que propõe lutar por “modelos de êxito” que são a fonte de milhões de fracassos, contra os estereótipos alienantes e falsificadores que martela a ideologia dominante e seus meios de comunicação, milhares de pessoas têm começado a procurar uma autêntica cultura popular, feita por elas mesmas, tratando de desenvolver um critério próprio, crítico e independente. Falaram da crise e das suas causas, do papel dos bancos etc. Falaram de revolução, ainda que nesse recipiente tenha se vertido muitos líquidos, às vezes confusos; falaram de democracia e ditadura, sintetizando nisso dois gritos complementares: "chamam de democracia e não o é" e "é uma ditadura e não se vê".
Já foram dados os primeiros passos para que apareça uma verdadeira política da maioria, para além do mundo de intrigas, mentiras e manobras obscuras que caracteriza a política dominante. Uma política que aborda todos os elementos que nos afetam, não só a economia ou a política, mas igualmente a destruição do meio ambiente, a ética, a cultura, a educação ou a saúde.
O proletariado tem a chave do futuro
Se tudo isso faz de 2011 o ano do princípio da esperança, temos de nos ater em um olhar lúcido e crítico sobre os movimentos vividos, seus limites e debilidades que são, ainda, imensos.
Se um número crescente de pessoas em todo o mundo se convence de que o capitalismo é um sistema obsoleto, que "para que a humanidade possa viver, o capitalismo deve morrer", existe a tendência a reduzir o capitalismo a um punhado de "males" (financeiros sem escrúpulos, ditadores impiedosos) quando é uma rede de relações sociais que tem de ser atacada na sua totalidade e não se dispersar perseguindo suas múltiplas e variadas manifestações (as finanças, a especulação, a corrupção dos poderes político-econômicos).
Está mais que justificado o rechaço à violência que o capitalismo exala por todos seus poros (repressão, terror e terrorismo, barbárie moral). No entanto, este sistema não poderá ser abolido por uma mera pressão pacífica e cidadã. A classe minoritária não abandona voluntariamente o poder e se guarnece em um Estado que na sua versão democrática se legitima com eleições a cada 4 ou 5 anos, com partidos que prometem o que nunca fazem e fazem o que nunca dizem; e com os sindicatos que mobilizam para desmobilizar e acabar assinando tudo o que a classe dominante lhes apresenta na mesa. Somente uma luta massiva, tenaz e obstinada, poderá dar aos explorados a força necessária para destruir os meios de abatimento com que o Estado conta, e tornar realidade o grito muito repetido na Espanha de "Todo o poder às Assembleias".
Embora o slogan de "somos 99% diante de 1%", tão popular no movimento de ocupações dos Estados Unidos, revela um princípio de compreensão das hemorrágicas divisões de classe que nos afetam, a maioria dos participantes nos protestos se vê como "cidadãos de cabeça erguida" que querem ser reconhecidos dentro de uma sociedade de "cidadãos livres e iguais".
No entanto, a sociedade está dividida em classes. Uma classe capitalista que tem tudo e não produz nada e uma classe explorada – o proletariado – que produz tudo e tem cada vez menos. O motor da evolução social não é o jogo democrático da "decisão de uma maioria de cidadãos" (este jogo é muito mais a máscara que encobre e legitima a ditadura da classe dominante) mas a luta de classes.
O movimento social necessita se articular ao redor da luta da principal classe explorada – o proletariado – que produz coletivamente as principais riquezas e assegura o funcionamento da vida social: fábricas, hospitais, escolas, universidade, escritórios, portos, construção, correios. Em alguns movimentos em 2011 começou a se perceber sua força: a onda de greves que aconteceu no Egito que obrigou a descartar Mubarak. Em Oakland (Califórnia) os "ocupantes" convocaram uma greve geral, indo ao porto e conseguindo apoio ativo de trabalhadores portuários e motoristas de caminhão. Em Londres os eletricistas em greve e os ocupantes de Saint Paul convergiram em ações comuns. Na Espanha, as assembleias na praça e alguns setores em luta tenderam a se unificar.
Não existe oposição entre luta de classe do proletariado moderno e as necessidades profundas das camadas sociais espoliadas pela opressão capitalista. A luta do proletariado não é um movimento particular ou egoísta mas a base do "movimento independente da imensa maioria" (Manifesto Comunista).
Retomando de maneira crítica as experiências de dois séculos de luta proletária, os movimentos atuais poderão se beneficiar das tentativas passadas de luta e libertação social. O caminho é longo e repleto de enormes obstáculos, e disso dava conta a tão repetida palavra de ordem na Espanha "Não é que estamos indo devagar, é que vamos muito longe". Ao criar um debate o mais amplo possível, sem nenhuma restrição nem obstáculos, para preparar conscientemente novos movimentos, poderá tornar realidade que OUTRA SOCIEDADE DISTINTA DO CAPITALISMO É POSSÍVEL.
Corrente Comunista Internacional (12-03-2011)
WWW.internationalism.org
A gravidade da situação enfrentada pela humanidade é cada vez mais óbvia. A economia capitalista mundial, após quatro décadas tratando de sua crise aberta, se afunda diante de nossos olhos. A perspectiva colocada pela destruição do meio ambiente aparece mais sombria a cada nova descoberta científica. Guerra, fome, repressão e corrupção formam parte da vida cotidiana de milhões de pessoas.
Ao mesmo tempo, a classe trabalhadora e outras camadas oprimidas da sociedade estão começando a resistir às exigências capitalistas de sacrifício e austeridade. Revoltas sociais, ocupações, manifestações e greves surgiram em toda uma série de países, do norte da África à Europa e da América do Norte à América do Sul.
O desenvolvimento de todos estes conflitos e contradições confirma mais que nunca a necessidade da presença ativa de uma organização de revolucionários, capaz de analisar rapidamente a evolução da situação, falar claramente com uma voz unificada por cima de fronteiras e continentes, participar diretamente nos movimentos dos explorados e contribuir no esclarecimento de seus métodos e fins.
Não é nenhum segredo que as forças que a CCI conta são extremamente limitadas comparadas com as responsabilidades enfrentadas. Estamos sendo, a nível mundial, testemunhas do surgimento de uma nova geração em busca de respostas revolucionárias diante da crise do sistema, mas é essencial para aqueles que simpatizam com as posições gerais de nossa organização entrar em contato com a CCI e contribuir para sua capacidade de intervenção e seu desenvolvimento.
Não estamos falando aqui de ingressar à nossa organização, embora mais adiante trataremos disto. Apreciamos qualquer tipo de contribuição e apoio daqueles que, de forma geral, estão de acordo com nossa política.
Primeiro, discutindo conosco. Escrevendo-nos, seja por carta, por email ou participando me nossos fóruns na internet (inglês e francês). Assistindo às nossas reuniões públicas ou às que fazemos com contatos. Colocando questões sobre nossas posições , análises, sobre a forma como escrevemos, o funcionamento da nossa página, etc.
Escreva para nossa página ou publicações, seja informando sobre atos nos quais tenha participado, de situação em seu centro de trabalho, setor ou bairro, ou com artigos mais desenvolvidos, contribuições teóricas, etc.
Ajude-nos a fazer traduções de/para diferentes línguas nas quais escrevemos: inglês, francês, espanhol, alemão, holandês, português húngaro, sueco, finlandês, russo, turco, bengali, coreano, japonês, chinês e filipino. Existe sempre muitos artigos para traduzir, incluindo alguns dos textos mais básicos de nossa organização. Se for capaz de fazer traduções para essas línguas ou outras, informe isso para nós.
Participe em nossas atividades públicas: vendendo nossa imprensa na rua, discutindo nossa imprensa ou nossos panfletos em piquetes, manifestações, ocupações. Ajude-nos a intervir em atos políticos, indo vocês mesmo a eles e defenda posições revolucionárias; contribua em discussões em fóruns da internet nos quais participamos regularmente, como www.libcom.org [164], ou www.revleft.space [165] (especificamente o fórum sobre a esquerda comunista: www.revleft.space [165]), www.red-marx.com [166], www.kaosenlared.net [139], etc.
Se também conhecer alguém que esteja interessada em discutir acerca de política revolucionária e da luta de classe forme círculos de discussão, fóruns de luta de classe ou grupos similares, nos quais ficaríamos muito felizes em participar e contribuir.
Contribua com suas habilidades e recursos: fotos, recursos gráficos, conhecimentos de informática, etc.
Contribua para a superação de nossas limitadas possibilidades econômicas fazendo doações regulares, assinando nossa imprensa, pegando cópias extras para você mesmo vendê-las a conhecidos, ou para colocá-las em livrarias.
Saudamos com entusiasmo as solicitações de companheiros que queiram levar seu apoio à organização a um nível mais alto ingressando nela.
Enquanto nem todos os simpatizantes ingressarão na organização, pensamos que ingressar nesta significa tomar parte na luta proletária em toda sua dimensão. O proletariado é por natureza uma classe cuja força reside em sua capacidade para a organização coletiva, e acima de tudo isto é válido para seus elementos revolucionários, que sempre buscaram se unir em organizações para defender a perspectiva comunista contra o peso da ideologia dominante. Ser membro da CCI possibilita que os companheiros participem diretamente nas reflexões e discussões que constantemente têm lugar em nossa organização e contribuir da forma mais efetiva à nossa intervenção na luta de classe. Para dar forma às análises e à política da CCI, o lugar mais útil para o militante individual é dentro dela, enquanto que para a organização como um todo, seus militantes são um recursos insubstituível que se pode contar e através do qual pode se desenvolver suas atividades em escala mundial.
Antes de se juntar à CCI, é essencial para qualquer companheiro ter uma discussão profunda sobre nossas posições políticas fundamentais, que estão ligadas de forma coerente com o marxismo e contidas em nossa plataforma [167] (/content/38/plataforma-da-corrente-comunista-internacional [167]), de modo que os que ingressam na CCI o fazem por uma convicção genuína e são capazes de defender nossas posições políticas porque possuem uma compreensão real delas. Também é importante a discussão de nossos estatutos organizativos e aceitar os princípios básicos e regras que guiam nosso funcionamento: como nos organizamos de forma coletiva a nível local, nacional e internacional, o papel dos congressos e dos órgãos centrais, como conduzimos os debates internos, o que se espera de nossos membros em termos de participação na vida da organização, e outras questões. As linhas básicas contidas em nossos estatutos podem ser encontradas no texto Estrutura e funcionamento das organizações revolucionárias (https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/organizacoes_revolucionarias_Conferencia_Internacional [168]).
Nesse sentido, estamos situados na tradição do partido bolchevique, que considerava um membro quem não só estava de acordo com o programa do partido, mas quem tinha a vontade de defendê-lo através de atividades da organização, e que, portanto, esteja preparado para aderir ao modo de funcionamento presente em seus estatutos.
Isto se trata de um processo que não ocorre de um dia para o outro, mas que leva tempo e paciência. Ao contrário dos grupos esquerdistas, trotskista e outros, que falsamente se revindicam como descendentes do bolchevismo, nós não buscamos “recrutar” a qualquer custo e, portanto, para acabarem sendo membros que não serão mais do que peões das manobras burocráticas da direção. Uma organização comunista real só pode florescer se seus membros possuem uma compreensão profunda de suas posições e análises e sejam capazes de tomar parte no esforço coletivo de aplicá-los e desenvolvê-los.
A política revolucionária não é um hobby: implica o compromisso intelectual e emocional para enfrentar as exigências da luta de classe. Mas tampouco é uma atividade de monges, à margem da vida e das preocupações do resto da classe trabalhadora. Não somos uma seita que busca regular cada aspecto da vida de nossos militantes, convertendo-os em fanáticos incapazes de qualquer pensamento crítico. Tampouco esperemos que cada militante seja um “expert” em todos os aspectos da teoria marxista ou que necessariamente tenha uma grande capacidade para escrever ou falar em público. Somos conscientes das diversas capacidades dos militantes em diferentes áreas. Baseamo-nos no princípio comunista de que de cada um contribua segundo seus meios, sendo a atividade coletiva a maneira de canalizar todas as energias individuais da forma mais efetiva.
A decisão de entrar em uma organização revolucionária não pode ser tomada ligeiramente às pressas. Mas ingressar na CCI significa ser parte de uma fraternidade mundial lutando para um fim comum: o único fim que realmente oferece um futuro à humanidade.
Abordando com o devido rigor a história da Revolução Russa de 1917, haveremos de tratar de duas figuras exponenciais naquele processo. A primeira delas é de Leon Bronstein Trotsky e a segunda é a figura “sacramentada” de Vladimir Ilitch Ulianov Lênin. Ambos merecem uma abordagem que bem retrate suas posturas políticas no andamento daquele formidável processo.
No caso de Leon Trotsky, temos insistido em ressaltar que, pelo papel jogado no aludido episódio histórico, existem dois Trotsky: o primeiro deles nasce junto aos embrionários grupos marxistas que terminam por compor o Partido Operário Social-Democrata Russo. O jovem Leon Trotsky que, dentre outras figuras, muito se espelhou no militante socialista, Pavel Axerold, a quem chamava de mestre, teve uma trajetória militante marcada pelo seu grande e inquestionável brilhantismo.
Já em 1903, quando foi defendida a proposta de organização partidária inspirada na obra de Vladimir Lênin “O que fazer?”, Trotsky, junto a outros grandes expoentes do socialismo, dentre eles Rosa Luxemburgo, dispensou severas e bem fundamentadas críticas à proposta leninista.
Assim como Rosa Luxemburgo, Trotsky, de então, lançando mão dos princípios do socialismo científico, proclamou que o modelo leninista de partido, de feição acentuadamente blanquista, levaria inevitavelmente, ao substituísmo e isso confrontaria com os princípios marxistas de que a obra de libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores e, portanto, não há lugar na História para partidos libertadores, como pretendia a proposta partidária formulada por Lênin. Dizendo melhor, não haveria e nem haverá lugar na História para que um grupo de pessoas profissionalizadas e bem treinadas na arte de conspirar e enganar o aparelho repressivo, tornar-se apto a assaltar o poder e, a partir daí, promover a libertação dos explorados e oprimidos. Tal concepção partidária, como bem enxergava Leon Trotsky, Rosa Luxemburgo e outros tantos próceres da causa socialista, redundaria, como já foi frisado, no substituísmo. Isso quer dizer que, um partido bem treinado, ultra-centralizado e disciplinado, substituiria as massas populares. Por seu turno, o ultra-centralismo e a disciplina férrea levariam a que o Comitê Central substituísse o partido. Por fim, uma figura “iluminada”, haveria de substituir o próprio Comitê Central. Essa tão inconteste profecia política, calcada nos fundamentos do socialismo científico, como não poderia deixar de ser, confirmou-se, e a atitude do Trotsky em denunciar esse determinismo histórico já demonstrava o seu grande valor enquanto militante e teórico socialista. Porém, a grandeza de Leon Trotsky não se resumiu apenas às tão bem fundadas e severas críticas que ele dirigiu a Vladimir Lênin no que concerne à sua proposta de modelo de partido, expressa no seu livro publicado em 1904, sob o título de “As nossas tarefas políticas”, obra tão zelosamente escondida pelo próprio Trotsky e, mais ainda, pelos seus seguidores. Em 1905, quando surge na Rússia tzarista um vigoroso movimento de rebelião das massas trabalhadoras e, dessa rebelião surgiram os conselhos populares, então chamados de sovietes, lá estava Leon Trotsky, participando desses eventos, e essa participação redundou na sua escolha como presidente da Comissão Executiva do Soviete de Petrogrado. Dois anos depois, Leon Trotsky em parceria com Parvus, desenvolveu a tese já colocada por Marx da Revolução Permanente, em que consistiria dizer que os países retardatários, ou seja, aqueles em que ainda não houvera se processado a revolução burguesa, a revolução de caráter democrático, numa constante progressão deveria desembocar no processo da revolução socialista que em tese se daria a partir dos países mais desenvolvidos e, caso essas revoluções não avançassem progressiva e ininterruptamente, haveriam de retroagir para seus patamares anteriores. Essa tese, que bem se aplicava aos países como a Rússia tzarista, a China dos senhores de guerra, a Índia e a Indonésia, não mereceu maiores atenções nos meios socialistas, particularmente não mereceu atenção nenhuma do Sr. Vladimir Ilitch Ulianov Lênin. Outros episódios políticos e teóricos se prestaram a revelar a grandeza de Leon Trotsky até o momento em que se desencadeou o processo da Revolução Russa em fevereiro de 1917. Naquele processo, através das teses de Abril, Vladimir Lênin aderiu à tese marxista-trotskista da Revolução Permanente e, para pesar da humanidade, Leon Trotsky, passou-se de malas e bagagens para o bolchevismo que ele tanto denunciara e essa adesão levou a que o nosso personagem encerrasse o momento mais fértil e mais consequente de sua militância política. Pôs-se um ponto final no primeiro e grandioso Trotsky, para dar lugar a um segundo Trotsky, que se revelou um grande agitador e articulador político e, como tal, conquistou a posição de Presidente do soviete de Petrogrado e comandante do Comitê Revolucionário Militar, prestou-se a conduzir, competentemente, a política externa da URSS, organizou e comandou o Exército Vermelho de gloriosos embates, enfim, foi um grande ativista, revelando o seu excepcional talento administrativo.
Por outro lado, brotou um Leon Trotsky que, ao lado de Lênin, se dispôs a atropelar as leis da História e a perseguir uma vitória a qualquer preço, quando, já em 1921, todos os elementos da derrota estavam colocados. Foi nesse momento fatídico momento histórico que Lênin e Trotsky propuseram a supressão do direito de tendência, a imposição do partido único, a supressão do livre debate pela instituição do monolitismo, a organização de uma polícia política, a criação de campos de concentração e trabalhos forçados para os dissidentes, fossem eles de direita ou socialistas e, dessa forma, contribuíram enfaticamente para estabelecer as bases de uma progressiva degradação política, cuja culminância foi a conquista plena do poder através da figura sinistra de Joseph Stalin.
Por que o segundo Trotsky, o Trotsky bolchevique, não fez nenhuma referência à Oposição Operária liderada por Alexandra Kollontai contra os desvios da revolução? Por que ao invés de acatar as críticas da Oposição Operária, o segundo Trotsky ocupou-se em caluniá-la e persegui-la? Por que o segundo Trotsky, que elogiara o soviete de Kronstadt, chamando-o de perola da revolução socialista, baseado em calúnias, resolveu reprimi-lo a ferro e fogo, como bem faria o próprio Stalin? Por que o segundo Trotsky não se propôs a fazer uma autocrítica afirmando textualmente que o primeiro Trotsky, junto a Rosa Luxemburgo, tinham plena razão quando denunciaram o bolchevismo? Por que o segundo Trotsky resolveu renegar o primeiro Trotsky para se empenhar na tarefa de falsificar a História para se colocar como leninista desde os primórdios? Por que o segundo Trotsky pôs de lado todo o seu domínio do socialismo cientifico para enveredar para o caminho do moralismo idealista, propagando ideias tais como “revolução traída”, “revolução desfigurada” e, sobretudo, a personificação do processo histórico quando lamentou o fato de que uma simples caçada de patos, que o tornara enfermo, havia tido um desfecho histórico tão trágico na medida em que o segundo Trotsky não pudera chegar a tempo ao enterro de Lênin. Por que o segundo Trotsky ao invés de se manter nos limites da dignidade que o seu passado assegurava, se envolveu nas disputas palacianas pelo título de herdeiro de Lênin chegando ao cúmulo de fazer acordos espúrios inclusive com Stalin? Por que o segundo Trotsky ao invés de tantos descaminhos de natureza idealista não cumpriu a mais soberba das tarefas históricas, que seria a de promover uma apreciação crítica, em profundidade, da Revolução Russa denunciando a sua inviabilidade, desde 1921, quando a contra-revolução mundial lograva seguidas vitórias e com mão de ferro desferia um golpe mortal ao projeto leninista-trotskista de vitória a qualquer preço? Por que o segundo Trotsky não recorreu às posições lúcidas manifestadas por socialistas da estirpe de Rosa Luxemburgo, Julio Martov, Pavel Axerold, Alexandra Kollontai, que desesperadamente apelou para que Lênin e Trotsky não tomassem o caminho do suicídio revolucionário?
Essas indagações merecem ser tratadas com o necessário rigor, para que assim possamos compreender que a tragédia da humanidade, cuja expressão é a situação política que hoje vivemos, tem como um dos seus fundantes a figura do segundo Trotsky.
Neste texto, nos colocamos do ponto de vista do método marxista, supondo que você também reivindica tal método. Caso não seja o caso, seria bom você precisá-lo em resposta para que o debate possa continuar se desenvolvendo sobre outra base.
Nada é mais estranho ao marxismo que uma atitude religiosa, a-crítica diante das "grandes figuras" do movimento operário. O marxismo é fundamentalmente a expressão de uma classe social, o proletariado, e não o de tal ou qual indivíduo, por mais brilhante que seja ele. Além disso, para esta classe, mais que para qualquer outra classe na história, o elemento coletivo é de longe o mais importante. É assim porque o proletariado:
Consequentemente, o marxismo só pode se conceber como pensamento coletivo cuja elaboração tanto da experiência coletiva das próprias massas operárias como das reflexões e análises dos inúmeros militantes no seio das organizações revolucionárias.
Considerado em si, cada marxista (e Marx o primeiro) pode cometer erros ou só alcançar uma visão parcial de uma questão. Assim, cabe aos demais militantes retificarem estes erros e completarem as análises incompletas. É a atitude que sempre tiveram os revolucionários mais eminentes, esses que enriqueceram mais o marxismo. Trata-se em particular dos protagonistas mais famosos da Revolução de 1917, Lênin e Trotsky. Hoje, o estudo da contribuição de Trotsky à Revolução de Outubro, e aos eventos que a seguiram, inevitavelmente tem que se apoiar sobre tal procedimento próprio ao marxismo e rejeitar categoricamente qualquer atitude fetichista que tende a fazer de Trotsky "um ícone inofensivo" como diz Lênin a propósito de Marx dentro "O Estado e a Revolução".
Trotsky é uma das mais famosas figuras do movimento operário. Na Revolução de 1917, ele deve ser considerado da mesma maneira como o faziam os trabalhadores desta época, como o alter-ego de Lênin. Reconhecer e saudar seus aportes à ação e ao pensamento do proletariado não deve nos impedir de criticar seus erros e fraquezas. Ele mesmo foi capaz de fazer esta crítica considerando o período que precede a 1917. Até deu uma forma excessiva a esta crítica afirmando que, sobre todas as questões onde ele tinha discordado com Lênin, era Lênin que tinha razão. Isso é verdade só parcialmente, como o veremos a seguir. Hoje, não se age como marxista, nem mesmo para pagar tributo a Trotsky, retomando ao pé da letra todas suas posições e análises que ele foi capaz desenvolver depois de 1917. Em relação a estas, todo marxista tem que ter a mesma atitude que Trotsky teve em relação a suas próprias posições antes 1917. Assim, a continuação desta contribuição se dá como objetivo evidenciar tanto os aportes fundamentais de Trotsky ao pensamento revolucionário como seus erros, erros que os seguidores transformaram em armas contra a luta revolucionária do proletariado.
Se Trotsky foi considerado em 1917 como o alterego de Lênin obviamente é devido a seus talentos de líder revolucionário: grande orador e escritor, militante valente, firme e resoluto, organizador eficaz e enérgico, estrategista militar talentoso, etc. Ele também é dotado de uma compreensão clara das alternativas históricas contidas nos eventos acontecendo frente a seus olhos, uma sensibilidade particular quanto ao estado de espírito, às necessidades, às aspirações e capacidades das massas operárias em ação. Aqui são as maiores qualidades que Trotsky mostrou ao longo de sua vida de revolucionário. É claro que estas qualidades são o resultado de um conhecimento profundo do marxismo, não o marxismo "professoral" como o de Kautsky, mas o marxismo vivo, inspirado pelo sopro das massas proletárias como o encontramos também numa revolucionária como Rosa Luxemburgo. Não é por casualidade que ambos os trabalhos mais importantes que foram escritos sobre as lições da revolução russa de 1905 sejam de Rosa Luxemburgo e Trotsky. Além disso, é necessário notar que estes dois trabalhos são complementares, o primeiro evidenciando a dinâmica que anima as massas operárias num período revolucionário, o outro estudando com profundidade este órgão novo na história que o proletariado cria para sua luta revolucionária: o soviete. São todas estas qualidades que permitem a Trotsky ser eleito duas vezes ao mesmo posto particularmente importante de presidente do Soviete de Petrogrado, em 12 anos de intervalo.
Estas qualidades de Trotsky fizeram dele o grande revolucionário do início do século XX que esteve mais adequado às necessidades do proletariado no momento dos seus movimentos revolucionários, algumas vezes mais do que Lênin. Podemos dar alguns exemplos:
Durante todo o período que vai de 1903 até 1917, Trotsky mostra uma incompreensão permanente do método de construção da organização. Suas tendências oportunistas e à conciliação sobre esta questão o levam a não poder ser envolvido ativamente no combate de Lênin para a construção de um real partido proletário na Rússia. Em particular, ele não entende a necessidade do trabalho de fração dentro da social-democracia russa, da intransigência e do rigor contra todas as tendências oportunistas, como condição da fundação de um partido revolucionário sólido. Na hora da fundação da Internacional Comunista, esta intransigência ainda está no centro do procedimento dos bolcheviques que são os principais animadores do 1º Congresso. Mas, posteriormente, notadamente a partir do 3º Congresso, enquanto a onda revolucionária começa a retroceder, os bolcheviques se distanciam cada vez mais deste rigor e desta intransigência que os permitiram construir o partido da Revolução de Outubro e de conduzir esta até à vitória. A preocupação da IC era de "ir às massas". No entanto, se por um lado as políticas de "infiltração nos sindicatos", de "parlamentarismo revolucionário", e depois dessas as de "frente única" e de "governo operário", foram de pouca eficiência em termos de influência da IC sobre as massas operárias que foram de derrota em derrota, contribuiu por outro lado, em grande medida, ao processo de degeneração oportunista dos partidos comunistas. Os bolcheviques e Lênin, em primeiro lugar, caem na ilusão que a sua presença na cabeça da IC podia protegê-la do oportunismo. A história demonstrou que não foi o caso, mas é uma lição que Trotsky foi incapaz de tirar. Quando ele decide, com atraso em relação a outras correntes de esquerda, criar uma oposição de Esquerda e agrupar as correntes que lutam contra a degeneração da IC e dos PC, ele retoma por conta própria, de maneira caricatural, a política da IC durante seus 3º e 4º congresso, política que a conduziu ao desastre, em vez de se apoiar na experiência e o rigor dos bolcheviques entre 1903 e 1917. Esta orientação o conduz, na cabeça da Oposição de Esquerda internacional, a uma política de manobras, sem princípio, onde se passa do dia para a noite da necessidade de proclamar novos partidos a essa outra necessidade do entrismo nos partidos social-democratas (que há muito tempo eram instrumentos da burguesia). É neste contexto que é fundada uma nova Internacional em 1938, no momento em que o mundo está no fundo do abismo da contrarrevolução. Para ter retido de Lênin só a política errônea que tinha preconizado frente ao refluxo da revolução em vez de se inspirar na política que ele tinha travado nos anos antes da revolução, política que Trotsky tinha combatido, este último não é capaz de nada mais que fundar uma corrente fraca, atravessada por repetidas crises e, sobretudo, gangrenada pelo oportunismo, uma corrente que durante a Segunda Guerra Mundial, ao participar desta, encontra-se com os partidos socialistas e comunistas no campo capitalista.
Uma entre as posições políticas do Trotskismo que mais contribui para sua participação na guerra imperialista (e assim para sua traição) é a "defesa da URSS" baseada na idéia que ainda existia neste país "conquistas operárias", que o Estado que administra o país é, mesmo "degenerado", um "Estado operário". De certa maneira, esta questão já tinha sido colocada em 1921 no debate sobre os sindicatos que tinha acontecido no partido bolchevique. Em poucas palavras, havia três posições frente à questão: "qual deve ser o papel de sindicatos na sociedade soviética?":
Na realidade, o erro principal de Trotsky (como a da Oposição operária que tem uma visão anarcossindicalista) consiste em considerar que tem "aquisições operárias" na Rússia e das quais o Estado é fiador. Fundamentalmente é esta visão que ele mantém posteriormente e que conduz à posição de "defesa da URSS".
Na realidade, Trotsky se afasta nesta questão da concepção marxista da transição do capitalismo ao socialismo. Para o marxismo (e é um entre os pontos que o distingue da visão de anarcossindicalista), o primeiro ato da revolução proletária é constituído pela tomada do poder político pelo proletariado, ao contrário da revolução burguesa onde a instauração do poder da burguesia na esfera política vem completar um processo inteiro de desenvolvimento das relações capitalistas de produção dentro da sociedade feudal. É só a partir do momento em que o proletariado poder estabelecer sua ditadura sobre o conjunto da sociedade que ele poderá atacar as relações de produção herdadas da sociedade antiga. E como a revolução comunista só pode ser mundial, a ditadura do proletariado para poder realmente atacar as relações de produção capitalista deve se estender em escala mundial, ou pelo menos à escala dos principais países industrializados. Trotsky tinha perfeitamente razão em considerar que a tese do "socialismo em um só país" constituía uma real traição do programa revolucionário. Porém, sua defesa da posição internacionalista (como já foi o caso durante a Primeira Guerra Mundial em outros aspectos) é fraca porque não baseada sobre uma compreensão clara da visão marxista. A única maneira de defender de maneira rigorosa a impossibilidade do "socialismo em um só país" é ao partir de que a real transformação econômica para o comunismo só pode começar quando o proletariado terá vencido politicamente em nível mundial. Até este momento, as medidas econômicas que podem ser tomadas a nível de um país (como era o caso de Rússia) só podem ser evocadas para permitir que o proletariado conserve seu poder político e impulsione a Revolução nos outros países. Mas em nada, estas medidas podem ser consideradas em si como "socialistas".
Os bolcheviques (esses que permaneceram fiéis ao internacionalismo) estavam bem conscientes de que a Revolução russa estava condenada se ela não pudesse se estender. Eles sabiam que a contrarrevolução conseguiria finalmente vencer também no seu país. Mas eles pensavam que a contrarrevolução viria do exterior ou, ainda, das outras classes que permaneciam na Rússia como o camponesinato. O que eles não entenderam num primeiro tempo é que a contrarrevolução não viria do "exterior", mas do "interior" do Estado que se estabeleceu no dia seguinte à revolução. É justamente o grande mérito de Lênin ter apreendido, a partir de 1921 e contra a concepção de Trotsky, que não havia nenhuma identidade de interesses entre este Estado e o proletariado. Na realidade, conforme o que Marx e Engels já tinham entrevisto, a noção de Estado proletário é errônea. Por exemplo, Engels escreveu: "podemos dizer pelo menos que o Estado é uma praga da qual o proletariado herda em sua luta para chegar a sua dominação de classe". O proletariado não pode se identificar com uma praga nem sequer quando é forçado a usá-la numa sociedade onde as classes ainda existem.
Na realidade, se, ao contrário do que reivindicam os anarquistas, o Estado permanece depois da tomada do poder pelo proletariado pelo fato que subsistam classes sociais, este é fundamentalmente um instrumento de conservação da situação adquirida, mas de jeito nenhum um instrumento da transformação das relações de produção para o comunismo. Neste sentido, a organização do proletariado como classe em conselhos operários tem que impor sua hegemonia sobre o Estado, mas nunca identificar-se com este. Ele deve ser capaz, se for necessário, de se opor ao Estado (como Lênin o tinha entendido). É exatamente porque, com a extinção da vida dos sovietes (inevitável por conta da derrota da Revolução mundial), o proletariado perdeu esta capacidade de agir e se impor ao Estado que este último pôde desenvolver suas próprias tendências conservadoras até se tornar o coveiro da Revolução, ao mesmo tempo em que ele absorveu na sua engrenagem o partido bolchevique, transformando a natureza dele.
Não abordamos todos os aspectos de sua carta, notadamente as críticas a Que fazer?. Compartilhamos algumas dentre elas, também achamos que uma outra importante está ausente. Ademais, achamos que valeria esclarecer o papel de Kollontai, particularmente em relação à Kronstadt, e responder a todos os "Por que", colocados com toda razão por você no seu texto. Faremos isso se lhe interessa continuar o debate sobre este aspecto. Para preparar nossa resposta, logo publicaremos um artigo a propósito dos debates entre revolucionários no início do século 20.
Saudações internacionalistas
CCI
Esta é a resposta da CCI ao artigo "Conselhos operários, Estado proletário, ditadura do proletariado" do Grupo Oposição Operária (OPOP) [1] do Brasil, publicado no número 148 da Revista Internacional [2].
A posição exposta no artigo da OPOP se reivindica integralmente da obra de Lênin, O Estado e a revolução, enfoque a partir do qual essa organização rechaça uma ideia central da posição da CCI. Embora reconhecendo a contribuição fundamental dessa obra para a compreensão da questão do Estado durante o período de transição, a CCI absorve a contribuição da experiência da Revolução Russa, das próprias reflexões de Lênin durante esse período e dos escritos fundamentais de Marx e Engels para tirar lições que conduzem a questionar a relação, até hoje classicamente admitida pelas correntes marxistas, de identidade entre Estado e ditadura do proletariado.
No seu artigo, a OPOP também desenvolve uma posição que lhes é própria relacionada ao que ela chama de "pré-Estado", ou seja, a organização dos conselhos operários antes da revolução, chamada a derrubar a burguesia e seu Estado. Voltaremos a essa questão posteriormente, considerando que antecipadamente é prioritário esclarecer nossas divergências com a OPOP no que toca à questão do Estado e do período de transição.
Para evitar que o leitor fique num vai e vem incessante com o artigo da OPOP da Revista Internacional nº 148, reproduziremos suas passagens que consideramos mais significativas.
Para a OPOP, "A separação antinômica entre o sistema de conselhos e o Estado pós-revolucionário" (...) "se constitui num deslocamento desde a concepção de Marx, Engels e Lênin até uma certa influência da concepção anarquista de Estado.", o que equivale a "quebrar a unidade que deve existir e persistir no âmbito da ditadura do proletariado." Com efeito, "tal separação coloca de um lado o Estado como uma estrutura administrativa complexa, a ser gerenciada por um corpo de funcionários — um absurdo na concepção de Estado simplificado de Marx, Engels e Lênin — e de outro uma estrutura política, no âmbito dos conselhos, a exercer pressão sobre a primeira (o Estado como tal)."
Segundo OPOP, esse seria um erro que se explicaria por essas incompreensões enquanto o Estado-comuna e suas relações com o proletariado é:
Para finalizar, a OPOP explica as lições supostamente errôneas tiradas pela CCI da Revolução Russa quanto ao caráter do Estado de transição por outro fator: ao não tomar em conta as condições desfavoráveis que teve de enfrentar o proletariado: "não compreender as ambiguidades que resultaram das circunstancias históricas e sociais especificas que bloquearam não só a transição, como mesmo o início da ditadura do proletariado na URSS. Aqui, deixa-se de compreender que os rumos tomados pela Revolução Russa — a menos que se considere a versão mais fácil e, portanto, também, mais fraca, de que os desvios do processo revolucionário foram implantados por Stalin e sua entourage — , não obedeceram à concepção de revolução, de Estado e de socialismo de Lênin, mas a restrições que emanavam do terreno social e político no qual se deu a montagem do Poder na URSS, entre os quais, só para lembrar, a impossibilidade da revolução na Europa, a guerra civil e a contra-revolução no interior da URSS, entre outros—, rumos esses alheios á vontade de Lênin e acerca dos quais ele próprio examinava e que marcou formulações reiteradamente ambíguas em todo o seu pensamento ulterior até a sua morte".
A diferença entre marxistas e anarquistas não reside em que os primeiros conceberiam o comunismo como uma sociedade com Estado e os segundos sem ele. Estamos todos totalmente de acordo em que o socialismo só pode ser uma sociedade sem Estado. É então muito mais nos pseudo-marxistas da socialdemocracia, herdeiros de Lassalle, que se concretizou essa diferença fundamental, já que para eles é o Estado que era o motor da transformação socialista da sociedade. Contrariamente a eles Engels redigiu esta passagem no Anti-During:
O verdadeiro debate com os anarquistas versa sobre o seu desconhecimento total de um período inevitável de transição e sobre sua vontade de dar na história um salto de olhos vendados e pés amarrados diretamente do capitalismo à sociedade comunista.
Quanto a esse tema da necessidade do Estado durante o período de transição, estamos então totalmente de acordo com a OPOP. Por isso só podemos ficar surpresos com a afirmação de que a posição da CCI "se constitui num deslocamento desde a concepção de Marx, Engels e Lênin até uma certa influência da concepção anarquista de Estado". De um ponto de vista marxista, como pode a nossa posição aproximar-se com a dos anarquistas que pensam que se pode abolir o Estado do dia para a manhã?
Se nos referimos ao escrito por Lênin em O Estado e a revolução enquanto a crítica marxista ao anarquismo sobre a questão do Estado, se pode ver que não confirma em nada a visão que tem a OPOP: "Marx sublinha propositadamente, afim de que não deturpem o verdadeiro sentido da sua luta contra o anarquismo, "a forma revolucionária e passageira" do Estado, necessária ao proletariado. O proletariado precisa do Estado só por um certo tempo. Sobre a questão da supressão do Estado, como objetivo, não nos separamos absolutamente dos anarquistas. Nós sustentamos que, para atingir esse objetivo, é indispensável utilizar provisoriamente, contra os exploradores, os instrumentos, os meios e os processos de poder político, da mesma forma que, para suprimir as classes, é indispensável a ditadura provisória da classe oprimida." [5]
A CCI está totalmente de acordo com essa formulação, exceto uma palavra: trata-se da caraterização de "revolucionária" dada a essa forma passageira do Estado. Esse matiz pode ser considerado uma variante das concepções anarquistas, como pretende a OPOP, ou pelo contrário, abre um debate muito mais profundo sobre a questão do Estado?
Efetivamente, sobre a questão do Estado, nossa posição difere da de O Estado e a revolução e da Crítica do Programa de Gotha no qual, durante o período de transição o "Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado" [6]. Essa é a questão de fundo do nosso debate: por que não pode haver identidade entre a ditadura do proletariado e o Estado do período de transição que surge após a revolução? Isto é uma ideia que choca muitos marxistas que, várias vezes, nos colocaram a seguinte questão: "De onde a CCI extrai sua posição sobre o Estado do período de transição?" A esta só podemos responder: "Pois bem, não saca da sua imaginação e sim da história, das lições que gerações de revolucionários extraíram, de reflexões e elaborações teóricas do movimento operário". E mais precisamente:
Foi com essa preocupação que a esquerda comunista da Itália realizou um trabalho de balanço da onda revolucionária mundial [7]. Segundo ela, a tomada do poder pelo proletariado não impede que continue existindo classes sociais, e consequentemente continua subsistindo um Estado, que fundamentalmente é um instrumento de conservação da situação adquirida, porém nunca um instrumento de transformação das relações de produção para o comunismo. Nessas condições, a organização do proletariado como classe, por meio dos conselhos operários, há de impor sua hegemonia sobre o Estado, porém nunca se identificar com ele. Tem de ser capaz, se necessário, de opor-se ao Estado, como começou a entender parcialmente Lênin em 1920-21. É justamente por isso que, ao se esgotar a vida nos sovietes (o que era inevitável devido ao fracasso da revolução mundial), o proletariado perdeu essa capacidade de atuar e se impor ao Estado que este último pôde desenvolver as tendências conservadoras que lhes são próprias até se transformar em coveiro da revolução na Rússia, absorvendo nas suas engrenagens o próprio Partido bolchevique e convertendo-o em instrumento da contrarrevolução.
O Estado e a revolução de Lênin foi em seu tempo a síntese mais acabada do que o movimento operário tinha produzido no que diz respeito às questões do Estado e do exercício do poder por parte da classe operária [8]. É uma ilustração excelente de como tem se esclarecido na história a questão do Estado. Baseando-se nela, vamos recordar agora as melhorias sucessivas que foi fazendo o movimento operário sobre a compreensão dessas questões:
A revolução de 1917 não deixou a Lênin o tempo para escrever no Estado e a revolução os capítulos dedicados aos aportes das revoluções russas de 1905 e de fevereiro de 1917. Conformou-se em identificar os sovietes como herdeiros naturais da Comuna de Paris. Pode-se acrescentar que, embora nenhum dos dois eventos permitisse ao proletariado tomar o poder político, não deixam ainda de proporcionar lições adicionais em relação à Comuna de Paris, no que toca ao poder da classe operária: os sovietes de deputados operários com base em assembleias nos locais de trabalho são mais adaptados à expressão da autonomia de classe do que foram as unidades territoriais da Comuna.
O Estado e a revolução não só é a síntese do melhor que o movimento operário havia escrito até então sobre o tema, como também contém desenvolvimentos próprios de Lênin que, por sua vez, são avanços. Quando extraíram lições essenciais da Comuna de Paris, Marx e Engels deixaram, no entanto ambiguidades enquanto a possibilidade para o proletariado de chegar pacificamente ao poder em certos países mediante o processo eleitoral, aqueles que dispõem precisamente de instituições parlamentares mais desenvolvidas e do aparato militar mais fraco. Lênin não teve medo de corrigir Marx, utilizando para isso o método marxista e situando a questão no marco histórico adaptado: "Em 1917, na época da primeira guerra imperialista, essa restrição de Marx cai. (…) Atualmente, tanto na Inglaterra como na América, "a condição prévia para uma revolução verdadeiramente popular" é igualmente a desmontagem, a destruição da "máquina do Estado"" [14].
Só uma visão dogmática poderia acomodar-se com a ideia de que O Estado e a revolução de Lênin seria a última e suprema etapa no esclarecimento da noção de Estado no movimento marxista. Se existe uma obra que é a antítese de semelhante visão é justamente esta. Nem a própria OPOP teme se afastar da letra de Lênin levando a seu extremo a ideia da citação anterior: "Nos dias atuais, a tarefa de estabelecer os conselhos como forma de organização estatal se coloca numa perspectiva não mais de um único país, mas sim na de escala internacional, sendo esse o desafio principal da classe operária." [15] (Revista internacional n° 148)
Redigido em agosto-setembro de 1917, O Estado e a revolução serviu muito rapidamente de arma teórica com a deflagração da Revolução de Outubro, com vistas a ação revolucionária para a derrubada do Estado burguês e a colocação do Estado-Comuna. As lições tiradas da Comuna de Paris foram assim submetidas a prova da história durante esses acontecimentos de uma magnitude muito mais considerável, da Revolução Russa e da sua degeneração.
OPOP responde por negar a essa pergunta na medida em que, segundo ela, as condições na Rússia eram tão desfavoráveis que não permitiram o estabelecimento de um Estado operário tal como descreve Lênin no Estado e a revolução. Nos censura de identificar "o Estado erguido na URSS pós-revolucionária — um Estado obrigatoriamente burocrático — com a concepção de Estado-Comuna de Marx, Engels e do próprio Lênin". E acrescenta:
Estamos de acordo com OPOP para afirmar que a primeira lição a tirar da degeneração da Revolução Russa é que esta foi produto do isolamento do bastião proletário devido à derrota das demais tentativas revolucionárias na Europa, em particular na Alemanha. Com efeito, não só é impossível em um só país a transformação das relações de produção para o socialismo, como também não é possível que se mantenha um poder proletário isolado em um mundo capitalista. Entretanto, não existiriam outras lições de grande importância a extrair dessa experiência?
Claro que sim! E OPOP extrai uma dentre elas, apesar de que contradiga explicitamente uma passagem de O Estado e a revolução que diz respeito à primeira fase do comunismo: "(…) [não será possível] a exploração do homem pelo homem, pois que ninguém poderá mais dispor, a título de propriedade privada, dos meios de produção, das fábricas, das máquinas, da terra." [17] Com efeito, o que foi demonstrado tanto pela Revolução Russa como pela contrarrevolução stalinista é que a simples transformação do aparato produtivo em propriedade de Estado não acaba com a exploração do homem pelo homem.
De fato, a Revolução Russa e sua degeneração são acontecimentos históricos de tal magnitude que é impossível não tirar lições dela. Pela primeira vez na história, acontece a tomada do poder político pelo proletariado em um país, como expressão mais avançada de uma onda revolucionária mundial, com o surgimento de um Estado chamado naquela época Estado proletário! Posteriormente acontece esse acontecimento também totalmente inédito na história do movimento operário, a derrota de uma revolução que não ocorre de uma forma clara e abertamente esmagada pela repressão selvagem da burguesia como também aconteceu quando da Comuna de Paris, mas como consequência de um processo de degeneração interna que acabou tomando a ignominiosa face do stalinismo.
Já nas semanas que se seguiram à Insurreição de Outubro, o Estado-Comuna é outra coisa diferente de "os operários armados" tal como descreve O Estado e a revolução [18]. Acima de tudo, com o isolamento crescente da revolução, o novo Estado se vê cada vez mais infectado pela gangrena da burocracia, cada vez mais distante dos órgãos eleitos pelo proletariado e os camponeses pobres. Muito longe de começar a decair, o novo Estado está invadindo toda a sociedade. Muito longe de dobrar-se à vontade da classe revolucionária, volta-se ao ponto central de uma espécie de degeneração e de contrarrevolução internas. Consequentemente os sovietes se esvaziam da sua vida. Os sovietes operários se transformam em apêndices dos sindicatos na gestão da produção. Assim, a mesma força que fez a revolução e que devia controlá-la foi perdendo sua expressão política autônoma e organizada. O vetor da contrarrevolução foi nada mais nada menos que o Estado, e quanto mais a revolução sofria dificuldades, mais o poder da classe operária ia se debilitando e mais o Estado-Comuna manifestava seu caráter não proletário, conservador, quando não reacionário. Vamos nos explicar quanto a essa caracterização.
Seria um erro se limitar à formulação de Marx na Crítica do programa de Gotha no que tange à caracterização do Estado do período de transição, identificando-o com a ditadura do proletariado. Existem outras caracterizações do Estado feitas pelos próprios Marx e Engels, e mais tarde por Lênin e pela Esquerda Comunista, que contradizem no fundo a fórmula "Estado-Comuna = ditadura do proletariado" para confluir à ideia de um Estado naturalmente conservador, incluindo o Estado-Comuna do período de transição.
O Estado de transição é a emanação da sociedade, não do proletariado
Como explicamos o surgimento do Estado? Engels não deixa a menor ambiguidade: "O Estado não é pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é "a realidade da ideia moral", nem "a imagem e a realidade da razão", como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites “ordem”. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado" [19]. Apesar de todas as medidas tomadas pelo proletariado considerando o Estado-Comuna de transição, este conserva, como todos os Estados das sociedades de classe do passado, esse caráter de ser um órgão conservador a serviço da manutenção da ordem econômica dominante. Isso tem implicações, a nível teórico e prático, com relação às questões seguintes: Quem exerce o poder durante o período de transição: o Estado ou o proletariado organizado em conselhos operários? Quem é a classe economicamente dominante da sociedade de transição? Qual é o motor da transformação social e do definhamento do Estado?
Pelo seu caráter, o Estado de transição não pode estar a serviço somente dos interesses de classe do proletariado
Em qualquer lugar onde tenha derrubado o poder político da burguesia, as relações de produção continuam sendo relações capitalistas inclusive se a burguesia já não esteja presente para se apropriar da mais-valia produzida pela classe operária. O ponto de partida da transformação comunista está condicionado pela derrota militar da burguesia em uma quantidade suficiente de países determinantes, o que permite dar uma vantagem política à classe operária a nível mundial. Este é o período que vai se desenvolvendo lentamente as bases do novo modo de produção em detrimento do antigo, até suplantá-lo e tornar-se modo dominante de produção.
Após a revolução e enquanto a comunidade humana mundial não esteja realizada, ou seja, enquanto a imensa maioria da população mundial não esteja integrada ao trabalho livre e associado, o proletariado continua sendo a classe explorada. Contrariamente às demais classes revolucionárias do passado, o proletariado não está destinado a transformar-se em uma classe econômica dominante. É por isso que, embora a ordem imposta pela revolução já não seja a da dominação política e econômica da burguesia, o Estado que surge durante esse período como garantia da nova ordem econômica, não pode intrinsecamente estar a serviço do proletariado. Pelo contrário, este tem de forçá-lo no sentido de seus interesses de classe.
O papel do Estado de transição: integração da população não exploradora à gestão da sociedade e da luta contra a burguesia
Em O Estado e a revolução, o próprio Lênin diz que o proletariado necessita de um Estado não só para acabar com a resistência da burguesia, mas também para levar o resto da população não exploradora na direção do socialismo: "O proletariado necessita do Poder do Estado, organização centralizada da força, organização da violência, tanto para esmagar a resistência dos exploradores como para dirigir a enorme massa da população, os camponeses, a pequena burguesia, os semiproletários, na obra de "por em marcha" a economia socialista" [20].
Apoiamos este ponto de vista de Lênin segundo o qual o proletariado deverá arrastar com ele a imensa maioria da população pobre e oprimida, na qual o próprio proletariado pode ser minoritário, para poder derrotar a burguesia. Não existe outra alternativa a essa política. Como se concretizou na revolução russa? Durante esta, surgiram dois tipos de sovietes: por um lado, os sovietes operários baseados essencialmente nos locais de produção e agrupando o proletariado, chamados também conselhos operários; por outro lado, os sovietes baseados em unidades territoriais (os sovietes territoriais) nos quais participavam ativamente todas as camadas não exploradoras na gestão local da sociedade. Os conselhos operários organizavam o conjunto da classe operária, isto é, a classe revolucionária. Os sovietes territoriais [21], por sua parte, elegiam delegados revogáveis destinados a formar parte do Estado-Comuna [22], que tem como função a gestão da sociedade em seu conjunto. Num período revolucionário, o conjunto das camadas não exploradoras, apesar de ser favoráveis à derrubada da burguesia e contra a restauração de sua dominação, não está por isso ganho à ideia da transformação socialista da sociedade. Até pode lhe ser hostil. De fato, a classe operária frequentemente é minoritária dentro do conjunto da população não exploradora. Isso é o que explica o porquê, durante a Revolução Russa, foram tomadas medidas que tinham como sentido reforçar o peso da classe operária no seio do Estado-Comuna: 1 delegado para 125.000 camponeses, 1 delegado para 25.000 operários das cidades). Isso não dispensa o fato de que a necessidade de mobilizar a população majoritariamente camponesa na luta contra a burguesia e de integrá-la no processo de gestão da sociedade tenha dado à luz, na Rússia, a um Estado que não era composto somente pelos delegados operários dos sovietes, mas também por delegados soldados e camponeses pobres.
As advertências do marxismo contra o Estado, embora este fosse do período de transição
Em sua introdução de 1891 a A guerra civil na França redigido por ocasião do vigésimo aniversário da Comuna de Paris, Engels não teme por em evidência traços comuns a todos os Estados, sejam os clássicos Estado burgueses ou o Estado-Comuna do período de transição: "na realidade, o Estado não é outra coisa senão uma máquina para a opressão de uma classe por uma outra e, de facto, na república democrática não menos do que na monarquia; no melhor dos casos, um mal que é legado ao proletariado vitorioso na luta pela dominação de classe e cujos piores aspectos ele não poderá deixar de cortar imediatamente o mais possível, tal como no caso da Comuna, até que uma geração crescida em novas, livres condições sociais, se torne capaz de se desfazer de todo o lixo do Estado." [23]
Considerar o Estado como "um mal que é legado ao proletariado vitorioso na luta pela dominação de classe" é uma ideia que se situa perfeitamente no prolongamento de que o Estado é uma emanação da sociedade (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado) em seu conjunto e não do proletariado revolucionário. Isto tem implicações importantíssimas quanto à relação entre este Estado e a classe revolucionária. Apesar de que não pudessem ser esclarecidas totalmente antes da Revolução Russa, Lênin em O Estado e a revolução soube se inspirar nelas insistindo fortemente que os operários submetessem os funcionários do Estado a uma supervisão e um controle constantes, particularmente desses elementos do Estado que encarnam mais claramente uma continuidade com o antigo regime, como os "experts" técnicos e militares que os sovietes tiveram que utilizar.
Lênin também desenvolve um fundamento teórico que diz respeito à necessidade de uma atitude saudável de necessária desconfiança do proletariado com relação ao novo Estado. No capítulo "As bases econômicas da extinção do Estado", explica que devido a seu papel de defender em certos aspectos a situação do "direito burguês", pode se definir o Estado durante o período de transição como sendo "um Estado burguês, sem a burguesia!" [24]. Embora esta formulação seja mais uma chamada a refletir que uma clara definição do caráter do Estado de transição, Lênin entendeu o essencial: na medida em que o papel do Estado é de defender um estado de coisas que ainda não é comunista, o Estado-Comuna revela seu caráter fundamentalmente conservador e é o que o deixa particularmente vulnerável à dinâmica de contrarrevolução.
Uma intervenção de Lênin em 1920-21 que põe em evidência a necessidade do proletariado poder se defender contra o Estado
Essas percepções, possivelmente, favoreceram uma certa lucidez em Lênin sobre o que ocorria na Rússia, particularmente, durante o debate de 1920-21 sobre os sindicatos [25], debate que o opôs em especial a Trotsky que era partidário da militarização do trabalho e para quem o proletariado tinha que se identificar com o "Estado proletário" e até subordinar-se a ele. Embora Lênin mesmo estivesse prisioneiro da espiral do processo de degeneração da revolução, defendeu aí a necessidade que os trabalhadores mantivessem órgãos de defesa de seus próprios interesses [26], inclusive contra o Estado de transição, ao mesmo tempo em que repetiu suas advertências quanto ao crescimento da burocracia de Estado. Nos termos seguintes, Lênin apresenta o marco do debate sobre a questão, em um discurso em uma reunião de delegados comunistas no fim de 1920:
"(...) o camarada Trotsky (...) pretende que a defesa dos interesses materiais e espirituais da classe operária não é missão dos sindicatos em um Estado operário. Isso é um erro. O camarada Trotsky fala de “Estado operário”. Permita-me dizer que isto é uma abstração. É compreensível que em 1917 falássemos do Estado operário; mas agora se comete um erro manifesto quando nos diz: "Para que a classe operária defender, e defender frente a quem, se não há burguesia e o Estado é operário?" Não de todo operário; aí está o quê da questão. Nisto consiste cabalmente um dos erros fundamentais do camarada Trotsky. (...) O Estado não é, na realidade, operário, mas operário e camponês. Isto em primeiro lugar. E disto decorre. (Bukharin [interrompe]: "Que Estado? Operário e camponês?") E embora o camarada Bukharin grite atrás "Que Estado? Operário e camponês?", não lhe responderei. Quem quiser, pode recordar o Congresso dos Sovietes que acaba de se celebrar e nele encontrará a resposta.
Mas tem mais. No programa de nosso Partido – documento muito bem conhecido pelo autor de O ABC do comunismo – já vemos que nosso Estado é operário com uma deformação burocrática. E tivemos que lhe apor – como dizer? – esta lamentável etiqueta, ou coisa assim. Eis aí a realidade do período de transição. Pois bem, dado este gênero de Estado, que se cristalizou na prática, os sindicatos não têm nada a defender?, pode-se prescindir deles para defender os interesses materiais e espirituais do proletariado organizado em sua totalidade? Isto é completamente falso do ponto de vista teórico (...) Nosso Estado de hoje é tal que o proletariado organizado em sua totalidade deve se defender, e nós devemos utilizar estas organizações operárias para defender os trabalhadores frente a seu Estado e para que os trabalhadores defendam nosso Estado" [27].
Consideramos que esta reflexão é muito esclarecedora e da maior importância. Arrastado na dinâmica degenerescente da revolução, Lênin não esteve, infelizmente, em condições de aprofundá-la (pelo contrário, voltará logo sobre a caracterização do Estado operário-camponês). Por outro lado, sua intervenção tampouco provocou (e devido ao próprio Lênin) uma reflexão nem um trabalho em comum com a Oposição Operária encabeçada por Kollontai e Chliapnikov, que naquele momento expressou uma reação proletária tanto contra as teorizações burocráticas de Trotsky como contra as verdadeiras distorções burocráticas que estavam corroendo o poder proletário. No entanto, essa válida reflexão não foi perdida por parte do proletariado. Como já assinalamos, foi o ponto de partida de uma reflexão mais profunda por parte da Esquerda Comunista de Itália sobre o caráter do Estado do período de transição, que essa organização conseguiu transmitir às novas gerações de revolucionários.
O proletariado é a força de transformação revolucionária da sociedade, não o Estado
Umas das ideias fundamentais do marxismo é que a luta de classes é o motor da história. Não é o por acaso que esta ideia esteja presente na primeira frase da primeira parte do Manifesto Comunista: "A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes" [28], não o Estado cuja função histórica é precisamente a de "amortecer o choque, mantê-lo no limites da ordem" [29]. Essa característica do Estado das sociedades de classe também se aplica à sociedade de transição, na qual a classe operária segue sendo a força revolucionária. O próprio Marx já distinguiu claramente, falando da Comuna de Paris, a força revolucionária do proletariado e o Estado-Comuna: "… a Comuna não é o movimento social da classe operária e, assim, o movimento de uma regeneração de toda a humanidade, mas os meios organizados de ação. A Comuna não suprime as lutas de classes, pelas quais a classe operária se esforça pela abolição de todas as classes e, consequentemente, de qualquer dominação de classe (…) mas ela oferece o contexto racional em que essa luta de classes possa recorrer suas diferentes fases do modo mais racional e humano" [30].
A característica do proletariado após a revolução, ao mesmo tempo classe dominante politicamente e ainda explorada economicamente, acarreta que, tanto no plano econômico como no político, Estado-Comuna e ditadura do proletariado sejam por essência antagônicos:
Para poder assumir sua missão histórica de transformação da sociedade e acabar com a dominação econômica e política de uma classe sobre outra, a classe operária assume sua dominação política sobre o conjunto da sociedade por meio do poder internacional dos conselhos operários, do monopólio do controle das armas e o fato de ser a única classe armada permanentemente. Sua dominação política também se exerce sobre o Estado. Esse poder da classe operária é por outro lado inseparável da participação efetiva e ilimitada das imensas massas da classe, de sua atividade e organização e só acaba quando qualquer tipo de poder político tornar-se supérfluo, quando as classes tenham desaparecido.
Esperamos ter contestado de forma suficientemente argumentada às críticas que nossa posição suscitaram na OPOP em relação ao Estado de transição. Estamos conscientes de não ter contestado especificamente a várias objeções concretas e explícitas (por exemplo, "as tarefas organizativas e administrativas que a revolução coloca (...) cuja implementação deve ser assumida diretamente pelo proletariado vitorioso.”). Se não fizemos neste artigo, é porque nos pareceu necessário dar previamente e com prioridade as linhas gerais históricas e teóricas de nosso marco de análise uma vez que, ademais, estas já são com frequência uma resposta explícita às objeções da OPOP. Podemos voltar a desenvolvê-las em outro artigo se for necessário.
Por fim, consideramos que, por ser essencial, essa questão do Estado no período de transição não é, portanto, a única cujo esclarecimento teórico e prático tenha consideravelmente avançado após a experiência da Revolução Russa: o mesmo ocorre em relação à questão do papel e do âmbito do partido proletário. Seu papel é o de exercer o poder? Seu lugar é no Estado em nome da classe operária? Não. Em nossa opinião, estes são os erros que contribuíram para a degeneração do Partido Bolchevique. Esperamos também poder voltar sobre esse tema em um próximo debate com a OPOP.
Silvio (9/8/2012)
[1] OPOP, Oposição Operária, que existe no Brasil. Veja suas publicações na página revistagerminal.com. Há anos que a CCI mantém com a OPOP relações fraternas e de cooperação concretizadas em discussões sistemáticas entre ambas organizações, panfletos ou declarações assinadas em conjunto (“Repressão à greve de bancários no Brasil” <https://pt.internationalism.org/icconline/2008/repressao-a-greve-de-bancarios-no-brasil [171]>) ou intervenções públicas comuns (“Duas novas reuniões públicas conjuntas no Brasil (OPOP-CCI)”, a propósito das lutas das futuras gerações de proletários <https://pt.internationalism.org/icconline/2006/opop-cci> [172]) bem como a participação recíproca de delegações nos congressos de nossas organizações.
[2] https://pt.internationalism.org/ICConline/2012/Debate_no_meio_revolucion... [173]íodo_de_transicao__Conselhos_operarios_Estado_proletario
[3] Nota de Engels presente na edição francesa (traduzida por nós): "O Estado popular livre, reivindicação inspirada por Lassalle e adotada no Congresso de unificação de Gotha, foi objeto de uma crítica fundamental de Marx na Crítica do programa de Gotha. "
[4] Engels, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico. <https://www.marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/cap03.htm> [174]
[5] Lênin, O Estado e a Revolução, Capítulo IV, "Esclarecimentos Complementares de Engels", ponto 2, "Polêmica com os Anarquistas", <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap4.htm [175]>.
[6] Marx, Crítica do programa de Gotha. <https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm [176]>.
[7] Esquerda Comunista da Itália: do mesmo modo que o oportunismo na Segunda Internacional provocou uma resposta proletária que se concretizou nas correntes de esquerda, também houve correntes da esquerda comunista que resistiram às maré do oportunismo na Terceira Internacional. A esquerda comunista foi essencialmente uma corrente internacional com expressões em muitos países, da Bulgária até Grã Bretanha e dos Estados Unidos até a África do Sul. Mas seus representantes mais importantes estavam justamente nos países onde a tradição marxista alcançou sua maior solidez: Alemanha, Itália e Rússia.
Na Itália, por outro lado, a Esquerda Comunista – que tinha ocupado inicialmente uma posição majoritária dentro do Partido Comunista da Itália – foi particularmente clara sobre a questão da organização e isso lhe permitiu não só empreender uma importante batalha contra o oportunismo dentro da Internacional em declínio, mas além disso gerar uma fração comunista que fosse capaz de sobreviver ao desastre do movimento revolucionário e desenvolver a teoria marxista durante a sombria noite da contrarrevolução. No início dos anos 20, seus argumentos a favor do abstencionismo contra a participação em parlamentos burgueses, contra fundir a vanguarda comunista com grandes partidos centristas para dar una ilusão de "influência de massas", contra os slogans de Frente Única e "governo dos trabalhadores", se basearão também numa profunda compreensão do método marxista. Para mais detalhes veja "A esquerda comunista e a continuidade do marxismo": <https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista [40]>.
[8] Leia, em especial, sobre o tema nosso artigo "El Estado y la revolución (Lenin) – Una brillante confirmación del marxismo" (da série "El comunismo no es un bello ideal, sino que está a la orden del día de la historia", Revista internacional nº 91): <https://es.internationalism.org/rint91-comunismo> [177]. Muitos dos temas abordados em nossa resposta a OPOP estão mais desenvolvidos nesse artigo.
[9] Marx e Engels, Manifesto Comunista. Cap. II – "Proletários e comunistas". Boitempo Editorial, p. 58.
[10] Marx, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Cap. 7, <https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/cap07.htm [170]>
[11] Lênin, O Estado e a revolução, Capítulo III, "A Experiência da Comuna de Paris - Análise de Marx – 1. Onde Reside o Heroísmo da Tentativa dos Comunardos". Na realidade, a expressão utilizada aqui por Lênin é uma adaptação de uma citação de Marx em uma carta a Bracke de 5 de maio de 1875 sobre o programa de Gotha: "Cada passo de movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas", <https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/05/05.htm [178]>
[12] Marx, Manifesto Comunista. Prefácio à edição alemã de 1872. Boitempo Editorial, p. 72.
[13] Ibid.
[14] Lênin, O Estado e a revolução, Capítulo III, op. cit. <https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/05/05.htm [178]>
[15] OPOP, "Conselhos operários, Estado proletário, ditadura do proletariado"
[16] Ibid.
[17] Lênin, O Estado e a revolução, op. cit., Capítulo V, "As Condições Económicas do Definhamento do Estado – 3. Primeira fase da Sociedade Comunista". <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap5.htm [179]>
[18] Essa fórmula é extraída desta passagem: "Uma vez derrubados os capitalistas, uma vez quebrada, pela mão de ferro dos operários armados, a resistência dos seus exploradores, uma vez demolida a máquina burocrática do Estado atual, estaremos diante de um mecanismo admiravelmente aperfeiçoado, livre do "parasita", e que os próprios trabalhadores, unidos, podem muito bem pôr em funcionamento, contratando técnicos, contramestres e guarda-livros e pagando-lhes, a todos, pelo seu trabalho, como a todos os funcionários "públicos" em geral, um salário de operário." (Lênin, O Estado e a revolução, op. cit., Cap. III –3. Supressão do Parlamento). <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap3.htm [180]>
[19] Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, "Capítulo IX: Barbárie e civilização". Ed. Expressão Popular, 1ª ed. p. 213
[20] Lênin, El Estado y la revolución, op. cit., Capítulo II, "La experiencia de los años 1848-1851 – 1. En vísperas de la revolución". <https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/1910s/estyrev/hoja3.htm [181]> Tradução nossa.
[21] Em nossa série de cinco artigos da Revista Internacional "O que são os Conselhos Operários?", evidenciamos as diferenças sociológicas e políticas existentes entre conselhos operários e sovietes territoriais. Os conselhos operários são os conselhos de fábrica. Ao seu lado há também os conselhos de bairro, estes últimos integrando trabalhadores das pequenas fábricas e dos comércios, os desempregados, jovens, aposentados, as famílias que formam parte da classe operária como um todo. Os conselhos de fábrica e bairros (operários) desempenharam um papel decisivo em vários momentos do processo revolucionário (veja o segundo [91] e o terceiro [182] artigo da série). Desse modo, não foi por casualidade que com o processo de degeneração da revolução os conselhos de fábrica desapareceram no fim de 1918 e os conselhos de bairro no fim de 1919. Os sindicatos desempenharam um papel decisivo na destruição dos conselhos de fábrica (sobre isso veja o quinto artigo da série, ainda sem tradução para português: "Los Soviets ante la cuestión del Estado [183]").
[22] Também participaram de fato nesse Estado, e de maneira cada vez mais importante, os experts, os dirigentes do Exército Vermelho e da Checa, etc.
[23] Engels, Introdução à edição de 1891 de A Guerra Civil em França. <https://www.marxists.org/portugues/marx/1891/03/18.htm [184]>
[24] Lênin, O Estado e a revolução, op. cit., Capítulo V, "As Condições Económicas do Definhamento do Estado – 4. Fase Superior da Sociedade Comunista". Este é o contexto da citação de Lênin: "Na sua primeira fase, no seu primeiro estágio, o comunismo não pode, economicamente, estar em plena maturação, completamente libertado das tradições ou dos vestígios do capitalismo. Daí, esse fato interessante de se continuar prisioneiro do "estreito horizonte do direito burguês". O direito burguês, no que concerne à repartição, pressupõe, evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é nada sem um aparelho capaz de impor a observação de suas normas. Segue-se que, durante um certo tempo, não só o direito burguês, mais ainda o Estado burguês, sem burguesia, subsistem em regime comunista!"
[25] Sobre este tema vejam, entre outras coisas, nosso artigo "Comprender la derrota de la Revolución Rusa", da série "El comunismo no es un bello ideal, está a la orden del día de la historia", Revista Internacional no 100. "1921: el proletariado y el Estado de transición [185]"
[26] Trata-se de sindicatos que naquele momento eram considerados ainda por todos como autênticos defensores dos interesses do proletariado. Isto se explica pelo atraso da Rússia, onde a burguesia não desenvolveu um sofisticado aparato estatal capaz de reconhecer a utilidade dos sindicatos como instrumentos da paz social. Por isso, todos os sindicatos que se formarão antes e até durante a revolução de 1917, não eram obrigatoriamente inimigos de classe. Houve particularmente uma forte tendência à criação de sindicatos industriais que seguiam expressando certo conteúdo proletário.
[27] Lenin, "Sobre los sindicatos, el momento actual y los errores del camarada Trotski", 30 de diciembre de 1920. Tradução nossa. <https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/oe12/lenin-obrasescogidas11-12.pdf [186]>
[28] Marx e Engels, Manifesto Comunista. Cap. I – "Burgueses e proletários". Boitempo Editorial, p. 40.
[29] Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, op. cit., p. 213.
[30] Marx, A Guerra Civil em França, primeiro rascunho. Ed. sociales, p. 217. Traduzido por nós do francês.
[31] Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, op. cit., p. 213.
Publicamos aqui uma contribuição de um grupo político do campo proletário, OPOP [1], sobre o Estado no período de transição e suas relações com a organização da classe operária durante esse período. Embora este tema não seja de uma "atualidade imediata", desenvolver a teoria que permitirá ao proletariado levar a cabo sua revolução é uma das responsabilidades fundamentais das organizações revolucionárias. Por isso saudamos o empenho da OPOP em clarear uma questão que será da maior importância para a revolução futura, se vencedora, de modo a possibilitar sua extensão em escala mundial e a transformação da sociedade legada pelo capitalismo para uma sociedade sem classes e sem exploração.
A experiência da classe operária já aportou sua contribuição ao esclarecimento prático e à elaboração teórica dessa questão. A breve experiência da Comuna de Paris, na qual o proletariado tomou o poder durante dois meses, esclareceu sobre a necessidade de destruir o Estado burguês (e não de conquistá-lo como pensavam os revolucionários até então) e da revogabilidade permanente dos delegados eleitos pelos proletários. A Revolução Russa de 1905 fez surgir os órgãos específicos, os conselhos operários, órgãos de poder da classe operária. Após a erupção da Revolução Russa em 1917, Lênin condensou na sua obra O Estado e a Revolução as aquisições do movimento proletário sobre esse tema naquele momento. É dessa ideia resumida por Lênin no conceito de Estado proletário, o Estado dos Conselhos, que se reivindica o texto da OPOP que aqui publicamos.
Segundo a OPOP, o fracasso da Revolução Russa (devido ao seu isolamento internacional) não permite tirar novas lições em relação à postura de Lênin. E sobre essa base, a OPOP rechaça a concepção da CCI que questiona a noção de "Estado Proletário". Ao longo da sua crítica, a contribuição da OPOP toma o cuidado de delimitar os desacordos entre nossas organizações, o que saudamos, colocando em evidência que temos em comum a concepção segundo a qual "os conselhos operários terão de possuir um poder ilimitado (...) e ser a alma da ditadura revolucionária do proletariado".
O ponto de vista da CCI sobre a questão do Estado não é mais do que o prolongamento da reflexão teórica levada a cabo pelas frações da esquerda (especialmente a italiana) surgidas contra a degeneração dos partidos da Internacional Comunista. Embora seja totalmente acertado afirmar que a causa fundamental da degeneração da Revolução Russa foi o seu isolamento internacional, não é por isso que essa experiência não pôde aportar lições sobre o papel do Estado, permitindo desse modo enriquecer a base teórica constituída pelo livro O Estado e a Revolução de Lênin. Contrariamente à Comuna de Paris, que foi claramente vencida pela repressão implacável da burguesia, a contrarrevolução na Rússia (ao não ter sido possível a extensão da revolução) surgiu, por assim dizer, "a partir de dentro", a partir da degeneração do próprio Estado. Como entender esse fenômeno? Como e por que a contrarrevolução pôde tomar essa forma? Nossa crítica à posição do "Estado proletário" defendida na obra de Lênin , assim como em certas formulações de Marx e Engels que vão no mesmo sentido, baseia-se precisamente nos aportes teóricos elaborados a partir dessa experiência.
Evidentemente, contrariamente aos aportes "positivos" da Comuna, as lições que tiramos do papel do Estado são "negativas" e, nesse sentido, se trata de uma questão aberta, que não foi resolvida pela história. Porém como já dissemos mais acima, a responsabilidade dos revolucionários é preparar o futuro. Publicaremos, em um próximo número da Revista Internacional uma resposta às teses desenvolvidas pela OPOP. Podemos evocar aqui, de forma muito resumida, as idéias essenciais que serão desenvolvidas na dita resposta [2]:
[1] OPOP, Oposição Operária, radicada no Brasil. Confira suas publicações em: revistagerminal.com. A CCI mantém relações fraternas e de cooperação que tem se concretizado em discussões sistemáticas entre ambas organizações, panfletos ou declarações assinadas conjuntamente (O ATAQUE AOS TRABALHADORES - No Brasil e no mundo", <https://pt.internationalism.org/icconline/2006/opop-cci-volkswagen-brasil [187]> ou também ("Duas novas reuniões Públicas conjuntas no Brasil (OPOP-CCI)", <https://pt.internationalism.org/icconline/2006/opop-cci [188]> e a participação recíproca de delegações nos congressos de ambas organizações.
[2] Já expostas nos artigos "Période de transition – Projet de Resolution", Revue internationale no 11 (https://fr.internationalism.org/rint11/periode_de_transition.htm [189]) e "O estado no período de transição" <https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_período_de_transicao [42]>"".
Dos pontos que foram levantados até o momento em discussão entre OPOP e a CCI, uma questão que ficou por demais em evidencia é a importância de se travar um debate de maneira mais sistemática acerca do Estado durante a fase socialista de transição para o comunismo. Nesta questão os companheiros da CCI possuem uma concepção diferente da nossa, no que se refere basicamente aos conselhos, estruturas genuínas da classe operaria, estabelecidos enquanto órgãos de um Pré-Estado e do Estado propriamente dito. Para a CCI o Estado é uma coisa e o Conselho, outra, totalmente diferente. Para nós, os conselhos são as formas em que a classe operária se constitui organizadamente em Estado, ditadura do proletariado.
A concepção marxista do Estado proletário concebe, no curto prazo, a idéia da necessidade de um instrumento de dominação de classe, e, no longo prazo, acena com a idéia de uma outra necessidade, a do fim do próprio Estado. O que o marxismo propõe é que deverá prevalecer no comunismo—a sociedade sem classes—, a desnecessidade da opressão de homem ou mulher, não existindo mais segmentos sociais dispostos em relação de antagonismo social, como o que se estabelece hoje a partir da apropriação privada dos meios de produção e da separação entre os produtores diretos e os próprios meios de produção. Para o marxismo o desaparecimento do Estado e, portanto, da dominação de uma classe sobre outra não é decorrência de imperativos morais, mas uma condição objetiva, uma vez mais, necessariamente, em decorrência do desaparecimento da escassez dos meios de reprodução da própria vida humana em sociedade.
Portanto, já a sociedade, então, altamente evoluída e desenvolvida, passará a um estagio de auto-governo e administração das coisas, onde não se necessitará de nenhuma organização transitória até então experimentada a partir do homo sapiens, nem muito menos dos conselhos, que é a forma de Estado mais evoluída (embora simplificada e a caminho da auto-extinção) que a classe operaria utilizará para a passagem da primeira fase do comunismo (o socialismo) para a fase superior da sociedade sem classes. Mas, para que se chegue a esse estagio, deverá a classe operaria, muito tempo antes, construir o seu mecanismo de transição, os conselhos, em escala planetária.
Cabe nesse momento às organizações comunistas não a fiscalização—muito menos de fora para dentro—do Estado, mas sim a luta continua, de dentro do próprio Estado-Comuna, para que o Estado operário atinja a sua luta mais revolucionária, construído pela classe operaria e pelo conjunto do proletariado através dos conselhos. Os conselhos, por sua vez, deverão sim, vestir a camisa dos que lutam pela do novo Estado, tendo o entendimento de que são eles o próprio Estado.
O Estado dos Conselhos é revolucionário tanto na forma quanto no conteúdo. Ele difere, na essência, do Estado burguês, da(s) sociedade(s) capitalista(s), assim como das demais sociedades que o precederam. O Estado dos Conselhos existe em função do estabelecimento da classe operaria em classe dominante tal qual está colocado no Manifesto do Partido Comunista de 1848, elaborado por Marx e Engels. Neste sentido, as funções que lhe cabem diferem radicalmente das do Estado burguês capitalista, na medida em que se processa uma mudança, uma transformação quantitativa e qualitativa num só momento de ruptura do velho poder estatal para a nova forma de organização social: o Estado dos Conselhos.
O Estado dos Conselhos é, ao mesmo tempo e dialeticamente, a negação política e social da ordem anteriormente estabelecida; por isso mesmo ele é, também dialeticamente, a negação e a afirmação da forma Estado: negação quando dá inicio à sua própria extinção e extinção simultânea de toda e qualquer forma de Estado; afirmação como potencialização extrema de sua força, pressuposto de sua própria negação—na medida que um Estado pós-revolucionário fraco seria impotente para resolver a sua própria existência ambígua: dar cabo à tarefa da repressão à burguesia como premissa de seu passo decisivo, o ato de seu desaparecimento. Enquanto no Estado burguês a relação entre ditadura versus democracia se dá através de uma relação combinada de unidade contraditória (dialética) em que a ampla maioria é submetida através da dominação política e militar da burguesia, no Estado dos Conselhos esses pólos são invertidos e o proletariado, que antes tinha uma participação politicamente nula, devido ao processo de manipulação e exclusão das decisões a que está submetido, passa a desempenhar o papel dominante no processo de luta de classes, estabelecendo aí a mais ampla democracia política de que se tem notícia na historia, que, como não poderia deixar de ser, estará também combinada com o estabelecimento da ditadura da maioria explorada sobre uma minoria despojada e expropriada, que tudo fará para organizar o movimento da contra-revolução.
É assim o Estado dos Conselhos, a expressão máxima da ditadura do proletariado, que usará esse poder não só para garantir a mais ampla democracia para os trabalhadores em geral e à classe operaria em particular, mas, antes e acima de tudo, pra reprimir de forma organizada ao extremo, as forcas da contra-revolução.
O Estado dos Conselhos condensa em si, como já foi dito, a unidade entre conteúdo e forma. No período de situação revolucionaria, em que os bolcheviques organizaram a insurreição na Rússia em outubro 1917, foi quando esta questão ficou mais clara. Ali, naquele período, era impossível fazer-se distinção entre o projeto de poder da classe operaria, o socialismo, o conteúdo portanto, e a forma de organização, o Estado de novo tipo, que se queria construir baseado nos sovietes. Socialismo, poder operário e sovietes eram a mesma coisa, de forma que não se podia falar de um sem entender que se estava falando automaticamente do outro. Assim, não é pelo fato de se ter construído uma organização estatal posterior cada vez mais distante da classe operaria na Rússia que devemos deixar de lado a tentativa revolucionaria de se estabelecer o Estado os Conselhos.
Os sovietes (conselhos), através de todos os mecanismos e elementos da burocracia que foram herdados foram, na URSS, destituídos de seu conteúdo revolucionário para se constituírem em um órgão institucionalizado nos moldes de um Estado burguês. Mas, por conta disso, não significa que tenhamos de deixar de lado a tentativa de se construir um Estado de novo tipo, cuja estrutura básica de funcionamento esteja devidamente acertada naquilo que de mais importante a classe operaria criou no seu processo histórico de luta, enquanto forma de organização que precisa ser aperfeiçoado em diversos aspectos, mas que, desde basicamente a Comuna de Paris, de 1871, vem sendo colocada como ensaios gerais da construção do Estado-Conselho.
Nos dias atuais a tarefa de estabelecer os conselhos como forma de organização estatal se coloca numa perspectiva não mais de um único país, mas sim à escala internacional e é este o desafio principal da classe operaria. Portanto, entender que o Estado dos Conselhos é a tentativa que nos propomos neste breve ensaio, uma elaboração teórica para um ponto que a historia da classe operaria já colocou no seu exercício pratico de enfrentamento com as forças do capital. Passemos à analise.
Para evitar repetições e redundâncias, dá-se por visto, neste escrito, que assumimos à la letre todas as definições teóricas e políticas de principio que definem o corpo doutrinário de O Estado e a Revolução de Lênin. Em adendo esclarecemos ao leitor que só lembraremos de premissas leninistas na medida em que sejam imprescindíveis à necessária fundamentação de alguns postulados que uma oportuna atualização de assunto tão urgente requer; e que, ademais, só o faremos na medida em que forem necessárias para esclarecer e fundamentar o intento teórico-político aqui posto, a saber: o das relações entre o sistema de conselhos e o Estado proletário (= ditadura do proletariado) com sua forma ex-ante, o pré-Estado.
De outro ângulo de visão, a mesma e já citada obra de Lênin também se revela igualmente útil e insubstituível, porquanto ela encerra o apanhado mais completo de passagens de Engels e Marx acerca do Estado da fase de transição—de tal maneira que temos à mão densa fartura das posições mais avançadas e autorizadas, em toda a literatura política já produzida, acerca do Estado e da Revolução.
Comentando Engels, Lênin faz, em duas passagens de seu escrito, as seguintes afirmações: "O Estado é o produto e a manifestação do fato de as contradições de classe serem inconciliáveis (...) segundo Marx, o Estado não poderia surgir nem manter-se se a conciliação de classes fosse possível" e "... o Estado é um organismo de dominação de classe, um organismo de opressão de uma classe por outra" (os destaques em itálico são do autor). Conciliação e dominação, dois conceitos muito precisos na doutrina do Estado de Marx, Engels e Lênin. Conciliação significa negação de toda e de qualquer contradição entre os termos de dada relação e, na esfera social, na ausência de contradição na constituição ontológica das classes sociais fundamentais no âmbito de uma formação social qualquer. Por outro lado, falar de Estado não faz sentido—como historicamente está provado—em sociedades, como nas sociedades primitivas, simplesmente porque não existem classes sociais, exploração, opressão e dominação de uma classe sobre outra. Por outro lado, falando-se da mesma constituição ontológica das classes sociais, dominação é noção que exclui esta outra, hegemonia, de vez que uma situação de hegemonia supõe compartilhamento—apenas desigual—de posições num mesmo contexto estrutural. Disso resulta que, no terreno da socialidade burguesa, que se estende ao da revolução, em cujos contextos burguesia e proletariado se situam e se batem em posições diametralmente antagônicas, não faz sentido falar de hegemonia da burguesia sobre o proletariado, ao passo que faz sentido falar de hegemonia entre frações da burguesia que compartilham do mesmo poder de Estado e de hegemonia do proletariado sobre as classes que com ele compartilham do objetivo comum da tomada do poder pela via da derrubada do inimigo estratégico comum.[1]
Noutra passagem, citando Engels, Lênin fala da força pública, este pilar característico do Estado burguês—o outro é a burocracia—constituída de todo um aparato militar repressivo e especializado, que se coloca separado e acima da sociedade e "... que já não coincide diretamente com a organização da própria população em força armada." O destaque desse componente básico da ordem burguesa tem aqui uma intenção clara: mostrar como, no contraponto, é igualmente incontornável a constituição de uma força armada, muito mais forte e consistente, do proletariado em armas para reprimir, com decisão mais resoluta ainda, o inimigo de classe batido mas ainda não abatido, a burguesia. Em que instancia da ditadura do proletariado deve situar-se esta força repressiva é assunto a ser tratado em capitulo próprio do presente escrito.
O outro pilar sobre o qual se assenta o poder burguês é a burocracia, composta de funcionários do Estado, que gozam de privilégios cumulativos, entre os quais honorários diferenciados, cargos vitalícios, sinecuras perpétuas, no âmbito do qual se somam todas as vantagens provenientes das inerentes práticas da uma larga e recorrente corrupção. Se as milícias populares ganham força redobrada à medida que sofrem uma simplificação estrutural, também aqui acontece aumento da eficácia das tarefas executivas, legislativas e judiciárias, na mesma medida em que são também simplificadas—e justo pela mesma razão: as tarefas de execução, dos tribunais e das funções legislativas ganham força no mesmo diapasão em que são assumidas diretamente pelos trabalhadores em circunstancias nas quais a revogabilidade dos cargos é estabelecida com vistas a coibir, desde o início, a tendência ao ressurgimento das castas, mal do qual padecem todas as sociedades que foram paridas de revoluções "socialistas" em toda a extensão do século XX.
Burocracia e força pública profissional, as duas vigas mestras nas quais se apóia o poder político da burguesia; os dois complexos esteios cujas funções deverão ser substituídas pelos próprios operários em estruturas simplificadas—a caminho da extinção—, porém muito mais eficazes e mais fortes; simplificação e força que se opõem num movimento que acompanha todo o processo de transição até que não exista mais nenhum traço da última sociedade de classe. O problema que devemos resolver agora é: qual a instancia que, para Marx, Engels e Lênin, deve assumira ditadura do proletariado?
O nosso trio não deixa qualquer duvida quanto a isto: "... o proletariado servir-se-á da sua supremacia política para arrancar, pouco a pouco, todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, quer dizer, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível a quantidade de forças produtivas." Ou seja, Estado proletário (sic) = "proletariado organizado em classe dominante." "O Estado, isto é, o proletariado organizado em classe dominante." (sic). Até aqui, a trajetória do raciocínio de Lênin, Engels e Marx é o seguinte: o proletariado derruba, pela revolução, a burguesia do poder; em derrubando a máquina estatal da burguesia, estará destruindo a referida máquina de Estado para, ato continuo, erguer o seu Estado, simplificado e em vias de extinção, o qual mais forte—porque dirigido pela classe revolucionaria—, assume duas ordens gerais de tarefas: reprimir a burguesia e construir o socialismo (como fase de transição para o comunismo).
Mas, de onde Marx retira esta convicção de que a ditadura do proletariado é o Estado proletário? Da Comuna de Paris ... simplesmente! Com efeito, "... A Comuna foi composta por conselheiros, eleitos por sufrágio universal nos diversos bairros da cidade. Eram responsáveis e podiam ser substituídos em qualquer momento. A maioria dos seus membros era, naturalmente, operários ou representantes reconhecidos da classe operária." (o destaque em itálico é nosso) A questão avançou muito mais o que ele quer dizer exatamente com isso?): os membros do Estado proletário (sic), Estado-Comuna, são eleitos nos conselhos de bairros, o que não quer dizer que não existam conselhos de operários que se coloquem à testa de tais conselhos—como na Rússia, com os sovietes. A questão da hegemonia da direção operária está garantida pela maioria dos operários nesses conselhos—e, obviamente, pela ação de direção que o partido deve exercer em tais instâncias.
Falta apenas um ingrediente para articular a proposta de Estado proletário, Estado-Conselho, Estado-Comuna, Estado socialista ou ditadura do proletariado: o método de tomada de decisões—e é aqui que se formula e se compreende este princípio universal que muitos marxistas não conseguem compreender, que é o centralismo democrático: ".. esse centralismo democrático não é, de maneira alguma entendido por Engels no sentido burocrático que lhe dão os ideólogos burgueses e pequeno-burgueses e, entre esses últimos, os anarquistas. O centralismo, para Engels, não exclui de forma alguma uma larga autonomia administrativa local que, na condição de as `comunas` e as regiões defenderem de sua livre vontade a unidade do Estado, suprime incontestavelmente toda a burocracia e todo o `autoritarismo` vindo de cima." Vê-se também que o termo e o conceito de centralismo democrático não é criação do stalinismo, como querem alguns—que tentam descaracterizar este método essencialmente proletário—, mas do próprio Engels e nem assume, por isso mesmo, a conotação pejorativa impressa pelo centralismo burocrático utilizado pela nova burguesia de Estado na URSS.
A separação antinômica entre o sistema de conselhos e o Estado pós-revolucionário constitui um equívoco por mais de um motivo. Um deles reside numa postura que se constitui num deslocamento desde a concepção de Marx, Engels e Lênin até uma certa influência da concepção anarquista de Estado. Separar Estado proletário de sistema de conselhos é o mesmo que quebrar a unidade que deve existir e persistir no âmbito da ditadura do proletariado. Tal separação coloca de um lado o Estado como uma estrutura administrativa complexa, a ser gerenciada por um corpo de funcionários—um absurdo na concepção de Estado simplificado de Marx, Engels e Lênin—e de outro uma estrutura política, no âmbito dos conselhos, a exercer pressão sobre a primeira (o Estado como tal). Esta concepção, que resulta de uma acomodação de uma visão influenciada pelo anarquismo com a identificação do Estado Comuna com o Estado burocrático (burguês) saído das ambiguidades da Revolução Russa, coloca o proletariado fora do Estado pós-revolucionário, criando, aí sim, uma dicotomia que é, ela própria, a sementeira de uma nova casta a se reproduzir no corpus administrativo apartado organicamente dos Conselhos.
Um outro motivo do mesmo equivoco, que está casado com o motivo anterior, reside no estabelecimento de uma estranha relação de identificação a-crítica do Estado erguido na URSS pós-revolucionária—um Estado obrigatoriamente burocrático—com a concepção de Estado-Comuna de Marx, Engels e do próprio Lênin, erro que consiste em não compreender as ambigüidades que resultaram das circunstancias históricas e sociais especificas que bloquearam não só a transição, como mesmo o início da ditadura do proletariado na URSS. Aqui, deixa-se de compreender que os rumos tomados pela Revolução Russa—a menos que se considere a versão mais fácil e, portanto, também, mais fraca, de que os desvios do processo revolucionário foram implantados por Stalin e sua entourage— , não obedeceram à concepção de revolução, de Estado e de socialismo de Lênin, mas a restrições que emanavam do terreno social e político no qual se deu a montagem do Poder na URSS, entre os quais, só para lembrar, a impossibilidade da revolução na Europa, a guerra civil e a contra-revolução no interior da URSS, entre outros—, rumos esses alheios á vontade de Lênin e acerca dos quais ele próprio examinava e que marcou formulações reiteradamente ambíguas em todo o seu pensamento ulterior até a sua morte; ambigüidades que se localizavam mais das marchas e contra-marchas da revolução—e que se refletiam no pensamento que tentava compreendê-las—do que na concepção teórico-politica de Lênin e dos chefes bolcheviques que mantinham concordância com ele.
Um terceiro motivo deste equívoco consiste em não considerar que as tarefas organizativas e administrativas que a revolução coloca, desde logo, na ordem do dia são tarefas políticas incontornáveis, cuja implementação deve ser assumida diretamente pelo proletariado vitorioso. Assim, questões candentes como a planificação centralizada—cuja forma burocrática, no sistema GOSPLAN (Comissão Central de Planificação), foi por muito tempo confundida com "centralização socialista"— apenas para falar daquele aspecto mais digno de nota, não são questões meramente "técnicas", mas sumamente políticas, e que, como tais, não podem ser delegadas, ainda que "fiscalizadas", desde fora, pelos conselhos (delegadas ou "fiscalizadas" pelos conselhos), para um corpo de funcionários situados fora do sistema de conselhos nos quais estavam os operários mais conscientes (difícil de entender). Hoje se sabe que o sistema ultra-centralizado da planificação "socialista" não era nada além de um aspecto da própria centralização burocrática do capitalismo de Estado "soviético" que mantinha o proletariado alheio e afastado de todo o sistema de definição de metas, das decisões acerca do que deveria ser produzido e de como distribuído, alocação de recursos, etc. Se se tratasse de uma verdadeira planificação socialista, tudo isso deveria passar por uma ampla discussão no âmbito dos conselhos, ou seja, do Estado-Comuna, de vez que o Estado proletário se confundiria com o sistema-conselho—já que o Estado socialista era "uma `máquina` muito simples, quase sem `máquina`, sem aparelho especial (o grifo é nosso), pela simples organização das massas armadas (como, diremos nós por antecipação, os Sovietes dos deputados operários e soldados)".
Uma outra incompreensão reside em não perceber que a verdadeira simplificação do Estado-Comuna implica, conforme está expresso por Lênin nas palavras logo acima transcritas, num mínimo de estrutura administrativa e que tal estrutura é tão mínima—e em processo de simplificação/extinção—que pode ser assumida diretamente pelo sistema de conselhos; e que, portanto, não faz sentido usar como referencia o Estado "soviético" da URSS para questionar o Estado socialista que Marx e Engels viram nascer da Comuna de Paris. De fato, ao se estabelecer um traço de união entre o Estado dos Conselhos e o Estado burocrático saído da Revolução Russa está-se dando ao Estado proletário uma estrutura burocrática que um verdadeiro Estado pós-revolucionário, simplificado e em vias de simplificação/extinção não possui, mas que exatamente nega.
Aliás, o caráter e a extensão do Estado dos Conselhos (= Estado proletário = Estado Socialista = Ditadura do Proletariado = Estado-Comuna = Estado Transitório) estão maravilhosamente resumidos nesta passagem escrita pelo próprio Lênin: "... o `Estado`, é ainda necessário, mas já é um Estado transitório, já não é o Estado propriamente dito (...)". Mas, direis, se esta era a verdadeira concepção de Estado socialista de Lênin, por que ele não o "aplicou" na URSS depois da Revolução de Outubro, sendo que o que se viu foi exatamente o oposto de tudo isso, distorções que vão desde a extrema centralização burocratizada (desde o Exército à burocracia estatal e às unidades de produção) à mais brutal repressão aos marinheiros do Kronstadt? Pois é, tudo isso só revela como revolucionários do porte de Lênin podem eventualmente se ver envolvidos por contradições e ambigüidades de tal monta—e este era o exato contexto nacional e internacional da Revolução de Outubro—que podem levá-los, na prática, a ações e decisões muitas vezes diametralmente opostas às suas maiores convicções. No caso de Lênin e do Partido bolchevique, bastava uma das impossibilidades—que eram muitas—para levar a revolução a rumos não desejados. Uma só era mais do que suficiente: a situação de isolamento de uma revolução que não podia recuar, mas que se viu isolada e que não teve outra alternativa senão a de tentar abrir caminhos ã construção do socialismo num só país, a Rússia Soviética—tentativa contraditória que foi iniciada já nos tempos de Lênin e Trotsky. O que eram o Comunismo de Guerra, a NEP, entre outros empreendimentos, senão isto?
E aí, como ficamos nós? Devemos fazer finca-pé nas concepções de Estado, programa, revolução e partido de Lênin, Marx e Engels e tentar, num futuro qualquer, quando problemas concretos como o da internacionalização da luta de classe, entre outros, apontarem para possibilidades concretas para a revolução e para a construção socialistas em vários países, para objetivarmos e plasmarmos socialmente aquelas concepções de Marx, Engels e Lênin ou, inversamente, abrimos mão, diante das primeiras dificuldades, daquelas posições de princípio, trocando-as por figurações políticas rebaixadas que só trarão o abandono da perspectiva da revolução e da construção do socialismo?
a) O Estado-Conselho
Depois de analisar as premissas econômicas da supressão das classes sociais, vale dizer, as premissas "para que `todos` possam realmente participar na gestão do Estado", Lênin, sempre tomando como referência as formulações de Engels e Marx, afirma que "com tais premissas econômicas, pode-se muito bem, depois de ter derrubado os capitalistas e os funcionários, substituí-los imediatamente, de um dia para o outro, pelo controle da produção e da repartição, pelo registro do trabalho e dos produtos, pelos operários armados, por todo o povo armado." "Registro e controle, eis o essencial, tanto ‘para por em marcha’ como para o funcionamento da sociedade comunista na sua primeira fase. Nesta, todos os cidadãos se transformam em empregados assalariados do Estado." Mais adiante: "Em regime socialista, toda a gente governará alternadamente e se habituará depressa a que ninguém governe." A etapa do socialismo "... colocará a maior parte da população em condições que permitiam a todos, sem exceção, desempenhar as `funções publicas..."
Todos os cidadãos, bem lembrado, organizados no sistema de conselhos, ou por outra, no Estado operário, já que, para Marx, Engels e Lênin, a simplificação das tarefas chegará a um ponto que as tarefas "administrativas" básicas, reduzidas ao extremo, não só poderão ser assumidas pelo proletariado e o povo em geral, como poderão ser assumidas diretamente pelo sistema de conselhos—que é, ao fim e ao cabo, o próprio Estado. Qual é o verbo principal desta frase????
Assim, o Estado proletário, Estado socialista, ditadura do proletariado não é outra coisa senão o Sistema de Conselhos—e o Sistema de Conselhos, que garantirá a hegemonia da classe operária em toda a sua extensão, assumirá diretamente, sem que seja necessário nenhum corpo administrativo especifico, tanto a defesa do socialismo como as funções de gestão estatal e das unidade produtivas.. Por fim, essa unidade da ditadura do proletariado, será assegurada pela unidade política-administrativa simplificada, numa mesma totalidade chamada de Estado-Conselho.
b) O pré-Estado-Conselho
O Sistema de Conselhos que, na situação ex-post, deverá assumir a transição no âmbito estrutural (implantação das novas relações de produção, eliminação de todas as hierarquias na produção, negação de todo vestígio de toda e qualquer forma mercantil, etc.) e superestrutural (eliminação de toda hierarquia herdada do Estado burguês, de toda burocracia, negação de toda ideologia herdada da formação social anterior, etc.) é o mesmo Sistema de Conselhos que, na situação ex-ante, constituiu a organização revolucionária que derrubou a burguesia e seu Estado. Trata-se, pois, de um mesmo corpus que trocou de ênfases nas duas etapas de um mesmo processo da revolução social: cumprida a tarefa insurrecional, dar inicio à execução da nova tarefa que terá levado a termo a verdadeira revolução social—a ruptura de uma formação que caducou e a inauguração de uma nova formação social, o socialismo, logo em marcha de transição para a formação social comunista, a segunda formação social sem classes sociais da História (a primeira é, como se sabe, a sociedade primitiva).
Pois bem, é a este sistema de conselhos que chamamos de pré-Estado (proletário). Está visto que tal denominação não tem, pelo seu conteúdo, nada de original, posto que foi, é e será sempre uma realidade corriqueira nos processos revolucionários inaugurados pela Comuna de Paris. Ali, os communards que tomaram o Poder a partir das comunas, foram os mesmos que assumiram o poder de Estado—ditadura do proletariado—e que inauguraram, ainda que com evidentes erros de juventude, a montagem de uma ordem socialista. Processo semelhante voltou a acontecer em Outubro de 1917. A primeira experiência não pôde, nas circunstâncias em que aconteceu, completar-se e foi abatida pela força contra-revolucionaria burguesa passados apenas pouco mais de dois meses de uma memorável existência. A segunda, como se sabe, também não pôde ser completada por conta da ausência de condições, externas e internas, entre as quais a impossibilidade de lavar a termo a construção do socialismo num só país.
Nos dois casos houve um pré-Estado, mas, também nos dois casos, um pré-Estado que, se de um lado pôde levar a termo a insurreição, por outro não pôde ser preparado, com a antecedência necessária, para as tarefas da construção do socialismo. No caso de 1917, somente nas vésperas de Outubro é que o único partido (o partido bolchevique) que tinha as condições teóricas para preparar a vanguarda da classe organizada nos sovietes, sobretudo no de São Petersburgo, não pôde ensinar à classe senão as tarefas urgentíssimas da insurreição. A nós parece que, não obstante a consciência—principalmente em Lênin—da importância cabal dos sovietes desde 1905, somente depois de Fevereiro de 1917 é que, no caso de Lênin, esta consciência se tornou convicção. Daí porque o partido de Lênin não teve o cuidado de jogar toda a carga pesada da melhor militância de seus quadros de massa nos sovietes (os mencheviques lá chegaram mais cedo), inclusive—e já que o seu retorno, depois do seu aparecimento, em 1905, era facilmente dedutível—na preparação prévia dos operários para um ressurgimento dos sovietes mais cedo e com uma formação também prévia mais potencializada—formação, mesmo que para a vanguarda mais resoluta da classe organizada nos sovietes, que deveria incluir, sob o fogo de um debate sem tréguas entre tais operários, as questões da tomada insurrecional do poder e as noções de toda a teoria marxista acerca da constituição do Estado operário e da construção do socialismo. Esse debate faltou, quer por falha na percepção da importância do sovietes desde mais cedo, quer por falta de tempo de levar o debate aos operários dos sovietes a apenas dois meses da insurreição. Seja como for, o resultado é que a não preparação da vanguarda da classe para a tomada do poder e a organização imediata, sob a sua presença, sua direção e sua intervenção, para a construção do socialismo, funcionou como um dos fatores adversos para a constituição de uma autêntica ditadura do proletariado, com base na representação nos conselhos, na URSS. Tal lacuna, em grande medida provocada pela ausência de um pré-Estado comme il faut, isto é, de um pré-Estado que constituísse uma escola da revolução, foi um embaraço a mais do malogro da Revolução Russa de 1917.
Como o próprio Lênin sempre assinalou, os revolucionários comunistas são homens e mulheres que devem ter uma formação teórica marxista muito sólida. Uma formação marxista sólida requer conhecimentos acerca da dialética, da economia política, do materialismo histórico e dialético que facultarão aos quadros e militantes de um partido de quadros não só analisar e compreender as conjunturas passadas e presentes, como também captar, no essencial, processos que podem ser previstos em pelo menos em seus traços mais gerais (essas ordens de predição podem ser constatadas em muitas das analises feitas ao longo dos Cadernos Filosóficos de Lênin). Daí que uma verdadeira formação marxista pode assegurar aos quadros e militantes de um autêntico partido comunista a faculdade de prever, com antecipação, os cenários possíveis de desdobramento de uma crise com a atual, e que prever todo um largo processo de situações revolucionarias não constitui nenhum "bicho de sete cabeças".
Mais que isso, é perfeitamente previsível prever (com certeza) a coisa mais óbvia desse mundo—até porque, aqui e ali, já começam a vir à tona formas embrionárias—: a criação, desde este exato momento, de formas embrionárias de conselhos que deverão ser analisadas, ab imo pectore, sem preconceito, portanto, para, uma vez interpretadas teoricamente, voltar (o que ou quem vai voltar aos trabalhadores?)) aos trabalhadores para que corrijam os erros e as lacuna de tais experiências, para que as potencializem em número e em conteúdo, até que se tornem, em futuro próximo—esta garantia nos é dada pelo estagio avançado em que se encontra a crise estrutural do capital—, no bojo de situações revolucionárias concretas, o sistema de conselhos, formado na interação dialética de pequenos círculos (nos locais de trabalho, de estudos e de moradia), comissões (de fabricas) e de conselhos (de bairros, de regiões, de zonas industriais, nacionais, etc.) que deverá constituir-se, ao mesmo tempo, na peça dorsal da insurreição e, no futuro, órgão da ditadura revolucionária do proletariado.
Para a CCI, como para nós, os conselhos operários devem deter um poder ilimitado e, como tais, devem constituir-se nos órgãos básicos do poder operário, além de que devem constituir-se a alma da ditadura revolucionária do proletariado. Mas, logo a partir daí, surgem as nossas diferenças a este respeito. E quais são essas diferenças? Em primeiro plano está a separação abissal, para nós incorreta, que a CCI estabelece entre os Conselhos e o Estado-Comuna, como se este Estado-Comuna e os Conselhos fossem coisas qualitativamente distintas. Depois de operar esta separação, a CCI coloca um traço de ligação segundo o qual os Conselhos passariam a exercer pressão e controle sobre "o semi Estado do período de transição", para que esse mesmo Estado(-Comuna)—que, na visão da CCI, "não é o portador nem o agente ativo do comunismo"—não cumprisse o seu papel imanente de conservador do statu quo (sic) e "obstáculo" à transição.
Para a CCI, "o Estado tende sempre a aumentar-se desmedidamente", resultando "num terreno de predileção a toda a lama arrivistas e outros parasitas (que) recruta facilmente os seus quadros entre os (...) resíduos e vestígios da antiga classe dominante em decomposição." [2] E arremata esta sua visão do Estado socialista afirmando que Lênin "pôde constatar (esta função do Estado) quando fala(va) do Estado como a reconstituição do antigo aparelho de Estado czarista" e quando afirmava que o Estado parido da Revolução de Outubro tendia "a escapar ao nosso controle e gira(r) no sentido contrário que queremos, etc." Para a CCI "o Estado proletário é um mito" e que "Lénine rejeitava-o, recordando que era ‘um governo dos trabalhadores e dos camponeses com uma deformação burocrática’". Mais ainda, para a CCI "a grande experiência da revolução russa está lá para testemunhar. Cada cansaço, cada insuficiência, cada erro do proletariado tem imediatamente por consequência o reforço do Estado, e contrariamente, cada vitória, cada reforço do Estado faz-se despojando ligeiramente mais o proletariado. O Estado alimenta-se do enfraquecimento do proletariado e a sua ditadura de classe. A vitória de um é a derrota do outro." [3] Também afirma, noutras passagens, que "o proletariado guarda sua ampla e inteira liberdade em relação ao Estado. Sob nenhum pretexto, o proletariado não saberia reconhecer a primazia de decisão dos órgãos do Estado sobre a da sua organização de classe: os conselhos operários, e deveria impôr o contrário"; que o proletariado "não saberia tolerar a ingerência e a pressão de nenhuma espécie do Estado na vida e a atividade da classe organizada que exclui qualquer direito e possibilidade de repressão do Estado"; que "o proletariado conserva o seu armamento fora de qualquer controle do Estado"; e que, finalmente, etc., etc." "a condição primeira é a não .identificação da classe com o Estado."
O que dizer da visão dos companheiros da CCI acerca do Estado-Comuna? Em primeiro lugar que nem Marx, nem Engels e nem Lênin, como se viu nos comentários feitos mais atrás do O Estado e a Revolução, endossam a concepção de Estado expressa pela CCI. Como vimos, o Estado Comuna era, para eles, o Estado dos Conselhos e a expressão do poder do proletariado e da sua ditadura de classe. Para Lênin, o Estado pós-revolucionário não só não era um mito, como pensa a CCI, como era, sim, o Estado proletário" Com que direito se pode chamar a este Estado que a CCI concebe de Estado-Comuna?
Em segundo lugar, como também já analisamos mais atrás, a separação antinômica entre o sistema de conselhos e o Estado pós-revolucionário, proposta pela CCI, opera um deslocamento desde a concepção de Marx, Engels e Lênin até uma certa influência da concepção anarquista de Estado. E aqui temos de reiterar o que já dissemos mais atrás, vale dizer, que separar Estado proletário de sistema de conselhos é o mesmo que quebrar a unidade que deve existir e persistir no âmbito da ditadura do proletariado e que tal separação coloca de um lado o Estado como uma estrutura administrativa complexa, a ser gerenciada por um corpo de funcionários—um absurdo na concepção de Estado simplificado de Marx, Engels e Lênin—e de outro uma estrutura política, no âmbito dos conselhos, a exercer pressão sobre a primeira (o Estado como tal).
Em terceiro lugar, repetimos: esta concepção, que resulta de uma acomodação de uma visão influenciada pelo anarquismo com a identificação do Estado Comuna com o Estado burocrático (burguês) saído das ambiguidades da Revolução Russa, coloca o proletariado fora do Estado pós-revolucionário, criando, aí sim, uma dicotomia que é, ela própria, a sementeira de uma nova casta a se reproduzir no corpus administrativo apartado organicamente dos Conselhos. A CCI não tem o direito e confundir a concepção de Estado de Lênin com o Estado parido das ambigüidades da Revolução de Outubro de 1917. Quando Lênin se queixava das atrocidades do Estado como ele se configurou na URSS, ele não estava a descartar a sua concepção de Estado-Comuna, mas dos desvios que o Estado russo tomou depois de Outubro.
Em quarto lugar, a CCI não considera, como nós consideramos, que as tarefas organizativas e administrativas que a revolução coloca, desde logo, na ordem do dia são tarefas políticas incontornáveis, cuja implementação deve ser assumida diretamente pelo proletariado vitorioso—como também já afirmamos mais atrás.
Em quinto lugar, os companheiros da CCI parecem não se dar conta de que, também como já afirmamos mais atrás, a verdadeira simplificação do Estado-Comuna implica, conforme está expresso por Lênin, num mínimo de estrutura administrativa e que tal estrutura é tão mínima—e em processo de simplificação/extinção—que pode ser assumida diretamente pelo sistema de conselhos.
Em sexto e último lugar, é unicamente assumindo diretamente e por dentro, as tarefas simplificadas de defesa e da transição/construção socialista do Estado-Conselho, que a classe operaria vai ter as condições de evitar que se instale um xisto estatal estranho ao Estado-Conselho e de exercer controle não só sobre o que se passa dentro do Estado como em toda a amplitude da sociedade. Para isso, vale lembrar, o Estado proletário, Estado-Comuna, Estado socialista, Ditadura do Proletariado, não é outra coisa senão o sistema de conselhos que terá assumido tarefas básicas de organização—em milícias, jornadas, brigadas de trabalho e outras modalidades de tarefas igualmente revolucionárias (revogabilidade de cargos, salários iguais,, etc.), tarefas também igualmente simplificadas de luta e de organização de uma sociedade de transição. Como o arguto comentarista da Comuna escreveu, "... a Comuna, entretanto, não era nenhuma espécie de órgão parlamentar, mas um grupo de trabalho com funções, ao mesmo tempo, legislativas e executivas. Sua organização previu a criação de dez comissões: militar, finanças, justiça, segurança, trabalho, alimentação, indústria e comércio, ensino e serviços públicos, sendo que os representantes de cada comissão integravam uma Comissão Executiva, responsável pelas políticas gerais da Comuna." Para isso não será necessário criar nenhum monstrengo administrativo, muito menos burocrático ou qualquer outra forma herdada ou que lembre do/o Estado burguês destruído ou do/o estado burocrático do capitalismo de Estado da ex-URSS.
Seria ótimo que a CCI se debruçasse no O Estado e a Revolução de Lênin, exatamente sobre a defesa que ele, apoiado em Engels e Marx, justifica o Estado-Comuna como o Estado dos Conselhos, Estado Proletário, Ditadura do Proletariado, passagens por nós ressaltadas neste pequeno escrito.
[1] Este é um exemplo das confusões e ambiguidades do acervo de categorias teóricas e políticas, ao lado de outras, como a mais central delas, sociedade civil, introduzidas por Antonio Gramsci na doutrina marxista, levadas até seus limites lógicos e políticos por seus seguidores e cujas aporias foram brilhantemente exploradas por Perry Anderson no seu já clássico As antinomias de Gramsci.
[2] Nota da redação: "O estado no período de transição"; https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/O_estado_no_per [190]íodo_de_transicao
[3] Ibidem.
Faz mais de um ano que o mundo é atravessado por uma potente vontade de mudança. Apareceu até um desejo real de mudar o sistema capitalista. Esta ideia se afirmou e se propagou com uma grande velocidade particularmente entre a juventude de muitos países do planeta. Além dos acontecimentos que varreram os países de África do Norte e aqueles que sacudiram ainda a Síria, estas preocupações foram particularmente presentes no movimento dos indignados e no dos "Ocupy".
Estes movimentos de contestação de dimensão internacional são o produto direto da violência da crise econômica e da degradação brutal das condições de vida. Na Espanha, Grécia, Portugal, Israel, Chile, Estados-Unidos, Grã-Bretanha, África do Norte ou subsaariana, em outras palavras, nos quatros cantos do mundo, a mesma angústia diante do futuro está presente em todas as discussões, quaisquer que sejam as gerações, mas especialmente na juventude. Contudo, além das questões do desemprego, da precariedade, é a dificuldade de ter uma perspectiva que mais gera inquietação. O que fazer? Como lutar? Contra quem? O mundo das finanças? A direita? Os dirigentes? E, sobretudo, será que outro mundo é possível no capitalismo? E se não for possível sob o capitalismo, como fazer, como viver fazendo com que milhares de seres humanos possam existir sem morrer de fome, de frio ou sob as bombas de tal ou qual clã guerreiro, grande ou pequeno, que pretenda ser "democrático" ou "terrorista".
Uma entre as respostas que emerge é a necessidade de "reformar", "democratizar" o capitalismo. As mídias, muitos intelectuais, ou também a esquerda fazem a maior propaganda a favor deste "combate pela democracia". As organizações altermundialistas, como Attac, todas defendem a mesma coisa, “mais democracia”, e na Espanha, DRY (Democracia Real Ya) roubou para si a “representação” oficial do movimento.
Este início de combate orientado a favor da “democracia” encontrou por outro lado um sucesso importante. No início de janeiro, os ocupantes da “aldeia de barracas” de Saint-Paul em Londres estenderam uma bandeira imensa pedindo também a “democratização” do capitalismo.
A “primavera árabe” revelou aos olhos de todos que clãs no poder na Tunísia, no Egito, na Síria, na Líbia espoliavam e reprimiam impunemente há muito tempo as populações, mantendo sua dominação pelo terror, pela repressão com a bênção das grandes “democracias” ocidentais. A contestação que literalmente explodiu no ano passado, estimulada pelo desenvolvimento da miséria, conseguiu levantar este enorme peso das costas e foi um incentivo para todos os explorados do mundo.
Na Europa, berço da democracia ocidental, o descontentamento focalizou sobre uma “elite dirigente” incapaz, desonesta e cheia de dinheiro. Na França, Sarkozy foi denunciado por vários livros como o presidente dos ricos. Outro livro, A oligarquia dos incapazes, escrito por jornalistas, pesquisadores ou intelectuais evidencia como a burguesia francesa é feita de clãs que sugam o sangue e o suor dos explorados e da sociedade inteira para seus interesses particulares. Estes costumes de bandido não são novos por parte da burguesia que fez pior que todas as classes exploradoras da história, mas tomam uma proporção tão grande que só pode gerar mais indignação e repugnância. Por toda a parte, a constatação é a mesma: a burguesia é uma classe de corruptos, sem moralidade, sem humanidade.
Na Espanha, a rejeição das elites tomou uma forma mais política. Um movimento amplo de contestação desenvolveu-se, no início, em plena campanha eleitoral, período tradicionalmente calmo no que se refere às lutas. Enquanto todas as mídias e todos os responsáveis políticos focalizavam a atenção sobre o “poder” das urnas, as ruas estavam efervescentes e cheias de assembléias e discussões de todo tipo. Uma ideia estava muito presente: “direita e esquerda, é a mesma merda”. Às vezes deu até para ouvir a palavra de ordem “todo o poder para as assembleias!”.
Mas o que isso significa? Que cresce a ideia por toda a parte no mundo que com todos os governos é efetivamente a “mesma merda” e que não adianta mudar de governo. O que mudaram as eleições “democráticas” na Tunísia, Egito e também na Espanha? Nada! O que a saída de Berlusconi ou de Papandreou mudou na Itália e na Grécia? Nada! Os planos de austeridade são cada vez mais duros e insuportáveis. Eleições ou não, a sociedade é dirigida por uma classe dominante, um minoria ínfima, que mantém seus privilégios sobre nas costas da maioria e a espreme cada vez mais. Na realidade, o que revelam fundamentalmente todos estes movimentos é uma vontade crescente de não mais se deixar manobrar, de tomar seu destino em suas próprias mãos; é a ideia que são as massas que devem organizar a sociedade. Atrás do “todo o poder às assembleias”, há uma aspiração real para construir uma sociedade onde não é mais uma minoria que decide das nossas vidas, mas somos nos que as tomamos em mãos próprias.
Entretanto, uma nova questão é colocada:
Sim, ser dirigidos por uma minoria de privilegiados é insuportável. Sim, cabe a nós tomar nossas vidas em mãos próprias. Mas quem é “nós”? Na resposta dada pelos movimentos atuais, “nós” é “todo o mundo”. “Todo o mundo” deveria dirigir a sociedade atual, isto é o capitalismo, através de uma democracia real. Mas aí aparecem os verdadeiros problemas: a quem pertence o capitalismo senão aos capitalistas? Este sistema não existe e sobrevive justamente através desta exploração feroz e fazendo-a perdurar? Exploração que constitui a própria essência do sistema. A democracia, como existe hoje, é a gestão do mundo por uma elite, uma minoria, há mais de dois séculos através da violência, da expropriação, da guerra. E se a exploração da grande maioria da humanidade por esta minoria perdura é porque esta democracia é o meio ideal encontrado por esta mesma elite para manter seu poder. O capitalismo, ditatorial ou democrático, só pode ser um sistema de exploração.
Vamos até o fim do raciocínio. Imaginamos uma sociedade capitalista dotada de uma democracia perfeita e ideal onde “todo o mundo” decidiria coletivamente tudo. Na Suíça ou em algumas aldeias ditas autogeridas ou no programa político de alguns políticos, encontramos esta noção de “democracia participativa”. E daí, gerir uma sociedade de exploração não significa suprimir esta exploração. Nos anos 1970 muitos operários levaram em frente uma reivindicação de autogestão na qual acreditavam com muita convicção: “Sem mais patrões, nós mesmos produzimos e nos pagamos”. Operários da Lip (uma marca de relógios) na França, como muitos outros, aprenderam a duras penas que a autogestão não acaba com a exploração: acreditaram na possibilidade de poder gerir “coletivamente” e de maneira “igualitária” “sua” empresa. Mas, por conta das leis incontornáveis do capitalismo, na própria lógica do mercado capitalista, chegaram até a aceitar sua auto-dispensa e isso de maneira muito livre e democrática. Eram seus próprios donos e se mandaram para a rua. Assim, dá para perceber que hoje, no capitalismo, a democracia mais próxima da “perfeição” não adiantaria em nada para construir uma nova sociedade. A democracia, no capitalismo, não é um órgão de poder que o proletariado deveria conquistar nem um órgão de abolição do capitalismo. É um modo de gestão do capitalismo e de dominação da burguesia!
Claro, somos cada vez mais numerosos em sonhar numa sociedade onde a humanidade tomaria sua vida em mãos próprias, onde seria dona de suas decisões, que não seria dividida entre exploradores e explorados mas unida e igualitária. Mas a questão fica completamente sem solução se não é colocada esta outra questão: quem pode construir este mundo? Quem pode permitir que amanhã a humanidade tome a sociedade em mãos próprias. Todo o mundo? Não se pode! Pois “todo o mundo” não tem interesse em por fim ao capitalismo. Por exemplo, a grande burguesia lutará obviamente sempre para defender até o fim seu sistema e sua posição dominante sobre a humanidade, mesmo se por isso ela tivesse que ensanguentar o mundo inteiro, inclusive nas “grandes democracias”. E neste “todo o mundo”, tem também os artesãos, os brilhantes, os latifundiários. Em breve, os elementos da pequena burguesia que ou sonha ainda com a ascensão social ou (quando é ameaçada de proletarização) é presa pela nostalgia de um passado idealizado onde ela era única no comando, onde não tinha que prestar conta a ninguém. O fim da propriedade privada não faz parte de seus projetos, muito pelo contrário.
Para se tornar dono da sua própria vida, a humanidade deve sair do capitalismo. Ora, a única força que tem a condição de assumir este projeto é o proletariado. Entre todas as camadas exploradas, as que o capitalismo gerou e as que sobreviveram do passado, é somente o proletariado que pode derrubar o sistema. A classe operária, a classe fundamental que produz, agrupa os assalariados de fábrica e das oficinas, do setor privado como do público, os aposentados e os jovens trabalhadores, os desempregados e os precarizados. No passado, o feudalismo superou a escravidão através de lutas onde os senhores feudais trouxeram uma nova ordem econômica. A burguesia, ao custo de lutas sanguentas, desenvolveu uma nova ordem econômica superior. Em cada ocasião, um sistema de exploração foi suplantado e substituído por outro. Contudo, só o capitalismo desenvolveu bastante riqueza para fazer com que a humanidade não viva mais na penúria, mas sim na abundância. E também criou a classe capaz de ser seu coveiro, a classe produtora das riquezas: o proletariado. Este proletariado constitui a primeira classe na história que é ao mesmo tempo explorada e revolucionária.
Até que enfim, hoje, os próprios explorados podem derrubar o sistema dominante e construir um mundo sem classes e sem fronteiras. Sem fronteiras, pois a classe operária é internacional. Ela sofre em toda a parte a mesma dominação capitalista. Ela tem em toda parte os mesmos interesses. Desde 1848, seu grito de reagrupamento é: “Os proletários não têm pátria. Proletários de todos os países, uni-vos!”. Essa mensagem que não é uma palavra vazia, que não é uma fórmula para fazer bonito e iludir o resto da população, foi carregada por todas as lutas operárias massivas, da comuna de Paris, de 1917, da Polônia 1980, pois essa mensagem expressa a alma profunda do proletariado e a ideia fundamental que seu futuro é ligado ao conjunto da humanidade.
Todos os movimentos do ano passado, os do Oriente Médio, dos indignados, dos "Occupy" reivindicaram-se uns dos outros, dum país a outro, expressando mais uma vez que não há fronteiras pela luta dos explorados e dos oprimidos. Mas estes movimentos de contestação também demonstraram uma grande fraqueza: a força viva dos explorados, a classe operária, não tem ainda consciência dela mesma, de sua existência, de sua força, de sua capacidade de se organizar como classe. Por conta disso, ela ainda está dispersa no “todo o mundo” e iludida pela perspectiva de um "capitalismo mais democrático”, que não é nada mais que uma armadilha ideológica.
Para fazer a revolução internacional triunfar e edificar uma nova sociedade, a nossa classe deve desenvolver sua luta, sua unidade, sua solidariedade e, sobretudo sua consciência de classe. É preciso para isso que ela consiga desenvolver o debate no seu seio, as discussões mais largas, vivas, animadas para desenvolver sua compreensão do mundo, deste sistema, da natureza de seu combate.
Os debates devem ser livres e abertos a todos que querem tentar responder às múltiplas questões colocadas aos explorados: Como desenvolver a luta? Como nos organizar? Como enfrentar a repressão? Mais eles devem ser fechados àqueles que vêm sabotar as discussões de várias maneiras. Na luta revolucionária do proletariado, a maior liberdade existe no seu seio, mas são excluídos do debate os que só têm como interesse manter e defender a exploração capitalista.
O movimento dos indignados e dos "Ocupy" expressou essa característica da vontade de debater, esta efervescência incrível, esta criatividade das massas em ação que caracterizam nossa classe quando luta. Tal fenômeno foi presente, por exemplo, em maio de 68 onde se discutia em todas as esquinas de rua. Mas sua força criadora é hoje diminuída, até paralisada por sua incapacidade em excluir da sua luta e de seus debates aqueles que trabalham com muita dedicação à sobrevida do sistema atual, como a um médico que luta pela vida de um doente em estado terminal. Se quisermos jogar pelo lixo da história palavras como lucro, exploração, repressão e serem por fim os donos das nossas vidas, o caminho a seguir deverá necessariamente se livrar dessas chamadas ilusórias a "democratizar o capitalismo" e de todos os elogiadores de um capitalismo mais humano. Para pôr um fim à exploração, há só uma solução, a revolução, sim, a proletária.As próximas eleições presidenciais na Venezuela, em 7 de outubro, são um momento de máxima tensão entre as facções burguesas do chavismo e da oposição. Tanto estes últimos, agrupados na Mesa da Unidade Democrática (MUD), tendo como candidato Henrique Capriles, como os oficialistas, contando com o candidato perpétuo Hugo Chávez, puseram em funcionamento suas máquinas partidárias, e com elas bilhões de bolívares, para tentar mobilizar e ganhar os votos, principalmente das massas de trabalhadores já exaustos devido aos 13 anos de confrontação política desde o estabelecimento do regime chavista no poder.
A ascensão de Chávez foi o resultado do alto grau de decomposição da burguesia venezuelana, principalmente de suas forças políticas que governaram até sua chegada ao poder em 1999. Graças a sua elevada aceitação popular, vários setores do capital deram seu apoio naquele momento com o objetivo de atacar os altos níveis de corrupção, estabelecer a institucionalidade e, sobretudo, a governabilidade, quer dizer, para tentar melhorar o sistema de opressão e exploração segundo os interesses da nação da burguesia. As forças opositoras, ainda que debilitadas, tomaram várias medidas de força contra o regime, como o golpe de Estado de 2002 e a paralisação petroleira de finais desse ano, que não foram bem sucedidas e que acabaram por fortalecer Chávez no poder, o que se refletiu na sua reeleição em 2006.
Depois de mais de uma década de chavismo, a nova situação está levando os diferentes grupos da burguesia a um conflito aberto para disputar o poder central do Estado. As forças contrárias ao regime se beneficiam da baixa popularidade do chavismo, devido a duas causas principais:
A estratégia do candidato oposicionista, baseada em visitas diárias a distintas cidades e povoados do país (“casa por casa”) busca explorar a negligência social e os fracassos do regime chavista, gerando, segundo algumas pesquisas, uma recuperação de sua candidatura. Sua estratégia de apresentar programas sociais de corte populista similares aos do chavismo e evitar confrontações diretas deu algum resultado. No entanto, o chavismo insiste nas “conquistas” que seu projeto representa para os pobres e se apresenta como o “guarda necessário” para evitar a anarquia do capital venezuelano em seu conjunto.
O chavismo, mesmo com todas as suas debilidades (enfermidade de Chávez, perda de governos regionais, confrontações de interesses em suas fileiras, etc.) não visualiza sua saída do poder e nos últimos meses se orienta a não deixar ao azar nenhum detalhe que possa significar alguma vantagem para a oposição: inscrição forçada de empregados públicos no oficialista Partido Socialista Unido de Venezuela, obstáculos aos votantes no estrangeiro, especialmente em Miami e Espanha, neutralização de partidos que apoiam a oposição (PODEMOS, PPT, COPEI) através de sentenças do Tribunal Superior de Justiça, etc., além de construir uma hegemonia de comunicação que lhe dá uma vantagem absoluta quanto à propaganda eleitoral.
Chávez também considera outros cenários no caso de perder as eleições. Desde já anuncia que a oposição tem preparado um plano para denunciar uma fraude eleitoral. Nestas estratégias se apoia como sempre nos poderes do Estado, mas particularmente no Exército, que abandonou sua posição de “força profissional a serviço da nação, não beligerante e apolítica”. Nesse sentido, são frequentes as ameaças de Chávez e seu séquito contra os opositores.
O oficialismo acusa a oposição de não querer declarar, desde agora, que aceitará o ditame do Conselho Nacional Eleitoral (CNE); por isso, dizem que estão em alerta diante da possibilidade dos opositores poderem causar um estado de comoção nacional quando o CNE anunciar o triunfo de Chávez. Por sua parte, a oposição coloca que não pode assinar um “cheque em branco” a um árbitro que é parcial, já que não sanciona as faltas do oficialismo às regras que o mesmo árbitro impôs, embora o faça com a oposição. Em suma, trata-se pura e claramente de um enfrentamento interburguês onde cada bando usa as artimanhas próprias de sua classe para somar a maior parte de forças possíveis a suas candidaturas.
O proletariado venezuelano deve ficar alerta para não ser vítima desta “batalha final” protagonizada pelas forças do capital nacional e para a qual vão tentar arrastá-lo.
O chavismo conta com armas ideológicas muito poderosas para levar a um enfrentamento “os pobres” e “os excluídos”, que têm a esperança que Chávez cumpra com suas promessas, sobretudo as das Missões, “contra a burguesia depredadora, que quer voltar ao passado”. Mas se prepara para se enfrentar também com as armas se necessário, e para isso conta com a Milícia Bolivariana e também com suas forças de choque que agrupam vários “coletivos”, tanto em Caracas como no interior do país, armados pelo próprio Estado.
As forças de oposição, por sua vez, ainda que não tornem pública sua estratégia de defesa do voto em caso de situações de força, não vão ficar de braços cruzados. Dentro das forças opositoras encontram-se partidos da velha guarda como o social-democrata Ação Democrática, que tem décadas de experiência na organização de forças de choque; em suas fileiras há também organizações de esquerda e esquerdistas, que em suas origens apoiaram ao chavismo, que conhecem muito bem os métodos de confrontação.
Nós trabalhadores devemos ter presente que não há possibilidade de superar nossa situação de precariedade e exploração com uma mudança de governo. A crise do capitalismo está presente e ganhe quem ganhar, seja Chávez ou Capriles, as medidas de austeridade e a precariedade vão piorar.
Não podemos cair na armadilha ideológica que nos colocam quando nos dizem que se trata de uma confrontação entre “comunismo” e democracia, ou entre “povo” e “burguesia”. Chávez e Capriles defendem dois programas capitalistas de Estado, que se baseiam na exploração da força de trabalho do proletariado venezuelano.
A briga eleitoral é somente um momento na confrontação entre as facções do capital nacional. O proletariado deve evitar cair nas batalhas entre facções da burguesia, romper com as ideologias democratistas, tirar as lições de suas lutas, continuar seu esforço por encontrar sua identidade de classe, sua unidade e sua solidariedade, para assim poder afirmar-se em seu próprio terreno de classe, única alternativa para começar a se defender dos ataques da burguesia contra suas condições de vida.
Internacionalismo Venezuela, agosto de 2012.
No artigo editorial da Revista Internacional nº 146 dávamos conta da luta desenvolvida na Espanha.[1] Pouco depois, seu exemplo contagiou a Grécia e Israel.[2] Neste artigo nos propomos tirar lições destes movimentos e ver que perspectivas colocam diante de uma situação de quebra do capitalismo e de ataques implacáveis ao proletariado e à grande maioria da população mundial.
Para compreendê-los é indispensável rejeitar categoricamente o método predominante na sociedade atual, profundamente imediatista e empirista, no qual se vê cada acontecimento em si mesmo, desvinculado tanto do passado como do futuro e limitado ao país onde tem lugar. Este método fotográfico é um reflexo da degeneração ideológica da classe capitalista, pois: "(...) o único projeto que esta classe é capaz de propor à sociedade é o de resistir dia a dia, golpe a golpe e sem esperança de êxito, ao afundamento do modo de produção capitalista". [3]
Uma fotografia nos mostrará um protagonista feliz que exibe um amplo sorriso, mas ele pode ocultar tanto a careta de desgosto que tinha um segundo antes ou o rito de preocupação um segundo depois. Não podemos ver os movimentos sociais com esse enfoque. É preciso vê-los à luz do passado que os fez amadurecer e do futuro para o qual apontam, é preciso concebê-los em escala mundial e não dentro do poço nacional onde ocorrem; e, sobretudo, deve-se compreender sua dinâmica, não no que são num momento dado, senão no que podem vir a ser, dadas as tendências, forças e perspectivas que carregam consigo e que virão à tona, mais cedo ou mais tarde.
No começo do século XXI escrevemos uma série de dois artigos intitulada Por que o proletariado ainda não derrubou o capitalismo? [4]. Nela recordávamos que a revolução comunista não é uma fatalidade, sua realização necessita da união de dois fatores, o objetivo e o subjetivo. O objetivo é proporcionado pela decadência do capitalismo [5] e pelo "desenvolvimento de uma crise aberta da sociedade burguesa, prova evidente de que as relações de produção capitalista devem ser substituídas por outras relações de produção" [6]. O subjetivo está baseado na ação coletiva e consciente do proletariado.
O artigo reconhece que o proletariado falhou nas convocações que a história lhe fez. Assim, diante da primeira – a Primeira Guerra Mundial – a tentativa de resposta – a onda revolucionária mundial de 1917-23 – foi finalmente esmagada; diante da segunda – a Depressão de 1929 – esteve totalmente ausente como classe autônoma; diante da terceira – a Segunda Guerra Mundial – não apenas esteve ausente, mas acreditou que a democracia e o estado do bem-estar – mitos manipulados pelos vencedores – eram uma vitória. Depois, com a volta da crise no final dos anos 1960, "(...) não falhou à convocação, mas também pudemos medir a quantidade de obstáculos que teve diante de si e que frearam sua progressão no caminho em direção à revolução proletária" [7]. Este freio pôde ser comprovado diante de um novo acontecimento de grande envergadura – em 1989, a queda dos regimes falsamente apresentados como "comunistas" – frente à qual não apenas não foi um fator ativo, senão que, além disso, foi vítima de uma formidável campanha anticomunista que o fez retroceder, tanto em sua consciência quanto em sua combatividade.
A partir de 2007 abre-se o que poderíamos chamar de "a quinta convocação da história". A crise que se manifesta mais abertamente mostra o fracasso, praticamente definitivo, das políticas que o capitalismo havia lançado para acompanhar a emergência de sua crise econômica insolúvel. O verão de 2011 colocou em evidência que as enormes somas empregadas não estancam a hemorragia e o capitalismo está escorregando pela ladeira da Grande Depressão, de uma gravidade muito superior à de 1929.[8]
Mas num primeiro momento, apesar dos golpes que chovem sobre ele, o proletariado parece igualmente ausente. Previmos esta reação em nosso XVIII Congresso Internacional (2009): "em um primeiro momento, serão provavelmente combates desesperados e relativamente isolados, embora se beneficiem de uma simpatia real de outros setores da classe trabalhadora. Por isso, se, no período vindouro não assistirmos a uma resposta de envergadura diante dos ataques, não deveremos por isso considerar que a classe há renunciado em lutar pela defesa dos seus interesses. Em uma segunda etapa, quando será capaz de resistir às chantagens da burguesia, quando se imporá a ideia de que só a luta unida e solidária pode frear a brutalidade dos ataques da classe dominante, sobretudo quando esta vai tentar fazer com que os trabalhadores paguem os colossais déficits orçamentários que estão se acumulando por causa dos planos de salvação dos bancos e retomada da economia, será então que combates operários de grande amplitude poderão desenvolver-se melhor" [9].
No entanto, os movimentos atuais na Espanha, Israel e Grécia mostram que o proletariado está começando a assumir essa "quinta convocação da história", a preparar-se para ela, a dotar-se dos meios para vencer! [10]
Na série antes citada, dizíamos que dois dos pilares nos quais o capitalismo – ao menos nos principais países – apoiou-se para manter subjugado o proletariado eram a democracia e o que se costuma chamar de "Estado do bem-estar". Contudo, o que revelam os três movimentos é que esses pilares começam a ser questionados – ainda que de forma muito confusa – por seus participantes, o que vai ser alimentado pela evolução catastrófica da crise.
Nos três movimentos destacou-se a raiva contra os políticos e, em geral, contra a democracia. Também se manifestou a indignação porque os ricos e seu pessoal político estão cada vez mais ricos e mais corruptos; foi rechaçado que a grande maioria seja tomada por uma mercadoria a serviço dos lucros escandalosos da minoria exploradora, mercadoria que se atira à miséria quando os "mercados não vão bem", enfim, foram denunciados os programas de austeridade brutais dos quais ninguém fala nas campanhas eleitorais e, no entanto, são a principal ocupação daqueles que ganham as eleições.
É evidente que esses sentimentos não são nenhuma novidade: falar mal dos políticos é, por exemplo, algo que vem se dando de forma muito generalizada nos últimos 30 anos. Igualmente está claro que esses sentimentos podem ser desviados para becos sem saída como tentaram insistentemente as forças burguesas que operam nos três movimentos: em direção de uma democracia "mais participativa" em direção de uma "regeneração da democracia" etc.
Mas o que resulta uma novidade significativa é que esses temas que, queira ou não, apontam para um questionamento da democracia, do Estado burguês e seus aparelhos de dominação, são objeto de debates em Assembleias Massivas. Não é o mesmo ruminar o cansaço da democracia de forma fragmentada, passiva e resignada, que abordar a questão coletivamente em debates nas assembleias. Mais além das falsas respostas, das confusões, dos becos sem saída, que indubitavelmente circulam nelas e que devem ser debatidos com a maior energia e paciência, o importante é que o problema se coloque publicamente porque leva em germe uma evidente politização de grandes massas e, de outro lado, encerra o princípio de questionar a democracia, que tantos serviços prestou ao capitalismo ao longo do último século.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o capitalismo instaurou o denominado "Estado do bem-estar" [11]. Este foi um dos principais pilares da dominação capitalista nos últimos 70 anos. Produziu a ilusão de que o capitalismo teria superado seus aspectos mais brutais: o Estado-providência garantiria uma segurança diante do desemprego e da aposentadoria e proporcionaria, além disso, saúde e educação gratuitas, moradias sociais, etc..
Esse "Estado Social" – complemento da democracia política – já sofreu amputações significativas nos últimos 25 anos, nos quais a situação atual se encaminha em direção ao seu puro e simples desaparecimento. Na Grécia, na Espanha e em Israel (neste último país mais polarizado sobre o grave problema da escassez de moradia para os jovens), a inquietude por essa eliminação de mínimos sociais esteve no centro das mobilizações. É claro que se tentou desviá-las em direção a "reformas" da constituição, à obtenção de leis que "garantam" tais benefícios, etc. Mas a onda de inquietude crescente ajudará a questionar esses diques com que se pretende controlar os trabalhadores.
O câncer do ceticismo domina a ideologia atual e infecta igualmente o proletariado e suas próprias minorias revolucionárias. Como já dissemos mais acima, o proletariado faltou a todas as convocações que durante quase um século de decadência capitalista a história lhe fez. Isto provoca em suas fileiras uma dúvida angustiante sobre sua própria identidade e capacidades como classe a ponto de em muitos ambientes combativos se chegar até a rejeitar o termo "classe operária"! [12] Mas este ceticismo é ainda mais forte porque é alimentado pela decomposição do capitalismo [13]: a desesperança, a ausência de todo projeto concreto de futuro, favorecem a incredulidade e a desconfiança em relação a toda perspectiva de ação coletiva.
Os movimentos da Espanha, Israel e Grécia – com todas as debilidades que arrastam – começam a ministrar um remédio eficaz contra o câncer do ceticismo. Não unicamente em si mesmos, mas pelo que significam em uma continuidade de lutas e esforços de consciência que vêm dando no proletariado mundial desde 2003! [14] Não são uma tormenta que explode repentinamente num céu azul, mas a demonstração de que as pequenas nuvens, chuvas finas, tímidos relâmpagos dos últimos 8 anos se condensaram e alcançaram uma nova qualidade,.
Desde 2003, o proletariado começa a se recuperar do longo retrocesso da combatividade e da consciência induzidos pelos acontecimentos de 1989. Este processo de recuperação segue num ritmo lento, contraditório e muito sinuoso. Manifesta-se em:
Em 2006 surgem dois movimentos – na França a luta dos estudantes contra o Contrato de Primeiro Emprego e na Espanha a greve massiva de Vigo [15] que, apesar da distância, da diferença de condição ou idade, apresentam características similares: Assembleias Gerais, extensão a outras camadas operárias, massividade dos protestos... É como um primeiro abalo que, na aparência, não tem continuidade. [16]
Um ano depois estoura uma embrionária greve de massas no Egito, a partir de uma grande fábrica têxtil.[17] No começo de 2008 têm lugar lutas isoladas, mas coincidentes em um bom número de países, tanto da periferia como do centro do capitalismo. Outro elemento destacável é a proliferação de revoltas de fome em 33 países no primeiro trimestre de 2008, que no caso do Egito são apoiadas e em parte dirigidas pelo proletariado. No final de 2008, estoura a revolta da juventude proletária da Grécia, apoiada por minorias de operários. Em 2009 vemos germes de atitudes internacionalistas em Lindsay (Grã-Bretanha) e uma explosiva greve generalizada no sul da China (junho de 2009).
Depois do retrocesso inicial do proletariado pelo primeiro impacto da crise, como assinalamos antes, ele começou a lutar de forma muito mais decidida: na França, no outono de 2010, ocorrem protestos massivos contra a reforma das pensões com o aparecimento de tentativas de Assembleias interprofissionais; a juventude britânica se rebela em dezembro de 2010 contra o brutal aumento das taxas escolares. 2011 mostra as grandes revoltas sociais no Egito e na Tunísia. Parecia que o proletariado estava tomando impulso para uma nova explosão: o movimento de indignados da Espanha e depois na Grécia e Israel.
Estes três movimentos não podem ser compreendidos sem tudo o que acabamos de analisar. São como um primeiro quebra-cabeças que une as pequenas peças adquiridas ao longo de 8 anos. Mas a força do ceticismo é grande e muitos se perguntam: como qualificá-los de movimentos de classe se não se apresentam como tais e não partem, nem por regra geral suscitam greves ou assembleias nos centros de trabalho?
Na Espanha, na Grécia e em Israel o movimento chama a si mesmo de "indignados", conceito válido para a classe operária [18], mas que não revela imediatamente tudo aquilo que é portador. Sua aparência é a de uma revolta social devida essencialmente a dois fatores:
A perda da identidade como classe
O proletariado passou por um longo retrocesso que lhe infligiu um dano significativo na sua confiança em si mesmo e na consciência de sua própria identidade: "Após a queda do bloco do Leste e dos supostos regimes "socialistas", as campanhas ensurdecedoras sobre "o fim do comunismo", quando não "da luta de classes", deram um golpe brutal na consciência e na combatividade da classe trabalhadora. O proletariado sofreu então um profundo retrocesso em ambos os planos, que se propagou por mais de dez anos. (...) Por outro lado, a burguesia conseguiu fazer nascer entre a classe operária um forte sentimento de impotência devido à incapacidade dela desenvolver lutas massivas". [19] Isso explica em parte porque a participação do proletariado como classe não foi dominante no movimento de indignados, no entanto ele esteve presente através da participação de indivíduos operários (assalariados, grevistas, aposentados, estudantes...) que trataram de esclarecer, de se implicar de acordo com seus instintos, mas que carecem da força, da coesão, da clarividência que proporciona o assumir-se coletivamente como classe.
Essa perda de identidade faz que o programa, a teoria, as tradições, os métodos do proletariado, não sejam reconhecidos como próprios pela imensa maioria dos operários. Por isso, a linguagem, as formas de ação, até os símbolos que aparecem no movimento de indignados bebem de outras fontes. Isto significa um lastro perigoso que deve ser combatido pacientemente para que se produza uma reapropriação crítica de todo o acervo teórico, de experiência, das tradições, que o movimento operário acumulou ao longo de dois séculos.
A presença de camadas sociais não proletárias
Entre os indignados há uma forte presença de camadas sociais não proletárias, em particular uma classe média em claro processo de proletarização. Com relação a Israel, nosso artigo sublinhava: "Outro elemento é o de etiquetá-los como movimento de "classe média" para minimizar sua importância. É claro que, como ocorreu em outros lugares, observa-se uma ampla revolta social que pode expressar a insatisfação de diferentes camadas da sociedade, do pequeno empresário ao operário, todos afetados pela crise mundial, a crescente separação entre ricos e pobres, e, num país como Israel, a piora das condições de vida pela demanda insaciável da economia de guerra. Mas "classe média" converteu-se em um termo abstrato, que pode se referir a qualquer um com estudos ou um emprego, e em Israel, no norte da África, Espanha ou Grécia, crescentes setores de jovens que estudaram se veem empurrados para as fileiras do proletariado, trabalhando em empregos precários, se é que encontram trabalho onde qualquer um pode ser contratado". [20]
Se o movimento parece ser vago e indefinido, isso não nega seu caráter de classe, sobretudo se vemos as coisas em sua dinâmica, na perspectiva de futuro, como apreciam os companheiros do TPTG (Ta Paidia Tis Galarias) a respeito do movimento na Grécia: "O que todo o espectro político encontra de inquietante neste movimento assembleísta é que a ira e a indignação do proletariado de base (e das camadas pequeno-burguesas) já não se expressa através dos canais de mediação dos partidos políticos e dos sindicatos. Portanto, não é tão controlável, e é potencialmente perigoso para o sistema representativo político e sindical em geral" [21].
A presença do proletariado não reside em que se constitua a força dirigente do movimento, ou que a mobilização desde os centros de trabalho constitua seu eixo, mas em uma dinâmica de busca, de clareza, de preparação do terreno social, de reconhecimento do combate que se apresenta. Isto é o que marca sua importância mesmo que se saiba que ainda é um pequeno passo, extremamente frágil. Com relação à Grécia, os companheiros do TPTG falam que o movimento "(...) constitui uma expressão da crise das relações de classe e da política em geral. Nenhuma outra luta se expressou de uma maneira mais ambivalente e explosiva nas últimas décadas" [22]. Com relação a Israel, um jornalista assinala – em sua linguagem – "não foi a opressão o que manteve a ordem social em Israel, ao menos no que diz respeito à comunidade judaica. Foi a doutrinação – a existência de uma ideologia dominante, para usar um termo apreciado pelos teóricos críticos. E foi esta ordem cultural que foi abalada nestes protestos. Pela primeira vez uma parte importante da classe média judia – é muito cedo para avaliar seu tamanho – reconheceu que seu problema não era em relação a outros israelitas, ou aos árabes, ou a um político concreto, mas com toda a ordem social, com todo o sistema. É neste sentido que se trata de um acontecimento único na história de Israel" [23].
Sob essa ótica, podemos compreender os traços destas lutas que são característicos e que futuras lutas poderão retomar com espírito crítico e desenvolver a um nível muito mais claro:
Não pretendemos glorificar estes movimentos. Nada mais alheio ao método marxista que fazer de uma determinada luta – por mais importante e rica em lições que seja – um modelo definitivo, acabado e monolítico que simplesmente haveria que seguir cegamente. Olhando lucidamente estes movimentos, compreendemos suas debilidades e problemas.
A presença de uma "ala democrática"
Esta empurra o movimento para a consecução de uma "verdadeira democracia". Esta postura está representada por várias correntes políticas, algumas de direita, como acontece na Grécia. Está claro que os meios de comunicação e os políticos se apoiam nela para fazer com que todo o movimento se identifique com ela.
Nós, revolucionários, temos que combater energicamente as mistificações, as falsas medidas, os argumentos falaciosos, desta postura. No entanto, por que, apesar de tantos anos de enganos, armadilhas e decepções com a democracia, existe ainda uma forte propensão a deixar-se enganar pelos cantos da sereia? Podemos apontar três causas:
Mas haveria uma causa mais profunda sobre a que é necessário chamar a atenção. Em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, Marx constata que "as revoluções proletárias (...) recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos". [27] Hoje, os acontecimentos estão pondo em evidência a quebra do capitalismo, a necessidade de destruí-lo e construir uma nova sociedade. Isto, para um proletariado que duvida de suas próprias capacidades, que não recobrou sua identidade, leva-o – e o levará por todo um tempo – a agarrar-se a pregos ardentes, a falsas medidas de "reforma" e "democratização", ainda que duvidando delas. Tudo isso, indiscutivelmente, proporciona uma margem de manobra para a burguesia, que lhe permite semear a divisão e a desmoralização e, em consequência, dificulta precisamente a recuperação dessa confiança e dessa identidade de classe.
O veneno do apoliticismo
Trata-se de uma velha debilidade do proletariado que se arrasta desde 1968 e que tem sua raiz na enorme decepção e no profundo ceticismo que produziram a contrarrevolução stalinista e social-democrata e que induz à tendência de crer que toda opção política, incluída a que se reivindica do proletariado, é um vil engano, conteria em seu núcleo o verme da traição e da opressão. Isto é explorado pelas forças burguesas que atuam dentro do movimento para, ocultando sua própria identidade e impondo a farsa de que "intervêm como cidadãos livres", controlar as Assembleias e sabotá-las a partir de dentro. É o que assinalam com clareza os companheiros de TPTG: "No começo havia um espírito comunitário nas primeiras tentativas de auto-organizar a ocupação da praça e, oficialmente, não se tolerava os partidos políticos. No entanto, os esquerdistas e especialmente os da SYRIZA (Coalizão da Esquerda Radical) rapidamente se envolveram na assembleia de Sintagma e tomaram importantes posições no grupo que se formou para gerir a ocupação da praça. Mais concretamente, meteram-se no grupo de ‘secretaria’ e no responsável pela ‘comunicação’. Estes dois grupos são os mais importantes porque organizam a agenda das assembleias, assim como o fluir da discussão. É preciso saber que esta gente não declara abertamente sua filiação política e se apresentam como ‘indivíduos’". [28]
O perigo do nacionalismo
Este está mais presente na Grécia e em Israel. Como denunciam os companheiros do TPTG: "O nacionalismo (sobretudo em sua forma populista) é dominante e é favorecido tanto pelos vários grupos de extrema direita, como pelos partidos de esquerda e de esquerdistas. Inclusive para muitos proletários ou pequeno-burgueses golpeados pela crise que não estão filiados a partidos políticos, a identidade nacional se apresenta como o último refúgio imaginário quando tudo vem abaixo rapidamente. Atrás dos lemas contra o ‘Governo vendido e estrangeiro’ ou pela ‘salvação do país’, pela ‘soberania nacional’ e por uma ‘nova constituição’ subjaz um profundo medo e alienação para a qual a ‘comunidade nacional’ se apresenta como uma solução unificadora mágica".
A reflexão dos companheiros é tão certeira como profunda. A perda de identidade e a falta de confiança do proletariado em suas próprias forças, o processo lento que segue a luta no resto do mundo, favorece esse "agarrar-se à comunidade nacional" como refúgio utópico diante de um mundo inóspito e cheio de incertezas.
Assim, por exemplo, as consequências dos cortes na saúde e educação, dado o problema real de que tais serviços são cada vez piores, são utilizados para enquadrar as lutas nos cárceres nacionalistas de reclamar uma "boa educação" porque isso nos faria competitivos no mercado mundial e uma "saúde a serviço de todos os cidadãos".
O medo e a dificuldade para assumir a confrontação de classe
A ameaça angustiante de desemprego, a precariedade massiva, a fragmentação crescente dos empregados – divididos inclusive no próprio centro de trabalho em uma inextrincável rede de subcontratação numa incrível variedade de modalidades de emprego – exercem um poderoso efeito intimidatório e tornam muito difícil o reagrupamento dos trabalhadores para a luta. Esta situação não pode ser superada nem com chamamentos voluntaristas para a mobilização nem com admoestações aos trabalhadores por sua suposta "comodidade" ou "covardia".
Isso faz que a passagem a uma mobilização massiva de desempregados, precarizados, dos centros de trabalho e estudo, resulte muito mais difícil do que pudesse parecer à primeira vista, provocando uma vacilação, uma dúvida e um agarrar-se a "assembleias" que cada vez são mais minoritárias e cuja "unidade" favorece às forças burguesas que operam dentro delas. Isso dá uma margem de manobra à burguesia para preparar seus golpes baixos contra as Assembleias Gerais. É o que denunciam certeiramente os companheiros do TPTG: "A manipulação da principal assembleia na Praça Sintagma (há outras quantas em vários bairros de Atenas e cidades gregas), por membros não declarados de partidos e organizações de esquerdas é evidente e é um obstáculo real a qualquer direção de classe do movimento. No entanto, devido à profunda crise de legitimação do sistema político de representação em geral, eles também têm que ocultar sua identidade política e manter um equilíbrio entre um discurso geral e abstrato sobre a "autodeterminação", a "democracia direta", a "ação coletiva", o "antirracismo", "a mudança social", etc. de um lado, e o nacionalismo extremo e o comportamento de valentões de alguns indivíduos de extrema direita que participam em grupos da praça". [29]
É evidente que "para que a humanidade possa viver, o capitalismo deve morrer" [30], mas o proletariado está ainda muito longe de alcançar a capacidade para fazê-lo. O movimento de indignados põe uma primeira pedra.
Na série mencionada no princípio, dizíamos: "(...) uma das razões pelas quais não se realizaram as previsões dos revolucionários sobre o advento da revolução foi que subestimaram a força da classe dirigente, especialmente sua inteligência política" [31]. Esta capacidade da burguesia para empregar sua inteligência política contra as lutas segue mais evidente que nunca! Assim, por exemplo, os movimentos de indignados nos três países foram completamente silenciados nos demais ou foi dada uma versão light sobre eles de "renovação democrática". Mas, igualmente, a burguesia britânica foi capaz de aproveitar o descontentamento para canalizá-lo em direção a uma revolta niilista que lhe serviu de álibi para reforçar a repressão e intimidar qualquer resposta de classe. [32]
Os movimentos de indignados puseram uma primeira pedra no sentido de que deram os primeiros passos para que o proletariado recupere a confiança em si mesmo e sua própria identidade como classe. Mas isto está ainda muito longe, pois se necessita para isso do desenvolvimento de lutas massivas, desde um terreno diretamente proletário, que coloquem em evidência que a classe operária é capaz de oferecer uma alternativa revolucionária frente ao desastre do capitalismo e especialmente frente às camadas sociais não exploradoras.
Não sabemos como se chegará a essa perspectiva e devemos estar atentos às capacidades e iniciativas das massas, como ocorreu no caso do movimento 15 M na Espanha. O que sabemos é que para ir em direção a ela, um fator essencial será a extensão internacional das lutas.
Os três movimentos levantaram o germe de uma consciência internacionalista: no movimento de indignados da Espanha falava-se com frequência que sua fonte de inspiração era a Praça Tahrir no Egito [33], ao mesmo tempo em que buscou uma extensão internacional de seu combate – além de se fazer em meio a importantes confusões. Por sua parte, os movimentos de Israel e Grécia declararam de forma explícita que seguiam o exemplo dos indignados da Espanha. Em Israel, os manifestantes portavam cartazes que diziam que "Netanyahu, Mubarak e El Assad são a mesma coisa", o que mostra não somente um princípio de consciência de quem é o inimigo, mas também uma compreensão ao menos inicial de que sua luta tem lugar junto com os explorados desses países e não contra eles no marco da defesa nacional [34]. "Em Jaffa, dezenas de manifestantes árabes e judeus levaram cartazes em hebreu e árabe que diziam ‘Árabes e judeus queremos casas a preços acessíveis’ e ‘Jaffa não é somente para os ricos’ (...) estiveram produzindo protestos de judeus e árabes contra os despejos destes últimos do bairro Sheikh Jarrah. Em Tel Aviv, estabeleceram-se contatos com residentes em campos de refugiados nos territórios ocupados, que visitaram as tendas do movimento e debateram com os manifestantes" [35]. Os movimentos no Egito e na Tunísia em um campo, e de Israel no outro campo imperialista, mudam os dados da situação em uma zona que é provavelmente o principal centro de confrontação imperialista do mundo, como diz nosso artigo: "A atual onda internacional de revoltas contra a austeridade capitalista abre as portas a outra solução: a solidariedade de todos os explorados acima das divisões nacionais ou religiosas; luta de classe em todos os países com o fim último de uma revolução mundial que seja a negação de qualquer fronteira nacional e do Estado. Faz um ou dois anos, este fim aparecia como algo utópico no melhor dos casos. Hoje, cada vez mais gente vê uma revolução global como uma alternativa realista a uma ordem capitalista que está desmoronando" [36].
Os três movimentos contribuíram para a força de uma ala proletária: tanto na Grécia como na Espanha, mas também em Israel [37], "uma ala proletária" bastante ampla com relação ao passado vai emergindo em busca da auto-organização, a luta intransigente a partir de posições de classe e do combate pela destruição do capitalismo. Os problemas, mas também as potencialidades e perspectivas desta ampla minoria, não podem ser abordadas com consistência no marco deste artigo. O que é evidente é que se constitui uma ferramenta vital que o proletariado produziu para a preparação dos combates futuros.
[1] Ver As mobilizações dos indignados na Espanha e suas repercussões no mundo: um movimento carregado de futuro </content/313/mobilizacoes-dos-indignados-na-espanha-e-suas-repercussoes-no-mundo-um-movimento [115]>. Na medida em que no referido artigo analisávamos em detalhe esta experiência, não repetiremos o que ali foi desenvolvido.
[2] Ver os artigos sobre estes movimentos em https://es.internationalism.org/node/3185 [191] e "Notas preliminares para un análisis del “Movimiento de asambleas populares” (TPTG, Grecia) [138]".
[3] "Revolução Comunista ou destruição da humanidade" Manifesto do IX Congresso da CCI, 1991.
[5] Para debater este conceito crucial de decadência do capitalismo, ver entre muitos outros: "Decadencia del capitalismo (X) – Para los revolucionarios, la Gran Depresión confirma la caducidad del capitalismo [194]".
[6] Revista Internacional, nº 103, op. cit.
[7] Revista Internacional, nº 104, op. cit.
[8] Ver https://es.internationalism.org/node/3184 [195]
[9] Ver Resolução sobre a situação internacional (XVIIIe congresso da CCI) em <https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Resolucao_sobre_a_situacao_internacional_XVIIIe_congresso_da_CCI [163]>
[10] "Privado de todo ponto de apoio econômico no seio da sociedade capitalista, sua única e verdadeira força, além de seu número e organização, é sua capacidade para tomar consciência plena da natureza, dos objetivos e dos meios de seu combate." Revista Internacional nº 103, op. cit.
[11] "As nacionalizações, assim como algumas medidas ‘sociais’ (como a maior carga do Estado no sistema de saúde) eram medidas perfeitamente capitalistas (estas) tinham o maior interesse em dispor de operários em boa saúde (...). Essas medidas capitalistas serão apresentadas como vitórias operárias." Revista Internacional nº 104, op. cit.
[12] Aqui não podemos desenvolver as razões pelas quais a classe operária é a classe revolucionária da sociedade e por que seu combate representa o futuro para todas as demais camadas sociais não exploradoras, uma questão muito candente, como logo veremos, no movimento de indignados. Remetemos como material para o debate a série de dois artigos da Revista Internacional nº 73 [22] e 74 [23], "¿Quién podrá cambiar el mundo?".
[13] Ver Revista Internacional nº 107, "Teses sobre a decomposição [130]".
[14] Ver os diferentes artigos de análise da luta de classe em nossa Revista Internacional.
[15] Ver https://es.internationalism.org/rint/2006/125_tesis [196] e "Huelga del metal de Vigo: Los métodos proletarios de lucha [135]"
[16] A burguesia esconde cuidadosamente estas experiências: as revoltas de rua niilistas de novembro de 2005 na França são muito mais conhecidas – inclusive nos ambientes politizados – que o movimento consciente dos estudantes 5 meses depois.
[17] Ver "Egipto, el germen de la huelga de masas [152]".
[18] A indignação se distingue, por um lado, da resignação e, por outro lado, do ódio. Diante da dinâmica insuportável do capitalismo, a resignação expressa um sentimento passivo – tende-se a rechaçá-lo, mas ao mesmo tempo não se vê como enfrentá-lo. Por sua vez, o ódio expressa um sentimento ativo – a rejeição se transforma em combate – mas trata-se de um combate cego, sem perspectiva e sem uma reflexão para elaborar um projeto alternativo, senão que é meramente destrutivo, abraça uma soma de respostas individuais, mas não gera nada coletivo. A indignação expressa a transformação ativa da rejeição acompanhada pela tentativa de lutar de maneira consciente, buscando a elaboração concomitante de uma alternativa, é, pois, coletiva e construtiva. " A indignação leva à necessidade de uma regeneração moral, de uma mudança cultural, as propostas que se fazem –inclusive embora pareçam ingênuas ou peregrinas – manifestam uma ânsia, ainda tímida e confusa, de "querer viver de outra maneira"("Da Praça Tahrir à Puerta del Sol em < https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/Da_Praca_Tahrir_a_Puerta_... [197] >)
[19] Ver Resolução sobre a situação internacional (XVIIIe congresso da CCI) em <https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Resolucao_sobre_a_situacao_internacional_XVIIIe_congresso_da_CCI [163]>
[20] Protestas en Israel: “¡Mubarak, Assad, Netanyahu son lo mismo!” Ver: https://es.internationalism.org/node/3185 [191]
[21] Ver: "Notas preliminares para un análisis del “Movimiento de asambleas populares” (TPTG, Grecia) [138]".
[23] Protestas en Israel: “¡Mubarak, Assad, Netanyahu son lo mismo!” Ver: https://es.internationalism.org/node/3185 [191]
[24] Ver: "Notas preliminares para un análisis del “Movimiento de asambleas populares” (TPTG, Grecia) [138]".
[25] Teses sobre o movimento dos estudantes da primavera 2006 na França. <https://pt.internationalism.org/icconline/2006_estudiantes_franca [108]>
[26] Ver O que há por trás da campanha contra os violentos pelos incidentes de Barcelona? https://es.internationalism.org/node/3130 [198]
[28] Ver: "Notas preliminares para un análisis del “Movimiento de asambleas populares” (TPTG, Grecia) [138]".
[29] Ibid.
[30] Slogan da Terceira Internacional.
[31] Revista Internacional nº 104.
[32] Os motins na Inglaterra e a perspectiva sem futuro do capitalismo. Ver: <https://pt.internationalism.org/ICConline/2011/Os_motins_na_Inglaterra_e_a_perspectiva_sem_futuro_do_capitalismo [200]>
[33] A Praça da Catalunha em Barcelona foi rebatizada pela Assembleia de "Praça Tahrir", o que além de mostrar uma vontade internacionalista, foi uma bofetada no nacionalismo catalão, que considera esta Praça seu símbolo mais apreciado.
[34] Citado por nosso artigo sobre a luta em Israel: "Um deles ao ser perguntado se os protestos estavam inspirados pelos acontecimentos nos países árabes, respondeu: ‘Há muita influência do que se passou na Praça Tahrir...Há muita com certeza. Quando a gente compreende que tem o poder, que podemos nos organizar a nós mesmos, que não necessitamos que o governo nos diga o que tem que ser feito, podemos começar a dizer ao governo o que queremos.’"
[35] Ibid.
[36] Ibid.
[37] Neste movimento "Alguns alertaram abertamente do perigo de que o governo possa provocar enfrentamentos armados ou inclusive uma nova guerra para restaurar a ‘unidade nacional’ e dividir o movimento" (ibid.), o que revela – mesmo que seja de forma ainda implícita – um distanciamento da política imperialista do Estado israelita de "união nacional" a serviço da economia de guerra e da guerra.
O século XXI vai começar. Que contribuição trará à humanidade? No número 100 da nossa Revista internacional, pouco depois das celebrações realizadas pela burguesia pela chegada do ano 2000, escrevíamos: "Assim acaba o século, o século mais bárbaro e trágico da história: na decomposição da sociedade. Se a burguesia conseguiu celebrar com fartura o ano 2000, é pouco provável que possa fazer o mesmo no ano 2100. Seja porque terá sido derrubada pelo proletariado ou a sociedade terá retrocedido à Idade da Pedra". O que está em jogo, pode claramente se colocar nesses termos: o que será o século XXI depende inteiramente do proletariado. Ou é capaz de fazer a revolução, ou chegará à destruição de toda civilização e da humanidade. Apesar dos belos discursos humanistas e das declarações eufóricas que nos diz cada dia, a burguesia não fará nada para evitar tão sombria saída. De modo algum se trata de uma questão de boa ou má vontade da sua parte ou da parte de seus governos. São as contradições insuperáveis do seu sistema social, o capitalismo, que conduzem de forma inevitável à sua perdição. Desde há uma década, tivemos que suportar cotidianamente as campanhas sobre o "fim do comunismo", ou seja, da classe operária. Por isso é necessário reafirmar com força, apesar das dificuldades que o proletariado tem e pode encontrar, que não existe nenhuma outra força na sociedade capaz de resolver as contradições que a destroem.
É justamente o fato de a classe operária não ter sido capaz até o momento de cumprir sua tarefa histórica de destruir o capitalismo, a razão pela qual o século XX se afundou na barbárie. Por isso, o proletariado só será capaz de encontrar a força que necessita para cumprir suas responsabilidades históricas se for capaz de compreender as razões pelas quais falhou nas situações em que a história exigiu suas responsabilidades no século que está terminando. Este artigo, se propõe contribuir, modestamente, a esta tarefa.Antes de examinar as causas do fracasso do proletariado para cumprir sua tarefa histórica ao longo do século XX, é necessário tratar uma questão sobre a qual os revolucionários nem sempre tem manifestado uma clareza suficiente.
A revolução comunista é inevitável?
A questão é fundamental já que da sua resposta depende, em grande parte, a capacidade da classe operária em compreender plenamente a dimensão da sua tarefa histórica. Um grande revolucionário como Amadeu Bordiga afirmou, por exemplo, que "... a revolução socialista é tão certa como se já tivesse ocorrido...". E não foi o único que emitiu tal idéia. Podemos encontrá-la também em certos escritos de Marx, de Engels ou de outros marxistas.
No Manifesto Comunista podemos ler uma afirmação que pode ser interpretada no sentido de que a vitória do proletariado não será inevitável: "...opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito" [1]. No entanto, esta constatação se aplica unicamente às classes do passado. No que diz respeito ao enfrentamento entre proletariado e burguesia, a saída não coloca dúvidas: "O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo e involuntário, substitui o isolamento dos operários, resultante da competição, por sua união revolucionária resultante da associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria retira dos pés da burguesia a própria base sobre a qual ela assentou o seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis" [2].
Na realidade, nos termos empregados pelos revolucionários, há frequentemente uma confusão entre o fato de que a revolução comunista é absolutamente necessária, indispensável para salvar a humanidade e seu caráter certo.
Na nossa opinião, o mais importante, evidentemente, é demonstrar, e o marxismo assim tem tentado, desde seus inícios que:
No entanto, todo o século XX põe em relevo a imensa dificuldade desta tarefa histórica. O século que termina nos permite, particularmente, compreender melhor que, para a revolução comunista, absoluta necessidade não quer dizer certeza, que a partida não se ganha antes de jogar, que a vitória do proletariado ainda não está escrita no grande livro da História. De fato, além da barbárie em que caiu esse século, a ameaça de uma guerra nuclear que tinha pesado como uma espada de Dâmocles sobre o mundo durante mais de 40 anos permitiu ver, quase tocar, o fato de que o capitalismo poderia ter destruído a sociedade. Esta ameaça está no momento descartada pelo fato do desaparecimento dos grandes blocos imperialistas, mas as armas que podem por fim a sociedade humana continuam aí, tanto como os antagonismos entre os Estados que podem chegar um dia a utilizá-las.
Por outra parte, desde finais do século passado, evocando explicitamente a alternativa "Socialismo ou Barbárie", Engels, redator com Marx de O Manifesto Comunista, voltou atrás a propósito da ideia do caráter inevitável da revolução e da vitória do proletariado. Hoje em dia, é muito importante que os revolucionários digam claramente à sua classe, e para fazê-lo devem estar realmente convencidos, que não há fatalidade, que a partida não se ganha de antemão e que o que está em jogo na sua luta não é nem mais nem menos que a sobrevivência da humanidade. Somente se for consciente da amplitude da sua tarefa, do que verdadeiramente está em jogo, que a classe operária poderá encontrar a vontade e a força para acabar com o capitalismo. Marx dizia que a vontade é a manifestação de uma necessidade. A vontade do proletariado para fazer a revolução comunista será maior quanto mais imperiosa seja a seus olhos a necessidade de tal revolução.
Por que a revolução comunista não é uma fatalidade?
Os revolucionários do século passado, inclusive não dispondo da experiência do século XX para dar uma resposta a essa pergunta, ou ao menos para formulá-la claramente, nos deram, entretanto, os elementos para abordar a resposta.
"Revoluções burguesas, como a do século 18, avançam impetuosamente de êxito em êxito, os seus efeitos dramáticos atropelam-se, os homens e as coisas parecem iluminados por fogos de artifícios, o êxtase é o espírito de cada dia; mas essas revoluções têm vida curta, chegam rapidamente ao seu apogeu e um longo mal-estar se apodera da sociedade, antes de ter aprendido a apropriar-se serenamente dos resultados dos seus períodos de ímpeto e tempestade. Em contrapartida, as revoluções proletárias, como as do século 19, criticam-se constantemente a si próprias, interrompem-se continuamente na sua própria marcha, voltam ao que parecia terminado, para começá-lo de novo, troçam profunda e cruelmente das hesitações dos lados fracos e da mesquinhez das suas primeiras tentativas, parece que apenas derrubam o seu adversário para que este tire da terra novas forças e volte a levantar-se mais gigantesco frente a elas, retrocedem constantemente perante a indeterminada enormidade dos seus próprios fins, até que se cria uma situação que torne impossível qualquer retrocesso e as próprias circunstâncias gritam: Hic Rhodus, hic salta! [Aqui está Rodes, salta aqui!]". [3]Esta citação muito conhecida de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, escrito por Marx no início de 1852 (ou seja, algumas semanas depois do golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851) dá conta do difícil e tortuoso curso da revolução proletária. Tal idéia foi recolhida, cerca de 70 anos depois, por Rosa Luxemburgo em um artigo que escreveu às vésperas do seu assassinato, pouco depois da insurreição de Berlim ser esmagada em janeiro de 1919: "...Desta contradição entre a tarefa que se impõe e a ausência, na etapa inicial do processo revolucionário, das condições prévias que permitam a sua realização, resulta que as lutas parciais terminaram com uma derrota formal. Porém a revolução [proletária] é a única forma de “guerra” – e esta é também uma lei vital que lhe é própria – na qual a vitória final só pode ser obtida através de uma série de "derrotas". (...) As revoluções não nos deram nada até agora a não ser derrotas, mas justamente essas derrotas inevitáveis que são a garantia reiterada da vitória final. (...) Com uma condição, é claro! Estudar em que circunstâncias foi produzida cada derrota". [4]
Essas citações evocam essencialmente o curso doloroso da revolução comunista, a série de derrotas que marcam seu caminho para a vitória. Mas, ao mesmo tempo, permitem colocar em evidência duas idéias essenciais:
É justamente a diferença entre as revoluções burguesas e a revolução proletária que permite compreender porque esta última não há de ser considerada como uma certeza.
De fato, a especificidade das revoluções burguesas, ou seja, a tomada do poder político exclusivo pela classe capitalista, é que elas não constituem o ponto de partida, mas o de chegada, de todo processo de transformação econômica no seio da sociedade. Uma transformação econômica na qual as antigas relações de produção, ou seja, as relações de produção feudais, são progressivamente substituídas pelas relações de produção capitalistas que servem de apoio a burguesia para a conquista do poder político:
"Dos servos da Idade Média nasceram os moradores dos primeiros burgos; desta população municipal saíram os primeiros elementos da burguesia.
A descoberta da América, a circunavegação da África abriram um novo campo de ação à burguesia emergente. Os mercados das Índias Orientais e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e das mercadorias em geral imprimiram ao comércio, à indústria e à navegação um impulso desconhecido até então; e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição.
A organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, já não satisfazia as necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina.
Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais, a procura por mercadorias continuava a aumentar. A própria manufatura tornou-se insuficiente; então, o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos. (...)
Vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de transformações no modo de produção e de circulação.
Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia foi acompanhada de um progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada e autônoma na comuna, aqui república urbana independente, ali terceiro estado tributário da monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, base principal das grandes monarquias, a burguesia, com o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno". [5]
Totalmente diferente é o processo da revolução proletária. Enquanto as relações de produção capitalista puderam desenvolver progressivamente no seio da sociedade feudal, as relações de produção comunistas não podem se desenvolver no seio da sociedade capitalista dominadas por relações mercantis e dirigidas pela burguesia. A idéia de um desenvolvimento progressivo de “ilhas de comunismo” no seio do capitalismo pertence ao ideário do socialismo utópico e foi combatida pelo marxismo e o movimento operário desde meados do século passado. Isto também é certo para outra variante dessa mesma idéia, a das cooperativas de produção ou de consumo que não podiam nem podem fugir das leis do capitalismo e que no “melhor dos casos”, transformam os operários em pequenos capitalistas quando não os tornam em exploradores de si mesmos. Na realidade, em virtude de ser a classe explorada do modo de produção capitalista, privada por definição de qualquer meio de produção, a classe operária não dispõe no seio do capitalismo, e não pode dispor, de pontos de apoio econômicos para a conquista do poder político. Pelo contrário, o primeiro ato de transformação comunista da sociedade consiste na tomada do poder político em escala mundial pelo conjunto do proletariado organizado em Conselhos Operários, ou seja, um ato consciente e deliberado. A partir dessa posição após a tomada do poder político, a ditadura do proletariado, este poderá transformar progressivamente as relações econômicas, socializar o conjunto da produção, abolir as trocas mercantis, sobretudo o primeiro dentre todos eles, o sistema de trabalho assalariado, e criar uma sociedade sem classes.
A revolução burguesa, a tomada do poder político exclusivo pela classe capitalista, era inevitável na medida em que ela era o resultado de um processo econômico, inevitável em um momento determinado da vida da sociedade feudal, um processo no qual a vontade política consciente dos homens pouco tinha que fazer. Em função das condições existentes em cada país, ela pode intervir mais ou menos no início no desenvolvimento do capitalismo pelo que este tomou diferentes formas: mudança violenta do Estado monárquico, como na França, ou conquista progressiva de posições políticas pela burguesia no seio desse Estado, como foi o caso da Alemanha. Em outras ocasiões foi possível obter uma república, como nos Estados Unidos ou uma monarquia constitucional, da qual o exemplo mais típico é o representado pelo regime monárquico da Inglaterra, ou seja, a primeira nação burguesa. No entanto, em todos os casos, a vitória política final da burguesia estava assegurada. Inclusive quando as forças políticas revolucionárias da burguesia sofreram reveses (como ocorreu na França com a Restauração ou na Alemanha com o fracasso da revolução de 1848), isso pouco influiu no avanço no plano econômico e igualmente no plano político.
Para o proletariado, a primeira condição de êxito da sua revolução é evidentemente que existam as condições materiais de transformação comunista da sociedade, condições que são dadas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo.
A segunda condição da revolução proletária reside no desenvolvimento de uma crise aberta da sociedade burguesa, prova evidente de que as relações de produção capitalista devem ser substituídas por outras relações de produção.
Mas, uma vez que essas condições materiais estejam presentes, disso não se depreende forçosamente que o proletariado seja capaz de fazer sua revolução. Privado de todo ponto de apoio econômico no seio da sociedade capitalista, sua única verdadeira força, além de seu número e organização, é sua capacidade para tomar consciência plena da natureza, dos objetivos e dos meios do seu combate. Este é o sentido profundo da citação de Rosa Luxemburgo que reproduzimos acima. E esta capacidade do proletariado para tomar consciência não se desprende automaticamente das condições materiais nas quais vive, já que não está escrito em nenhuma parte que poderá adquirir essa consciência antes que o capitalismo possa conseguir afundar a sociedade na barbárie total ou na destruição.
E um dos meios dos que o proletariado dispõe para evitar cair nesta última saída, salvando também o conjunto da sociedade, é justamente tirar todas as lições das suas derrotas anteriores, como recordava Rosa Luxemburgo. É necessário, particularmente, compreender por que não foi capaz de fazer sua revolução ao longo do século XX.
Revolução e contrarrevolução
É com freqüência que os revolucionários tendam subestimar as potencialidades do proletariado em um momento dado. Marx e Engels não puderam evitar essa tendência já que, quando redigiram O Manifesto Comunista, no início de 1848, apresentaram a revolução comunista como algo iminente e que a revolução burguesa na Alemanha, que sucedeu poucos meses depois, serviria para que aquele tomasse o poder naquele país. Esta tendência se explica perfeitamente pelo fato de que os revolucionários, e por isso precisamente o são, aspiram com todas as suas forças à destruição do capitalismo e a emancipação da sua classe e daí a impaciência que é acometida com frequência. No entanto, contrariamente aos elementos pequeno-burgueses ou os que estão influenciados pela ideologia da pequena burguesia, são capazes de reconhecer rapidamente a imaturidade das condições para a revolução. De fato, a pequena burguesia é por excelência uma classe que, politicamente falando, vive o presente, e que não tem nenhum papel histórico a desempenhar. O imediatismo e a impaciência (“A revolução já” como conclamavam os estudantes de 1968) são próprios dessa categoria social da qual, quem sabe durante uma revolução proletária, uma parte dos seus elementos poderão se unir ao combate da classe operária, mas na sua maior parte tende a se aliar com o mais fortes, ou seja, com a burguesia. Ao contrário, os revolucionários proletários, expressão de uma classe histórica, são capazes de superar a impaciência e implicar-se decididamente na paciente e difícil tarefa de se preparar para os futuros combates de classe.
Por isso em 1852, Marx e Engels, reconheceram que as condições da revolução proletária não estavam maduras em 1848 e que o capitalismo devia viver ainda um amplo desenvolvimento para que essas condições chegassem. Desse modo, estimaram que se devia dissolver sua organização, a Liga dos Comunistas, que havia sido fundada nas vésperas da revolução de 1848, antes que esta caísse sob a influência de elementos impacientes e aventureiros (a tendência Willich-Schapper).
Em 1864, quando participaram na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), Marx e Engels pensaram, de novo, que a hora da revolução havia chegado, mas justamente antes da Comuna de Paris de 1871, se deram conta de que o proletariado ainda não estava preparado, já que o capitalismo ainda tinha diante de si todo um potencial de desenvolvimento da sua economia. Após a derrota da Comuna de Paris, que significou uma grave derrota para o proletariado europeu, compreenderam que o papel histórico da AIT tinha terminado e que era necessário preservá-la da ação de elementos impacientes e aventureiros (como Bakunin) representados principalmente pelos anarquistas. Por isso, no Congresso de Haia de 1872, intervieram com determinação para conseguir a exclusão de Bakunin e sua Aliança para a Democracia Socialista e, do mesmo modo, propuseram e defenderam a decisão de transferir o Conselho Geral da AIT de Londres para Nova York, longe das intrigas que estavam se desenrolado por parte de toda uma série de elementos que ambicionavam se apoderar da Internacional. Esta decisão correspondia de fato a uma decisão de suspender a AIT, para que depois da Conferência da Filadélfia pudessem pronunciar sua dissolução em 1876.
Assim, as duas revoluções que tinham se produzido até aquele momento, a de 1848 e a Comuna, haviam fracassado porque as condições materiais da vitória do proletariado ainda não existiam. Será no período seguinte, em que se conhecerá o desenvolvimento mais pujante da história do capitalismo, quando essas condições se deram.
Esse é um período de grande desenvolvimento do movimento operário. É nesse momento quando se criam os sindicatos na maior parte dos países, e é quando se fundam Partidos Socialistas de massas que, em 1889, se reagruparam no seio da Internacional Socialista (II Internacional).
Na maior parte dos países da Europa Ocidental, o movimento operário organizado ganhava mais e mais posições. Embora seja correto que durante certo tempo os governos perseguiram os partidos socialistas (assim foi na Alemanha entre 1878 e 1890, aplicando as chamadas “leis anti-socialistas”), esta política em pouco tempo tendeu a ser modificada em favor de uma atitude mais benévola para eles. Então, esses partidos se converteram em verdadeiros poderes na sociedade, até o ponto em que, em certos países, dispunham do grupo parlamentar mais forte e davam a impressão de que podiam conseguir o poder no seio do Parlamento. O movimento operário parecia ter se convertido em invencível. Para muitos, aproximava-se a hora em que se poderia derrubar o capitalismo se apoiando nessa instituição especificamente burguesa: a democracia parlamentar.
Paralelamente ao auge das organizações operárias, o capitalismo conheceu uma prosperidade sem igual, dando a impressão de que seria capaz de superar as crises cíclicas que o havia afetado no período anterior. No seio dos partidos socialistas desenvolveram-se tendências reformistas que consideravam que o capitalismo tinha conseguido superar suas contradições econômicas e que, por isso, não era necessário acabar com ele por meio da revolução. Apareceram teorias, como a de Bernstein, que considerava que havia que “revisar” o marxismo, em particular, para abandonar sua visão “catastrófica”. A vitória do proletariado seria, portanto, o resultado de toda uma série de conquistas obtidas no terreno parlamentar e sindical.
Na realidade, ambas as forças antagônicas que pareciam desenvolver sua potência paralelamente, o capitalismo e o movimento operário, estavam minados a partir de seu interior.
O capitalismo, de um lado, vivia seus últimos dias de glória (que tinha ficado na memória coletiva como a Belle époque). Enquanto, no domínio econômico, sua prosperidade parecia não ter fim, particularmente nas potências emergentes que a Alemanha e os Estados Unidos eram, a chegada da sua crise histórica era notada fortemente com a ampliação do imperialismo e do militarismo. Os mercados coloniais, como Marx tinha colocado em evidência meio século antes, tinham sido um fator fundamental para o desenvolvimento do capitalismo. Cada país capitalista avançado, incluindo os pequenos como Holanda e Bélgica, tinha constituído seu império colonial como fonte de matérias primas e mercados para dar saída às suas mercadorias. Precisamente no fim do século XIX, o mundo capitalista estava inteiramente repartido entre as velhas nações burguesas. Desde então, o acesso a cada uma delas a novos mercados e a novos territórios as conduziam a um enfrentamento direto na zona “privada” de seus rivais. O primeiro choque ocorreu em setembro de 1898 na Fachoda, Sudão, conflito no qual França e Inglaterra, as duas principais potências coloniais, estiveram a ponto de se enfrentarem. Os objetivos daquela (controlar o Alto Nilo e colonizar um eixo Oeste-Leste, Dacar-Djibuti) chocou com a ambição da Inglaterra (fazer a fusão de um eixo Norte-Sul com um eixo Cairo-Cidade do Cabo). Finalmente, França retrocedeu e os dois rivais decidiram chegar a um “Entendimento Cordial” diante da pressão e das ambições de um terceiro em discórdia com ambições tão grandes como era reduzido seu império colonial, ou seja, Alemanha. As ambições gananciosas imperialistas alemãs com relação às demais potências européias se concretizaram, alguns anos mais tarde, entre outros acontecimentos no incidente de Agadir em 1911, no qual uma fragata alemã se apresentou com a vontade de ofender a França e suas ambições no Marrocos. O outro aspecto dos apetites imperialistas da Alemanha no terreno colonial se concretizou no impressionante desenvolvimento da sua marinha de guerra, frota que ambicionava competir com a frota inglesa pelo controle das vias marítimas.
Também, nesse aspecto, a vida do capitalismo mudou de forma radical nos inícios do século XX: ao mesmo tempo que se multiplicavam as tensões e os conflitos armados que envolviam mais ou menos ocultamente as potências burguesas européias, houve um importante incremento do armamento dessas potências ao tempo em que se tomavam medidas sistemáticas para o aumento dos efetivos militares (como a da duração do serviço militar na França, a lei dos “três anos”).
Este aumento das tensões imperialistas e do militarismo, do mesmo modo que as grandes manobras diplomáticas entre as principais nações europeias que reforçavam suas alianças respectivas para a guerra, foi evidentemente objeto de grande atenção por parte dos grandes partidos da Segunda Internacional. Esses, no seu congresso de 1907 em Stuttgart, dedicaram uma importante resolução a esta questão, resolução que integrava uma emenda apresentada especialmente por Lênin e Rosa Luxemburgo na qual se colocava explicitamente que: "... se, apesar de tudo, eclodir uma guerra, os socialistas têm o dever de atuar para que esta finalize o quanto antes possível e devem utilizar por todos os meios a crise econômica e política provocada pela guerra para despertar o povo e assim acelerar a queda da dominação capitalista". [6]
Em novembro de 1912, a Internacional Socialista convocou um Congresso extraordinário (Congresso de Basileia) para denunciar a ameaça de guerra e chamar a mobilização do proletariado contra ela. O Manifesto desse Congresso colocava a burguesia em guarda: "... Que os governos burgueses não esqueçam que a guerra franco-alemã deu lugar à insurreição da Comuna e a guerra russo-japonesa colocou em marcha o movimento das forças revolucionárias da Rússia. Para os proletários, é crime disparar um contra os outros em favor dos capitalistas, do orgulho das dinastias ou dos comprometimentos dos tratados secretos...".
Assim, na aparência, o movimento operário tinha se preparado para enfrentar o capitalismo no caso deste último desencadeasse a barbárie guerreira. Por outra parte, naquela época, entre a população dos diferentes países europeus, e não unicamente entre a classe operária, existia um forte sentimento de que a única força da sociedade que poderia impedir a guerra era a Internacional Socialista. Na realidade, da mesma forma que o sistema capitalista estava minado desde o seu interior e se aproximava inexoravelmente a época da sua falência histórica, o movimento operário, apesar da sua força aparente, seus poderosos sindicatos, os "êxitos eleitorais crescentes" de seus partidos, tinha se debilitado notavelmente e se encontrava nas vésperas de uma catástrofe. Mais ainda: o que constituía essa força aparente do movimento operário era na realidade sua fraqueza. Os êxitos eleitorais dos partidos socialistas ampliaram excepcionalmente as ilusões democráticas e reformistas entre as massas operárias. Do mesmo modo, o enorme poder das organizações sindicais, especialmente na Alemanha e no Reino Unido, se transformou, na realidade, em um instrumento de defesa da ordem burguesa e de alistamento dos operários para a guerra e a produção de armamentos.
Também convém recordar, que no início do verão de 1914, após o atentado em Sarajevo contra o herdeiro do trono austro-húngaro, as tensões militares começaram a se acelerar a passos gigantes para a guerra, os partidos operários, não só deram mostra de impotência, como aportaram, além disso, na maioria dos casos, seu apoio à própria burguesia nacional. Na França e Alemanha, até contatos diretos foram estabelecidos entre os dirigentes dos partidos socialistas e o governo para discutir sobre quais políticas adotar para conseguir o alistamento para a guerra. E quando irrompeu, como um só homem, esses partidos deram seu pleno apoio ao esforço de guerra da burguesia e conseguiram implicar as massas operárias na tão terrível sangria. Enquanto os governos de plantão apelavam à "grandeza" das suas nações respectivas, os partidos socialistas empregavam argumentos mais adaptados ao seu papel de recrutadores dos operários. Não se tratava, segundo eles, de guerras a serviço de interesses burgueses para, por exemplo, recuperar Alsácia e Lorena, mas de uma guerra para proteger a "civilização" contra o "militarismo alemão", como diziam na França. Do outro lado do Reno, não era uma guerra em defesa do imperialismo alemão sim uma guerra "pela democracia e pela civilização" contra a "tirania e a barbárie czarista". Mas com discursos diferentes, os dirigentes socialistas tinham o mesmo objetivo que a burguesia: realizar a "União nacional", enviar os operários à matança e justificar o estado de exceção, ou seja, a censura militar, a proibição das greves e das manifestações operárias, e de todas as publicações e reuniões que denunciavam a guerra.
O proletariado não pôde impedir a eclosão da guerra mundial
Foi uma terrível derrota para ele, mas uma derrota sofrida sem combates abertos contra a burguesia. No entanto, a luta contra a degeneração dos partidos socialistas, degeneração que conduziu a sua traição no verão de 1914 e a eclosão da matança imperialista, havia começado muito antes, para ser mais preciso no final do século XIX e início do século XX. Assim, no partido alemão, Rosa Luxemburgo tinha levado a batalha contra as teorias revisionistas de Bernstein justificadoras do reformismo. Oficialmente o partido havia rechaçado tais teorias, porém, alguns anos mais tarde, ela teve de reiniciar o combate não só contra a direita do partido, mas também contra o centro representado principalmente por Kaustky, cuja linguagem mais radical servia, na realidade, de máscara para o abandono da perspectiva da revolução. Na Rússia, em 1903, os bolcheviques travaram uma luta contra o oportunismo no seio do partido social-democrata, no início sobre problemas de organização, depois a propósito da natureza da revolução de 1905 e da política que deviam desenvolver no seu seio. Mas essas correntes revolucionárias no seio da Internacional Socialista eram, no seu conjunto, muito fracas, por mais que os Congressos dos partidos socialistas e da Internacional adotassem, frequentemente, suas posições.
Na hora da verdade, os militantes socialistas que defendiam posições internacionalistas e revolucionárias se encontraram tragicamente isolados. Na Conferência internacional contra a guerra de setembro de 1915 em Zimmerwald (Suíça), os delegados (entre os que se encontravam também elementos do centro, vacilantes entre as posições da esquerda e a direita) cabiam em quatro táxis, como recordava Trotski. Este terrível isolamento não os impediu prosseguir seu combate, apesar da repressão que se abateu sobre eles (na Alemanha, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, os dois principais dirigentes do grupo Spartacus que defendiam o internacionalismo, conheceram a prisão e o encarceramento em fortalezas militares).
De fato, as terríveis provas da guerra, as matanças, a fome, a exploração feroz que reinava nas fábricas da retaguarda começaram despertar as mentes dos operários que em 1914 tinham se deixado levar à carnificina com a "flor no fuzil" [7]. Os discursos sobre a "civilização" e a democracia se esgotaram diante da realidade da inaudita barbárie na qual se afundava a Europa e com a repressão de qualquer tentativa de luta operária. Assim, a partir de fevereiro de 1917, o proletariado na Rússia, que já tinha passado pela experiência de uma revolução em 1905, se levantou contra a guerra e contra a fome. Com seus atos, e nos fatos, concretizou resoluções adotadas pelos Congressos de Stuttgart e Basiléia da Internacional Socialista. Lênin e os bolcheviques compreendem que tinha soado a hora da revolução e animavam os operários a não se conformarem com a queda do czarismo e sua substituição por um governo "democrático". Tinha que se preparar para a derrubada da burguesia e a tomada do poder pelos sovietes (os conselhos operários). Esta perspectiva se cumpriu efetivamente na Rússia em outubro de 1917. Imediatamente, o novo poder anima a seguir seu exemplo com a finalidade de acabar com a guerra e derrubar o capitalismo. De certo modo, os bolcheviques e com eles todos os revolucionários dos demais países, chamam o proletariado mundial para que esteja presente neste novo evento histórico após ter faltado ao de 1914.
O exemplo russo é seguido pela classe operária de outros países particularmente na Alemanha onde, um ano mais tarde, o levantamento de operários e camponeses derrota o regime imperial de Guilherme II e obriga a burguesia alemã a retirar-se da guerra colocando, assim, fim a quatro anos de uma barbárie nunca antes vivida pela humanidade. No entanto, a burguesia tinha tirado as lições da sua derrota na Rússia. Neste país o Governo provisório instaurado após a revolução de Fevereiro de 1917 foi incapaz de satisfazer uma das reivindicações essenciais dos operários, a paz. Acossados pelos seus aliados da Entente, França e Inglaterra, manteve-se na guerra o que provocou uma rápida queda nas ilusões que as massas operárias e de soldados haviam depositado nele, contribuindo para sua radicalização. A derrubada da burguesia, e não só do regime czarista, aparece como a única maneira de por fim à matança. Na Alemanha, ao contrário, a burguesia teve a maior pressa em deter a guerra nos primeiros dias da revolução. A burguesia apresenta como uma vitória decisiva a derrubada do regime imperial e a instauração de uma república. Imediatamente chama o partido socialista para tomar as rédeas do governo, o qual obtém o apoio do Congresso de Conselhos Operários, dominado precisamente, pelos socialistas. Mas, sobretudo, o novo governo exige imediatamente o armistício aos aliados da Entente, que estes atendem sem mais demora. Além disso, os da Entente fazem de tudo para permitir ao novo governo alemão fazer frente à classe operária. Por exemplo, a França restitui imediatamente ao exército alemão 16.000 metralhadoras que lhe foi confiscado como espólio de guerra. Metralhadoras que seriam utilizadas mais tarde para esmagar a classe operária.
A burguesia alemã, com o partido socialista à sua frente, aplica um golpe terrível no proletariado em janeiro de 1919. Arma uma provocação, conscientemente, para incitar uma insurreição prematura dos operários de Berlim. A insurreição acaba com um banho de sangue e seus principais dirigentes revolucionários, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht (e mais tarde Leo Jogiches), são assassinados. Apesar disso, a classe operária alemã ainda não está definitivamente derrotada. Até 1923 levará a cabo tentativas revolucionárias [8]. No entanto, todas essas tentativas serão derrotadas, assim como as tentativas revolucionárias ou os vigorosos movimentos da classe operária que se deram em outros países durante esse período (por exemplo, na Hungria, em 1919, e Itália, na mesma época) [9].
De fato, o fracasso do proletariado na Alemanha sela a derrota da revolução mundial, a qual terá um último sobressalto na China em 1927, afogado também em sangue.
Ao mesmo tempo que se desenvolve a onda revolucionária na Europa foi fundada em Moscou, em março de 1919, a Internacional Comunista (IC) ou Terceira Internacional, que reagrupa as forças revolucionárias de todos os países. No momento da sua fundação só existem dois grandes partidos comunistas, o da Rússia e o da Alemanha, este último constituído alguns dias antes da derrota de janeiro de 1919. Esta internacional fomenta, em todos os países, a criação de partidos comunistas que rechaçam o chauvinismo, o reformismo e o oportunismo que engoliu os partidos socialistas. Os partidos comunistas são a direção da revolução mundial, porém foram constituídos tarde demais por conta das condições históricas presentes no seu nascimento. Quando a Internacional Comunista realmente se constitui, ou seja, no seu II Congresso em 1920, o momento mais forte da onda revolucionária já tinha passado e o capitalismo mostra que é capaz de recuperar a situação, tanto no plano econômico como no político. A classe dominante conseguiu, sobretudo, quebrar o impulso revolucionário ao colocar um final ao seu principal alimento, a guerra imperialista. Com o fracasso da onda revolucionária mundial, os partidos comunistas, que se formaram contra a degeneração e a traição dos partidos socialistas, acabaram se degenerando um após outro.
Vários são os fatores dessa degeneração dos partidos comunistas. O primeiro é que aceitam nas suas filas toda uma série de elementos que já eram "centristas" dentro dos partidos socialistas, e que saíram deles mediante uma rápida conversão à fraseologia revolucionária, beneficiando-se assim do imenso entusiasmo revolucionário do proletariado mundial pela Revolução Russa. Outro fator, ainda mais decisivo, foi a degeneração do principal partido dessa internacional, o que tinha maior autoridade, o Partido bolchevique que tinha conduzido a Revolução de Outubro e foi o principal protagonista da fundação da Internacional. Com efeito, esse partido alçado na direção do Estado é absorvido progressivamente por ele; e, devido ao isolamento da revolução, vai se convertendo cada vez mais em defensor dos interesses da Rússia em detrimento da sua função de baluarte da revolução mundial. Além disso, como não pode haver "socialismo em um só país" e a abolição do capitalismo só pode ser feita em escala mundial, o Estado russo se transforma progressivamente em defensor do capital nacional russo, um capital no qual a burguesia está formada principalmente pela burocracia do Estado e, portanto, do partido. O Partido bolchevique vai se transformando progressivamente de partido revolucionário em partido burguês e contrarrevolucionário, apesar da resistência de um grande número de verdadeiros comunistas, como Trotsky, que mantém de pé a bandeira da revolução mundial. E foi assim que, em 1925, o partido bolchevique, apesar da oposição de Trotsky, adota como programa "a construção do socialismo em um só país", um programa promovido por Stálin, e que é uma verdadeira traição ao internacionalismo proletário. Um programa que em 1928 vai se impor à Internacional Comunista, o que será sua morte definitiva.
Após isso, os partidos comunistas nos diferentes países irão passando ao serviço do seu capital nacional, apesar da reação e do combate de toda uma série de frações de esquerda que serão excluídas uma após a outra. Os partidos comunistas que haviam sido ponta de lança da revolução mundial se convertem em ponta de lança da contrarrevolução: a contrarrevolução mais terrível da história.
A classe operária não só perdeu o segundo encontro com a história, mas ainda ia se afundar no pior período que jamais tinha vivido, que fica muito bem refletido no título do livro do escritor Victor Serge: É meia noite no século.
Enquanto na Rússia o aparato do partido comunista se converte em classe exploradora e também em instrumento de uma repressão e opressão das massas operárias e camponesas sem comparação com os do passado, o papel contrarrevolucionário dos partidos comunistas fora da Rússia se concretiza, nos anos 30, na preparação do alistamento do proletariado na Segunda Guerra Mundial, ou seja, a resposta burguesa à crise aberta que vive o capitalismo a partir de 1929.
Justamente esta crise aberta, a terrível miséria que se abate sobre as massas operárias durante os anos 30, poderia ter constituído um potente fator de radicalização do proletariado mundial e da tomada de consciência da necessidade de acabar com o capitalismo. Mas o proletariado vai faltar a este terceiro encontro com a história.
Na Alemanha, país chave para a revolução proletária, onde se encontra a classe operária mais concentrada e experimentada do mundo, vive uma situação similar à da classe operária na Rússia. Como ela, a classe operária alemã tinha empreendido o caminho da revolução e sua conseqüente derrota foi ainda mais terrível. O aniquilamento da revolução alemã não foi obra dos nazistas, mas dos partidos "democráticos", e em primeiro lugar do partido socialista [social-democrata]. Mas justamente porque o proletariado tinha sofrido essa derrota, o partido nazista, que naquele momento correspondia melhor às necessidades políticas e econômicas da burguesia alemã, pôde terminar a tarefa da esquerda empregando o terror para aniquilar toda luta proletária e alistando, por esse mesmo meio principalmente, os operários na guerra.
De outro lado, nos países da Europa ocidental onde o proletariado não tinha feito a revolução e, portanto, não tinha sido aniquilado fisicamente, o terror não era o melhor meio para alistar os operários na guerra. Para alcançar resultado a burguesia tinha que empregar mistificações como as que tinham utilizado com êxito em 1914 e que tinham servido para levar o proletariado à Primeira Guerra Mundial. Nesta tarefa os partidos stalinistas cumpriram de maneira exemplar seu papel burguês. Em nome da "defesa da pátria socialista" e da democracia contra o fascismo, esses partidos desviaram sistematicamente as lutas operárias para becos sem saída, desgastando assim a combatividade e a moral do proletariado.
A moral do proletariado ficou muito afetada pela derrota da revolução mundial durante os anos 20. Após um período de entusiasmo pela idéia da revolução comunista, muitos operários perderam a esperança na perspectiva comunista. Um dos fatores da sua desmoralização foi constatar que a sociedade instaurada na Rússia não era nenhum paraíso, como apresentado pelos partidos stalinistas, o que facilita sua recuperação pelos partidos socialistas. Entretanto, a maioria dos que ainda continuavam acreditando na perspectiva revolucionária caem nas redes dos partidos stalinistas que lhes dizem que essa perspectiva passa pela "defesa da pátria socialista" e pela vitória sobre o fascismo que havia se instaurado na Itália e, sobretudo, na Alemanha.
Um dos episódios chave nessa desorientação do proletariado mundial foi a guerra da Espanha que não foi, longe disso, uma revolução, mas ao contrário foi um dos preparativos militares, diplomáticos e políticos da Segunda Guerra Mundial.
A solidariedade que os operários do mundo inteiro quiseram expressar para seus irmãos de classe na Espanha, os quais se levantaram espontaneamente diante do golpe fascista de 18 de julho, é canalizada e enrolada nas Brigadas internacionais (dirigidas principalmente por stalinistas), com a reivindicação de "armas para Espanha" (na realidade para o governo burguês da "Frente Popular") e também pelas mobilizações antifascistas que, de fato, permitem o alistamento dos operários dos países "democráticos" na guerra contra Alemanha.
Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, o que estava sendo considerado como a grande força do proletariado (os poderosos sindicatos e partidos operários) era, na realidade, sua debilidade mais considerável. O mesmo cenário se repete diante da Segunda Guerra Mundial, embora os atores sejam de algumas maneiras diferentes. A grande força dos partidos "operários" (os partidos stalinistas e também os partidos socialistas, unidos em uma aliança antifascista), as grandes "vitórias" contra o fascismo na Europa ocidental, a suposta "pátria socialista", são todas elas marcas da contrarrevolução, de uma debilidade do proletariado sem precedentes. Uma debilidade que o levará de pés e mãos atados à segunda carnificina imperialista.
O proletariado diante da Segunda Guerra Mundial
A Segunda Guerra Mundial ultrapassa de longe o horror da Primeira. O novo grau de barbárie mostra que prossegue o afundamento do capitalismo na sua decadência. Contudo, contrariamente ao que passou em 1917 e 1918, não é o proletariado que faz com que ela termine. A guerra continua até o esmagamento completo de um dos campos imperialista. Na realidade o proletariado não ficou totalmente sem resposta durante a carnificina. Na Itália de Mussolini, por exemplo, se desenvolveu um vasto movimento de greves, em 1943, no Norte industrial que levou as forças dirigentes da burguesia a colocar Mussolini fora do caminho e colocar no seu lugar um almirante pró-aliado, Bodoglio. Igualmente, no fim de 1944 e início de 1945, se produzem movimentos de revolta contra a fome e a guerra em várias cidades alemãs. Mas o que ocorreu durante e Segunda Guerra Mundial não é em nada comparável ao acontecido durante a Primeira. E isso por várias razões. Em primeiro lugar, porque antes de declarar a Segunda Guerra Mundial, a burguesia contava com a experiência da Primeira e por isso se dedicou a esmagar prévia e sistematicamente o proletariado não só física, como também ideologicamente. Uma das expressões dessa diferença é que se os partidos socialistas traíram a classe operária no momento da [primeira] guerra, os partidos comunistas cometeram sua traição bem antes de ser desencadeada a Segunda Guerra Mundial. Uma das conseqüências desse fato é que no seu seio não ficou a menor corrente revolucionária, contrariamente ao que havia passado durante a Primeira Guerra Mundial em que a maioria dos militantes que logo formaram os partidos comunistas tinham sido membros anteriormente dos partidos socialistas. E na terrível contrarrevolução que se abateu durante os anos 30, só um pequeno punhado de militantes continuou defendendo as posições comunistas, isolados completamente de todo contato direto com a classe operária, completamente submetida à ideologia burguesa. Foi impossível desenvolver um trabalho no seio de partidos com influência na classe operária, diferente dos revolucionários durante a Primeira Guerra Mundial, não só porque tinha sido expulsos desses partidos, mas porque neles já não existia o menor sopro de vida proletária. Aqueles que tinham mantido posições revolucionárias quando da eclosão da Primeira Guerra Mundial, como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, puderam encontrar um eco crescente da sua propaganda entre os militantes da social-democracia à medida que a guerra fazia romper suas ilusões. Nada disso nos partidos comunistas: a partir do começo dos anos 30, se convertem em um terreno totalmente estéril e no qual não pode surgir nenhum pensamento proletário e internacionalista. Durante a guerra, alguns pequenos grupos revolucionários que tinham mantido os princípios internacionalistas não tinham nenhum impacto significativo na classe, que estava totalmente atrelada à ideologia antifascista.
A outra razão pela qual não há um ressurgimento proletário durante a Segunda Guerra Mundial é que a burguesia mundial, instruída pela experiência do final da Primeira, toma suas medidas para prevenir qualquer ressurgimento nos países vencidos, onde a burguesia era mais vulnerável. Na Itália, por exemplo, o meio pelo qual a classe dominante faz frente à sublevação de 1943 caracteriza-se por uma divisão de tarefas entre o exército alemão, que ocupa diretamente o norte da Itália restabelecendo o poder de Mussolini, e os aliados que desembarcam no sul. No norte, são as tropas alemãs as que restabelecem a ordem com tal brutalidade que obriga os operários, que tinham mais se destacado nos movimentos de 1943, a se refugiarem nas guerrilhas, de onde, amputados das suas bases de classe, se convertem em presa fácil da ideologia antifascista e de "libertação nacional". Ao mesmo tempo, os Aliados interrompem sua marcha para o Norte, dizendo que havia de deixar que a Itália "se cozinhasse no seu próprio molho" (nas palavras de Churchill) com a finalidade de deixar que o "mal", a Alemanha, faça o trabalho sujo da repressão antioperária deixando que as forças democráticas, particularmente o partido stalinista, tomem o controle ideológico sobre a classe operária.
Essa mesma tática se empregou na Polônia, enquanto o "Exército Vermelho" está a poucos quilômetros de Varsóvia, Stálin deixa que se desenvolva, sem dar nenhum apoio, a insurreição nesta cidade. O exército alemão tem as mãos livres para perpetrar um autêntico banho de sangue e arrasar completamente a cidade. Quando vários meses depois o Exército Vermelho entra em Varsóvia, os operários dessa cidade que podiam lhes causar problemas tinham sido totalmente aniquilados e desarmados.
Na própria Alemanha, os Aliados se encarregam de esmagar qualquer tentativa de levante operário, por isso realizam primeiro uma abominável campanha de bombardeios nos bairros operários (em Dresde em 13 e 14 de fevereiro de 1945, os bombardeios que causam mais de 250.000 mortos, três vezes mais que em Hiroshima). Ou seja, os Aliados rechaçam todas as tentativas de armistício proposta por vários setores da burguesia alemã incluídos militares de renome como o marechal de campo Rommel ou o chefe dos serviços secretos o almirante Canaris. Para os Aliados, deixar a Alemanha unicamente em mãos da burguesia alemã, inclusive dos setores antinazistas, é impensável. A experiência de 1918 quando o governo que tinha tomado o regime imperial tinha grandes dificuldades para restabelecer a ordem, permanecia ainda na memória dos políticos burgueses. Por isso decidem que os vencedores devem se incumbir diretamente da administração da Alemanha vencida e ocupar militarmente cada porção do seu território. O proletariado alemão, aquele gigante que durante décadas tinha sido o farol do proletariado mundial e que, entre 1918 e 1923, tinha feito tremer o mundo capitalista, estava agora humilhado, oprimido, disperso em uma multidão de pobres sombras que buscavam os escombros para encontrar seus mortos e seus objetos familiares, submetidos à benevolência dos "vencedores" para poder comer e sobreviver. Nos países vencedores, muitos operários tinham entrado na Resistência com a ilusão, propagada pelos partidos stalinistas, de que a luta contra o nazismo era o prelúdio da derrubada da burguesia. Na realidade, nos países sob o domínio da URSS, os operários se viam obrigados a apoiar a implantação dos regimes stalinistas (como durante o Golpe em Praga de 1948), regimes que uma vez consolidados desarmam os operários e exercem sobre eles o terror mais brutal. Nos países dominados pelos Estados Unidos, como França ou Itália, os partidos stalinistas no governo pedem que os operários devolvam as armas porque a tarefa do momento não é a revolução, mas a "reconstrução nacional".
Assim, por todas as partes em uma Europa que não é nada mais que um imenso campo de ruínas, no qual centenas de milhões de proletários sobrevivem em condições de vida e de exploração muito piores do que aconteceram na Primeira Guerra Mundial, onde a fome ronda permanentemente, onde o capitalismo estende mais que nunca sua barbárie, a classe operária não tem a força de empreender o mínimo combate de importância contra o poder capitalista. A Primeira Guerra Mundial tinha ganho para o internacionalismo milhões de trabalhadores, a Segunda os arrastou à infâmia do chauvinismo mais abjeto, da caça ao "boche" [10] e aos "colaboracionistas".
O proletariado tinha chegado ao fundo do poço. O que lhe é apresentado, e o que ele interpreta como sua grande "vitória", o triunfo da democracia frente ao fascismo, é na realidade sua maior derrota histórica. O sentimento de vitória que experimenta, a crença nas "virtudes sagradas" da democracia burguesa que essa vitória implica, essa mesma democracia que o levou a duas carnificinas imperialistas e que esmagou a revolução no começo dos anos 20, a euforia que o domina é a melhor garantia da ordem capitalista. E o período de reconstrução, do "boom" econômico da pós-guerra, da melhoria momentânea das condições de vida, não permite, ao proletariado, medir a dimensão da derrota sofrida.
De novo o proletariado falta ao encontro com a história. Mas nesta ocasião não é porque tenha chegado demasiado tarde ou mal preparado: simplesmente ficou ausente da cena histórica.
Na segunda parte deste artigo veremos como ele voltou à cena histórica, mas também o quanto comprido ainda é o seu caminho.
Fabienne
[1] Marx e Engels, Manifesto Comunista. Ed. Boitempo, p.42.
[2] Ibid, p. 51.
[3] Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. (A expressão “Hic Rhodus, hic salta!” é de uma fábula de Esopo em que um fanfarrão sustenta ter dado um salto prodigioso em Rhodes, uma das maravilhas arquitetônicas do mundo antigo. A ele se replicou, então: "Aqui está Rhodes, agora salta.") Ed. Expressão Popular, p. 212.
[4] Rosa Luxemburgo, A Ordem Reina em Berlim. Tradução nossa.
[5] Marx e Engels, Manifesto Comunista. Ed. Boitempo, p.41-42.
[6] Passagem citada na "Resolução sobre a posição para as correntes socialistas e a conferência de Berna" no Primeiro Congresso da Internacional Comunista.
[7] NdT: expressão francesa que remete ao entusiasmo, felicidade e ingenuidade dos soldados da época.
[8] Veja nossa série de artigos sobre a revolução alemã na Revista Internacional números 81 a 99.
[9] Veja nosso artigo "Lecciones de 1917-23 - La primera oleada revolucionaria del proletariado mundial [201]", Revista internacional nº 80, primeiro trimestre de 1995.
[10] NdT: termo francês de tom pejorativo dado aos alemães.
A onda de violências e matanças de bandidos, de policiais e de pessoas que não têm nada a ver com os conflitos entre policiais e marginais, continua sacudindo algumas cidades do Brasil. Não é nosso objetivo comentar os eventos, mas tentar colocá-los num quadro mais amplo que não diz respeito só ao Brasil, e também situá-lo em um contexto histórico além do momento atual, o da decomposição do capitalismo, a fase final deste sistema.
A grande São Paulo é a que foi mais foi afetada: "260 pessoas assassinadas nos últimos 40 dias em um pico de violência que se alastrou pela capital e pela região metropolitana de São Paulo" [1]. Mas outras cidades, como Florianópolis onde a criminalidade é geralmente muito mais baixa, também foram atingidas pela onda de violência.
A amplitude da violência é inquestionável, como também suas consequências sobre a população: "A polícia está matando e os criminosos também. É uma guerra a que estamos assistindo todos os dias pela TV", disse Marcos Fuchs, diretor da ONG Conectas Direitos Humanos. "E quem sofre com tudo isso é a população" [2]. Para a população empobrecida por todas as consequências da crise, é uma calamidade a mais.
Entre as explicações mais radicais, encontram-se algumas culpando o sistema penitenciário que cria criminosos em lugar de favorecer a reinserção social. Mas o próprio sistema penitenciário é produto da sociedade e é feito à sua imagem e semelhança. Na realidade, nenhuma reforma, do sistema penitenciário ou de qualquer outra instituição, poderá conter o fenômeno do banditismo e da repressão policial, e, portanto da violência sob qualquer forma. O problema maior é que isso só vai piorar com o agravamento da crise mundial deste sistema. É fácil constatar isso a nível do Brasil. Há trinta anos, a São Paulo que aparece hoje como a capital do crime era vista como uma cidade relativamente tranquila deste ponto de vista.
O fenômeno está longe de ser uma especificidade brasileira. É só dar uma olhada para o México para perceber isso. Lá os grupos mafiosos e o próprio governo, na guerra que travam, arregimentam elementos dos setores mais pauperizados. Os confrontos entre estes grupos, que atiram indistintamente na população, deixam mortas centenas de vítimas que governo e as máfias chamam de "efeitos colaterais". O que está acontecendo hoje no México é um fenômeno que diz respeito a muitos países, especialmente da América latina: as máfias se aproveitam da miséria para fazer frutificar suas atividades ligadas à produção e o comércio da droga; em particular ao inserir camponeses pobres na produção da droga como foi o caso da Colômbia nos anos 1990. O conchavo entre as máfias e as instituições estatais permite às primeiras "proteger seus investimentos" e sua atividade em geral. No México, segundo estimativas, as máfias do narcotráfico empregam um número de pessoas superior em 25% aos empregados do McDonald’s no mundo inteiro.
Hoje em dia, a droga se tornou um novo setor da economia capitalista. Isso significa que a exploração existe nele como em qualquer outra atividade econômica. Mas, além disso, as condições de ilegalidade fazem com que a concorrência e a guerra pela conquista dos mercados tomam formas muito mais violentas. No México, desde 2006, quase 60 000 pessoas foram mortas, tanto por balas das unidades da máfia, quanto do exército oficial. Uma grande parte desses mortos resulta da guerra entre cartéis da droga, mas isso não diminui em nada a responsabilidade do Estado, seja qual argumento usado por este. Com efeito, cada grupo mafioso nasce sob a proteção de uma fração da burguesia.
Na realidade, o fenômeno da violência como o exemplificamos no Brasil ou México é um fenômeno mundial que não poupa nem a América do Norte nem a Europa.
Quando insistimos muito sobre o banditismo, obviamente não é para fazer dele um problema em si diante do qual existiria um remédio específico. Vamos ver que seu desenvolvimento vai de ombreado com o desenvolvimento de outros males sociais cuja amplitude e gravidade chegam até a constituir uma ameaça em grande escala para a vida das populações.
Nenhuma região do mundo é poupada por estas e as primeiras vítimas são geralmente trabalhadores. A causa destas não é o desenvolvimento industrial em si, mas o desenvolvimento industrial nas mãos do capitalismo em crise, onde tudo deve ser sacrificado aos objetivos da rentabilidade para enfrentar a guerra comercial mundial. Alguns exemplos:
Mas esses tipos de desastres foram quase ocultados pela sombra mórbida do desastre nuclear de Fukushima cuja gravidade superou Chernobyl (um milhão de mortes "reconhecido" entre 1986 e 2004). Na verdade, a burguesia é diretamente responsável pela magnitude mortal de Fukushima. Para os fins da produção, o capitalismo concentrou populações e indústrias de forma delirante. O Japão é uma caricatura desse fenômeno histórico: dezenas de milhões de pessoas estão reunidas numa pequena faixa de terra especialmente propensa a terremotos e, portanto, a tsunamis. Obviamente, as construções antitorremoto foram construídas para os edifícios mais ricos e de escritório; concreto simples teria sido suficiente para proteger de tsunami mas a classe trabalhadora, no entanto, teve que se contentar com casas precárias de madeira em lugares que todo mundo sabia que são altamente perigosos. O Japão é um país exportador e para maximizar o lucro, é melhor construir fábricas perto dos portos. Algumas fábricas também foram arrastadas pelas águas, fazendo que o desastre nuclear se incrementasse com um desastre industrial dificilmente imaginável. Neste contexto, uma crise humanitária afetou um dos centros do capitalismo mundial. Enquanto muitos equipamentos e infraestruturas estavam fora de uso, dezenas de milhares de pessoas foram abandonadas a seu destino, sem comida e sem água.
Certamente, não se pode culpar o capitalismo de estar na origem de um terremoto, um furacão ou da seca. No entanto, pode-se culpá-lo pelo fato de que todos estes cataclismos ligados a fenômenos naturais se tornam desastres sociais imensos, tragédias humanas enormes. Assim, o capitalismo tem forças tecnológicas que lhe permitem enviar homens à Lua, produzir armas monstruosas, capazes de destruir dezenas de vezes o planeta, mas ao mesmo tempo não cria os meios de proteger as populações do mundo expostas a desastres naturais. Isso poderia ser feito ao se construir represas, desviando rios, construindo casas que possam suportar terremotos ou furacões. Eis algumas ilustrações do fenômeno:
Se não fossem bem conhecidas, deveria-se falar também aqui das consequências da permanência do capitalismo em crise sobre o meio ambiente, consequências que poderiam se tornar letais para a humanidade.
Estas tragédias evidenciam a falência total do modo de produção capitalista que entrou, com a Primeira Guerra Mundial, na sua fase de decadência. Esta entrada em decadência significa que, após um período de prosperidade, durante o qual foi capaz de realizar um salto gigantesco nas forças produtivas e nas riquezas da sociedade através da criação e unificação do mercado mundial, este sistema alcançou, desde o início do século XX, seus próprios limites históricos. Resultado: duas guerras mundiais, a crise de 29 e novamente a crise aberta no final dos anos 1960, que desde então não deixa de mergulhar o mundo na pobreza.
O capitalismo decadente é a crise permanente, insolúvel, deste sistema que, por si só, constitui um enorme desastre para a humanidade, como o expressa em particular o fenômeno de pauperização crescente de milhões de seres humanos reduzidos à indigência, à extrema pobreza. A incapacidade do capitalismo decadente em integrar enormes massas sem trabalho no processo de produção não afeta apenas os países atrasados. No coração dos Estados desenvolvidos, a grande miséria na qual estão mergulhados dezenas de milhões de trabalhadores, cada dia revela mais a podridão deste sistema.
Ao se prolongar, a agonia do capitalismo dá uma nova qualidade às manifestações extremas da decadência: dá origem ao fenómeno de decomposição do sistema, um fenómeno visível nas últimas três décadas.
Esta decomposição não se limita apenas ao fato de que o capitalismo - apesar de sua tecnologia desenvolvida - encontra-se cada vez mais submetido às leis da natureza, na incapacidade de controlar os meios que utilizou para seu próprio desenvolvimento.
Esta decomposição atinge não só as bases econômicas do sistema, mas também se expressa em todos os aspectos da vida social, através de uma decomposição dos valores ideológicos da classe dominante. Estes valores, ao continuar seu declínio, carregam com eles um colapso de qualquer valor que permita a vida social.
Isso se pode constatar através de uma série de fenômenos:
A decomposição do capitalismo reflete a imagem de um mundo sem futuro, um mundo à beira do abismo, que tende a se impor à toda sociedade. É o reino da violência, do "cada um por si", que gangrena toda a sociedade, e particularmente suas camadas menos favorecidas, com o seu cotidiano de desespero e destruição: desempregados que cometem suicídio para escapar da pobreza, crianças sendo estupradas e assassinadas, idosos torturados e vítimas de latrocínio.
Enquanto, no passado, as relações sociais como também as relações de produção de uma nova sociedade em gestação podiam eclodir no seio da sociedade anterior em colapso (como era o caso para o capitalismo que pôde se desenvolver dentro da sociedade feudal em declínio), isto já não é mais possível hoje. A única alternativa possível só pode ser a construção, nas ruínas do sistema capitalista, de outra sociedade - a sociedade comunista - que poderá trazer uma plena satisfação das necessidades humanas graças a um florescer e uma dominação real das forças produtivas, que as leis do capitalismo faz impossíveis.
Até agora, os combates de classe que, durante quarenta anos, se desenvolveram em todos os continentes, foram capazes de impedir o capitalismo decadente de impor sua própria resposta ao impasse de sua economia: a explosão da última expressão de sua barbárie, uma nova guerra mundial. Porém, o proletariado ainda não é capaz de afirmar, através de lutas revolucionárias, a sua própria perspectiva.
Vivemos uma situação de impasse momentânea em que nem a alternativa burguesa, nem a alternativa proletária conseguem se afirmar abertamente. É justamente esta situação de impasse que constituiu a origem do fenômeno de decomposição da sociedade capitalista, que explica o extremo grau alcançado pela barbárie própria da decadência do capitalismo. E esta decomposição está para se ampliar mais ainda com o agravamento inexorável da crise econômica.
Frente à gravidade desta situação de apodrecimento do capitalismo, os revolucionários têm que alertar o proletariado contra o risco de destruição que o ameaça hoje. Na sua intervenção, eles têm que chamar a classe trabalhadora a achar em toda essa podridão que ela sofre diariamente, além dos ataques econômicos contra todas suas condições de vida, uma razão adicional, uma maior determinação para desenvolver e forjar sua unidade de classe.
As lutas atuais do proletariado mundial para a sua unidade e solidariedade de classe constituem a única perspectiva de esperança em meio deste mundo em apodrecimento total. Só elas são capazes de prefigurar algum embrião de comunidade humana. Da generalização internacional destes combates, poderão finalmente brotar as sementes de um novo mundo e poderão surgir novos valores sociais.
(29/11/2012)
[1] BBC Brasil - https://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/11/121115_vitimas_violenc... [202]
[2] BBC Brasil. Na realidade, se pode dizer com mais detalhes: "policiais militares tenham se organizado em grupos de extermínio para agir sem fardas para não prejudicar a imagem da PM. (...) Esses grupos estariam realizando ações para matar indiscriminadamente criminosos, usuários de drogas e pessoas que frequentam os mesmos ambientes que os criminosos - em um ciclo de retaliação às mortes de colegas."
Desde a sua criação, a CCI sempre destacou a importância decisiva de uma organização internacional de revolucionários no ressurgimento de um novo curso da luta de classes em escala mundial. Com sua intervenção na luta, embora ainda seja em escala modesta, com seus perseverantes trabalhos para a criação de um lugar verdadeiro de discussões entre grupos revolucionários, a CCI tem demonstrado na prática que a sua existência não era supérflua nem imaginária. Convencida de que sua função respondia a uma necessidade profunda da classe, tem combatido tanto o diletantismo como a megalomania dentro do meio revolucionário, ainda marcado pelos estigmas da irresponsabilidade e da falta de maturidade. Esta convicção não se apóia em uma crença religiosa, mas em um método de análises, a teoria marxista. As razões do ressurgimento da organização revolucionária não poderiam ser compreendidas fora dessa teoria, sem a qual não poderia haver movimento revolucionário autêntico.
A greve da Polícia Militar (PM) que aconteceu em vários estados do Brasil nesse início de ano, embora não simultâneas, teve repercussões importantes: aconteceram nos estados do Maranhão, Ceará, Bahia e se estendeu ao Rio de Janeiro. O movimento teve sua maior amplitude e contundência no estado da Bahia, onde foram mobilizados mais de 3 mil efetivos da Força Nacional de Segurança, Polícia Federal e, principalmente, do Exército; que na sua maioria atuaram na capital, Salvador, onde os policiais em greve juntamente com vários dos seus familiares tomaram a Assembléia Legislativa.
O governo de Dilma Roussef, dando continuidade à linha do seu mentor Lula, condenou o movimento grevista como um atentado contra a democracia e ordenou a mobilização do exército e da Polícia Federal para atuarem em Salvador, Rio e outras cidades com a finalidade expressa de reprimir os manifestantes. Jacques Wagner, governador do PT na Bahia, foi o encarregado de liderar as ações contra o movimento grevista nesse estado.
Por sua vez, altos representantes do PT, PCdoB, do esquerdista PSTU, do PSOL, bem como outras organizações de esquerda e direita se viram obrigados a se pronunciarem a favor ou contra o movimento. Os dois primeiros partidos, governistas, colocaram-se contra o movimento alegando grave atentado ao estado de direito e à democracia. Enquanto os esquerdistas PSTU e PSOL deram seu apoio irrestrito aos policiais, considerando-os "trabalhadores da segurança pública". A população, devido à ampla cobertura que as "mídias" deram ao conflito e diante dos temores de que aumentasse a violência e os homicídios, também se viu confrontada a dizer se apoiava ou não o movimento da PM.
A greve dos PM, que não é a primeira nem seguramente será a última do setor, expressa as dificuldades do Estado brasileiro para preservar a ordem e a coesão no interior dos seus corpos repressivos, afetados pela crise econômica tanto nas condições de vida dos seus membros como no seu funcionamento.
O proletariado e suas organizações de classe devemos ter a maior clareza sobre esta greve dos PM´s e o que representa para as próximas lutas que empreenderá o proletariado brasileiro, como resposta aos ataques que a burguesia descarrega sobre seus ombros que se acentuarão na medida em que se agudize a crise mundial do capitalismo.
A burguesia brasileira se vangloria de fazer parte da elite dos chamados países emergentes, posicionamento alcançado principalmente durante os períodos de governo de Lula, que de fato integra os países do denominado BRIC´s[1]. Também como seus sócios, este lugar que o Brasil ocupa foi alcançado graças a exploração e precarização das condições de vida do proletariado brasileiro, sustentado no seu ambiente de "paz trabalhista" logrado principalmente devido ao controle que a esquerda do capital exerce sobre as massas proletárias, encabeçada pelo PT.
Os policiais, bem como o resto da população assalariada, não escapa dessa pressão constante que o capital exerce contra suas condições de vida: baixos salários, precarização expressa em uma maior deterioração dos benefícios trabalhistas e das condições de trabalho, etc. No entanto, os militares, não importa a sua graduação na hierarquia, na condição de membros do aparato da repressão do Estado e por ele remunerado, ao entrarem em greve, trazem à luz do dia os conflitos e as contradições no seio da classe dominante que, por um lado, necessita contar com um corpo repressivo sempre apto a exercer a coerção e a violência contra o proletariado no momento em que lutam por reivindicações, mesmo as mais elementares como a de ter um salário que satisfaça as suas necessidades básicas. Por outro lado, na maioria dos casos, por se tratar de pessoas recrutadas no meio das famílias do proletariado – ao mesmo tempo que são os elementos da linha de frente na defesa da classe dominante – são os que percebem as menores remunerações dentre os que exercem suas funções diretamente ligadas ao aparato repressor estatal (polícia, juízes, tribunais), fato esse que causa um enorme descontentamento, levando-os à greve.
O recente conflito da PM mostra uma maior complicação para o Estado brasileiro já que foi o movimento reivindicativo do setor que teve maior amplitude. As medidas repressivas contra vários dirigentes do movimento tomadas pelo governo federal, em vez de aplacar, foi um motivo de maior radicalização. Por outro lado as reivindicações salariais alcançadas estão longe das aspirações iniciais do movimento. Foi pedido: a reintegração dos demitidos políticos que foram expulsos da PM depois da histórica greve de 2001, a incorporação de gratificações, o pagamento de um adicional de periculosidade, reajuste linear de 17,28% retroativo a abril de 2007 e a revisão no valor do auxílio alimentação. O que conseguiram: Aceitaram a proposta do governo de aumento de 6,5% nos salários, e mais uma gratificação por trabalho policial gradativa até 2014. Não houve anistia aos policias detidos.
O movimento grevista da PM faz parte do crescente definhamento da capacidade da burguesia para impor sua ordem, já que algumas forças de repressão irão se tornar menos confiáveis à medida que se acentuem as contradições do seu sistema, onde a agudização da crise capitalista, e com elas a aplicação de austeridade, vai ter um papel de primeira ordem.
É um fato que a grande maioria dos integrantes das corporações policiais, bem como a maior parte doa assalariados, não possuem meios de produção e só dispõem da sua força de trabalho para sobreviver; pertencem às camadas mais pobres da sociedade e se empregam com o Estado para receber um salário que lhes permita o sustento próprio como das suas famílias. Poderia se imaginar que por essa coincidência de camada social e por serem assalariados, os interesses e reivindicações dos policiais também coincidem com os do proletariado, que se vê forçado a lutar e mobilizar contra os embates do capital. Mas não é assim, são movimentos que se situam em campos contrários.
Isso não pode levar a esquecer que estão a serviço da manutenção do ordem dominante com a função de repressão e aterrorizar a população como o ilustra o seguinte: "Nos últimos meses choveu notícias de abuso policial, de agressões gratuitas à população, de estupros, de repressão violenta da PM a manifestações, além dos tradicionais assassinatos e tortura. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo e seus crimes diários nunca foram alvo de investigação e punição... A PM está na USP para reprimir os estudantes, assim como fez contra as manifestações no Piauí, no Recife, no Espírito Santo etc" [2]. Podemos ver também essa mesma atitude nos recentes casos da desocupação do Pinheirinho [3] e a ameaça de desocupação da comunidade quilombola Rio do Macaco na Bahia, onde a polícia militar que recentemente esteve em greve estava cumprindo a sua função repressora, juntamente com a Marinha.
É por isso que, para a classe operária e suas minorias revolucionárias, se faz necessário e fundamental ter a maior clareza a respeito do caráter de classe dos membros dos corpos policiais e dos corpos de repressão em geral. A situação de classe dos policiais não é definida pelo fato de ser um assalariado, mas que seus membros formam a primeira força repressiva da qual o Estado faz uso, e por conseqüência o capital, para enfrentar o proletariado.
Esta distinção obedece ao fato de que o proletariado não é formado pela soma de todos os assalariados, nem sequer, pela soma de todos os explorados. O proletariado é uma classe social cujos interesses são antagônicos à classe dos capitalistas e suas lutas reivindicativas são um elo na cadeia de lutas pela sua emancipação, que os leva a uma confrontação contra a burguesia e seu Estado. Quando luta um setor do proletariado não só está lutando o trabalhador explorado, mas um setor da classe revolucionária, que é capaz de chegar a tomar consciência, através das suas lutas e sua experiência, da força social que representa no capitalismo.
O policial ao decidir vender sua "força de trabalho" ao Estado para fazer parte dos corpos repressivos, coloca suas capacidades a serviço da burguesia com a missão específica de preservar o sistema capitalista através da repressão do proletariado. Nesse sentido, deixa de pertencer à classe dos proletários. Quando um desempregado ou alguém que procura um emprego decide fazer parte dos corpos policiais, aceita o "contrato" de ser fiel ao mandato de fazer cumprir a lei e a ordem estabelecida, o que o coloca, desse modo, contrário a qualquer movimento social ou de classe que enfrente os interesses do capital e seu Estado. Assim, o funcionário policial passa a ser um servidor da classe dominante e como tal se situa fora do campo do proletariado. Não é nenhuma descoberta que os membros dos corpos repressivos não só reprimem os trabalhadores como, inclusive, seus próprios vizinhos dos bairros onde moram.
O recente conflito entre os corpos policiais e seus chefes é um conflito no terreno do capital, uma vez que os membros dos corpos policiais pedem melhores condições salariais e de outra natureza para poder realizar seu trabalho e, inclusive, para realizar de maneira mais eficiente, ou seja, para realizar seu trabalho repressivo em um ambiente de "paz trabalhista".
Nesse sentido, é um erro chamar a solidariedade dos diferentes setores dos trabalhadores assalariados com uma greve de policiais deste tipo, pelo fato essencial que a função da polícia é a defesa do Estado capitalista. O fato dos policiais serem recrutados entre a população pobre não muda nisso, embora possa influir em outras circunstâncias.
O Estado de maneira hipócrita, enfrenta os grevistas acusando-os pelo aumento da criminalidade e de deixar a população à mercê da bandidagem. O Estado se organiza para atribuir aos corpos policiais um papel "social", "útil", como, por exemplo, a luta contra a criminalidade, e essa é a justificativa social da necessidade dessas forças a serviço do Estado. Desse modo, vemos como os proletários e o conjunto da população são induzidos a dar seu apoio para fortalecer os corpos repressivos, justificando a contratação de mais policiais ou com melhor equipamento. A criminalidade e a violência social se incrementam em todo o mundo devido às próprias contradições do capitalismo e à própria decomposição social, que não afeta só aos corpos policiais, como os altos mandatários do Estado e suas forças militares.
Há circunstâncias nas quais as forças da ordem, principalmente do exército, podem chegar a não atuar no marco da defesa do Estado capitalista. Isso pode acontecer em situações de lutas massivas do proletariado, quando são mobilizados amplos setores da população, e setores das forças militares rechaçam reprimir as lutas ou movimentos sociais, e inclusive chegam a se unir aos setores em luta e às confrontações militares com tropas que permanecem fiéis a burguesia. Nesses casos, se apresenta a possibilidade de apoiar e proteger aqueles membros dos corpos repressivos que se opõem desta forma às ordens de repressão do Estado.
A aceleração da crise do capitalismo desde 2007, que é a base da emergência dos movimentos sociais do Norte da África e dos países árabes, assim como de movimentos como o dos "indignados" na Europa principalmente ou "Ocupa Wall Street" nos Estados-Unidos, pode gerar situações de tentativas de confraternizações entre soldados e as massas em movimento. No entanto, tais circunstâncias devem ser analisadas com muita precisão política para não cair em comportamentos ingênuos como os que aconteceram durante os movimentos no Egito, quando o exército, fingindo simpatia com movimento, deixava a tarefa suja de repressão brutal à policia. Na realidade, neste país, como sabemos e é muito mais claro agora, o pilar do sistema é constituído pelo exército.
As ilusões democráticas desses movimentos e o fato de que o proletariado não tinha sido a classe que estava à cabeça dos mesmos os fez presa de falsas simpatias por parte das forças e instituições da ordem e os levou a buscar saídas que terminam reforçando o campo da burguesia. Só em situações revolucionárias muito avançadas, quando a correlação de forças entre burguesia e proletariado seja favorável a este último, se poderia esperar uma situação de confraternização com as forças militares, tal como já se apresentaram no movimento operário.
Episódios importantes deste tipo de situações de confraternizações se deram durante a Revolução Russa de outubro de 1917, que Trotsky expressa de maneira brilhante na sua obra História da Revolução Russa. que descreve e aprova a atitude dos operários russos em fevereiro de 1917 com respeito aos cossacos que "estavam fortemente penetrados do espírito conservador" [4] e eram "perpétuos fautores de repressão e de expedientes punitivos." (Ibid., p. 105.) ; e mais adiante nos fala "Os cossacos, entretanto, atacavam o povo mas sem brutalidade (...) os manifestantes dispersavam-se de um lado para o outro e, logo em seguida, refaziam os grupos. A multidão não tinha medo. Uma frase corria de boca em boca: "os cossacos prometeram não atirar." Evidentemente os operários tinham conseguido parlamentar com certo número de cossacos." (Ibid., p. 103-4.) (…) "Os cossacos puseram-se a responder individualmente às perguntas dos operários e chegaram a conversar ligeiramente com eles". (Ibid., p. 105) (…) "Um dos autênticos cabeças desses dias, o operário bolchevique Kayurov, conta que quando os manifestantes debandaram em certo ponto, sob os golpes das nagaicas da polícia montada, em presença de um pelotão de cossacos, ele, Kayurov, e outros operários que não imitaram os fugitivos, tiraram os gorros, aproximaram-se dos cossacos e, boné na mão, assim falaram: "Irmãos cossacos, ajudai os operários na sua luta por pacíficas reivindicações! Vede como nos tratam, a nós, operários famintos, estes faraós. Ajudai-nos." Este tom, conscientemente humilde, os gorros na mão, que justo cálculo psicológico, que gesto inimitável! Toda a história de combates de ruas e de vitórias revolucionárias está cheia de semelhantes improvisações." (Ibid., p. 107-8.)
O proletariado e suas minorias revolucionária devemos ter presente que, mais a longo prazo, não pode haver vitória militar sobre a burguesia sem desagregação das forças de repressão. A desagregação será o produto de vários fatores:
· A crise econômica;
· A pressão da luta de classe, a perspectiva do poder do proletariado que se impõe à sociedade como uma alternativa à burguesia;
· Nesse contexto, o fato das forças de repressão serem constituídas essencialmente por elementos das camadas exploradas ou pobres da sociedade as torna vulneráveis aos chamados de confraternização por parte do proletariado.
Pode ser que muitos proletários, elementos e grupos políticos da classe no Brasil simpatizem ou se solidarizem com a greve dos PM´s, uma vez que, de algum modo, compartilham com a classe trabalhadora parte das penúrias a que nos submete o capital. Inclusive alguns podem chamar os trabalhadores a tomar como exemplo de luta a greve dos policiais. Contudo, tal colocação só contribui para prejudicar a consciência da classe operária e debilitar sua capacidade de enfrentar a classe inimiga, já que não só pretende colocar a greve dos policiais como um acontecimento que pertence às lutas do resto do proletariado, mas, também favorece uma falta de confiança nas capacidades do proletariado brasileiro para desenvolver suas lutas no seu próprio terreno de classe depois de décadas de sonolência devido à ação do PT, dos outros partidos de direita e esquerda do capital, e seus sindicatos.
Quando essa "velha toupeira" da qual Marx nos falava comece a abalar os pilares do capital brasileiro, momento em que, sem dúvidas, será enfrentado fortemente pelos corpos repressivos do Estado, sua luta persistente e tenaz no seu terreno de classe poderá abrir caminho a uma fragilização dos mesmos.
CCI
14/03/2012
[1] Em economia [203], BRIC é uma sigla [204] que se refere a Brasil [205], Rússia [206], Índia [207],China [208], que se destacam no cenário mundial como países em desenvolvimento [209].Fonte: < https://pt.wikipedia.org/wiki/BRIC>, [210] extraído em 14/03/2012.
[2] PCO, Greve da PM: governo quer a polícia reprimindo a população. Fonte: <https://www.pco.org.br/conoticias/ler_materia.php?mat=34993> [211]
[3] OPOP, Nós somos o Pinheirinho: Todo apoio e solidariedade aos moradores do Pinheirinho. Fonte: <https://revistagerminal.com/2012/01/24/nos-somos-o-pinheirinho-todo-apoi... [212]
[4] Trotsky, História da Revolução Russa. Paz e Terra, 32ª Ed, 1978, p. 105.
“Um espectro ronda o mundo”, o espectro da INDIGNAÇÃO. Há mais de dois anos do despertar da chamada “Primavera Árabe” que sacudiu de maneira surpreendente os alicerces de vários países do Norte da África cujas consequências ainda são sentidas; há dois anos do movimento dos Indignados na Espanha, dos Ocuppy nos Estados Unidos… e simultaneamente com os movimentos que ainda sacodem a Turquia, em junho passado levanta-se no Brasil uma onda de manifestações que chegou a mobilizar milhões de pessoas em mais de 100 cidades, com características inéditas neste país.
Esses movimentos que tem ocorrido em países tão dessemelhantes e tão distantes em sua geografia possuem vários aspectos em comum: sua espontaneidade, uma repressão brutal do Estado, sua massividade, uma participação majoritária de jovens, são promovidos através das redes sociais, etc.; entretanto, o denominador comum que os identifica é uma grande INDIGNAÇÃO diante da deterioração das condições de vida do conjunto da população mundial, causada pela profunda crise que sacode os fundamentos do sistema capitalista, que se acelerou depois de 2007. Deterioração que se expressa numa precarização acelerada, sobretudo no nível de vida das massas trabalhadoras e; cria no seio juventude proletarizada ou em processo de proletarização uma grande incerteza frente ao futuro. Não é casual que o movimento na Espanha se identificou com o nome de “Indignados”, e dentro dessa maré de movimentos sociais foi o mais avançado tanto na sua denúncia contra o sistema capitalista quanto na sua forma de organização através de assembleias massivas [1].
Esses movimentos, como observamos, podem surgir em qualquer parte do mundo e algumas vezes por motivos aparentemente pouco significativos, são um indicativo de que as lutas sociais tendem a se colocarem em primeiro plano no cenário mundial. Por suas reivindicações, seus meios de luta, sua confrontação contra o Estado burguês e contra os partidos do status quo, sejam de direita ou esquerda, se inscrevem na perspectiva de luta do proletariado mundial pela superação do modo de produção capitalista, que se mostra incapaz de garantir o desenvolvimento da humanidade, sem contar a potencial ameaça à sua sobrevivência. Presenciamos desta maneira como os movimentos iniciais dessa “velha toupeira” que Marx se referia começam a escavar as bases da ordem capitalista, e tenta atingir a superfície.
Os movimentos sociais de junho no Brasil, que saudamos e nos quais pudemos intervir na medida das nossas forças, tem um significado muito importante para o proletariado brasileiro, da América Latina e do resto do mundo, pois transcendem em grande medida o marco local deste país. Foram movimentos massivos que se diferenciam radicalmente dos “movimentos sociais” sob o controle do Estado, do PT e outros partidos políticos, e organizações sociais como o MST, por exemplo. Além disso, também se diferenciam de movimentos que surgiram em vários países da região nas últimas décadas, como o da Argentina no início do século, o indigenista na Bolívia e Equador, o movimento zapatista no México e do chavismo na Venezuela, que foram o resultado de confrontações entre frações burguesas e pequenas burguesas, entre elas grupos, movimentos sociais, organizações esquerdistas e partidos de esquerda, defensores do capital nacional, que buscavam o controle do Estado. Nesse sentido, as mobilizações de junho no Brasil representam a maior mobilização espontânea de massas nesse país e na América Latina nos últimos 30 anos. Por isso, é fundamental para os que lutam contra o capitalismo e por uma nova sociedade, façamos um balanço deste movimento a partir de uma perspectiva de classe e que se aproprie das lições desses acontecimentos.
Sem dúvida este movimento surpreendeu a burguesia brasileira e mundial, as organizações revolucionárias dentro e fora do Brasil [2], bem como os próprios grupos e organizações que inicialmente o impulsionaram. A luta contra o aumento do preço das passagens (acordo celebrado anualmente entre os empresários do transporte com o Estado) foi apenas o detonante para que brotassem expressões de indignação que vinham se acumulando há muito tempo na sociedade brasileira [3], que se manifestaram em 2012 com as lutas dos funcionários públicos, nas universidades e nas construções de grandes obras públicas do PAC; e em “inúmeras greves contra a baixa dos salários e precarização das condições de trabalho, educação e saúde” que aconteceram no Brasil nos últimos anos.
Diferentemente dos movimentos sociais massivos que ocorreram em vários países desde 2011, o do Brasil surgiu e se unificou ao redor de uma reivindicação concreta que permitiu a mobilização espontânea de amplas camadas do proletariado: contra o aumento da passagem do transporte público [4]. O movimento tomou um caráter massivo em escala nacional depois do dia 13 de junho, quando as manifestações de protesto contra o aumento, convocados pelo MPL [5] em São Paulo. Entretanto, desde antes, há varias semanas antes das grandes mobilizações em SP, realizaram-se protestos pela mesma reivindicação em várias cidades do país, promovidas pelo MPL e outros movimentos a tal ponto que, por exemplo, em Porto Alegre, Goiânia e outras cidades governos locais foram obrigados a revogar o aumento da passagem, depois de árduas lutas violentamente reprimidas pelo Estado. Isso deixava claro o movimento social de Goiânia em 19/06/2013:
O movimento apresentou elementos que o identificam como um movimento claramente inscrito no campo do proletariado. Em primeiro lugar, é preciso destacar que a maioria dos manifestantes pertencem à classe trabalhadora, principalmente eram jovens proletários e estudantes, na sua maioria filhos de famílias proletárias e futuros proletários. A imprensa burguesa apresentou o movimento como expressão das “classes médias”, com a clara intenção de criar divisão entre os trabalhadores, já que a maioria dos catalogados como classe média, economicamente recebem salários precários, menores do que muitos operários qualificados das zonas industriais do país. Isto explica o apoio e simpatia que o movimento despertou contra o aumento do preço das passagens, pois representa um ataque direto nos rendimentos das famílias proletárias. Também explica porque essa reivindicação inicial rapidamente se ampliou para uma denúncia contra o Estado devido ao péssimo estado dos sistemas de saúde, educação e assistência social, além da denúncia contra o imenso volume de dinheiro público investido para a celebração da Copa do Mundo do próximo ano e para os Jogos Olímpicos de 2016 [7], eventos que ocasionaram o despejo forçado de comunidades próximas dos estádios, como foi o caso da Aldeia Maracanã no Rio no primeiro semestre desse ano e vários incêndios em favelas em zonas de interesses de empresas imobiliárias em São Paulo. Tal situação foi denunciada pelo Bloco de Lutas Pelo Transporte 100% Público de Porto Alegre em 20/06/13:
Foi bastante significativo que o movimento se organizou para realizar protestos nas proximidades dos estádios das diversas cidades onde eram realizados os jogos da Copa das Confederações, pois permitiu utilizar a cobertura midiática a nível internacional para mostrar seu rechaço ao espetáculo preparado pela burguesia brasileira; bem como mostrar a brutal repressão do Estado contra os que protestavam em volta dos estádios, e que provocou a morte de alguns manifestantes. Foi uma grande lição para o proletariado mundial o fato dos proletários brasileiros se manifestarem por essa via, levando-se em conta que o futebol é o esporte nacional e muito explorado sabiamente pela burguesia brasileira como parte do circo necessário para o controle da sociedade. A população brasileira mostrou que gosta de futebol, mas não está disposta a suportar sobre as suas costas os custos dos eventos esportivos preparados pela burguesia brasileira para exibir suas qualidades de “burguesia do primeiro mundo”. Por tal motivo, os manifestantes exigiam qualidade de serviços “padrão FIFA”. Os movimentos de junho jogaram água no chopp da festa promovida pela burguesia brasileira.
Ao lado dessas reivindicações o movimento mostrou sua indignação diante dos altos níveis de decomposição demonstrados pela burguesia brasileira, rechaçando o gasto, a corrupção, a indolência e a arrogância do Estado, orientando o protesto contra as instituições mais emblemáticas do Estado brasileiro: em Brasília, a capital, o prédio do Congresso foi tomado e houve tentativas de adentrar no Palácio do Itamaraty, emblema da política exterior do Estado; no Rio de Janeiro tentaram entrar na Assembleia Legislativa e vários habitantes das favelas, dentre as quais a da Rocinha, protestaram diante da residência do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral do PMDB; em São Paulo tentaram entrar na prefeitura e na Assembleia Legislativa e em Curitiba tentaram entrar na sede do Governo Estadual. Do mesmo jeito, houve um rechaço massivo aos partidos políticos, principalmente ao PT, bem como organizações sindicais ou estudantis: em SP foram expulsos vários de seus membros das manifestações por portarem bandeiras do PT e da CUT e outras organizações, partidos da esquerda, eleitorais ou não, como PSTU, PSOL, PC do B, PCB e sindicatos.
Aconteceram outras expressões do caráter de classe do movimento, manifestadas, contudo, de forma minoritária. No calor do movimento foram realizadas assembleias para organizar as ações, embora não com a difusão e grau de organização dos Indignados na Espanha. Temos como exemplo as que foram celebradas no Rio de Janeiro e Belo Horizonte, sendo que nesta segunda cidade adotaram a identificação de “Assembléia Popular e Horizontal” que se propuseram fazer um “novo espaço espontâneo, aberto e horizontal de debate”, onde chegaram a participar mais de 1000 pessoas.
Essas assembleias, apesar de ter mostrado a vitalidade que teve o movimento e a necessidade de organização das massas por suas reivindicações, apresentaram várias debilidades:
O movimento também colocou algumas referências aos movimentos sociais em outros países, principalmente ao da Turquia, que também fazem referências ao do Brasil [9]. Embora fosse através de expressões minoritárias, foi possível ver algo em comum em ambos os movimentos.
Em Goiânia em uma Frente de Luta contra o Aumento que reuniu várias organizações de base destacava a necessidade de solidariedade e do debate entre os diferentes atores:
Ademais, em várias manifestações foram exibidos cartazes que proclamava a seguinte palavra de ordem:
A grande indignação que reside no proletariado brasileiro fica concretizada na seguinte reflexão da Rede Extremo Sul, rede de movimentos sociais da periferia de São Paulo:
Publicado em https://passapalavra.info/2013/06/79539 [213]
Por que dizemos que as causas das mobilizações no Brasil vinham sendo gestadas há algum tempo?
A burguesia brasileira, tal como aspira em maior ou menor grau cada burguesia nacional, tem trabalhado há décadas para fazer o Brasil uma potência regional e mundial. Para conseguir esse fim, não bastava dispor de um imenso território que ocupa quase a metade da América do Sul, nem contar com grandes quantidades de recursos naturais. Era necessário criar as condições para manter o controle social, principalmente dos trabalhadores. Não sob a bota militar, mas através dos mecanismos mais sofisticados da democracia. Com essa finalidade, preparou uma transição nos anos 80 de um regime de ditadura militar a um de democracia republicana, objetivo alcançado no plano político com a conformação de dois polos: um de forças de direita formada por partidos surgidos nos anos 80, como o PSDB (composto por intelectuais, burguesia e pequena burguesia) e partidos de direita ligados com forças da ditadura (PMDB, DEM, etc); outro de centro-esquerda que se consolidou ao redor do PT, com uma grande influência a nível popular, mas principalmente a nível operário e camponês. Desse modo, estabilizou-se um marco de alternância de governos de direita e centro-esquerda, baseado em eleições “livres e democráticas”, imprescindível para poder fortalecer o capital brasileiro no mercado mundial [12].
Assim a burguesia brasileira conseguiu fortalecer seu parque industrial e suportar o pior da crise económica dos anos 1990, enquanto na esfera política o PT ganhava força, e graças à sua juventude conseguiu cooptar organizações e dirigentes sindicais, membros da igreja católica adeptos da “Teologia da Libertação”, os trotskistas que viam no PT como o partido revolucionário de massas, intelectuais, artistas e elementos democratas. O PT representou a resposta de esquerda da burguesia brasileira, depois da derrubada do bloco russo em 1989 que deixou enfraquecidas as forças da esquerda do capital a nível mundial. Assim, conseguiu algo que causava inveja nas outras burguesias da região: uma força política que lhes permitia o controle das massas pauperizadas, pero sobretudo manter a “paz trabalhista” no que se refere à força de trabalho. Por fim, a situação consolidou-se com a ascensão do PT ao poder nas eleições de 2002, utilizando o carisma e o perfil “operário” de Lula [13].
Com estes precedentes, na primeira década do novo século a economia brasileira se colocou como a sétima economia do mundo segundo o Banco Mundial, de modo que atualmente faz parte da “nata” dos países emergentes do grupo dos BRICs. Além disso, a burguesia mundial elogia o “milagre brasileiro” alcançado pelos governos de Lula, que supostamente permitiu tirar da pobreza milhões de brasileiros e inserir na “classe média” outros milhões. Entretanto, algo que nunca fizeram menção nem o PT, nem Lula, nem o conjunto da burguesia, é que esse “grande êxito” se fez sobre a base de uma reorganização do Estado para orientar parte da mais-valia para repartir migalhas às massas mais miseráveis, sustentada numa precarização progressiva das massas trabalhadoras.
Quando irrompeu a crise económica de 2007, cujos efeitos depois de 6 anos continuam afetando a economia mundial, Lula, assim como outros governantes da região, disse que a economia brasileira estava “blindada”. Enquanto as principais economias do mundo se balançavam, a economia brasileira continuava galopante. Embora o Brasil não estivesse no olho do furacão da crise, não há dúvidas que em uma economia mundial tão inter-relacionada, onde nenhum país que podia escapar aos seus efeitos, não seria diferente para o Brasil que depende em grande medida das exportações de matérias primas e commodities. Para exemplificar temos a China (o grande sócio do Brasil no grupo dos BRIC’s,) cuja economia está seriamente abalada pela crise mundial.
Para suavizar os efeitos da crise, a burguesia brasileira desenvolveu uma agressiva política de ampliação do mercado interno, criando um boom na construção a nível público e privado, que se ampliou com as reformas e construções da infraestrutura esportiva para os compromissos esportivos de 2014 e 2016. Promovendo um endividamento das famílias, ao facilitar a compra, desde apartamentos e automóveis até eletrodomésticos, essa política tem ocasionado um incremento do gasto público devido aos subsídios diretos e indiretos as famílias.
A crise mundial e sua consequente retração do comércio mundial, aliada a pressão monetária afetaram negativamente as exportações brasileiras, evidenciado no déficit da balança de pagamentos em 3,0 bilhões de dólares no primeiro trimestre deste ano, o pior semestre desde 1995. Este quadro provocou um enfraquecimento da economia nos últimos dois anos (crescimento de 0,9% em 2012; e uma queda nas estimativas de crescimento para este ano entre 2,9% a 2,4%), e um crescimento progressivo da inflação (de 5,8% em 2012, 30% maior que o estimado; de 3,15% no primeiro semestre, com projeção anual de 6,7%) que repercute bastante no poder aquisitivo dos trabalhadores devido ao aumento dos bens e serviços. Do mesmo modo, há uma tendência à diminuição dos postos de trabalho e ao incremento do desemprego, situação percebida pela população.
Nesse sentido, o movimento de protestos no Brasil não surge do nada. Há um conjunto de causas que o fizeram surgir, que não só se mantém como vão se agravar, com o aprofundamento da crise econômica. Devido aos protestos o Estado se viu obrigado a aumentar os gastos na área social, mas a realidade é que a crise econômica o obriga a tomar medidas para a redução de gastos. Por isso a própria presidente Dilma Rousseff declarou que tem de cortar o gasto público.
Como era de se esperar, a burguesia brasileira não ficou de braços cruzados para enfrentar a crise social, que embora acalmada, continua latente. A única coisa concreta que outorgou, por causa da pressão das massas, foi a revogação do aumento das passagens em várias cidades, que o Estado terá de cobrir por outros meios para subsidiar os empresários do transporte, embora seja evidente que os preços sejam absurdamente altos. Em São Paulo, as passagens de ônibus e do metrô custam R$ 3,00, algo em torno de U$ 1,53.
No início dos protestos, para acalmar os ânimos, enquanto o governo preparava sua estratégia para tentar controlar o movimento, a presidente Dilma Rousseff declarou, através de uma cadeia nacional de rádio e televisão, que considerava “legítimas e próprias da democracia” o protesto da população, enquanto seu mentor Lula, “criticava” os “excessos” da polícia. Mas a repressão do Estado não cessava e os protestos tampouco.
Uma das armadilhas mais elaboradas contra o movimento foi a criação do mito do “golpe de Estado” de direita propagado não só pelo PT e o PCdoB, como também pelos trotskistas do PSTU e PCO e ainda PSOL e PCB. Desta maneira se tentou desviar o movimento para um apoio ao governo de Dilma, fortemente debilitado pelo movimento. Mas não só isso, e sim com essa armadilha se pretendeu encorajá-lo no falso dilema “Ditadura versus democracia” ou “democracia versus fascismo” mediante o qual as frações burguesas de direita e esquerda do capital têm levado desde o século passado as lutas proletárias ao campo de defesa do capitalismo. As forças de esquerda e esquerdistas do capital brasileiro fazem seu grande aporte neste sentido ao identificar o fascismo com repressão ou com regimes de direita: a repressão feroz contra os protestos de junho no Brasil exercida pelo governo de esquerda do PT foi às vezes foi tão brutal que a dos regimes militares.
Diante da queda abismal da popularidade de Dilma, que atenta contra sua possível reeleição nas eleições presidenciais de outubro de 2014, a ala governista lançou uma cortina de fumaça com uma “reforma política”, que visa entre outros objetivos enfrentar a corrupção na esfera dos partidos políticos e fazer algumas reformas no Estado. Estão tentando, por essa via, mobilizar a população para um processo votação, mediante um plebiscito ou referendo, que aparentemente não vai arregimentar grandes parcelas da população em sua defesa.
Como uma tentativa de ganhar as ruas e as mobilizações sociais, os partidos políticos da esquerda do capital e sindicatos, com várias semanas de antecedência anunciaram a convocatória de um “Dia Nacional de Lutas” para o dia 11 de julho, supostamente com objetivo de protestar pelo cumprimento dos acordos trabalhistas e contra direitos trabalhistas retirados nos últimos 20 anos. Desta forma também se antecipavam a qualquer manifestação de apoio ao movimento por parte de setores da classe trabalhadora. Nesta simulação de mobilização, onde participaram apenas dirigentes e membros dos sindicatos, foram de mãos dadas todas as organizações sindicais tanto do governo como da oposição.
Do mesmo modo, Lula, mostrando sua grande experiência contra os trabalhadores, se reuniu em 25 de junho com “representantes” de movimentos sociais e organizações estudantis controladas pelo PT e pelo PCdoB, integrantes da base aliada do governo (União da Juventude Socialista- PCdoB), Consulta Popular e Levante Popular da Juventude, UNE - União Nacional dos Estudantes (PT e PCdoB), CUT (sindicato controlado pelo PT), e Conselho Nacional da Juventude; com o fim expresso de tomar a rua e neutralizar o movimento de protestos [14].
A grande força do movimento foi que desde seu início se afirmou como um movimento contra o Estado, não só pela reivindicação central contra o aumento da passagem, mas também pela denúncia do abandono nos serviços públicos bem como o repúdio à orientação de recursos para os espetáculos esportivos. Assim também, a amplitude e contundência dos protestos que obrigaram a burguesia a voltar atrás na medida de aumento das passagens em diversas cidades.
O fato de ter uma reivindicação concreta foi uma característica a favor do movimento, embora por outro lado representou uma limitação em vários sentidos. Em primeiro lugar, a tendência natural ao seu enfraquecimento depois de conseguida a revogação do aumento das passagens; por outro lado, e é o mais importante, não se via como um movimento contra a ordem capitalista, aspecto que foi central por exemplo no movimento dos indignados na Espanha.
Outro ponto positivo foi o rechaço aos partidos políticos e sindicatos, que expressa uma desconfiança para os principais meios de controle social da burguesia. Representa uma fratura no plano ideológico para a burguesia, devido ao peso da decomposição nas suas filas e uma tendência ao esgotamento dos planos políticos que surgiram depois da ditadura. Embora por trás desse rechaço, esconda-se o perigo do apoliticismo, que se expressou na desorientação política do movimento, pois tende a rechaçar a discussão e a compreensão da raiz dos problemas pelos quais se protesta, que são eminentemente políticos, pois requerem de uma crítica aos fundamentos do sistema capitalista de produção. Sem debate político não existe possibilidade de avanço real dos movimentos de luta.
Estreitamente relacionado com o debate político estão os meios para consegui-lo. Neste sentido, uma das debilidades do movimento foi a ausência de assembleias de rua abertas a todos os participantes onde se debatam as ações a realizar, a organização do movimento, o balanço e os objetivos. As redes sociais são um meio para a convocação, mas nunca irão substituir o debate vivo e aberto das assembleias.
Uma das maiores debilidades do movimento foi o peso do nacionalismo, que se expressou não só na presença das bandeiras do Brasil e palavras de ordem nacionalistas nas mobilizações, bem como no frequente canto do hino nacional. Neste sentido, o movimento de junho no Brasil apresentou as mesmas debilidades das mobilizações na Grécia ou nos países árabes, onde a burguesia conseguiu diluir a grande vitalidade dos movimentos para um reforçamento ou salvação do Estado. Neste sentido, a denúncia do movimento contra a corrupção promovida por setores da burguesia e pequena burguesia, favorece ao capital a burguesia e seus partidos políticos principalmente os de oposição, que por essa via pretendem tirar algum ganho política diante das próximas eleições. O nacionalismo é um beco sem saída para as lutas do proletariado e prejudica a solidariedade internacional dos movimentos de classe.
Mesmo que o movimento apresentasse uma participação majoritária de camadas do proletariado, essa presença ocorreu de maneira atomizada. O movimento não alcançou mobilizar os trabalhadores dos setores industriais que possuem um grande peso, principalmente em SP; nem se propôs a isso. A classe operária, que sem dúvida alguma viu com simpatia o movimento e se identificou com ele, pois se lutava por uma reivindicação que a beneficiava, não conseguiu se mobilizar como tal. Esse comportamento não deve nos surpreender, já que ela esteve sujeita há décadas de imobilização devido à ação exercida no seu interior pelos partidos políticos e sindicatos, principalmente do PT e da CUT.
Esta situação nos leva a levantar a questão da identidade de classe, que não só está debilitada a nível da classe operária no Brasil, mas a nível mundial. Isso explica de alguma maneira a emergência dos movimentos sociais com as características do Brasil, Turquia, Espanha, Estados Unidos, Egito etc., onde são as novas gerações de proletários, alguns deles sem empregos, que se revelam e percebem que o capitalismo impede as possibilidades de terem uma vida decente e sentem na própria carne os sofrimentos da precarização dos seus familiares.
Nesse sentido, as mobilizações no Brasil são uma fonte de inspiração e deixam um grande ensinamento para o conjunto do proletariado brasileiro e mundial: que não há saída possível para os nossos problemas sob o capitalismo. Espera-se que o proletariado assuma sua responsabilidade histórica de lutar contra o capital, buscar novamente sua identidade de classe através da solidariedade não só do proletariado no Brasil, mas a nível mundial. Assim, sua luta convergirá com as dos jovens proletários que hoje se mobilizam contra o capital e será uma referência para eles.
[1] Leia em referência o artigo sobre o movimento dos indignados em:
- 2011: da indignação à esperança. https://pt.internationalism.org/ICConline/2012/2011_da_indignacao_a_esperanca [214]
- Movimento de indignados na Espanha, Grécia e Israel: Da indignação à preparação dos combates de classe [215]. /content/325/movimento-de-indignados-na-espanha-grecia-e-israel-da-indignacao-preparacao-dos-combates [215]
[2] Referimo-nos às organizações que defendem o proletariado como sujeito da revolução, que estão contra qualquer expressão de apoio ao nacionalismo e que defendem o internacionalismo, que lutam pela revolução proletária como via de superação do capitalismo e pela construção do comunismo. Sob esses alicerces que se fundamenta as posições da Esquerda Comunista.
[3] Uma reunião pública realizada pela CCI e outros companheiros na Universidade Federal de Santa Catarina em abril de 2012, onde apresentamos o tema do movimento dos indignados na Espanha, despertou um grande interesse entre os participantes que fizeram muitas perguntas sobre as características desse movimento: suas causas, seus fins, forças sociais que o impulsionaram, formas de organização, etc. Naquela oportunidade uma estudante presente nos fez a seguinte pergunta: “Por favor, explique-nos porque no Brasil não tem acontecido um movimento como o dos indignados na Espanha, se aqui também estamos bastante indignados?” Pois o próprio proletariado brasileiro, principalmente seus setores mais jovens, está dando a resposta.
[4] Leia em: Manifestações contra o aumento dos preços das passagens: a repressão policial desencadeia fúria da juventude [216]. https://pt.internationalism.org/node/339 [216].
[5] Movimento Passe Livre, organização que tem um programa de reformas que considera que o Estado capitalista deve garantir como direito o transporte público e gratuito para toda população. saopaulo.mpl.org.br
[6] Cf. artigo publicado pela Frente de Luta contra o aumento. https://passapalavra.info/2013/06/79588/ [217]
[7] Segundo estimativas os dois eventos custaram ao Estado brasileiro 31,3 bilhões de dólares, cerca de 1,26% do PIB, enquanto o investimento no programa social Bolsa Família, emblemático programa implantado pelo governo Lula, só representa 0,5% do PIB.
[8] Publicado em sul21.com.br/jornal/2013/06/bloco-de-luta-pelo-transporte-100-publico-divulga-nota-com-reivindicacoes-em-porto-alegre.
[9] Logo publicaremos um artigo em que faremos um balanço dos movimentos de Turquia e Brasil, que aconteceram de modo simultâneo.
[10] Publicado em https://passapalavra.info/2013/06/79539/ [218]
[11] Publicado em https://passapalavra.info/2013/06/79419/ [219]
[12] Uma transição estratégica e calculada pelos militares e articuladores civis do regime, de modo a evitar qualquer contratempo na execução do projeto que consistia em primeiro lugar uma "distensão", depois uma "abertura" e por fim "eleições democráticas", onde finalmente as diversas orientações políticas pudessem formar novos partidos, na esteira desses acontecimentos surgem os diversos partidos que desde a instauração da ditadura militar estavam confinados em apenas dois: ARENA (partido de sustentação política dos militares e da direita) e MDB que se constituía em uma frente onde abrigava elementos socialdemocratas, esquerdistas, etc. Assim, para participarem das eleições diretas, a ARENA dá lugar ao nascimento do PDS e PP, formado por elementos da direita e dissidentes respectivamente; MDB agrupando a chamada burguesia nacional desenvolvimentista e organizações stalinistas (PCB e PCdoB, MR8 e outros agrupamentos menores); PT foi formado por elementos socialdemocratas de diversas orientações, trotskistas e dissidências dos PC’s juntamente com os novos sindicalistas (inspirado na socialdemocracia europeia) e lideranças católicas que atuavam no movimento operário em sindicatos ou nas comissões de fábricas; esses últimos arregimentaram para suas bases operários, camponeses e segmentos importantes do movimento popular influenciados pelas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja católica. Completando essa primeira rearrumação das forças da burguesia, os trabalhistas representados pelo PDT e PTB. Resumidamente, dessa maneira se consolidou um marco de alternância de governos de direita e centro-centro esquerda, imprescindíveis para poder fortalecer o capital brasileiro no mercado mundial.
[13] Evidentemente que para se consolidar como alternativa de poder o PT ao longo da sua trajetória teve que se despojar em grande medida do perfil socialdemocrata apresentado em seu programa para ampliar o apoio de setores da burguesia mais reticentes e paralelamente excluir das suas fileiras elementos das tendências trotskistas e outros mais aparentemente mais radicais que vieram a constituir o PSTU(Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados), PSOL(Partido Socialismo e Liberdade ) e PCO (Partido da Causa Operária).
[14] - UJS: União da Juventude Socialista, entidade vinculada ao PCdoB. Com atuação no meio estudantil e movimentos culturais;
Uma onda de protestos está acontecendo em grandes cidades do Brasil contra o aumento dos preços das passagens do sistema de transporte coletivo, com destaque maior para a cidade de São Paulo, mas que foi seguida também por Rio de Janeiro, Porto Alegre, Goiânia, Aracaju e Natal. É um despertar que tem reunido muitos jovens e estudantes e, em menor número, mas não ausente, um número de trabalhadores assalariados e autônomos (prestadores de serviços pessoais) para lutar contra esse aumento num preço que já era alto por um serviço de péssima qualidade, o que vem a piorar ainda mais as condições de vida de amplas camadas da população.
A burguesia brasileira, encabeçada pelo PT e seus aliados, tem insistido em afirmar que tudo vai bem. Embora a realidade vista é que se tem encontrado dificuldades em conter a inflação, ao tempo que adota medidas de subsídios ao consumo das famílias, como uma tentativa desesperada de evitar que a economia entre em recessão. Sem nenhuma margem de manobra, a única alternativa que podem contar para combater a inflação é, em uma ponta, aumentar a taxa de juros e, na outra, cortar as despesas com os serviços públicos de educação, saúde e assistência social, deteriorando ainda mais as condições de vida do conjunto da população que depende de tais serviços.
Nos últimos anos, muitas greves foram deflagradas contra a baixa dos salários e precarização das condições de trabalho, educação e saúde. Entretanto, em sua maioria as greves foram controladas pelo cordão de isolamento dos sindicatos ligados ao governo petista e muito desse descontentamento foi contido para que não atrapalhasse a "paz social", em benefício da economia nacional. E é nessa linha que o aumento da tarifa dos transportes em São Paulo e no resto do Brasil se coloca: cada vez mais sacrifícios para os trabalhadores apoiar a economia nacional, quer dizer o capital nacional.
Sem dúvida alguma os exemplos de movimentos que tem explodido ao redor do mundo nos últimos anos, com participação majoritária da juventude, evidenciam que o capitalismo não tem nenhuma alternativa a oferecer para o futuro da humanidade a não ser mais desumanidade. Por isso, a recente mobilização da Turquia tem ecoado tão forte nos protestos contra o aumento da tarifa de transportes. A juventude brasileira tem mostrado que não quer aceitar a lógica dos sacrifícios imposta pela burguesia e se inscreve nas lutas que sacudiram o mundo nos últimos anos a exemplo dos filhos da classe trabalhadora da França (luta contra o CPE em 2006), da juventude e dos trabalhadores da Grécia, do Egito e Norte da África, dos indignados da Espanha, dos Occupy dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Uma semana de protestos e a reação brutal da burguesia
Inspirado pelo êxito das manifestações nas cidades de Porto Alegre e Goiânia, que enfrentaram forte repressão, mas mesmo assim conseguiram a suspensão dos aumentos das tarifas, as manifestações em São Paulo se iniciaram com o ato do dia 06 de junho. Convocada pelo Movimento Passe Livre (MPL), grupo integrado majoritariamente por jovens estudantes influenciados por posições de esquerda, e por anarquistas, ganhou uma adesão surpreendente estimada entre 2 e 5 mil pessoas. Depois ocorreram protestos nos dias 07, 11 e 13. Desde o primeiro dia, a repressão foi brutal, com o saldo de muitos jovens feridos e detidos. É de ressaltar a coragem e combatividade demonstrada e o rápido ganho de simpatia por parte da população que surpreendeu os próprios organizadores desde os seus momentos iniciais.
Diante da manifestação, a burguesia desatou um grau de violência poucas vezes visto na história de movimentos dessa natureza, completamente respaldada pela mídia que tratou de imediato em classificar os manifestantes de vândalos e irresponsáveis. Um indivíduo do alto escalão do Estado, o Promotor de Justiça, Rogério Zagallo manifestou-se publicamente aconselhando que a polícia batesse e matasse:
"Estou há duas horas tentando voltar para casa, mas tem um bando de bugios revoltados parando a Faria Lima e a Marginal Pinheiros. Por favor alguém pode avisar a Tropa de Choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Júri e que se eles matarem esses filhos da puta eu arquivarei o inquérito policial", (...) "Que saudades do tempo em que esse tipo de coisa era resolvida com borrachada nas costas dos merdas". Somado a isso, vimos o alinhamento de discursos de políticos pertencentes a partidos adversários, como o governador do Estado Geraldo Alckmin, do PSDB, e o prefeito de São Paulo Fernando Haddad, do PT, ambos vociferaram em defesa da repressão policial e condenando o movimento. Tal sintonia não é muito comum, pois o típico jogo da burguesia é atribuir a responsabilidade pelos problemas existentes à fração que está momentaneamente no poder.
Em resposta à repressão crescente e à cortina de fumaça dos principais jornais, redes de televisão e rádio, o que ocorreu na continuação do movimento foi que mais gente reunia-se a cada ato, contando com cerca de 20 mil manifestantes na quinta-feira, dia 13. A repressão foi mais feroz ainda resultando em 232 detidos e vários feridos.
Ressalte-se, ainda que de forma minoritária, o surgimento de uma nova geração de jornalistas que numa clara demonstração de solidariedade tem registrado e ao mesmo tempo sofrido na pele os atos da violência da polícia. Conscientes das manipulações sempre presentes nas editorias das grandes mídias conseguem de alguma maneira fazer ver que as ações de violência dos jovens são uma reação de autodefesa e que, em alguns momentos, as depredações que acontecem são, majoritariamente, em gabinetes governamentais e da justiça, numa manifestação de indignação incontida contra o Estado. Além disso, foram registradas ações de elementos provocadores da polícia usualmente empregados nas manifestações.
A colocação em evidência de uma série de manipulações que desmentiram as versões das fontes oficiais do Estado, da mídia e da polícia nas suas tentativas inverter os fatos, desmoralizar e criminalizar o legítimo movimento, teve efeito multiplicador no aumento da participação de manifestantes e no aumento do apoio da população. Nesse sentido, é importante destacar que a ação de ativistas e simpatizantes do movimento nas redes sociais tem sido uma grande contribuição. Com medo de que a situação fuja do controle, alguns setores da burguesia já começam a mudar o seu discurso. As grandes empresas de comunicação, em seus jornais e TV, depois de uma semana de silêncio sobre a repressão policial, enfim mostraram os "excessos" da ação policial. Alguns políticos, do mesmo modo, criticaram os "excessos" e prometeram investigá-los.
A violência da burguesia através de seu Estado, independente de qual seja sua face, "democrática" ou "ditatorial", tem como fundamento o terror totalitário contra as classes que se explora e oprime. Mesmo que no Estado “democrático" essa violência não seja tão aberta como nas ditaduras, e se faça de modo oculto para fazer com que os explorados aceitem a condição de explorados e se identifiquem com ela, isso não significa que o Estado abra mão dos mais variados e modernos métodos de repressão física quando a situação exigir.
Não é surpresa, portanto, que a polícia utilize tamanha violência contra o movimento. Entretanto, como vimos, o "tiro saiu pela culatra" e o aumento da repressão ao invés de intimidar os manifestantes só fez aumentar e gerar uma solidariedade crescente pelo Brasil e até pelo mundo ainda que de forma muito minoritária. Atos em solidariedade e em protesto à violência policial estão sendo marcados no mundo afora, principalmente por brasileiros que vivem no exterior. É preciso deixar claro que a violência policial é da própria natureza do Estado e não um caso isolado ou um "excesso" de demonstração de força pela polícia como querem fazer crer a mídia burguesa e as autoridades ligadas ao sistema.
Ou seja, não é uma simples falha dos “governantes”, e não adianta pedir “justiça” ou um comportamento “mais cortês da polícia”, porque para se enfrentar a repressão e impor uma força de classe não há outra alternativa que a extensão do movimento para amplas massas da classe trabalhadora. Por isso, não podemos nos dirigir ao Estado e pedir piedade. A denúncia contra a repressão e o aumento das passagens deve ser feita para o conjunto da classe trabalhadora, chamando-a para engrossar os protestos em uma luta comum contra a precarização e a repressão.
As manifestações, que estão longe de acabar, também se estenderam por todo o Brasil e os protestos estiveram presentes no início da Copa das Confederações de 2013, que ficou marcada pelas vaias direcionadas à presidente Dilma Rousseff, e também para o presidente da FIFA, Joseph Blatter, antes da partida de estreia do torneio entre Brasil e Japão. Os dois não esconderam o incômodo e abreviaram os seus discursos para diminuir o desconcerto.
Em torno do estádio houve também uma grande manifestação, que contou com cerca 1200 pessoas, expressando solidariedade ao movimento contra a tarifa dos transportes e denunciando o desvio de recursos que seriam para gastos com prestações sociais, mas foram direcionados nesses últimos anos para a realização da Copa do Mundo e das Confederações. Também foram fortemente reprimidos pela polícia e deixaram pelo menos 27 feridos, além de outros 16 detidos. Para fortalecer ainda mais a repressão, o Estado declarou que serão proibidas quaisquer manifestações próximas aos estádios durante a realização da Copa das Confederações, sob a justificativa de não prejudicar o evento, o trânsito de pessoas e veículos e o funcionamento regular de serviços públicos.
Como se sabe o MPL é um movimento que ganhou âmbito nacional graças a sua presença e capacidade de mobilização de jovens estudantes para protestar contra os aumentos dos preços nas tarifas de transporte. Entretanto, é importante considerar que tem como objetivo de médio e longo prazo a existência de um transporte público gratuito para toda população fornecido pelo Estado.
Acontece que exatamente aí se encontra o limite da sua principal reivindicação, pois um transporte universal e gratuito na sociedade capitalista não existe, uma vez que para a sua existência a burguesia e o seu Estado necessariamente teriam de fazer acentuar ainda mais o grau de exploração sobre a classe operária e outros trabalhadores assalariados através dos aumentos de impostos sobre os salários. Assim, é necessário levar em conta que a luta não deve ser colocada na perspectiva de uma reforma impossível, mas sempre na orientação de que o Estado revogue os seus decretos.
No momento, as perspectivas do movimento parecem superar a simples reivindicação contra o aumento da tarifa. Já há manifestações previstas para a próxima semana em dezenas de cidades de grande e médio porte em todo o Brasil.
O movimento deve estar alerta em relação à esquerda do capital, especializada em tomar para si o controle de manifestações e dirigi-las a becos sem saída, tais como encaminhar para que os tribunais de justiça resolvam o assunto e que os manifestantes voltem para casa.
Para que esse movimento se desenvolva é necessário criar meios para ouvir e discutir coletivamente as diversas opiniões e isso só se torna possível com a realização de assembleias gerais com a participação de todos, onde seja assegurado o direito de palavra indistintamente aos manifestantes. Além disso, chamar os trabalhadores assalariados e convidá-los às assembleias e protestos, pois eles e as suas famílias são afetados de maneira direta pelo aumento das passagens e dos serviços.
O movimento de protesto que tem se desenvolvido no Brasil vem desmentir a campanha que a burguesia brasileira tem se encarregado de divulgar, secundada pela burguesia mundial, de que o Brasil é um “país emergente” a caminho de superar a pobreza e alcançar seu pleno desenvolvimento. Tal campanha é promovida principalmente por Lula, que é reconhecido mundialmente por ter supostamente tirado da pobreza milhões de brasileiros, quando na realidade seu grande feito para o capital foi repartir algumas migalhas entre a população mais miserável para mantê-la iludida e acentuar a precariedade do proletariado brasileiro.
Diante do agravamento da crise mundial e seu consequente ataque às condições de vida do proletariado, não há outro caminho senão a luta contra o capital.
Revolução Internacional (Corrente Comunista Internacional) 16/06/2013
Prosseguimos a série sobre a onda revolucionária mundial de 1917-23 iniciada na Revista Internacional nº 139 [1].
O objetivo que tínhamos era "tratar de reconstruir aquela época mediante um estudo dos testemunhos e relatos diretos dos protagonistas. Temos dedicado muitas páginas à Revolução na Rússia e na Alemanha. Por isso, publicaremos trabalhos sobre experiências menos conhecidas dos diferentes países, tudo isso, com o objetivo de dar uma perspectiva mundial. Quando se conhece um pouco aquela época, resulta surpreendente a multiplicidade de lutas, o eco tão amplo que teve a Revolução de 1917."
Entre 1914-23 o mundo conheceu a primeira manifestação da decadência do sistema capitalista que tomou a forma de uma Guerra Mundial que abarcou toda Europa e que estendeu suas repercussões pelo mundo, provocando uns 20 milhões de mortos. E essa matança indiscriminada não acabou pela vontade dos governantes, mas por causa de uma onda revolucionária do proletariado internacional, à qual se uniu um bom número de explorados e oprimidos do globo e cuja ponta de lança foi a revolução russa de 1917.
Atualmente estamos vivendo outra nova manifestação da decadência capitalista. Desta vez, toma a forma de um enorme cataclismo, o de uma crise econômica (que por sua vez se vê agravada por uma forte crise ambiental, pela multiplicação das guerras imperialistas localizadas e por uma alarmante degradação moral). Em um bom número de países [2] estamos vendo erguerem-se contra seus efeitos as primeiras tentativas de resposta – ainda muito limitadas – por parte do proletariado e dos oprimidos. Torna-se indispensável tirar lições daquela primeira onda revolucionária (1917-23), vendo tanto o que tem em comum com a situação atual, quanto o que tem de diferente. As lutas futuras terão muito mais força incorporando as lições daquela experiência.
A agitação revolucionária que sacudiu o Brasil entre 1917-19 constitui, junto com os movimentos da Argentina (1919), a expressão mais importante na América do Sul da onda revolucionária mundial concomitante com a revolução russa.
Nesta agitação influenciaram tanto a situação no Brasil como a situação mundial, a Guerra e particularmente a solidariedade com os operários russos e as tentativas de seguir seu exemplo. Não surgiu do nada, pois o Brasil foi o teatro da maturação tanto das condições objetivas quanto subjetivas no curso dos 20 anos precedentes. O propósito deste artigo é analisar no subcontinente brasileiro tanto essa maturação como a eclosão de acontecimentos que se sucederam entre 1917-19. Não pretendemos estabelecer conclusões definitivas e estamos abertos a um debate permitindo dar mais precisão às questões, os dados e as análises visto que realmente existe pouco material sobre aquela época. Os documentos nos quais temos nos baseado serão citados em notas auxiliares.
A evolução da situação mundial no curso da primeira década do século XX manifesta-se em três planos:
Nesse contexto, qual era a situação no Brasil? Não podemos desenvolver aqui uma análise da formação do capitalismo nesse país, mas vamos apresentar alguns traços gerais. Sob a dominação portuguesa, desenvolveu-se a partir do século XVI uma poderosa economia de exportação baseada primeiro na extração do pau-brasil [4] e desde o princípio do século XVII na cultura da cana de açúcar. Tratava-se de uma produção escravagista, pois logo fracassou a tentativa de exploração da mão-de-obra dos índios, razão pela qual desde meados do século XVII foram trazidos milhões de escravos africanos para o país. Depois da independência (1822), no último terço do século XIX, a produção de café e de látex substituiu o açúcar como principal produto de exportação, acelerando o desenvolvimento capitalista e provocando a emigração massiva de trabalhadores, que vinham de países como Itália, Alemanha, Espanha, etc.. Estes proporcionaram mão-de-obra para uma indústria que começava a despontar e, por outro lado, eram encaminhados à colonização do vasto território em grande medida inexplorado.
Uma das primeiras manifestações do proletariado urbano teve lugar em 1798 com a famosa Conjuração Baiana [5], uma rebelião protagonizada, sobretudo, por alfaiates que, além de reivindicações corporativas, pedia a abolição da escravidão e a independência do Brasil. Durante o século XIX, pequenos núcleos proletários impulsionaram a luta pela República [6] e pela abolição da escravidão. Tratava-se evidentemente de reivindicações no quadro do capitalismo que animavam seu desenvolvimento e preparavam assim as condições futuras para a revolução proletária.
A onda emigratória do final do século modificou notavelmente a composição do proletariado no Brasil [7]. Como resposta a condições de trabalho insustentáveis – jornadas de 12 a 14 horas, salários de fome, moradas subumanas [8], duras medidas disciplinares que incluíam castigos corporais – as greves começam a surgir desde 1903, sendo as mais significativas as do ramo têxtil no Rio (1903) e a de Santos (o porto paulista) em 1905, que se estendeu espontaneamente até tornar-se geral.
A Revolução russa de 1905 produziu um grande impacto. No Primeiro de Maio de 1906 numerosos comícios lhe foram dedicados. Em São Paulo houve um ato massivo num teatro; no Rio de Janeiro uma concentração em praça pública; em Santos uma reunião em solidariedade aos revolucionários russos.
Foi nessa época que aconteceram os primeiros encontros entre minorias revolucionárias compostas majoritariamente de emigrantes. Esses encontros deram nascimento em 1908 à Confederação Operária Brasileira (COB), que reagrupou organizações do Rio, Santos e São Paulo e era fortemente marcada por uma orientação anarcossindicalista e inspirada na CGT francesa [9]. A COB propôs a celebração do Primeiro de Maio, realizou um grande trabalho de cultura popular (principalmente de arte, pedagogia e literatura) e organizou uma enérgica campanha contra o alcoolismo que fazia estragos entre os trabalhadores.
Em 1907, a COB mobilizou os trabalhadores para a jornada de 8 horas. As greves se multiplicaram desde maio na região paulista. As mobilizações tiveram êxito: os pedreiros e os carpinteiros conseguiram uma redução de jornada. Mas logo essa onda refluiu, como consequência do fracasso da greve dos estivadores de Santos pela jornada de 10 horas, da entrada da economia numa fase recessiva no final de 1907 e da onipresente repressão policial que enchia os cárceres de operários grevistas e expulsava os emigrantes ativos.
O retrocesso nas lutas abertas não significou o retrocesso das minorias mais conscientes que se dedicaram então a um debate sobre as principais questões que se discutiam na Europa: a greve geral, o sindicalismo revolucionário, as causas do reformismo... A COB, que as agrupava, realizou atividades de orientação internacionalista. Lançou uma campanha contra a guerra entre Brasil e Argentina. Igualmente se mobilizou contra a pena de morte decretada pelo governo espanhol contra Ferrer Guardia [10].
O estouro, em agosto de 1914, da Primeira Guerra Mundial levou a uma forte mobilização da COB com os anarquistas à frente. Em março de 1915 criou-se no Rio uma Comissão Popular de Agitação contra a Guerra e em São Paulo uma Comissão Internacional contra a Guerra. Em ambas as cidades organizaram-se no Primeiro de Maio de 1905 manifestações contra a guerra, nas quais se dava vivas à Internacional dos trabalhadores.
Os anarquistas brasileiros trataram de enviar delegados a um Congresso contra a Guerra que devia ser realizado na Espanha [11] e, diante do fracasso dessa tentativa, organizaram em outubro de 1915 um Congresso Internacional pela Paz que teve lugar no Rio de Janeiro.
Neste congresso participaram anarquistas, socialistas, sindicalistas e militantes da Argentina, Uruguai e Chile. Foi aprovado um manifesto dirigido ao proletariado da Europa e da América chamando a "lançar por terra as quadrilhas de potentados e assassinos que mantêm os povos na escravidão e no sofrimento" [12]. Este chamamento somente poderia ser posto em prática pelo proletariado, pois somente ele "poderia empreender uma ação decisiva contra a guerra, pois ele é quem proporciona os elementos necessários aos conflitos bélicos, fabricando todos os instrumentos de destruição e morte e proporcionando o elemento humano para servir de carne de canhão" (Ibid.). O congresso decidiu desenvolver uma propaganda sistemática contra o nacionalismo, o militarismo e o capitalismo.
Estes esforços foram silenciados pela agitação patriótica, favorável ao comprometimento do Brasil na guerra. Numerosos jovens de todas as classes sociais alistaram-se como voluntários no exército, estabeleceu-se um clima de defesa nacional que fazia com que as posturas contra o nacionalismo ou simples críticas fossem brutalmente reprimidas por grupos de voluntários patriotas. 1916 foi muito duro para o proletariado e os internacionalistas que ficaram isolados e acossados.
Contudo, esta situação não durou muito tempo. As indústrias haviam se desenvolvido, especialmente na região de São Paulo, aproveitando o lucrativo negócio que supunha o abastecimento de todo tipo de mercadorias aos dois lados beligerantes. Mas esta prosperidade apenas impactou positivamente sobre a massa trabalhadora. Era fortemente visível a existência de duas "São Paulo": uma minoritária, de casas luxuosas e ruas com todos os inventos procedentes da Europa da Belle Époque e outra, majoritária, de bairros insalubres de onde escorria a miséria.
Como havia pressa em retirar os máximos benefícios, os empresários aumentaram brutalmente a pressão sobre os trabalhadores: "No Brasil, era crescente o descontentamento do proletariado devido às condições abusivas de trabalho nas fábricas, semelhantes às do início da Revolução Industrial na Inglaterra: jornadas de 14 horas, sem feriados, sem descanso semanal remunerado; comia-se ao lado das máquinas; os salários eram insuficientes e seu pagamento irregular; não havia nenhuma assistência social ou de saúde; as reuniões e a organização dos operários eram proibidas; estes careciam absolutamente de direitos e não existia nenhuma indenização pelos acidentes de trabalho [13]". Para coroar a situação, havia se desencadeado uma forte inflação que afetava, sobretudo, os produtos de primeira necessidade. Tudo isto provocou que a indignação e o descontentamento começassem a se tornar visíveis, estimulados pelas notícias que começaram a chegar da Europa sobre a revolução de fevereiro na Rússia. Em maio, estouraram várias greves no Rio de Janeiro, destacando-se a da fábrica têxtil Corcovado. Em 11 de maio, 2.500 pessoas conseguem se reunir na rua com a intenção de se dirigir à referida fábrica e expressar sua solidariedade, apesar da proibição expressa de reuniões operárias, feita uns dias antes pelo chefe de polícia. A polícia fecha o caminho e acontecem violentos enfrentamentos.
No começo de julho estoura uma greve massiva na área de São Paulo que ficará conhecida como "a Comuna de São Paulo". Sua motivação era a intolerável carestia da vida e, sobretudo, algo que expressa uma rejeição à guerra: em muitas fábricas, os patrões haviam imposto uma "contribuição pró-pátria", que consistia em um desconto suplementar no salário para apoiar a Itália. Isto foi rechaçado pelos trabalhadores da fábrica têxtil Cotonifício Crespi, que exigiram um aumento salarial de 25%. A greve se espalhou como uma mancha de azeite aos bairros industriais de São Paulo: Mooca, Brás, Ipiranga, Cambuci... Mais de 20 mil trabalhadores aderiram a ela. Um grupo de mulheres redigiu um panfleto que foi distribuído aos soldados, onde se dizia "Não deveis perseguir vossos irmãos de miséria. Também pertenceis à massa popular. A fome reina em nossos lares e nossos filhos pedem pão. Para sufocar nossas reclamações os patrões contam com as armas que lhes entregaram".
Uma brecha pareceu abrir-se na frente operária quando os trabalhadores da Nami Jaffet aceitaram voltar ao trabalho porque lhes foi concedido um aumento salarial de 20%. No entanto, nos dias seguintes produziram-se incidentes que levaram à continuidade da greve: em 8 de julho uma multidão de operários reunidos às portas do Cotonifício Crespi saiu em defesa dos menores que iam ser presos pelos soldados da cavalaria. Veio a polícia em auxilio destes soldados e ocorreu uma batalha campal. No dia seguinte houve um novo choque nas portas da fábrica de cerveja Antarctica. Os operários depois de ultrapassar a polícia, dirigiram-se à fabrica têxtil Mariângela, conseguindo que seus operários entrassem em greve. Nos dias seguintes outros incidentes acontecerem e também novas greves que encheram as fileiras dos grevistas.
Em 11 de julho se soube da morte de um operário sapateiro golpeado até morrer pela polícia. Foi a gota que fez o copo transbordar, "a notícia da morte do operário, assassinado nas imediações de uma fábrica de tecidos no Brás foi visto como um desafio à dignidade do proletariado. Foi como um violento choque emocional que sacudiu todas as energias. O enterro da vítima foi uma das mais impressionantes demonstrações populares jamais vistas em São Paulo" [14]. Seguiu uma impressionante manifestação de luto com mais de 50 mil participantes. A multidão, terminado o enterro, dividiu-se em dois cortejos: um foi para a casa do operário assassinado no Brás, onde foi realizada uma Assembleia ao término da qual uma multidão assaltou uma padaria. A notícia correu como rastilho de pólvora e em numerosos bairros os assaltos a armazéns de alimentos se multiplicaram.
O outro cortejo se dirigiu à Praça da Sé, onde foi realizada outra Assembleia, na qual vários oradores tomaram a palavra para animar a continuidade da luta. Os participantes decidiram organizar-se em vários cortejos que se dirigiram aos distintos bairros industriais, onde conseguiram fechar novas empresas e convenceram os trabalhadores da Nami Jaffet a voltarem à greve.
A determinação e a unidade dos operários cresceram de forma espetacular: na noite do dia 11 e durante todo o dia 12, foram organizadas assembleias nos bairros operários com a decidida contribuição dos militantes anarquistas e nas quais se resolveu formar Ligas Operárias. No dia 12 entrou em greve a fábrica de gás e os bondes pararam. Apesar da ocupação militar, a cidade estava completamente tomada pelos grevistas.
Na "outra São Paulo", os grevistas eram donos da situação: a polícia e o exército não podiam entrar, assediados por multidões distribuídas em barricadas levantadas em pontos estratégicos, onde ocorreram violentos enfrentamentos. Paralisados os transportes e o abastecimento, foram os grevistas que organizaram o fornecimento de alimentos, dando prioridade aos hospitais e às famílias operárias. Foram organizadas patrulhas operárias para evitar roubos e saques e alertar os vizinhos de incursões da polícia ou do exército.
As Ligas Operárias de Bairro, junto com delegados eleitos por algumas fábricas em luta e membros das distintas seções da COB, estabeleceram reuniões para unificar as reivindicações, o que desembocou no dia 14 na formação de um Comitê de Defesa Proletária, que propôs 11 reivindicações, sendo as principais a liberdade de todos os detidos e um aumento de 35% para os salários inferiores e de 25% para os demais. Um setor influente de empresários compreendeu que a repressão não bastava e que era necessário fazer algumas concessões. Um grupo de jornalistas se ofereceu como mediadores com o governo. No próprio dia 14 ocorreu uma assembleia geral com mais de 50 mil participantes que chegaram em cortejos massivos até convergir ao antigo hipódromo da Mooca, onde se decidiu finalizar a greve e retomar o trabalho se as reivindicações fossem aceitas. No dia 15 e no dia 16 foram realizadas diversas reuniões entre os jornalistas e o governador, assim como com um comitê que reunia os principais empresários. Estes aceitaram um aumento geral de 20%, enquanto que o governador ordenou a imediata libertação dos detidos. No dia 16, numerosas assembleias aprovaram a volta ao trabalho. Uma gigantesca concentração de 80 mil pessoas celebrou o que se considerava uma grande vitória. Houve ainda greves isoladas em julho e agosto para forçar empresários reticentes a aplicar o acordado.
A greve de São Paulo provocou a solidariedade imediata nas indústrias do Estado do Rio Grande do Sul e da cidade de Curitiba, onde se produziram manifestações massivas. O eco solidário tardou, no entanto, a chegar ao Rio. Uma empresa de móveis entrou em greve no dia 18 de julho – quando a luta havia terminado em São Paulo. Pouco a pouco se estendeu a outras empresas de tal maneira que no dia 23 de julho havia já 70 mil grevistas de diferentes setores. Desvairada, a burguesia disparou uma violenta repressão: ataques contra as manifestações, detenções, fechamento de organismos proletários. No entanto, teve que fazer algumas concessões que levaram ao encerramento da greve no dia 2 de agosto.
A Comuna de São Paulo teve uma grande repercussão em todo o Brasil, apesar de não ter conseguido se estender. O primeiro que se destaca nela é que segue plenamente as características que Rosa Luxemburgo vira na Revolução Russa de 1905 e que definem a nova forma de luta operária na decadência capitalista. Uma greve que não foi preparada por uma estrutura organizativa prévia, mas que foi produto de uma maturidade da consciência, da solidariedade, da indignação, da combatividade, nas fileiras operárias; Tinha criado em seu próprio curso sua organização direta de massas e, sem perder seu caráter econômico, desenvolveu rapidamente seu caráter político através da afirmação de uma classe que se enfrenta abertamente com o Estado. " A greve geral de junho de 1917 não se pode dizer que fosse uma greve preparada, uma greve organizada nos moldes clássicos seguidos comumente pelos delegados dos sindicatos junto à Federação Operária. Foi uma greve que irrompeu no desespero em que se encontrava o operariado paulistano, sujeito a salários de fome, a um trabalho exaustivo. Estava-se em pleno estado-de-sitio, com as associações operárias fechadas pela polícia, as portas lacradas, uma vigilância severa e permanente sobre todos os elementos considerados “agitadores perigosos à ordem pública”" [15].(Citação original na ágina 224 da obra História das Lutas Sociais no Brasil)
Como vamos ver na continuidade, animado pelo triunfo da revolução de outubro na Rússia o proletariado brasileiro empreendeu novas lutas; a Comuna de São Paulo constituiu entretanto o momento culminante de sua participação na onda revolucionária mundial de 1917-23. Não surgiu do ímpeto direto da Revolução de Outubro, ou melhor, contribuiu para gerar as condições mundiais que a prepararam. Com efeito, entre julho e setembro de 1917, assistimos junto com a greve paulista a greve geral de agosto na Espanha, greves massivas e rebeliões de soldados na Alemanha em setembro, o que levaria Lênin a insistir na necessidade de que o proletariado tomasse o poder na Rússia, pois "é incontestável que o final de setembro nos trouxe uma grandiosa virada na história da revolução russa e, ao que parece, da revolução mundial." [16]
Voltando à situação no Brasil, apesar da agitação social, a burguesia seguia empenhada em entrar na guerra mundial. Não é que tivesse interesses econômicos ou estratégicos diretos, mas era movida pelo objetivo de "ser alguém" no concerto imperialista mundial, fazer uma demonstração de poder para se fazer respeitar pelos demais abutres nacionais. Apostou no lado que emergia como vencedor – o da Entente (França e Grã-Bretanha), que acabava de receber o apoio decisivo dos Estados Unidos – e, dessa forma, aproveitou o bombardeio de um navio brasileiro por um navio alemão para declarar guerra à Alemanha.
A guerra necessita do embrutecimento da população, convertida num populacho que atua irracionalmente. Para isso, foram organizados comícios patrióticos em todas as regiões. O presidente da República, Wenceslau Brás, interviu pessoalmente para que parasse a greve numa fábrica têxtil do Rio. Alguns sindicatos colaboraram organizando "batalhões patrióticos" para alistarem-se na guerra. A igreja declarou que a guerra era uma "Cruzada Santa", com os bispos inflamando suas homílias de ardor patriótico. Simultaneamente, todas as organizações operárias foram declaradas fora da lei, suas sedes foram fechadas, foram alvo de ferozes e constantes campanhas de imprensa, taxando-as de "estrangeiros sem coração", "fanáticos do internacionalismo alemão" (sic) e outras maravilhas.
Mas esta violenta campanha nacionalista de guerra teve um impacto limitado já que rapidamente foi compensada pelo estouro da Revolução Russa, que teve um efeito eletrizante sobre muitos operários brasileiros, especialmente nos grupos anarquistas que assumiram de maneira entusiasta a defesa da Revolução Russa e dos bolcheviques. Um deles, Astrojildo Pereira, reuniu seus escritos em um opúsculo publicado em fevereiro de 1918 – A Revolução Russa e a Imprensa – no qual defendia que os "maximalistas[17] russos não se apoderaram da Rússia. Eles são a imensa maioria do povo russo, único senhor verdadeiro e natural da Rússia. Kerensky e seu bando haviam se apoderado indevidamente da Rússia". Este autor defendia igualmente que "se tratava de uma revolução de tipo libertário que abre o caminho ao anarquismo". [18]
O "efeito atraente" da Revolução de Outubro apareceu no Brasil primeiro no nível do amadurecimento da consciência e não tanto provocando uma nova explosão de lutas. O refluxo inevitável depois do avanço alcançado com a Comuna de São Paulo, a comprovação de que, apesar da força despendida havia se alcançado apenas algumas melhoras, tudo isso, junto com a pressão ideológica patriótica que supunha a mobilização para a guerra, levou a certa desorientação, acompanhada por uma busca de respostas que as notícias da Revolução Russa estimulava e acelerava.
Esse processo de "amadurecimento subterrâneo" – na aparência os operários estavam passivos, mas na verdade atravessava-lhes uma corrente de dúvidas, perguntas e também algumas primeiras respostas – acabou se concretizando num movimento de lutas. Em agosto de 1918 estourou a greve da Cantareira (companhia que garantia a navegação entre o Rio de Janeiro e Niterói). Em julho a empresa subiu o salário unicamente dos empregados terrestres. O pessoal marítimo, sentindo-se discriminado, declarou-se em greve. Logo começaram as mostras de solidariedade, especialmente em Niterói. A cavalaria da polícia dispersou a multidão na noite de 6 de agosto. No dia 7, os soldados do 58º Batalhão de Infantaria do Exército enviados a Niterói, juntaram-se à multidão para enfrentar as forças combinadas da polícia e de outros destacamentos militares. Ocorreram graves enfrentamentos nos quais houve mortos: um soldado do 58º Batalhão e um civil. Niterói viu-se invadida por novas tropas que finalmente conseguiram restabelecer a calma. No dia 8 ocorreu o enterro dos mortos com uma enorme multidão desfilando pacificamente. No dia 9, a greve terminou.
O entusiasmo suscitado pela Revolução Russa, o desenvolvimento de lutas reivindicativas, o motim de um batalhão do exército proporcionava bases suficientes para que fosse lançada a luta revolucionária insurrecional? À esta pergunta um grupo de revolucionários do Rio respondeu afirmativamente, levando-o a preparar uma insurreição. Analisemos os acontecimentos.
Em novembro de 1918 ocorreu no Rio de Janeiro uma greve praticamente geral para exigir a jornada de 8 horas. O governo havia exagerado a situação dizendo que esse movimento era uma "tentativa insurrecional". É certo que o movimento era influenciado pelo exemplo russo e igualmente por um sentimento de alívio e alegria pelo fim da guerra mundial. É verdade que, em última instância, todo movimento proletário tende a unir seu lado reivindicativo com seu lado revolucionário. No entanto, a luta do Rio nem havia se estendido a todo o país, nem havia se auto-organizado, nem mostrava ainda uma consciência revolucionária. Não obstante, alguns grupos do Rio acreditavam que havia chegado o momento do assalto revolucionário. Um fator adicional acendia os ânimos: uma das mais graves sequelas da guerra tinha sido uma pavorosa epidemia de gripe espanhola[19] que tinha se propagado pelo Brasil a tal extremo que o recém eleito presidente da República – Rodrigues Alves – sucumbiu a ela antes de sua investidura no cargo, tendo que ser substituído pelo vice-presidente.
Constituiu-se no Rio de Janeiro, sem coordenação com outros centros industriais, um Conselho que pretendia organizar a insurreição. Junto com elementos anarquistas, participavam líderes operários da indústria têxtil, jornalistas, advogados e também alguns militares. Um deles – o tenente Jorge Elias Ajus – era na verdade um espião que informou as autoridades das atividades do Conselho.
Ocorreram várias reuniões nas quais foram distribuídas tarefas aos operários de distintas fábricas e distritos: tomada do palácio presidencial; ocupação de depósitos de armas e munições da Intendência de Guerra; assalto à fábrica de cartuchos de Realengo; ataque ao quartel geral da Polícia; ocupação da central elétrica e da central telefônica. Vinte mil trabalhadores estavam previstos para participar na ação que devia acontecer no dia 18.
Na reunião do dia 17 de novembro, Ajus deu um golpe de efeito: "alegou que não poderia cooperar com o movimento por não estar de serviço no dia 18 e pediu que a insurreição fosse adiada para o dia 20 " [20]. Isto desestabilizou os organizadores que depois de muita hesitação, decidiram seguir adiante. No entanto, em uma nova reunião ocorrida no dia 18 no início da tarde, a polícia irrompeu subitamente no local e deteve a maioria dos dirigentes.
Estava prevista uma concentração no Campo de São Cristóvão para, a partir dali, organizar as colunas que ocupariam edifícios governamentais ou estratégicos. Os participantes apenas chegavam a mil e foram rapidamente rodeados por tropas da polícia e do exército. As demais operações combinadas não foram sequer executadas e a tentativa de dinamitar duas torres de abastecimento de energia fracassou no dia 19.
O Governo levou a cabo centenas de detenções, fechou sedes sindicais e proibiu qualquer manifestação ou concentração. A greve começou a recuar no dia 19 e de forma sistemática policiais e soldados passaram a entrar nas fábricas paradas, obrigando à ponta de fuzil que o trabalho fosse retomado. Nos diversos atos de resistência realizados morreram 3 operários. Por volta de 25 de novembro a calma era total na região.
Apesar deste fiasco, as chamas da combatividade e da consciência operárias estavam ainda ardentes. A notícia de que a revolução havia estourado na Hungria (março de 1919) e do triunfo de uma Comuna revolucionária na Baviera (abril de 1919), insuflou um grande entusiasmo. Tudo isto desembocou em manifestações gigantescas em numerosas cidades para marcar o Primeiro de Maio. Nas do Rio, São Paulo e Salvador foram adotadas resoluções de apoio à luta revolucionária na Hungria, Baviera e Rússia.
Em abril de 1919, diante da alta constante dos preços, uma forte agitação operária havia se apoderado de numerosas fábricas de São Paulo e cidades limítrofes como São Bernardo do Campo, e outras como Campinas e Santos. Estouravam greves parciais aqui e ali, formando uma lista de reivindicações, mas o mais notável era a realização de assembleias e a decisão de eleger delegados para estabelecer uma coordenação, o que desembocou na constituição de um Conselho Geral de Operários que organizou o ato do Primeiro de Maio e aprovou uma série de reivindicações: jornada de 8 horas, aumento de salários indexado à inflação, proibição do trabalho de menores de 14 anos e do trabalho noturno de mulheres, redução dos preços de artigos de primeira necessidade e dos aluguéis. Em 4 de maio, a greve já era geral.
A resposta do Governo e dos capitalistas foi dupla: por um lado, uma feroz repressão para impedir manifestações e concentrações e perseguir os operários considerados dirigentes, que eram encarcerados sem acusação e deportados para regiões longínquas do Brasil. Mas, por outro lado, os empresários e o próprio governo mostraram-se receptivos às reivindicações e, de forma comedida e semeando todas as divisões possíveis, foram aplicando aumentos salariais, a redução da jornada, etc..
A tática teve êxito. Em lugares como a fábrica de louça Santa Catarina a greve terminou em 6 de maio com a oferta da empresa de implantar a jornada de 8 horas, eliminar o trabalho de menores e conceder um aumento salarial. Os trabalhadores portuários de Santos fizeram o mesmo no dia 7. A Companhia Nacional de Tecidos Yute no dia 17. Em nenhum momento se colocou a necessidade de uma postura unificada – não voltar ao trabalho se não fossem atendidas as reivindicações de todos – nem tampouco se decidiu estender o movimento ao Rio, apesar de nesta cidade terem surgido greves desde meados de maio, adotando a mesma plataforma reivindicativa. Apagado o foco paulista, as greves no Rio, Salvador e Recife, apesar de sua massividade, foram finalmente silenciadas, combinando algumas concessões e uma repressão seletiva. Uma greve massiva em Porto Alegre em setembro de 1919 iniciada na companhia elétrica Light & Power pedindo aumento salarial e redução de jornada, suscitou a solidariedade de padeiros, motoristas, trabalhadores da Telefônica, etc.. A burguesia recorreu à provocação – estouraram bombas em umas instalações da companhia elétrica e na casa de um fura-greve – o que imediatamente foi utilizado como desculpa para proibir manifestações e assembleias. Em 7 de setembro uma concentração massiva na Praça Montevidéu foi atacada pela polícia e pelo exército resultando numa morte. No dia seguinte, numerosos grevistas foram detidos pela polícia, as sedes dos sindicatos foram fechadas. No dia 11 acabou a greve sem que se alcançasse nenhuma reivindicação.
O cansaço, a falta de uma clara orientação revolucionária, concessões seletivas em vários setores, foram pautando o refluxo geral. O governo incrementou de forma brutal a repressão, organizando uma nova onda de detenções e deportações, fechamentos de locais proletários, demissões disciplinares. O parlamento aprovou novas leis repressivas: bastava uma provocação, o estouro de uma bomba em casas de militantes destacados ou em lugares frequentados, para disparar a aplicação das leis repressivas. Uma tentativa de greve geral em novembro de 1919 em São Paulo fracassou lamentavelmente e o governo aproveitou este evento para um novo turno de detenções de todos aqueles considerados líderes, os quais, antes de serem deportados, foram selvagemente torturados em Santos e São Paulo.
No entanto, a combatividade operária e o descontentamento tiveram seu canto do cisne em março de 1920: a greve da Leopoldina Railways no Rio de Janeiro e da Mogiana na área de São Paulo.
A primeira começou em 17 de março a partir de uma pauta reivindicativa diante da qual a companhia respondeu com o uso de empregados públicos como fura-greves. Os trabalhadores fizeram apelos à solidariedade, saindo todos os dias às ruas. No dia 24 estourou uma primeira onda de greves em apoio: metalúrgicos, taxistas, padeiros, alfaiates, construção civil... Ocorreu uma grande assembleia na qual se fez um apelo a que "todas as classes trabalhadoras apresentem suas próprias queixas e reclamações". No dia 25, os trabalhadores da indústria têxtil se incorporaram ao movimento. Houve também uma greve solidária nos transportes de Salvador e em cidades do Estado de Minas Gerais.
A resposta governamental consistiu numa feroz repressão que levou a que somente no dia 26 fossem detidos mais de 3 mil grevistas. Os cárceres estavam tão cheios que foi necessário usar como prisão os armazéns das docas portuárias.
A partir do dia 28, o movimento começou a decair, sendo os primeiros a retornar ao trabalho os operários da indústria têxtil. Sindicalistas reformistas apresentaram-se como "mediadores" para que as empresas readmitissem os "bons trabalhadores" com "pelo menos 5 anos de serviço". A debandada foi geral e no dia 30 a luta havia terminado sem ter alcançado as reivindicações.
A segunda, começada na linha ferroviária do norte de São Paulo sustentou-se entre 20 de março e 5 de abril e recebeu a solidariedade da Federação Operária de São Paulo, que decretou uma greve geral que foi seguida parcialmente pelos trabalhadores da indústria têxtil. Os grevistas ocuparam estações tratando de explicar sua luta aos viajantes, mas o Governo regional mostrou-se implacável. As estações ocupadas foram atacadas por tropas, produzindo-se numerosos choques violentos – no mais destacado, o de Casa Branca, morreram 4 trabalhadores. Uma violenta campanha de imprensa foi orquestrada contra os grevistas como complemento de uma selvagem repressão com numerosas deportações e detenções não somente de operários, mas também de suas mulheres e filhos. Homens, mulheres e crianças eram encarcerados em quartéis onde lhes eram infligidos castigos corporais cruéis.
Indiscutivelmente os movimentos vividos no Brasil entre 1917-20 fazem parte da onda revolucionária mundial de 1917-23 e somente podem ser compreendidos à luz das lições que dela possam ser tiradas. O leitor pode consultar dois artigos onde tratamos de fazer um balanço da mesma [21]. Aqui vamos nos centrar em alguns ensinamentos que nos mostram mais diretamente a experiência brasileira.
A fragmentação do proletariado
A classe operária no Brasil estava muito fragmentada. A maioria dos trabalhadores emigrantes tinha poucos laços com o proletariado autóctone, em grande medida vinculado ao artesanato ou constituído por trabalhadores agrícolas em grandes fazendas agropecuárias completamente isoladas [22]. Os próprios trabalhadores emigrantes estavam divididos em "guetos linguísticos": italianos, espanhóis, portugueses, alemães, etc.. "São Paulo era uma cidade onde se ouvia mais o italiano, em seus diversos dialetos pitorescos, que o português. Essa influência do idioma e da cultura peninsular afetava a todos os segmentos da vida paulista." [23]
Tem que assinalar também a dispersão dos centros industriais. Rio e São Paulo nunca conseguiram sincronizar suas lutas. A Comuna de São Paulo se estendeu ao Rio quando a luta já havia terminado. A tentativa insurrecional de novembro de 1918 se circunscreveu ao Rio, sem que fosse considerada uma ação conjunta pelo menos com São Paulo e Santos.
À dispersão do proletariado se acrescentou o pouco apoio que sua agitação encontrou nas massas camponesas – maioria na população – tanto das regiões longínquas (Mato Grosso, Amazonas, etc.) como das que permaneciam em condições de semiescravidão nas plantações de café e cacau [24].
A fragmentação do proletariado e seu isolamento em relação à grande maioria não exploradora outorgaram uma enorme margem de manobra para a burguesia que, depois de fazer algumas concessões, pôde empregar uma repressão selvagem.
As ilusões sobre o desenvolvimento do capitalismo
A guerra mundial tinha posto a nu que o capitalismo, ao formar o mercado mundial e ao atar a suas leis todos os países da terra, havia chegado a seus limites históricos. A revolução na Rússia evidenciou que a destruição do capitalismo não somente era necessária senão que era igualmente possível.
No entanto, existiam ilusões sobre a capacidade do capitalismo para se desenvolver [25]. No caso do Brasil, havia um enorme território a ser colonizado. Como em outros países da América – começando pelos próprios Estados Unidos – os operários eram muito vulneráveis à mentalidade da "nova fronteira", de "tentar a sorte" e esculpir uma nova vida através da colonização agrícola ou da descoberta de minérios. Muitos emigrantes consideravam sua condição operária como "um momento transitório" até alcançar o "sonho" de se converter em um colono acomodado. O fracasso da revolução na Alemanha e em outros países, o crescente isolamento da Rússia, os graves erros da Internacional Comunista sobre as possibilidades de desenvolvimento do capitalismo em países coloniais e semicoloniais, deram asas a estas ilusões.
A dificuldade para desenvolver o impulso internacionalista
Os proletários no Brasil contribuíram com a Comuna de São Paulo para o amadurecimento internacional das condições que favoreceram a Revolução de Outubro na Rússia e também se sentiram muito animados por ela. Como em outros países havia os germens de uma perspectiva internacionalista, que constituem o ponto de partida imprescindível de qualquer revolução proletária.
Essa perspectiva internacionalista dá ao proletariado as bases para derrubar o Estado em cada país, para o que necessitam de 3 requisitos: a unificação das minorias revolucionárias no Partido Mundial; a formação de Conselhos Operários; sua coordenação crescente em escala internacional. Nenhum dos 3 estava presente na situação brasileira:
A falta de reflexão teórica e o ativismo das minorias revolucionárias
O grosso da vanguarda no Brasil era formado por companheiros de orientação anarquista internacionalista [26]. Tiveram o mérito de defender posições claras contra a guerra, em apoio à revolução russa e ao bolchevismo. Foram eles que criaram em 1918 um "Partido Comunista do Rio de Janeiro" por sua própria iniciativa, sem contato com Moscou e que incentivaram que a COB se unisse à IC.
No entanto, não tinham uma perspectiva histórica, teórica e mundial, tudo era baseado na "ação" que devia levar as massas ao combate. Consequentemente, todos seus esforços concentraram-se em criar organizações sindicais e na convocação incansável de concentrações e ações de protesto. Em outros termos, relegou-se quase completamente a atividade teórica de compreensão de quais eram os objetivos da luta, quais os seus meios, quais os obstáculos que estavam em seu caminho, quais as condições em que ela se desenvolvia, elementos imprescindíveis para que o movimento tivesse uma clara consciência, soubesse ver os passos a dar, evitar as armadilhas e não ser escravo dos acontecimentos e das manobras de um inimigo como a burguesia, que é, no plano político, a classe exploradora mais inteligente da história. Esse ativismo lhe foi fatal. Uma mostra eloquente disso foi, como vimos, a falida insurreição do Rio, da qual não se tirou – pelo que sabemos – nenhuma lição.
[1] Ver na Revista Internacional nº 139 1914-23, 10 anos que abalaram o mundo https://es.internationalism.org/node/2678 [220]
[2] Ver uma contribuição ao balanço dessas experiências em 2011: da indignação à esperança, https://es.internationalism.org/node/3349 [221]
[3] Greve de massas, partido e sindicatos, capítulo 7: O papel da greve de massas na revolução, https://www.marxists.org/espanol/luxem/06Huelgademasaspartidoysindicatos_0.pdf [222]
[4] Uma árvore grande (Caesalpinia echinata) cujo tronco contém uma apreciada tintura vermelha e que foi quase extinta como resultado da superexploração.
[6] Até o golpe de Estado de 1889, o Brasil foi um Império com um imperador procedente da dinastia portuguesa.
[7] Calcula-se que entre 1871 e 1920 chegaram ao Brasil 3.390.000 imigrantes procedentes do sul da Europa.
[8] O artigo Trabalho e vida do operariado brasileiro nos séculos XIX e XX de Rodrigo Janoni Carvalho (Arma da Crítica ano 2 nº 2 março de 2010), contém uma assustadora descrição das moradias do proletariado em São Paulo no início do século XX. Por exemplo, até 20 pessoas tinham que compartilhar um único banheiro.
[9] Naquela época a CGT francesa era um pólo de referência para os setores operários enojados pelo crescente oportunismo dos Partidos socialdemocratas e pela atividade cada vez mais conciliadora dos sindicatos. Ver Revista Internacional nº 120, "História do movimento operário: o anarcosindicalismo diante da mudança de época, a CGT francesa até 1914 [224]".
[10] Francisco Ferrer Guardia (Alella, 1859 – Barcelona, 1909), foi um famoso pedagogo libertário espanhol. Em junho de 1909 foi preso, acusado de ter sido o instigador de uma revolta conhecida como a Semana Trágica. Foi declarado culpado diante de um tribunal militar e às 9 h da manhã de 13 de outubro de 1909 foi fuzilado na prisão Montjuïc. É bem conhecido que Ferrer Guardia não teve relação com os fatos e que os tribunais militares acusaram-no e condenaram-no sem provas. (https://es.wikipedia.org/wiki/Ferrer_Guardia [225] ). Seu assassinato suscitou uma viva solidariedade internacional no movimento operário da época.
[11] Ver A CNT diante da guerra e da revolução [226], na Revista Internacional nº 129.
[12] Pereira, Formação do PCB, citado em Anarquistas e comunistas no Brasil, livro de John W. Foster Dulles, pág. 37.
[13] Cecilia Prada: As barricadas de 1917: a morte de um sapateiro anarquista provoca a primeira greve geral do país, ver: www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=292&Artigo_... [227].
[14] Tomado do artigo "Traços biográficos de um homem extraordinário" do periódico Dealbar, São Paulo, 1968, ano 2, nº 17. Refere-se ao militante anarquista Edgard Leuenroth, que participou ativamente na greve de São Paulo.
[15] Everardo Dias. Historia das lutas sociais no Brasil, p. 224.
[16] La crisis ha madurado,Obras Completas de Lenin, tomo 34 página 281 edicção española.
[17] Nome que a imprensa brasileira dava aos bolcheviques.
[18] Dulles, Anarquistas e comunistas no Brasil, p. 63.
[19] A gripe espanhola – conhecida também pelo nome de A Grande Pandemia da Gripe, A Epidemia de Gripe de 1918 ou A Grande Gripe – foi uma pandemia de uma dimensão desconhecida até então. Considera-se que foi a epidemia mais letal da história da humanidade, provocando entre 50 e 200 milhões de mortos em todo o mundo entre 1918 e 1920. Os Aliados da Primeira Guerra Mundial chamaram-na de Gripe Espanhola porque a pandemia chamou a atenção da imprensa na Espanha, enquanto que, ao contrário, foi mantida em segredo pelos países comprometidos na guerra, que censuravam as informações concernentes ao enfraquecimento das tropas afetadas pela doença. (https://es.wikipedia.org/wiki/Gripe_espa%C3%B1ola [228] )
[20] Dulles, Anarquistas e comunistas no Brasil, p. 68.
[21] Ver Revista Internacional nº 75 "A Revolução Russa (III): O isolamento é a morte da revolução [229]" e Revista Internacional nº 80 "Lições de 1917-23 [201]".
[22] A partir das greves de 1903, onde trabalhadores rurais e camponeses nativos tinham sido empregados como fura-greves, a desconfiança e as censuras mútuas entre os operários emigrantes e operários nativos tinham criado grandes feridas. Ver o ensaio de Colin Everett, Trabalho organizado no Brasil 1900-1937, em inglês. https://translate.google.es/translate?hl=es&langpair=en%7Ces&u=https://libcom.org/history/organized-labor-brazil-1900-1937-anarchist-origins-government-control-colin-everett [230]
[23] Barricadas de 1917, Cecilia Prada, Tese de doutorado.
[24] Pelo que temos recolhido, o movimento camponês mais significativo ocorreu em 1917 em Ribeirão Preto, o qual congregou mais de 15 mil grevistas, entre colonos e trabalhadores agrícolas.
[25] Estas ilusões afetavam a própria Internacional Comunista que via como possível a liberação nacional nos países coloniais e semi-coloniais. Ver as teses a respeito do II Congresso da IC www.marxismo.org/?q=node/1549 [231].
[26] Pelo que sabemos, no Brasil só houve grupos marxistas somente muito tardiamente, em 1916 (depois de uma tentativa falida em 1906), formou-se um partido socialista que rapidamente se dividiu em duas tendências igualmente negativas, uma abertamente partidária de entrar na guerra e outra que defendia a neutralidade do Brasil.
Em outubro de 2013, nasceu um novo “grupo político” autodenominado pelo pomposo nome de “Grupo Internacional da Esquerda Comunista” (GIGC). Este novo grupo não se sente à vontade em fornecer a sua identidade: foi constituído a partir da fusão entre 2 indivíduos do grupo Klasbatalo de Montreal e elementos da suposta ex- “Fração Interna” da CCI (FICCI) que foram excluídos da CCI em 2003 devido aos seus comportamentos indignos da militância comunista: além do roubo, das calúnias e da chantagem, esses elementos atravessaram o Rubicão devido a seus comportamentos deliberados de delatores, entre outras “proezas” publicando por antecipação na internet a data da conferência da nossa secção no México e repetindo insistentemente as verdadeiras iniciais de um dos nossos camaradas apresentado como “o chefe da CCI”. Os leitores não informados podem consultar nossos artigos publicados naquela oportunidade na nossa imprensa 1.
Em um desses artigos, Os métodos policiais da FICCI [232] colocamos claramente em evidência que esses elementos oferecem graciosamente seus bons e leais serviços ao Estado burguês. Ocupam a maior parte do seu tempo em uma atividade persistente em acompanhar o site da CCI na Internet, buscando se informar de tudo que acontece em nossa organização, alimentando-se – e difundindo rapidamente – as fofocas mais asquerosas, recolhido dos esgotos (e especialmente do casal Peter – Louise, 2 militantes da CCI, pelos quais tem obsessão e lhes excita de maneira extrema há mais de 10 anos). Posteriormente à publicação do artigo mencionado acima, tem se agravado ainda mais o seu caso ao divulgar publicamente um documento de 114 páginas, que reproduzem numerosos extratos das reuniões do nosso órgão central internacional, com o que propunham demonstrar suas acusações contra a CCI. O que este documento mostrava na realidade, é que esses elementos possuem um cérebro doentio, totalmente cego pelo ódio contra nossa organização e que de forma consciente liberam para a polícia informações sensíveis a fim de favorecer o seu trabalho.
Recém-nascido, esse pequeno aborto chamado “Grupo Internacional da Esquerda Comunista” lança seu primeiro grito desencadeando uma propaganda histérica contra a CCI, como o prova o apelo publicitário postado na sua página da internet: “¡Una nueva (¿la última?) Crisis interna en la CCI!” acompanhada a seguir por um “Llamamiento al campo proletario y a los militantes de la CCI”.
Há vários dias, este “grupo internacional” (composto por 4 indivíduos) desenvolve uma atividade frenética, dirigindo uma carta após outra a todo o “meio proletário”, assim como a nossos militantes e a alguns simpatizantes (aos quais pegaram os endereços) com a finalidade de salvá-los das “garras” de uma suposta “fração liquidacionista” (um clã formado por Louise, Peter e Baruch).
Os membros fundadores desse novo grupo, dois delatores da ex-FICCI, acabam de dar mais um passo na infâmia, revelando claramente seus métodos policiais que tentam a destruição da CCI. Esse pretenso “Grupo Internacional da Esquerda Comunista” faz soar o alarme e proclama a torto e a direita o que fizeram com boletins internos da CCI. Exibindo o seu troféu de guerra e com muito barulho e alvoroço, a mensagem que esses acreditáveis delatores nos lançam é muito clara: haveria um “infiltrado” na CCI que trabalha de mãos dadas com a ex-FICCI!. Trata-se claramente de um trabalho policial que não pretende outra coisa a não ser semear a suspeita generalizada, a confusão e a discórdia no seio da nossa organização. Trata-se dos mesmos métodos que foram utilizados pela GPU, a polícia política de Stálin, para destruir desde o interior o movimento trotskista dos anos 30. Trata-se dos mesmos métodos que já utilizaram em oportunidades anteriores os membros da ex-FCCI (e mais concretamente dois deles, Juan e Jonás, membros fundadores do GIGC) quando fizeram viagens “especiais” a várias seções da CCI em 2001 com objetivo de organizar reuniões secretas e fazer circular rumores segundo os quais uma das nossas camaradas (a “mulher do chefe da CCI”, segundo sua expressão) seria uma “infiltrada”. Hoje, o mesmo procedimento para semear o pânico e destruir a CCI por dentro revela-se ainda mais repugnante: com o pretexto hipócrita de querer “estender a mão” aos militantes da CCI e salvá-los da “desmoralização” esses espiões profissionais lançam na realidade a seguinte mensagem a todos os militantes da CCI: “haveria um (ou mais) traidor nas suas fileiras que fez chegar até nós seus Boletins Internos, porém nós não os daremos seu nome, pois são vocês que devem buscá-los”. Na realidade este é o objetivo de toda a febril agitação desse novo “grupo internacional”: introduzir uma vez mais o veneno da suspeita e da desconfiança dentro da CCI para tentar destruí-la a partir do seu interior. Trata-se claramente de um autêntico empreendimento de destruição cujo grau de perversidade nada fica a dever aos métodos da polícia política de Stálin ou aos da Stasi.
Como lembramos várias vezes na nossa imprensa, Victor Serge, no seu livro bem conhecido e que é uma referência no movimento operário, O que todo revolucionário deve saber sobre a repressão 2, coloca claramente em evidência que a difusão da suspeita e da calúnia constitui uma arma privilegiada do Estado burguês para destruir as organizações revolucionárias “a confiança no partido é o cimento de toda força revolucionária (...) Os inimigos da ação, os covardes, os acomodados, os oportunistas, buscam suas armas nas lixeiras! A suspeita e a calúnia lhes servem para desacreditar os revolucionários (...) Este mal – a suspeita entre nós – não pode ser circunscrito mediante um grande esforço de vontade. Faz falta – e é desde já a condição prévia para a luta vitoriosa contra a verdadeira provocação, da qual cada acusação formulada contra um revolucionário seja rigorosamente verificada. Cada vez que alguém sofra semelhante suspeita, um júri de camaradas deve realizar uma investigação e se pronunciar sobre a acusação ou sobre a calúnia. Regras simples que se deve observar se quisermos preservar a saúde moral das organizações revolucionárias”. A CCI é a única organização revolucionária que continua sendo fiel a esta tradição do movimento operário defendendo o princípio dos júris de honra frente à calúnia: só os aventureiros, os elementos dúbios, e os covardes não querem que se façam os esclarecimentos diante de um júri de honra 3.
Victor Serge afirma também que as motivações que conduzem certos militantes a prestarem seus serviços às forças de repressão do Estado burguês não são invariavelmente a miséria material ou a covardia: “há outros mais perigosos, os diletantes, os aventureiros que em nada acreditam, cansados do ideal que até então tinham servido, amantes do perigo, da intriga, da conspiração, que gostam de levar um complicado jogo enganando a todo o mundo. Esses indivíduos podem ter talento e jogar um jogo realmente indecifrável”. Dentro do perfil do delator ou do agente provocador, encontramos segundo Victor Serge, ex-militantes, “feridos pelo partido”. O orgulho ferido, recriminações pessoais provocadas pelo ciúme, a frustração ou a decepção, podem conduzir militantes a desenvolver um ódio incontrolável contra o partido (ou contra alguns dos seus membros considerados como rivais) até o extremo de oferecer seus serviços as forças de repressão do Estado burguês.
Todos os “chamados” estrondosos dessa agência oficiosa do Estado burguês que é o GIGC não são outra coisa que chamados ao pogrom contra alguns de nossos camaradas (em ocasião anterior denunciamos em nossa imprensa as ameaças proferidas por um membro da ex-FICCI que disse a um dos nossos militantes: “vou cortar teu pescoço”). Não é nenhuma casualidade se esse novo “chamado” dos delatores da ex-FICCI tenha sido imediatamente reproduzido por um dos seus cúmplices e “amigos”, um tal de Pierre Hempel (que publica um lixo tão indigesto como delirante chamado “O Proletariado Universal”, autêntica imprensa amarela) na qual se pode ler barbaridades do estilo “Peter e sua cadela”. A “cadela” em questão seria nossa camarada a quem os delatores e potenciais assassinos da ex-FICCI tem acusado e assediado há mais de 10 anos, apoiados pelos seus cúmplices na pequena audiência que contam. Podemos apreciar o gênero de literatura (muito “proletária”) que sustenta o “chamado” do pretenso “Grupo Internacional da Esquerda Comunista”, que atiça a curiosidade e o voyeurismo de todos carniceiros do pequeno meio que se proclama “proletário”. Eles possuem os amigos que merecem.
Mas não acaba aqui a coisa. Se acessarmos os links que figuram na nota 4, nossos leitores que pertencem verdadeiramente ao campo da Esquerda Comunista, poderão ter uma ideia um pouco mais precisa do pedigree desse novo “Grupo Internacional da Esquerda Comunista”. Está sendo patrocinado desde vários anos por uma tendência pertencente à outra agência do Estado burguês, o NPA 5 (partido de Olivier Besancenot que se apresenta nas eleições e que é convidado regularmente aos programas televisivos franceses). Essa tendência do NPA faz regularmente uma ruidosa publicidade com bastante destaque do seu portal na internet. Se um grupo da extrema esquerda do Capital faz tanta publicidade para a FICCI e ao seu novo disfarce (o GIGC) é claramente a prova de que a burguesia sabe reconhecer seus fiéis servidores: sabe com quem pode contar para destruir a CCI. Assim, os delatores da GIGC poderão reclamar uma condecoração do Estado (concedida evidentemente pelo ministério do interior!) a que tem prestado serviços mais eminentes que a maior parte dos beneficiados por tais medalhas.
A CCI agirá com toda claridade e informará aos leitores das consequências desse assunto. Talvez tenhamos sido infiltrados por um ou vários elementos dúbios (não seria a primeira vez e temos uma larga experiência sobre esse tipo de problema, no mínimo desde o fato Chénier, um indivíduo excluído da CCI em 1981 e que, alguns meses mais tarde, trabalhava oficialmente para o Partido Socialista Francês à época no governo). Se esse for o caso aplicaremos nossos Estatutos como sempre fizemos.
Mas tampouco podemos descartar outra hipótese: um dos nossos computadores poderia ter sido hackeado pelos serviços da polícia (que vigia nossas atividades há mais de 40 anos). E não se pode excluir a possibilidade de que tenha sido a própria polícia (fazendo-se passar por um “infiltrado” militante anônimo da CCI) que tenha passado para a FICCI alguns de nossos boletins sabendo oportunamente que esses delatores (e em especial os dois membros fundadores do pretenso GIGC) fariam de imediato o uso adequado deles. Desse modo, não seria surpresa nenhuma uma vez que os cowboys da FICCI (que se apressaram em disparar mais rápido que a sua sombra!) tiveram uma grande decepção quando em 2004, ao flertar com um desconhecido de uma agência stalinista na Argentina, o cidadão B que se escondia atrás de um suposto “Círculo de Comunistas Internacionalistas”. Este “círculo”, puramente virtual, apresentava a oportunidade sonhada de publicar mentiras infames e grosseiras contra nossa organização, encontrou um eco complacente na FICCI. Desde o momento em que suas mentiras foram desmascaradas e o cidadão B desapareceu imediatamente de circulação, a FICCI se viu imersa na decepção e na maior frustração.
A FICCI pretende que “o proletariado tenha mais que nunca a necessidade das suas organizações políticas com objetivo de se orientar para a revolução proletária. Um enfraquecimento da CCI significa um enfraquecimento do campo proletário no seu conjunto. E um enfraquecimento do campo proletário significa um enfraquecimento do proletariado na luta de classe”. Trata-se de uma hipocrisia repugnante. Os partidos stalinistas se proclamam defensores da revolução comunista quando são seus mais ferozes inimigos. Ninguém pode ser enganado: qualquer que seja o cenário – a presença em nossas filas de um “infiltrado” da FICCI ou manipulação pelos serviços do Estado – a última “façanha” da FICCI-GIGC demonstra claramente que sua vocação não é de maneira nenhuma defender as posições da Esquerda Comunista e atuar pela revolução proletária, mas a de destruir a principal organização atual da Esquerda Comunista: trata-se de uma agência policial do Estado Capitalista, seja ou não retribuída pelos seus serviços.
A CCI sempre se defendeu dos ataques de seus inimigos, especialmente daqueles que tentam destruí-la mediante campanhas de calúnias e mentiras. A CCI não vai permitir suas atuações. Não vai deixar se desestabilizar por este ataque do inimigo de classe. Todas as organizações proletárias do passado enfrentaram as ataques do Estado burguês com o intuito de destruí-las. Elas se defenderam energicamente e, frequentemente, esses ataques em vez de debilitá-las, pelo contrário, reforçaram sua unidade e a solidariedade entre os militantes. Foi dessa forma como a CCI e seus militantes reagiram sempre aos ataques e a delação da FICCI. Por isso desde que foi tomado conhecimento do repugnante “chamado” do GIGC, todas as secções e todos os militantes da CCI se mobilizaram imediatamente com a máxima determinação para defender nossa organização, como os camaradas diretamente assinalados como alvo neste “chamado”.
Corrente Comunista Internacional, 4 de maio 2014.
1 Em espanhol: - Os métodos policiais da FICCI [232]; - La FICCI em ação: mentiras e comportamento de “brutamontes” [233] .
2 Em espanhol: https://www.marxists.org/espanol/serge/represion/index.htm [234]
3 Ver nosso comunicado de 21 de fevereiro de 2002 O combate das organizações revolucionárias contra a provocação e a calúnia [235] (em espanhol [236])
4 tendanceclaire.org/breve.php?id=655 [237]; tendanceclaire.org/breve.php?id=2058 [238]; tendanceclaire.org/breve.php?id=7197 [239].
5 NPA: Novo Partido Anticapitalista, França.
Na parte final de sua vida Nelson Mandela foi amplamente considerado um “santo” moderno. Aparecia como um modelo de humildade, integridade e honestidade, demonstrando uma incrível capacidade de perdoar.
Segundo um boletim recente da Oxfam, a África do Sul é “o país mais desigual do planeta e significativamente mais desigual do que no fim do “apartheid”. O Congresso Nacional Africano (CNA) está há quase 20 anos governando uma sociedade em que as privações da maioria negra continuam aumentando. Ainda assim, apesar de fazer parte do CNA desde os anos 40, Mandela sempre foi visto na África e no resto do mundo como alguém diferente de outros líderes.
Sua autobiografia de 1994, “Longa Caminhada Até a Liberdade”, é um valioso guia sobre a vida e ideias de Mandela. Mesmo que com um viés parcial, ela demonstra as preocupações e prioridades do autor (as citações em itálico no decorrer do texto foram retiradas do livro)Por exemplo, depois de 27 anos na prisão, ao ser solto em fevereiro de 1990, Mandela não demonstrava qualquer sinal de rancor contra seus algozes:
Fica claro também como este traço de sua personalidade foi útil ao capitalismo sul-africano. Após Mandela deixar a prisão, uma das principais tarefas do Congresso Nacional Africano foi garantir potenciais investidores que um futuro governo do partido não ameaçaria seus interesses. Na “Mensagem de Mandela ao Big Business” (19/06/1990), está dito por ele em diversas ocasiões:“o setor privado, tanto doméstico como internacional, trará uma contribuição vital para a reconstrução da África do Sul após o apartheid... Somos sensíveis ao fato de que para investir numa África do Sul pós-apartheid, vocês terão que ter confiança na segurança de seus investimentos, um retorno adequado de seu capital e um clima geral de paz e estabilidade”. Mandela pode ter falado como um cristão, mas um cristão que compreendia as necessidades dos negócios.
Mandela era certamente consistente, capaz de ver no presente a continuidade do passado. Quando, por exemplo, o CNA se sentou pela primeira vez para conversar oficialmente com o governo em maio de 1990, o futuro presidente disse ter lhes dado uma lição de história. “Expliquei a nossos interlocutores que desde sua fundação em 1912 o CNA sempre procurou negociar com o governo”.
Mandela frequentemente se referia à “Carta da Liberdade” do CNA, adotada em 1955:“Em junho de 1956, no boletim mensal Liberation, eu apontei que a carta endossava a iniciativa privada e permitiria que o capitalismo florescesse entre os africanos pela primeira vez”. Em 1988, durante negociações secretas com o governo, ele se referiu ao mesmo artigo, dizendo:“a Carta da Liberdade não era um guia para o socialismo, mas para o capitalismo em estilo africano. Disse a eles que não havia mudado de ideia desde então”.
Quando Mandela foi visitado em 1986 por uma comissão, disse-lhes “que era um nacionalista sul-africano, não um comunista e que existem nacionalistas de todas as cores e formatos”. Este nacionalismo era intransigente. Quando se aproximavam as eleições de 1994 e ele se encontrou com o presidente F.W. de Klerk num debate televisivo, afirmou: “senti que havia sido áspero demais com o homem que viria a ser meu parceiro num governo de unidade nacional. Resumindo, disse que ‘as trocas entre o senhor de Klerk e eu não deveriam obscurecer um fato importante. Considero que somos um exemplo brilhante para o mundo todo de pessoas vindas de grupos raciais diferentes que têm em comum lealdade e amor por seu país”
A partir da metade da década de 1970, Mandela recebeu visitas do ministro das prisões: “no decorrer dos anos o governo havia mandado ‘pegadinhas’, começando com a tentativa do ministro Kruger de me convencer a ir morar no Transkei. Não eram esforços para negociar, mas tentativas de me deixar isolado da minha organização. Em várias outras ocasiões Kruger me disse: ‘Mandela, podemos trabalhar com você, mas não com seus colegas’”.
O governo sul-africano reconhecia que havia algo diferente em sua personalidade que finalmente possibilitaria algum tipo de negociação. E, em dezembro de 1989, ao encontrar de Klerk pela primeira vez, Mandela pôde dizer que “o senhor de Klerk parecia representar uma real mudança em relação aos antigos políticos do Partido Nacional. Ele era um homem com quem nós poderíamos fazer negócio”.
No final, este respeito mútuo fez com que o Prêmio Nobel da Paz de 1993 fosse dado conjuntamente a Mandela e de Klerk,por “seu trabalho pelo fim pacífico do regime de Apartheid e por construírem as fundações de uma nova África do Sul democrática”.
Este objetivo a longo prazo não foi uma preferência pessoal de Mandela, mas algo que correspondia às necessidades do capitalismo. Após o massacre de Sharpeville em 1960, como conta a biografia de Mandela,“A bolsa de valores de Johannesburgo desabou e o capital começou a se retirar do país”.
O fim do Apartheid deu início a um período de crescimento do investimento estrangeiro na África do Sul. A democracia, no entanto, não beneficiou a maioria da população. Na década de 50, Mandela disse que “o objetivo secreto do governo era criar uma classe média sul-africana para diminuir o apelo do CNA na luta de libertação”.
Na prática, a “libertação” e um governo do CNA aumentaram pouco a classe média africana. Ela também acarretou repressão, remilitarização da polícia, proibição de protestos e ataques aos trabalhadores como, por exemplo, na greve dos mineiros de Marikana, em que 44 operários foram mortos e dezenas ficaram seriamente feridos.
Mandela foi capaz de afirmar que “todos os homens, até mesmo de sangue mais frio, têm um núcleo de decência e se seus corações são tocados, eles são capazes de mudar”. Pode ser verdade em relação a indivíduos, mas não em relação ao capitalismo, que não tem um “núcleo de decência” e não pode ser mudado. As caras do governo do CNA são diferentes de seus predecessores brancos, mas a exploração e a repressão continuam.
O CNA com sua luta de “libertação” fez uso tanto da violência como da não-violência em suas campanhas. Ao perceber que táticas não-violentas não estavam funcionando, o partido criou uma ala militar, na qual Mandela exerceu um papel central: “Consideramos quatro tipos de atividades violentas: sabotagem, guerrilha, terrorismo e revolução aberta”. Esperavam que a sabotagem “traria o governo para a mesa de negociação”, mas instruções precisas foram dadas para que “vidas fossem poupadas. Mas se a sabotagem não desse os resultados que queríamos, estávamos preparados para seguir ao próximo estágio: guerrilha e terrorismo”.
Então, em 16 de dezembro de 1961, quando “bombas caseiras foram detonadas em centrais elétricas e escritórios do governo em Johanesburgo, Port Elizabeth e Durban, isso não significou que os objetivos do CNA haviam mudado – a democracia ainda era a meta.
Depois de maio de 1983, quando o CNA explodiu seu primeiro carro bomba, matando 19 pessoas e ferindo mais de 200, Mandela disse que “a matança de civis foi um trágico acidente e sinto profundo horror em relação às mortes. Mas por mais incomodado que estivesse por causa das vítimas, sabia que acidentes do tipo eram as consequências inevitáveis da decisão de embarcar na luta militar”. Hoje, utiliza-se para tais “acidentes” o eufemismo mais moderno de “danos colaterais”.
Na década de 1950, a esposa de Mandela se tornou Testemunha de Jeová. Ele disse que apesar de “considerar alguns aspectos da (publicação) A Sentinela interessantes e valorosos, eu não compartilhava sua devoção. Havia um elemento obsessivo que me desestimulava”. Nas discussões do casal, relembra:“eu explicava a ela pacientemente que a política não era uma distração e sim o trabalho da minha vida, uma parte essencial e fundamental do meu ser”.
Tais diferenças os levaram a uma “batalha pelas mentes e corações dos nossos filhos. Ela queria que eles fossem religiosos e eu pensava que eles deveriam ser politizados”. E a que política eles foram expostos?
Há um contraste interessante aqui. De um lado, quatro lideranças da classe dominante capitalista (não tão diferentes assim da burguesia sul-africana) e, do outro, um dos momentos mais importantes da história da classe trabalhadora.
Mandela disse ter tido pouco tempo para estudar Marx, Engels ou Lenin, mas ele “concordava com o mandamento básico de Marx, que era a simplicidade e generosidade da Regra de Ouro: de cada um conforme suas habilidades, a cada um conforme suas necessidades”.
Por mais que ele “concordasse com o mandamento”, a história do CNA demonstra um século a serviço do capitalismo sul-africano. Seja em protestos ou guerrilha, os objetivos eram nacionalistas ou apenas uma válvula de escape, já que ele acredita que“o povo deve poder dar vazão à sua raiva e frustração”. No governo, as fases mudaram de Mandela a Mbeki a Motlanthe e agora Zuma, mas não houve mudanças na vida da maioria. A única diferença entre os presidentes é que Mandela tinha uma imagem melhor.
Mandela percebia bem seu próprio mito. Ele fazia questão de dizer que não era um “santo” nem um “profeta” nem um “messias” num mundo em que a maioria dos políticos se devota à autopromoção e enriquecimento.
Esta modéstia era uma das características mais atraentes de Mandela. Ela poderia ser explicada por suas origens na religião Metodista. Em seus 27 anos preso, ele perdeu o culto dominical apenas uma vez, “Apesar de ser metodista, eu frequentava as cerimônias de cada uma das outras religiões”.
Independente das origens da modéstia de Mandela ou de sua aparente decência, está claro que ele será a face da campanha eleitoral do CNA em 2014. E além da África do Sul, o mito de Mandela continuará sendo um dos pilares da ideologia democrática moderna.
Em sua carreira como advogado, Mandela foi, como ele próprio relata,“de uma visão idealista da lei como uma espada da justiça à percepção da lei como uma arma usada pela classe dominante para moldar a sociedade a seu favor”.
Ele não faz uma crítica similar da democracia. Em seu depoimento de 1964 ao tribunal ele expressou sua “admiração” pela democracia: “Tenho grande respeito pelas instituições políticas britânicas e pelo sistema de justiça do país. Considero o parlamento britânico a instituição mais democrática do mundo e sempre fico admirado com a independência e a imparcialidade do poder judiciário. O congresso americano, a doutrina do país de separação dos poderes, assim como a independência de seu judiciário também me causam sentimentos semelhantes”.
Seja qual for seu caráter como pessoa, o trabalho de sua vida foi a serviço da democracia capitalista. Já o capitalismo, continua utilizando as melhores qualidades de Mandela para o pior fim possível: a preservação de sua ordem social decadente.
Car 13/7/13
Há 100 anos, a humanidade estava à beira do abismo, a ponto de afogar-se na sangria mais espantosa que até então a história tinha conhecido. Durante gerações depois da Grande Guerra, os anos 1914-1918 foram sinônimo de matança absurda, de desperdício abominável de vidas no horror das trincheiras. As populações atingidas por tal barbárie responsabilizaram por isso tudo os governos e as classes dirigentes.
Cem anos depois, comemorar a guerra resulta, portanto, bastante incômodo para estas mesmas classes dirigentes. Por isso, preparam-se para nos afogar em um oceano de futilidades e de hinos à unidade nacional diante do sofrimento da guerra. Evitarão a todo custo qualquer menção às verdadeiras causas da guerra: a inexorável extensão imperialista do capitalismo a todo o planeta. Evitarão também qualquer sugestão sobre quem foi realmente responsável pela guerra.
E, sobretudo, evitarão toda menção à ideia de que a única força que poderia impedir a guerra, tanto em 1914 como hoje em dia, é o proletariado.
2014 não será então um ano de comemoração, mas de esquecimento.
Atualmente, ainda continua se chamando de “Grande Guerra” à que começou em agosto de 1914. Isso apesar da Segunda Guerra Mundial ter feito mais do dobro de vítimas, para não mencionar as intermináveis guerras que, desde 1945, semearam ainda mais mortes e provocaram ainda mais destruição.
Para entender por que a guerra de 1914-1918 continua ainda sendo “a Grande Guerra”, basta visitar qualquer povoado da França, inclusive o mais isolado e perdido nos prados alpinos; lá poderão ser encontradas famílias inteiras com seus nomes gravados num marco comemorativo: irmãos, pais, tios, filhos. Estes testemunhos mudos do horror não somente podem ser vistos nas cidades e nos povoados das nações beligerantes europeias, mas também em outro extremo do mundo: na pequena aldeia de Ross, na ilha australiana da Tasmânia, o monumento carrega os nomes de 16 mortos e 44 sobreviventes, resultado, sem dúvida, da batalha de Galípoli (Turquia).
Mesmo para duas gerações após o final da guerra, 1914-1918 continuou sendo sinônimo de matança absurda, impulsionada pela estupidez cega e irrefletida de uma casta aristocrática dominante, pela avidez insaciável dos imperialistas, dos aproveitadores de guerra e dos fabricantes de armas. Apesar de todas as cerimônias oficiais, todas as coroas de flores depositadas nos memoriais aos tombados na guerra e, na Grã-Bretanha, da ostentação simbólica de papoulas na lapela no dia da comemoração anual, aquela visão da Primeira Guerra Mundial se integrou à cultura popular das nações beligerantes. Na França, o romance autobiográfico de Gabriel Chevalier, La peur [O medo], publicado em 1930, conheceu um sucesso tão grande que as autoridades proibiram o livro, taxando-o de antipatriota. Em 1937, o filme de Jean Renoir contra a guerra, A Grande Ilusão, foi projetado ininterruptamente no cine Marivzus das 10 horas até às 2 da manhã e bateu todos os recordes de entradas; em Nova Iorque, permaneceu 36 semanas em cartaz [1].
Na Alemanha dos anos vinte, os desenhos satíricos de George Grosz atacavam generais, políticos e todos aqueles que tinham tirado proveito da guerra. O livro de E. M. Remarque, Nada de novo no front [Im Westen Nichts Neues] foi publicado em 1929. 18 meses depois de sua publicação, 2 milhões e meio de exemplares tinham sido vendidos e o livro tinha sido traduzido para 22 idiomas; a versão cinematográfica da Universal Studios, realizada em 1930, teve um sucesso estrondoso nos Estados Unidos, onde ganhou o Oscar de melhor filme [2].
Após sua derrocada, o Império Austro-húngaro trouxe ao mundo um dos romances antiguerra mais importantes: A aventudas do bom soldado Švejk [Osudy dobrélo vojáka Švejk světové války] de Jaroslav Hašek, publicado em 1923 e desde então traduzido para 58 idiomas – mais que qualquer outra obra em checo.
A aversão causada pela lembrança da Primeira Guerra Mundial sobreviveu à sangria ainda mais terrível da Segunda. Comparada com os horrores de Auschwitz e Hiroshima, a crueldade do militarismo prussiano e com a opressão czarista – para não falar do colonialismo francês ou britânico – os eventos que serviram de justificativa para a guerra em 1914 quase poderiam parecer como insignificantes e, contudo, a matança nas trincheiras pareceria ainda mais absurda e monstruosa: deste modo, a burguesia poderia apresentar a Segunda Guerra Mundial se não como uma “boa” guerra, ao menos como uma “guerra justa” e necessária. Esta contradição em nenhum país é mais evidente que na Grã-Bretanha, onde toda uma série de filmes enaltecedores da “causa justa” no mais puro estilo patrioteiro (Labaredas do Inferno [The Dam Busters] em 1955, Inferno nos céus [633 Squadron], em 1964, etc.) podia ser vista nas telas dos cinemas durante os anos 50 e 60, enquanto os escritos contra a guerra dos “poetas da guerra” Wilfred Owen, Siegfried Sassoon e Robert Graves faziam parte do currículo obrigatório dos colégios [3]. Talvez a maior obra de Benjamin Britten, o compositor britânico mais famoso do século XX, seja seu Réquiem da Guerra (1961), que musicou a poesia de Owen, enquanto em 1969 surgiram dois filmes muito diferentes: de um lado, no registro patriótico, A Batalha Britânica [Battle of Britain], e de outro, a sátira corrosiva Oh! Que Bela Guerra [Oh What a Lovely War!], que faz uma denúncia musical da Primeira Guerra Mundial, servindo-se das canções criadas pelos soldados nas trincheiras.
Duas gerações mais tarde, estamos hoje em plena época do 100º aniversário do estouro da guerra (4 de agosto de 1914). Dada a importância das décadas para os aniversários e, mais ainda dos centenários, foram feitos grandes preparativos para comemorar a guerra (a palavra “comemorar” é usada aqui no sentido de “fazer recordar”. Por isso, nesse caso os sentidos “celebrar” ou “festejar” não é o mais conveniente). Na França e na Grã-Bretanha, foram alocados orçamentos de dezenas de milhares de euros ou libras esterlinas; na Alemanha, por razões óbvias, os preparativos foram mais discretos e não receberam a benção governamental [4].
“Quem paga a banda, escolhe a música”: então o que as classes dominantes vão receber em troca das dezenas de milhares gastos para “comemorar a Guerra”?
Se observarmos as páginas da web dos organismos responsáveis pela comemoração (na França, o governo constituiu um organismo especial, na Grã-Bretanha o Museu Imperial da Guerra foi o encarregado) a resposta parece bastante clara: estão comprando uma das cortinas de fumaça ideológica mais caras da história. Na Grã-Bretanha, o Museu Imperial da Guerra deu-se por tarefa recolher as histórias dos indivíduos que viveram a guerra para transformá-las em podcasts (arquivos de áudio para internet) [5]. A página web do Projeto Centenário (1914.org) nos apresenta acontecimentos de importância tão crucial como a exposição do revólver utilizado durante a guerra por J. R. R. Tolkien (Que piada! Dá para supor que o que pretendem é se aproveitar do sucesso dos filmes O Senhor dos Anéis, inspirados nos livros de Tolkien); a comemoração de um dramaturgo de Surrey, a coleta pelo Museu de Transportes de Londres da história dos ônibus durante a Grande Guerra (sério!); em Nottingham, “um grande programa de acontecimentos e atividades (...) trouxeram à luz como o conflito catalisou imensas mudanças sociais e econômicas nas comunidades de Nottinghamshire”. A BBC produziu um “documentário inovador”: “A Primeira Guerra Mundial vista de cima”, com fotografias e filmes feitos a partir dos balões cativos da artilharia. Serão rendidas homenagens aos pacifistas, com comemorações sobre os objetores de consciência. Em resumo, vão nos afogar num oceano de futilidades. Segundo o Diretor Geral do Museu Imperial da Guerra, “nossa ambição é que muito mais gente compreenda que não se pode entender o mundo de hoje sem entender as causas, o curso e as consequências da Primeira Guerra Mundial” [6] e estamos 100% de acordo com isso. Mas na realidade, tudo está feito, inclusive por parte do respeitável Diretor Geral para nos impedir de entender suas verdadeiras causas e suas verdadeiras consequências.
Na França, o site do centenário anuncia o mui oficial Informe ao Presidente da República para comemorar a Grande Guerra, datado de setembro de 2011 [7], que começa com estas palavras do discurso do general De Gaulle no cinqüentenário da guerra em 1964: “Em 2 de agosto de 1914, dia da mobilização, o conjunto do povo francês se pôs de pé na sua unidade. Isso nunca tinha ocorrido. Todas as regiões, todas as localidades, todas as categorias, todas as famílias, todas as almas, puseram-se repentinamente de acordo. Num momento, apagaram-se as múltiplas disputas, políticas, sociais, religiosas, que mantinham dividido o país. De um extremo ao outro do solo nacional as palavras, as canções, as lágrimas e, sobretudo, os silêncios não expressaram senão uma única resolução”. No próprio informe lemos que “Ainda que suscite o pavor dos contemporâneos diante das mortes massivas e dos imensos sacrifícios feitos, o Centenário também fará que um estremecimento percorra a sociedade francesa, recordando a unidade e a coesão nacional mostrada pelos franceses durante a prova da Primeira Guerra Mundial”. Parece, portanto, pouco provável, que a burguesia francesa tenha a intenção de falar-nos da repressão policial brutal às manifestações de trabalhadores contra a guerra durante o mês de julho de 1914, nem do notório Caderno B (lista do governo com os nomes dos militantes antimilitaristas, socialistas e sindicalistas que deveriam ser presos, internados ou enviados ao fronte a partir do estouro da guerra – os britânicos possuíam algo equivalente) e, menos ainda, das circunstâncias do assassinato do dirigente socialista antiguerra Jean Jaurès nas vésperas do conflito, como tampouco dos motins nas trincheiras [8]...
Como sempre, os propagandistas podem contar com o apoio dos doutos universitários para proporcionar material para seus documentários e entrevistas. Tomaremos aqui um único exemplo que nos parece emblemático: The Sleepwalkers, do historiador Christopher Clark da Universidade de Cambridge, publicado em 2012 e em 2013 em versão de livro de bolso, e já traduzido ao francês (Les Somnambules), alemão (Die Schlafwandler), espanhol (Sonámbulos) e em português (Os Sonâmbulos) [9]. Clark é um empirista sem complexos, sua introdução anuncia muito claramente sua intenção: “Este livro (...) trata menos de por que estourou a guerra do que como ocorreu. As perguntas dos porquês e do como são inseparáveis na lógica, mas nos levam a direções diferentes. A pergunta de como nos convida a observar atentamente as sequências de interações que produziram determinados resultados. A pergunta do porquê, pelo contrário, convida-nos a buscar causas distantes e categóricas: o imperialismo, o nacionalismo, os armamentos, as alianças, as finanças, as ideias de honra nacional, os mecanismos da mobilização” [10]. O que falta na lista de Clark é, obviamente, o capitalismo. É possível que o capitalismo seja gerador de guerras? É possível que a guerra não seja somente “a política por outros meios”, retomando a famosa expressão de Von Clausewitz, mas a última expressão da concorrência inerente ao modo de produção capitalista? Oh, não, por favor, isso nunca! Clark dedica-se, pois, a fornecer-nos “os fatos” que levaram à guerra, o que faz com uma imensa erudição e em detalhes – até da cor das plumas de avestruz sobre o elmo de Francisco Fernando da Áustria no dia de seu assassinato (eram verdes!). Se alguém tivesse se incomodado em anotar a cor da cueca de seu assassino, Gravilo Princip, também esta informação constaria deste livro.
O tamanho do livro e sua preocupação com os detalhes, torna ainda mais notável uma omissão. Apesar de dedicar seções inteiras à questão “da opinião pública”, Clark não tem absolutamente nada a dizer sobre a única parte “da opinião pública” que importava de verdade: a posição adotada pela classe operária organizada. Clark cita amplamente jornais como o Manchester Guardian, o Daily Mail, o Le Matin, e muitos outros desaparecidos há muito tempo e caídos num merecido esquecimento, mas não cita nem sequer uma única vez o Vorwärts, nem l'Humanité (os jornais respectivamente dos partidos socialistas alemão e francês), nem La Vie ouvrière, o órgão semioficial da CGT francesa [11], nem La Bataille syndicaliste. E estas eram publicações importantes! O Vorwärts era um entre os 91 jornais do SPD com uma difusão total de 1 milhão e meio de exemplares (em comparação, o Daily Mail reivindicava uma difusão de 900 mil exemplares) [12], e o próprio SPD era o partido mais importante da Alemanha. Clark menciona o congresso de Iena em 1905, onde o SPD se negou a convocar a greve geral em caso de guerra, mas não disse uma palavra sobre as resoluções contra a guerra adotadas pelos congressos da Internacional Socialista em Stuttgart (1907) e na Basileia (1912). O único dirigente do SPD que merece menção no livro é Albert Südekum, um personagem relativamente menor da direita do SPD, cujo papel de figurante tranqüiliza o chanceler alemão Bethmann-Hollweg em 28 de julho, destacando que o SPD não se oporá a uma guerra “defensiva”.
Sobre a luta entre esquerda e direita no movimento socialista e, mais amplamente, operário: silêncio absoluto. Sobre o combate político de Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Anton Pannekoek, Herman Gorter, Domela Nieuwenhuis, John MacLean, Vladimir Ilyich Lênin, Pierre Monatte, e tantos outros, nada de nada. Sobre o assassinato de Jean Jaurès, mais silêncio, só silêncio...
Fica evidente que os proletários não podem contar com a historiografia burguesa para entender verdadeiramente as causas da Grande Guerra. Melhor olharmos na direção dos destacados militantes da classe operária: Rosa Luxemburgo, sem dúvida alguma a teórica mais importante da socialdemocracia alemã, e Alfred Rosmer, um militante fiel da CGT francesa do período pré-guerra. Vamos nos basear em particular em A Crise da Socialdemocracia, de Rosa Luxemburgo (mais conhecido com o nome de Folheto de Junius [13]) e O movimento operário durante a Primeira Guerra Mundial [14], de Rosmer. Ambas as obras são muito diferentes: o panfleto de Luxemburgo foi escrito no cárcere em 1916 (e por não dispor do qualquer acesso privilegiado a bibliotecas e arquivos governamentais, o vigor e a clareza de sua análise tornam-se ainda mais impressionantes); o primeiro volume [15] da obra de Rosmer, que trata do período que conduziu à guerra, foi publicado em 1936 e é fruto de sua dedicação meticulosa à verdade histórica, assim como de sua defesa apaixonada dos princípios internacionalistas.
Poderiam nos perguntar se tudo isso é realmente importante. Ocorreu há muito tempo, o mundo mudou, o que podemos aprender realmente desses escritos de outros tempos?
Responderemos que é primordial entender a Primeira Guerra Mundial por três razões.
A primeira, porque a Primeira Guerra Mundial abriu uma nova época: continuamos vivendo em um mundo moldado pelas consequências daquela guerra.
A segunda, porque as causas subjacentes da guerra continuam presentes e operacionais: existe uma similaridade claríssima entre a ascensão da nova potência alemã antes de 1914 e a atual ascensão da China.
E a terceira, e talvez mais importante, porque é precisamente isso o que os propagandistas do governo e seus historiadores pagos querem ocultar: somente há uma e única força capaz de pôr fim à guerra imperialista: a classe operária mundial. Como disse Rosmer: “os governos sabem que não podem se lançar na perigosa aventura que é a guerra – e sobretudo esta – a não ser sob a condição de ter atrás deles praticamente a unanimidade da opinião pública e, especialmente, a da classe operária; para isso, é-lhes necessário confundi-la, enganá-la, desorientá-la, animá-la” [16]. Luxemburgo cita a frase de Von Bülow, que dizia que era, sobretudo por temor à Socialdemocracia que, na medida do possível, “se faziam esforços por atrasar qualquer guerra”; cita também o Vom Heutigen Krieg [Uma guerra de hoje] do general Bernhardi: “Quando as grandes massas estão além do controle de seus dirigentes, quando se difunde o espírito de pânico, quando se pode sentir a falta de víveres, quando o espírito de rebelião toma conta das massas do exército, este se torna não somente ineficaz com relação ao inimigo, mas também uma ameaça para si e para seus dirigentes. Quando o exército rompe os limites da disciplina, quando interrompe voluntariamente o curso da operação militar, cria problemas que seus dirigentes são incapazes de solucionar”. E Luxemburgo continua: “Assim, tanto os políticos capitalistas como as autoridades militares crêem que a guerra, com seus modernos exércitos de massas, é um jogo perigoso. E isto dava à socialdemocracia a melhor oportunidade de terminá-la o quanto antes possível. Mas a posição da socialdemocracia diante desta guerra varreu todas as dúvidas, derrubou diques de contenção da maré militarista (...). E assim, milhares de vítimas que caíram nos últimos meses nos campos de batalha pesam sobre nossa consciência.” [17].
O estouro de uma guerra imperialista mundial e generalizada (aqui não falamos dos conflitos localizados, inclusive de grandes conflitos como as guerras da Coreia ou do Vietnã) vem determinado por duas forças que se enfrentam: o impulso na direção da guerra, de uma nova divisão do mundo entre as grandes potências imperialistas, e a luta pela defesa de sua própria existência pelas classes trabalhadoras, que devem proporcionar, por sua vez, a carne de canhão e o exército industrial, sem os quais a guerra moderna é impossível. A Crise da Socialdemocracia e, sobretudo em sua fração mais poderosa, a socialdemocracia alemã – crise que os historiadores universitários pagos silenciaram sistematicamente - é, portanto, o fator crítico que tornou possível a guerra em 1914.
Trataremos disso mais detalhadamente em um artigo posterior, mas aqui nos propomos a retomar a análise de Luxemburgo sobre as rivalidades e as alianças movediças que empurraram inexoravelmente as grandes potências em direção à sangria de 1914.
“Há dois processos na história recente que conduzem diretamente à atual guerra. Um se origina no período em que se constituíram pela primeira vez os chamados Estados nacionais, quer dizer, os Estados modernos, a partir da guerra bismarquiana contra a França. A guerra de 1870 que, com a anexação da Alsácia e da Lorena, atirou a República Francesa nos braços da Rússia, dividiu a Europa em dois grupos contrários e iniciou um período armamentista competitivo frenético, acendeu a chama da atual conflagração mundial (...)
Assim, a guerra de 1870 resultou no agrupamento político formal da Europa em torno dos eixos do antagonismo franco-alemão e impôs um reinado de militarismo na vida dos povos da Europa. O processo histórico outorgou a este agrupamento e a este reinado um conteúdo inteiramente novo. O segundo processo que conduz à atual guerra mundial, que confirma novamente e de forma brilhante a profecia de Marx [18], tem origem em acontecimentos internacionais ocorridos logo depois da morte de Marx: o desenvolvimento imperialista dos últimos vinte e cinco anos [19]”.
Os últimos trinta anos do século XIX assistiram, portanto, a uma rápida expansão do capitalismo pelo mundo, e também à aparição de um novo capitalismo, dinâmico, em expansão e cheio de confiança, no interior da própria Europa: o Império alemão reconhecido no palácio de Versalhes em 1871, depois da derrota francesa na guerra franco-prussiana, da qual a Prússia emergiu como território mais poderoso entre uma multidão de principados e pequenos Estados alemães, para surgir como o componente dominante de uma Alemanha nova e unificada. “(...) podia-se, então, prever”, acrescenta Luxemburgo, “que esse jovem imperialismo transbordante de energia e sem obstáculos de qualquer tipo, que debutava no cenário mundial com enormes apetites, quando o mundo se encontrava, por assim dizer, já repartido, devia converter-se rapidamente no fator imprevisível de agitação geral [20].
Por uma dessas peculiaridades da história que nos permitem tomar uma única data como símbolo de uma mudança da dinâmica da história, o ano de 1898 foi testemunha de três acontecimentos que assinalaram tal mudança.
O primeiro foi “o Incidente de Fachoda”, uma tensa confrontação entre tropas francesas e britânicas que disputavam o controle do Sudão. Naquele momento, parecia haver um verdadeiro risco de guerra entre ambos os países pelo controle do Egito e do Canal de Suez e, de forma mais geral, pela supremacia sobre a África. Finalmente, o incidente resultou numa melhoria das relações franco-britânicas, formalizada em 1904 pela “Entente Cordiale”, e numa tendência cada vez mais marcada, por parte da Grã-Bretanha, de apoiar a França contra uma Alemanha que ambos viam como uma ameaça. As duas “Crises marroquinas” de 1905 e 1911 [21] deixaram claro que daí em diante, a Grã-Bretanha se oporia às ambições alemãs no norte da África (estava, contudo, disposta a deixar algumas migalhas para a Alemanha: as possessões coloniais de Portugal).
O segundo acontecimento foi a tomada do porto chinês de Tsingtao (hoje Qingdao) pela Alemanha [22], que anunciava a entrada da Alemanha na arena imperialista como potência com aspirações mundiais e não somente europeias – uma Weltpolitik, como naquele momento se dizia na Alemanha.
Foi, portanto, bastante oportuno que em 1898 tenha ocorrido também a morte de Otto von Bismarck, grande chanceler que havia guiado a Alemanha pela via de sua unificação e rápida industrialização. Bismarck sempre havia se oposto ao colonialismo e à construção naval, por ter como preocupação principal na política externa impedir o surgimento de uma aliança antigermânica entre as demais potências com ciúmes– ou preocupadas – pela ascensão alemã. No início do século, a Alemanha havia se convertido numa potência industrial de primeira ordem, somente ultrapassada pelos Estados Unidos, com as ambições mundiais que isso implicava. Luxemburgo cita o Ministro de Assuntos Exteriores de então, von Bülow, em um discurso de 11 de dezembro de 1899: “quando os ingleses falam de uma ‘Grã-Inglaterra’, quando os franceses falam da ‘Nova França’, quando os russos abrem a Ásia Central para sua penetração, também nós temos direito a aspirar a uma Alemanha maior. Se não criamos uma marinha apta para defender nosso comércio, nossos nativos em terras estrangeiras, nossas missões e a segurança de nossas costas, ameaçamos os interesses vitais da nossa nação. No próximo século, o povo alemão será o martelo ou a bigorna”. E Luxemburgo acrescenta: “Tiremos a pomposidade da frase ornamental sobre a defesa de nossas costas, e fica o programa colossal: a grande Alemanha que cai como um martelo sobre as demais nações” [23].
No começo do século XX, dotar-se de uma Weltpolitik exigia uma marinha de guerra à altura de suas ambições. Luxemburgo demonstra claramente que a Alemanha não necessitava economicamente de forma urgente de uma marinha: ninguém ia arrancá-la de suas possessões na África ou na China. A marinha era, sobretudo, uma questão de “status”: para poder prosseguir em sua expansão, a Alemanha devia aparecer como uma potência séria, uma potência com a qual era necessário contar, e para isso uma “frota ofensiva de primeira qualidade” era uma premissa. Nas palavras inesquecíveis de Luxemburgo, este era “um desafio não somente à classe operária alemã, mas também a outras nações capitalistas, desafio dirigido a ninguém em particular, uma luva que se agitava diante do mundo inteiro”.
O paralelo entre a ascensão da Alemanha no limiar dos séculos XIX e XX, e a da China cem anos mais tarde é evidente. Como a de Bismarck, a política externa de Deng Xiaoping procurou não preocupar os vizinhos da China, como tampouco a potência hegemônica mundial, os Estados Unidos. No entanto, sua ascensão à condição de segunda potência econômica mundial, o “status” da China exige que possa, no mínimo, controlar suas fronteiras e proteger suas vias marítimas: daí seu programa de construção naval, de submarinos e de um porta-aviões, com sua recente declaração de uma zona de defesa de identificação aérea (ADIZ, sigla em inglês), que cobre as ilhas de Senkaku-Diaoyu.
Trata-se, evidentemente, de um paralelo não de uma igualdade, por duas razões em particular: em primeiro lugar, a Alemanha do início do século XX não somente era a segunda potência industrial depois dos Estados Unidos, mas também estava na vanguarda do progresso técnico e da inovação (como se pode verificar, por exemplo, na qualidade de Prêmios Nobel alemães e na inovação alemã nas indústrias siderúrgicas, elétricas e químicas); em segundo lugar, a Alemanha tinha a capacidade de transportar sua força militar pelo mundo inteiro.
Assim como os Estados Unidos hoje em dia há de se opor à ameaça chinesa com relação a seu próprio “status” e à segurança de seus aliados (Japão, Coreia do Sul e Filipinas em particular), a Grã-Bretanha também viu como uma ameaça a ascensão da marinha alemã, e o que ainda era pior: uma ameaça existencial contra a via marítima vital do canal da Mancha e suas próprias defesas costeiras [24].
No entanto, quaisquer que fossem suas ambições navais, a direção natural rumo à extensão de uma potência terrestre como a Alemanha, era em direção a leste, mais especificamente em direção ao Império Otomano em decomposição; isso era tanto mais evidente porquanto suas ambições na África e no Mediterrâneo ocidental estavam bloqueadas pelos franceses e pelos britânicos. O dinheiro e o militarismo andavam de mãos dadas e o capital alemão afluiu para a Turquia [25], abrindo caminho a cotoveladas com seus concorrentes britânicos e franceses. Grande parte desse capital dedicou-se a financiar a estrada de ferro Berlim-Bagdá: na verdade, tratava-se de uma rede de estradas de ferro que deviam conectar Berlim a Istambul, para logo seguir em direção ao sul da Anatólia, Síria e Bagdá, e também Palestina, Hejaz e Meca. Numa época em que os movimentos de tropas dependiam das estradas de ferro, isso tornava possível ao exército turco, equipado com armas alemãs e treinado por militares alemães, mandar tropas que teriam ameaçado tanto a refinaria britânica de Abadã (na Pérsia, hoje Irã) [26], como o controle britânico do Egito, do canal de Suez: esta era uma ameaça alemã direta contra os interesses estratégicos da Grã-Bretanha. Durante grande parte do século XIX, a expansão russa na Ásia Central, que supunha uma ameaça sobre a fronteira persa e sobre a Índia, era o principal risco para a segurança do Império britânico; a derrota da Rússia pelo Japão em 1905 havia acalmado suas pretensões orientais a ponto de em 1907 um tratado anglo-russo podia ao menos temporariamente – solucionar os conflitos entre os dois países no Afeganistão, na Pérsia e no Tibete. A Alemanha era agora um rival a ser enfrentado.
Inevitavelmente, a política oriental da Alemanha significava para ela um interesse estratégico nos Bálcãs, no Bósforo e no Dardanelos. O fato da estrada de ferro entre Berlim e Istambul ter que passar por Viena e Belgrado fazia que o controle, ou ao menos a neutralidade, da Sérvia, passasse de repente a ser de grande importância estratégica para a Alemanha. Por sua vez, isto a colocava em conflito com um país que – nos tempos de Bismarck – tinha sido o bastião da reação e da solidariedade autocrática, ou seja, o principal aliado da Prússia e da Alemanha imperial: a Rússia.
Desde o reinado de Catarina, a Grande, a Rússia havia se firmado (nos anos 1770) como potência dominante do Mar Negro, eliminando os otomanos. O comércio cada vez mais importante da indústria e da agricultura russas dependia da liberdade de navegação no Estreito de Bósforo. A ambição russa apontava para o Dardanelos e o controle do tráfego marítimo entre o Mar Negro e o Mediterrâneo (os objetivos russos no Dardanelos já tinham levado à guerra com a Grã-Bretanha e a França na Crimeia em 1853). Luxemburgo resumiu assim a dinâmica da sociedade russa que impulsionava sua política imperialista: “Por um lado, nas tendências de conquista do czarismo se manifesta a expansão tradicional de um império poderoso, cuja população abrange hoje 170 milhões de homens e que trata de alcançar, tanto por motivos econômicos como estratégicos, o livre acesso aos mares, ao oceano Pacífico no Oriente e ao Mediterrâneo no Sul. Por outro lado, a sobrevivência do absolutismo implica na necessidade de manter uma posição que imponha respeito na concorrência geral dos grandes Estados ao nível da política mundial para assegurar o crédito financeiro do capitalismo estrangeiro, sem o qual o czarismo não pode viver. (...) No entanto, cobram cada vez mais importância os interesses burgueses modernos como fator do imperialismo no império czarista. O jovem capitalismo russo, que sob o regime absolutista não pode alcançar, como é natural, seu desenvolvimento completo nem sair, em geral, da fase do primitivo sistema de saque, vê diante de si um brilhante futuro pelas incomensuráveis fontes naturais deste gigantesco império. (...) É a previsão desse futuro e, por assim dizer, como adiantamento da avidez de acumulação, o que enche a burguesia russa de um ímpeto marcadamente imperialista e que a faz se manifestar com ardor suas pretensões na repartição do mundo” [27]. A rivalidade entre a Alemanha e a Rússia pelo controle do Bósforo se encontrou inevitavelmente com seu ponto nevrálgico nos Bálcãs, onde o avanço da ideologia nacionalista característica de um capitalismo em vias de se desenvolver criava uma situação de tensão permanente e guerra sangrenta intermitente entre os três Estados que nasceram do Império Otomano em decomposição: Grécia, Bulgária e Sérvia. Estes três países se aliaram contra os otomanos na Primeira Guerra dos Bálcãs, e brigaram entre si para repartir o butim – em particular na Albânia e na Macedônia – durante a Segunda Guerra dos Bálcãs [28].
A ascensão desses novos Estados nacionais agressivos nos Bálcãs não podia deixar indiferente o outro império declinante da região: Áustria-Hungria. Para Luxemburgo, “a monarquia dos Habsburgo não é a organização política de um Estado burguês, mas unicamente um sindicato desconexo de uns quantos bandos de parasitas sociais que querem recolher alguns punhados, utilizando os meios de poder estatais, enquanto se mantém a maçã podre da monarquia”, e a Áustria-Hungria estava constantemente sob a ameaça das novas nações que a rodeavam e todas eram compostas das mesmas etnias que certas partes do Império: daí a anexação pela Áustria-Hungria da Bósnia-Herzegovina, com o objetivo de impedir à Sérvia um acesso ao Mediterrâneo.
Em 1914, a situação na Europa se assemelhava a um cubo de Rubik (cubo mágico) mortal, suas distintas peças estavam tão estreitamente imbricadas que mover uma delas significava necessariamente mover todas elas.
Isso quer dizer que as classes dominantes, os governos, não sabiam o que faziam, que de certo modo – segundo o título do livro de Christopher Clark, Os Sonâmbulos –, entraram em guerra por acidente, que a Primeira Guerra Mundial não foi mais que um terrível engano?
De jeito nenhum! Sem dúvida alguma, as forças históricas descritas por Luxemburgo, na análise possivelmente mais profunda já escrita sobre a entrada em guerra, mantinham a sociedade pressionada: neste sentido, a guerra era o resultado de rivalidades imperialistas imbricadas. As situações históricas chamam ao poder os homens que lhes correspondem e os governos que arrastaram a Europa e o mundo à guerra sabiam muito bem o que faziam e o fizeram deliberadamente. Os anos de transição do século até o estouro da guerra caracterizaram-se por repetidos alertas, cada um mais grave que o anterior: a crise de Tanger em 1905, o incidente de Agadir em 1911, as Primeira e Segunda Guerra dos Bálcãs. Cada incidente impulsionava adiante a fração pró-guerra de cada burguesia, reforçando a ideia de que a guerra era de qualquer forma inevitável. O resultado foi uma corrida armamentista absurda: a Alemanha pôs em marcha seu programa de construção naval e a Grã-Bretanha seguiu-lhe os passos; a França aumentou a duração do serviço militar obrigatório para três anos; enormes empréstimos franceses financiaram a modernização das estradas de ferro do pequeno, mas eficaz, exército sérvio. Todas as potências continentais aumentaram o número de homens convocados para as fileiras.
Cada dia mais convencidos de que a guerra era inevitável, a pergunta para os governos europeus era simplesmente: quando? Quando estariam completos os preparativos de cada um em relação a seus rivais? Esse seria o “bom” momento para a guerra.
Se Luxemburgo via na Alemanha o novo “fator imprevisível” da situação europeia, isso significa que as potências da Tríplice Aliança (Grã-Bretanha, França e Rússia) eram vítimas inocentes da agressão expansionista alemã? Essa é a tese de alguns historiadores revisionistas atuais: a luta contra o expansionismo alemão não só se justificava em 1914, mas, basicamente, 1914 foi o precursor da “boa guerra” de 1939. Isto sem dúvida é verdade, mas os países da Tríplice Aliança poderiam ser tudo, mas nunca vítimas inocentes. E a ideia de que somente a Alemanha era “expansionista” é ridícula, quando comparamos o tamanho do Império Britânico – fruto da agressão expansionista britânica – com o da Alemanha: curiosamente, isto nunca parece passar pelas cabeças dos historiadores ingleses domesticados [29].
Na verdade, a Tríplice Aliança preparava há muitos anos uma política de cerco da Alemanha (assim como os Estados Unidos desenvolveram uma política de cerco à URSS durante a Guerra Fria e hoje tentam fazer o mesmo com a China). Rosmer o demonstra com uma nitidez irretocável, baseando-se nas correspondências secretas entre os embaixadores belgas das distintas capitais europeias [30].
Em maio de 1907, o embaixador em Londres escrevia: “Fica claro que a Inglaterra oficial dá prosseguimento a uma política silenciosamente hostil, que tende a conseguir o isolamento da Alemanha, e que o rei Eduardo não vacilou em pôr sua influência pessoal a serviço desta ideia” [31]. Em fevereiro de 1909, temos notícias do embaixador em Berlim: “O rei da Inglaterra afirma que a manutenção da paz sempre foi o objetivo de seus esforços; é o que não cansou de dizer desde o começo da campanha diplomática que levou a cabo, com o fim de isolar a Alemanha; mas não se pode deixar de observar que a paz do mundo nunca esteve tão comprometida como quando o rei da Inglaterra se pôs a consolidá-la” [32]. De Berlim, de novo, lemos em abril de 1913: “A arrogância e o menosprezo com que estes [os sérvios] recebem as reclamações do gabinete de Viena somente podem ser explicados pelo apoio que pensam encontrar em São Petersburgo. O encarregado de negócios da Sérvia dizia aqui recentemente que seu governo não teria dado passos adiante há 6 meses, omitindo as ameaças austríacas, caso não tivesse sido incentivado pelo ministro da Rússia, o Sr. Hartwig...” [33].
Na França, o desenvolvimento consciente de uma política agressiva e chauvinista tornou-se perfeitamente claro para o embaixador belga em Paris (janeiro de 1914): “Eu tive a honra de informar-lhes que são os Srs. Poincaré, Delcassé, Millerand e seus amigos os que inventaram e deram prosseguimento à política nacionalista, patrioteira e chauvinista cujo renascimento constatamos (...) Vejo nisso um grande risco que ameaça hoje a paz da Europa (...) porque a atitude adotada pelo gabinete Barthou é, no meu modo de ver, a causa determinante de um incremento nas tendências militaristas na Alemanha” [34].
A reintrodução na França de um serviço militar de três anos não era uma política de defesa, mas um preparativo deliberado para a guerra. Citemos de novo o embaixador em Paris (junho de 1913): “O fardo da nova lei será tão pesado para a população, os gastos que implicará serão tão exorbitantes, que o país rapidamente protestará, e a França encontrar-se-á diante deste dilema: uma renúncia que não poderá suportar ou a guerra a curto prazo” [35].
Dois fatores foram levados em conta nos cálculos dos estadistas e políticos nos anos que conduziram à guerra: em primeiro lugar, a avaliação de seus próprios preparativos militares e dos de seus adversários; em segundo lugar – igualmente importante, inclusive na Rússia czarista e autocrática – a necessidade de aparecer diante do mundo e diante de suas próprias populações, sobretudo os operários, como a parte ofendida, que somente atuava para se defender. Todos os poderes queriam entrar em uma guerra que outro tinha causado: “O jogo consiste em levar o adversário a realizar um ato que poderá ser explorado contra ele ou a aproveitar uma decisão já tomada” [36].
O assassinato de Francisco Fernando, a faísca que acendeu a mecha, não foi obra de um indivíduo isolado: Gavrilo Princip disparou o tiro mortal, mas não era senão um membro a mais de um grupo de assassinos organizado e armado por uma das redes organizadas pelos grupos sérvios ultranacionalistas “Mão Negra” e “Narodna Odbrana” (“Defesa Nacional”), que quase era um Estado dentro do Estado e cujas atividades eram perfeitamente conhecidas pelo governo sérvio e mais concretamente por seu Primeiro Ministro, Nicolas Pasič. A Sérvia mantinha estreitas relações com a Rússia e nunca teria empreendido tal provocação se não estivesse segura do apoio russo contra uma reação austro-húngara.
O governo austro-húngaro não poderia deixar passar a ocasião de atacar o calcanhar da Sérvia [37]. A investigação policial não mediu palavras para apontar a Sérvia com o dedo, e os austríacos estavam confiantes que o choque provocado entre as classes dirigentes europeias iria outorgar-lhes o apoio destes ou ao menos sua neutralidade, quando atacassem a Sérvia. Com efeito, para a Áustria-Hungria não lhe restava outra opção que a de atacar e humilhar a Sérvia; fazer menos teria significado um golpe devastador para seu “status” e sua influência na região crítica dos Bálcãs, deixando-a completamente a mercê de seu rival russo.
Para o governo francês, uma “guerra dos Bálcãs” era a situação ideal para lançar um ataque contra a Alemanha: se a Alemanha pudesse ser arrastada a uma guerra para defender a Áustria-Hungria, e a Rússia acudisse em defesa dos sérvios, a mobilização francesa poderia apresentar-se como uma medida de defesa preventiva contra o perigo de um ataque alemão. Mais ainda, era pouco provável que a Itália, a princípio aliada da Alemanha, mas com interesses nos Bálcãs, entrasse em guerra para defender a Áustria-Hungria na Bósnia-Herzegovina.
Dada a aliança que enfrentava, a Alemanha estava em uma posição de debilidade, contando como único aliado a Áustria-Hungria, esse “bando em decomposição organizada”, como dizia Rosa Luxemburgo. Os preparativos militares na França e na Rússia, o desenvolvimento de sua “Entente” com a Grã-Bretanha, levaram os estrategistas alemães à conclusão que mais valia ir para o enfrentamento o mais cedo possível, antes que seus adversários estivessem inteiramente preparados. Daí uma observação em 1914: “É absolutamente necessário que caso se estenda o conflito [entre Sérvia e Áustria-Hungria] (...) seja a Rússia a que leve a responsabilidade” [38].
A população britânica não estava muito animada para entrar na guerra para defender a Sérvia; o mesmo ocorria na França. A Grã-Bretanha também necessitava de um “pretexto para tentar convencer uma parte importante de sua opinião pública. A Alemanha lhe proporcionou um, excelente, ao invadir a Bélgica com seus exércitos”. Rosmer cita o Tragedy of Lord Kitchener do Visconde Esher, para este fim: “O episódio belga foi um golpe de sorte que chegou a ponto de dar à nossa entrada na guerra o pretexto moral necessário para preservar a unidade da nação, ou ao menos do governo” [39]. Na verdade, os planos britânicos para um ataque contra a Alemanha, preparados há muito tempo em colaboração com os militares franceses, previam desde anos atrás a violação da neutralidade belga...
Todos os governos dos países beligerantes deviam, portanto, enganar sua “opinião pública” fazendo-a acreditar que lhes impuseram uma guerra que já estavam preparando e buscando há muitos anos. O elemento crítico desta “opinião pública” era a classe operária organizada, com seus sindicatos e partidos socialistas, que afirmavam claramente há muitos anos sua oposição à guerra. O fator principal que abriria o caminho para a guerra tinha que ser, portanto, a traição da socialdemocracia e seu apoio outorgado ao que a classe dominante chamou cinicamente de uma “guerra defensiva”.
As causas subjacentes de tamanha e monstruosa traição ao dever internacionalista mais elementar por parte da socialdemocracia serão objeto de um próximo artigo. Basta por agora dizer aqui que a pretensão atual da burguesia francesa, que afirma que “num instante se apagaram as múltiplas disputas políticas, sociais, religiosas, que tinham dividido o país” não são senão mentiras grosseiras. Ao contrário, contada por Rosmer, a história dos dias precedentes ao estouro da guerra é a de manifestações constantes contra a guerra, brutalmente reprimidas pela polícia. Em 27 de julho, a CGT chamou uma manifestação e “das 9 às 12 da noite (...), uma multidão enorme afluiu sem parar aos bulevares. Enormes forças policiais foram mobilizadas (...). Mas são tão numerosos os operários que chegam dos subúrbios ao centro que a tática policial [de separar os manifestantes em pequenos grupos] chega a um resultado imprevisto: rapidamente se contam tantas manifestações como ruas. As violências e as brutalidades policiais não podem com a combatividade desta multidão; toda a tarde, o grito de ‘Abaixo a guerra!’ ressoará desde a Ópera até a Praça da República” [40].
A burguesia francesa ainda tinha outro problema: a atitude do dirigente socialista Jean Jaurès. Jaurès era um reformista, em um momento da história em que o reformismo se situava entre a burguesia e o proletariado, mas profundamente comprometido na defesa da classe operária (precisamente por isso sua influência entre os operários era muito grande) e apaixonadamente oposto à guerra. Em 25 de julho, quando a imprensa informa sobre a rejeição por parte da Sérvia do ultimato austro-húngaro, Jaurès devia falar em um comício eleitoral em Vaise, perto de Lyon: seu discurso centrou-se não nas eleições, mas no temível risco de guerra “Nunca em 40 anos, a Europa esteve em uma situação de ameaça tão trágica (...). Atualmente temos contra nós, contra a paz, contra a vida dos homens, uns acontecimentos terríveis e contra os quais será necessário que os proletários da Europa realizem os esforços de solidariedade suprema que estejam em suas mãos” [41].
A princípio, Jaurès acreditou nas garantias fraudulentas do governo francês segundo as quais trabalharia pela paz, mas em 31 de julho já havia perdido suas ilusões e no Parlamento pediu uma vez mais aos operários que fizessem o possível para se opor à guerra. Rosmer diz: “Corre o rumor de que o artigo que vai escrever em breve para o número de sábado de L’Humanité será um novo “Eu Acuso!” [42], que denunciará as intrigas e as mentiras que puseram o mundo no limiar da guerra. À tarde (...) encabeça uma delegação do grupo socialista ao Quai d'Orsay [o Ministério de Assuntos Exteriores]. Viviani não está aí. É o Subsecretário de Estado quem recebe a delegação. Depois de ter escutado Jaurès, pergunta-lhe que pensam fazer os socialistas diante da situação: ‘Seguir nossa campanha contra a guerra!’, responde Jaurès. Ao que Abel Ferry replica: ‘Nem se atreva!, pois o matarão ao dobrar a esquina!’” [43]. Duas horas mais tarde, quando Jaurès regressa ao seu escritório de L’Humanité para escrever o temido artigo, o assassino Raoul Villain o mata com dois tiros de pistola à queima-roupa que provocaram sua morte instantânea [44].
Definitivamente, a classe burguesa francesa não deixou nem um cabo solto quando se tratou de garantir “a unidade e a coesão nacional”!
Quando se depositam coroas de flores e quando os grandes deste mundo se inclinam diante de monumentos ao soldado desconhecido nas comemorações, quando nossos dirigentes pagam milhões de euros ou libras, quando soam as trombetas pelas mortes depois de cerimônias solenes, quando os documentários fluem nas telas de televisão e quando os historiadores cultos nos contam as causas da guerra, exceto as que realmente têm importancia, assim como todos os fatores que poderiam tê-la impedido, exceto os que realmente poderiam ter pesado na balança, os proletários do mundo inteiro, sim, devem lembrar.
Lembrar que as causas da Primeira Guerra Mundial não foram as casualidades históricas, mas os mecanismos implacáveis do capitalismo e do imperialismo, que a Grande Guerra abriu um novo período na história, uma “era de guerras e revoluções” como disse a Internacional Comunista. Este período continua sendo hoje o nosso, e as mesmas forças que levaram o mundo à guerra em 1914 são responsáveis hoje pelos massacres sem fim no Oriente Médio e na África, alimentando tensões a cada dia mais perigosas entre a China e seus vizinhos no mar da China meridional.
Lembrar que a guerra não pode ser feita sem os operários, como carne de canhão e carne de fábrica. Lembrar que as classes dominantes devem garantir a unidade para a guerra e que nada as deterão para obtê-la, desde a repressão brutal até o assassinato sangrento.
Lembrar-se de que são os mesmos partidos “socialistas” que se põem hoje à cabeça de qualquer campanha pacifista e humanitária, os que traíram a confiança de seus antepassados em 1914, deixando-os desorganizados e sem defesa diante da máquina de guerra capitalista.
Lembrar, enfim, que se a classe dominante teve que fazer tal esforço para neutralizar o proletariado em 1914, foi porque o proletariado é a única força que pode levantar uma barreira confiável contra a guerra. Somente o proletariado mundial leva em si mesmo a esperança de derrubar o capitalismo e o perigo da guerra de uma vez por todas.
Há cem anos, a humanidade estava diante de um dilema cuja solução continua, única e exclusivamente, nas mãos do proletariado: socialismo ou barbárie. Este dilema continua hoje diante de nós.
Jens
[1] É irônico constatar que o título do filme foi tirado de um livro de antes da guerra escrito pelo economista britânico Norman Angell, que pretendia que a guerra entre potências capitalistas avançadas, por estarem suas economias estreitamente ligadas e interdependentes, tinha se tornado impossível. Esse tipo de argumento é o que hoje pode ser ouvido sobre a China e os Estados Unidos.
[2] Nem é necessário dizer que, tal qual outras obras aqui mencionadas, Nada de novo no fronte foi proibido pelos nazistas depois de 1933. Também foi proibido entre 1930 e 1941 pela censura australiana.
[3] É surpreendente, pelo contrário, que o poeta de guerra patriótico inglês mais famoso, Rupert Brooke, não tenha nunca conhecido o combate, visto que morreu enfermo vendo o assalto a Galípoli.
[4] Isto foi objeto de uma polêmica na imprensa alemã.
[5] Projeto talvez muito louvável, mas que não servirá em quase nada para compreender as causas da Grande Guerra.
[6] www.iwm.org.uk/centenary [242]
[7] Comemorar a Grande Guerra (2014-2020): propostas para um centenário internacional, por Joseph Zimet, da “Direção da memória, do patrimônio e dos arquivos”, https://centenaire.org/sites/default/files/references-files/rapport_jz.pdf [243]
[8] É surpreendente ver que a grande maioria das execuções por desobediência militar no exército francês ocorreu durante os primeiros meses da guerra, o que sugere uma falta de entusiasmo que devia ser cortada pela raiz imediatamente (veja-se o informe ao Ministro de Ex-Combatentes, Kader Arif, de outubro de 2013): https://centenaire.org/sites/default/files/references-files/rapport_fusilles.pdf [244]
[9] Vale à pena mencionar aqui que o título Os Sonâmbulos foi extraído da trilogia do mesmo nome escrita por Hermann Broch em 1932. Broch nasceu em 1886 em Viena, de família judia, mas converteu-se em 1909 ao catolicismo. Em 1938, depois da anexação da Áustria, foi detido pela Gestapo. No entanto, graças à ajuda de amigos (entre os quais James Joyce, Albert Einstein e Thomas Mann), pôde emigrar para os Estados Unidos, onde viveu até sua morte em 1951. Die Schlafwandler conta a história de três indivíduos durante os anos de 1888, 1905 e 1918, respectivamente, e examina as questões colocadas pela decomposição dos valores e da subordinação da moral às leis do lucro.
[10] Tradução nossa.
[11] Veja-se nosso artigo “O anarcosindicalismo diante da mudança de época; a CGT francesa até 1914 [224]”, Revista Internacional nº 120:
[12] Cf. Hew Strachan, The First World War, tomo 1.
[13] https://www.marxists.org/espanol/luxem/09El%20folletoJuniusLacrisisdelasocialdemocraciaalemana_0.pdf [245]
[14] Le mouvement ouvrier pendant la guerre, Éditions d'Avron, maio de 1993.
[15] O segundo tomo foi publicado depois da Segunda Guerra Mundial. É muito mais resumido, já que Rosmer teve que fugir de Paris durante a Ocupação alemã e seus arquivos foram confiscados e destruídos durante a guerra.
[16] Rosmer, op. cit., p. 84.
[17] Folheto de Junius, capítulo VI.
[18] Luxemburgo cita aqui uma carta de Marx ao Braunschweiger Ausschuss: “Quem não se ensurdecer com o clamor momentâneo, e não deseje ensurdecer o povo alemão, deve compreender que a guerra de 1870 traz necessariamente consigo os germes da guerra da Alemanha contra a Rússia, assim como a guerra de 1866 engendrou a de 1870. Digo necessariamente, a menos que ocorra o improvável, ou seja, que estoure antes uma revolução na Rússia. Se isso não ocorrer, pode-se considerar que a guerra entre a Alemanha e a Rússia é já um fato consumado. O fato desta guerra vir a ser útil ou perigosa, depende inteiramente da atitude do vencedor alemão. Se tomarem a Alsácia-Lorena, a França e a Rússia tomarão as armas contra a Alemanha. Seria supérfluo assinalar as desastrosas consequências.”
[20] Idem
[21] A primeira crise marroquina de 1905 foi provocada por uma visita do Kaiser a Tanger, formalmente para apoiar a independência marroquina, mas na verdade para se opor à influência francesa. A tensão militar era de suma importância: a França cancelou as licenças militares e avançou suas tropas até a fronteira alemã, enquanto que a Alemanha começou a chamar as filas de reservistas. Finalmente, os franceses cederam e aceitaram a proposta alemã de uma Conferência internacional, que foi celebrada em Algeciras em 1906. Mas os alemães tiveram uma grande decepção quando comprovaram que todas as potências europeias os abandonaram, particularmente os britânicos, e somente tiveram o benefício do apoio da Áustria-Hungria. A segunda crise marroquina ocorreu em 1911, quando uma rebelião contra o sultão Abd al-Hafid deu à França o pretexto para mandar tropas ao Marrocos, sob o pretexto de proteger os cidadãos europeus. Os alemães, por sua parte, aproveitaram o mesmo pretexto para mandar a canhoneira Panther ao porto atlântico de Agadir. Os britânicos suspeitaram que isso seria um prelúdio para a instalação de uma base naval alemã na costa atlântica, que ameaçaria diretamente Gibraltar. O discurso de Lloyd George na Mansão House (citado por Rosmer) foi uma ameaça dissimulada de declaração de guerra se a Alemanha não cedesse. Finalmente, a Alemanha reconheceu o protetorado francês no Marrocos, e recebeu em troca uns quantos pântanos na desembocadura do Congo.
[22] Atual Qingdao, onde os alemães implantaram a fábrica de cerveja que fabrica hoje a cerveja “Tsingtao”.
[23] Fofleto de Junius, op. cit.
[24] A ideia de Clark, e também de Niaal Gergusson em The Pity of War, de que a Alemanha havia ficado muito defasada com relação à Grã-Bretanha em uma corrida marítima de armamentos é absurda: ao contrário da marinha alemã, a britânica devia proteger um comércio mundial, e não se entende bem como a Grã-Bretanha não tivesse se sentido ameaçada pela construção de uma poderosa frota situada a menos de 800 quilômetros de sua capital e ainda mais perto de suas costas.
[25] Ainda que nos textos europeus daquele momento, os termos “Turquia” e “Império Otomano” fossem usadas indistintamente, é importante relembrar que o mais apropriado é o segundo: no começo do século XIX, o Império Otomano cobria não somente a Turquia, mas também o que hoje é a Líbia, a Síria, o Iraque, a península da Arábia, além de grande parte da Grécia e dos Bálcãs.
[26] Esta refinaria era importante, sobretudo por razões militares: a frota britânica acabava de substituir o carvão pelo diesel. A Grã-Bretanha possuía carvão em abundância, mas não tinha petróleo. A busca de petróleo na Pérsia foi impulsionada, sobretudo pelas necessidades da Marinha Real, com o objetivo de assegurar o abastecimento de combustível.
[27] Folheto Junius, op. cit., capítulo 4.
[28] A Primeira Guerra dos Bálcãs estourou em 1912, quando os membros da Liga dos Bálcãs (Sérvia, Bulgária e Montenegro) lutaram contra o Império Otomano com o apoio tácito da Rússia. Embora não fizesse parte da Liga, a Grécia se uniu aos combates, ao final dos quais os exércitos otomanos foram derrotados pelos quatro costados: o Império Otomano viu-se privado, pela primeira vez em 500 anos, da maioria de seus territórios europeus. A Segunda Guerra dos Bálcãs estourou imediatamente depois, em 1913, quando a Bulgária combateu a Sérvia, a qual havia ocupado, com a cumplicidade da Grécia, grande parte da Macedônia, que tinha sido prometida para a Bulgária.
[30] Estes documentos foram recolhidos pelos alemães, que publicaram longos extratos depois da guerra. Como Rosmer indica: “As apreciações dos representantes da Bélgica em Berlim, Paris e Londres, têm um valor particular. A Bélgica é neutra. Por isso, os belgas têm a mente mais livre que os implicados para apreciar os acontecimentos; ademais, não ignoram que no caso de guerra entre os dois grandes grupos beligerantes, seu pequeno país correrá grandes riscos, em particular, o de ser um campo de batalha.” (op. cit., p. 68).
[31] Idem, p. 69.
[32] Idem, p. 70.
[33] Ibidem
[34] Idem, p. 73.
[35] Idem, p. 72.
[36] Idem, p. 87.
[37] Por outro lado, o governo austro-húngaro já havia tentado pressionar a Sérvia ao revelar ao historiador Heinrich Friedjung documentos fraudulentos que supostamente eram a prova de uma conspiração sérvia contra a Bósnia e a Herzegovina (veja-se Clark, p. 88, edição Kindle).
[38] Citado por Rosmer, op. cit., p. 8, a partir de documentos alemães publicados depois da guerra.
[39] Idem, p. 87.
[40] Idem, p. 102.
[41] Idem, p. 84.
[42] Em referência ao ataque sem concessões de Emile Zola contra o governo quando do caso Dreyfus.
[43] Rosmer, op. cit., p. 91. A conversa está relatada na biografia de Jaurès por Charles Rappoport nos próprios papéis de Abel Ferry (veja-se Alexandre Croix, Jaurès et ses détracteurs (Jaurès e seus detratores), Edições Spartacus, p. 313.
[44] Jaurès foi assassinado enquanto comia no Café du Croissant, em frente aos escritórios do L’Humanité. Seu assassino, Raoul Villain, tinha muitas semelhanças com Gravilo Princip: instável, emocionalmente frágil, dedicado ao misticismo político ou religioso – em suma, exatamente o tipo de personagem que os serviços secretos utilizam como provocador e a quem podem sacrificar sem o menor escrúpulo. Depois do assassinato, Villain foi detido e passou a guerra tranquilo, quase comodamente instalado numa prisão. Depois de seu julgamento, foi liberado e a esposa de Jaurès teve que pagar pelas custas judiciais.
Para todos aqueles que ainda acreditam que a última esperança para a humanidade é a derrubada revolucionaria do capitalismo mundial, é impossível começar o ano de 2017 sem lembrar do centenário da Revolução Russa. E também sabemos que aqueles que martelam os ouvidos que não há alternativa para o sistema social atual também o lembraram a seu modo.
Embora muitos com certeza vão ignorar este evento histórico, ou diminuam a sua importância dizendo que se trata de história antiga. Tudo mudou desde então, ou que sentido tem falar de revolução da classe operária quando esta classe já não existe, ou está tão degradada que o termo “revolução operária” pode inclusive ser assimilado aos protestos pelo Brexit ou a favor de Trump nos velhos centros industriais dizimados pela globalização?
Ou, se se lembra a revolta que sacudiu o mundo em 1917 traz como corolário, na maioria dos casos, uma história de terror, mas com uma “moral” muito clara: Está vendo? Isso é o que acontece quando se põe em questão o sistema, se você cai na ilusão de que é possível uma forma de vida social superior. O que se consegue é muito pior: terror, Gulags, o onipresente Estado totalitário. Começou com Lênin e sua fanática turma de bolcheviques, cujo golpe de Estado em Outubro de 1917 acabou com a incipiente democracia na Rússia, e terminou com Stálin, com toda a sociedade transformada num enorme campo de trabalho forçado. E logo tudo entrou em colapso, o que demonstra de uma vez por todas que é impossível organizar a sociedade moderna por outro método que não seja o do capitalismo.
Nós não temos ilusões de que explicar, em 2017, o que significou realmente a revolução russa seja fácil. Este é um período de extrema dificuldade para a classe operária e suas pequenas minorias revolucionárias, um período dominado pelos sentimentos de desesperança e perda de qualquer perspectiva de futuro, pelo sinistro avanço do nacionalismo e do racismo, que serve para dividir a classe operária, pela demagogia repleta de ódio do populismo de direita ou de esquerda, e pelos clamorosos chamamentos da esquerda para defender a “democracia” contra esse novo autoritarismo.
Mas também é um momento para recordar o trabalho de nossos antepassados políticos, as frações da Esquerda Comunista, que sobreviveram às terríveis derrotas dos movimentos revolucionários desencadeados pelos acontecimentos na Rússia em 1917, e trataram de compreender a degeneração e o desaparecimento dos mesmos partidos comunistas que tinham se formado para abrir o caminho para a revolução. Aqueles que, resistindo tanto ao terror desencadeado pela contrarrevolução em suas formas fascista e estalinista, como às mentiras veladas da democracia, eram as correntes mais lúcidas da Esquerda Comunista, como as que se reagruparam em torno das revistas Bilan, nos anos 1930, ou Internacionalismo, nos anos 1940, as quais começaram a enorme tarefa de iniciar o "balanço" da revolução, primeiro e antes de tudo, contra todos seus detratores, reafirmando o essencial e positivo da revolução Russa. Particularmente, evidenciaram :
que a revolução "Russa" só teria significado como a primeira vitória da revolução mundial e que sua única esperança teria sido a extensão do poder proletário ao resto do globo;
que havia confirmado a capacidade da classe operária de desmantelar o Estado burguês e criar novos órgãos de poder político (os sovietes ou conselhos de delegados operários);
que mostrou a necessidade de uma organização política revolucionária que defendesse os princípios do internacionalismo e a autonomia da classe operária.
Ao mesmo tempo, os revolucionários dos anos 1930 e 1940, também empreenderam a dolorosa análise dos importantes erros cometidos pelos bolcheviques, presos nas garras de uma situação sem precedentes para qualquer partido operário em particular:
a crescente tendancia do partido em substituir os sovietes, e a fusão do partido com o Estado soviético, que solapou ao mesmo tempo o poder dos sovietes e a capacidade do partido de defender os interesses de classe dos operários, inclusive quando foram opostos aos do novo Estado;
o recurso ao “Terror vermelho” em resposta ao Terror branco da contrarrevolução – um processo que levou os bolcheviques a se envolver diretamente na repressão de iniciativas da classe operária e organizações proletárias;
a tendência a ver o capitalismo de Estado como uma etapa de transição em direção ao socialismo, inclusive como sua realização.
A CCI, desde sua fundação, tentou levar a cabo esse trabalho de tirar as lições da revolução Russa e da onda revolucionária internacional em 1917-23. Ao longo de muitos anos temos desenvolvido uma bibliografia de artigos e folhetos sobre essa era absolutamente vital na história de nossa classe. A partir de agora trataremos de assegurar que esses textos sejam mais acessíveis aos nossos leitores, recompilando um dossiê atualizado de nossos artigos mais importantes sobre a revolução Russa e a onda revolucionária internacional. Aproximadamente a cada mês, destacaremos artigos que tenham que ver diretamente com o desenvolvimento cronológico do processo revolucionário, ou que contenham respostas às questões mais importantes colocadas pelos ataques da propaganda burguesa, ou pelas discussões no meio político proletário e seu entorno. Este mês publicaremos em nossa web um artigo sobre a revolução de Fevereiro, escrito inicialmente em 1977. A seguir, publicaremos artigos sobre as Teses de Abril de Lênin, as jornadas de Julho, a insurreição de Outubro e assim sucessivamente. Pretendemos seguir com este processo por longo período, precisamente porque o drama da revolução e da contrarrevolução durou muitos anos e não se limitou à Rússia, mas teve também eco em todo o globo, de Berlim a Changai, de Turim à Patagonia, de Clydeside na Grã-Bretanha a Seatle nos Estados-Unidos.
Ao mesmo tempo, tentaremos acrescentar novos artigos a esta coleção, sobre temas que ainda não tenhamos tratado com profundidade – como a matança contra a revolução que desencadeou a classe dominante, o problema do “terror vermelho”, etc.. Artigos que respondam às campanhas atuais do capitalismo contra a memória revolucionária da classe operária; e artigos que contemplem as condições da revolução proletária hoje – e o que têm em comum com a época da revolução Russa, mas também e, sobretudo, as mudanças significativas que tiveram lugar nos 100 anos que transcorreram.
O fim deste projeto de publicação não é simplesmente “celebrar” ou “comemorar” acontecimentos históricos passados há muito tempo. É defender a visão de que a revolução proletária é hoje inclusive mais necessária do que era em 1917. Confrontados ao terror da primeira guerra imperialista mundial, os revolucionários da época concluíram que o capitalismo havia entrado em sua época de declínio, colocando para a humanidade a alternativa de socialismo ou barbárie; e os horrores ainda maiores que se seguiram à derrota das primeiras tentativas de se fazer a revolução socialista – simbolizados em nomes de lugares como Auschwitz ou Hiroshima – confirmaram rotundamente o diagnóstico dos revolucionários. Um século depois, a continuação da existência do capitalismo coloca uma ameaça mortal para a própria sobrevivência da humanidade.
Desde sua cela na prisão em 1918 e às vésperas da revolução na Alemanha, Rosa Luxemburgo expressava sua solidariedade fundamental com a revolução Russa e o partido Bolchevique, apesar de todas suas sérias críticas aos erros dos bolcheviques, em particular sobre a política do terror vermelho. Suas palavras são tão relevantes para o nosso futuro como o foram para o futuro a que ela mesma se via confrontada.
"Mas há que distinguir na política dos bolcheviques o essencial do não essencial, o miolo das excrescências acidentais. No momento atual, quando nos esperam lutas decisivas em todo o mundo, a questão do socialismo foi e segue sendo o problema mais candente da época. Não se trata de tal ou qual questão tática secundária, senão da capacidade de ação do proletariado, de sua força para atuar, da vontade de tomar o poder, do socialismo como tal. Nisto, Lênin, Trotsky e seus amigos foram os primeiros, os que estiveram à cabeça como exemplo do proletariado mundial, são ainda os únicos, até agora, que podem clamar com Hutten: ‘Eu ousei!’
Isto é o essencial e duradouro na política bolchevique. Neste sentido, seu é o imortal galardão histórico de ter encabeçado o proletariado internacional na conquista do poder político e a colocação prática do problema da realização do socialismo, de haver dado um grande passo adiante na luta mundial entre o capital e o trabalho. Na Rússia o problema somente podia ser colocado. Não podia ser resolvido. E, neste sentido, o futuro em todas as partes pertence ao "bolchevismo"". [1] [248]
CCI 31 01 2017
[1] [249] Traduçao nossa a partir do espanhol. https://www.marxists.org/espanol/luxem/11Larevolucionrusa_0.pdf [250]
Em 12 de outubro, dois motoristas de Seine et Marne lançaram uma convocatória no Facebook para manifestações em 17 de novembro intitulada: “Paralisação nacional contra o aumento de combustíveis”. Imediatamente sua mensagem se propagou por todas as redes sociais, reunindo até 200.000 pessoas “interessadas”. Iniciativas e convocatória se multiplicaram. Sem nenhum sindicato ou partido político, espontaneamente, se organiza a programação de toda uma série de ações, reuniões e bloqueios. Resultado: no dia 17 de novembro, segundo o governo, 287.710 pessoas, divididas em 2.034 locais, paralisando os cruzamentos das estradas, rotatórias e rodovias e estacionamentos de supermercados.
Esses números oficiais (de uma precisão admirável!), divulgados pelo Ministério do Interior, são ampla e intencionalmente subestimadas. Os “coletes amarelos” estimam por sua vez, que são o dobro. Nos dias seguintes, se mantêm alguns bloqueios, outros são mais pontuais e aleatórios. Mobilizando alguns milhares de pessoas a cada dia. Uma dezena de refinarias da Total estão de certa foram paralisadas por uma ação simultânea da CGT e dos “coletes amarelos”. Foi anunciado um novo grande dia de ação para o dia 24 de novembro, chamado “Ato 2: Toda França em Paris”. O objetivo é paralisar locais famosos e de poder da capital: a Avenida Champs-Élysées, a Praça da Concórdia, o Senado e, principalmente, a residência oficial do presidente, o Palácio Élysée. “Devemos dar um golpe mortal e todos chegar em Paris por todos os meios possíveis (caronas, trens, ônibus, etc). Paris, porque é aqui onde está o governo! Esperamos todos, caminhões, ônibus, táxis, veículos de turismo, tratores, etc. Todo o mundo!”, proclama Éric Droeut, motorista da transportadora Melun, co-iniciador do movimento e o personagem principal da mobilização. Mas essa grande reunião unitária não ocorreu, muitos “coletes amarelos” preferiram se manifestar a nível local, possivelmente devido ao alto custo do transporte. Acima de tudo, a mobilização se reduziu drasticamente. Só 8.000 manifestantes em Paris, 106.301 em toda França e 1.600 ações. Embora as cifras do governo subestimem fortemente a realidade da mobilização, a tendência está claramente em baixa. No entanto, o movimento tem muitas vozes que dizem estar ganhando. O mais importante para os “coletes amarelos” são as imagens da Champs-Élysées “ocupada e mantida durante um dia inteiro”, testemunhando a “força do povo contra os poderosos” [1]. Em seguida, na mesma tarde, foi lançado um chamado, novamente através do Facebook, a convocatória de um terceiro dia de ação previsto para o sábado 1º de dezembro: “Ato 3: Macron renuncia”, apresentando duas reivindicações “O aumento no poder de compra e o cancelamento dos impostos sobre os combustíveis”.
Todos os jornalistas, políticos e outros “sociólogos” destacam a natureza sem precedentes do movimento: espontâneo, fora de qualquer marco político ou sindical, adaptável, organizado principalmente através de redes sociais, relativamente massivo, globalmente disciplinado, geralmente evitando a destruição e os enfrentamentos, etc. Este movimento está qualificado, no final das colunas de jornais e televisivos, como um “OVNI sociológico”.
Iniciado pelos caminhoneiros, esse movimento mobiliza, como escreveu seu iniciador Éric Drouet, “Caminhões, ônibus, táxis, veículos de turismo, tratores”, mas não só isso. Muitos pequenos empresários “arrasados pelos impostos” também estão presentes. Os trabalhadores assalariados, precarizados, desempregados ou aposentados, se associam aos “coletes amarelos” e constituem o maior contingente. “Os “coletes amarelos”, são sobretudo uma França de empregados, caixas de supermercados, técnicos, assistentes de escolas infantis que pretendem defender seu estilo de vida e que tem buscado: viver um pouco mais longe, tranquilos, com vizinhos que se pareçam com eles, com um jardim e para quem dirigir um automóvel, aumentar os impostos sobre o combustível é como colocar em questão seu espaço privado”, analisa Vicent Tiberi. Segundo esse professor de Ciências, os “coletes amarelos” não “só representa a periferia da França, a França esquecida. Eles encarnam mais o que o sociólogo Oliver Schwartz chama os pequenos médios. Trabalham, pagam impostos e ganham muito para ser ajudados pelo Estado, mas não o suficiente para viver bem” [2]. (2)
De fato, a escala dessa mobilização atesta, sobretudo, a grande fúria que emerge das entranhas da sociedade, e especialmente na classe operária, diante da política de austeridade do governo de Macron. Oficialmente, segundo o Observatório Francês de Condições Econômicas, o rendimento anual disponível das famílias (ou seja, o que resta despois de impostos e contribuições) se reduziu em média 440 euros entre 2008 e 2016. Isto é só uma parte muito pequena dos ataques sofridos pela classe operária. Além desse aumento geral dos impostos de todo tipo está o aumento do desemprego, a sistematização dos trabalhos precarizados, inclusive na administração pública, a inflação especialmente no atendimento de necessidades básicas, preços de moradia inacessível, etc. O empobrecimento se agrava inexoravelmente e com ele o medo do futuro. Porém, ainda mais, o que alimenta essa imensa fúria segundo os “coletes amarelos” é “o sentimento de ser desprezados” [3].
É esse sentimento dominante de ser “desprezado”, ignorado pelos governantes, o desejo de ser escutado e reconhecido pelos “de cima”, para usar a terminologia dos “coletes amarelos”, que explica os meios de ação selecionados: serem vistos vestindo coletes fluorescentes amarelos, paralisando as estradas, indo ao Senado ou ao Palácio Élysée embaixo das janelas da grande burguesia, ocupando a “avenida mais bela do mundo” [4].
Os meios de comunicação e o governo ressaltam a destruição e a violência para fazer o público acreditar que qualquer luta contra o alto custo de vida e a deterioração das condições de vida dos explorados só pode levar ao caos e à anarquia com atos de violência cegos e vandalismo. Os meios de comunicação às ordens da burguesia, especialistas em amálgamas, querem fazer acreditar que os “coletes amarelos” são “extremistas” que também querem “casser du flic” [5],. São as forças de repressão que, sobretudo, atacam e provocam! Em Paris, 24 de novembro, as granadas de gás lacrimogêneo eram incessantes, como também os ataques da CRS sobre grupos de homens e mulheres que caminhavam tranquilamente na Champs-Élysées. Além disso, houve poucas janelas quebradas [6], diferente das comemorações da conquista da Copa do Mundo, no mesmo local, quatro meses antes. Embora alguns “coletes amarelos” estivessem mascarados e excitados queerendo enfrentar a polícia (“black blocs” ou os furiosos da ultra-direita), a grande maioria não queria quebra-quebra ou destruição. Não queriam ser “destruidores”, mas apenas cidadãos “respeitados” e “escutados”. Esta é a razão pela qual que o chamado “Ato 3” ressalta que “será necessário fazê-lo adequadamente. Nenhum destruidor e 5 milhões de franceses na rua”. E inclusive: “para assegurar nossas próximas manifestações, propomos estabelecer os “coletes vermelhos”, que serão responsáveis de tirar os destruidores de nossas filas. É importante não dar as costas à população. Cuidado com a nossa imagem, amigos”.
Por outro lado, o movimento dos “coletes amarelos” tem uma coisa em comum com as comemorações da equipe campeã de futebol da França: a presença em todas as partes das bandeiras tricolores e regionais, do hino nacional cantado regularmente, o orgulho palpável de ser “o povo francês”. Um “povo francês” que, unido, seria capaz de vencer os poderosos. A referência em muitas cabeças é a revolução francesa de 1789 ou mesmo a resistência de 1939-1945 [7].
Este nacionalismo exacerbado, esta referência ao “povo”, esta imploração dirigida aos poderosos, revela a verdadeira natureza desse movimento. A grande maioria dos “coletes amarelos” são trabalhadores ativos ou aposentados e precarizados, porém estão ali como cidadãos do “povo da França” e não como membros da classe operária. Trata-se claramente de um movimento interclassista em que se mesclam todas as classes e camadas não exploradoras da sociedade. São trabalhadores (trabalhadores, desempregados, precarizados, aposentados) e pequenos burgueses (artesões, profissionais liberais, pequenos empresários, agricultores e pecuaristas). Parte da classe operária foi arrastada pelos iniciadores do movimento (os pequenos patrões, os caminhoneiros, os taxistas, condutores de ambulância). Apesar da revolta legítima dos “coletes amarelos”, dentre os quais há muitos proletários que não podem “chegar ao final do mês”, esse movimento não é um movimento da classe operária. É um movimento que foi lançado por pequenos patrões contrariados pelo aumento do preço dos combustíveis. Como demonstram as palavras do motorista que iniciou o movimento: “Esperamos todos, caminhões, ônibus, táxis, veículos de turismo, tratores, etc. Todo o mundo”. “Todo o mundo” e todos o “povo francês” atrás de caminhoneiros, taxistas, agricultores, etc. Os trabalhadores se encontram ali, diluídos no “povo”, atomizados, separados uns dos outros como muitos indivíduos-cidadãos, mesclados com os pequenos patrões (muitos dos quais são parte do eleitorado do Reunião Nacional – Rassemlement National – ex-Frente Nacional de Marine Le Pen).
O terreno degradado no qual embarcou um grande número de proletários, dentre os mais empobrecidos, não é o da classe operária! Nesse movimento “apolítico” e “antisindical”, não há nenhum chamado à greve e a sua extensão em todos os setores. Nenhum chamado para as assembleias gerais soberanas e nas empresas para discutir e refletir em conjunto as ações para desenvolver e unificar a luta contra os ataques do governo! Essa revolta do “cidadão” é uma armadilha para afogar a classe trabalhadora no “povo da França”, onde todas as camarilhas burguesas se encontram como “partidários” do movimento. Desde Marine Le Pen a Olivier Besancenot, passando por Mélenchon e Laurent Wauquiez, “todo o mundo” está lá, da extrema-direita até a extrema-esquerda do capital, para apoiar esse movimento interclassista, com seu veneno nacionalista.
De fato, é a natureza interclassista do movimento de “coletes amarelos” que explica a razão de Marine le Pen elogiar um “movimento legítimo” dos “franceses”; o porquê Nicolas Dupont-Aignam, presidente de Debout la France, apoiar esse movimento: “Devemos bloquear toda a França (…), é necessário que a população francesa diga a esse governo: Já chega!”; o motivo de Laurent Wauquiez, presidente de Les Républicains, qualificar os “coletes amarelos” como pessoas dignas, decididas, e que só pedem que se escute as dificuldades da França que trabalha; a razão do deputado Jean Lassalle, à frente do Résistons, ser uma das figuras do movimento e vestir seu colete amarelo tanto na Assembleia Nacional como na rua. A direita e a extrema-direita reconhecem claramente que os “coletes amarelos” como um movimento que não coloca de modo algum o sistema capitalista em perigo. Sobretudo, veem como um meio muito eficaz para debilitar o seu principal competidor nas próximas eleições, a camarilha de Macron, cuja autoridade e capacidade em gerir a paz social estão muito prejudicadas.
Por seu lado, a esquerda e a extrema-esquerda, denunciam a recuperação da direita e da extrema-direita, rejeitam “os fatos que contaminam o movimento” e também apoiam, mais ou menos abertamente, o movimento. Depois de estar cauteloso, Jean-Luc Mélenchon, na frente da França Insubmissa, agora com toda sua astúcia está saudando “o movimento revolucionário amarelo”, um movimento “popular” e de “massas”. É preciso dizer que ele está ali como um peixe na água, ele e sua “França insubmissa”, suas bandeiras azul-branca-vermelha, seu cachecol tricolor usado em todas as ocasiões e seu desejo de “federar o povo contra a oligarquia” pelas urnas.
O apoio e todos os lados do espectro político burguês [8], e especialmente da direita e da extrema-direita, mostra que o movimento de “coletes amarelos” não é de natureza proletária e não tem nada a ver com a luta de classes! Se todos esses partidos do aparato político da burguesia usam os “coletes amarelos” para enfraquecer Macron, esperando colher os frutos eleitorais, sabem que esse movimento não fortalece de modo algum a luta do proletariado contra sua exploração e opressão [9].
Nesse tipo de movimento interclassista, o proletariado não tem nada a ganhar porque sempre é a pequena burguesia quem dar o tom ao movimento (o amarelo também é a cor dos fura-greves!). Além disso, entre os oito porta-vozes que foram nomeados em 26 de novembro, há uma maioria esmagadora de pequenos patrões ou autoempreendedores (empresários autônomos).
Assim, são os objetivos da pequena burguesia, suas palavras de ordem, seus métodos de luta os que se impõem a todos. Na aparência, essa camada social é muito radical. Em razão de estar esmagada, rebaixada pelo Capital, sua revolta pode explodir violentamente, denunciando a injustiça e inclusive a barbárie da grande burguesia e seu Estado. Mas no fundo, o que ela aspira é ser “reconhecida” e não ser “desprezada” pelas elites de “cima”, ou melhor, para alguns dos seus membros, ela sonha em alcançar as camadas superiores da burguesia, e para isso é necessário que seus negócios possam florescer. Isto explica suas afirmações através do movimento de “coletes amarelos”: combustível mais barato e menos impostos para que seus negócios funcionem e se desenvolvam, as ações para paralisar as estradas bloquear todos vestidos de amarelo para serem vistos e valorizados, um foco na pessoa de Macron (“Renuncie, Macron!”) simbolizando o desejo de ocupar o lugar do presidente, e a ocupação da “avenida mais formosa do mundo”, uma verdadeira vitrine do luxo capitalista.
Esse movimento de “coletes amarelos” também está infiltrado, embora não majoritariamente, pela ideologia do populismo. Um movimento “sem precedentes”, de “múltiplas facetas”, que se diz contra os partidos políticos, denunciando a inércia dos sindicatos e… apoiado desde o princípio por Marine Le Pen! Isso não é uma infeliz coincidência, ou o fruto de um pequeno grupo de indivíduos contra a corrente do movimento, se em 20 de novembro os “coletes amarelos”, ao descobrir imigrantes escondidos em um caminhão-tanque, denunciaram-nos à polícia. Alguns manifestantes queriam salvar esses imigrantes que arriscaram sua pele; porém os outros os “abandonaram” conscientemente. Os comentários feitos por alguns “coletes amarelos” durante a prisão filmada e transmitida dá nojo: “Rindo, filho da puta?”; “Que bando de filhos da puta!”; “São mantidos com nossos impostos!”; etc.
O alcance desse movimento interclassista se explica pela dificuldade da classe trabalhadora em expressar sua combatividade devido a todas as manobras sindicais de sabotagem das lutas (como vimos recentemente com a longa “greve intermitente” na SNCF). É por isso que o descontentamento com os sindicatos que existe no seio da classe trabalhadora é recuperado por aqueles que iniciaram o movimento. O que muitos partidários do movimento de “coletes amarelos” querem provar é que os métodos de luta dos empregados (greves, assembleias gerais soberanas e manifestações massivas, comitês de greve…) não levam a lugar algum. Portanto, agora devemos confiar nos pequenos empresários (que protestam contra as taxas e os aumentos de impostos) para encontrar outros métodos de luta contra "o alto custo da vida" e para reunir todo o "povo da França"!
Muitos trabalhadores de “coletes amarelos” censuram os sindicatos por não “fazerem seu trabalho”. Agora vemos a CGT tentar compensar isso ao chamar para um novo “dia de ação” no dia 1º de dezembro. Podemos estar seguros de que a CGT e os demais sindicatos seguirão “fazendo seu trabalho” de supervisão da combatividade dos trabalhadores para evitar qualquer movimento espontâneo em um campo de classe.
Muitos trabalhadores se mobilizaram contra a pobreza, os constantes ataques econômicos, o desemprego, a precariedade do emprego… Porém ao unir-se aos “coletes amarelos” esses trabalhadores se perderam momentaneamente no seu caminho, colocando-se a reboque de um movimento que os conduz a um beco sem saída.
A classe operária deve defender suas condições de vida no seu próprio terreno, como uma classe autônoma, contra a união sagrada de todos os “anti-Macron” que manipulam a revolta dos “coletes amarelos” para obter o máximo de votos nas eleições. Não deve delegar e confiar sua luta nem às camadas sociais reacionárias, nem aos partidos que dizem apoiá-la, nem aos sindicatos que são seus falsos amigos. Todo esse “mundo bonito”, cada um com seu credo, ocupa e delimita o terreno social para evitar que a luta de classes autônoma dos proletários se afirme.
Quando a classe operária se afirma como uma classe autônoma desenvolvendo uma luta massiva, no seu próprio terreno de classe, arrasta a reboque uma parte cada vez mais ampla da sociedade, detrás dos seus próprios métodos de luta e suas palavras de ordem unitárias, e finalmente seu próprio projeto revolucionário de transformar a sociedade. Em 1980, na Polônia, começou um enorme movimento de massas a partir dos estaleiros de Gdansk por conta do aumento dos preços dos alimentos básicos. Para confrontar o governo e fazê-lo recuar, os trabalhadores se reagruparam, se organizaram como uma classe contra a burguesia “vermelha” e seu Estado stalinista [10]. As outras camadas da população se uniram em grande medida a essa luta massiva da classe explorada.
Quando o proletariado desenvolve sua luta, são as assembleias gerais massivas, soberanas e abertas a “todos” os que estão no coração do movimento, os lugares onde os proletários podem se organizar juntos, pensar nas palavras de ordem unitárias e sobre o futuro. Não há lugar para o nacionalismo, muito pelo contrário, os corações vibram para a solidariedade internacional porque “os proletários não tem pátria” [11]. Os trabalhadores, portanto, devem se negar a cantar a Marselhesa e levantar a bandeira tricolor, a bandeira de Versalhes que assassinou 30.000 proletários durante a Comuna de Paris em 1871.
Atualmente, a classe explorada tem dificuldades em se reconhecer como uma classe e como a única força na sociedade capaz de desenvolver uma relação de poder a seu favor contra a burguesia. A classe operária é a única classe da sociedade capaz de oferecer um futuro a humanidade, desenvolvendo suas lutas, no seu próprio terreno, muito além de todas as divisões corporativas, setoriais e nacionais. Hoje, os proletários estão fervendo de raiva, porém não sabem como lutar para defender suas condições de vida contra os crescentes ataques da burguesia. Esqueceram suas próprias experiências de luta, sua capacidade em se unir e se organizar sem esperar as instruções dos sindicatos.
Apesar da dificuldade do proletariado em recuperar sua identidade de classe, o futuro ainda pertence à luta de classes. Todos aqueles que são conscientes da necessidade da luta proletária devem tratar de se agrupar, discutir, extrair lições dos últimos movimentos sociais, refletir sobre a história do movimento operário e não se render ao canto das sereias aparentemente radicais das mobilizações “cidadãs”, “populares” e interclassista da pequena burguesia.
“A autonomia do proletariado frente às demais classes da sociedade é a condição essencial para o desenvolvimento de todas suas lutas para seu objetivo revolucionário. Todas as alianças interclassistas, particularmente com frações da burguesia, só podem resultar em seu desarmamento perante o seu inimigo, ao fazê-lo abandonar o único terreno onde pode acumular suas forças: seu terreno de classe.” (Plataforma da CCI) [12].
Révolution Internationale, orgão da CCI na França, 25 de novembro de 2018.
[1] Depoimento dado aos militantes da CCI na Champs-Élysées.
[2] "Les gilets jaunes, un mouvement inédit dans l’histoire française", Le Parisien (24 de noviembre de 2018).
[3] Esta ideia está onipresente nas redes sociais.
[4] Título outorgado à Champs-Élysées.
[5] Deve-se enfatizar que não é, geralmente, de uma forma direta que se transmite tal mensagem, mas de maneira "subliminar": na BFM-TV, por exemplo, enquanto jornalista e "especialistas" insistem sobre o fato de que devemos distinguir os "coletes amarelos reais" dos "destruidores", se passa as imagens de degradações na Champs-Élysées.
[6] As deteriorações estão relacionadas principalmente com a construção de barricadas improvisadas a partir do mobiliário urbano e projéteis disparados pela polícia.
[7] Na Champs-Élysées, inclusive podemos escutar um "colete amarelo" que disse que "devemos fazer com Macron como a Resistencia fez com os Boches[alemães], intimidando todos os dias até sua partida".
[8] Incluindo o NPA [Novo Partido Anticapitalista] e LO[Lutte Ouvriere-Luta operária].
[9] Só o mundo sindical criticou energicamente os "coletes amarelos" e, por sua vez, os "coletes amarelos", em sua maioria, também rejeitaram qualquer sindicato.
[10] Veja nosso artigo na Revista Internacional nº 27, "Notas sobre la huelga de masas".
[11] Uma das principais palavras de ordem dos Indignados em 2011 foi "Da praça Tahrir à Puerta del Sol", destacando assim o sentimento dos manifestantes na Espanha de estar vinculados com os que se mobilizaram algumas semanas antes nos países árabes, arriscando suas vidas.
[12] Plataforma da CCI, ponto 9 (a citação contém alterações em relação a versão do link): /content/38/plataforma-da-corrente-comunista-internacional [167]
A fim de estimular a discussão sobre a formação do futuro partido mundial da revolução, publicamos abaixo dois capítulos de um artigo na Internationalisme no. 7 de janeiro de 1946, intitulado "À propos du 1er congrès du Parti communiste internationaliste d'Italie" (Sobre o Primeiro Congresso do Partido Comunista Internacionalista da Itália). A revista Internationalisme era o órgão teórico da Fração Francesa da Esquerda Comunista (Fraction Française de la Gauche Communiste), ou seja, o grupo mais claro politicamente no período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. No final de 1945, a Fração transformou-se na Esquerda Comunista da França (Gauche Communiste de France) para evitar confusão com uma cisão formada por militantes franceses que a haviam abandonado e que tinham tomado o mesmo nome (FFGC- bis).
Este artigo desenvolve, a partir das lições da degeneração da Terceira Internacional, os critérios que devem reger a constituição de um futuro partido mundial. Os dois capítulos publicados nosso site em português - o primeiro "A Fração de Esquerda" e o sexto "Método de Formação do Partido" - oferecem uma visão geral das questões políticas que surgiram a partir da fundação da Terceira Internacional com uma argumentação coerente. São como uma ponte entre o período do primeiro pós-guerra e o do segundo, baseados na avaliação feita pela Fração Italiana nos anos 30, enquanto os outros capítulos são bastante dedicados à polêmica com posições e correntes mais específicas dos anos 40, como o RKD (Revolutionäre Kommunisten Deutschlands, ex-trotsquistasaustríacos) e Vercesi (estes capítulos também são muito interessantes, e tentaremos traduzi-los mais tarde).
Resumindo brevemente, os critérios para a fundação do Partido são, por um lado, um caminho aberto para a retomada da luta ofensiva do proletariado e, por outro, a existência de uma sólida base programática para o novo Partido.
Naqueles anos, após a reunião do primeiro congresso do Partido Comunista Internacionalista da Itália em Turim, no final de dezembro de 1945, a CGF considerou que a primeira condição tinha sido cumprida: um novo rumo favorável. Portanto, com base nisso, saúda a transformação da Fração de Esquerda Italiana "dando à luz o novo Partido do Proletariado" (capítulo "A Fração de Esquerda"). Mas, um pouco mais tarde, em 1946, a GCF percebeu que o período da contrarrevolução não tinha terminado e que, portanto, as condições objetivas para a formação do Partido não existiam. Deixou, portanto, de publicar sua revista de agitação L'Étincelle ( A centelha ), acreditando que a perspectiva de uma retomada histórica da luta de classes não estava em pauta. A última publicação de L'Étincelle data de novembro de 1946.
Além disso, o GCF critica severamente o método usado para formar o partido italiano, "adicionando correntes e tendências" sobre uma base programática heterogênea (capítulo "Método de Formação do Partido"), da mesma forma que criticou (no mesmo capítulo) o método de formação da IC, fazendo uma "amálgama em torno de um programa deliberadamente inacabado" e oportunista[1], voltando assim suas costas para o método de construção do Partido Bolchevique.
O mérito do artigo da Internationalisme é que ele insistiu no rigor necessário no programa, um rigor ausente no partido recém-formado na Itália. O artigo, escrito cerca de 25 anos após a fundação do Comintern, e algumas semanas após o congresso do PCInt é, sem dúvida, a crítica mais consistente do método do Partido Bolchevique de fundar a Internacional Comunista. A Internationalisme foi também a única publicação do então movimento de esquerda comunista que destacou o método oportunista do PCInt.
A GCF é, neste sentido, um exemplo de continuidade com o método de Marx e Engels quando o Partido Social Democrata Alemão foi fundado em Gotha em 1875 (ver Crítica ao Programa de Gotha), um método que rejeitou as bases confusas e oportunistas sobre as quais o SAPD foi fundado[2]. Continuidade também com a atitude de Rosa Luxemburgo em relação ao oportunismo do revisionista Bernstein na social democracia alemã 25 anos depois, mas também continuidade com a atitude de Lênin em relação aos mencheviques no que diz respeito aos princípios organizativos. Finalmente, continuidade com a atitude de Bilan em relação ao oportunismo da corrente trotskista durante a década de 1930. Foi graças a esta intransigência na defesa de posições programáticas e princípios organizativos que as pessoas das correntes trotskistas (como a RKD) foram capazes de se orientar para a defesa do internacionalismo durante e após a Segunda Guerra Mundial. Portanto, manter a bandeira do internacionalismo elevada contra os "partisanos", defender a intransigência contra o oportunismo era uma condição para que as forças internacionalistas encontrassem uma bússola política.
Nesta apresentação devemos especificar uma formulação sobre a luta do Spartakusbund (Liga Espártaco) durante a Primeira Guerra Mundial. O artigo diz no capítulo 6: "A experiência de Spartakusbund é esclarecedora a este respeito. Sua fusão com os Independentes não levou, como esperado, à criação de um partido de classe forte, mas terminou na asfixia de Spartakusbund pelos Independentes e no enfraquecimento do proletariado alemão. Rosa Luxemburgo, antes de ser assassinada, e outros líderes da Spartakusbund pareciam ter percebido este erro de fusão com os Independentes e tentaram corrigi-lo. Mas esse erro não só foi mantido pela IC na Alemanha, como se tornou o método praticado, imposto pela IC, em todos os países para a formação de partidos comunistas." Não é verdade que teria havido uma fusão entre a Spartakusbund e a USPD. O USPD foi fundado pelo SAG (Sozialistische Arbeitsgemeinschaft, Grupo de Trabalho Socialista); o grupo "Die Internationale" (Spartakusbund) passou a fazer parte dele. Mas não se tratou de uma fusão enquanto tal, uma vez que tal implicaria na dissolução da organização resultante da fusão. De fato, os espartaquistas mantiveram sua independência organizativa e sua capacidade de ação enquanto perseguiam o objetivo de atrair a esquerda daquela formação para suas posições. Muito diferente foi o método da IC através da fusão de diferentes grupos num único partido, "abandonando" a seleção necessária a uma "adição", "sacrificando princípios por causa da quantidade".
Um erro factual também deve ser corrigido neste artigo. Diz-se: "Na Inglaterra, a IC vai forçar os grupos comunistas a se juntar ao Partido Trabalhista Independente para formar uma oposição revolucionária maciça dentro desse partido reformista". Na realidade, o que a IC exigiu era nada menos do que a pura e simples integração dos comunistas no Partido Trabalhista. Este erro menor não altera a substância do argumento da Internationalisme.
(14 de maio de 2019)
No final de 1945 foi realizado o Primeiro Congresso do recém-formado Partido Comunista Internacionalista da Itália.
Este novo Partido do proletariado não surgiu espontaneamente do nada. É o resultado de um processo que começa com a degeneração do antigo Partido Comunista e da Internacional Comunista. Esta degeneração oportunista deu origem dentro do próprio partido à resposta histórica da classe: a Fração de Esquerda.
Como todos os partidos comunistas formados depois da Primeira Guerra Mundial, o Partido Comunista da Itália foi composto por correntes oportunistas e correntes revolucionárias no momento de sua formação.
A vitória revolucionária do proletariado russo e do Partido Bolchevique de Lênin, em outubro de 1917, através de sua influência decisiva sobre o movimento operário internacional, acelerou o processo, concluindo-o e precipitando a diferenciação organizativa e política e a delimitação entre revolucionários e oportunistas vivendo lado a lado nos velhos partidos socialistas da Segunda Internacional. A guerra de 1914 quebrou essa unidade impossível que existia nos antigos partidos.
A Revolução de Outubro teve de acelerar a constituição dos novos partidos do proletariado. Mas esta influência positiva da Revolução de Outubro também continha elementos negativos.
Ao acelerar a formação de novos partidos, impediu-se que a construção se desse com base em princípios e num programa revolucionário claro. Estes só podem ser elaborados após uma luta política franca e inflexível para eliminar as correntes oportunistas e os remanescentes da ideologia burguesa.
Uma vez que um programa da revolução não tinha sido concluído, os antigos partidos comunistas, construídos muito precipitadamente com base numa ligação sentimental à Revolução de Outubro, ofereceram demasiadas fendas à penetração do oportunismo nos novos partidos do proletariado.
Além disso, a IC e os partidos comunistas dos diferentes países verão, desde sua fundação, como a luta entre revolucionários e oportunistas ressurge novamente. A luta ideológica (que deveria ter sido feita previamente e deveria ter sido a condição para a construção do partido, que só pode ser protegida da gangrena oportunista através da formulação de princípios e da construção do programa) só teve lugar depois da constituição dos partidos. Na verdade, os velhos partidos comunistas não só introduziram a semente do oportunismo em seu meio por causa de sua própria constituição, mas também tornaram mais difícil para as correntes revolucionárias lutar contra o oportunismo sobrevivente e camuflado dentro do próprio novo partido. Cada derrota do proletariado, ao modificar a relação de forças entre as classes contra o proletariado, promoveu inevitavelmente o fortalecimento de posições oportunistas no Partido, o que por sua vez se tornou um fator adicional nas derrotas subsequentes do proletariado.
Se o desenvolvimento da luta entre as correntes do Partido rapidamente alcançou um nível tão grande de agudeza, isso se deve ao período histórico em que vivemos. A revolução proletária saiu das esferas da especulação teórica. De ser ontem um ideal distante tornou-se hoje um problema de atividade prática e imediata.
O oportunismo já não se manifesta mais em elucubrações teóricas livres que atuam como um lento veneno nos cérebros dos proletários. No atual momento de aguda luta de classes, o oportunismo tem repercussão imediata e é pago com milhões de vidas proletárias e derrotas sangrentas da Revolução. O oportunismo que emergiu e se fortaleceu na IC e em seus partidos foi o truque e principal auxiliar do capitalismo contra a revolução para ser a extensão do inimigo de classe dentro do órgão tão decisivo do proletariado.
Os revolucionários não poderiam se opor ao Partido se não consolidando sua Fração e proclamando a luta aberta e mortal contra ele. A constituição da Fração significa que o Partido se tornou o palco onde as expressões das classes opostas e antagônicas se confrontam.
Significava o grito de guerra dos revolucionários para salvaguardar o Partido de e para a classe, contra o capitalismo e seus agentes oportunistas e centristas, que tendiam a tomá-lo e a transformá-lo em um instrumento contra o proletariado.
A luta entre a Fração Comunista da Esquerda e as frações central e de direita pelo Partido não é uma luta pela direção”do aparelho, mas essencialmente programática; é um aspecto da luta geral entre revolução e contrarrevolução, entre o capitalismo e o proletariado.
Esta luta segue o curso objetivo das situações, mudanças no equilíbrio de poder entre as classes e é condicionada por elas.
A única alternativa é: ou o programa da Fração de Esquerda triunfa e o oportunismo é eliminado, ou, se não, é a traição aberta do Partido posto a serviço do capitalismo que vence. Mas qualquer que seja o resultado dessa alternativa, o surgimento da Fração significa que a continuidade histórica e política da classe passou definitivamente do Partido para a Fração e que esta é a única que, desde então, expressa e representa a classe.
Da mesma forma que o antigo Partido só podia ser salvo pelo triunfo da Fração; assim como a alternativa à traição do antigo Partido, que determinou seu curso irremediável sob a direção do centrismo, o novo Partido de classe só pode ser formado sobre as bases programáticas da Fração.
A continuidade histórica da classe é realizada através da sucessão Partido-Fração-Partido. Esta é uma das noções fundamentais da Esquerda Comunista Internacional. Esta posição foi durante muito tempo um postulado teórico. A formação do PCInt italiano e seu Primeiro Congresso confirmam historicamente a exatidão deste postulado.
A Fração da Esquerda Italiana, depois de 20 anos de luta contra o centrismo, completou sua função histórica transformando-se e dando origem ao novo Partido do Proletariado.
(...)
Embora seja verdade que a constituição do Partido é determinada por condições objetivas e não pode ser o resultado da vontade individual, o método usado para tal constituição depende mais diretamente de um "subjetivismo" dos grupos e militantes que participam dela. São eles que sentem a necessidade da constituição do Partido e a traduzem em suas ações. O elemento subjetivo também se torna um fator determinante no processo e o segue; e fornece uma orientação para o desenvolvimento futuro do Partido. Sem cair no fatalismo impotente, seria muito perigoso ignorar as graves consequências do modo como os homens desempenham e realizam as tarefas cuja necessidade objetiva se deram conta.
A experiência nos ensina a importância decisiva do problema do método de formação do Partido. Só os ignorantes ou os desmiolados, aqueles para quem a história começa apenas com sua própria atividade, podem se dar ao luxo de ignorar toda a rica e dolorosa experiência da Terceira Internacional. E não é menos grave do que ver militantes muito jovens, que mal entraram no movimento operário e na Esquerda Comunista, não só se contentarem com a sua ignorância e a ela se acomodarem, mas fazer dela a base da sua arrogância pretensiosa.
O movimento operário após a primeira guerra mundial imperialista está em estado de extrema divisão. A guerra imperialista quebrou a unidade formal das organizações políticas que se reivindicam do proletariado. A crise do movimento operário, que já existia antes, atingiu seu auge por causa da guerra mundial e das posições que tiveram que ser adotadas em resposta a ela. Todos os partidos e organizações anarquistas, sindicais e marxistas foram violentamente abaladas. As divisões se multiplicaram. Novos grupos surgiram. Houve uma delimitação política. A minoria revolucionária da Segunda Internacional representada pelos bolcheviques, a esquerda alemã de R. Luxemburgo e os tribunistas holandeses, já de per si não muito homogênea, deixou de estar diante de um bloco oportunista, porque entre ela e os oportunistas havia um arco-íris de grupos e tendências políticas mais ou menos confusos, mais ou menos centristas, mais ou menos revolucionários, que representavam um deslocamento geral das massas que se separavam da guerra, rompendo com a união sagrada, com a traição dos velhos partidos socialdemocratas. Assistimos então ao processo de liquidação dos antigos partidos, cujo colapso deu origem a uma multiplicidade de grupos. Esses grupos não eram tanto a expressão do processo de formação do novo Partido, mas sim o processo de deslocamento, liquidação e morte do antigo Partido. Esses grupos certamente continham elementos para a formação do novo Partido, mas não eram de modo algum a base para tal formação. Essas correntes expressavam essencialmente a negação do passado e não a afirmação positiva do futuro. A base do novo Partido de classe não foi outra senão a da velha esquerda e seu trabalho crítico e construtivo, nas posições teóricas, nos princípios programáticos que elaborou durante os 20 anos de sua existência e sua luta fracionária dentro do antigo Partido.
A revolução de outubro de 1917 na Rússia despertou entusiasmo entre as massas e acelerou o processo de liquidação dos antigos partidos da traição. Ao mesmo tempo, levantou, de forma ardente, o problema da constituição do novo Partido e da nova Internacional. A velha esquerda, os bolcheviques, os espartaquistas, foram dominados pelo rápido desenvolvimento da situação objetiva, pelo impulso revolucionário das massas. Sua precipitação na construção do novo Partido correspondeu e foi o resultado da precipitação dos eventos revolucionários no mundo. É inegável que uma das causas históricas da vitória da revolução na Rússia e sua derrota na Alemanha, Hungria e Itália reside na existência do Partido revolucionário no momento decisivo daquele país e na sua ausência ou inexistência nestes últimos. Por isso, os revolucionários tentaram preencher a lacuna entre a maturidade da situação objetiva e a imaturidade do fator subjetivo (a ausência do Partido) através de uma ampla confluência de grupos e correntes politicamente heterogêneas, proclamando tal agrupamento como um novo Partido.
O método "estreito" (seleção baseada nos princípios mais precisos, sem olhar os sucessos numéricos imediatos) tinha permitido aos bolcheviques construir o Partido que, no momento decisivo, foi capaz de integrar em seu seio e assimilar todas as energias revolucionárias e militantes das outras correntes e, finalmente, levar o proletariado à vitória. O método "amplo", por outro lado, preocupado sobretudo em reunir imediatamente o maior número de membros à custa de precisão programática e de princípios, acabaria por conduzir à constituição dos partidos de massas, gigantes com pés de barro que acabariam caindo, diante da primeira derrota, nas mãos do oportunismo. A formação do Partido de classe é infinitamente mais difícil nos países capitalistas avançados - onde a burguesia sabe mil maneiras de corromper a consciência do proletariado - do que na Rússia.
A IC acreditava que podia contornar as dificuldades recorrendo a métodos diferentes daquele que tinha ganho na Rússia. A construção do Partido não é um problema de habilidades, mas essencialmente um problema de solidez programática.
Contra a maior força ideológica corruptora do capitalismo e seus agentes, a única coisa que o proletariado pode opor é uma maior severidade e intransigência dos princípios de seu programa de classes. Por mais lento que o caminho para a construção do Partido possa parecer, os revolucionários não têm outro, como a experiência tem mostrado, a não ser o que queiram ir em direção à falência.
A experiência de Spartakusbund é esclarecedora sobre esse assunto. Sua fusão com os Independentes não levou, como eles esperavam, à criação de um Partido de classe forte, mas terminou na asfixia de Spartakusbund pelos Independentes e no enfraquecimento do proletariado alemão. Rosa Luxemburgo, antes de ser assassinada, e outros líderes da Spartakusbund pareciam ter percebido este erro de fusão com os Independentes e tentaram corrigi-lo. Mas esse erro não só foi mantido pela IC na Alemanha; se tornou o método praticado, imposto pela IC, em todos os países para a formação de partidos comunistas.
Na França, a IC vai "fazer" um partido comunista através da fusão e união de grupos impostos de sindicalistas revolucionários, grupos internacionalistas do Partido Socialista e a tendência centrista, corrupta e podre dos parlamentares, liderados por Frossard e Cachin.
Na Itália, a IC também exigirá que a Fração Abstencionista de Bordiga funde uma única organização com as tendências centristas e oportunistas de Ordine Nuovo e Serrati.
Na Inglaterra, a IC vai forçar os grupos comunistas a se juntar ao Partido Trabalhista Independente para formar uma oposição revolucionária de massa dentro desse partido reformista.
Em suma, o método que a IC usará para "construir" os partidos comunistas será o oposto ao método usado e testado na construção do Partido Bolchevique.
Não é mais a luta ideológica em torno do programa, a eliminação progressiva de posições oportunistas que, através do triunfo da coerente Fração Revolucionária, servirá como base para a construção do Partido, mas a soma de diferentes tendências, uma amálgama em torno de um programa deliberadamente inacabado que servirá como base. A seleção será abandonada em favor da soma, e os princípios serão sacrificados em nome da quantidade.
Como poderiam os bolcheviques e Lênin tomar o caminho que eles mesmos condenaram e contra os quais lutaram durante 20 anos na Rússia? Como explicar a mudança no método de formação do Partido para os bolcheviques entre antes e depois de 1917? Lênin não tinha ilusões sobre líderes oportunistas e centristas, sobre a conversão dos Frossards e outros Ledebour para a revolução, sobre o valor dos revolucionários de última hora. Lênin não podia ignorar o perigo representado pela admissão de toda essa escória nos partidos comunistas. Se ele decidiu admiti-los, é porque estava sujeito à precipitação dos eventos, porque acreditava que esses elementos, no próprio desenvolvimento dos eventos, seriam gradual e definitivamente eliminados do Partido. O que permitiu a Lênin inaugurar o novo método foi que ele estava baseado em dois fatos novos que, em sua opinião, ofereciam uma garantia suficiente: a preponderância política do Partido Bolchevique na IC e o desenvolvimento objetivo do curso revolucionário. Desde então, a experiência tem mostrado que Lênin cometeu um erro colossal ao subestimar o perigo de uma degeneração oportunista, sempre possível, de um partido revolucionário e ainda mais favorecido quando a formação do Partido não se baseia na eliminação das tendências oportunistas, mas em camuflá-las, acrescentando-as, incorporando-as como elementos constituintes do novo Partido.
Contra o método "amplo" de agregar, que triunfou na IC, a esquerda recordou energicamente o método de selecionar que era de Lênin antes da Revolução de Outubro. E é um dos maiores méritos de Bordiga e da sua fração ter lutado com a maior energia contra o método da IC e ter destacado o erro do método de formação do Partido e as graves consequências que teve para o desenvolvimento dos partidos comunistas. Se a fração Bordiga finalmente concordou em formar o Partido Comunista da Itália junto com a fração "Ordine Nuovo", o fez submetendo-se à decisão da IC, depois de ter formulado as críticas mais severas e ter mantido suas posições, posições que a fração manteve na esperança de fazê-las triunfar nas crises inevitáveis dentro do Partido e depois de sua própria experiência histórica viva e concreta.
Pode-se dizer hoje [1946] que assim como a ausência de partidos comunistas durante a primeira onda revolucionária de 1918-20 foi uma das causas do seu fracasso, o método de formação dos partidos em 1920-21 foi também uma das principais causas da degeneração dos PCs e da IC.
Não é de se admirar que hoje, 23 anos após a discussão entre Bordiga e Lênin, o mesmo erro seja repetido na própria formação do PCInt da Itália. O método da IC, tão violentamente combatido pela Fração de Esquerda (de Bordiga) e cujas consequências foram catastróficas para o proletariado, é hoje assumido pela própria Fração para a construção da PCInt da Itália.
Muitos camaradas da Esquerda Comunista Internacional parecem estar sofrendo de amnésia política. E, caso se lembrem das posições críticas da esquerda sobre a constituição do Partido, talvez agora pensem que posam superá-las. Eles acreditam que o perigo desse método é circunscrito e até totalmente anuladoporque é aplicado pela Fração de Esquerda, ou seja, o organismo que foi capaz de resistir à degeneração oportunista da IC durante 25 anos. Assim, voltamos a cair nos argumentos dos bolcheviques. Lênin e os bolcheviques também acreditavam que, como eram eles que aplicavam tal método, ele estava garantido. A história demonstra que não há infalibilidade. Nenhum partido, seja qual for o seu passado revolucionário, é imune à degeneração oportunista. Os bolcheviques tinham pelo menos tantos títulos revolucionários a afirmar como a Fração Italiana da Esquerda Comunista. Não só tinham resistido ao oportunismo da Segunda Internacional, à traição da guerra imperialista, não só tinham formado o Partido, como também tinham conduzido o proletariado à vitória. Mas todo esse passado glorioso - que nenhuma outra fração ainda possui - não imunizou o Partido Bolchevique. Cada erro é uma brecha na armadura do Partido através da qual a influência da classe inimiga se infiltra. Os erros têm as suas consequências lógicas.
O Partido Comunista Internacional da Itália foi "construído" através da fusão, a adesão de grupos e tendências politicamente tão opostas entre si como eram a Fração Abstencionista de Bordiga e a "Ordine Nuovo" quando o PC foi fundado em 1921. No novo Partido ocupam seus lugares, em pé de igualdade, a Fração Italiana e a Fração Vercesi, a qual tinha sido excluída por causa de sua participação no Comitê da Coligação Antifascista. Já não se trata apenas de uma repetição do erro metodológico de há 25 anos atrás, mas de uma repetição agravada.
Ao formular nossa crítica ao método de criação do PCInt italiano, simplesmente adotamos a posição da fração italiana, que agora abandona. E assim como Bordiga seguiu Lênin contra o próprio erro de Lênin, tudo o que fazemos é seguir a política de Lênin e Bordiga antes do abandono de suas posições pela Fração Italiana.
O novo Partido não é uma unidade política, mas um conglomerado, uma soma de tendências que inevitavelmente surgirão e colidirão entre si. A trégua atual será muito temporária. A eliminação de uma ou outra corrente é inevitável. Mais cedo ou mais tarde, será necessária uma delimitação política e organizativa. Novamente, como há 25 anos, o problema é: quem sairá vencedor?
Há oitenta anos, um dos acontecimentos mais importantes do século XX chegou ao fim: a guerra na Espanha. Este acontecimento altamente significativo esteve no centro da situação mundial na década de 1930. E permaneceu no centro da atualidade política internacional durante muitos anos. Foi uma prova de fogo para todas as tendências políticas que se apresentavam como proletárias e revolucionárias. Por exemplo, foi na Espanha que o estalinismo pôde ser visto em ação, pela primeira vez fora da URSS, no seu papel de executor do proletariado. Foi também em torno da questão espanhola que houve uma decantação entre as correntes que tinham lutado contra a degeneração e traição dos partidos comunistas nos anos 20: por um lado, aqueles que permaneceram numa posição internacionalista durante a Segunda Guerra Mundial; por outro, aqueles que apoiaram esta carnificina, como a corrente trotskista[1]. E ainda hoje, os acontecimentos de 1936-1939 na Espanha continuam presentes nas posições e na propaganda das correntes que afirmam ser parte da revolução proletária. Este é o caso, em particular, das diferentes tendências do anarquismo e do trotskismo que, além de suas diferenças, concordam que houve uma "revolução" na Espanha em 1936. Uma revolução que, segundo os anarquistas, teria ido muito além da de 1917 na Rússia devido à constituição das "coletivizações" promovidas pela CNT, a confederação sindical anarco-sindicalista. Uma análise que à época foi rejeitada pelas diferentes correntes da esquerda comunista, pela esquerda italiana e também pela esquerda germano holandesa.
A primeira pergunta que devemos responder é: houve uma revolução na Espanha em 1936?
Antes de responder a esta pergunta, temos obviamente de concordar sobre o que queremos dizer com "revolução". Este é um termo que é irritante porque é usado tanto pela extrema esquerda (por exemplo, Mélenchon[2] com sua "Revolução Cidadã") quanto pela extrema direita (a "Revolução Nacional"). Mesmo Macron intitulou "Revolução" o livro em que ele fez seu programa conhecido.
O certo é que, para além de todas as suas interpretações fantasiosas, este term "Revolução" qualifica na história uma violenta mudança de regime político que expressa uma ruptura da relação de forças entre classes sociais que beneficia aqueles que representam progresso para a sociedade. Esses foram os casos da Revolução Inglesa de 1640 e da Revolução Francesa de 1789. Ambos significaram um ataque ao poder político da aristocracia em favor da burguesia.
Ao longo do século XIX, os avanços políticos da burguesia em prejuízo da nobreza representaram um progresso para a sociedade. E isto porque naquela época o capitalismo era um sistema em plena prosperidade, lançado para conquistar o mundo. Mas esta situação mudou radicalmente no século XX. Os poderes burgueses acabaram de dividir o mundo. Qualquer nova conquista, colonial ou comercial, tinha de ser feita atacando os domínios de uma potência rival. Vimos então um aumento do militarismo e um surto de tensões imperialistas que levaram à Primeira Guerra Mundial. Este foi o sinal de que o capitalismo já havia se tornado um sistema decadente e obsoleto. As revoluções burguesas já não têm validade. A única revolução que está na agenda é aquela que deve derrubar o sistema capitalista e estabelecer uma nova sociedade liberada da exploração e da guerra, o comunismo. O ator histórico desta revolução é a classe dos trabalhadores assalariados que produz a maior parte da riqueza social, o proletariado.
Há diferenças fundamentais entre as revoluções burguesas e a revolução proletária. Uma revolução burguesa, ou seja, a tomada do poder político pelos representantes da classe burguesa de um país é o resultado de todo um período histórico durante o qual a burguesia adquiriu peso decisivo na esfera econômica através do desenvolvimento do comércio e técnicas produtivas. A revolução política, isto é, a abolição dos privilégios da nobreza, constitui um passo importante (embora não indispensável) no controle crescente da burguesia sobre a sociedade que lhe permite facilitar e acelerar este processo de controle.
A revolução proletária não se situa de modo algum no final do processo de transformação económica da sociedade, mas, pelo contrário, no início. A burguesia foi capaz de construir ilhotas da economia burguesa no interior da sociedade feudal, as cidades mercantis, as redes comerciais, ilhotas que gradualmente se expandiram e fortaleceram. Mas este não é o caso do proletariado. Não pode haver ilhas de comunismo numa economia mundial dominada pelo capitalismo e pelas relações mercantis. Este era o sonho de socialistas utópicos como Fourier, Saint-Simón ou Owen. Mas, apesar de sua boa vontade e de sua análise muitas vezes muito inteligente das contradições do capitalismo, seus sonhos colidiram e desapareceram diante da realidade da sociedade capitalista. O que é certo é que a primeira etapa da revolução comunista consiste na tomada do poder político pelo proletariado em escala mundial. É graças a este poder político que a classe revolucionária será capaz de transformar gradualmente toda a economia socializando-a, abolindo a propriedade privada dos meios de produção e a troca de mercadorias.
E há duas outras diferenças fundamentais entre as revoluções burguesas e a revolução proletária:
Em 18 de julho de 1936, diante do golpe militar perpetrado contra o governo da Frente Popular, o proletariado se armou. Ele conseguiu derrotar a empresa criminosa liderada por Franco e seus acólitos na maioria das grandes cidades. Aproveitou-se desta situação, da sua posição de força, para atacar o Estado burguês? Um Estado burguês que, desde o estabelecimento da República em 1931, já tinha se distinguido na repressão sangrenta da classe trabalhadora, particularmente nas Astúrias, em 1934, com 3 000 mortos. Absolutamente não!
A resposta dos trabalhadores foi, sem dúvida, inicialmente uma ação coletiva, que impediu o golpe de Estado de triunfar. Mas, infelizmente, a energia dos trabalhadores foi rapidamente canalizada e ideologicamente recuperada pela força mistificadora do "antifascismo" da Frente Popular. Em vez de atacar e destruir o Estado burguês como aconteceu em outubro de 1917 na Rússia, os trabalhadores foram desviados e recrutados para a defesa do Estado republicano. Nesta tragédia, a CNT anarquista, a mais poderosa confederação sindical, de fato desempenhou um papel capital, desarmando os trabalhadores, levando-os a abandonar o terreno da luta de classes para capitular e enganando-os, entregando-os de pés e mãos atados ao Estado burguês. Em vez de atacar o Estado para destruí-lo, como sempre haviam prometido fazer, os anarquistas ocuparam ministérios declarando, pela palavras de Federica Montseny, ministro anarquista do governo republicano: "Hoje, o governo, como instrumento de controle dos órgãos do Estado, deixou de ser uma força de opressão contra a classe trabalhadora, assim como o Estado já não representa uma organização que divide a sociedade em classes. Ambos vão oprimir as pessoas ainda menos agora que os membros da CNT participam neles." Os anarquistas, que se vangloriaram de serem os maiores "inimigos do Estado", foram assim capazes, usando este tipo de retórica, de arrastar os proletários espanhóis para a defesa pura e simples do Estado democrático. A classe trabalhadora foi desviada de seus próprios objetivos políticos para se dedicar a apoiar a facção "democrática" contra a facção "fascista" da burguesia. Isto dá a medida da extensão da falência política, moral e histórica do anarquismo. Sendo a força politicamente dominante na Península Ibérica, o anarquismo mostrou a sua total incapacidade de levar a cabo uma política de classe de emancipação de classe do proletariado. Em vez disso, ele empurrou este último para defender a burguesia democrática, o Estado capitalista. Mas a falência do anarquismo não para por aí. Quando ele afirmou que estava realizando a revolução ao privilegiar "ações locais" como as "coletivizações" de 1936, ele estava realmente prestando um valioso serviço ao Estado burguês:
E se o proletariado tomou as ruas em julho de 1936, menos de um ano depois já estava subjugado pela coalizão de forças políticas republicanas. Em 3 de maio de 1937, ele fez uma última tentativa de se opor a essa submissão. Nesse dia, os "Guardas de Assalto", unidades policiais do Governo da Generalitat de Catalunha, na verdade os instrumentos dos estalinistas que tinham tomado o controle deles, queriam ocupar o edifício da Telefônica em Barcelona, que estava nas mãos da CNT. A parte mais combativa do proletariado respondeu a esta provocação tomando as ruas, levantando barricadas e declarando uma greve quase geral. O proletariado estava bem mobilizado, certamente tinha armas, mas permaneceu, no entanto, sem perspectiva. O Estado democrático permaneceu intacto. Ele sempre esteve presente e na ofensiva e, ao contrário do que os anarquistas queriam fazer crer, não tinha de forma alguma desistido de reprimir as tentativas de resistência proletária. Enquanto as tropas de Franco pararam voluntariamente sua ofensiva na Frente, os estalinistas e o governo republicano esmagaram os mesmos trabalhadores que, em julho de 1936, haviam derrotado o golpe de Estado fascista. Foi nesse momento que Federica Montseny, a mais proeminente ministra anarquista, pediu aos trabalhadores que parassem com a luta, que depusessem suas armas! Então foi uma verdadeira facada nas costas do proletariado, uma verdadeira traição e uma derrota esmagadora. Foi o que a revista Bilan, a publicação da esquerda comunista italiana, escreveu nesta ocasião: "Em 19 de julho de 1936, os proletários de Barcelona, com punhos desarmados, esmagaram o ataque dos batalhões de Franco armados até os dentes. Em 4 de maio de 1937, esses mesmos proletários, armados, deixaram nas ruas muito mais vítimas do que em julho quando tiveram que repelir Franco, e é o governo antifascista (incluindo a CNT-FAI e ao qual o POUM apoia indiretamente) que liberta a escória das forças repressivas contra os proletários.
Na repressão geral que se seguiu à derrota da revolta de Maio de 1937, os estalinistas trabalharam arduamente para eliminar fisicamente os "elementos perturbadores". Foi o caso, por exemplo, do militante anarquista italiano Camilo Berneri, que teve a lucidez e a coragem de fazer uma verdadeira crítica à política da CNT e à ação dos ministros anarquistas em uma "Carta aberta à camarada Federica Montseny".
Dizer que o que aconteceu na Espanha em 1936 foi uma revolução de nível "superior" ao que ocorreu na Rússia em 1917 não só vira as costas à realidade, mas constitui um importante ataque à consciência do proletariado ao evacuar e rejeitar as experiências mais preciosas da revolução russa: especialmente a criação dos Conselhos operários (Sovietes); a destruição do Estado burguês e o internacionalismo proletário, uma vez que esta revolução foi concebida como a primeira fase da revolução mundial e promoveu a constituição da Internacional Comunista. Um internacionalismo proletário que, apesar de suas afirmações, era estranho ao movimento anarquista, como veremos abaixo[5].
O primeiro elemento que nos permite afirmar que a Guerra na Espanha foi apenas um prelúdio para a Segunda Guerra Mundial, e não uma revolução social, é a própria natureza da luta entre as diferentes frações burguesas do Estado - republicanos e fascistas - e entre as nações. O nacionalismo da CNT levou-a a apelar explicitamente a uma guerra mundial para salvar a "nação espanhola": "A Espanha livre cumprirá o seu dever. E perante esta atitude heroica, o que farão as democracias? É de esperar que o inevitável não se prolongue por muito tempo. A atitude provocadora e rude da Alemanha já está se tornando insuportável. (...). Todos sabem que, em última análise, as democracias terão de intervir com os seus esquadrões e exércitos para bloquear o caminho destas hordas de loucos...". (Solidariedade dos Trabalhadores, jornal CNT, 6 de janeiro de 1937, citado por Revolução Proletária No. 238, janeiro de 1937). As duas facções burguesas em luta procuraram imediatamente apoio externo: não só houve uma intervenção militar maciça por parte dos Estados fascistas que trouxe a aviação e um exército blindado moderno para os franquistas, mas também a URSS se envolveu muito ativamente no conflito através de seus carregamentos de armas e seus "conselheiros militares". Houve apoio político e da mídia mundial para um ou outro lado da burguesia - exatamente o oposto do que aconteceu na Revolução Russa em 1917, quando não só nenhuma das nações capitalistas a apoiou, mas todas elas se prepararam para isolá-la e combatê-la militarmente, tentando afogá-la em sangue![6]
Uma das ilustrações mais espetaculares do papel desempenhado pela guerra espanhola na preparação para a Segunda Guerra Mundial é a atitude de muitos militantes anarquistas em relação a ela. Assim, muitos deles se envolveram na Resistência, ou seja, na organização que representava o campo imperialista anglo-americano no território francês ocupado pela Alemanha. Alguns até se alistaram no exército regular francês, particularmente na Legião Estrangeira ou na 2ª Divisão Blindada do General Leclerc, o mesmo Leclerc que continuaria sua carreira na guerra colonial indochinesa. É por isso que os primeiros tanques de guerra que entraram em Paris em 24 de agosto de 1944 foram conduzidos por motoristas espanhóis e içaram o retrato de Durruti, o líder anarquista que liderou a famosa "coluna Durruti", e que morreu nos arredores de Madri em novembro de 1936.
Todos aqueles que, mesmo reivindicando a revolução proletária, tomaram o partido da República, do “lado democrático”, fizeram-no em geral invocando o “mal menor” e contra o "perigo fascista". Os anarquistas têm sido os promotores desta ideologia democrática em nome dos seus princípios "antiautoritários". Segundo eles, embora admitam que a "democracia" é uma das expressões do capital, consideram-na um "mal menor" em relação ao fascismo porque, obviamente, é menos autoritário. Mas isso é cegueira total! A democracia não é um "mal menor". Pelo contrário! Precisamente porque é capaz de criar mais ilusões do que regimes fascistas ou autoritários, constitui a arma de escolha da burguesia contra o proletariado.
Além disso, a democracia não é abandonada quando se trata de reprimir o proletariado. Foram os "democratas", juntamente com os "socialdemocratas", Ebert e Noske, que assassinaram Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg, bem como milhares de trabalhadores, durante a revolução alemã de 1919, abrandando assim a propagação da revolução mundial. Quanto à Segunda Guerra Mundial, as atrocidades cometidas pelo "campo fascista" são bem conhecidas e mediadas, mas as do "campo democrático" não ficam para trás: não foi Hitler quem enviou duas bombas atômicas contra a população civil, mas o "democrata" Truman, presidente da grande "democracia" americana.
E se olharmos para o caso da guerra espanhola, devemos recordar o acolhimento dado pela República Francesa, campeã dos "direitos humanos" e da "Liberté-Égalité-Fraternité", aos 400 000 refugiados que fugiram do território espanhol no Inverno de 1939, no final da guerra civil. A maioria deles foram mantidos como gado nos campos de concentração, rodeados de arame farpado, sob a guarda armada dos gendarmes da democracia francesa[7].
Corrente Comunista Internacional, Junho 2019
[1] Ver nosso livro España 1936: Franco y la República massacran al proletariado [255]
[2] O político francês Mélenchon juntou-se ao Partido Socialista em 1976 para terminar, após outras experiências políticas, como fundador do movimento "La France insoumise".
[4] Veja a série O que são Conselhos operários? [131]
[5] Munis, um revolucionário de origem trotskista que, no entanto, conseguiu durante toda a sua vida manter-se fiel ao proletariado, sustentou essa "teoria": não só que houve uma "revolução" na Espanha, mas que esta teria sido "mais profunda" do que a revolução de 1917 na Rússia. Criticamos esta análise na crítica ao livro JALONES DE DERROTA PROMESAS DE VICTORIA [257] e em ¿Una revolución más profunda que la revolución rusa de 1917? [258]
Na América do Sul, estamos vivenciando uma ofensiva completa dos EUA para subjugar os estados ao sul do Rio Grande à sua coligação imperialista. Diante das tentativas da China de estabelecer posições econômicas e até militares no continente, apoiadas pela Rússia, os EUA fecham suas fileiras e tentam restabelecer a antiga doutrina Monroe de "América para os norte-americanos".
Dois episódios são especialmente significativos nesta ofensiva: o Brasil e a Venezuela.
No Brasil, a ascensão de Bolsanaro, a prisão de Lula, significam claramente que os EUA impõem sua lei, retomam o controle de um Estado que, com os governos Lula e Rousseff, tentou fazer seu próprio jogo imperialista[1].
Quanto à Venezuela, a proclamação - apoiada pelo Estado americano e seus partidários entusiastas (Colômbia, Chile) - de um presidente "alternativo" (Mister Guaidó) representa um claro desafio ao regime de Chávez que há muito se voltou para a China e a Rússia [2].
Esta disputa entre os abutres imperialistas é ideologicamente acompanhada por uma reivindicação dos regimes gorilas que proliferaram nos anos 60 e 70 na América do Sul, o que provoca a reação de seus rivais "democráticos" e esquerdistas que acenam com o "perigo fascista".
Como acontecido inúmeras vezes ao longo dos séculos XX e XXI (séculos de decadência capitalista), os projetos imperialistas sedentos de sangue dos vários capitais nacionais em jogo assumem trajes fortemente mistificadores: fascismo - antifascismo, ditadura - democracia, etc. A realidade, porém, é outra: o ataque às condições de vida, a guerra, a repressão, o crime …. são uma engrenagem infernal do capitalismo em que participam TODOS os regimes de todas as cores.
Diante desse barulho mistificador, o proletariado precisa lembrar o que eram os regimes militares dos anos 60 e 70 e, acima de tudo, afirmar-se em sua autonomia de classe: não escolher entre um suposto "mal menor" (democracia, os "liberais" e os "Progressistas") e um "mal maior" encarnado por fascistas, militares, populistas etc. Para o proletariado e para o futuro da humanidade, tudo é pior.
No contexto da confrontação imperialista entre o bloco americano e o bloco russo, os anos 60 e 70 testemunharam o estabelecimento, na maioria dos países sul-americanos, de ditaduras militares brutais que foram erigidas como bastiões do imperialismo norte-americano em face das tentativas de seu rival russo por estabelecer pontes que expandiriam a posição obtida em Cuba em 1961[3].
Os regimes que foram estabelecidos no Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, etc., exerceram uma ditadura brutal baseada na tortura, repressão e terror generalizado. No contexto do agravamento da crise capitalista, muito acentuada nesses países, as condições de trabalho se deterioraram rapidamente, o desemprego cresceu e logo as lutas operárias eclodiram: as grandes greves na Argentina em 1969 e 1972; Da mesma forma, as grandes lutas no Brasil em 1978-79. Essas lutas faziam parte do renascimento histórico do proletariado que surgiu em 1968 com o maio francês e se estendeu por todo o mundo com experiências como o "Outono quente" italiano (1969) ou as greves bálticas na Polônia (1970)[4].
Nesse contexto, o capital entendeu que era uma prioridade enfrentar a luta operária e que a feroz repressão e o terrorismo de Estado dos militares não eram apenas insuficientes, mas também poderiam ser contraproducentes ao levar o proletariado à luta pela solidariedade e determinação coletiva. Era necessário dividir, enganar e dispersar a luta usando plenamente a arma da democracia, com seus sindicatos e seus partidos que abalam as ilusões eleitorais, enfraquecer a luta dos trabalhadores e finalmente reprimi-la. Na América do Sul, essa orientação foi impulsionada pela presidência de Carter (1976-1980), que levantou a bandeira mistificadora dos "direitos humanos" e gradualmente se traduziu em "mudanças democráticas" que começaram a descartar os regimes dos gorilas como lixo porque inadequados para novas condições. Assim, a "democracia" foi restaurada no Peru em 1980, na Argentina em 1983, no Brasil em 1985 e, mais tarde, em um "plebiscito histórico", o clímax da barbárie militarista Pinochet caiu no Chile em 1988.
Da mesma forma, a restauração da democracia nesses países não foi graças a qualquer boa vontade ou aos "desejos de liberdade" do "povo"; nem ao paternalismo bem pensado dos patrocinadores americanos. Eram uma manobra do capital para equipar-se com ferramentas mais eficazes para enfrentar as lutas dos trabalhadores e desviá-las para becos sem saída da "defesa da democracia", a ilusão vã de que através da pressão ou pressão "popular" poderiam mudar de governo
Quando se faz um balanço hoje, 30 anos depois, se pode compreender que essas "mudanças esperançosas" levaram a uma grande decepção. A miséria não desapareceu, mas piorou consideravelmente. Desemprego ou subemprego são generalizados, a habitação é para milhões de pessoas quatro muros sujos em bairros ultra degradados, repressão é tão brutal ou mais do que com os regimes militares, o crime é galopante e numerosas cidades sul-americanas ou mexicanas estão entre as mais violentas do mundo onde tráfico de drogas, gangues etc., semeiam o terror renovando a barbárie dos militares. Milhões de pessoas são forçadas a emigrar para a Europa ou os Estados Unidos.
Tal é o sinistro balanço que pode ser feito do "renascimento democrático" na América Latina. Sem jamais desaparecer o terror dos latifundiários no campo, os trabalhadores e todos os latino-americanos explorados, passaram da brutalidade arrogante e desavergonhada dos militares à brutalidade hipócrita, disfarçada de consultas eleitorais e promessas cínicas, dos governos democráticos, enquanto a vida tornou-se insuportável, não só pela exploração, desemprego, precariedade, etc., mas também pela barbárie acrescida de gangues de traficantes de droga, etc. que, em combinação com o Estado democrático, aplicam a lei do mais forte nos bairros mais pobres das cidades superpovoadas da América Latina.
Para ressuscitar a fé na democracia, na primeira década do século XXI numerosos governos de esquerda subiram ao poder: Lula e sua “esperança dos pobres” no Brasil, Chávez e sua "revolução bolivariana", Morales na Bolívia, o Sandinismo na Nicarágua, Correa e sua "revolução cidadã" no Equador, a família Kirchner na Argentina, etc.
Não podemos fazer aqui um estudo da decepção monumental e do terrível desapontamento que esses "governos do povo" supunham. Referimo-nos a diferentes artigos que publicamos sobre esse novo engano.[5]
Nos últimos dois anos, os ventos parecem mudar. O governo corrupto de "fragrâncias anti-imperialistas" da família Kirchner na Argentina foi substituído pela extrema direita de Maccri; No Equador, a "revolução cidadã" de Correa deu lugar ao servilismo pró-EUA de Lenin Moreno. Mas a mudança mais brutal ocorreu no Brasil com a eleição de Bolsonaro.O governo Bolsonaro nega que houve uma ditadura entre 1964-85, quer rever a análise condenatória do golpe militar nos livros escolares e até quer que o golpe militar de 31 de março de 1964 seja comemorado como feriado nacional. O governo está cheio de generais que reivindicam abertamente a ditadura militar e o ministério da educação declarou guerra a tudo que cheira a "vermelho".Qual é o propósito dessa "nova política"? Como analisamos no artigo citado na nota 1, o governo Bolsonaro tem amificações populistas e tem forte apoio nos quartéis, no entanto, o motor fundamental de sua entronização tem sido o interesse do imperialismo dos EUA para recuperar o controle de todos os seus "quintais" e neste, Brasil é uma peça fundamental, porque é o país mais industrializado e ao mesmo tempo mais extenso e povoado da América do Sul.
No entanto, juntamente com este programa imperialista, o governo Bolsonaro tem uma clara vocação para atacar trabalhadores e isso não resulta em nada de novo: um de seus principais objetivos é acertar um golpe sangrento nas aposentadorias. Nisso está em clara continuidade com os governos que o precederam e faz o mesmo que outros governos, qualquer que seja sua cor, da Argentina, México, Chile, etc. Governos da direita e governos de esquerda, democratas e gorilas, populistas e "progressistas", TODOS COINCIDEM no corte de aposentadorias, em medidas precárias e anti-imigrantes, no ataque aos salários e a todas as condições de vida. O novo campeão do "progressismo", AMLO no México, tem o mesmo programa disfarçado de palavreado nacionalista e indigenista.
Os partidos da esquerda e da extrema esquerda, o coro de democratas, liberais e progressistas, estão jogando até a borda: o episódio Bolsonaro serviu de incentivo para chamar a mobilização antifascista, lembrando suas antigas mobilizações contra os ditadores dos anos 70-80. Os atos "antifascistas" se multiplicam no Brasil, Chile, Equador, Argentina, México ... No Peru, um movimento anarco-punk colocou seus dois centavos na campanha organizando um evento sobre Fujimori.
Frente a este reaparecimentoda histeria antifascista, o proletariado deve preservar sua autonomía de classe, tirando as lições de su experiência histórica.
A história desde os anos 30 do século passado mostrou claramente o perigo, para o proletariado, da mistificação antifascista em suas duas variantes complementares:
- formar uma frente antifascista onde o proletariado teria que unir sua luta às frações supostamente mais "liberais" ou “progressistas” da burguesia contra o "perigo fascista";
- escolher um "mal menor" que seria a democracia ou as frações "liberais" da burguesia contra o Mal Maior, que seriam os fascistas, os autoritários, os ditadores, etc.
Com esse veneno criminoso, o proletariado foi arrastado para a carnificina da Segunda Guerra Mundial, a barbárie da Guerra Civil Espanhola de 1936 ou o massacre de Pinochet em 1973[6].
Nossa plataforma em seu ponto 9 dedicou a essa lição histórica que o proletariado pagou com montanhas de cadáveres, a denúncia categorica da mentira antifascista, enfatizando especialmente que:
"Na decadência capitalista, quando só a revolução proletária constitui um passo adiante na História, não pode existir nenhuma tarefa comum, inclusive momentânea, entre a classe revolucionária e qualquer fração da classe dominante, por muito "democrática", "progressista" ou "popular" que esta se apresente."
"De fato, desde a Primeira Guerra Mundial, a "democracia" se revelou como uma das piores drogas contra o proletariado. É em seu nome que, depois desta guerra, foi esmagada a revolução em vários países europeus. Também em seu nome e contra o "fascismo" foram mobilizados dezenas de milhões de proletários na Segunda guerra imperialista mundial. Ainda hoje, em seu nome, o capital tenta desviar as lutas proletárias para alianças "contra o fascismo", "contra a reação", "contra a repressão", "contra o totalitarismo", etc. "
"o fascismo não detém o monopólio da repressão. Compartilha-a com todas as demais opções burguesas. Se as forças políticas democráticas ou de esquerda identificam fascismo com repressão, é porque tentam ocultar que elas mesmas utilizam a repressão com determinação, até tal ponto que a elas incumbe o essencial do esmagamento dos movimentos revolucionários da classe operária."
"A autonomia do proletariado frente às demais classes da sociedade é a condição essencial para o desenvolvimento de todas suas lutas para seu objetivo revolucionário. Todas as alianças inter-classistas particularmente com frações da burguesia, só podem resultar em seu desarmamento perante o seu inimigo, a lhe fazer abandonar o único terreno onde pode acumular suas forças: seu terreno de classe. Toda corrente política que tente apartar o proletariado desse terreno pertence necessariamente ao campo burguês. "
Contra todos aqueles que procuram desviar o proletariado para as falsas alternativas democracia / fascismo; populismo / antipopulismo; etc., que o tornam bucha de canhão da barbárie capitalista, o proletariado em todos os países tem a mesma tarefa: defender sua autonomia política de classe para combater a exploração capitalista com o objetivo de aboli-la em todos os países
C.Mir 29-4-19
[1] Ver O Brasil entra em turbulência [261]
[2] Ver Crisis en Venezuela: ¡Ni Guaidó ni Maduro¡ Los trabajadores no deben apoyar a ninguna de las facciones burguesas en pugna [262]
[3] Há de se destacar que Fidel Castro, em um famoso discurso em Nova York em 1960, afirmou que "ele não era um comunista". O imperialismo dos EUA não ofereceu as vantagens esperadas, que empurraram os "cubanos barbudos" para os braços da URSS, tornando-se "comunistas" a toda pressa.
[4] Para estudar este renascimento histórico do proletariado ver Hace 50 años mayo 68 [263].
[5] Ver, entre otros, Brasil: ¿Es Lula una 'esperanza' para los trabajadores? [264] ; Evo al desnudo [265] ; La burguesía ecuatoriana nadando en el pozo de su descomposición [266] ; El abril sangriento de Nicaragua: Sólo la lucha autónoma del proletariado puede acabar con la explotación y la barbarie represiva [267],
[6] Nossa organização publicou numerosos documentos sobre as 3 experiências mencionadas. Podemos recomendar : Internationalisme 1945 - Las verdaderas causas de la Segunda Guerra Mundial, [268] ; nosso livro [268]1936: Franco y la República masacran al proletariado [255], y Hace 30 años, la caída de Allende: dictadura y democracia son las 2 caras de la barbarie capitalista [269],
Há 100 anos, em março de 1919, foi realizado o primeiro congresso da Internacional Comunista, o congresso de fundação da Terceira Internacional.
Se as organizações revolucionárias não tivessem a vontade de celebrar esse evento, a fundação da Internacional seria esquecida no porão da história. A burguesia tem o maior interesse em manter silêncio sobre este evento, enquanto promove celebrações de todo tipo, como o centenário do final da Primeira Guerra Mundial. A classe dominante se se empenha no sentido de que a classe trabalhadora esqueça a sua primeira grande experiência revolucionária internacional de 1917-1923. A burguesia gostaria de finalmente enterrar o espectro daquela onda revolucionária que deu origem a IC. Essa onda revolucionária foi a resposta do proletariado internacional à Primeira Guerra Mundial, aos quatro anos de confrontos entre os estados capitalistas pela partilha do mundo através da carnificina militar.
A onda revolucionária tinha começado com a vitória da Revolução Russa em outubro de 1917. Ela havia se manifestado em motins de soldados nas trincheiras e na insurreição do proletariado na Alemanha em 1918.
Esta primeira onda revolucionária atravessou a Europa, chegando até a países do continente asiático (especialmente a China em 1927). E essa onda revolucionária mundial também inundou os países do continente americano, o Canadá e os Estados Unidos, a América Latina.
Não devemos esquecer que foi o temor da extensão internacional da revolução russa que forçou a burguesia das grandes potências europeias a assinar o armistício para pôr fim à Primeira Guerra Mundial.
Neste contexto, a fundação da Internacional Comunista em 1919 foi o ponto culminante dessa primeira onda revolucionária.
A Internacional Comunista foi fundada para dar uma clara orientação política às massas trabalhadoras. O objetivo era mostrar ao proletariado o caminho para a derrubada do Estado burguês e a construção de um novo mundo sem guerras ou exploração. Podemos recordar aqui o que os Estatutos (adotados em seu 2º Congresso, em julho de 1920) afirmam:
"A 3ª Internacional Comunista se constituiu no final do massacre imperialista de 1914-1918, durante o qual a burguesia dos diferentes países sacrificou 20 milhões de vidas.
Lembre-se da guerra imperialista! Eis a primeira palavra que a Internacional Comunista dirige a cada trabalhador, quaisquer que sejam sua origem e a língua que ele fala. Lembre-se que, pelo fato de existir o regime capitalista, um punhado de imperialistas teve, durante quatro longos anos, a possibilidade de forçar os trabalhadores a se matarem mutuamente! Lembre-se que a guerra burguesa jogou a Europa e o mundo inteiro na fome e na miséria! Lembre-se que sem a derrota do capitalismo a repetição dessas guerras criminosas não é apenas possível, mas inevitável!"
A fundação da IC exprimiu, acima de tudo, a necessidade de os revolucionários se unirem para defender o princípio do internacionalismo proletário. Um princípio básico do movimento operário que os revolucionários tinham de preservar e defender contra todas as probabilidades!
Para entender a importância da fundação da IC, devemos lembrar que esta 3ª Internacional está em continuidade histórica com a 1ª Internacional (AIT) e a 2ª Internacional (Internacional dos partidos socialdemocratas). É por isso que o Manifesto da IC diz o seguinte: "Nós comunistas, reunidos na Terceira Internacional, nos consideramos os continuadores diretos dos esforços e do heroico martírio de uma longa série de gerações revolucionárias, de Babeuf a Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo. A Primeira Internacional anunciou o futuro curso de eventos e indicou o caminho, a II reuniu e organizou milhões de trabalhadores, mas a III é a internacional da ação de massa aberta, a internacional da realização revolucionária, a internacional da ação".
Portanto, é claro que a IC não surgiu do nada. Seus princípios e programa revolucionário foram o resultado de todo acúmulo da história do movimento operário. E em particular da Liga dos Comunistas e da publicação do Manifesto escrito por K. Marx e F. Engels em 1848. Foi no Manifesto Comunista eles propuseram a famosa consigna do movimento operário: "Os proletários não têm pátria. Trabalhadores de todos os países, uni-vos".
Para compreender o significado histórico da fundação da IC, devemos lembrar que a Segunda Internacional morreu em 1914. Por quê? Porque os principais partidos da Segunda Internacional, os partidos socialistas, haviam traído o internacionalismo proletário. Os líderes desses partidos traidores votaram por créditos de guerra no Parlamento. Em cada país, eles chamavam os proletários para uma união sagrada com seus próprios exploradores. Eles foram chamados a matar uns aos outros em uma matança mundial em nome da defesa da pátria, enquanto o Manifesto Comunista afirma que “os proletários não têm pátria”.
Diante do vergonhoso desmoronamento da II Internacional, apenas alguns partidos socialdemocratas resistiram à tempestade, os partidos italiano, sérvio, búlgaro e russo. Em outros países, apenas uma pequena minoria de militantes, muitas vezes isolados, permaneceram fiel ao internacionalismo proletário. Denunciaram a sangrenta orgia da guerra tentando se agrupar. Na Europa, essa minoria de revolucionários internacionalistas formaram a esquerda, particularmente ao redor de Rosa Luxemburgo na Alemanha, Pannekoek e Gorter na Holanda e, claro, a facção bolchevique do partido russo ao redor de Lenin.
Dois anos antes da guerra, em 1912, foi realizado o Congresso da Basileia da Segunda Internacional. À medida que as ameaças de uma guerra mundial no coração da Europa se aproximavam, o Congresso da Basileia adotou uma resolução sobre a questão da guerra e da revolução proletária. Aquela resolução dizia: "Os governos burgueses não devem esquecer que a guerra franco-alemã (de 1870) deu origem à insurreição revolucionária da Comuna de Paris e que a guerra russo japonesa pôs em movimento as forças revolucionárias da Rússia. Para os proletários, é um crime matar-se uns aos outros em favor do lucro capitalista, da rivalidade dinástica e da multiplicidade dos tratados diplomáticos"
Foi também no seio da Segunda Internacional que os mais consistentes teóricos marxistas, especialmente Rosa Luxemburg e Lenin, foram capazes de analisar a mudança no período histórico da vida do capitalismo. Rosa Luxemburgo e Lênin demonstraram claramente que o modo de produção capitalista havia atingido o seu auge no início do século XX. Eles entenderam que a guerra imperialista na Europa só poderia ter um objetivo: a divisão do mundo entre as principais potências rivais na disputa pelas colônias. Lenin e Rosa Luxemburgo entenderam que a eclosão da Primeira Guerra Mundial marcou ruidosamente a entrada do capitalismo no seu período de decadência, de declínio histórico. Mas muito antes do início da guerra, a ala esquerda da Segunda Internacional teve que lutar duramente contra a direita, contra os reformistas, os centristas e os oportunistas. Esses futuros renegados teorizaram que o capitalismo ainda tinha um futuro brilhante pela frente e que, no final, o proletariado não precisaria fazer a revolução e derrubar o poder da burguesia.
Em setembro de 1915, por iniciativa dos bolcheviques, se celebrou na Suíça a "Conferência Internacional Socialista de Zimmerwald". Foi seguido por uma segunda conferência em abril de 1916 em Kienthal, também na Suíça. Apesar das difíceis condições de guerra e repressão, delegados de 11 países participaram (Alemanha, Itália, Rússia, França, etc.). Mas a maioria dos delegados eram pacifistas e se recusaram a romper com os socialistas chauvinistas que tinham ido para o campo da burguesia votando os créditos de guerra em 1914.
Havia então uma ala esquerda na conferência de Zimmerwald, reunida atrás dos delegados da facção bolchevique, Lênin e Zinoviev. Esta "esquerda de Zimmerwald" defendia a necessidade de romper com os traidores dos partidos socialdemocratas. Esta esquerda afirmou a necessidade de construir uma nova e Terceira Internacional. Contra os pacifistas, afirmou, nas palavras de Lênin, que "a luta pela paz sem ação revolucionária são palavras vans e falsas". A esquerda de Zimmerwald retomou a consigna de Lênin: "transformar a guerra imperialista em guerra civil!". Uma consigna que já tinha aparecido nas resoluções da II Internacional votadas no Congresso de Stuttgart em 1907 e especialmente no Congresso de Basileia em 1912.
A esquerda de Zimmerwald seria, assim, o "primeiro núcleo da Terceira Internacional em gestação" (como diria o companheiro de Lenin, Zinoviev, em março de 1918).
Os novos partidos que foram criados, em ruptura com a socialdemocracia, começaram a adotar o nome de "Partido Comunista". Foi a onda revolucionária aberta pela Revolução Russa de outubro de 1917 que deu um forte impulso aos militantes revolucionários para a fundação da IC. De fato, os revolucionários tinham compreendido que era absolutamente essencial e vital fundar um partido mundial do proletariado para a vitória da Revolução em escala mundial.
Por iniciativa do Partido Comunista (Bolchevique) da Rússia e do Partido Comunista da Alemanha (KPD, anteriormente a Liga Espártaco), o primeiro Congresso da Internacional foi convocado em Moscou em 2 de março de 1919.
A plataforma da IC foi baseada no programa dos dois principais partidos comunistas, o Partido Bolchevique e o Partido Comunista da Alemanha (fundado em 29 de dezembro de 1918).
Esta plataforma da IC começa afirmando claramente que "surgiu uma nova era. A era da decomposição do capitalismo, do seu desmoronamento interno A era da revolução comunista do proletariado". E, retomando o discurso sobre o programa de fundação do Partido Comunista Alemão, proferido por Rosa Lexemburg, a Internacional destacará claramente "o dilema que a humanidade enfrenta hoje: mergulhar na barbárie ou salvar-se através do socialismo". Em outras palavras, entramos na era das guerras e das revoluções. A única alternativa para a sociedade desde então era: revolução proletária mundial ou destruição da humanidade; socialismo ou barbárie. Esta posição é solidamente afirmada no primeiro ponto da Carta de Convite ao Primeiro Congresso de fundação da Internacional Comunista (escrito em janeiro de 1919 por Trotsky).
Para a Internacional, o ingresso do capitalismo em seu período de decadência significou que a luta revolucionária do proletariado tomava uma nova forma. Era o período durante o qual se desenvolve a greve de massa; o período em que os Conselhos Operários são a forma da ditadura do proletariado anunciada pelo surgimento dos sovietes na Rússia em 1905 e 1917.
Mas há uma contribuição fundamental da Internacional: ter compreendido que o proletariado deve destruir o Estado burguês para construir uma nova sociedade. A partir dessa questão (a necessária destruição do estado burguês), o primeiro congresso da Internacional adotou suas Teses sobre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado (redigidas por Lênin). As teses iniciam denunciando a falsa oposição entre democracia e ditadura "porque, em nenhum país capitalista civilizado, não há "democracia em geral", mas apenas uma democracia burguesa".
A Internacional afirmava assim que defender a democracia "pura" no capitalismo significa defender, na prática, a democracia burguesa, a forma por excelência da ditadura do capital.
Contra a ditadura do capital, a Internacional afirmou que só a ditadura do proletariado em escala mundial pode derrubar o capitalismo, abolir as classes sociais e oferecer um futuro à humanidade.
Portanto, o partido mundial do proletariado deve dar orientações claras às massas proletárias para que possam alcançar seu objetivo final. Devia defender em toda parte a consigna bolchevique de 1917: "Todo o poder para os sovietes". Esta era a "ditadura" do proletariado: o poder dos sovietes ou conselhos operários.
Há de se lamentar que a Internacional, fundada em março de 1919, tenha sido fundada com atraso, numa época em que a maioria das revoltas revolucionárias do proletariado na Europa haviam sido violentamente reprimidas. A IC foi fundada, de fato, dois meses após a sangrenta repressão do proletariado alemão em Berlim. O Partido Comunista da Alemanha tinha acabado de perder seus principais líderes, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, brutalmente assassinados pelo governo socialdemocrata durante a sangrenta semana de Berlim em janeiro de 1919. E foi assim que, na época de sua constituição, a Internacional havia sofrido sua primeira derrota. Com o sufocamento da revolução na Alemanha, essa derrota foi também e acima de tudo uma terrível derrota para o proletariado internacional.
Deve se reconhecer que os revolucionários da época estavam em uma situação de urgência quando fundaram a Internacional. A Revolução Russa estava completamente isolada, sufocada e sitiada por toda a burguesia de todos os países (para não mencionar os ataques contrarrevolucionários dos Exércitos Brancos na Rússia). Os revolucionários estavam aflitos. Foi necessário agir rapidamente para construir o partido mundial. Devido a esta situação de urgência, os principais partidos fundadores da Internacional, em particular o Partido Bolchevique e o KPD, não conseguiram esclarecer as suas diferenças e confusões. Essa falta de esclarecimento foi um fator importante no desenvolvimento do oportunismo na Internacional assim que o refluxo da maré revolucionária começou.
E mais tarde, então, por causa da gangrena do oportunismo, essa nova Internacional acabou morrendo por sua vez. Ela também sucumbiu à traição do princípio do internacionalismo pela ala direita dos partidos comunistas. Em particular, o principal partido da Internacional, o Partido Bolchevique, após a morte de Lênin, começou a defender a teoria da construção do socialismo num só país. E Stálin, depois de assumir a liderança do partido bolchevique, foi o organizador da repressão ao proletariado que havia feito a revolução na Rússia. Ele impôs uma feroz ditadura contra os antigos camaradas de Lenin, que lutaram contra a degeneração da Internacional e denunciaram o que pensavam era o retorno do capitalismo na Rússia.
Mais tarde, nos anos 1930, será em nome da defesa da "pátria soviética" com a qual os partidos comunistas de todos os países pisotearam a bandeira da Internacional, apelando aos proletários para que cortassem suas gargantas mutuamente, mais uma vez, nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial. Como a Segunda Internacional em 1914, a IC, faleceu, ela também vítima da gangrena do oportunismo e de um processo de degeneração.
Mas, como na Segunda Internacional, a IC também segregou uma minoria de esquerda entre os militantes que permaneceram fiéis ao internacionalismo e a consigna "Os proletários não têm pátria. Proletários de todos os países, uni-vos". Estas minorias de esquerda (Alemanha, França, Itália, Holanda ...) realizaram uma luta política dentro da Internacional durante o processo de degeneração para tentar salvá-la. Stálin acabou excluindo da Internacional os militantes da esquerda e acabou liquidando-os fisicamente (lembre-se dos julgamentos de Moscou, do assassinato de Trotsky por agentes da GPU e também dos gulags stalinistas).
Os revolucionários excluídos da Terceira Internacional também tentaram se agrupar, apesar de todas as dificuldades da guerra e repressão. Apesar de sua dispersão em diferentes países, essas pequenas minorias de internacionalistas militantes foram capazes de fazer um balanço da onda revolucionária de 1917-1923 para extrair dela as principais lições para o futuro.
Esses revolucionários que lutaram contra o stalinismo não pretendiam fundar uma nova internacional antes, durante ou depois da Segunda Guerra Mundial. Eles entenderam que era a "meia-noite no século": o proletariado havia sido fisicamente esmagado, alistado em massa sob as bandeiras nacionais do antifascismo e vítima da mais profunda contrarrevolução da história. A situação histórica não era mais favorável ao surgimento de uma nova onda revolucionária contra a Guerra Mundial.
No entanto, ao longo desse longo período de contrarrevolução, as minorias revolucionárias continuaram a manter uma atividade, muitas vezes clandestina, para preparar o futuro, mantendo a confiança na capacidade do proletariado de se levantar, levantar a cabeça e, um dia, derrubar o capitalismo.
Queremos lembrar que o CCI reivindica as contribuições da Internacional Comunista. Nossa organização também está ligada à continuidade política com as frações de esquerda excluídas da Internacional nas décadas de 1920 e 1930, em particular a Fração da Esquerda Comunista Italiana. Portanto, este centenário é uma oportunidade para saudar a inestimável contribuição da IC na história do movimento operário, mas também para aprender com essa experiência, a fim de armar o proletariado para suas futuras lutas revolucionárias.
Mais uma vez, devemos compreender plenamente a importância da fundação da Internacional Comunista como a primeira tentativa de constituir o partido mundial do proletariado. Acima de tudo, devemos sublinhar a importância da continuidade histórica, do fio comum que une os revolucionários de hoje com os do passado, com todos aqueles militantes que, por causa de sua fidelidade aos princípios do proletariado, foram perseguidos e selvagemente assassinados pela burguesia, especialmente por aqueles que tinham sido seus antigos companheiros e traíram: os Kautsky, Noske, Ebert, Scheidemann, Stalin. Também devemos prestar homenagem a todos esses militantes exemplares (Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht, Leo Jogishes, Trotsky e muitos outros) que pagaram com a vida a lealdade ao internacionalismo.
Para poder construir o futuro partido mundial do proletariado, sem o qual a derrubada do capitalismo será impossível, as minorias revolucionárias devem se reagrupar, hoje como no passado. Eles devem esclarecer suas diferenças pela confrontação das ideias e das posições, a reflexão coletiva e a discussão mais ampla possível. Eles devem ser capazes de aprender com o passado para entender a situação histórica atual e permitir que as novas gerações abram as portas para o futuro.
Confrontada com a decomposição da sociedade capitalista, com a barbárie da guerra, a exploração e crescente miséria do proletariado, hoje a alternativa continua sendo a que a Internacional Comunista claramente identificou há 100 anos: socialismo ou barbárie, revolução proletária mundial ou destruição da humanidade em um caos cada vez mais sangrento.
O que aconteceu no Chile pode ser deduzido da crise econômica internacional que se evidencia no déficit fiscal que o Estado chileno vem registrando há vários anos. Organizações multilaterais como o Banco Mundial, o FMI e a CEPAL apontam para uma redução gradual do crescimento nos últimos 3-4 anos. Apesar dos esforços para diversificar a economia, o Chile é essencialmente dependente do cobre e, como expressão do agravamento da crise, os preços caíram drasticamente. As medidas para aumentar as tarifas do metrô foram uma tentativa de responder à situação deficitária do Estado chileno. Em escala mundial, estão sendo dados os primeiros passos de uma grande turbulência econômica e, como em outros episódios da crise capitalista, os países mais fracos são os primeiros a serem afetados: Brasil, Turquia, Argentina, Equador e agora Chile.
A ideia de que o Chile é uma "exceção" na América do Sul por causa de sua situação econômica, do suposto "bem-estar" do proletariado etc., é negada pelas evidências. Piñera teve que engolir suas afirmações triunfalistas de que o Chile é "um oásis de paz e prosperidade na América do Sul".
O que está por detrás desta cortina de fumaça são os salários de 368 euros, a precariedade geral, o alto custo da alimentação e dos serviços, a precariedade na educação e na saúde, o sistema de pensões que condena os aposentados à pobreza. Uma realidade que mostra a crescente deterioração das condições de vida do proletariado e de toda a população.
O governo Piñera subestimou o grau de agitação social. Um ataque aparentemente pequeno, o aumento da tarifa do metrô em Santiago desencadeou a revolta geral. No entanto, a resposta não surgiu no terreno de classe do proletariado, mas em outro desfavorável e perigoso para ele: a revolta popular e até possivelmente favorecida pelo Estado, a violência minoritária e a do lúmpen.
Aproveitando dessa fragilidade na resposta social, o governo lançou uma brutal repressão que, segundo dados oficiais, causou 19 mortes. O estado de sítio foi decretado por mais de uma semana e a "ordem" foi confiada aos militares. A tortura reapareceu como nos piores dias de Pinochet, demonstrando que a democracia e a ditadura são duas formas do Estado capitalista.
A erupção do lúmpen com seu vandalismo, pilhagens, incêndios, violência irracional e minoritária, típica da decomposição capitalista[1], têm sido utilizados pelo Estado para justificar a repressão, colocar medo na população e intimidar o proletariado, desviando suas tentativas de luta para o terreno da violência niilista sem nenhuma perspectiva[2].
No entanto, a burguesia chilena entendeu que a brutalidade repressiva não foi suficiente para acalmar o descontentamento. Por isso, o governo de Piñera expressou a mea culpa, o presidente arrogante adotou uma postura "humilde", disse "entender" a "mensagem do povo", retirou "provisoriamente" as medidas e abriu as portas para a "concertação social". Vamos traduzir: os ataques serão impostos através da "negociação", através da "mesa de diálogo" onde os partidos da oposição, os sindicatos, os empregadores, todos juntos "representando a nação", tenham assento.
Por que esta mudança de cenário? Porque a repressão não é eficaz se não for acompanhada pela ilusão democrática, pela armadilha da unidade nacional e pela dissolução do proletariado na massa amorfa do "povo". O ataque econômico exigido pela crise necessita da ofensiva repressiva, mas sobretudo da ofensiva política.
O proletariado, embora passando por uma situação de grande debilidade no Chile e no mundo, continua sendo a ameaça histórica à exploração e à barbárie capitalista, portanto, o do Chile é um dos mais concentrados da América do Sul e com certa experiência política, já que, por exemplo, participou da tendência à greve em massa em 1907 (Iquique)[3][4] [273] e sofreu o terrível golpe da decepção de Allende (1970-73) que abriu caminho para a brutal ditadura de Pinochet (1973-90).
A ofensiva política da burguesia teve uma primeira etapa com as mobilizações sindicais pedindo uma "greve geral" mais de uma semana depois. Que cinismo! Quando o governo adotou o aumento do Metro, os sindicatos não pediram nada. Quando o governo enviou o exército para as ruas, eles foram cúmplices no silêncio. Quando as tropas do exército e os carabineiros intervieram, não mexeram um dedo. E agora chamam "mobilização".
Quando os trabalhadores precisam lutar, os sindicatos paralisam-os. Quando os trabalhadores se lançam na luta, os sindicatos os bloqueiam. E quando os trabalhadores já não têm forças ou estão desorientados, os sindicatos chamam-lhes "a luta". Os sindicatos agem sempre contra os trabalhadores. Tanto quando se opõem a uma greve espontânea como quando apelam à luta em momentos em que os trabalhadores estão debilitados, confusos ou divididos. Os sindicatos desmobilizam a mobilização do proletariado e se mobilizam para lograr a desmobilização do proletariado.
Os grupos esquerdistas de orientação trotskista, estalinista ou maoísta encabeçam a armadilha com sua proposta de "manter a greve geral até o fim", sua paródia de "auto-organização dos trabalhadores", onde em vez de assembleias e comitês eleitos e revogáveis há uma "coordenadoria" de sindicalistas e grupos esquerdistas. A sua "alternativa política" é expulsar o Piñera. Para quê, para o substituir por Bachelet que, nos seus dois mandatos, fez o mesmo ou pior? Para eleger uma "assembleia constituinte"? Com radicalismo de fachada, com apelos à "Classe Operária", os esquerdistas defendem o capitalismo porque aprisionam os proletários no terreno da democracia e nos métodos sindicais de "luta".
A segunda etapa da ofensiva foi a entrada em cena dos partidos da oposição (Nova Maioria, PC e Frente Ampla) que pediram "negociação" e "consenso" e saudaram como uma "vitória" as migalhas miseráveis que Piñera concedeu. Em conjunto com o governo e o exército[4], a burguesia chilena forneceu um marco político adequado para atacar ideologicamente o proletariado, dissolver qualquer tendência a agir como classe, ligá-lo à engrenagem da Nação, ligá-lo às ideologias inimigas, em particular à democracia. Grandes mobilizações foram organizadas no final de semana de 25-27 de Outubro com os seguintes eixos:
Denunciamos esta manobra política da burguesia que tem como quadro a democracia. A democracia é a forma mais perversa e distorcida de dominação capitalista. Em nome da democracia, foram perpetrados os piores massacres de trabalhadores. Para nos limitarmos ao caso do Chile, devemos lembrar que na greve massiva de Iquique em 1907, 200 trabalhadores foram mortos apenas no massacre da Escola Santa Maria. Em maio-junho de 1972, os mineiros se mobilizaram novamente: 20 000 entraram em greve nas minas de El Teniente e Chuquicamata. O "campeão da democracia", Salvador Allende, reprimiu brutalmente as lutas dos mineiros contra o aumento das taxas e a queda dos salários. "Em maio-junho de 1972, os mineiros se mobilizaram novamente: 20 000 pessoas entraram em greve nas minas El Teniente e Chuquicamata. Os mineiros de El Teniente exigiram um aumento salarial de 40%. Allende colocou as províncias de O'Higgins e Santiago sob controle militar, pois a paralisação de El Teniente "ameaçava seriamente a economia". Os executivos "marxistas" da União Popular expulsaram os trabalhadores e colocaram fura-greves em seu lugar. Quinhentos carabineiros atacaram os trabalhadores com gás lacrimogéneo e jatos de água. Quatro mil mineiros marcharam até Santiago para se manifestarem em 11 de junho, a polícia atirou neles sem hesitação. O governo tratou os mineiros como "agentes do fascismo". O PC organizou desfiles em Santiago contra os mineiros, convocando o governo a mostrar firmeza"[5]. [274]
Todas as frações da burguesia e especialmente a esquerda cerraram fileiras em defesa do Estado capitalista "democrático". "Em novembro de 1970, Fidel Castro veio ao Chile para reforçar as medidas anti-proletárias de Allende. Castro reprovou os mineiros, tratando-os como agitadores e "demagogos". Na mina de Chuquicamata, declarou que "cem toneladas a menos por dia significa uma perda de $36 milhões por ano" (Ibid.).
Allende enviou o exército para reprimir os trabalhadores, mas pior ainda, em um comício em frente ao Palácio La Moneda em junho de 1972, pediu que Pinochet fosse aplaudido como "um militar leal à Constituição".
O restabelecimento da democracia desde 1990 não melhorou as condições de vida no trabalho. Os diferentes presidentes (de Alwyn a Bachelet, passando por Lagos e pelo primeiro mandato de Piñera) preservaram e reforçaram a política econômica promovida pela Escola de Chicago imposta pela ditadura de Pinochet. Não tocaram em nada o sistema previdenciário que condena a aposentadoria abaixo do salário mínimo e obriga o trabalho precário até a idade de 75 anos ou mais. Um sistema que nega qualquer pensão futura aos muitos jovens condenados ao trabalho precário. O Chile é hoje um dos países mais desiguais do mundo e a desigualdade foi agravada pela democracia: "Quando recuperamos a democracia, o governo militar, que também tinha sido ruim na economia, deixou uma taxa de pobreza de 4,7%. Hoje, o nosso PIB mais do que duplicou, somos várias vezes mais ricos do que então. Mas a porcentagem de pobres sobe para 35%"[6]
A esquerda, atuando como porta-voz privilegiada da burguesia, nos chama a apoiar a democracia e ver a ditadura como o mal supremo: ela teria o monopólio da repressão e saquearia os trabalhadores, seu lema é "Ditadura não, democracia parlamentar sim". Tudo isso fere mortalmente a classe operária, porque a faz acreditar que "são livres", que "podem escolher", que com o voto "teriam poder" e, sobretudo, atomiza e individualiza os trabalhadores, tenta apagar a solidariedade e a unidade neles, confundindo-os em uma engrenagem de competição, de "ver quem pode fazer mais", de "tomar sua roupa para me vestir".
Os trabalhadores e suas minorias mais conscientes devem rejeitar essa armadilha da burguesia e preparar metodicamente o terreno para a emergência de verdadeiras lutas operárias. Esta perspectiva está ainda muito distante e não surgirá de uma soma de processos em cada país, mas de uma dinâmica internacional na qual será fundamental o papel das grandes concentrações de trabalhadores na Europa Ocidental[7].
A classe operária no Chile e em todo o mundo deve reapropriar-se dos métodos autênticos de luta operária que demonstraram em numerosas lutas ao longo da história (maio de 68 na França, Polônia 1980, o movimento anti-CPE na França 2006, o movimento de indignação na Espanha 2011). São métodos de luta e organização radicalmente opostos aos do sindicalismo:
Há que tirar conclusões claras:
Sabemos que esta perspectiva de luta vai custar muito caro. Muitas lutas, muitas derrotas, muitas lições dolorosas serão necessárias. No entanto, temos as lições dos três Séculos de utas operárias que, elaboradas pela teoria marxista, nos dão os meios teóricos, organizacionais e políticos para contribuir para o combate. O órgão que defende esta continuidade histórica do proletariado é a organização comunista internacional. Seus princípios programáticos, políticos, organizacionais e morais são a síntese global crítica dessa experiência histórica mundial de 3 séculos de luta de classes. Construir a organização, defendê-la, fortalecê-la, é a melhor contribuição para o combate do proletariado, hoje contra a corrente de toda a campanha da União Nacional em torno da Democracia e amanhã a favor do renascimento da luta de classes do proletariado.
Corrente Comunista Internacional 01-11-19
[1] Ver nossas Teses sobre Decomposição - La descomposicion, fase ultima de la decadencia del capitalismo [130]
[2] O proletariado precisa da violência, da sua violência de classe, mas esta não tem nada a ver e é antagônica ao terror da burguesia, ao terrorismo da pequena burguesia e ao vandalismo selvagem do lumpen. Ver Terror, Terrorismo e violência de Classe, Terror, terrorismo y violencia de clase [275]
[3] Ver O movimento operário no Chile no início do século XX - El movimiento obrero en Chile a principios del siglo XX [276]
[4] O chefe da Defesa Nacional, o militar Iturriaga del Campo, negou ao chefe de estado, que tinha dito que estava "em guerra", afirmando que "sou um homem feliz, a verdade é que não estou em guerra com ninguém".
[5] Ver, há trinta anos, a queda de Allende: ditadura e democracia são as duas faces da barbárie capitalista. Hace 30 años, la caída de Allende: dictadura y democracia son las 2 caras de la barbarie capitalista [269].
[6] Ver o artigo em espanhol Crisis en Chile: es la desigualdad, estúpido [277]
Publicamos abaixo o panfleto que, desde 13 de janeiro, nossa organização está divulgando nas manifestações que estão ocorrendo na França contra os ataques do governo Macron aos trabalhadores, particularmente a reforma das aposentadorias.
Esta é de fato o terceiro panfleto que produzimos, que está em continuidade com os que divulgamos anteriormente no início de dezembro - "Unamos as nossas lutas contra os ataques dos nossos exploradores" - e pelas manifestações do dia 15 do mesmo mês - "Solidariedade na luta de todos os trabalhadores, de todas as gerações". Este último panfleto também é publicado na última edição (mês de janeiro) de nosso jornal - Révolution Internationale, órgão da CCI ne França – dedicado em grande parte a analisar o significado desses movimentos sociais.
Este esforço de intervenção da nossa organização responde, em primeiro lugar, à própria importância que damos a este movimento de luta que, como analisamos, representa o ressurgimento da combatividade do proletariado num país extremamente importante para a luta de classes como é a França. Além disso, estes movimentos têm demonstrado a existência de uma imensa solidariedade nas fileiras da classe trabalhadora. Esta solidariedade tem promovido significativamente um sentimento de dignidade no proletariado e na sua luta contra a exploração capitalista.
Mas também este esforço de intervenção da CCI é, pensamos nós, uma amostra da responsabilidade inerente às organizações revolucionárias da classe trabalhadora, para ajudar a compreender cada momento dessa luta em função da perspectiva revolucionária de todo o movimento operário. Não se trata, naturalmente, de uma análise "de fora", mas como parte integrante presente no próprio movimento de luta, apontando os aspectos nos quais a classe deve se apoiar para ganhar unidade e consciência (solidariedade intergerações, fazer da rua um lugar de confluência e fraternidade, etc.); e também as dificuldades que nos enfraquecem (como, por exemplo, o fato de deixar a organização da luta nas mãos dos sindicatos, a ausência de assembleias, etc.).
Através destes panfletos e da nossa intervenção em geral, procuramos catalisar o movimento de reflexão que se traduziu, por exemplo, nos trabalhadores que tentaram ficar no final das caminhadas para discutir, para tentar compreender como continuar a luta, como ganhar unidade e determinação para as lutas futuras. Deve também servir para garantir que, após o previsível refluxo da combatividade que se manifestou nas manifestações de dezembro e janeiro, esse esforço de reflexão e discussão persista em comitês de luta para que se possam tirar lições para as lutas que virão.
Como sempre, certamente encorajamos todos os leitores que se interessem em discutir ou disseminar estas folhas em seu redor a fazê-lo.
° ° °
Depois de anos de inércia, o movimento social contra a reforma das aposentadorias[1] mostra um despertar da combatividade do proletariado na França. Apesar de todas as suas dificuldades, a classe trabalhadora começou a erguer a cabeça. Diferente de um ano atrás onde todo o terreno social era ocupado pelo movimento interclassista dos Coletes Amarelos, hoje os explorados de todos os setores e gerações aproveitaram os dias de ação organizados pelos sindicatos para tomar as ruas, determinados a lutar em seu próprio terreno de classe contra esse ataque frontal e maciço do governo a todos os explorados.
Durante aproximadamente dez anos os funcionários dos setores público e privado permaneceram paralisados, totalmente isolados no seu próprio setor de trabalho, nas últimas semanas conseguiram encontrar o caminho de volta, o caminho da luta coletiva.
As aspirações de unidade e solidariedade na luta mostram que os trabalhadores na França começam a reconhecer-se novamente como parte de uma mesma classe com os mesmos interesses a defender. Assim, em várias caminhadas, especialmente em Marselha, podia-se ouvir: "A classe trabalhadora existe!" Em Paris, grupos de manifestantes que não estavam marchando atrás das faixas sindicais estavam cantando "Estamos aqui, estamos aqui pela honra dos trabalhadores e por um mundo melhor". Na manifestação de 9 de janeiro, mesmo os espectadores que caminhavam pelas calçadas à margem do desfile sindical cantaram a velha canção do movimento operário: "A internacional", enquanto estudantes do ensino médio e superior cantavam, atrás de suas próprias faixas: "Os jovens em precariedade, os velhos na miséria!"
É evidente que, ao se recusar a manter-se curvada e abatida, a classe trabalhadora na França está recuperando a sua dignidade.
Outro elemento, muito significativo de uma mudança na situação social, foi a atitude e o estado de espírito dos " usuários" na greve dos transportes. Pela primeira vez desde o movimento de dezembro de 1995 uma greve dos transportes não se torna "impopular", apesar de todas as campanhas midiáticas orquestradas pelos meios de comunicação social a propósito da grande dificuldade dos usuários para ir trabalhar, ir para casa ou ir de férias durante folgas de Natal. Em nenhum lugar, exceto na mídia chapa branca e, foi possível ouvir que os trabalhadores ferroviários da SNCF (empresa de transportes por trem) ou da RATP (empresa de transporte por metrô) estavam fazendo os usuários "reféns". Nas plataformas ou nos trens apinhados e no RER (tipo de trem), as pessoas esperavam pacientemente. Para circular pela capital, as pessoas conseguiram se virar sem queixar-se dos ferroviários em greve..., em carona solidária e compartilhada, bicicletas, lambretas... Mas, mais do que isso, o apoio e a estima pelos trabalhadores ferroviários assumiu a forma de numerosas doações aos fundos de solidariedade para os grevistas, que fizeram o sacrifício de mais de um mês de salário (mais de três milhões de euros foram arrecadados em poucas semanas!), lutando não só por si mesmos, mas também pelos outros.
No entanto, após um mês e meio de greve, após manifestações semanais que reuniram centenas de milhares de pessoas, este movimento não conseguiu que o governo desistisse.
Desde o início, a burguesia, o seu governo e os seus "parceiros sociais" tinham orquestrado uma estratégia para estes aprovarem o ataque às pensões. À reforma inicial foi acrescida por uma nova medida segundo qual, embora a idade mínima de se aposentar (62 anos) não mudaria, a idade (chamada idade "eixo") em que se receberia uma pensão completa seria os 64 anos. Na realidade, essa nova medida era uma carta que eles tinham mantido na manga para sabotar a riposta da classe operária (pois todos os sindicatos eram contra essa medida enquanto uma parte deles eram a favor da reforma) e aprovar a "reforma" através da estratégia clássica de dividir a "frente sindical" após de ter retirado a questão da idade "eixo".
Além disso, a burguesia blinda o seu estado policial em nome da manutenção da "ordem republicana". O governo alucinadamente mobiliza as suas forças repressivas para nos intimidar. Os polícias continuam a atirar gás e a bater cegamente nos trabalhadores (incluindo mulheres e aposentados) apoiados pelas mídias, que misturam a classe explorada, os "black blocs"[2] e outros "quebradores". Para evitar que os trabalhadores se reúnam no final das manifestações para discutir, os coortes de CRS[3] os dispersam, sob as ordens da Prefeitura, com granadas "dispersantes"[4]. A violência policial não é de forma alguma o resultado de simples "erros" individuais de alguns CRS excitados e incontroláveis. Eles anunciam a repressão implacável e feroz que a classe dominante não hesitará em desencadear contra os proletários no futuro (como fez no passado, por exemplo, durante a "semana sangrenta" da Comuna de Paris em 1871).
Para poder enfrentar a classe dominante e fazer o governo recuar, os trabalhadores devem tomar sua luta em suas próprias mãos. Não devem confiá-lo aos sindicatos, a estes "parceiros sociais" que sempre negociaram nas suas costas e no segredo dos gabinetes ministeriais.
Se continuarmos a pedir aos sindicatos que nos "representem", se continuarmos a esperar que eles organizem a luta por nós, então sim, estamos "fodidos"!
Para poder tomar em mãos a nossa luta, para ampliá-la e unificá-la, devemos, nós mesmos, organizar assembleias gerais maciças, soberanas e abertas a toda a classe trabalhadora. É nestas assembleias gerais que podemos discutir juntos, decidir coletivamente sobre as ações a serem tomadas, formar comitês de greve com delegados eleitos que podem ser destituídos a qualquer momento.
Os jovens trabalhadores que participaram do movimento contra o "Contrato de Primeiro Emprego" na primavera de 2006, quando ainda eram estudantes dos ginásios ou do ensino superior, devem se recordar e transmitir essa experiência aos seus colegas de trabalho, jovens e idosos. Como conseguiram fazer o governo Villepin recuar, forçando-o a retirar o seu "CPE"(Contrato do Primeiro Emprego)? Graças à sua capacidade de organizarem eles próprios a sua luta nas suas assembleias gerais maciças em todas as universidades, e sem qualquer sindicato. Estas assembleias gerais não eram fechadas. Pelo contrário: os estudantes tinham convocado todos os trabalhadores, ativos e aposentados, para virem discutir com eles em suas AG e participarem do movimento em solidariedade com as jovens gerações que enfrentam o desemprego e a precariedade. O governo Villepin teve de retirar o CPE sem qualquer "negociação". Estudantes, jovens trabalhadores precários e futuros desempregados não foram representados por "parceiros sociais" e ganharam.
Os trabalhadores ferroviários que lideraram esta mobilização não podem continuar sua greve sozinhos sem que os outros setores se engajem na luta com eles mesmos. Apesar da sua coragem e determinação, eles não podem lutar "no lugar" de toda a classe trabalhadora. Não é a "greve por procuração" que pode fazer o governo recuar, por mais determinado que seja.
Hoje, a classe trabalhadora ainda não está pronta para se engajar maciçamente na luta. Ainda que muitos trabalhadores de todos os setores, de todas as categorias profissionais (principalmente dos funcionários públicos), de todas as gerações estiveram presentes para protestar nas manifestações organizadas pelos sindicatos desde 5 de dezembro. O que precisamos para conter os ataques da burguesia é desenvolver uma solidariedade ativa na luta e não apenas alimentando os fundos de solidariedade para permitir que os grevistas continuem a luta.
A retomada do trabalho já iniciados no sector dos transportes (especialmente na SNCF) não é uma capitulação! Fazer uma "pausa" na luta é também uma forma de não se esgotar num ataque longo e isolado, que só pode levar a um sentimento de impotência e amargura.
A grande maioria dos trabalhadores mobilizados sente que se perdermos essa batalha, se não conseguirmos forçar o governo a retirar sua reforma, estamos "fodidos". Isto não é verdade! A mobilização atual e a rejeição massiva deste ataque são apenas o começo, uma primeira batalha que anuncia outras para o amanhã. Pois a burguesia, o seu governo e os seus empregadores continuarão a explorar-nos, a atacar o nosso poder de compra, a mergulhar-nos na pobreza e na miséria crescentes. A raiva só pode crescer até levar a novas explosões, novos movimentos de luta.
Mesmo que a classe trabalhadora tenha perdido aquela primeira batalha, não perdeu a guerra. Não deve ceder à desmoralização!
A "guerra de classes" é feita de avanços e recuos, momentos de mobilização e pausas para que possa recomeçar ainda mais forte. Nunca é em uma luta em linha reta que se ganha imediatamente na primeira tentativa. Toda a história do movimento operário tem mostrado que a luta da classe explorada contra a burguesia só pode levar à vitória depois de uma série de derrotas.
A única maneira de fortalecer a luta é aproveitar os períodos de recuo em boa ordem para refletir e discutir juntos, reunindo-se em todos os lugares, em nossos locais de trabalho, em nossos bairros e em todos os lugares públicos.
Os trabalhadores mais combativos e determinados, sejam ativos ou desempregados, aposentados ou estudantes, devem tentar formar "comités de luta" interprofissionais abertos a todas as gerações para se prepararem para as lutas futuras. Será necessário aprender as lições deste movimento, para compreender quais foram as suas dificuldades, de modo a poder superá-las nas próximas lutas.
Este movimento social, apesar de todas as suas limitações, fraquezas e dificuldades, é já uma primeira vitória. Após anos de paralisia, desordem e atomização, permitiu que centenas de milhares de trabalhadores saíssem às ruas para expressar a sua vontade de lutar contra os ataques do Capital. Esta mobilização permitiu-lhes expressar a sua necessidade de solidariedade e unidade. Também lhes permitiu experimentar as manobras da burguesia para fazer com este ataque passe.
Só através de luta e em luta é que o proletariado poderá perceber que é a única força na sociedade capaz de abolir a exploração capitalista para construir um novo mundo. O caminho para a revolução proletária mundial, para a derrubada do capitalismo, será longo e difícil. Será cheio de armadilhas e derrotas, mas não há outra maneira.
Mais do que nunca, o futuro pertence à classe trabalhadora!
Corrente Comunista Internacional, 13 de janeiro de 2020
[1] Para passar para um regime por pontos que vai implicar uma deterioração muito importantes das condições de vida dos futuros aposentados.
[2] Grupos muito violentos que, nas manifestações, costumam quebrar tudo que simboliza a riqueza dos exploradores.
[3] Companhia Republicana de Segurança
[4] Para remover os manifestantes que cercam policiais
Nas últimas semanas, assistimos um novo exemplo de cobertura midiática capitalista de uma catástrofe ambiental relacionada com os incêndios na Amazônia: bombardeio de imagens e estatísticas, longa aparição midiática dos líderes mundiais, proliferação de chamamentos abstratos para "fazer alguma coisa"... ; e ao mesmo tempo uma verdadeira cortina de fumaça - infelizmente, não se poderia dizer melhor - para mascarar as suas verdadeiras causas: - é o sistema capitalista como tal que é responsável por tal catástrofe, como o fato de que a única saída é a libertação da humanidade e do planeta deste sistema cada vez mais incompatível com a vida, com qualquer forma de vida.
Por mais sincera que seja a indignação provocada pela extinção dos recursos do planeta, por mais lógica que seja a preocupação com o futuro da natureza - que inclui a própria espécie humana -, o que devemos afirmar categoricamente é que sem nos concentrarmos na verdadeira origem do crescente desastre ambiental, sem dirigir nossa luta para suprimir o jugo capitalista que pesa sobre o planeta, sem estabelecer uma nova organização social, uma comunidade humana livre das leis da exploração e da mercadoria, esses desejos, ainda que justos, desaparecerão como cinzas.
Nesta campanha, os incêndios amazônicos foram apresentados como algo circunstancial. Na sua versão mais crua - a de Bolsonaro e também, recorde-se, a do próprio Evo Morales - os fogos são apresentados como uma fatalidade e algo "tradicional". Na versão mais "sofisticada" dessa campanha, os incêndios são explicados como como produto de manobras e dos interesses obscuros dos lobies agrícolas e pecuários dos lobistas agrícolas e pecuários.
Tudo isso é rigorosamente verdade, mas completamente parcial. E não há pior mentira do que meia verdade. Na realidade, o capitalismo de hoje é um sistema que queima as florestas. Só em 2018, desapareceram da face da terra 12 milhões de hectares de árvores de copa, dos quais 3,6 milhões eram florestas tropicais úmidas. O sistema tradicional de "queima" da floresta para obter terras para cultivos de subsistência e autoconsumo das comunidades rurais, deu lugar ao desmatamento e aos incêndios em escala industrial, como vimos em 2015 nas selvas de Bornéu e Sumatra para generalizar as plantações de palmeiras com as quais obter seu óleo para biodiesel. Vemos o mesmo hoje no Brasil e em toda a América do Sul para facilitar a penetração das operações de mineração e exploração madeireira, para obter pastagens com as quais alimentar uma pecuária extensiva a baixo custo e para uma produção massiva de soja e palma, essencialmente para exportação para explorações pecuárias na Europa e na América do Norte ou para a produção de biocombustíveis.
Os líderes europeus ou americanos que derramam lágrimas de crocodilo quando veem a queima da Amazônia defendem a competitividade da sua própria indústria alimentar. É por isso que o "compassivo" Macron (a quem voltaremos mais tarde) pôde ameaçar pôr fim aos acordos UE-Mercosul, que incluem, naturalmente, a importação de soja, milho e algodão do Brasil, ao menor custo possível.
A prova de que não é circunstancial nem característico" do estilo populista de Bolsonaro é que esta política de desmatamento brutal também foi praticada sob os governos de Lula, Rousseff e Temer, e está sendo seguida no Paraguai, Peru e pelo "revolucionário bolivariano" Morales, que não vai cessar suas invocações à "pachamama" (a Mãe Natureza)[1], nem se disfarçar de índio aymara, mas a verdade é que ele também diminuiu os controles ambientais e perdoou multas às empresas desmatadoras. Como resultado, até este ano, desapareceram na Bolívia 400 mil hectares de árvores em áreas como Chiquitanía (20 mil incêndios) e Pantanal.
O regime do Maduro também não deve ser menosprezado. A destruição da Amazônia venezuelana resultou no chamado "Arco Mineiro", com o qual esta vasta região é explorada sem controle não só pela negligência do Estado, mas também promove a extração de ouro e outros minerais que são depois vendidos principalmente à Turquia, permitindo aos líderes civis e militares do Chavismo manter uma certa renda no poder. Desde o tempo de Chávez, este arco mineiro está sob o controle de uma camarilha militar. Os guerrilheiros do ELN colombiano também atuam neste campo da exploração de recursos mineiros, com o qual a dupla Chavez-Maduro tem na prática concedido o controle de grandes segmentos desta área a verdadeiras máfias controladas por soldados e civis que ocupam altos cargos em seu governo e que também se beneficiam da exploração ilegal (cujas atividades cobrem um território muito maior do que no Brasil, no Equador e no Peru), que opera minas de ouro, diamantes e coltan[2] que causaram destruição real de plantas e alta poluição dos rios.
E o mesmo está a acontecer em África (em Angola, governada pelo MPLA, já ocorreram 130 mil incêndios este ano, quase o dobro do que no Brasil). O mesmo no Alasca e na zona árctica. Ou na própria Sibéria, onde Putin também tomou medidas para permitir que as florestas ardessem a menos que, do ponto de vista da rentabilidade econômica, fizesse sentido extingui-las. Consequentemente, 1,3 milhões de hectares queimaram em um ano e cidades como Novosibirsk ou Krasnoiarsk viram nuvens de fumaça levando milhares de pessoas a emergências hospitalares. Antes de Putin decidir que já não era rentável deixar arder a floresta, o custo dos incêndios na Sibéria ascendia a 100 milhões de euros, cinco vezes o montante da ajuda da UE ao Governo brasileiro para limitar os incêndios na Amazônia!
O que acontece com esta maré de incêndios é que, em última análise, é também facilitada pelo aquecimento global do planeta. Nem é este um fator que é de todo "natural", nem o resultado de um domínio da "espécie errada" como afirmam os "anti-espécies"[3]. É o resultado de uma forma de organização social dessa espécie que coloca o benefício de uma minoria social acima da sobrevivência da humanidade como um todo.
Portanto, a onda de fogo que hoje abala o planeta é, como dizemos, consequência e agravante desde o desastre ambiental. A fumaça dos incêndios já é responsável por 30% das emissões de gases responsáveis pelo conhecido "efeito estufa" - a indústria agroalimentar é hoje mais poluente que as empresas petrolíferas. E quem sofre em primeiro lugar e acima de tudo com as consequências desta degradação ambiental já não é a biodiversidade, mas a própria espécie humana. E dentro delas não só um punhado de comunidades indígenas nas selvas, mas sobretudo as massas de trabalhadores e a população empobrecida que se aglomeram nas grandes cidades. A poluição do ar (como a que ocorreu viu na Sibéria ou a que causou o escurecimento do céu em São Paulo às 15 horas da tarde, após os incêndios) é uma das principais causas de mortes prematuras. Um estudo recente da ONU estima que 8,8 milhões de pessoas por ano são vítimas dessa poluição, e essa taxa é comparativamente maior nos países mais "desenvolvidos". É um círculo vicioso maldito: o aquecimento favorece os incêndios, facilitando desmatamento, que por sua vez permite a propagação dos incêndios, liberando mais carbono, o que aumenta o aquecimento, numa espiral infernal.
Para cortar o nó górdio desta desta espiral é preciso pôr fim ao capitalismo, em todas as suas variantes, em todas as suas formas, em todo o mundo.
Para os exploradores é uma questão de negar que é o sistema que mantém seus privilégios que ameaça a sobrevivência da humanidade. Como a Internacional Comunista denunciou em 1919, se os líderes mundiais realmente quisessem descobrir quem foi o responsável pela carnificina da Primeira Guerra Mundial, eles só tinham que se olhar no espelho. Pelo contrário, eles se dedicaram a atribuir a culpa desta ou daquela expressão de sua barbárie (o militarismo prussiano ou a barbárie eslava, segundo o lado), a fim de esconder o fato de que a guerra imperialista é o resultado da evolução do capitalismo. Vimos também os estragos de uma crise que levou à miséria de bilhões de seres humanos e acentuou a competição entre capitais nacionais para se manterem à tona no mercado mundial, ainda que para isso tenham que atacar mais os recursos naturais (seja a China ou o Brasil[4]). Também foram responsabilizados por um punhado de capitalistas gananciosos (Lehman Brothers ou Merkel) que colocam seu egoísmo acima das necessidades da humanidade, quando a realidade é que a causa das crises são as contradições inerentes ao sistema capitalista, e que quanto mais tempo sobreviver, mais duros e devastadores serão os episódios de recessão e suas supostas "recuperações". E agora vemos a mesma coisa em termos da crise ambiental. A "mídia", os governantes "responsáveis" apontam o dedo para um punhado de "irresponsáveis", "lunáticos" ou "populistas" por causar as catástrofes que estão devastando o planeta. Tão gordo é o dedo acusador de alguns que vale a pena parar para examinar o seu comportamento para perceber o tamanho real do seu cinismo.
Tomemos por exemplo Evo Morales que, como já dissemos, pratica as mesmas medidas que Bolsonaro, exceto que em vez de ser fotografado com os grandes latifundiários, correu para tirar sua foto com uma mangueira, como se quisesse apagar o fogo, o muito hipócrita. Tomemos o exemplo do representante desta nova forma de governar "pelo povo", Andrés Manuel López Obrador (AMLO), com um discurso nos antípodas ideológicos de Bolsonaro, mas que em defesa da competitividade do capital nacional mexicano se prepara para realizar novos ataques sociais e "ecológicos" (como o Trem Maia que degrada a chamada Amazônia Mesoamericana, ou a refinaria de Dos Bocas, ambas inscritas no plano pomposamente denominado a Quarta Transformação). Levar o caso de Macron, levantado na recente cimeira de Biarritz, ao porta-estandarte do capitalismo "amigo do ambiente", mas que não hesitou em responder com repressão brutal aos protestos contra a construção de um aeroporto em Notre-Dame-des-Landes (na região dos Pays de la Loire) em 2018. Recorde-se que a França é um país amazônico (Guiana), é de facto o detentor da única floresta tropical "propriedade" europeia. E qual é a sua política? Facilitar o estabelecimento de operações mineiras de multinacionais francesas, russas, holandesas e canadenses (do Betide Trudeau!) para a exploração selvagem da chamada Golden Mountain, que provocará enormes custos energéticos (mais do que toda a capital da Guiana Francesa) e enormes quantidades - 300 milhões de toneladas - de resíduos tóxicos (arsênio, cianeto, etc.).
Não podemos escolher entre, por um lado, os métodos brutais e a linguagem grosseira de um Bolsonaro, um Trump ou os negadores da mudança climática que descrevem isso como uma "trama marxista" para impedir o desenvolvimento econômico do país; e, por outro lado, o cinismo dos governantes que se dizem preocupados com o aquecimento e o clima, que são fotografados sorrindo com as novas "estrelas" do movimento ambientalista que culpam uma parte da humanidade (os mais velhos, os ocidentais) pelo desastre ambiental, mas que estão dispostos a nos esmagar quando lutamos contra os próprios fundamentos do sistema que o provoca. Ambos acabam por provocar sufocamento de desgosto e angústia para o futuro.
Aqueles que querem que vejamos pessoas como Bolsonaro como as únicas responsáveis por catástrofes como os incêndios na Amazônia, os acusam de dar prioridade a benefícios particulares sobre qualquer outra consideração humanitária ou ambiental. Mas essa é a lógica básica do sistema capitalista. É a mesma lógica criminosa que subjaz a tantos outros crimes como guerras, miséria ou milhares de mortes nos naufrágios de migrantes no Mediterrâneo, por exemplo. Estão tentando nos fazer engolir uma mentira envenenada: seria possível ter um sistema onde, por exemplo, a Amazônia não seria mais considerada como um negócio, mas como uma "reserva ambiental" do planeta, enquanto ainda estaria baseada na exploração por uma minoria de uma grande maioria e na divisão da humanidade em classes, cuja força motriz é a transformação dos recursos naturais e dos seres humanos em mercadorias para acumular capital e que ficaria dividida por uma concorrência morta entre as nações até a guerra. Afirmar isto é mostrar cumplicidade fechando os olhos ou o cinismo criminoso.
É verdade que o desastre ambiental é grande demais para ficar à mercê das “nações soberanas”, que todo o planeta deve deixar de ser prisioneiro da ditadura das leis de lucro e acumulação que caracterizam o capitalismo, que a natureza deve ser emancipada de sua condição de mercadoria. Mas isso só pode ser feito libertando a humanidade e o planeta do capitalismo. E isso só é possível através do estabelecimento de uma nova ordem em todo o planeta: o comunismo resultante da revolução internacional da classe operária.
Como assinalamos no panfleto que estamos distribuindo nas mobilizações pelo planeta que estão ocorrendo nessas semanas: "A saída de um sistema que não pode existir sem a exploração de uma classe por outra só pode acontecer relançando a luta de classes, começando pela defesa dos interesses mais elementares do proletariado, contra os ataques às suas condições de vida e trabalho que todos os governos e todos os patrões descarregam contra eles em resposta à crise econômica. Ataques que são cada vez mais executados invocando a defesa do meio ambiente. Essa é a única maneira de a classe trabalhadora desenvolver o sentido de sua própria existência, contrariando todas as mentiras que querem que acreditemos que se trata de uma "espécie extinta" E é a única maneira de a luta de classes fundir as dimensões econômica e política, estabelecendo o vínculo entre a crise econômica, a guerra e as catástrofes ecológicas, e reconhecendo que só uma revolução proletária pode superá-las.
Valerio em 30 de agosto de 2019.
[1] A Mãe Terra como Mãe Terra nutritiva segundo a cosmogonia andina, que é objeto de um culto ritual tradicional.
[2] Minério estrategicamente muito cobiçado formado por dois minerais (colombite e tantalita), extraído pela sua elevada resistência à corrosão e utilizado, nomeadamente, na fabricação de componentes eletrônicos (telefonia móvel), mas também na aeronáutica e, em especial, no fabrico de reatores. (Nota do tradutor)
[3] Essa corrente política define a espécie humana - sem distinção entre as classes sociais em que está dividida e a evolução dos diferentes modos de produção por que passou a humanidade - como a causa da destruição da Natureza.
[4] A recente evolução do desmatamento na Amazônia segue um curso paralelo à degradação da posição do capital brasileiro no mercado mundial. Se ele foi contido entre 2004 e 2012, foi em parte porque o Brasil sonhou naquele momento em se tornar uma espécie de novo "dragão" da economia mundial (lembre-se quando os BRICs foram falados como um oásis diante da recessão, sendo o Brasil o B!). Esse sonho desapareceu e, a partir de 2014, o Brasil, mesmo com Dilma Rousseff no governo, debaixo da terra e redirecionado para a economia extrativista, em especial a pecuária e a soja. Como resultado, o desmatamento e os incêndios voltaram a aumentar.
Crise econômica, perspectiva de agravamento da repressão, acentuação da pobreza, aumento do medo e da insegurança, ataques contra o proletariado em previsão, ameaças de guerra, risco de caos ligado à própria personalidade do novo presidente, Bolsonaro, que tomou posse em 1º de janeiro de 2019.
Além da pessoa de Bolsonaro, que por si só simboliza o que o período em que vivemos pode produzir de mais sinistro e repugnante, há uma lei que podemos ter certeza que ainda será cumprida: qualquer que seja o rótulo político do novo presidente e seus ministros, qualquer que seja sua personalidade, ele não deixará de fazer os explorados pagar, ainda mais que seus antecessores, pela crise do capitalismo que só está se aprofundando.
Diante de todos esses perigos, só a classe operária, através de suas lutas de resistência, é capaz de se opor à lógica de morte do capitalismo e abrir outra perspectiva. Ao compartilhar as dificuldades do proletariado mundial para se reconhecer como uma classe com interesses antagônicos aos do capitalismo, o proletariado terá, no entanto, que, com base em experiências de luta de um passado por vezes recente, responder a ataques ao que tudo indica muito drásticos e isto no contexto social muito difícil de uma sociedade em decomposição[1]. Porém quanto mais a consciência do proletariado for libertada de todos os enganos e mistificações da classe burguesa, tanto à direita quanto à esquerda, mais seu combate se fortalecerá, e mais será possível, no futuro, reafirmar explicitamente o objetivo desta luta, a criação de uma outra sociedade sem classes ou exploração.
A delinquência e o crime são obviamente, fundamentalmente, a consequência da miséria econômica e moral da sociedade, produto do apodrecimento da sociedade capitalista. Seus níveis atuais tornam a vida diária insuportável em alguns países latino-americanos, como Honduras e Venezuela; eles são muitas vezes a principal causa de emigração em massa e selvagem. A situação no Brasil deteriorou-se dramaticamente nos últimos anos, impulsionando o país, e algumas de suas cidades em particular, a um nível muito alto no ranking mundial de criminalidade. As estatísticas seguintes dão uma ideia concreta do inferno cotidiano a que estão expostas as camadas mais desfavorecidas da população.
"O Brasil é uma das capitais mundiais de homicídios, com 60 mil homicídios por ano em uma população de quase 208 milhões de habitantes. Todos os anos, 10% das pessoas mortas no mundo são brasileiros. Quase 50 milhões de brasileiros com 16 anos ou mais - quase um terço da população adulta - conhecem alguém que foi assassinado, segundo pesquisa realizada pelo Instinto de Vida.[...] Quase 5 milhões de pessoas foram feridas por armas de fogo e cerca de 15 milhões conhecem alguém que foi morto pela polícia, uma das forças mais mortíferas do mundo". (Brazil’s biggest problem isn’t corruption — it’s murder [280])
"Segundo outro estudo, a taxa de homicídios em 2017 é de 32,4 por 100.000, com 64.357 homicídios. Em 2016, o Brasil registrou um recorde de 61.819 homicídios, ou uma média de 198 homicídios por dia, ou uma taxa de homicídios de 29,9 por 100.000 habitantes. Sete das vinte cidades mais violentas do mundo estão no Brasil devido ao aumento da violência nas ruas." (Crime in Brazil [281]).
O aumento da criminalidade e da insegurança está mergulhando cada vez mais vastas camadas da população num impasse total, no mais profundo desespero. Este flagelo que atormenta a sociedade não tem solução possível sob o capitalismo, nem sequer a menor possibilidade de mitigação[2].
Na campanha eleitoral de Bolsonaro, a luta contra a violência e a corrupção foi uma prioridade entre suas promessas. Ele se comprometeu a "combatê-las radicalmente", através de medidas que ostentam a marca registrada do personagem. Por trás de suas promessas eleitorais de declarar guerra ao crime, a verdadeira perspectiva é, na verdade, de um aumento da barbárie. Fazendo uma avaliação crítica das políticas seguidas até agora, ele disse: "a violência não pode ser combatida com políticas de paz e amor", então é necessário "aumentar o desempenho da polícia", "dobrar o número de pessoas mortas pela polícia". Podemos imaginar a carnificina em perspectiva quando, "de 2009 a 2016, 21,9 mil pessoas perderam a vida como resultado das ações policiais. Quase todas são homens entre 12 e 29 anos, três quartos são negros". (Guaracy Mingardi, em entrevista com HuffPost Brasil, ex-investigador da polícia e Secretário Nacional de Segurança Pública).
De fato, não só a criminalidade não será reduzida, como as vítimas da polícia aumentarão. E as primeiras vítimas serão, em primeiro lugar e acima de tudo, aqueles que, nos bairros pobres, já são os primeiros a sofrer de delinquência[3].
Há também uma forte preocupação de que o aumento da violência não seja apenas perpetrado por criminosos ou pela polícia, mas também deste sinistro e clássico apêndice da extrema-direita, as bandas recrutadas do lúmpen, que existem no Brasil há tempos.
No que diz respeito à luta contra a corrupção, Bolsonaro deu um "passo forte" ao nomear como ministro da Justiça o antigo juiz anticorrupção Sérgio Moro, formado pela CIA para a Operação Lava Jato (2014-2016), que visou particularmente certas figuras políticas, poupando outras que são tão ou mais corruptas.
A eleição de Bolsonaro faz parte da dinâmica global, que se verifica a nível internacional, da ascensão de “líderes fortes e retórica belicosa”, como ilustrado, por exemplo, pela eleição de Duterte nas Filipinas. Esta é uma consequência da decomposição do capitalismo, enredado em suas contradições inextricáveis. O fenômeno é muito palpável no Brasil, através da insegurança e do crime, e os medos que gera são a base para a ascensão ao poder de personagens como Bolsonaro.
No entanto, por importante que seja, esse fator não foi determinante na eleição de Bolsonaro. E a prova é que outro candidato, que foi o melhor político a serviço do capital brasileiro desde Vargas, teria sido eleito, segundo todas as pesquisas, no primeiro turno das eleições, se tivesse concorrido, apesar da acusação de corrupção contra ele. Estamos falando do ex-presidente Lula, que foi preso e mantido encarcerado para impedi-lo de se candidatar.
Como podemos explicar a persistência de tal popularidade de Lula? Simplesmente porque não parecia ser tão desonesto como todos os outros políticos que concorreram nas eleições e que vêm de todas as direções. O que realmente emergiu mais precisamente, e que está de acordo com a realidade, é que a acusação e a pena contra ele foram particularmente duras em relação às acusações que lhe foram feitas, principalmente quando se compara com o destino de outros políticos imersos nos escândalos e que saíram muito bem desta situação, como Michel Temer, do PMDB, e Aécio Neves, do PSDB, por exemplo.
Os altos índices de aprovação de Lula nas pesquisas, não significam que sua imagem não tenha sido corroída com o tempo, particularmente dentro da classe trabalhadora, devido aos ataques contra os trabalhadores que ele realizou durante seus dois mandatos sucessivos[4]. Mas ele parecia amplamente ser um mal menor, dada a sua estatura, em face de todos os outros candidatos. Sua popularidade foi maior inclusive do que seu próprio partido, o PT, o que afetou o candidato indicado por este partido assim que Lula foi incapacitado de se candidatar. De fato, enquanto Lula teria vencido Bolsonaro no primeiro turno, Haddad, o candidato do PT, foi claramente derrotado por Bolsonaro no segundo turno. Essa diferença entre Lula e o PT não é surpreendente, já que, durante três mandatos sucessivos, o partido esteve envolvido em muitos casos de corrupção, mas também apoiou todas as políticas de austeridade: as dos dois mandatos de Lula e as de Dilma, ainda mais drásticas, durante seu primeiro mandato e os poucos meses de seu segundo mandato antes de ser afastada[5].
O contraste é impressionante entre a capacidade política de Lula, por um lado, e a notória incapacidade que parece afetar Bolsonaro, por outro. Por que a burguesia reserva tal destino para um dos seus quando aparece atualmente como o que foi o ator principal (durante seus dois mandatos de 2002 a 2010) na emergência do Brasil na cena internacional e do segundo milagre brasileiro[6]? De fato, o impedimento de Lula foi parte de uma estratégia em que os Estados Unidos desempenharam um papel de primeira importância visando trazer o Brasil de volta à sua influência direta, enquanto a sétima maior economia do mundo estava afastando-se deles desde precisamente o início do primeiro mandato de Lula. Desde então, ele promoveu um distanciamento efetivo quando os governos que o antecederam eram completamente subservientes aos EUA.
Muito antes da formação dos dois blocos antagônicos rivais após a Segunda Guerra Mundial, o americano e o russo, a América Latina tinha sido o quintal dos Estados Unidos até que, com o colapso do bloco do Leste, o bloco ocidental desapareceu por sua vez. Até 1990, o tio Sam foi capaz de defender eficazmente a sua reserva privada contra qualquer tentativa de intrusão por parte do bloco imperialista rival. Da mesma forma, integrou os vários países do continente sul-americano em redes de acordos comerciais bilaterais ou multilaterais que beneficiaram principalmente os Estados Unidos. Para servir seus interesses, o tio Sam fez e derrotou governos como ele desejava, por exemplo, estabelecendo ditaduras de extrema direita para lutar contra qualquer tentativa de estabelecer governos de esquerda que pudessem transmitir a influência do bloco oposto. Esse foi particularmente o caso da Argentina, Chile e Brasil nas décadas de 1960 e 1970. Da mesma forma, quando tal ameaça se afastou, os Estados Unidos também puderam apoiar o processo democrático para acabar com uma ditadura. Este foi o caso do Brasil em 1984 para conseguir que um governo democrático pusesse fim à excessiva rigidez na gestão do capital nacional pelo Estado liderado pelo exército, tornando-o assim mais propício à penetração americana[7]. Foi esta gestão do Estado pelo exército que inspirou Bolsonaro quando, no ano de 2000, defendeu o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso pelas privatizações, que agora é uma das medidas norteadoras do seu governo.
Após a dissolução do bloco ocidental, o Brasil, como outros países da América do Sul ou do mundo, aproveitou o alívio da pressão dos Estados Unidos para jogar suas próprias cartas geopolíticas. Como resultado, conseguiu distanciar-se econômica e politicamente dos Estados Unidos. Com efeito, durante todo o período da presidência Lula (2003–2006; 2007-2010), o país distinguiu-se por um desenvolvimento econômico significativo, mas também por certas posições políticas opostas às dos Estados Unidos. Em particular, a oposição do governo Lula foi crucial para o aborto em 2005 do projeto norte-americano da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), um acordo multilateral de livre comércio que cobria todos os países do continente americano, exceto Cuba. Essa oposição também se manifestou através da promoção de países não alinhados aos Estados Unidos, na América Latina e outros países. Assim, em 2010, o Brasil se opôs aos Estados Unidos sobre a questão do Irã. Ao mesmo tempo, estabeleceu relações econômicas internacionais (BRICS) que reforçaram a sua independência em relação aos Estados Unidos. Como destaque dessa trajetória de distanciamento dos Estados Unidos, a China tornou-se o maior parceiro comercial do Brasil em abril de 2009, substituindo os Estados Unidos[8]. Ao fazê-lo, o Brasil ganhava uma posição cada vez mais hegemônica em todo o continente sul-americano, graças ao seu poder econômico e diplomático. Como resultado, durante o governo Lula, o Brasil tornou-se o principal concorrente dos Estados Unidos na região. Concorrente mas não inimigo declarado. De fato, Lula conseguiu estabelecer uma relação tanto com os Estados Unidos quanto com a China, mas claramente favorecendo a China, ainda mais porque esse poderoso "parceiro" estava geograficamente distante, ao contrário dos Estados Unidos.
Como expressão e fator da ascensão econômica do Brasil, as grandes empresas brasileiras, impulsionadas pelos investimentos dos bancos estatais[9], estavam se estabelecendo no cenário internacional, particularmente nos setores de energia, construção, alimentos, construção naval, armamentos, serviços, etc.
Entre estas se incluíam a Petrobras (produção de petróleo e derivados), JBS (produção de proteínas animais, carnes e derivados), Odebrecht (construção pesada, armamento e serviços à Petrobras), etc. Por exemplo, graças a um intenso financiamento público, a JBS tornou-se a maior produtora e exportadora mundial de proteína animal, com presença em mais de 30 países. A multinacional brasileira Odebrecht (12ª no mundo), com atividades em quase todos os países da América do Sul, em algumas ex-colônias portuguesas na África e até além dela, foi certamente um importante veículo para a penetração econômica do Brasil fora de suas fronteiras na América do Sul.
Além disso, medidas protecionistas também estavam sendo tomadas para impor a presença de empresas brasileiras em diferentes circunstâncias: em cooperação com empresas estrangeiras vindas ao Brasil para extrair petróleo; qualquer fornecimento no Brasil de bens de capital deve necessariamente incluir componentes fabricados no Brasil, assim que existissem ou pudessem existir no catálogo.
Outra medida protecionista em favor de grandes empresas brasileiras também foi implementada, mesmo que "ilegal", mas também praticada em todo o mundo. A Odebrecht, por exemplo, tinha um departamento especializado na concessão de subornos para grandes contratos em todos os países onde operava. Esta empresa, assim como outras, incluindo a OAS, organizaram-se em um Cartel na indústria da construção especialmente de grandes estruturas, pagando aos executivos do grupo petrolífero público Petrobras e aos políticos cúmplices, através de um sobrefaturamento estimado entre 1% e 5% do valor dos contratos. Foi instaurado um sistema de desvio de vários bilhões de Reais para financiar partidos políticos e/ou enriquecimento pessoal ("Brésil : tout comprendre à l’opération "Lava Jato" [282]" - Brasil: entendendo tudo na operação "Lava Jato". Le Monde, publicado no 26 de março 2017, atualizado no 4 de abril 2018).
Nenhum dos rivais econômicos dos Estados Unidos pode, evidentemente, opor-se ao fato de a primeira potência mundial tirar vantagem econômica da sua posição no mundo em detrimento de todos os seus concorrentes, tanto mais que a sua moeda é também a moeda de troca internacional. Por outro lado, os Estados Unidos estão particularmente vigilantes para garantir que qualquer país culpado de descumprimento das leis da concorrência seja severamente punido. Assim, a trapaça brasileira tem sido usada como um pretexto e um alvo para uma vasta ofensiva destinada a demolir toda a organização econômica em que se baseava. As represálias foram tanto mais draconianas quando se destinavam não apenas a impor sanções econômicas por violações da lei de concorrência, mas, acima de tudo, condenar todas as medidas protecionistas na economia brasileira (quer sejam legais ou não como a atribuição sistemática de subornos), e para suavemente trazer o Brasil de volta à influência exclusiva americana, neutralizando suas forças políticas mais influentes e hostis para tal orientação. Isso se reflete no tratamento do político mais popular do Brasil, Lula, condenado a 12 anos de prisão após um procedimento sumário e sem provas significativas de suposto enriquecimento pessoal. Não é insignificante que esta seja a acusação mais difícil de consubstanciar, a de enriquecimento pessoal, que, no entanto, foi feita contra Lula, porque ela estava na melhor posição para desacreditá-lo entre seu eleitorado, enquanto outras acusações - atestadas por muitas testemunhas - relativas a irregularidades em benefício do Estado brasileiro parecem não ter sido levadas em conta.
O nome "Lava Jato" fez sua primeira aparição pública em março de 2014 e foi logo seguido por vazamentos relacionados às confissões de um ex-diretor da Petrobras, concedidas na esperança de uma redução da pena, sobre a existência de um vasto sistema de subornos pagos aos executivos desta empresa, assim "subornados" para adjudicação de contratos. Como resultado, o semanário de oposição "Veja" mencionou os nomes de cerca de 40 supostos funcionários eleitos da coalizão governista de centro-esquerda, principalmente membros do PMDB, do PT e do Partido Socialista Brasileiro.
Eventos de corrupção que remontam a 2008 tinham motivado a mobilização de órgãos de controle do Estado burguês. Ela dará origem à Operação "Lava Jato", cujo grupo de trabalho era composto por agentes da polícia federal, membros do Ministério Público e juízes. Para o seu trabalho, este grupo recorreu aos tribunais responsáveis pela auditoria das contas do Estado, ao poder judiciário, ao Ministério Público e à polícia federal, com a criação de grupos especiais destes últimos para "combater" o crime organizado nas suas diversas formas.
Há fortes indícios de que essa mobilização judicial tem sido realizada em estreita interação com as mais altas autoridades dos Estados Unidos, ou mesmo que seja produto de uma interferência aberta por parte destas últimas. Assim, os documentos divulgados pelo Wikileaks relatam a realização de um seminário de cooperação no Rio de Janeiro em outubro de 2009 com a presença de membros selecionados da Polícia Federal, Justiça, Ministério Público e representantes das autoridades norte-americanas[10]. De fato, tal seminário não é surpreendente, uma vez que, por um lado, os Estados Unidos tinham interesse nele, mas também o fato de que, desde a década de 1960, as principais figuras do Judiciário e do Ministério Público brasileiro têm se mostrado ardentes defensores das instituições americanas que lhes oferecem cursos, treinamento, conferências, assistência em investigações... Tal cooperação não é negada pelo Procurador-Geral da República, à época, Rodrigo Janot, uma das figuras centrais da "Lava Jato", quando explica que "os resultados brasileiros também são consequência de uma troca intensa com os Estados Unidos, que forneceram ao Brasil treinamento e atualização aos investigadores brasileiros, além de tecnologia e técnicas de planejamento de investigação"[11]. Caso houvesse alguma dúvida em contrário sobre a relação com os Estados Unidos! Não podemos resistir a citar aqui o título de outro artigo: "FBI atua na "lava jato" desde o seu começo e se gaba da operação pelo mundo"[12].
No contexto desta pressão dos Estados Unidos sobre o Brasil, vale também a pena destacar o episódio de gravações da NSA em 2011 de conversas presidenciais, de alguns ministros, de um diretor de banco central, diplomatas, líderes militares[13].
Não é de surpreender que os primeiros resultados da "Lava Jato" tenham sido divulgados em 2014, sobre a existência de um sistema de subornos pagos a executivos da Petrobras. De fato, estes "vêm no momento oportuno" para enfraquecer Dilma e o PT na campanha pela reeleição incerta da presidente em final de mandato, quando, no período incriminado pelos primeiros resultados em questão, Dilma era presidente do conselho de administração da Petrobras, assim como havia o envolvimento do PT, através de alguns de seus membros, na gestão dessa empresa estatal.
No entanto, essa primeira explosão de revelações da "Lava Jato" não foi suficiente para retirar Dilma e o PT da condução política do país. A presidente é reeleita na disputa contra um candidato do PSDB, Aécio neves, que depois também teve sua reputação política manchada por esse mesmo caso. No entanto, o fato de ter sido reeleita neste contexto testemunha a confiança que uma parte significativa da burguesia ainda tinha nela para defender os interesses do capital nacional. Com efeito, para esta disputa eleitoral, tal como para as anteriores, pôde se beneficiar de um nível significativo de recursos financeiros de grandes empresas industriais, financeiras e de serviços.
No entanto, rapidamente se desacreditou ainda mais profundamente por causa das severas medidas anti-proletárias que então tomou (renegando assim suas promessas eleitorais), como a série de medidas para restringir o acesso ao seguro desemprego. Ela também foi novamente desafiada nas ruas nos primeiros meses de 2015 através de manifestações iniciadas por organizações de direita que evitaram parecerem partidos políticos. Nestas manifestações, que reuniram milhões de pessoas, havia conservadores, liberais e apoiantes da tomada do poder pelos militares. Vale a pena notar aqui que estas manifestações servirão de trampolim para promover um discurso em defesa da candidatura do notoriamente homofóbico e igualmente misógino, capitão da reserva do exército, Bolsonaro.
Os então "aliados" de Dilma, sem ela e sem o PT, constituem uma nova e esmagadora maioria parlamentar, aliando-se aos partidos da oposição, em particular o PSDB e setores de partidos como o PMDB, o PDT, o PSB, todo o DEM e os outros partidos menores. Dilma foi impedida em agosto de 2016 por votação do Senado após um controverso processo de Impeachment (impedimento).
Todos os grandes grupos políticos brasileiros foram afetados pelas revelações da "Lava Jato". Grandes figuras da burguesia brasileira foram alvo de suas investigações, até mesmo humilhadas (especialmente a Odebrecht) pelas revelações flagrantes de suspeitas, de provas contra elas imediatamente jogadas na imprensa que as retransmitiu. Os noticiários televisivos e os programas especiais tornaram-se o cenário de "deliberações judiciais populares" para as quais o espectador foi convidado. O poder judicial "todo-poderoso" parecia ser o chefe do Estado, capaz de subjugar qualquer pessoa (nenhum líder empresarial, executivo ou cacique partidário poderia se sentir seguro).
Mas longe de reforçar a imagem das instituições e da democracia, a "Lava Jato" desacreditou-as ainda mais. Se a corrupção e a podridão foram de fato entregues publicamente à vergonha, os meios utilizados para esse fim eram pelo menos também questionáveis: a institucionalização e a banalização da denúncia[14]. Além disso, rapidamente se tornou claro que nem todos os réus eram iguais perante os tribunais de "Lava Jato", e que as sanções mais pesadas eram aplicadas àqueles que deviam ser retirados do poder. Só o exemplo de Lula resume esta situação.
A mesma "injustiça" pode ser encontrada em relação às sanções impostas às empresas brasileiras que "falharam". Neste caso, são os Estados Unidos que "punem", eventualmente aceitando acordos "generosos" para evitar algumas das colossais "multas". Assim, por exemplo, o governo dos EUA exigiu que a JBS (J&F) transferisse o seu controlo operacional constituindo-se numa empresa americana se quisesse evitar sanções. A Odebrecht foi fortemente sancionada. No mesmo sentido a Petrobrás é sancionada pelo governo americano.
Durante sua campanha eleitoral, Bolsonaro enviou um sinal muito forte aos Estados Unidos e à China de que iria romper com esta última se fosse eleito, fazendo uma visita oficial a Taiwan. Assim, ele afirmou claramente as orientações que o "candidato de Washington", apoiado por parte da burguesia brasileira, iria implementar após a sua eleição, que se tornou certa após Lula ser impossibilitado de se candidatar. Assim foi o fim da posição do Brasil em um equilíbrio desigual, mas relativamente confortável, entre os Estados Unidos e a China[15].
A "Lava Jato", que foi um elo essencial na "recuperação" do Brasil pelos Estados Unidos, desmantelou todas as proteções econômicas - legais e ilegais - e os subsídios estatais a favor das empresas brasileiras. As consequências serão muito graves para o Brasil. De fato, a remoção dessas proteções já começou a expor perigosamente as empresas brasileiras à concorrência dos Estados Unidos. Isto só irá piorar com o reforço da "cooperação" econômica entre ambos os países. Além disso, em um contexto econômico global cada vez mais difícil, também será necessário pagar pela adição das consequências devastadoras da política de dívida do país sob Lula e Dilma.
Em termos de relações internacionais, como um cachorrinho submisso, Bolsonaro seguiu os passos de Trump e sua diplomacia delirante ao decidir, como sinal de apoio a Israel, transferir a embaixada brasileira para Jerusalém. Mais recentemente, o secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo, que viajou ao Brasil para a posse de Bolsonaro, conversou com o novo presidente sobre uma "oportunidade de trabalhar juntos contra regimes autoritários", aludindo a Cuba e à Venezuela, e velou a referência à necessidade de conter o expansionismo chinês. O Brasil encontra-se no turbilhão imperialista global, como este tweet da ex-embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley, ilustra ainda mais claramente: "É bom ter um novo líder pró-americano na América do Sul, que se junte à luta contra as ditaduras na Venezuela e em Cuba e que veja claramente o perigo da crescente influência da China na região" ("Brasil, Bolsonaro e Estados Unidos para uma relação "transformada"").
Por meio de um vasto empreendimento espalhado por vários anos, mobilizando recursos próprios significativos (para não mencionar os mobilizados no Brasil pela "Lava Jato"), os Estados Unidos finalmente chegaram ao fim, ou seja, à plena reintegração do Brasil à sua influência. É, portanto, um sucesso da diplomacia americana e de todos os serviços que a acompanham: a magistratura, o FBI, a espionagem... porém, o sucesso talvez ainda não esteja completo.
O último passo na manobra foi prover o Brasil de um candidato que seria o portador da nova orientação. O candidato foi encontrado, ganhou as eleições[16] graças às manobras que conhecemos. Mas o mínimo que podemos dizer é que ele não é muito "apresentável". É verdade que não havia escolha real, uma vez que a "Lava Jato" tornou as formações e forças políticas tradicionais ainda mais desacreditadas do que antes, inutilizáveis durante algum tempo, e também porque alguém como Lula, um político incomparavelmente mais experiente e hábil, era incompatível com a nova orientação.
Se por um tempo Bolsonaro talvez será capaz de seduzir um segmento da população que votou nele nas eleições, ele também pode se tornar um ponto fraco do sistema se não mudar seu estilo.
O personagem Bolsonaro, misógino e homofóbico assumido, é caricatural. Ele tem saudades da ditadura militar que existiu no Brasil entre 1964 e 1985. Prometeu limpar o país dos "marginais vermelhos". Seu clã político familiar também faz parte da cena. Um dos seus filhos, Eduardo Bolsonaro (Deputado Federal do Estado de SP) caminha com um passo decidido nas pegadas do "pai", porém melhor, sendo "mais excessivo": quer que as ações do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra sejam qualificadas como "terrorismo" e, para ele, "qual o problema?" se para isso "for necessário prender 100.000 pessoas". Pretende igualmente qualificar o comunismo como um crime.
Ambicioso para surfar no efeito "Lava Jato", Bolsonaro tinha-se preparado para vestir o traje político de um cavaleiro branco incorruptível. Para isso, ele começou por ter o cuidado de deixar seu antigo Partido Progressista em 2016, o partido mais envolvido nos escândalos que estão agitando o país (dos 56 deputados afiliados ao PP, 31 estão sob acusação de corrupção). Mas sua primeira gafe não esperou até a inauguração. Entre as figuras políticas que escolheu para fazer parte do seu futuro governo, algumas já eram acusadas de corrupção. Foi assim que o cavaleiro incorruptível já manchou as suas belas roupas presidenciais brancas antes mesmo de tomar posse. Pior ainda, o comportamento irresponsável do seu clã[17] já o fez parecer um palhaço sinistro. Quando um de seus filhos nos informou de desentendimentos no próprio campo de Bolsonaro, ele chegou ao ponto de "banquetear-nos" com detalhes sórdidos. As discordâncias são tais, diz-nos ele, que "há alguns que gostariam que Bolsonaro morresse". Quer seja blefe, expressão de estupidez ou realidade, estas palavras dizem muito sobre a hipocrisia do clã bolsonariano, suas ligações com as milícias criminosas no Rio de Janeiro [283] ou o envolvimento do filho Flávio em movimentações bancarias suspeitas (Caso Queiroz [284]). Isso já de início é mais uma demonstração evidente da podridão que impera no seio do grupo que assumiu o mandato.
Infelizmente, não devemos nos regozijar com a estupidez expressa de Bolsonaro e parte de sua comitiva, pensando que ele corre o risco de ser um defensor muito pobre dos interesses da burguesia. Ou será um fantoche teleguiado nos bastidores, ou o seu deslize, particularmente em termos de tensões imperialistas, poderá ter consequências desastrosas para uma parte da população.
A classe trabalhadora no Brasil vai enfrentar severas provas como resultado dos ataques econômicos já anunciados ou ainda não anunciados. O primeiro delas, a reforma previdenciária, é "o primeiro e maior desafio", como anunciou o ultraliberal ministro de Economia, Paulo Guedes, no momento de sua investidura, e é caracterizada pela mídia como "a espinhosa revisão de um regime muito caro para o Estado, pedida com insistência pelos mercados" ("Brésil : le gouvernement Bolsonaro en place, salué par la Bourse" - Brasil: o atual governo Bolsonaro, acolhido pela Bolsa de Valores).
A atual dificuldade geral da classe operária em se reconhecer como uma classe com interesses antagônicos aos do capital não deixará de afetar sua capacidade de reagir ao dilúvio de ataques que cairá sobre ela no Brasil. Mas é também através da resposta necessária, da crítica às fraquezas próprias que não deixarão de se manifestar nesta ocasião, que ela poderá novamente dar passos em frente rumo a uma luta mais unida, mais massiva, mais solidária e livre das mistificações que pesam sobre a sua consciência, especialmente as mais perniciosas transmitidas pela esquerda (PT,...) e a extrema esquerda do capital (trotskistas,...). É por isso que devemos nos apropriar novamente das experiências passadas. Recordemos especialmente:
- A mobilização espontânea massiva dos trabalhadores metalúrgicos do ABC em 1979, superando em muito a mobilização que ocorria todos os anos durante a campanha salarial convocada pelos sindicatos (para o reajuste dos salários).
- A forma como Lula reprimiu os controladores aéreos em 2007, que entraram espontaneamente em greve diante da dramática deterioração de suas condições de trabalho, sem qualquer instrução sindical (visto que nesse setor não tinha, pois, a greve é proibida) e apesar das ameaças de prendê-los do comando aeronáutico militar, Lula, em particular, acusando-os publicamente nesta ocasião de serem "irresponsáveis e traidores". (Ler nossos artigos "Diante dos embates do capital, os controladores aéreos respondem com a luta [285]" e "Repressão e marginalização do movimento dos controladores aéreos [286]")
- A experiência do movimento 2013 que partiu espontaneamente após o aumento do preço dos transportes públicos, por iniciativa dos jovens proletarizados e mobilizando milhares de pessoas em mais de 100 cidades, e depois se espalhou para protestar contra a redução de muitos serviços sociais. Em seguida, ele expressou uma rejeição maciça aos partidos políticos, principalmente ao PT, bem como de organizações sindicais ou estudantis. Outras expressões do carácter de classe deste movimento emergiram, ainda que de forma mais minoritária, através de assembleias de decisão sobre as ações a empreender. (Ler nosso artigo "junho de 2013 no Brasil [287]: a indignação detona a mobilização espontânea de milhões [287]")
Novas dificuldades, que possivelmente surgirão como consequência da situação atual, poderiam dificultar ainda mais a luta de classes no Brasil. É importante preparar-se para a sua ocorrência.
Bolsonaro é tão odioso que é capaz de polarizar a raiva causada pelos ataques econômicos contra si mesmo. O perigo será então ver apenas a pessoa e não o capitalismo em crise que está por trás dos ataques. Existe a possibilidade dum perigo semelhante em relação à orientação política de Bolsonaro, a extrema-direita, que a esquerda certamente apontará como responsável pela deterioração das condições de vida. Não se pode excluir que Lula e o PT possam novamente, no futuro, assumir a função de desviar o descontentamento contra a direita e a extrema-direita para uma alternativa à esquerda. Deve-se então ter em mente que qualquer partido, da extrema-direita à extrema-esquerda, que chegue à cabeça do Estado a responsabilidade de defender os interesses do capital nacional e que isso é necessariamente à custa da classe explorada. Além disso, deve-se lembrar que o flagrante ataque contra Lula pela "Lava jato", enquanto muitos entre seus famosos "colegas" políticos tortuosos foram relativamente poupados, não significa de modo algum que o antigo metalúrgico que saiu das fileiras se possa caracterizar de honesto e muito menos ainda de defensor dos operários.
Da mesma forma, não faltarão vozes para tentar desviar a legítima ira dos trabalhadores para o "imperialismo ianque que oprime o Brasil" e do qual deveria ser libertado. É um trágico beco sem saída que já provou o seu valor. Envolve a mobilização do proletariado ao lado de uma parte da burguesia brasileira contra a burguesia americana. O proletariado não tem pátria para defender, apenas seus interesses de classe. Diante de tal mistificação, há apenas uma palavra de ordem: luta de classes em todos os países contra o capitalismo.
Esta só pode ser uma perspectiva, um objetivo que não pode ser atingido imediatamente, mas é sempre este objetivo e essa perspectiva que devem guiar a ação do proletariado, a qual deve ser concebida tanto quanto possível como um elo da cadeia que conduz à revolução proletária mundial.
Revolução Internacional (06/02/2019)
[1] A desagregação da sociedade diz respeito a todos os países, ainda que de forma desigual, e se expressa através de um conjunto de diferentes fenômenos que contribuem para tornar a vida em sociedade cada vez mais difícil, bem como a emergência de uma perspectiva de derrubada e superação do capitalismo. Entre as suas manifestações mais salientes, já sublinhamos muitas vezes o desenvolvimento, como nunca antes, do crime, da corrupção, do terrorismo, do consumo de drogas, das seitas, do espírito religioso, do cada um por si... Como consequência do aprofundamento deste fenômeno de decomposição da sociedade, há também as catástrofes "naturais", "acidentais", com efeitos cada vez mais devastadores. Uma ilustração recente disso foi a tragédia causada pelo rompimento, em 25 de janeiro, da Barragem da Vale em Brumadinho, que consistia em milhares de metros cúbicos de rejeitos da mina de ferro próxima. O resultado, aproximadamente 200 mortos ou desaparecidos, é uma ilustração entre milhares de outros no mundo das consequências da irracionalidade mortal do capitalismo no final da sua vida.
[2] De acordo com alguma propaganda da burguesia, há uma possibilidade de reduzir os números da criminalidade, como ilustra o caso da Colômbia, com a eliminação dos mais importantes cartéis de drogas. O problema é que o exemplo da Colômbia não é generalizável, particularmente porque, na maioria dos países onde o crime é mais alto, é essencialmente o resultado de uma multidão de pequenas gangues e especialmente de indivíduos isolados.
[3] Esta pode ser a razão pela qual a pontuação de Bolsonaro nas últimas eleições foi muito baixa (bem abaixo de 50%) nos bairros mais pobres.
[4] As políticas sociais para aliviar a miséria das camadas mais pobres, um valor ínfimo no orçamento do estado e financiado graças a uma acentuação da exploração dos trabalhadores, tiveram um efeito muito grande no sentido de fortalecer o prestigio de Lula entre essas camadas.
[5] Na realidade, a dureza dos ataques realizados pelos governos Dilma tem ajudado a apagar da memória os "menos brutais" dos governos Lula anteriores.
[6] Em referência ao que é comumente chamado de "milagre brasileiro", onde, entre 1968 e 1973, a taxa média de crescimento da indústria subiu para quase 24%, o dobro da economia em geral do país. O primeiro milagre foi financiado pela dívida, de modo que, no início da década de 1980, o Brasil estava "à beira da falência".
[8] "Pela primeira vez na história do Brasil, a China tornou-se seu maior parceiro comercial em abril de 2009, substituindo os Estados Unidos. Um mês antes, já havia se tornado o principal importador de produtos brasileiros. (...) desde a década de 1930, os Estados Unidos se estabeleceram firmemente em primeiro lugar (...). Esta mudança de situação deve-se principalmente à contração do comércio americano com o resto do mundo, ligada à crise econômica. Este fenômeno afeta igualmente os países da União Europeia nas suas relações com o Brasil. Mas, acima de tudo, reflete um forte e contínuo aumento das compras à China. As exportações do Brasil para a China quintuplicaram em valor entre 2000 e 2008. Eles aumentaram 75% entre 2007 e 2008. Este aumento permitiu ao Brasil gerar um excedente comercial nos primeiros quatro meses de 2009 que foi o dobro do registado no mesmo período de 2008. Os três principais parceiros do Brasil agora são, em ordem, a China, os Estados Unidos e a Argentina." (La Chine est devenue le premier partenaire commercial du Brésil [289] - A China tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil - Le Monde, 8 de maio de 2009)
"De 2003 a 2018, empresas chinesas investiram US$ 54 bilhões no Brasil em cerca de 100 projetos (Ministério do Planejamento). Só em 2017, os investimentos chineses ascenderam a quase 11 mil milhões de dólares. No primeiro trimestre de 2018, as exportações para a China representaram 26% das exportações brasileiras, contra 2% em 2000 (Ministério do Desenvolvimento e Comércio Exterior do Brasil). Um afluxo maciço de capital bem-vindo para este país, cuja economia foi enfraquecida por uma recessão histórica em 2015-2016 e por uma dívida pública que cresceu enormemente nos últimos anos" ("La Chine à la conquête du Brésil" - China conquistando o Brasil).
[9] Foi o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) que distribuiu o financiamento às empresas beneficiárias do regime preferencial. Lula foi o líder direto do lobby, com alguns líderes do PT associados a representantes das corporações.
[10] Esses documentos divulgados pelo Wikileaks relatam, em particular, que uma equipe de treinamento ianque ensinou os pupilos brasileiros (e estrangeiros) os segredos da "investigação e punição nos casos de lavagem de dinheiro, incluindo a cooperação formal e informal entre os países, confisco de bens, métodos para extrair provas, negociação de delações, uso de exame como ferramenta, e sugestões de como lidar com Organizações Não Governamentais (ONGs) suspeitas de serem usadas para financiamento ilícito". O citado relatório se conclui com a ideia que "o setor judiciário brasileiro claramente está muito interessado na luta contra o terrorismo, mas precisa de ferramentas e treinamento para empenhar forças eficazmente". "Wikileaks: EUA criou curso para treinar Moro e juristas [290]". O artigo do Wikileaks citado é [290]"BRAZIL: ILLICIT FINANCE CONFERENCE USES THE "T" WORD, SUCCESSFULLY [291]".
[14] Por exemplo, os 77 executivos da Odebrecht ouvidos pelos tribunais delataram 415 políticos de 26 partidos (de um total de 35) em 21 estados (de um total de 26 dentro da federação). Entre eles, cinco ex-presidentes do Brasil: José Sarney, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Temer também é citado em muitas ocasiões, mas não pode ser acusado de atos anteriores ao seu mandato, de acordo com a Constituição. Em seu pronunciamento, Marcelo Odebrecht afirmou ter pago 100 milhões de euros entre 2008 e 2015 ao Partido dos Trabalhadores (PT, centro-esquerda), além das contribuições oficiais durante as campanhas eleitorais. "Os ex-presidentes Lula e Dilma estavam cientes de nosso apoio, embora nunca tenham pedido dinheiro diretamente", disse ele. "Au Brésil, les ramifications du scandale Odebrecht [295]" - [No Brasil, as ramificações do escândalo Odebrecht] - Le Monde diplomatique.
[15] Naturalmente, não se sabe quanto tempo esse casamento forçado vai durar ou quais serão os altos e baixos. Uma coisa é certa: é do interesse da primeira potência mundial não assumir o risco de uma nova distância do Brasil, o que inevitavelmente deixaria a porta novamente aberta para as intenções da China de se estabelecer na América do Sul, e a possibilidade de que isso poderia representar uma ameaça direta e perigosa à supremacia americana, economicamente, mas sobretudo militarmente.
No entanto, não se deve esquecer que a operação de "recuperação do Brasil" foi essencialmente gerida durante anos pela administração Obama. Será que Trump, o imprevisível, será capaz de não a comprometer? Além disso, mesmo que a China tenha recebido sinais muito fortes de Bolsonaro e da administração Trump de que isso foi feito com sua relação privilegiada com o Brasil, é claro que não se retirará completamente, longe disso. Em primeiro lugar, do ponto de vista econômico, isso é impossível porque teria consequências dramáticas para a economia brasileira que nem mesmo os Estados Unidos podem desejar. Além disso, fica claro que a China está longe de aceitar seu despejo, como evidenciado pelo fato de já ter se candidatado à aquisição de empresas brasileiras que serão privatizadas por Bolsonaro.
[16] Com o apoio, aberto ou não, de todos os partidos de direita.
[17] Constituído em particular por todos os filhos de Bolsonaro que tiveram uma carreira na política e apoiam o "pai".
A CCI celebrou reuniões públicas em vários países e cidades motivadas pelo 50º aniversário do Maio de 1968. Em termos gerais, os presentes estiveram de acordo com as principais características do movimento que destacamos:
A ideia de que o Maio de 68 foi o sinal para o desenvolvimento de uma onda de lutas em escala internacional não surpreendeu, em geral, os participantes de nossas reuniões. Mas, paradoxalmente, nem sempre ocorreu o mesmo quanto a essa outra ideia de que o mês de Maio de 68 marcou o final do longo período de contrarrevolução resultante da derrota da primeira onda revolucionária mundial e, ao mesmo tempo, abriu um novo curso para os enfrentamentos de classe entre a burguesia e o proletariado. De fato, uma série de características do período atual, como o desenvolvimento do fundamentalismo, a multiplicação das guerras no planeta, etc., tendiam a ser interpretadas como sinais de um período contrarrevolucionário.
Trata-se de um erro que, em nossa opinião, tem sua origem em uma dupla dificuldade.
Por um lado, o conhecimento insuficiente de como foi o período de uma contrarrevolução mundial, iniciado com a derrota da primeira onda revolucionária e, portanto, uma dificuldade para compreender realmente o que esse período significou para a classe operária e sua luta, mas também para a humanidade, na medida em que a barbárie inerente ao capitalismo em crise deixou de ter limites. Por isso, neste artigo, tomamos a decisão de voltar em detalhe àquele período.
Por outro lado, o período aberto em Maio de 68, ainda que possa parecer mais familiar às gerações que – direta ou indiretamente – conheceram o Maio de 68, sua dinâmica geral subjacente não pode ser entendida espontaneamente. Pode ficar obscurecida, entre outras coisas, por acontecimentos, situações que, ainda que importantes, não foram fatores determinantes. Por isso, também voltaremos a esse período destacando suas diferenças fundamentais com o período da contrarrevolução.
O fenômeno que todos observaram de imediato, a saber, que depois de uma luta, a mobilização dos trabalhadores tende a retroceder e, com frequência, com ela a vontade lutar, também ocorre num nível mais profundo na escala da história. De fato, a história permite verificar a validade do que Marx tinha assinalado sobre este tema em O 18 Brumário, quer dizer, a alternância de ímpetos frequentemente enérgicos e deslumbrantes da luta proletária (1848-49, 1864-71, 1917-23), com outros de retrocessos (a partir de 1850, 1872 e 1923) que, ademais, levaram por sua vez ao desaparecimento ou degeneração das organizações políticas que a classe dado a si própria durante o período de lutas em ascensão: Liga dos Comunistas, criada em 1847, dissolvida em 1852; AIT – Associação Internacional de Trabalhadores: fundação em 1864, dissolução em 1876; Internacional Comunista: fundação em 1919, degeneração e morte em meados da década de 1920; a vida da Internacional Socialista, de 1889-1914, que havia seguido um curso mais ou menos semelhante, mas de forma menos clara. (“O curso histórico”, Revista Internacional nº 18)
A derrota da primeira onda revolucionária mundial de 1917-23 abriu o período de contrarrevolução mais longo, profundo e terrível que jamais suportado pelo proletariado e levando à perda de todas as referências por parte da classe operária como um todo, e a que poucas organizações que permaneceram leais à revolução acabaram sendo ínfimas minorias. E além disso, essa derrota deixou abertas de par em par as portas ao desencadeamento de uma barbárie que superaria em muito os horrores da Primeira Guerra Mundial. Foi, ao contrário, uma dinâmica oposta à que se desenvolveu a partir de 1968, e não há razão para dizer que já tenha se esgotado, apesar das grandes dificuldades experimentadas pelo proletariado desde o início da década de 1990 com a extensão e aprofundamento da barbárie pelo planeta.
A expressão “meia noite no século”, do título de um livro de Victor Serge[1], aplica-se perfeitamente à realidade desse pesadelo que durou quase meio século.
Desde o início, terríveis golpes à onda revolucionária mundial iniciada com a Revolução Russa em 1917, foram a antessala da longa série de ofensivas burguesas contra a classe operária que precipitaram o movimento operário nas profundezas da contrarrevolução. Para a burguesia, não somente era importante derrotar a revolução, mas também golpear à classe operária de maneira que não pudesse voltar a levantar a cabeça. Diante de uma onda revolucionária mundial que havia ameaçado a ordem capitalista mundial, e esse era o objetivo consciente e declarado[2], a burguesia não podia se contentar em fazer retroceder o proletariado. Tinha que fazer tudo o que estivesse a seu alcance para que no futuro essa experiência deixasse nos proletários de todo o mundo uma imagem tal que não se lhes voltasse a ocorrer uma nova tentativa. Sobretudo, tinha que tentar desprestigiar para sempre a ideia da revolução comunista e da possibilidade de estabelecer uma sociedade sem guerra, sem classes e sem exploração. Para isso, pôde beneficiar-se de circunstâncias políticas que lhe foram muito favoráveis: a perda do baluarte revolucionário na Rússia não foi alcançada por sua derrota no enfrentamento militar com os exércitos brancos que tentaram invadir a Rússia, senão por sua própria degeneração interna (para a qual, com certeza, contribuiu em grande medida esse considerável esforço bélico). A tal ponto que se tornou fácil para a burguesia fazer crer que a monstruosidade surgida da derrota política da revolução, a URSS “socialista”, parecesse comunismo. E, ao mesmo tempo, a tal URSS devia ser percebida como o destino inevitável de qualquer luta do proletariado por sua emancipação. Com esta mentira colaboraram todas as frações da burguesia mundial, em todos os países, desde a extrema direita até a extrema esquerda trotsquista.[3]
Quando as principais burguesias envolvidas na Guerra Mundial terminaram com ela em novembro de 1918, foi com o objetivo óbvio de impedir que novos focos revolucionários engrossassem o fluxo da revolução, que foi vitoriosa na Rússia e ameaçadora na Alemanha, onde a burguesia tinha se debilitado pela derrota militar. Isso evitou que a febre revolucionária, estimulada pela barbárie dos campos de batalha e pela insuportável exploração e miséria atrás das linhas de frente, se apoderasse também de outros países como a França, Grã-Bretanha, etc.. E esse objetivo foi totalmente alcançado.
Nos países vencedores, o proletariado, apesar de haver aclamado fervorosamente a Revolução Russa, não se comprometeu massivamente sob a bandeira da revolução para derrocar o capitalismo e pôr um fim definitivo aos horrores da guerra. Esgotado por quatro anos de sofrimento nas trincheiras ou nas fábricas de armas, aspirava antes de tudo descansar, “aproveitando” a paz que os bandidos imperialistas acabaram de lhe “oferecer”. E como acontece com todas as guerras, são sempre os vencidos quem, em última instância, são vistos como os causadores das guerras, num discurso da Entende (França, Reino Unido e Rússia) foi apagada a responsabilidade do capitalismo como um todo para colocar toda a culpa nos impérios centrais (Alemanha, Áustria e Hungria). Pior ainda, na França, a burguesia prometeu aos trabalhadores uma nova era de prosperidade sobre a base das reparações que seriam impostas à Alemanha. E foi assim que o proletariado na Alemanha e Rússia acabou ficando cada dia mais isolado.
E o que acontecerá, tanto nos países vitoriosos como nos derrotados, será o que Rosa Luxemburgo tinha esboçado em seu Folheto de Junius (A crise da socialdemocracia alemã): se o proletariado mundial não conseguisse, através de sua luta revolucionária, construir uma nova sociedade sobre as ruínas fumegantes do capitalismo, então, inevitavelmente, este acabaria infligindo calamidades ainda piores à humanidade.
A história desta nova queda na escuridão, que culminou com os horrores da Segunda Guerra Mundial, identifica-se em muitos aspectos com a da contrarrevolução que alcançou seu ponto culminante no final desse conflito.
A ofensiva dos exércitos brancos contra a Rússia soviética e o fracasso das tentativas revolucionárias na Alemanha e na Hungria
Pouco depois de Outubro de 1917, o poder soviético enfrentou as ofensivas militares do imperialismo alemão, o qual fazia ouvidos moucos a toda ideia de paz.[4] Os exércitos brancos, apoiados economicamente desde o estrangeiro, estruturaram-se em diferentes partes do país. Mais tarde, foram lançados novos exércitos brancos, organizados diretamente desde o estrangeiro, contra a revolução até 1920. O país foi cercado, pressionado por exércitos brancos e asfixiado economicamente. A guerra civil deixou um país totalmente devastado. Quase 980 000 pessoas morreram nas fileiras do Exército Vermelho, ao redor de 3 milhões entre a população civil.[5]
Na Alemanha, o eixo da contrarrevolução é formado pela aliança de duas grandes forças: o traidor SPD e o exército. Estas foram as origens da formação de uma nova força, os Corpos Francos, os mercenários da contrarrevolução, o núcleo do que acabaria sendo o movimento nazista. A burguesia acertou um golpe terrível no proletariado berlinense ao arrastá-lo a uma insurreição prematura em Berlim, que foi ferozmente reprimida em janeiro de 1919 (a Comuna de Berlim). Milhares de operários e comunistas berlinenses – já que a maioria deles também eram operários – foram assassinados (1 200 operários fuzilados), torturados e encarcerados. Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht e depois Leo Jogisches foram assassinados. A classe operária perdia parte de sua vanguarda e seu líder mais clarividente na pessoa de Rosa Luxemburgo, que teria sido uma valiosíssima bússola nas tempestades que se avizinhavam.
Além da incapacidade do movimento operário na Alemanha para frustrar essa manobra, padecerá de uma patente falta de coordenação entre os distintos focos do movimento. Depois da Comuna de Berlim, eclodiram em Ruhr lutas defensivas nas quais tomaram parte milhares de mineiros, siderúrgicos e operários têxteis das regiões industriais do Baixo Rin e da Westfalia (primeiro trimestre de 1919), seguidas de lutas no centro da Alemanha e de novo em Berlim (finais de março). O Conselho Executivo da República dos Conselhos da Baviera foi proclamado em Munique, logo derrotado e eclodiu a repressão. Berlim, Ruhr, outra vez Berlim, Hamburgo e Bremen, Alemanha Central, Baviera, por todas as partes o proletariado foi esmagado, parcela por parcela. Toda a ferocidade, a barbárie, a astúcia, os chamamentos à delação e a tecnologia militar se puseram a serviço da repressão. Por exemplo, “para recuperar a Praça de Alexander de Berlim, pela primeira vez na história das revoluções, foram utilizadas todas as armas dos campos de batalha: artilharia ligeira e pesada, bombas que pesavam até um quintal, reconhecimento aéreo e bombardeiro aéreo”.[6] Milhares de operários foram fuzilados ou assassinados nos combates; os comunistas foram perseguidos e muitos sentenciados à morte.
Os trabalhadores da Hungria em março se opuseram também ao capital em enfrentamentos revolucionários. Em 21 de março de 1918 foi proclamada a República dos Conselhos, mas foi esmagada durante o verão pelas tropas contrarrevolucionárias. Para mais informação, podem ser lidos nossos artigos na Revista Internacional.[7]
Apesar das tentativas heroicas do proletariado na Alemanha, em 1920 (diante do golpe de Estado de Kapp) e 1921 (ação de março) [8], que mostram a persistência de uma forte combatividade, acabou ficando patente que a dinâmica já não ia na direção do fortalecimento político do proletariado alemão como um tudo, senão pelo contrário.
A degeneração da revolução na própria Rússia
Os estragos das guerras contra as ofensivas da reação internacional, incluindo as consideráveis perdas vividas pelo proletariado; o enfraquecimento político do proletariado com a perda de seu poder político pelos conselhos operários e a dissolução da Guarda Vermelha; o isolamento político da revolução, tudo isso constituiu um terreno favorável para o desenvolvimento do oportunismo dentro do Partido Bolchevique e da Internacional Comunista[9]. A repressão da insurreição de Kronstadt em 1921, que tinha sido uma reação contra a perda de poder dos sovietes, foi ordenada pelo Partido Bolchevique. O Partido Bolchevique, depois de ser a vanguarda da revolução no momento da tomada do poder, acabou se convertendo em vanguarda da contrarrevolução após de uma degeneração interna a qual não pôde ser impedida pelas frações que surgiram dentro do partido para lutar precisamente contra seu crescente oportunismo.[10]
Desaparecidas as grandes massas que na Rússia, na Alemanha e na Hungria haviam se lançado ao assalto do céu e agora debilitadas, exaustas, derrotadas, elas já não podem mais. Nos países vitoriosos da guerra, o proletariado não se manifestou de forma suficiente. Tudo isso significou a derrota política do proletariado em todo o mundo.
O estalinismo se converte na ponta de lança da burguesia mundial contra a revolução
O processo de degeneração da revolução russa se acelerou com a tomada do controle do Partido Bolchevique por Stálin. A adoção em 1925 da tese do “socialismo em um só país”, que se converteu na doutrina do Partido Bolchevique e da Internacional Comunista, foi um ponto de ruptura e de impossível volta atrás. Aquela verdadeira traição ao internacionalismo proletário, princípio básico da luta proletária e da revolução comunista, foi assumida e defendida por todos os partidos comunistas do mundo[11] contra o projeto histórico da classe operária. Ao mesmo tempo que assinalava o abandono de todo projeto proletário, a tese do socialismo em um só país corresponde ao método russo de integração no capitalismo mundial.
Desde meados da década de 1920, Stálin seguiu uma política de liquidação sem piedade de todos os antigos companheiros de Lênin, utilizando em grande abundância os corpos repressivos que o Partido Bolchevique tinha implantado para resistir aos exércitos brancos (em particular a polícia política, a Checa).[12] Todo o mundo capitalista tinha reconhecido em Stálin o homem do momento, o que erradicaria os últimos vestígios da Revolução de Outubro e a que era preciso dar todo o apoio necessário para dissolver e exterminar a geração de proletários e revolucionários que, durante a guerra mundial, tinham ousado envolver-se na luta até a morte contra a ordem capitalista.[13]
O estalinismo persegue e reprime os revolucionários onde quer que estejam, com a ajuda cúmplice das grandes democracias, as mesmas que tinham enviado seus exércitos brancos para matar de fome e tentar pôr abaixo o poder dos sovietes.
A partir de então, “socialismo equivale à Rússia de Stálin”, enquanto que o verdadeiro projeto proletário tende a desaparecer das consciências
A Rússia de Stálin será apresentada pela burguesia estalinista, assim como pela burguesia mundial, como a realização do objetivo último do proletariado, o estabelecimento do socialismo. Neste esforço colaboraram todas as frações mundiais da burguesia, tanto as frações democráticas como os diversos PC nacionais.
A grande maioria daqueles que ainda acreditavam na revolução identificaram seu objetivo com o de instaurar um regime do tipo da URSS em outros países. E quanto mais clara se tornava a realidade da situação da classe operária na URSS, mais profunda se tornava a divisão no proletariado mundial: aqueles que continuaram defendendo o caráter “progressista” (apesar de todas suas deficiências), “sem burguesia”, da União Soviética; aqueles para os quais, pelo contrário, a situação na URSS será um espantalho, mas sem ter a força de conceber um projeto alternativo. O projeto proletário só foi defendido por minorias cada vez menores de revolucionários, que permaneceram fieis a ela.
O proletariado diante da crise de 1929 e 1930
Os anos posteriores à crise de 1929 foram dramáticos para as condições de vida do proletariado mundial, particularmente na Europa e Estados Unidos. De modo geral, no entanto, suas reações diante de tal situação não foram, tampouco, uma resposta capaz de dinamizar a luta de classes e de questionar a ordem estabelecida. E o que é pior ainda, houve reações notáveis na França e na Espanha que acabaram encerradas no atoleiro da luta antifascista.
Na França, a grande onda de greves que se seguiu à chegada da Frente Popular em 1936 pôs claramente em destaque os limites da classe operária sob o peso da mesa de chumbo da contrarrevolução. A onda de greves começou com ocupações espontâneas de fábricas e mostrou inclusive certa combatividade dos trabalhadores. Mas, desde os primeiros dias, a esquerda pôde utilizar as enormes massas para manobrar e impor a toda a burguesia francesa as medidas do capitalismo de Estado necessárias para enfrentar a crise econômica e preparar-se para a guerra. Se bem seja certo que pela primeira vez na França tenha havido ocupações de fábricas, também foi a primeira vez que se viu os trabalhadores cantando a Internacional e a Marselhesa, marchando atrás de bandeiras vermelhas entrelaçadas com as tricolores.[14] O aparato de enquadramento do PC e dos sindicatos controlava a situação, logrando aprisionar nas fábricas os trabalhadores que se deixavam adormecer ao som do acordeom.
Como o proletariado espanhol tinha ficado relativamente fora da Primeira Guerra Mundial e da onda revolucionária[15], suas forças físicas tinham ficado relativamente intactas para fazer frente aos ataques dos quais foi vítima durante a década de 1930. Por outro lado, houve mais de um milhão de mortos entre 1931 e 1939, cuja parte mais importante deveu-se à guerra civil entre o campo republicano e o do general Franco, uma guerra que nada teve a ver com a luta classes do proletariado, senão que, pelo contrário, foi o seu enfraquecimento que a permitiu. A situação se precipitou em 1936 com o golpe de Estado do general Franco. A resposta dos trabalhadores foi imediata: em 19 de julho de 1936, eles se declararam em greve e se dirigiram massivamente aos quarteis para desarmar a intentona, sem se preocupar com as diretivas contrárias da Frente Popular e do governo republicano. Unindo a luta de protesto com a luta política, os trabalhadores bloquearam a mão assassina de Franco com aquela ação. Mas não a da fração burguesa organizada na Frente Popular. Apenas um ano depois, o proletariado de Barcelona se levantou de novo, mas desta vez de forma desesperada, em maio de 1937, acabando por ser esmagado pelo governo da Frente Popular, do Partido Comunista Espanhol e seu ramo catalão do PSUC à cabeça, enquanto que as tropas franquistas detiveram voluntariamente seu avanço para permitir que os verdugos estalinistas esmagassem os trabalhadores.
Aquela terrível tragédia operária, que ainda hoje se distorce como “uma revolução social espanhola” ou “uma grande experiência revolucionária”, com o esmagamento ideológico e físico das últimas forças vivas do proletariado europeu, culminou com o triunfo da contrarrevolução. Aquela matança foi um ensaio geral que abriu as portas de par em par ao desencadeamento da guerra imperialista.[16]
Anos 30: a burguesia volta a ter as mãos livres para impor sua solução para a crise
A República de Weimar se notabilizou introduzindo uma profunda racionalização da exploração da classe operária na Alemanha, acompanhada de medidas para que os trabalhadores estivessem representados na empresa com o objetivo de mistificá-los.
Na Alemanha, entre a República de Weimar (1923) e o fascismo (1933), não surgiria nenhuma oposição: aquela havia permitido esmagar a ameaça revolucionária, dispersar o proletariado, apagar sua consciência; o nazismo, por sua vez, ao final dessa evolução, arremataria a obra, alcançando com mão de ferro a unidade da sociedade capitalista e estrangulando toda ameaça proletária.[17]
Em todos os países europeus surgem partidos que reivindicam Hitler ou Mussolini, cujo programa é fortalecer e concentrar o poder político e econômico em mãos de um partido único no Estado. Seu desenvolvimento se combina com uma vasta ofensiva antioperária do Estado, baseada em um aparato repressivo reforçado pelo exército, e com milícias fascistas quando seja necessário. Desde a Romênia até a Grécia, vemos o desenvolvimento de organizações de tipo fascista que, com a cumplicidade do Estado nacional, assumem a tarefa de impedir qualquer reação dos trabalhadores. A ditadura capitalista tornava-se visível, tomando a maioria das vezes a forma do modelo mussoliniano ou hitleriano.
A manutenção do marco da democracia foi, pelo contrário, possível nos países industrializados menos afetados pela crise. Foi inclusive uma necessidade para mistificar para o proletariado. O fascismo, ao engendrar o “antifascismo”, fortaleceu as capacidades de mistificação das “potências democráticas”. Sob o disfarce da ideologia das Frentes Populares[18], que permitiu manter os trabalhadores desorientados atrás dos programas de união nacional e de preparação para a guerra imperialista, e em cumplicidade com a burguesia russa, a maioria dos PCs servis ao novo imperialismo, organizaram uma vasta campanha sobre o aumento do perigo fascista[19]. A burguesia só podia fazer a guerra enganando os proletários, fazendo-os acreditar que a guerra também era sua: “ao deter a luta de classes ou mais exatamente ao destruir a potência da luta proletária, desviando suas lutas, a burguesia alcança por meio de seus agentes infiltrados dentro do proletariado, esvaziar as lutas de seu conteúdo revolucionário, colocando-as pelas vias do reformismo e do nacionalismo, e alcançar assim a condição última e decisiva para o desencadeamento da guerra imperialista.” (Informe sobre a situação internacional, Esquerda Comunista da França, julho de 1945, Extratos)[20]
Os massacres da Segunda Guerra Mundial
A maioria dos combatentes alistados em ambos lados, ainda traumatizados pela morte de seus pais apenas 25 anos antes, não foram à frente com um ramo de oliveira no fuzil. E o que encontraram não era nenhuma alegria: a “Blitzkrieg”, por mais rápido que tenha sido, causou 90.000 mortos e 120.000 feridos no lado francês, 27.000 mortos no lado alemão. O desastre na França levou dez milhões de pessoas a condições espantosas, deslocando para evadir-se dos combates. Um milhão e meio de prisioneiros foram enviados à Alemanha. Por todas as partes condições inumanas de sobrevivência: êxodo massivo na França, terror do estado nazista enquadrando a população alemã.
Tanto na Itália como na França, muitos trabalhadores se uniram aos maquis (organizações guerrilheiras nacionalistas) naquele momento. O partido estalinista e os trotsquistas deram-lhes o exemplo fraudulentamente disfarçado da Comuna de Paris (os trabalhadores não vão se levantar contra sua própria burguesia dirigida por Pétain, o novo Thiers, enquanto os alemães ocupam a França?). No meio de uma população aterrorizada e impotente diante do desecadeamento da guerra, muitos trabalhadores franceses e europeus, recrutados por grupos de resistentes, foram assassinados acreditando que estavam lutando pela “liberação socialista” da França, da Itália... Os grupos de resistentes estalinistas e trotsquistas concentraram em especial sua odiosa propaganda para que os trabalhadores se pusessem “na vanguarda da luta pela independência dos povos.”
Enquanto a Primeira Guerra Mundial matou 20 milhões de pessoas, a Segunda Guerra Mundial chegou a matar 50 milhões, dos quais 20 milhões foram russos massacrados na frente europeia. 10 milhões de pessoas morreram nos campos de concentração, dentre os quais 6 milhões pela política nazista de extermínio dos judeus. Ainda que nenhuma das bestialidades macabras do nazismo seja agora desconhecida pelo público em geral, diferentemente dos crimes das grandes democracias, os crimes nazistas continuam sendo uma ilustração irrefutável da barbárie ilimitada do capitalismo dependente, ... e também da hipocrisia odiosa do campo dos aliados. Na verdade, no momento de libertação, os aliados fingiram descobrir os campos de concentração. Pura encenação para ocultar sua própria barbárie, expondo aquela do inimigo derrotado. De fato, a burguesia, tanto a britânica como a norte-americana, conheciam perfeitamente a existência e o que ocorria ali. E, no entanto, algo aparentemente estranho, não falou disso durante toda a guerra e tampouco se tornou um tema central de sua propaganda. De fato, o que os governos de Churchill e Roosevelt temiam era que os nazistas expulsassem massivamente os judeus para esvaziar os campos. Por isso recusaram as ofertas de intercâmbio de um milhão de judeus. Nem sequer os quiseram em troca de nada.[21]
No último ano da guerra, as concentrações operárias foram o alvo direto dos bombardeios para debilitar a classe operária na medida do possível dizimando-a ou aterrorizando-a.
A burguesia mundial toma medidas para eliminar qualquer risco de que o proletariado venha à tona
O objetivo é que não se repita o ressurgimento do proletariado como em 1917-18 ante os horrores da guerra. Por isso, os bombardeios anglo-americanos – principalmente sobre a Alemanha, mas também sobre a França – foram um sinistro “êxito”. O número de mortos do que sem dúvida foi um dos maiores crimes de guerra da segunda carnificina mundial, ao redor de 200.000 mortos[22], quase todos civis, o bombardeio de 1945 de Dresden, “cidade hospital” sem nenhum interesse estratégico. Somente para dizimar e aterrorizar a população civil[23]. Em comparação, Hiroshima, outro crime atroz, matou 75.000 pessoas e os terríveis bombardeios estadunidenses sobre Tóquio em março de 1945 causaram 85.000 mortes.
Em 1943, quando Mussolini foi derrubado e substituído pelo marechal Badoglio, que era a favor dos aliados, quando já estes controlavam o sul do país, não fizeram nada para avançar ao norte. A ideia era deixar que os fascistas saldassem suas contas com as massas de trabalhadores que tinham se rebelado em um terreno de classe nas regiões industriais do norte da Itália. Perguntando sobre tal passividade, Churchill respondeu: “Há que deixar que os italianos cozinhem a fogo lento em seu próprio molho. ”
Desde o final da guerra, os aliados favoreceram a ocupação russa ali onde havia surgido revoltas operárias. O Exército Vermelho tinha melhores cartas nas mãos para restaurar a ordem naqueles países, seja massacrando o proletariado, seja desviando-o de seu terreno de classe em nome do “socialismo”.
Foi estabelecida uma repartição de trabalho similar entre o Exército Vermelho e o exército alemão. Em Varsóvia e Budapeste, já em seus subúrbios, o Exército “Vermelho” deixou que o exército alemão esmagasse, sem mover um dedo, as insurreições contra si. Stálin confiou a Hitler a tarefa de massacrar dezenas de milhares de trabalhadores armados que podiam ter frustrado seus planos.[24]
A burguesia “democrática” dos países vitoriosos não somente ofereceu a Stálin territórios com “alto risco social”, senão que também chamou os PCs para que assumissem o governo em grande parte dos países europeus (em particular na França e na Itália), deixando-lhes cadeiras em importantes ministérios (na França Thorez, secretário do Partido Comunista, foi nomeado vice-presidente do Conselho de Ministros em 1944).
No imediato pós-guerra: o terror imposto à população alemã
Continuando com os massacres preventivos destinados a impedir que surgisse de uma ou outra forma o proletariado na Alemanha no final da guerra, os que ocorreram depois da guerra não foram menos brutais e expeditos.
A Alemanha foi transformada em um vasto campo de extermínio pelas potências ocupantes: Rússia, Grã-Bretanha, França e Estados Unidos. Depois da guerra, morreram muito mais alemães que em batalhas, bombardeios e campos de concentração durante a própria guerra. Segundo James Bacque, autor de “Crimes e misericórdias: o destino dos civis alemães sob a ocupação aliada, 1944-1950”,[25] mais de 9 milhões morreram como resultado da política do imperialismo aliado entre 1945-1950.
A política de Potsdam mudou somente quando esse objetivo assassino foi alcançado e o imperialismo norte-americano se deu conta de que o esgotamento da Europa depois da guerra poderia levar à dominação do imperialismo russo em todo o continente. A reconstrução da Europa Ocidental requeria a ressurreição da economia alemã. A ponte aérea de Berlim em 1948 foi o símbolo dessa mudança de estratégia[26]. Com certeza, tal qual o bombardeio de Dresden, “...o mais belo ataque de terror de toda a guerra [que] tinha sido obra dos Aliados vitoriosos”, a burguesia democrática fez todo o possível para deturpar a realidade do verdadeiro custo de uma barbárie amplamente compartilhada por ambos bandos da Guerra Mundial.
O proletariado não pôde se levantar em uma luta frontal contra a guerra
Apesar das manifestações ocasionais de lutas em diferentes lugares, especialmente na Itália em 1943, o proletariado não pôde se erguer contra a barbárie da Segunda Guerra Mundial, como tinha feito contra a Primeira.
A Primeira Guerra Mundial tinha conquistado milhares de trabalhadores para o internacionalismo, a segunda os atirou às margens do mais depreciável chauvinismo, à caça de “alemães”[27] e “colaboracionistas”.[28]
O proletariado tocou o fundo do poço. O que tinha diante de si, e que interpretou como sua grande “vitória”, o triunfo da democracia sobre o fascismo, foi sua derrota histórica mais completa. Permitiu construir os pilares ideológicos da ordem capitalista: o sentimento de vitória e euforia embargava o proletariado, sua crença nas “virtudes sagradas” da democracia burguesa, a mesma que o tinha arrastado a duas carnificinas imperialista e que tinha esmagado sua revolução em princípios da década de 1920. E durante o período de reconstrução, e logo o “boom” econômico do pós-guerra, a melhoria temporária de suas condições de vida no Ocidente não permitiu medir a verdadeira derrota que tinha sofrido.[29]
Nos países da Europa do Leste, que não se beneficiaram do maná americano do Plano Marshall porque os partidos estalinistas o recusaram por ordem de Moscou, a situação tardou mais em melhorar um pouco. A mistificação apresentada aos trabalhadores é a da “construção do socialismo”. Esta mistificação teve certo êxito, como na Checoslováquia, onde o “golpe de Praga” de fevereiro de 1948, ou seja, o controle do governo pelos estalinistas, realizou-se com a simpatia de muitos trabalhadores.
Uma vez esgotada esta ilusão, produziram-se levantamentos operários como na Hungria em 1956, mas foram brutalmente reprimidos pelas tropas russas[30]. A participação das tropas russas na repressão foi então uma fonte adicional de nacionalismo nos países da Europa do Leste. Ao mesmo tempo, esses fatos foram utilizados amplamente pela propaganda dos setores “democráticos” e pró-americanos da burguesia dos países da Europa Ocidental, enquanto que os partidos estalinistas destes países utilizavam a mesma propaganda para apresentar a insurreição operária húngara como um movimento chauvinista, inclusive “fascista”, a soldo do imperialismo estadunidense.
Ademais, ao longo da “Guerra Fria”, e até quando foi seguida pela “coexistência pacífica” depois de 1956, a divisão do mundo em dois blocos foi um importante instrumento de mistificação da classe operária.
Nos anos 50, o mesmo tipo de política que nos anos 1930 continuou dividindo e desorientando a classe operária: uma parte da classe operária já não queria nem ouvir falar de “comunismo” (identificado com a URSS), enquanto que a outra parte continuava sofrendo da dominação ideológica dos partidos estalinistas e seus sindicatos. Assim, desde a Guerra da Coreia, a confrontação Leste-Oeste foi utilizada para opor os diferentes setores da classe operária e recrutar milhões de trabalhadores sob as bandeiras do campo soviético em nome da “luta contra o imperialismo”. Naquela mesma época, as guerras coloniais deram uma oportunidade suplementar para desviar os trabalhadores de seu terreno de classe em nome, mais uma vez, da “luta contra o imperialismo” (e não contra o capitalismo) contra a qual se apresentava a URSS como campeã do “direito e da liberdade dos povos”. Este tipo de campanha continuaria em muitos países durante as décadas de 1950 e 1960, sobretudo com a guerra do Vietnã, na qual os Estados Unidos se envolveram massivamente a partir de 1961.[31]
Outra consequência daquele longo e profundo retrocesso da classe operária foi a ruptura orgânica com as frações comunistas do passado[32], impondo-se, dessa forma, a futuras gerações de revolucionários a necessidade de reapropriar-se criticamente do aquisições do movimento operário.
A crise de 1929 e dos anos 30 provocou, no melhor dos casos, certas reações de combatividade do proletariado como na França e na Espanha, mas que, como dissemos anteriormente, foram desviadas do terreno de classe para o do antifascismo e da defesa da democracia, graças à influência de estalinistas, trotsquistas e sindicatos. Isso só serviu para que a contrarrevolução se estendesse mais ainda.
Em 1968, estávamos apenas no início do retorno da crise econômica mundial. No entanto, o que explica em grande parte o aumento da combatividade operária na França a partir de 1967 são os efeitos, nesse país, da referida crise econômica mundial: aumento do desemprego, congelamento de salários, intensificação de ritimos na produção, ataque à seguridade social. Estalinistas e sindicatos têm mais dificuldades para canalizar esse ressurgimento da combatividade operária, que começa a dar as costas a essas grevezinhas e jornadas de ação sindical. Já em 1967 aparecem conflitos muito ferrenhos e determinados frente à violenta repressão patronal e policial, nos quais os sindicatos foram ultrapassados em várias ocasiões.
O objetivo deste artigo não é tratar todos os aspectos importantes do mês de maio de 1968 na França. Para isso remetemos o leitor para os artigos “Maio de 68 e a perspectiva revolucionária” escritos por ocasião do 40º aniversário desses acontecimentos.[33] Recordar certos fatos, no entanto, é importante para ilustrar a mudança na dinâmica da luta de classes ocorrida em maio de 1968.
Em maio, a atmosfera social muda radicalmente. “Em 13 de maio, todas as cidades do país vivem as maiores manifestações [em solidariedade aos estudantes vítimas da repressão] desde o final da Segunda Guerra Mundial. A classe operária acode em massa junto aos estudantes. (...) Ao final das manifestações, foram ocupadas quase todas as universidades não somente por estudantes, mas também por muitos jovens operários. A palavra torna-se livre por todas as partes. As discussões não se limitam a questões universitárias, à repressão. Começam a ser abordados todos os problemas sociais: as condições de trabalho, da exploração, o futuro da sociedade (...) Em 14 de maio, os debates seguem em muitas empresas. Depois das imensas manifestações do dia anterior, com todo o entusiasmo e o sentimento de força que haviam proporcionado, era difícil retornar ao trabalho como se não houvesse acontecido nada. Em Nantes, os operários da Sul-Aviação, animados pelos mais jovens, lançam uma greve espontânea e decidem ocupar a fábrica. A classe operária começa a ganhar destaque.”[34]
O aparato clássico de enquadramento da burguesia não resiste diante da espontaneidade da classe operária para entrar em luta. Assim, nos três dias seguintes à manifestação de 13 de maio, a greve se estendeu espontaneamente para as empresas de toda a França. Os sindicatos ultrapassados só fazem seguir o movimento. Não há reivindicações precisas. Uma característica comum: greve geral, ocupação ilimitada, sequestro da direção, bandeira vermelha içada. Ao fim, a CGT chama à extensão, tentando assim “subir no trem em movimento”[35]. Mas inclusive antes de que se conhecessem as instruções da CGT, um milhão de trabalhadores já estavam em greve.
A crescente consciência da classe operária de sua própria força estimulava a discussão em seu seio e a discussão política em particular. Isto lembra, guardadas as devidas proporções, a vida política efervescente que vivia a classe operária, tal como narrado nos escritos de Trotsky e J. Reed, na situação revolucionária de 1917.
O manto de mentiras urdido durante décadas pela contrarrevolução e seus partidários, tanto estalinistas como democratas, começou então a ser desvendado. Os filmes amadores rodados na fábrica ocupada da Sul-Aviação em Nantes mostram uma discussão apaixonada num grupo de trabalhadores sobre o papel dos comitês de greve na “dualidade de poder”. A dualidade de poder em 1917 foi produto da luta pelo poder real entre o estado burguês e os conselhos operários. Em muitas fábricas em greve, em 1968, os trabalhadores elegeram comitês de greve. Desde logo, muito se distanciava de uma situação revolucionária, mas o que estava de fato acontecendo era uma tentativa da classe operária recuperar sua própria experiência, seu passado revolucionário. Outra experiência o atesta: “Alguns operários pedem aos que defendem a ideia de revolução que venham defender suas ideias em sua fábrica ocupada. E foi assim como, em Toulouse, o pequeno núcleo que mais tarde fundaria a seção da CCI na França foi convidado a expor a ideia dos conselhos operários na fábrica JoB (papel e papelão) ocupada. E o mais significativo é que este convite provinha de militantes... da CGT e do PCF. Estes tiveram que discutir durante uma hora com permanentes da CGT da grande fábrica Sul-Aviação vindos para “reforçar” o piquete de greve da JoB para obter a autorização para deixar entrar os “esquerdistas” na fábrica. Durante mais de seis horas, operários e revolucionários, sentados de joelhos em papelão, discutiram sobre a revolução, a história do movimento operário, os sovietes, assim como as traições... do PCF e da CGT! ”[36]
Esta reflexão permitiu que milhares de operários redescobrissem o papel histórico dos conselhos operários, assim como das conquistas da luta da classe operária e também as tentativas revolucionárias na Alemanha em 1919. Do mesmo modo, criticou-se cada vez mais o papel desempenhado pelo PC (que então se definia como um partido da ordem) no que estava se passando em 1968, mas também desde a revolução russa. Pela primeira vez foram questionados o poder do estalinismo e o papel do PC como guardião da ordem estabelecida. As críticas também abarcaram os sindicatos, críticas que aumentaram quando se manifestaram abertamente como traidores da classe operária para conseguir que os operários retornassem aos seus postos de trabalho.[37]
Começava outra era, caracterizada por um “renascimento” da consciência de classe entre as grandes massas operárias. Essa ruptura com a contrarrevolução não significou que esta não continuasse pesando negativamente no desenvolvimento posterior da luta de classes, nem que a consciência operária estivesse livre de ilusões muito fortes, particularmente com relação aos obstáculos a ser superados no caminho da revolução, muito mais longe do que a grande maioria imaginava então.
Tal caracterização de maio de 68, como ilustração do fim do período contrarrevolucionário, foi confirmada pelo fato de que, longe de ser um fenômeno isolado, aqueles acontecimentos constituíram-se, pelo contrário, o ponto de partida para a retomada da luta de classes em escala internacional, estimulada pelo aprofundamento da crise econômica e cujo corolário foi o desenvolvimento de um meio político proletário em escala internacional[38]. A fundação em 1968 de Revolução Internacional (RI) é um exemplo disso, já que este grupo desempenhará um papel de destaque no processo de consolidação que levará à fundação da CCI em 1975, cuja seção na França é a RI. Diferente do período sombrio da contrarrevolução, a burguesia tinha agora diante de si uma classe que não estava disposta a aceitar os sacrifícios da guerra econômica mundial, e que também foi um obstáculo para que não estourasse uma nova guerra mundial, como veremos mais adiante.
A CCI acaba de dedicar um artigo[39] a esta questão, que aconselhamos aos nossos leitores, e é dele retiramos elementos necessários para destacar as diferenças entre o período contrarrevolucionário e o período histórico aberto em maio de 1968. Em poucas palavras, a diferença fundamental entre o período da contrarrevolução, iniciado por uma profunda derrota da classe operária, e o iniciado em Maio de 68, é que, desde esse ressurgimento da luta de classes e apesar de todas as dificuldades que proletariado enfrentou, ele não sofreu uma derrota profunda.
O aprofundamento da crise econômica aberta, que estava se iniciando no final dos anos 60, empurrou o proletariado a desenvolver sua combatividade e sua consciência.
Três ondas de lutas se sucederam durante as duas décadas posteriores a 68.
A primeira, sem dúvida a mais espetacular, foi a do outono quente italiano de 1969, o violento levantamento de Córdoba, Argentina de 69 e o da Polônia de 70, e os grandes movimentos na Espanha e Grã-Bretanha de 1972. Também houve o outono quente na Alemanha em 69 com muitas greves selvagens. Na Espanha, em particular, os trabalhadores começaram a se organizar através de assembleias massivas, um processo que culminou em Vitória em 1976. A dimensão internacional da onda ficou patente nos ecos que teve em Israel (1969) e Egito (1972) e, mais tarde, nos levantamentos nos municípios da África do Sul, encabeçados por comitês de luta (os Civics).
Depois de uma breve pausa em meados da década de 1970, houve uma segunda onda de greves de operários do petróleo no Irã, de siderúrgicos na França em 1978, o “inverno do descontentamento” na Grã-Bretanha, a greve dos estivadores de Roterdã, dirigida por um comitê de greve independente, e greves de siderúrgicos no Brasil em 1979, que também desafiaram o controle sindical; na Ásia se produziu a revolta de Kwangju (Coreia do Sul). Esta onda de lutas culminou na Polônia em 1980, sem dúvida o episódio mais importante da luta de classes desde 1968, inclusive desde a década dos 1920.
Ainda que a severa repressão aos trabalhadores polacos tenha posto fim a esta onda, não passou muito tempo até que se produzisse um novo movimento com lutas na Bélgica em 1983 e 1986, a greve geral na Dinamarca em 1985, a greve mineira na Inglaterra em 1984-85, as lutas dos trabalhadores ferroviários e da saúde na França em 1986 e 1988, e o movimento de trabalhadores da educação na Itália em 1987. As lutas na França e na Itália, em particular – como a greve de massas da Polônia – demonstraram uma capacidade real de auto-organização com assembleias gerais e comitês de greve.
Esse movimento de ondas de lutas não dava voltas no vazio, senão que conquistou avanços reais na consciência de classe, que se refletiu no seguinte:
Mas a experiência daqueles 20 anos de luta não só proporcionou lições “negativas” para a classe operária (ou seja, o que não se deve fazer). Também se traduziu em lições de como devem ser feitas as coisas:
Da mesma forma, as manobras mais sofisticadas desenvolvidas pela burguesia para enfrentar a luta de classes são já de per si uma testemunha do desenvolvimento dessa luta durante esse período. Com feito, a burguesia teve que fazer frente ao crescente desencanto em relação aos sindicatos oficiais e à ameaça de auto-organização, fomentando formas de sindicalismo, chegando até a se organizar “fora dos sindicatos” (a coordenação estabelecida pela extrema esquerda na França, por exemplo).
Ao final desses vinte anos posteriores a 1968, ao não ter conseguidoinfligir uma derrota histórica decisiva da classe operária, a burguesia não foi capaz de mobilizá-la para uma nova guerra mundial, à diferença da situação dos anos trinta, como demonstramos antes neste artigo.
Com efeito, à burguesia era impossível lançar-se a uma guerra mundial sem ter se assegurado previamente da docilidade do proletariado, requisito indispensável para que este aceite os sacrifícios que exige o estado de guerra: a mobilização de todas as forças vivas da nação, tanto na produção como nas frentes. Esse objetivo era, de fato, totalmente irrealista, já que o proletariado sequer estava disposto a submeter-se obedientemente às medidas de austeridade que a burguesia tinha que tomar para enfrentar as consequências da crise econômica. Por isso, a terceira guerra mundial não aconteceu durante aquele período, e isso apesar das tensões entre os blocos estarem em seu apogeu e já estivessem formadas as alianças entre ambos blocos. Além disso, em nenhuma das concentrações históricas do proletariado a burguesia tentou mobilizá-lo massivamente para fazê-lo de carne de canhão nas diferentes guerras locais, todas elas emolduradas pela rivalidade Leste-Oeste, que durante todo esse período também puseram o mundo a sangue e fogo.
Isto se aplica especialmente à classe operária no Ocidente, mas também à classe operária no Oriente, ainda que politicamente mais débil, dado o dano causado pelo compressor estalinista, particularmente na URSS. De fato, a burguesia estalinista metida num atoleiro econômico, tinha na sua frente uma classe que lutava (como o ilustraram em particular as greves na Polônia em 1980) e que era claramente impossível mobilizar numa solução militar à bancarrota de sua economia.
Dito isto, ainda que a classe operária tenha sido um obstáculo para a guerra mundial até finais dos anos oitenta, porque tinha sido capaz de desenvolver suas lutas de resistência aos ataques do capital nas duas décadas posteriores a 1968 sem sofrer uma derrota profunda que invertesse uma dinâmica global de crescente confrontação entre classes, não foi, por outro lado, capaz de prevenir guerras no planeta. De fato, durante este período, nunca cessaram. Na maioria dos casos, eram a expressão de rivalidades imperialista entre Oriente e Ocidente, não num choque direto entre eles, senão através de países interpostos. E nestes países, pertencentes à periferia do capitalismo, o proletariado não era uma força capaz de paralisar o braço armado da burguesia.
Apesar desses avanços na luta de classes, especialmente importantes no que se refere à consciência de classe, e apesar da burguesia não ter sido capaz de alistar o proletariado em um novo conflito mundial, a classe operária foi, contudo, incapaz de desenvolver a perspectiva revolucionária, de colocar sua própria alternativa política para a crise do sistema.
Portanto, nenhuma das duas classes fundamentais estava em condições de impor sua solução para a crise do capitalismo. Sem nenhuma saída, e sempre atolado numa crise econômica de longa duração, o capitalismo estava começando a apodrecer, e tal putrefação começou a afetar a sociedade capitalista em todos os níveis. O capitalismo entrava assim em uma nova fase de sua decadência, aquela de sua decomposição social. Como já assinalamos com frequência, esta fase é sinônimo de maiores dificuldades para a luta do proletariado.[40]
Olhando para as últimas três décadas, podemos dizer que a deterioração da consciência se aprofundou, causando uma espécie de amnésia a respeito das conquistas e avanços do período 1968-1989. Isto se explica fundamentalmente por dois fatores:
Apesar destas enormes dificuldades da classe operária desde 1990, é preciso ter em conta dois elementos para entender o período atual:
De fato, nas últimas décadas houve uma série de movimentos importantes que afiançam essa análise.
As ameaças que a sobrevivência do capitalismo representa para a humanidade demonstram que a revolução é mais do que nunca uma necessidade para a espécie humana: a expansão do caos bélico, a catástrofe ecológica, a fome e as enfermidades numa escala sem precedentes; a decadência do capitalismo e a decomposição ampliam sem a menor dúvida a ameaça de que a base objetiva de uma nova sociedade possa ser destruída para sempre se continua avançando a decomposição além de um determinado ponto. Mas, inclusive em sua última fase, o capitalismo produz ainda as forças que podem derrubá-lo, assim como dizia o Manifesto Comunista de 1848, “o que, acima de tudo, produz a burguesia, é a seu próprio coveiro.”
Com a entrada do capitalismo em sua fase de decomposição, por mais que seja acompanhada de maiores dificuldades para o proletariado, não há indícios de que tenha sofrido uma derrota com consequências irreversíveis e que, portanto, aceite todos os sacrifícios tanto em matéria de condições de trabalho como para o recrutamento para a guerra imperialista.
Não sabemos quando, nem com que amplitude se produzirão as próximas manifestações desse potencial do proletariado. O que sabemos, contudo, é que a intervenção decidida e capaz da minoria revolucionária já está hoje condicionando o futuro fortalecimento da luta de classes.
Silvio (julho de 2018)
[1] Victor Serge é conhecido sobretudo por seu célebre relato sobre a revolução russa, O Ano I da Revolução russa
[2] “Nasceu uma nova época. Época de desagregação do capitalismo, de seu desmoronamento interior. Época da revolução comunista do proletariado. ” Carta de convite ao primeiro congresso internacional da Internacional Comunista. Pode-se ler nosso artigo da série O comunismo não é um belo ideal, mas está na ordem do dia da história. “A Plataforma da Internacional Comunista”. Revista Internacional nº 94.
[3] A Quarta Internacional, ao apoiar a Rússia imperialista (depois da morte de Trotsky), traiu por sua vez o internacionalismo proletário. Ver nosso artigo “Le trotskinme et la deuxième guerre mondiale” em nosso folheto Trotskysme contre la classe ouviere (em francês). Em português "Trotsky e o trotskismo [297]".
[4] Isso obrigará o poder na Rússia a firmar os acordos de Brest-Litovsk, para dessa forma evitar o pior.
[5] Ler nosso artigo "La burguesía mundial contra la revolución de octubre (I) [259]"
[6] Paul Frölich, Rudolf Lindau, Albert Schreiner, Jakob Walcher, Revolução e contrarrevolução na Alemanha 1918-1920 (edição em francês) Éditions Science Marxiste, 2013
[7] Revolución Alemana (III) ; "La insurrección prematura [298]" na Revista internacional n° 83 "1918-1919: La guerra civil en Alemania [45]" na Revista internacional n° 136
[8] Ler nosso artigo "La acción de marzo de 1921 o el peligro de la impaciencia pequeño burguesa [299]" na Revista internacional n° 93
[9] "os intentos de ganhar apoio das massas em uma fase de retrocesso destas, engendraram "soluções" oportunistas: a insistência crescente na importância dada ao trabalho no Parlamento e sindicatos, o chamamento aos "povos do Leste" a levantar-se contra o imperialismo e, sobretudo, a política de Frente Única com os partidos social-patriotas, a qual atirou ao lixo a claridade ganha com tanto empenho a respeito da natureza doravante capitalista destes partidos" "A esquerda comunista e a continuidade do marxismo [40]"
[10] Ler na série O comunismo não é um belo ideal, mas está na ordem do dia da história” nosso artigo “VIII – compreender a derrota da Revolução russa; 1922-1923: as frações comunistas enfrentam a contrarrevolução a caminho” https://es.internationalism.org/revista-internacional/200010/985/viii-la-comprension-de-la-derrota-de-la-revolucion-rusa-1922-23-las [300]. Revista internacional 101 (2000)
[11] Também os demais partidos terão frações de esquerda. Pode-se ler "A esquerda comunista e a continuidade do marxismo [40]"
[12] “Como Stálin exterminou os militantes da Revolução de Outubro de 1917”, Revolução Mundial nº 103, https://es.internationalism.org/rm/2008/103_stalin [301]
[13] É assim, por exemplo que a partir de 1925 Stálin recebeu o apoio infalível da parte da burguesia internacional na sua luta contra a Oposição de Esquerda que, no seio do partido bolchevique, tentava manter uma política internacionalista contra a tese do socialismo num país só.
[14] Como contou nosso camarada Marc Chirik: “Passar aqueles anos de terrível isolamento, ver o proletariado francês levantando a bandeira tricolor, a bandeira de Versalhes e cantando a marselhesa, tudo isso em nome do comunismo, foi para todas as gerações que tinham permanecido revolucionárias, uma fonte de uma tristeza horrível.” Veja-se nosso artigo “Marc: Da revolução de outubro de 1917 à Segunda Guerra Mundial.” Revista Internacional nº 65 (1991). https://es.internationalism.org/revista-internacional/200608/1053/marc-de-la-revolucion-de-octubre-1917-a-la-ii-guerra-mundial [302]
[15] Deve-se, entretanto, assinalar que uma forte minoria no seio da CNT se declarou a favor da adesão à Internacional comunista quando da fundação.
[16] Ver nosso folheto Franco e a República massacram o proletariado. (textos de Bilan) https://es.internationalism.org/cci/200602/539/espana-1936-franco-y-la-republica-masacran-al-proletariado [255] ou também: Lições da Espanha 1936, https://es.internationalism.org/revista-internacional/197609/2061/bilan-lecciones-de-espana-1936-y-crisis-en-la-fraccion [303].
[17] Ver o artigo : " El aplastamiento del proletariado alemán y la ascensión del fascismo [304] " no número 16 da revista Bilan (março 1935), publicado novamente na Revista internacional n° 71.
[18] Para mais informações, ler "1936: Frentes populares en Francia y en España - cómo movilizó la izquierda a la clase obrera para la guerra" [305]. Reviste internacional n° 126.
[19] Ler: "Las conmemoraciones de 1944 (i) - 50 años de mentiras imperialistas [306]". Reviste internacional n° 78.
[20] "Internationalisme 1945 - Las verdaderas causas de la Segunda Guerra Mundial [268]", Revista internacional 59, 1989.
[21] Pode-se ler “Recordemos os massacres e os crimes das grandes democracias. ” Revista Internacional n 66
[22] Segundo as estimativass americanas feitas após a guerra.
[23] Por informação os bombardeios mais imorais de populações civis que aconteceram anteriormente na Alemanha foram os de Hamburg (50 000 mortos e 40 000 feridos essencialmente nas zonas residenciais e operarias), Kassel (10 000 mortos em outubro 1943), Darmstadt, Königsberg, Heilbronn (mais de 24 000 mortos no início de 1944), Braunschweig (23 000 pessoas carbonizadas ou asfixiadas), Berlin (25 000 mortos).
[24] Ler o artigo de nosso folheto em francês "Quand les démocraties soutenaient Staline pour écraser le prolétariat [307]".
[25] Este livro está disponível em inglês sob o título Crimes and Mercies: The Fate of German Civilians Under Allied Occupation, 1944-1950. Para o autor, “Mais de 9 milhões de alemães morreram como resultado da fome deliberada dos aliados e das políticas de expulsão depois da Segunda Guerra Mundial: uma quarta parte do país foi anexada e ao redor de 15 milhões de pessoas foram expulsas no maior ato de limpeza étnica que o mundo tinha visto até então. Mais de 2 milhões deles, incluindo inúmeras crianças, morreram nas estradas ou nos campos de concentração na Polônia e outros lugares. Os governos ocidentais continuam negando que essas mortes ocorreram. ”
[26] Ler nosso artigo "Berlín, 1948 - en 1948, el puente aéreo de Berlín oculta los crímenes del imperialismo "aliado" [308]" en la Revista internacional n° 95.
[27] Termo pejorativo para designar um soldado ou uma pessoa de origem alemã e do qual o emprego pelo Partido Comunista Francês em era destinado a agitar o ódio chauvinista dos alemães.
[28] Refere-se pessoas que, durante a segunda guerra mundial "traíram" colaborando com o inimigo alemã.
[30] Ler nosso artigo "Lucha de clases en la Europa del este (1920-1970) [310]"
[31] Leia-se a respeito: “No início do século XXI, por que o proletariado não acabou ainda com o capitalismo? (II)” https://es.internationalism.org/revista-internacional/201111/3245/al-inicio-del-siglo-xxi-por-que-el-proletariado-no-ha-acabado-aun- [193], Revista Internacional n° 104 (2001).
[32] Aquelas que se destacaram dos antigos partidos operários que tinham degenerado com a derrota da onda revolucionaria mundial de 1917-23. https://pt.internationalism.org/icconline/2005_esquerda_comunista [40]
[33] Estes são dois artigos: "Mayo del 68 y la perspectiva revolucionaria (1a parte) - El movimiento estudiantil en el mundo en los años sesenta [137]" "Mayo del 68 y la perspectiva revolucionaria (2a parte) - fin de la contrarrevolución, reanudación histórica del proletariado [311]"“ publicados na Revista Internacional nº 133 e 134 (2008)
[34] “Mayo del 68 y la perspectiva revolucionaria (2a parte)" Revista internacional n° 134.
[35] Isso permitirá que eles estejam presentes no momento das negociações e desempenhem o papel de principais divisores do movimento, fazendo com que os operários voltem para o trabalho, ramo por ramo, através de negociações isoladas em cada um deles.
[36] Idem.
[37] A insistência aqui em questionar a supervisão do PC e dos sindicatos não deve, no entanto, sugerir que eles permaneceram inativos. Em muitas empresas ocupadas, os sindicatos fazem de tudo para isolar os trabalhadores de qualquer contato com o mundo exterior que possa exercer sobre eles uma influência "prejudicial" (por parte daqueles que chamam de "esquerdistas"). Lá mantiveram os trabalhadores ocupados jogando pingue-pongue o dia todo.
[38] Esta questão justifica por sí a elaboração dedicada exclusivamente ao assunto. através de um artigo dedicado à evolução do meio político proletário desde 1968.
Este texto de Internationalisme faz parte de uma série de artigos publicados em 1947, intitulados "Problemas Atuais do Movimento Operário". Nestes artigos, Internationalisme entende "movimento operário" ou "movimento revolucionário" como grupos e organizações políticas. Polemiza contra a atmosfera de ativismo entre os grupos que viram, com o fim da Segunda Guerra Mundial, a possibilidade de repetir o processo revolucionário como havia ocorrido no final da Primeira Guerra Mundial, de 1917 a 1923.
Internationalisme analisa, pelo contrário, o fim da Segunda Guerra Mundial como uma profunda derrota da classe operária internacional; as condições não são as mesmas que as do fim da Primeira Guerra Mundial; a classe operária havia sido física e ideologicamente derrotada; a sobrevivência do capitalismo havia acentuado a tendência ao capitalismo de Estado, que modifica o contexto da luta de classes; as condições não estavam, portanto, reunidas para uma retomada geral da luta revolucionária.
Internationalisme luta contra o voluntarismo dos grupos que já propõem a formação imediata do partido, sem levar em conta esse novo contexto do período, tendo como único marco político a repetição, em sua escala microscópica, das posições e orientações do partido bolchevique do período revolucionário, sem nenhum balanço da derrota da revolução e dos erros desse partido. Esses grupos eram divisões do trotskismo e, acima de tudo, eram as frações da Esquerda Comunista Internacional que tinham apoiado a formação de um partido comunista internacionalista (PCInt) na Itália em 1943.
Continuando a crítica que tinha feito desde a constituição do PCInt[1], Internationalisme recorda quais são as condições para a formação de um Partido. A história do movimento operário mostra que o nascimento, o desenvolvimento e o fim, a degeneração ou a traição das organizações políticas do proletariado (Liga dos Comunistas, AIT, Segunda , Internacional Comunista, Partido Bolchevique) estão em estreita relação com a atividade da própria classe operária. Dentro da classe operária, um partido, isto é, uma organização capaz de ter uma influência decisiva no curso dos acontecimentos da luta de classes, só pode surgir se uma tendência para se organizar e se unir contra o capitalismo se expressar na classe, em uma etapa ascendente de luta.
Esta tendência não existia no final da Segunda Guerra Mundial. Os movimentos de greve de 1943 na Itália ou as manifestações contra a fome de 1945 na Alemanha, onde até mesmo a polícia se revoltou contra o poder, são fatos limitados e isolados. Embora demonstrem uma combatividade de classe que todos os grupos reconhecem, permanecem muito limitados e prisioneiros da ideologia e das forças de enquadramento da burguesia, dos partidos de esquerda e dos sindicatos.
Para Internationalisme, este não é o momento para a formação do Partido. Contra aqueles que declaram esta posição como "derrotista", Internationalisme reafirma que o debate não consiste em "construção do Partido" ou "nada", mas quais são então as tarefas dos grupos revolucionários e com a base de qual programa. Para muitos, o que serve como teoria é um pergaminho incoerente que repete as posições da Internacional Comunista, como se nada tivesse acontecido desde o período revolucionário, e que esconde todos os debates que aconteceram antes da guerra.
Na constituição do PCInt há elementos, como Vercesi, que durante a guerra negaram qualquer possibilidade de atividade revolucionária, que se recusou a tomar uma posição contra a guerra, teorizando sobre o "desaparecimento do proletariado", para acabar participando dos "comitês antifascistas"[2]. Há também muitos indivíduos que não participaram nem tomaram conhecimento do trabalho político da esquerda comunista entre as duas guerras mundiais. Respondendo ao chamado de antecessores da década de 1920, que tinham deixado esse trabalho de lado - como Damen e sobretudo Bordiga eles entram nas fileiras do PCInt, sem nunca terem discutido as posições da esquerda.
Internationalisme, que se situa na continuidade do trabalho da Esquerda Comunista, nunca questionou a necessidade de uma atividade revolucionária. Afirma: "(...) o curso da luta de classes não é modificado pela vontade dos militantes, mas também não é modificado independentemente deles". Que atividade? Essa é a questão que Internationalisme coloca às organizações revolucionárias.
A questão da "construção do partido", do PCInt, significa lançar-se em um ativismo sem princípios, um partido feito de retalhos, com restos de diferentes tendências, incluindo grupos que participaram junto com a burguesia na "resistência antifascista". Para Internationalisme, pelo contrário, tratava-se de continuar o trabalho da fração comunista, continuar fazendo o balanço da onda revolucionária anterior (dos anos 1920), tirar lições da derrota e do período de guerra, manter, segundo os meios disponíveis, uma constante propaganda contracorrente, manter o máximo possível o confronto e a discussão em um meio revolucionário tão reduzido pelas condições da época.
Em 1947, Internationalisme pôde comprovar o fracasso de grupos que durante anos confundiram sua própria agitação com a atividade de classe, levando à desmoralização e à dispersão de forças militantes imaturas e reagrupadas precipitadamente, que se enganam, sem qualquer discussão, com perspectivas que nada têm a ver com a realidade.
Havia grupos dissidentes trotskistas que abandonaram o marxismo e se deslocaram. O PCInt, que inicialmente tinha cerca de 3000 membros, estava envolvido num processo de dispersão e abandono em massa. E os dirigentes desse partido, em vez de perceberem as verdadeiras causas desses fenômenos, dão explicações tais como "é uma questão de transformar quantidade em qualidade".
Contra essas distorções, Internationalisme explica o que estava acontecendo denunciando, de um lado, a incapacidade de entender esse período de pós-guerra e, de outro, os métodos utilizados e defendidos pelo PCInt, métodos que negam o aprofundamento político e teórico pelo conjunto de militantes.
Estes métodos são baseados num conceito errôneo de luta de classes e da tomada de consciência; o conceito de que a consciência só pode ser levada para a classe trabalhadora "de fora". Esse conceito, que o PCInt toma de Lênin, o qual, em seu trabalho Que Fazer? o tinha tomado emprestado de Kautsky. Esta visão não concebe a consciência como algo próprio da classe trabalhadora como um todo, em cujo seio o partido é a expressão mais clara e decisiva quanto aos meios e objetivos gerais do movimento. Eles a concebem como algo característico de uma minoria iluminada que possui o conhecimento teórico que ela deve "trazer" para a classe.
Tal conceito aplicado à esfera do partido leva a teorizar que apenas os indivíduos como tal são capazes de aprofundar a teoria revolucionária e depois destilá-la e entregá-la triturada e digerida, por assim dizer, aos membros da organização.
É esta concepção de chefe genial, o único capaz de realizar o trabalho teórico da organização, que critica neste trecho de "Problemas Atuais do Movimento Operário" que publicamos aqui. A atitude que o PCInt defendeu em relação a Bordiga, e que continua a manter hoje em dia em geral em relação às questões teóricas do movimento operário, está ligada a esta concepção. Serve de base para a recusa em discutir abertamente todas as questões e orientações da organização. Para os militantes significa obediência servil e confiança cega nas orientações políticas elaboradas unicamente pelo centro da organização; significa ausência de formação autêntica.
A visão esclerótica do PCInt sobre os métodos de uma organização revolucionária contra a qual Internationalisme lutava já em 1947, continuam a causar estragos hoje, e em particular, nos grupos que se reivindicam do "leninismo". Diante das dificuldades que a atual aceleração da história acarreta, estes critérios só agravam o oportunismo e o sectarismo num meio revolucionário em dificuldades[3].
Contrariamente a esta visão, o partido, como qualquer organização revolucionária, só pode cumprir sua função se for um lugar de elaboração permanente e coletiva por todos seus membros das orientações políticas. Isto implica que deve haver uma discussão a mais aberta e ampla possível, à imagem da classe trabalhadora, cuja emancipação exige uma ação consciente e coletiva da qual participem todas as partes e todos os membros da classe.
Não é algo novo na política que um grupo mude radicalmente sua maneira de ver e agir quando se torna uma grande organização, um partido de massas. Poderíamos citar muitos exemplos destas metamorfoses. Isso também poderia ser dito, e com razão, do partido bolchevique depois da revolução. O que é surpreendente, no que diz respeito ao Partido Comunista Internacionalista de Itália, é a rapidez com que as mentes dos seus principais dirigentes fizeram esta mudança. E isso é ainda mais surpreendente porque, afinal, o PCInt da Itália ainda é, tanto em quantidade quanto a sua função, no máximo, uma fração ampla.
Como é que esta mudança pode ser explicada?
O Partido Comunista Italiano, por exemplo, quando da sua fundação, animado por uma liderança da Esquerda e de Bordiga nela, foi sempre notado, na Internacional Comunista, como o "filho rebelde". O PCI não aceitava a submissão "a priori" à autoridade absoluta dos chefes, mesmo pelos quais tinha a maior estima. O critério do PC d'Italia era que a discussão tinha de ser livre e que era necessário lutar contra qualquer posição política que não partilhasse. Desde a fundação da IC, a fração de Bordiga em várias oportunidades estava em oposição e expressava abertamente suas discordâncias com Lênin e outros líderes do Partido Bolchevique, da revolução russa e da IC. Os debates entre Lênin e Bordiga no Segundo Congresso são bem conhecidos. Ninguém pensou em questionar esse direito de livre discussão. Não teria ocorrido a ninguém ver isto como uma "ofensa" à autoridade dos "chefes". Talvez personagens tão velado e servis como Cachin[4] pudessem ficar escandalizados em seu íntimo, mas depois nem sequer ousaram dizê-lo. Mais que isso, a discussão não era considerada como um direito, mas como um DEVER, como o único meio para elaborar, graças ao confronto de ideias e ao trabalho teórico, posições programáticas e políticas necessárias para a ação revolucionária.
Lênin escreveu: "É dever dos militantes comunistas verificar por si mesmos as resoluções das instâncias superiores do partido. Aquele que, na política, acredita em tudo que se diz, é um idiota irrecuperável". E sabemos o que significava o desprezo de Lênin por estes termos "idiota irrecuperável". Lênin insistiu incessantemente na necessária educação política dos militantes. E aprender, compreender é algo que só pode ser alcançado através da livre discussão, através do confronto geral de ideias pelo conjunto dos militantes sem exceção. E não é apenas um problema de pedagogia, mas uma premissa da elaboração política, do avanço do movimento de emancipação do proletariado.
Depois da vitória do stalinismo e da exclusão da Esquerda da IC, a Fração italiana nunca deixou de lutar contra o mito do líder infalível e, ao contrário de Trotsky, exigiu na oposição de esquerda o maior esforço para o reexame crítico das posições passadas e para o trabalho teórico, através da mais ampla discussão dos novos problemas. A fração italiana fez esse esforço antes da guerra. No entanto, não afirmou ter resolvido todos os problemas; ela própria, como é sabido, estava muito dividida em questões de primeira importância.
Devemos notar, no entanto, que todas essas boas disposições e tradições desapareceram com a formação do Partido. O PCInt é atualmente o agrupamento revolucionário onde a discussão teórica e política é menor, se é que existe alguma. A guerra e o pós-guerra levantaram uma série de novos problemas. Nenhum deles foi abordado nas fileiras do partido italiano. Basta ler os escritos e jornais do partido para perceber sua grande miséria teórica. Quando se lê a ata da Conferência Constituinte do Partido, pergunta-se se ocorreu em 1946 ou em 1926. Um dos líderes do partido, o camarada Damen, aparentemente, tinha razão ao dizer que o partido se recolheu e ressurgiu com as posições de... 1925. O que para ele é uma força, as posições de 1925, expressam claramente o terrível atraso teórico e político, ressaltando a enorme fraqueza do partido.
Nenhum outro período na história do movimento operário atrapalhou tanto as aquisições e colocou tantos problemas novos como este período relativamente curto entre 1927 e 1947, nem mesmo o período transcorrido de 1905 a 1925 tão carregado e atribulado. A maioria das teses fundamentais, as bases da IC, envelheceram e caducaram. As posições sobre a questão nacional e colonial, sobre tácticas, sobre bandeiras democráticas, o parlamentarismo, os sindicatos, o partido e as suas relações com a classe devem ser radicalmente revisadas. Além disso, é necessário responder a problemas como o Estado depois da revolução, a ditadura do proletariado, as características do capitalismo decadente, o fascismo, o capitalismo de Estado, a guerra imperialista permanente, novas formas de luta e a organização unitária da classe trabalhadora. Problemas que a IC mal podia vislumbrar e resolver e que surgiram claramente após a degeneração da Internacional.
Quando, diante da imensidão destes problemas, leem-se as intervenções na Conferência de Turim, repetidas ad nauseum como ladainhas as velhas posições de Lênin em A Doença Infantil do Comunismo, caducas já antes mesmo de serem escritas, quando se vê o partido retomar como se nada tivesse acontecido, as velhas posições de 1924 de participação nas eleições burguesas e na luta dentro dos sindicatos, então nos damos conta da medida do atraso político desse partido e tudo o que lhe resta para recuperar.
E é, no entanto, esse partido que é o mais atrasado, repitamos, no que respeita ao trabalho da Fração de pré-guerra, o que mais se opõe a qualquer discussão política interna ou pública, e é nesse partido onde a vida ideológica é mais desbotada.
Como se explica isso? A explicação foi-nos dada por um dos líderes desse partido, numa conversa que teve conosco[5]. Ele nos disse: "O partido italiano é formado, em sua grande maioria, por pessoas novas sem formação teórica e virgens na política. Os antigos militantes estiveram isolados por 20 anos, apartados de qualquer movimento de pensamento. No estado atual, os militantes são incapazes de abordar os problemas da teoria e da ideologia. A discussão serviria apenas para perturbar o seu ponto de vista, e lhes faria mais mal do que bem. Por ora, o que eles precisam é caminhar em terreno firme, mesmo que seja com posições antigas, desatualizadas, mas já formuladas e compreensíveis para eles. Por ora, basta agrupar as vontades para a ação. A solução dos grandes problemas levantados pela experiência entre as duas guerras requer calma e reflexão. Somente um "grande cérebro" pode abordá-los com benefício e dar a resposta que eles precisam. A discussão geral só espalharia confusão. O trabalho ideológico não é responsabilidade da massa de militantes, mas dos indivíduos. Enquanto estes indivíduos brilhantes não tiverem emergido, não podemos esperar avanços ideológicos. Marx, Lênin, eram indivíduos assim, gênios desse tipo no passado. Temos de esperar agora, a chegada de um novo Marx. Nós, na Itália, estamos convencidos de que Bordiga será esse novo gênio. Agora ele está trabalhando em um trabalho conjunto que conterá as respostas para os problemas que dizem respeito aos militantes da classe operária. Quando este trabalho aparecer, os militantes terão que assimilá-lo e o partido terá que alinhar sua política e sua ação em função desses novos militantes."
Esse discurso, que reproduzimos quase palavra por palavra, contém três elementos. Em primeiro lugar, há a constatação do baixo nível ideológico dos membros do partido. Em segundo lugar, o perigo da abertura de amplos debates no partido, porque eles perturbarão os seus membros, roubando-lhes a coesão. Em terceiro lugar, que a solução de novos problemas políticos Só pode vir de um "cérebro genial".
Sobre o primeiro ponto, o camarada dirigente tem toda a razão. É um fato inquestionável, mas é de se supor que isso deveria incitá-lo a considerar o que vale esse partido, o que esse partido pode representar para a classe operária, o que esse partido poderia trazer para ela.
Já vimos a definição de Marx do que distingue os comunistas do proletariado como um todo. Sua consciência dos objetivos gerais do movimento e dos meios para alcançá-los. Ora, acontece que os membros do partido italiano não se enquadram nessa definição, uma vez que o seu nível ideológico não excede de forma alguma o do proletariado no seu conjunto; será que se pode falar então de um partido comunista? Bordiga formulou muito precisamente a essência do partido como um "corpo de doutrina e uma vontade de agir". Se falta esse corpo de doutrina, nem mil reagrupamentos formam o partido. Para sê-lo de verdade, a primeira tarefa do PCInt é a formação ideológica dos quadros, ou seja, o trabalho ideológico anterior para poder se tornar um verdadeiro partido.
Essa não é a ideia de nosso líder do PCInt, que acredita, ao contrário, que este trabalho pode perturbar a vontade de ação de seus membros. O que dizer de tal forma de ver, de tais ideias senão que sejam simplesmente ABERRANTES? Será necessário lembrar, por exemplo, as valiosas passagens do Que Fazer? em que Lênin cita Engels sobre a necessidade de luta em três frentes: a econômica, a política e a ideológica?
Sempre existiram esses socialistas que temiam que a discussão e a expressão das divergências pudessem perturbar a boa ação militante. Este socialismo pode ser chamado de socialismo obtuso ou socialismo da ignorância.
Contra Weitling, um líder reconhecido, o jovem Marx fulmina: "O proletariado não precisa de ignorância". Se a luta de ideias pode perturbar a ação dos militantes, não seria ainda mais verdadeira no proletariado como um todo? Se seguirmos essas ideias, é melhor dizer adeus ao socialismo, ao não ser de professar que o socialismo é equivalente à ignorância. Estes são conceitos de igreja, que temem que as mentes de seus fiéis sejam perturbadas se muitos problemas doutrinários forem levantados.
Ao contrário da afirmação de que os militantes só podem agir com certeza, "mesmo que estas se baseiem em posições falsas", afirmamos que não há certezas, o que existe é a superação constante das verdades. Só uma ação baseada nos dados mais recentes, que se enriquece continuamente, é revolucionária. Ao contrário, a ação baseada em verdades ultrapassadas e obsoletas é estéril, prejudicial, reacionária. Querem alimentar os seus militantes com verdades absolutamente certas e boas, quando só as verdades relativas, que contêm a sua antítese de dúvida, podem dar uma síntese revolucionária.
Se a dúvida e a controvérsia ideológica podem perturbar a ação dos militantes, seria necessário explicar por que isso seria válido apenas para os nossos dias. Em cada etapa da luta surge a necessidade de superar as posições anteriores. A cada momento se questiona a validade das ideias adquiridas e das posições tomadas. Estaríamos em um círculo vicioso: ou é uma questão de refletir, raciocinar e, portanto, não se pode agir, ou é uma questão de agir sem saber se nossa ação é baseada em um raciocínio bem pensado.
A que bela conclusão nosso líder da PCInt chegaria se fosse lógica com suas premissas! Em qualquer caso, o que o PCInt consegue é fabricar o tipo ideal de "idiota irrecuperável" de que Lênin falava. Seria o "perfeito idiota" elevado à categoria de membro ideal do PCInt da Itália.
Todo o raciocínio do líder sobre a impossibilidade "momentânea" de fazer pesquisa e controvérsia teórico-política dentro do PCInt, não se justifica em nenhuma circunstância. A perturbação causada pelas controvérsias é precisamente a condição para a formação do militante, a condição de que a sua ação possa ser baseada numa convicção que deve ser constantemente testada, compreendida e enriquecida. Esta é a condição fundamental da ação revolucionária. Sem ela não há nada além de obediência cega, cretinismo e servilismo.
O pensamento íntimo do nosso líder está, no entanto, no terceiro ponto. Essa é a sua crença profunda. Os problemas teóricos da ação revolucionária não se resolvem com controvérsias e discussões, mas graças ao cérebro brilhante de um indivíduo, do chefe. A solução não está no trabalho coletivo, mas no individual do pensador isolado em sua mesa, que tira os elementos fundamentais da solução de sua mente brilhante. Uma vez terminado esse trabalho, com a solução dada, resta à massa de militantes, ao partido no seu conjunto, apenas assimilar essa solução e alinhar a sua ação política com ela. As discussões acabariam por ser contraproducentes ou, pelo menos, um luxo inútil, uma estéril perda de tempo. E para apoiar tal tese, eles usam nada menos que o exemplo de Marx.
O líder tem uma ideia curiosa de Karl Marx. Nunca outro pensador foi menos "homem de escritório" do que o Marx. Menos do que em qualquer outro, pode-se caminhar separando em Marx o homem de ação, o militante, do pensador. O pensamento de Marx amadurece em relação direta não com a ação dos outros, mas com sua ação junto com outros no movimento geral. Não há ideia em seu trabalho que Marx não tenha exposto ou se oposto, em conferências e controvérsias, a outras ideias ao longo de sua atividade. É por isso que o seu trabalho respira essa frescura e vitalidade expressiva. Todo o seu trabalho, incluindo O Capital, não passa de uma controvérsia contínua em que a pesquisa teórica mais árdua e abstrata está intimamente ligada à discussão e às polêmicas. É uma forma curiosa de ver o trabalho de Marx, considerá-lo como um produto da miraculosa composição biológica de seu cérebro!
De modo geral, o tempo dos gênios na história humana acabou. O que foi genial no passado? Isso se deveu à relação entre o nível muito baixo de conhecimento humano médio e o conhecimento de alguns indivíduos de elite, entre os quais a diferença era imensurável. Em estágios mais baixos do desenvolvimento do conhecimento humano, o conhecimento muito relativo poderia ser fruto de uma aquisição individual, assim como a produção, que poderia ter um caráter individual. O que distingue a ferramenta da máquina é a mudança de seu caráter, que de ser um produto rudimentar de um trabalho privado torna-se um produto complicado, fruto de um trabalho social coletivo. O mesmo acontece com o conhecimento em geral. Enquanto era algo elementar, um indivíduo isolado podia abraçá-lo em sua totalidade. Com o desenvolvimento da sociedade e da ciência, o conhecimento já não pode ser abraçado pelo indivíduo, mas pela humanidade como um todo. A distância entre o gênio e a média dos homens diminui na mesma proporção em que a soma do conhecimento humano aumenta. A ciência, tal como a produção econômica, tende a se socializar. Do gênio, a humanidade passou para o sábio isolado e do sábio isolado para a equipe de sábios. Para produzir, é necessário contar com a colaboração de grandes massas de trabalhadores; esta mesma tendência à divisão se encontra na produção "espiritual", e é isso que assegura seu desenvolvimento. O gabinete do sábio deu lugar para o laboratório no qual as equipes de sábios cooperam, assim como a oficina do artesão deu lugar para as grandes fábricas.
O papel do indivíduo tende a diminuir na sociedade humana, não como um indivíduo sensível, mas como um indivíduo que emerge da massa confusa e está acima dela. O homem indivíduo está dando lugar ao homem social. A oposição da unidade individual à sociedade será resolvida pela síntese de uma sociedade em que todos os indivíduos recuperam a sua verdadeira personalidade. O mito do gênio não pertence ao futuro da humanidade. Vai acabar por ocupar um lugar no museu da pré-história juntamente com o mito do herói e do semideus.
Podemos pensar o que quisermos do papel decrescente do indivíduo na história da humanidade. Pode-se ser a favor ou lamentar. O que não se pode negar é o processo. Para poder continuar produzindo com técnicas evoluídas, o capitalismo foi obrigado a estabelecer uma instrução geral. A burguesia tem sido forçada a abrir mais e mais escolas, na medida em que isso seja compatível com seus interesses. Foi obrigada a permitir que as crianças dos proletários tivessem acesso a uma instrução mais elevada.
Nesse sentido, a burguesia elevou a cultura geral média da sociedade. Mas não pode ir além de um certo grau sem afetar a sua própria dominação, tornando-se assim um obstáculo ao desenvolvimento cultural da sociedade. Esta é uma das expressões da contradição histórica da sociedade burguesa que só o socialismo poderá resolver. O desenvolvimento da cultura e da consciência constantemente superado será o resultado, mas também a condição do socialismo. E agora, acontece que um homem que se diz marxista, que se apresenta como um dos líderes de um partido comunista, nos fala e nos pede para esperar pelo gênio salvador.
Para nos convencer, o líder contou-nos a seguinte anedota: Um dia, foi à casa de Bordiga, que não via há 20 anos, e pediu a sua opinião sobre alguns dos seus escritos teóricos e políticos. Depois de os ler, Bordiga, que os tinha julgado equivocados, ter-lhe-ia perguntado o que tencionava fazer com eles; publicá-los na revista do partido, o nosso líder respondeu. Bordiga teria respondido que, como não tinha tempo para fazer a pesquisa teórica necessária para refutar o conteúdo destes artigos, ele se opunha à sua publicação. E que se o partido fizesse o contrário, retiraria a sua colaboração literária. A ameaça de Bordiga foi suficiente para o líder renunciar à publicação dos seus artigos.
Esta anedota, que o líder nos disse como algo exemplar, deveria servir para nos convencer da grandeza do professor e da contenção do aluno. Na realidade, o que nos deixa é um sentimento doloroso. Se é verdade, dá-nos uma ideia do estado de espírito que reina no PCInt de Itália, um estado de espírito lamentável. Em outras palavras, não é o partido, a massa de militantes, a classe operária em seu conjunto, que deve julgar se tal ou tal posição seria justa ou errada. As massas nem sequer devem ser informadas. O "mestre" é o único juiz do que ela pode entender e do que deve ser informada. A preocupação sublime é não "perturbar" a quietude das massas! E se o "mestre" estiver errado? Isso é impossível, eles nos dirão, porque se o "mestre" está errado, como pode um simples mortal ter sequer a possibilidade de julgá-lo? O fato é que outros "mestres" já se equivocaram, por exemplo, Marx, Lênin. Ah, mas isso não acontecerá com "nosso mestre", com o Verdadeiro. E se isso acontecer, só o futuro "mestre" terá de endireitar as coisas. Esse é um conceito de pensamento tipicamente aristocrático. Não negamos o grande valor que o conhecimento do especialista, do sábio, do pensador pode ter, mas rejeitamos o conceito monárquico de pensamento, o direito divino sobre o pensamento. Quanto ao "mestre" ele mesmo, este deixa de ser um ser humano cujo pensamento se desenvolve em contato com outros humanos e se torna um tipo de Fênix, um fenômeno que se move por si só, a Ideia pura que procura, contradiz e se apreende a si própria como em Hegel.
Esperar o gênio é proclamar a própria impotência; é como a massa que espera aos pés do Sinai a chegada não se sabe de que Moisés que traz consigo não se sabe que mandamentos da inspiração divina. É a expectativa mais antiga e eterna do Messias que deve levar a liberdade ao seu povo. O já velho canto revolucionário do proletariado, a Internacional, diz: "Nem deus, nem César, nem orador, é o salvador supremo". Seria necessário acrescentar-se "nem gênio", referindo-se especialmente aos membros do PCInt da Itália.
Há múltiplas apresentações e várias dessas visões messiânicas modernas: o culto do "chefe infalível" dos estalinistas, o príncipe Führer dos hilerianos, a filiação dos camisas negras ao Duce. São a expressão da angústia da burguesia decadente que se torna vagamente consciente de seu fim próximo e que tenta salvar-se a si mesma ajoelhando-se diante do primeiro aventureiro. O conceito de gênio faz parte da mesma família de divindades.
O proletariado não deve ter medo de olhar a realidade de frente, porque o futuro do mundo lhe pertence.
[1] Ver, "A tarefa do momento: formação do partido ou formação dos quadros" in Revista Internacional n° 32, 1983 (versão em francês ou inglês).
[2] Pode-se ler o livro publicado pela CCI em francês e espanhol Contribuição para a história da Esquerda Comunista na Itália.
[3] Ver: Convulsões atuais do meio revolucionário, na Revista Internacional, nº 28, 1982. Em francês Convulsions actuelles du milieu révolutionnaire [317].
[4] Marcel Cachin, um conhecido "homem político" do estalinismo francês. Ex-parlamentar do Partido Socialista Francês (SFIO), foi diretor do gabinete do ministro socialista Sembat durante a Primeira Guerra Mundial. Patriota profissional, estava encarregado de entregar fundos do Estado francês a Mussolini para que pudesse levar a cabo uma campanha pela entrada da Itália na guerra ao lado da Entente. Em 1920, ele se tornou partidário da... Internacional Comunista, prosseguindo a sua carreira parlamentar; acabou por ser, até à sua morte, um dos partidários mais servis de Stálin.
[5] Conversação com Vercesi
Há um século sopravam ventos de esperança sobre a humanidade. Primeiro na Rússia, onde a classe operária tinha conseguido tomar o poder. Depois na Alemanha, Hungria e Itália, onde lutou valentemente para continuar o trabalho dos proletários russos com uma só bandeira: a abolição do modo de produção capitalista cujas contradições tinham mergulhado a civilização em quatro anos de guerra. Quatro anos de barbárie sem precedentes até então, trágico testemunho da entrada do capitalismo em sua fase de decadência.
Nessas condições, depois de constatar a quebra da Segunda Internacional, apoiando-se em todo o trabalho de reconstrução da unidade internacional iniciado em Zimmerwald em setembro de 1915 e depois em Kiental em abril de 1916, fundou-se a Terceira Internacional em 4 de março de 1919 em Moscou. Já nas Teses de abril de 1917, Lênin conclamava à fundação de um novo partido mundial. A imaturidade do movimento revolucionário obrigou, no entanto, a adiar sua fundação. Para Lênin, o passo decisivo se deu durante os terríveis dias de janeiro de 1919 na Alemanha, durante os quais se fundou o Partido Comunista Alemão (KPD). Em uma "Carta aos Trabalhadores da Europa e América" de 26 de janeiro, Lênin escreveu: "Quando a Liga Espártaco deu-se o nome de Partido Comunista Alemão, a fundação da Terceira Internacional tornou-se então realidade. Formalmente esta fundação ainda não tinha sido confirmada, mas na realidade, desde já, a Terceira Internacional sim existe". Para além do excessivo entusiasmo de tal juízo, como veremos mais adiante, o que de fato entenderam os revolucionários de então é que forjar o partido já era algo essencial para a vitória da revolução em escala mundial. Depois de várias semanas de preparação, 51 delegados se reuniram de 2 a 6 de março de 1919 para sentar as bases organizativas e programáticas que permitiriam ao proletariado mundial seguir avançando na luta contra todas as forças burguesas.
A CCI reivindica as contribuições da Internacional Comunista (IC). Este centenário é, portanto, uma oportunidade para cumprimentar e destacar a valiosa contribuição da IC na história do movimento revolucionário, mas também para tirar lições dessa experiência e destacar suas debilidades para assim armar o proletariado de hoje para as lutas do futuro.
Como disse a "Carta convite ao Congresso" de Trotsky "Os partidos e organizações abaixo assinadas consideram urgente a convocatória do primeiro congresso da nova Internacional revolucionária. (...) A rápida ascensão da revolução mundial que traz constantemente novos problemas, o perigo de asfixia da revolução pela aliança dos estados capitalistas contra a revolução sob a hipócrita bandeira da ‘’Sociedade das Nações’, as tentativas dos partidos social-traidores de se unir e seguir ajudando a seus governos e burguesias a trair à classe operária depois de haverem se concedido uma mútua ‘anistia’, por último, a riquíssima experiência revolucionária já adquirida e o caráter global de todo o movimento revolucionário... todas essas circunstâncias nos exigem por na ordem do dia a discussão da questão da convocatória de um congresso internacional de partidos revolucionários."
À imagem daquele primeiro chamado dos bolcheviques, a fundação da IC expressou o desejo de reunir as forças revolucionárias de todo o mundo. Mas também a defesa do internacionalismo proletário, pisoteado como tinha sido pela grande maioria dos partidos socialdemocratas que compunham a II Internacional. Depois de quatro longos anos de uma guerra atroz, que dividiu e dizimou milhões de proletários nos campos de batalha, o surgimento de um novo partido mundial mostrou a vontade de aprofundar o trabalho iniciado pelas organizações que tinham permanecido fiéis ao internacionalismo. Neste sentido, a IC é a expressão da força política do proletariado que estava se manifestando por todas as partes depois do profundo retrocesso causado pela guerra, assim como da responsabilidade dos revolucionários de continuar defendendo os interesses da classe operária e a revolução mundial.
Durante o congresso fundador afirmou-se repetidamente que a IC era o partido da ação revolucionária. Como se afirma em seu Manifesto, a IC nasceu em um momento em que o capitalismo tinha mostrado claramente sua obsolescência. A humanidade estava entrando na "era de guerras e revoluções". Em outas palavras, a abolição do capitalismo estava se convertendo em uma necessidade extrema para o futuro da civilização. Com essa nova compreensão da evolução histórica do capitalismo, a IC defendeu incansavelmente os conselhos operários e a ditadura do proletariado: "o novo aparato de poder deve representar a ditadura da classe operária (...) quer dizer, deve ser o instrumento da derrocada sistemática da classe exploradora e de sua expropriação. O poder dos conselhos operários ou das organizações de trabalhadores é sua forma concreta." (Carta convite ao congresso). Essas orientações foram defendidas durante todo o congresso. Além disso, as "Teses sobre a democracia burguesa", escritas por Lênin e adotadas pelo Congresso, empreendiam a denúncia das mistificações da democracia, mas, sobretudo, advertiam o proletariado do perigo que representavam em sua luta contra a sociedade burguesa. Desde o princípio, a IC se colocou resolutamente no campo proletário, defendendo os princípios e métodos da luta da classe operária e denunciando energicamente o chamamento da corrente centrista a uma unidade impossível entre os social-traidores e os comunistas, "a unidade dos operários comunistas com os assassinos dos líderes comunistas Liebknecht y Luxemburgo", segundo as próprias palavras da "Resolução do Primeiro Congresso da IC sobre a posição acerca das correntes socialistas e a Conferência de Berna".[1] Como prova da defesa inflexível dos princípios proletários, essa resolução, adotada por unanimidade pelo Congresso, foi uma reação à recente celebração pela maioria dos partidos socialdemocratas da II Internacional de uma reunião[2] na qual foi adotadas uma série de orientações claramente dirigidas contra a onda revolucionária. A resolução terminava assim: "O congresso convida os operários de todos os países a se engajar na luta mais enérgica contra a internacional amarela e a preservar as massas mais amplas do proletariado contra essa internacional da mentira e da traição."
A fundação da IC foi um passo vital na continuidade da luta histórica do proletariado. Conseguiu recolher as melhores contribuições da II Internacional, rompendo com ela em posições ou análises que já não correspondiam ao período histórico que acabava de começar.[3] Enquanto o antigo partido mundial tinha traído o internacionalismo proletário, em nome da União Sagrada, nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, a fundação do novo partido tornou possível fortalecer a unidade da classe operária e armá-la na feroz luta que estava desempenhando em muitos países do mundo pela abolição do modo de produção capitalista. Portanto, apesar das circunstâncias desfavoráveis e dos erros cometidos, como veremos, nós cumprimentamos e defendemos aquele empenho. Os revolucionários daquela época assumiram sua responsabilidade, tinham que fazê-lo e o fizeram!
Os revolucionários diante do impulso massivo do proletariado no mundo
O ano de 1919 foi o ponto culminante da onda revolucionária. Depois da vitória da revolução na Rússia em outubro de 1917, a abdicação de Guilherme II e a assinatura apressada do armistício diante dos motins e da revolta das massas operárias na Alemanha, apareceram insurreições operárias, em particular, a instauração da República dos Conselhos na Baviera e na Hungria. Também houve motins na frota e entre as tropas francesas ou unidades britânicas negando-se a intervir contra a Rússia soviética, e se produziu uma onda de greves no Reino Unido (1919), especialmente nos centros de maior ação revolucionária (Clyde, Sheffield, Gales do Sul). Mas em março de 1919, quando foi criada a IC em Moscou, a maioria desses levantamentos já tinha sido reprimida ou estava a ponto de sê-lo.
Não há dúvida de que os revolucionários de então se encontravam em uma situação de emergência e se viram obrigados a atuar em pleno fervor da luta revolucionária. Como diria mais tarde a Fração Francesa de Esquerda Comunista (FFGC – Fraction Française de la Gauche Communiste) em 1946: "os revolucionários tentavam criar uma ponte entre a maturidade da situação objetiva e a imaturidade do fator subjetivo (a ausência do Partido) mediante uma ampla união de grupos e correntes politicamente heterogêneos, proclamando tal união como o novo Partido." [4]
Não se trata aqui de discutir a validade ou não da fundação do novo partido, a Internacional. Era uma necessidade imperiosa. Ao contrário, o que queremos é assinalar uma série de erros no método com que foi fundado.
Ainda que a maioria dos informes apresentados pelos diferentes delegados sobre a situação da luta de classes em cada país alerte sobre a reação da burguesia ao avanço da revolução (no final do congresso se vota numa resolução sobre o Terror Branco), é surpreendente notar o muito que se subestima esse aspecto durante aqueles cinco dias de trabalho. Poucos dias depois da notícia da fundação do KPD, que se seguiu à fundação dos Partidos Comunistas da Áustria (novembro de 1918) e Polônia (dezembro de 1918), Lênin considerava que a sorte estava lançada: "Quando a Liga Espártaco alemã, dirigida por tão ilustres líderes, conhecidos no mundo todo, leais partidários da classe operária como são Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin, Franz Mehring romperam para sempre todos os laços com os socialistas como Scheidemann, (...) quando a Liga Espártaco deu-se o nome de Partido Comunista Alemão, então a fundação da Terceira Internacional, a Internacional Comunista, verdadeiramente proletária, verdadeiramente internacional, verdadeiramente revolucionária, tornou-se realidade. Formalmente esta fundação ainda não tinha sido confirmada, mas na realidade, desde já, a Terceira Internacional sim existe".[5] Curiosidade significativa: a redação desse texto completou-se em 21 de janeiro de 1919, data em que Lênin foi informado do assassinato de K. Liebknecht. Esta inquebrantável certeza estaria presente em todo o congresso. Já no discurso de abertura, Lênin marcou a pauta: "A burguesia poderá dar rédea solta a seus instintos, poderá continuar matando milhões de operários, a vitória será nossa, a vitória da revolução comunista está assegurada." Posteriormente, todos aqueles que narraram a situação o fizeram com o mesmo otimismo transbordante, como o camarada Albert, membro do jovem KPD, que falou diante do Congresso em 2 de março e nos seguintes termos: "Não acredito que seja de um otimismo exagerado dizer que os partidos comunistas alemão e russo continuam a luta com a firme esperança de que o proletariado alemão também dirija a revolução até a vitória final e que a ditadura do proletariado também possa se estabelecer na Alemanha, apesar de todas as assembleias nacionais, apesar de todos os Scheidemann e apesar do nacionalismo burguês (...). Isto é o que me impulsionou a aceitar vosso convite com alegria, convencido de que em muito pouco tempo lutaremos ombro a ombro com o proletariado dos demais países, em particular da Inglaterra e da Franca, para que a revolução mundial também alcance na Alemanha os seus objetivos."
Poucos dias depois, entre 6 e 9 de março, uma terrível repressão se abateu sobre Berlim, matando 3.000 pessoas em 8 de março, incluídos 28 marinheiros presos e logo executados com metralhadoras na mais pura tradição versalhesca. Em 10 de março, Léo Jogiches foi assassinado e Heinrich Dorrengach[6] o seria em 19 de maio.
E, no entanto, as últimas palavras de Lênin no discurso de encerramento demonstraram que o congresso não tinha mudado em nada sua análise da relação de forças. Declarou sem vacilar que "a vitória da revolução proletária está assegurada em todo o mundo. A fundação da República Internacional de Conselhos está em marcha."
Amadeo Bordiga, apontou, contudo, um ano depois: "Depois do proletariado russo e do proletariado internacional lançarem a consigna ‘regime de sovietes’ no mundo, temos visto como, a princípio, levantava-se a onda revolucionária, depois do fim da guerra, e como se punha em marcha o proletariado de todo o mundo. Vimos em todos os países a seleção que se produzia nos antigos partidos socialistas para fazer surgir partidos comunistas comprometidos na luta revolucionária contra a burguesia. Desgraçadamente, o período seguinte foi um período de interrupção, quando as revoluções alemã, bávara e húngara foram esmagadas pela burguesia."
Na realidade, as debilidades significativas da consciência no proletariado eram um obstáculo importante para o desenvolvimento revolucionário da situação:
O meio revolucionário muito debilitado ao sair da guerra
Assim, o meio revolucionário está muito fragmentado, composto por grupos que carecem de clareza, ainda imaturos. Somente as frações de esquerda da II Internacional (os bolcheviques, os tribunistas e os espartaquistas, em sua maioria, pois há muita heterogeneidade neles quando não divisão mesmo) são capazes de assinalar o rumo e estabelecer uma base sólida para a fundação do novo partido.
Ademais, muitos militantes careciam de experiência política. Dos 43 delegados ao congresso fundador cujas idades são conhecidas, 5 estavam nos seus 20 anos, 24 nos seus 30, só um tinha 50 anos.[8] Dos 42 delegados cuja trajetória política pode ser rastreada, 17 tinham se filiado aos partidos socialdemocratas antes da revolução russa de 1905, enquanto que 8 tinham se tornado socialistas ativos somente depois de 1914.[9]
Apesar de seu entusiasmo e paixão revolucionária, muitos deles careciam da experiência necessária em tais circunstâncias.
Como já dizia a FFGC em 1946: "É inegável que uma das causas históricas da vitória da revolução na Rússia e de sua derrota na Alemanha, Hungria e Itália se funda na existência do Partido revolucionário no momento decisivo naquele país e na ausência ou inexistência nestes." A fundação da Terceira Internacional foi adiada durante muito tempo devido aos diversos obstáculos que o campo proletário enfrentou durante o episódio revolucionário. Em 1918-1919, consciente de que a ausência do novo partido era uma debilidade irreparável para a vitória da revolução mundial, a vanguarda do proletariado foi unânime sobre a necessidade imperiosa de fundar o novo partido. No entanto, nem todos se puseram de acordo sobre a data e, sobretudo, sobre que método adotar. Enquanto a grande maioria das organizações e grupos comunistas estava a favor de fundá-lo o mais cedo possível, o KPD, e especialmente Rosa Luxemburgo e Léo Jogiches, optaram por adiar sua fundação, considerando que a situação era prematura, que a consciência comunista das massas ainda era débil e que o meio revolucionário tampouco tinha muita clareza.[10] O delegado do KPD na conferência, o camarada Albert, tinha, pois, o mandato de defender essa posição e não de votar a favor da fundação imediata da Internacional Comunista:
"Quando nos dizem que o proletariado necessita de um centro político em sua luta, podemos dizer que esse centro já existe e que todos aqueles que se baseiam no sistema de conselhos já romperam com os elementos da classe operária que ainda se inclinam para a democracia burguesa: constatamos que a ruptura está sendo preparada por todas as partes e que está sendo realizada. Mas uma Terceira Internacional não somente deve ser um centro político, uma instituição na qual os teóricos trocam calorosos discursos, mas que deve ser a base de um poder organizativo. Se queremos fazer da Terceira Internacional um instrumento eficaz de luta, se queremos convertê-la em um meio de combate, então é necessário que também existam essas condições prévias. Portanto, em nossa opinião, a questão não deveria ser debatida e decidida desde um ponto de vista intelectual, senão que é necessário que nos perguntemos em termos concretos se existem os fundamentos da organização. Ainda tenho a sensação de que os camaradas que tanto pressionam a favor da fundação se deixam influenciar enormemente pela evolução da Segunda Internacional, e que querem, depois da conferência de Berna, impor uma empresa para concorrer com aquela. Isto nos parece menos importante, e quando dizemos que é necessário um esclarecimento, do contrário os elementos indecisos se unirão à Internacional amarela, digo que a fundação da Terceira Internacional não reterá os elementos que hoje se unem à Segunda, e que se vão para lá apesar de tudo, é porque esse é seu lugar."[11]
Como se pode ver, o delegado alemão advertiu contra o perigo de fundar um partido transigindo com os princípios e a clareza organizativa e programática. Ainda que os bolcheviques tenham levado muito a sério as reservas da central do KPD, não há dúvida de que eles também se viram presos nessa corrida contra o relógio. De Lênin a Zinoviev, de Trotsky a Racovski, todos enfatizaram a importância de conseguir que todos os partidos, organizações, grupos ou indivíduos que reivindiquem, de perto ou de longe, o comunismo e os conselhos aderissem ao novo Partido. Como se observa em uma biografia de Rosa Luxemburgo, "Lênin via na Internacional uma maneira de ajudar os diversos partidos comunistas a se formarem e se fortalecerem"[12] pela decantação produzida na luta contra o centrismo e o oportunismo. Para o KPD, tratava-se em primeiro lugar, de formar partidos comunistas "sólidos", com o apoio das massas, antes de ratificar a criação do novo partido.
A composição do congresso é uma ilustração da precipitação e das dificuldades que se impunham às organizações revolucionárias da época. Dos 51 delegados que participaram nos trabalhos, feita a conta dos atrasos, das saídas antecipadas e das ausências temporárias, uns 40 são militantes bolcheviques do partido russo, mas também dos partidos letão, lituano, bielorrusso, armênio e da Rússia oriental. Além do partido bolchevique, somente os partidos comunistas alemão, polaco e húngaro tinham existência própria.
As demais forças convidadas ao congresso eram uma multiplicidade de organizações, grupos ou elementos não abertamente "comunistas", mas em processo de decantação no seio da socialdemocracia e do sindicalismo. A carta convite ao congresso convocava todas as forças que, direta ou indiretamente, apoiavam a Revolução Russa e pareciam ter boa vontade para trabalhar pela vitória da revolução mundial:
"10º É necessário aliar-se com aqueles elementos do movimento revolucionário que, ainda que não tenham pertencido aos partidos socialistas no passado, hoje em dia se sintam globalmente no terreno da ditadura do proletariado em sua forma de poder dos conselhos. Trata-se, em primeiro lugar, dos elementos sindicalistas do movimento operário.
11º É necessário, enfim, ganhar todos os grupos ou organizações proletárias que, sem terem se unido abertamente à corrente revolucionária, manifestem, no entanto, em sua evolução, uma tendência nesse sentido."[13]
Esse método acarretou várias anomalias que testemunham a falta de representatividade de uma parte do congresso. Por exemplo, o estadunidense Boris Reinstein não tinha mandato de seu partido, o Socialist Labor Party. O holandês S. J. Rutgers representava uma liga para a propaganda socialista. Christian Racovsky[14] devia representar a Federação Balcânica, o Tesnjaki búlgaro e o PC romeno.[15] Portanto, em que pesem as aparências, o congresso fundador foi sobretudo representativo da insuficiente consciência na classe operária mundial.
Todos esses elementos também mostram que grande parte da vanguarda revolucionária deu prioridade à quantidade em detrimento da clareza prévia sobre os princípios organizativos. Este enfoque deu as costas a todo o conceito que os bolcheviques haviam desenvolvido nos quinze anos anteriores. Isto já foi sublinhado pela FFGC em 1946: "O método ‘estreito’ de seleção sobre bases com princípios mais precisos, sem se fixar nos êxitos numéricos imediatos, permitiu aos bolcheviques construir o Partido que, no momento decisivo, foi capaz de integrar em seu seio e assimilar todas as energias revolucionárias e militantes das demais correntes e, em última instância, conduzir o proletariado à vitória; o método ‘amplo’, ao contrário, preocupado sobretudo em reunir imediatamente a maior quantidade à custa da precisão programática e de princípios, ia conduzir à formação de partidos de massas, verdadeiros colossos com pés de barro que seriam derrubados à primeira derrota sob a dominação do oportunismo. A formação do Partido de classe é infinitamente mais difícil nos países capitalistas avançados – onde a burguesia dispõe de mil maneiras de corromper a consciência do proletariado – do que na Rússia."
Cega pela certeza de uma vitória iminente do proletariado, a vanguarda revolucionária subestimou em grande medida as dificuldades objetivas que tinha diante de si. A euforia a levou a deixar de lado o método "estreito" de construção da organização que tinha sido defendida sobretudo pelos bolcheviques na Rússia e em parte pelos espártaquistas na Alemanha. Considerou-se que havia que priorizar uma grande concentração revolucionária que permitisse, ademais, opor-se à "Internacional amarela" que havia se formado em Berna umas semanas antes. O método "amplo" deixou em segundo plano a clareza dos princípios organizativos. Pareciam importar pouco as confusões que os grupos integrados no novo partido arrastavam, a luta seria travada no seu seio. No momento, deu-se prioridade ao agrupamento da maior quantidade possível.
Esse método "amplo" acabaria tendo consequências nefastas, pois enfraqueceria a IC na futura luta organizativa. E assim, a clareza programática do primeiro congresso acabou pisoteada pelo impulso oportunista, num contexto de enfraquecimento e degeneração da onda revolucionária. Foi no seio da IC que surgiram as frações de esquerda que criticariam a insuficiente ruptura com a II Internacional. Como veremos mais adiante, as posições defendidas e desenvolvidas por esses grupos responderam aos problemas que se colocavam na IC diante do novo período de decadência do capitalismo.
(Continuará)
Narek, 4 de março de 2019
[1] Tesis, manifiestos y resoluciones adoptados por los Cuatro primeros congresos de la Internacional Comunista (1919-1923) [318].
[2] A conferência de Berna de fevereiro de 1919 foi uma "tentativa de ressuscitar o cadáver da Segunda Internacional" para a qual "o Centro" enviou seus representantes.
[3] Para um conhecimento mais amplo, veja-se o artigo "Março de 1919: fundação da Internacional Comunista", Revista Internacional nº 57, 2º trimestre de 1989.
[4] Internationalisme, "À propos du Premier Congrès du Parti communiste internationaliste d’Italie" (Sobre o Primeiro Congresso do Partido comunista internacionalista da Itália), nº 7, janeiro-fevereiro de 1946.
[5] Lênin, Obras, t. XXVIII.
[6] Comandante da divisão da marinha popular em Berlim em 1918. Depois da derrota de janeiro, refugiou-se em Brunswick e depois em Eisenach. Foi detido e executado em maio de 1919.
[7] Internationalisme, "A propos du Premier Congrès du Parti communiste internationaliste d’Italie" (Sobre o Primeiro Congresso do Partido comunista internacionalista da Itália), nº 7, janeiro-fevereiro de 1946.
[8] Founding the Communist International: The Communist International in Lenin's Time. Proceedings and Documents of the First Congress : March 1919, Editado por John Riddell, Nova Iorque, 1987, "Introduction", p. 19
[9] Ibídem.
[10] Esse é o mandato que deram (na primeira quinzena de janeiro) ao delegado do KPD para a convenção de fundação. Isto não significa que Rosa Luxemburgo, por exemplo, em princípio se opusesse à fundação de uma internacional. Pelo contrário.
[11] Intervenção do delegado alemão em 4 de março de 1919, no Primeiro Congresso da Internacional Comunista, textos completos publicados sob a direção de Pierre Broué, Etudes et documentation internationales, 1974.
[12] Gilbert Badia, Rosa Luxemburgo. Journaliste, polémiste, révolutionnaire, Edições Sociais, 1975.
[13] Tesis, manifiestos y resoluciones adoptados por los Cuatro primeros congresos de la Internacional Comunista (1919-1923) [318], "Carta convite ao Congresso".
[14] Um dos delegados mais influentes e decididos para uma fundação imediata da IC.
[15] Pierre Broué, Histoire de l’Internationale Communiste (1919-1943), Fayard, 1997, p 79.
1) No final dos anos 60, com o esgotamento do boom econômico do pós-guerra, a classe trabalhadora ressurgiu na cena social devido à deterioração das condições de vida. As lutas operárias que irromperam em escala internacional puseram fim ao mais longo período de contrarrevolução da história e abriram um novo curso histórico para os enfrentamentos de classes, impedindo assim que a classe dominante desse sua própria resposta à crise aguda do capitalismo: uma Terceira Guerra Mundial. Este novo curso histórico foi marcado pela emergência de lutas massivas, particularmente nos países centrais da Europa Ocidental, com o movimento de Maio de 1968 na França, seguido do movimento "outono (europeu) quente" na Itália em 1969; e muitos outros, como a Argentina na Primavera de 1969 [1] e a Polônia no Inverno de 1970-71. Nestes movimentos de massas, grande parte da nova geração de trabalhadores que não tinham experimentado a guerra voltou a levantar a questão da perspectiva do comunismo como uma possibilidade.
Ligado a este movimento geral da classe trabalhadora do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, devemos também destacar o despertar internacional, em uma escala muito pequena, mas não menos significativa, da Esquerda comunista organizada, a tradição que permaneceu fiel à bandeira da revolução proletária mundial durante a longa noite da contrarrevolução. Neste despertar, a Constituição da CCI significou uma renovação e um importante impulso para a esquerda comunista no seu conjunto. [2]
Diante de uma dinâmica de tendência à politização das lutas operárias, a burguesia (que havia sido surpreendida pelo movimento de maio de 1968) desenvolveu imediatamente uma contraofensiva em grande escala e a longo prazo para impedir que a classe operária dessa sua própria resposta à crise histórica da economia capitalista: a revolução proletária.
2) Devido à ruptura da continuidade política com o movimento operário do passado, esta tendência para a politização do proletariado durante a década de 1960 manifestou-se pela emergência do que Lênin chamou de um "pântano político": um meio de grupos e elementos confusos e, ao mesmo tempo, uma zona de trânsito, situada entre a burguesia e o proletariado. No momento de sua maior expansão, este espaço de politização estava composto, em escala mundial, essencialmente de elementos jovens e inexperientes, entre eles muitos estudantes. Já na primeira metade dos anos setenta houve uma decantação neste "pântano" que se manifestou no fato de que:
Além disso, a adesão "crítica" dos principais grupos de extrema-esquerda (trotsquistas e maoístas) à contrarrevolução e suas práticas de organização e intervenção típicas de organizações ou seitas criptostalinistas, bem como o ativismo cego dos círculos autonomistas e o culto à violência minoritária por parte dos grupos terroristas, destruíram grande parte desta nova geração no processo de politização. Esse trabalho destrutivo contribuiu para distorcer e desacreditar o verdadeiro movimento revolucionário do proletariado.
Paralelamente ao papel extremamente negativo desempenhado por este componente pseudo "radical" desse pântano e dos grupos de extrema-esquerda, a burguesia desenvolveu uma contraofensiva política contra a retomada histórica da luta de classes. Esta contraofensiva consistiu inicialmente, no início dos anos 70, em propor a alternativa de "levar a esquerda ao governo" nos principais países ocidentais, para redirecionar a classe operária ao terreno eleitoral e parlamentar, semeando a ilusão de que o programa dos partidos de esquerda permitiria melhorar as condições de vida das massas exploradas. Esta primeira onda de lutas, que se desenvolveu desde o final da década de 1960, esgotou-se durante estes "anos de ilusões".
3) Mas com o agravamento da crise econômica que teve lugar em meados dos anos 70, surgiu uma nova onda de lutas operárias, na qual também participou o proletariado de alguns países do Leste Europeu (especialmente na Polônia no verão de 1980) [4].
Diante desta retomada da luta de classes após um breve período de refluxo, a burguesia teve que modificar sua estratégia para evitar qualquer politização do proletariado em suas lutas econômicas. E assim, através de uma inteligente divisão de tarefas entre as diferentes frações burguesas, cabia aos partidos de direita no governo realizar os ataques econômicos contra as condições de vida do proletariado, enquanto os partidos de esquerda na oposição (apoiados pelos sindicatos e pelos esquerdistas) tinham a missão de sabotar a partir de dentro as lutas dos trabalhadores, e desviá-las para o terreno do engano eleitoral.
A greve de massas na Polônia em agosto de 1980 revelou que o proletariado, apesar de sofrer com a capa de chumbo dos regimes estalinistas, foi capaz de levantar a cabeça e encontrar espontaneamente seus métodos de luta, incluindo as assembleias gerais soberanas, a eleição dos comitês de greve responsáveis por essas assembleias, a necessária extensão geográfica das lutas e sua unificação superando as divisões corporativistas.
Essa luta gigantesca da classe trabalhadora na Polônia revelou que é na luta massiva contra os ataques econômicos que o proletariado pode tomar consciência de sua própria força, afirmar sua identidade de classe antagônica com o capital e desenvolver sua autoconfiança.
Mas a derrota dos trabalhadores poloneses, com a fundação do sindicato "livre" Solidarnosc ("Solidariedade", que se beneficiou do apoio dos sindicatos dos países ocidentais), também revelou o peso muito forte das ilusões democráticas em um país onde o proletariado não tinha experiência da democracia burguesa. A derrota e a repressão dos trabalhadores poloneses abriram, no início da década de 1980, um novo período de retrocesso para a luta internacional de classes.
4) No entanto, embora profundo, este refluxo resultou efêmero. Na primeira metade da década de 1980, diante do agravamento da crise econômica, da explosão do desemprego e dos novos ataques às condições de vida do proletariado nos países centrais, surgiu novamente uma terceira onda de lutas. Mesmo com a derrota da longa greve dos mineiros na Grã-Bretanha em 1985, esta onda de lutas manifestava-se num desgaste da esquerda na oposição, num descrédito crescente dos sindicatos (como se viu em muitos países, incluindo os escandinavos, por greves espontâneas esporádicas que irromperam às margens e contra as manobras repetidas de sabotagem sindical). Esta terceira onda de lutas dos trabalhadores foi acompanhada por um aumento das taxas de abstenção eleitoral.
Para não se surpreender como aconteceu em maio de 1968 e para paralisar qualquer dinâmica de confronto com o sindicalismo, a burguesia lançou uma terceira estratégia: fortalecer seu aparato de enquadramento da classe operária para impedir qualquer extensão das lutas para além da corporação ou do setor, sabotar a identidade de classe do proletariado através da divisão entre "colarinho branco" e "colarinho azul", e impedir qualquer tentativa de auto-organização pelo proletariado.
5) Foi a burguesia inglesa - a mais inteligente do mundo [5] - com a política da "Dama de Ferro" (Margaret Thatcher), que definiu as diretrizes da estratégia para desacelerar a dinâmica da luta de classes para a classe dominante do resto dos países centrais:
Em outros países europeus, incluindo a Alemanha (especialmente na indústria automobilística), esta manobra burguesa para conceder aumentos salariais a apenas uma categoria de trabalhadores na mesma empresa foi destinada a dividir os trabalhadores, aumentar a concorrência entre eles, minar sua solidariedade de classe, a fim de colocá-los uns contra os outros.
E, pior, com esta estratégia de divisão do proletariado defendendo "cada um por si", a burguesia e seus lacaios sindicais têm tentado permanentemente fazer com que o que realmente foram as derrotas da classe trabalhadora pareçam vitórias!
Os revolucionários não devem subestimar o maquiavelismo da burguesia quando analisam a evolução da relação de forças entre as classes. Esse maquiavelismo só pode continuar a desenvolver-se com o agravamento dos ataques contra toda a classe explorada. A estagnação da luta de classes, e seu subsequente declínio no final da década de 1980, foi o resultado da capacidade da classe dominante de reverter algumas manifestações da decomposição da sociedade burguesa - e acima de tudo essa tendência de "cada um por si" - contra a classe trabalhadora.
6) Já a partir do refluxo que se seguiu à primeira onda de lutas, podemos ver como foram essencialmente as ilusões democráticas (alimentadas pela contraofensiva da burguesia e pela sabotagem sindical) que constituíram o principal obstáculo para a politização das lutas da classe trabalhadora.
Como se assinala no artigo da Revista Internacional n°23, "A luta do proletariado no capitalismo decadente" [9], a classe operária enfrenta vários fatores que dificultam a politização de suas lutas: A verdadeira natureza do proletariado, que é uma classe ao mesmo tempo explorada, despojada de toda propriedade e revolucionária, sempre significou que a consciência de classe não pode avançar de vitória em vitória, mas só pode evoluir desigualmente para a vitória através de uma série de derrotas, como disse Rosa Luxemburgo.
No período da decadência:
Além disso, no presente período:
7) Quando a terceira onda de lutas começou a esgotar-se no final da década de 1980, teve lugar um acontecimento importante na situação internacional: o colapso espetacular do bloco de Leste e dos regimes estalinistas em 1989 [11]. Este evento deu um tremendo golpe na dinâmica da luta de classes, modificando significativamente a correlação de forças entre o proletariado e a burguesia em benefício desta última. Este evento foi um choque que marcou a entrada do capitalismo na última fase da sua decadência: a da decomposição. Com o seu colapso, o estalinismo prestou um serviço final à burguesia, uma vez que permitiu que a burguesia pusesse fim à dinâmica da luta de classes que, com avanços e retrocessos, tinha se desenvolvido durante duas décadas.
Na verdade, uma vez que não foi a luta do proletariado, mas a putrefação na raiz da sociedade capitalista que acabou com o estalinismo, a burguesia foi capaz de aproveitar este evento para desencadear uma gigantesca campanha ideológica destinada a perpetuar a maior mentira da história: a identificação do comunismo com o estalinismo. Ao fazê-lo, a classe dominante deu um duro golpe na consciência do proletariado. As campanhas ensurdecedoras da burguesia sobre o suposto "fracasso do comunismo" causaram uma regressão do proletariado em sua marcha em direção à sua perspectiva histórica de derrubar o capitalismo. Deram um golpe na identidade de classe do proletariado. [12]
Este profundo retrocesso da consciência e da luta de classes se manifestou por uma diminuição da combatividade dos trabalhadores em todos os países, um fortalecimento das ilusões democráticas, uma intensa recuperação do controle sindical e uma grande dificuldade para o proletariado voltar ao caminho de suas lutas massivas apesar do agravamento da crise econômica, do aumento do desemprego, da precariedade e da deterioração geral de todas as suas condições de vida em todos os setores e em todos os países.
Além disso, com a entrada do capitalismo na fase final da sua decadência, o proletariado teve de enfrentar os miasmas da decomposição da sociedade burguesa, que dificultam sua capacidade para reencontrar o caminho de sua perspectiva revolucionária. No plano ideológico, "os diferentes elementos que constituem a força do proletariado se contrapõem diretamente às várias facetas dessa decomposição ideológica:
Com este retrocesso de sua visão revolucionária e identidade de classe, o proletariado também perdeu muita confiança em si mesmo e em sua capacidade de enfrentar eficazmente o capitalismo em defesa de suas condições de vida.
8) Um dos fatores objetivos que agravou a perda da identidade de classe do proletariado foram as políticas de realocação e reestruturação do aparelho produtivo nos principais países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. As grandes concentrações de trabalhadores foram desmanteladas com o fechamento de bacias mineiras, siderúrgicas, fábricas de automóveis, etc., em setores onde a classe trabalhadora tinha tradicionalmente desenvolvido lutas massivas e muito combativas. Esta desertificação industrial foi acompanhada pela acentuação das campanhas ideológicas sobre o fim da luta de classes e, portanto, de qualquer perspectiva revolucionária. Estas campanhas burguesas têm sido capazes de se desenvolver graças ao fato de que os partidos estalinistas ou socialdemocratas identificarem há décadas a classe trabalhadora apenas com aqueles com "colarinho azul" (aqueles que usam "macacão de trabalho"), escondendo assim o fato de que o que define a classe operária é o trabalho assalariado e a exploração da força de trabalho. Além disso, o desenvolvimento de novas tecnologias torna o proletariado de "colarinho branco" esteja muito mais disperso em pequenas unidades de produção, tornando mais difícil a emergência de lutas de massas.
Nesta situação de retrocesso da consciência de classe do proletariado e de afastamento de sua visão revolucionária, o individualista "cada um por si" e a competitividade para sobreviver em meio a uma crescente recessão econômica tendem a dominar.
O aumento do desemprego e da precariedade deram origem ao fenômeno da "uberização" do trabalho. Ao usar uma plataforma de Internet como um intermediário para encontrar trabalho, a “uberização” disfarça a venda de trabalho a um empregador como se fosse "auto emprego", exacerbando ainda mais o empobrecimento e a precariedade dos "autônomos". A “uberização” do trabalho individual acentua a dificuldade de fazer greves, já que a auto exploração desses trabalhadores dificulta consideravelmente sua capacidade de lutar coletivamente e desenvolver a solidariedade contra a exploração capitalista.
9) A falência do banco Lehman Brothers e a crise financeira de 2008 permitiram à burguesia dar um novo golpe na consciência do proletariado, através de uma grande campanha ideológica de alcance mundial que tentou inculcar a ideia (levantada pelos partidos de esquerda) de que os responsáveis pela crise eram os "banqueiros corruptos", fazendo crer que o capitalismo está personificado nos "operadores" da bolsa de valores ou no poder do dinheiro.
A classe dominante foi assim capaz de esconder as raízes do fracasso do seu sistema. Pretendia por um lado, que a classe trabalhadora se visse arrastada para a defesa do Estado "protetor", já que as medidas de resgate para os bancos deveriam proteger os pequenos poupadores. Por outro lado, esta política de resgate bancário também tem sido utilizada, particularmente pela esquerda, para acusar os governos que defendem os banqueiros e ao mundo financeiro.
Mas, além do efeito dessas mistificações, o maior impacto dessa campanha sobre a classe trabalhadora foi o de reforçar sua impotência diante de um sistema econômico impessoal, cujas leis gerais seriam como leis naturais que não podem ser controladas ou alteradas.
10) A eclosão de conflitos imperialistas no Oriente Médio, assim como a miséria absoluta das massas empobrecidas dos países do continente africano, provocaram um fluxo crescente de refugiados em direção aos países da Europa Ocidental. Do outro lado do Atlântico, o afundamento do capitalismo em decomposição também se manifestou pelo êxodo das ondas de migrantes dos países latino-americanos para os Estados Unidos.
Essas manifestações da decomposição da sociedade capitalista deram origem a um novo perigo para o proletariado: a ideologia populista baseada em uma política "identitária" que ataca a solidariedade do proletariado, e que espalha a ilusão de que, diante do agravamento da crise e dos "cortes de recursos", as populações indígenas só poderiam evitar o agravamento de sua situação à custa de outras camadas não exploradoras da população. Essa política se traduz em protecionismo, na estigmatização dos imigrantes como "tomadores de estado de bem-estar" e no fechamento de fronteiras a ondas de imigrantes.
O sentimento de rejeição cada vez mais aberta entre os trabalhadores dos partidos burgueses tradicionais e das "elites" não levou, no entanto, a uma politização do proletariado em seu terreno de classe, mas sim a uma busca de "novos" personagens no terreno eleitoral da democracia burguesa. Estes "novos homens" são principalmente demagogos populistas e aventureiros (como Donald Trump). A ascensão dos partidos de extrema direita em vários países europeus, assim como a chegada ao poder de Trump nos Estados Unidos, beneficiando-se de muitos votos dos trabalhadores do chamado "cinturão da sucata" (zonas industriais desertificadas), revela que alguns setores do proletariado (particularmente atingidos pelo desemprego) podem ser intoxicados pelo veneno do populismo, da xenofobia, do nacionalismo e de todas as ideologias reacionárias e obscurantistas que emanam do esterco imundo da podridão do capitalismo.
Esta tendência ao "cada um por si" e ao desmantelamento da sociedade também se manifestou no perigo de recrutar alguns setores do proletariado atrás de bandeiras nacionais ou regionais (como aconteceu durante a crise de independência na Catalunha em 2018).
11) Dada a grande dificuldade atual da classe trabalhadora em desenvolver as suas lutas, a sua incapacidade para recuperar a sua identidade de classe e abrir uma perspectiva para a sociedade como um todo, o terreno social tende a ser ocupado por lutas interclassistas particularmente marcadas pela pequena burguesia. Essa camada social, sem futuro histórico, só pode transmitir a quimera da possibilidade de reforma do sistema capitalista ao reivindicar um capitalismo de "rosto humano", mais democrático, mais justo, mais limpo, mais preocupado com os pobres e com a preservação do planeta.
Esses movimentos interclassistas são o produto da falta de qualquer perspectiva, algo que hoje afeta a sociedade como um todo, incluindo uma parte significativa da própria classe dominante.
A revolta popular dos "coletes amarelos" em França contra "o custo de vida", assim como o movimento internacional "Juventude para o Clima" são uma ilustração do perigo do interclassismo para o proletariado [13]. A revolta cidadã dos "coletes amarelos" (inicialmente apoiados e encorajados por todos os partidos de direita e extrema direita) tem mostrado a capacidade da burguesia de usar movimentos sociais interclassistas contra a consciência do proletariado.
Ao conceder 10 bilhões de euros em ajuda para supostamente conter o caos que acompanhou as manifestações dos Coletes Amarelos, a burguesia francesa e sua mídia foram capazes de insidiosamente instilar a ideia de que apenas os movimentos de cidadãos, interclassistas e os métodos próprios de luta da pequena burguesia podem fazer o governo voltar atrás.
Às portas de uma aceleração dos ataques econômicos contra a classe explorada e do perigo do ressurgimento das lutas da classe operária, a burguesia está agora tentando desfocar os antagonismos de classe. Quando tenta inundar e diluir o proletariado entre a "população", a "cidadania", o que a classe dominante quer é impedir que ela recupere sua identidade de classe. A cobertura mediática internacional do movimento Coletes Amarelos revela que esta é uma preocupação da burguesia de todos os países.
O movimento juvenil pelo clima, embora expressando preocupação geral e inquietação pela ameaça de destruição da humanidade, foi completamente desviado para o terreno das lutas parciais, facilmente recuperáveis pela burguesia e muito fortemente marcados pela pequena burguesia.
- Só o proletariado traz em si uma perspectiva para a humanidade e, nesse sentido, é nas suas fileiras que há maior capacidade de resistir a essa decomposição. No entanto, ele mesmo não está seguro, pois a pequena burguesia com a qual ele convive é precisamente o seu principal veículo. Neste período, seu objetivo será resistir aos efeitos nocivos da decomposição em seu seio, apoiando-se unicamente em suas próprias forças, em sua capacidade de lutar coletiva e solidariamente em defesa de seus interesses como classe explorada" (Tese sobre a Decomposição).
A luta pela autonomia de classe do proletariado é, portanto, crucial nesta situação imposta pelo agravamento da decomposição do capitalismo:
No saldo de forças entre a burguesia e o proletariado, é sempre a classe dominante que está na ofensiva, exceto em uma situação revolucionária. Apesar de suas dificuldades internas e da tendência crescente de perder o controle de seu aparato político, o fato é que a burguesia conseguiu reverter as manifestações da decomposição de seu sistema contra a consciência e a identidade de classe do proletariado. A classe trabalhadora ainda não superou o profundo revés que sofreu após o colapso do bloco de Leste e dos regimes estalinistas. E ainda mais considerando que as campanhas democráticas e anticomunistas que têm sido mantidas durante décadas estão regularmente em voga (por exemplo, por ocasião do centenário da Revolução de Outubro de 1917).
12) E, no entanto, apesar destas três décadas de retrocesso da luta de classes, a burguesia não conseguiu até agora infligir uma derrota decisiva à classe trabalhadora, como fez nos anos 1920-1930. Apesar da gravidade do que está em jogo hoje no atual período histórico, a situação não é idêntica à do período contrarrevolucionário. O proletariado dos países centrais não sofreu uma derrota física (como vimos no esmagamento sangrento da revolução na Alemanha durante a primeira onda revolucionária de 1917-23). Ele não foi alistado atrás de bandeiras nacionais. A grande maioria dos proletários não está disposta a sacrificar suas vidas no altar da defesa do capital nacional. Nos principais países industrializados, tanto nos EUA como na Europa, as massas proletárias não se juntaram às cruzadas imperialistas (apelidadas de "humanitárias") da "sua" burguesia nacional.
A luta de classes do proletariado é feita de avanços e retrocessos nos quais a classe operária se esforça para superar suas derrotas, aprender com elas e voltar ao combate. Como Marx analisou no 18 Brumário: "as revoluções burguesas, como as do século XVIII, correm rapidamente de um sucesso para outro, (...) por outro lado, as revoluções proletárias, como as do século XIX, constantemente se criticam, interrompem a cada momento seu próprio curso, retornam ao que já parece ter sido alcançado e recomeçam, zombando impiedosamente das vacilações, fraquezas de suas primeiras tentativas, parecem derrubar seu adversário apenas para permitir que ele saque novas forças da terra e se recupere novamente, formidável, na frente deles, retrocedem constantemente diante da imensidão infinita de seus próprios objetivos, até que se cria uma situação que torna impossível voltar atrás, e as próprias circunstâncias gritam: Hic Rhodus, Hic salta!".
Estas "circunstâncias", que devem criar "a situação que torna impossível voltar atrás", serão determinadas, em primeiro lugar, pelo esgotamento dos paliativos que até agora permitiram à burguesia deter o colapso da economia mundial. De fato, para que as condições para a emergência de um período de luta revolucionária existam, é necessário "que os exploradores não possam viver e governar como no passado. Somente quando "os de baixo" não quiserem mais e "os de cima" não puderem mais viver da velha maneira, a revolução poderá triunfar. (Lênin, A Doença da Infância do Comunismo).
O inexorável agravamento da miséria, a precariedade, o desemprego e os ataques à dignidade dos explorados, nos próximos anos, constituem a base material que impulsionará as novas gerações de proletários a retomar o caminho das lutas empreendidas pelas gerações anteriores em defesa de suas condições de vida. Por piores que sejam os perigos que ameaçam o proletariado, o período de decomposição do capitalismo não pôs fim às "circunstâncias" objetivas que têm representado a mote das lutas revolucionárias do proletariado desde o início do movimento operário.
13) O agravamento da crise econômica já fez emergir uma nova geração na cena social, ainda que de forma muito limitada e embrionária: em 2006, o movimento estudantil em França contra a CPE, seguido cinco anos depois pelo movimento dos "Indignados" na Espanha [14]. Esses dois movimentos massivos da juventude proletária redescobriram espontaneamente os métodos de luta da classe operária, especialmente a cultura do debate em assembleias gerais massivas abertas a todos.
Estes movimentos também foram caracterizados pela solidariedade entre gerações, ao contrário do movimento estudantil do final dos anos 60, muito marcado pelo peso da pequena burguesia, que se desenvolveu contra a geração que tinha sido recrutada para a guerra.
Se no movimento contra o CPE, a grande maioria dos estudantes que lutavam contra a perspectiva de desemprego e precariedade se reconheceu como parte da classe trabalhadora, os Indignados na Espanha (embora seu movimento tenha se espalhado internacionalmente através das redes sociais) não tinham uma consciência clara de pertencer à classe explorada.
Enquanto o movimento de massas contra o CPE foi uma resposta proletária a um ataque econômico (o que forçou a burguesia a recuar ao retirar o CPE), o movimento dos Indignados foi essencialmente marcado por uma reflexão global sobre a falência do capitalismo e a necessidade de outra sociedade.
Nesta nova geração, a identidade de classe do proletariado ainda não foi recuperada, por causa da falta de experiência desta geração jovem e da sua vulnerabilidade às mistificações da ideologia da "alter-globalização", bem como da sua dificuldade em reapropriar-se da história e da experiência do movimento operário.
No entanto, estes movimentos começaram a estabelecer os primeiros marcos de uma lenta maturação da consciência dentro da classe trabalhadora (e especialmente de suas jovens gerações altamente qualificadas) sobre o que está em jogo na atual situação histórica.
14) Uma característica essencial do desenvolvimento da consciência de classe do proletariado sempre foi sua capacidade de maturação subterrânea, isto é, a capacidade de se desenvolver fora dos períodos de luta aberta e mesmo em períodos de grande derrota. A consciência de classe pode se desenvolver em profundidade, dentro de pequenas minorias, mesmo que não se estenda amplamente a todo o proletariado. Portanto, o desenvolvimento da consciência de classe não deve ser medido apenas pela extensão imediata que alcança no proletariado em um determinado período, mas também através de sua continuidade histórica. No artigo da Revista Internacional 42 "Debate Interno: Os deslizamentos centristas em direção ao conselhismo", já afirmamos que: "É preciso distinguir entre o que reflete uma continuidade do movimento histórico do proletariado - a elaboração progressiva de suas posições políticas e seu programa - e o que está ligado a fatores circunstanciais - a amplitude de sua assimilação e seu impacto sobre a classe como um todo".
A existência e a sobrevivência resoluta das organizações de esquerda comunista até o presente, nas difíceis condições da decomposição do capitalismo, são uma expressão dessa capacidade subterrânea da consciência de classe de desenvolver seu movimento histórico em um período de profunda desorientação do proletariado como vivemos hoje.
Esta maturação subterrânea da consciência de classe do proletariado também se manifesta hoje na emergência de pequenas minorias e jovens elementos que procuram uma perspectiva de classe e as posições da esquerda comunista.
As organizações da esquerda comunista não devem subestimar estas minorias, ainda que possam parecer insignificantes. O processo de decantação no período de decomposição do capitalismo é muito mais lento e custoso do que o que ocorreu no final dos anos 60 e início dos anos 70.
Apesar dos efeitos nocivos da decomposição e dos perigos que ela representa para o proletariado, "hoje, a perspectiva histórica permanece completamente aberta". Apesar do golpe que o colapso do bloco de Leste trouxe à consciência do proletariado, o proletariado não sofreu nenhuma derrota importante no campo de sua luta. (...) Ademais, e este é o elemento que em última instância determina a evolução da situação mundial, o mesmo fator que está na raiz do desenvolvimento da decomposição, o inexorável agravamento da crise do capitalismo, constitui o estímulo essencial para a luta e a tomada de consciência da classe operária, a própria condição de sua capacidade de resistir ao envenenamento derivado da podridão da sociedade. De fato, enquanto o proletariado não consegue encontrar um terreno para a unidade de classe nas lutas parciais contra os efeitos da decomposição, sua luta contra os efeitos diretos da própria crise constitui a base para o desenvolvimento de sua força e unidade de classe" (Tese sobre a Decomposição).
15) Nas lutas econômicas e defensivas do proletariado "às vezes os operários triunfam; mas é um triunfo efêmero. O resultado real de suas lutas não é tanto o sucesso imediato, mas sim a crescente união dos trabalhadores. Esta união é facilitada pelo desenvolvimento dos meios de comunicação criados pela grande indústria e permitem que operários de diferentes localidades entrem em contato uns com os outros. E esse contato é suficiente para centralizar as muitas lutas locais, que em todos os lugares têm o mesmo caráter, em uma luta nacional, em uma luta de classes. Mas toda luta de classes é uma luta política, e a união que os burgueses da Idade Média levaram séculos para estabelecer pelas estradas vicinais, os proletários modernos a realizam em poucos anos graças às ferrovias. Esta organização do proletariado na classe e, portanto, no partido político, é sempre destruída novamente pela competição entre os próprios trabalhadores. Mas ela renasce sempre, e é sempre mais forte, mais firme, mais poderosa" (Manifesto Comunista).
Esse "desenvolvimento dos meios de comunicação" que permite que os trabalhadores "entrem em contato" para "centralizar as lutas locais" não é mais a ferrovia como nos dias de Marx, mas as novas tecnologias de telecomunicações digitais.
De fato, enquanto os efeitos da "globalização", das realocações, do desaparecimento de partes inteiras da indústria, da dispersão em uma multiplicidade de pequenas unidades de produção, da multiplicação de pequenos empregos em serviços, da precariedade e da "uberização" do trabalho contribuíram para minar a identidade de classe do proletariado nas antigas metrópoles industriais, as novas condições econômicas, tecnológicas e sociais em que se encontram hoje contêm elementos favoráveis à reconquista dessa identidade de classe, em uma escala muito maior do que no passado. A "globalização" e especialmente o desenvolvimento da Internet, a criação de uma espécie de "rede global" de conhecimentos, habilidades, cooperação no trabalho, ao mesmo tempo que as viagens de milhões de pessoas criam a base objetiva para o desenvolvimento de uma identidade de classe em escala planetária, especialmente para as novas gerações proletárias.
16) Uma das principais razões pelas quais o proletariado não foi capaz de desenvolver as suas lutas e a sua consciência ao nível exigido pela gravidade da situação histórica é a ruptura da continuidade política com o movimento operário do passado (e, sobretudo, com a primeira onda revolucionária de 1917-23). Esta ruptura foi ilustrada pela fraqueza das organizações revolucionárias da corrente de esquerda comunista que combateram o estalinismo nos anos 20 e 30.
Esta situação deságua na enorme responsabilidade da esquerda comunista como ponte entre o antigo partido desaparecido (a Terceira Internacional) e o futuro partido do proletariado. Sem a constituição deste futuro partido mundial, a revolução proletária será impossível e a humanidade acabará sendo devorada pela barbárie da guerra e/ou pela lenta decomposição da sociedade burguesa.
Maio de 2019
[1] [319] Sobre Maio 68 os artigos que temos publicado podem ser encontrados em Mayo de 1968 [320], sobre a Itália em 1969 ver O "Outono quente" italiano de 1969 (I) - Um momento da recuperação histórica da luta de classes. [321]
[2] [322] Ver Uma das contribuições chave de 1968: a renovação da Esquerda Comunista, https://es.internationalism.org/content/4344/la-renovacion-de-la-izquierda-comunista-uno-de-los-aportes-clave-de-mayo-68 [323]
[3] [324] Ver Auge e decadência da «Autonomia operária», https://es.internationalism.org/revista-internacional/197901/948/auge-y-... [325]
[4] [326] Ver Um ano de lutas operárias na Polônia, https://es.internationalism.org/content/2318/un-ano-de-luchas-obreras-en-polonia [327]
[5] [328] Acrescente-se que, naquela época (década de 1980), porque a sucessão de absurdos monumentais em torno do Brexit mostra agora que os efeitos da decomposição corroem parte dessa "inteligência".
[6] [329] Ver nossa Tese sobre a Decomposição [130].
[7] [330] Ver https://fr.internationalism.org/French/brochure/lutte_infirmieres_1988.htm [331]
[8] [332] Ver Maquiavelismo, consciência e unidade da burguesia, https://es.internationalism.org/revista-internacional/201710/4239/maquiavelismo-consciencia-y-unidad-de-la-burguesia [333]
[9] [334] Ver https://es.internationalism.org/revista-internacional/200805/2265/la-lucha-del-proletariado-en-el-capitalismo-decadente [335]
[10] [336] O famoso “Programa de Transição” que elaborou a IV Internacional em 1938 era um remédio adocicado de oportunismo dos velhos programas mínimos do período 1871-1914.
[11] [337] Ver nossa Tese sobre a crise econômica e política nos países do Leste, https://es.internationalism.org/content/3451/tesis-sobre-la-crisis-economica-y-politica-en-los-paises-del-este [338]
[12] [339] Ver Derrocada do Bloco do Leste: Dificuldades em crescimento para o proletariado, https://es.internationalism.org/revista-internacional/199001/3502/derrumbe-del-bloque-del-este-dificultades-en-aumento-para-el-prole [340]
[13] [341] Ver sobre os primeiros, entre muitos outros documentos, Contra a revolta reacionária dos coletes amarelos o proletariado deve afirmar sua autonomia de classe https://es.internationalism.org/content/4412/contra-la-revuelta-reaccionaria-de-los-chalecos-amarillos-el-proletariado-debe-afirmar [342] ; e sobre os segundos nosso folheto internacional O capitalismo ameaça o planeta e a sobrevivência da humanidade: Somente a luta mundial do proletariado pode acabar com a ameaça, https://es.internationalism.org/content/4405/el-capitalismo-amenaza-el-planeta-y-la-supervivencia-de-la-humanidad-solo-la-lucha [343]
[14] [344] Sobre o primeiro ver Tese sobre o movimento dos estudantes na primavera de 2006 na França, https://es.internationalism.org/revista-internacional/200606/964/tesis-sobre-el-movimiento-de-los-estudiantes-de-la-primavera-de-200 [345] y sobre o segundo, nosso folheto internacional 2011: da indignação à esperança, https://es.internationalism.org/content/3349/2011-de-la-indignacion-la-esperanza [346]
Gaza, Líbano, Síria, Iraque, Afeganistão, Iêmen... A espiral infernal do caos imperialista mergulha o Oriente Médio cada vez mais fundo na barbárie, concentrando nesta região do mundo o mais ignóbil do capitalismo decadente. Após décadas de desestabilização, invasões, guerras civis e todo tipo de conflitos mortais, o Irã está de volta ao olho do furacão. Em 2015, durante o governo Obama nos Estados Unidos, o Irã assinou um acordo com os membros do Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha para controlar seu programa nuclear em troca do levantamento das sanções econômicas que afligem o país há décadas. Apoiado pelos "falcões" americanos, o primeiro-ministro israelense e a monarquia saudita, Donald Trump, no entanto, desde sua chegada ao governo, não deixou de denunciar "o pior acordo da história" antes de anunciar, em maio de 2018, que os EUA se retirariam definitivamente do mesmo[1].
Desde então, as tensões e provocações de todos os lados multiplicaram-se. Os EUA retomaram a proibição, restabelecendo um embargo feroz. Um ano mais tarde, o Irã ameaçou suspender os seus compromissos aumentando as suas reservas de urânio enriquecido, desencadeando uma nova onda de sanções. Poucos dias antes do anúncio de Teerã, invocando obscuras "indicações de uma ameaça com sinais de credibilidade", os EUA estavam mobilizando o porta-aviões Abraham Lincoln e vários bombardeiros no Golfo Pérsico. De acordo com o New York Times, o Pentágono está planejando mobilizar nada menos que mais 120.000 soldados no Oriente Médio. O navio USS Arlington e o sistema de defesa aérea Patriot já estão a caminho do Estreito de Ormuz, através do qual circula uma parte importante da produção mundial de petróleo.
Em 13 de junho, um mês depois da sabotagem de quatro navios nas mesmas águas, a pressão subiu novamente um degrau após o ataque a dois navios de carga (um norueguês e outro japonês) que Trump atribuiu ao Irã, apesar das negações deste país[2]. Uma semana depois, o Irã abateu um drone americano acusado de sobrevoar território iraniano, o que foi negado, desta vez por Trump, que imediatamente enviou seus bombardeiros, antes de mudar de ideia no último momento. E tudo isso em meio a insultos, ameaças e declarações belicosas[3]!
Obviamente, Trump, que já não se preocupa em recorrer aos argumentos clássicos da guerra "justa" ou "humanitária", emprega a estratégia que ele mesmo chamou de "pressão máxima", já que os militares norte-americanos não estão interessados em abrir uma nova frente. Mas deve-se notar que todos os ingredientes de uma inclinação para a guerra estão reunidos, uma estratégia que mostrou a sua ineficácia na Coreia do Norte: tropas dispostas a lutar de ambos os lados da fronteira; belicistas cínicos na cúpula da administração dos EUA e do Estado iraniano... A estratégia audaciosa de "pressão máxima" significa acima de tudo um risco máximo de guerra!
Embora Trump tente mostrar o poder dos EUA com declarações mordazes, estas tensões são na verdade uma clara manifestação do enfraquecimento histórico da liderança dos EUA. Nas suas aventuras militares no Iraque (1990 e 2003) e no Afeganistão (2001), os EUA demonstraram sem dúvida a sua inquestionável superioridade militar; mas também demonstraram a sua crescente impotência para manter um mínimo de estabilidade na região e forçar os seus aliados do antigo bloco ocidental a cerrar fileiras atrás das suas decisões. Este enfraquecimento levou recentemente à incapacidade dos EUA de envolver as suas forças terrestres na Síria, deixando o campo aberto aos seus rivais regionais, a começar pela Rússia e também pelo Irã.
Teerã conseguiu assim abrir um verdadeiro corredor militar através do Iraque e da Síria até seu aliado histórico, o Hezbollah libanês, desencadeando a ira do seu principal concorrente árabe na região, a Arábia Saudita; e de Israel, que já lançou ataques aéreos contra posições iranianas na Síria. Da mesma forma, no Iêmen, teatro de uma das guerras mais atrozes, o Irã desacredita muito seriamente a Arábia Saudita, a principal potência militar da região e o pivô da política dos EUA no Médio Oriente.
Neste contexto, o ex-presidente dos EUA, Obama, teve que se resignar a negociar um acordo com Teerã: os EUA permitiriam ao país "reconectar-se" à economia mundial se o Estado iraniano concordasse em frear suas ambições imperialistas, particularmente abandonando seu programa nuclear. Obama também tinha em mente uma velha estratégia de desestabilização, que consistia em enfraquecer, através da abertura econômica, o controle da burguesia local sobre a população, provocando revoltas para derrubar o regime atual.
Presos no Afeganistão e confrontados com os seus aliados europeus, que cada vez mais a arrastam os pés quando se trata de o seguir, os EUA são agora obrigados a procurar apoio principalmente junto aos seus aliados regionais para levar a cabo a sua política de contenção do Irã. Por esta razão, Trump recentemente multiplicou as manifestações de apoio em direção a Israel e Arábia Saudita: fornecimento maciço de armas à Arábia Saudita em sua guerra com o Iêmen, reconhecimento de Jerusalém como a capital do Estado Hebreu, apoio de Trump ao príncipe herdeiro saudita no caso do assassinato do oposicionista Jamal Khashoggi...Se as decisões contundentes e espetaculares de Trump respondem a necessidades táticas imediatas, é evidente que essa estratégia irá acelerar ainda mais o processo de resposta à liderança dos EUA em geral e ao caos no Oriente Médio em particular.
Se está claro que a burguesia americana quer o colapso do regime dos mulás, no entanto, está dividida sobre como proceder. O ambiente de Trump é constituído por alguns belicistas notáveis, ao estilo do seu conselheiro de segurança nacional, John Bolton, de cowboys sem fé nem lei, de gatilho fácil. Bolton de fato já se destacou por seu ardor em favor da invasão do Iraque durante a presidência de Bush Jr. Agora o Irã e suas ambições imperialistas são seus objetivos. Este responsável pela política externa dos EUA escreveu já em 2015 no New York Times: "A verdade que é irritante é que apenas a ação militar (...) pode realizar o que é necessário (...) Os Estados Unidos poderiam fazer um trabalho minucioso de destruir [instalações nucleares do Irã], mas somente Israel pode fazer o que é necessário. Essa ação teria que ser acompanhada por um vigoroso apoio dos EUA à oposição iraniana, com vistas à mudança de regime em Teerã."[4] Bolton não pode ser repreendido por não perseverar em suas ideias, nem por ser um hipócrita! Nem uma palavra, nem um grama de compaixão por aqueles que estarão sob bombas americanas e iranianas.
Mas as ambiguidades e decisões contraditórias de Trump, além dos gestos impensados do personagem, também se explicam pelo fato de que parte da burguesia norte-americana, mais consciente do enfraquecimento da liderança internacional deste país, ainda está ligada ao método mais hábil de Obama. Três membros republicanos do parlamento, incluindo o líder do grupo, Kevin McCarthy, assinaram um comunicado pedindo ao governo, em coro com o Partido Democrata, para reagir mais "moderadamente" diante do Irã. Mas a "moderação" de que estes políticos burgueses falam é apenas evidentemente sinônimo de "contorções", já que os EUA enfrentam um dilema insolúvel: ou eles encorajam a ofensiva de seus rivais permanecendo sem agir diretamente, ou eles alimentam ainda mais a contestação e o caos através do envio de suas tropas. O que quer que faça, os EUA, como as outras potências imperialistas, não podem escapar à lógica e às contradições do militarismo.
Das grandes potências aos grupos fanáticos, das potências regionais às muito ricas monarquias petroleiras, os abutres têm sede de sangue! Preocupados apenas com seus interesses imperialistas gananciosos, eles não se importam com os cadáveres que se acumulam, os inúmeros refugiados jogados nas estradas, as cidades em ruínas, as vidas destruídas por bombas, miséria e desolação. Todos esses criminosos de guerra vomitam todos os dias palavras hipócritas de "paz", "negociação" ou "estabilidade", mas a extrema barbárie que se desenrola cada dia mais é testemunho da putrefação de seu sistema: o capitalismo.
EG, 1 de julho de 2019
Traduzido de Révolution Internationale, órgão da CCI na França
[1] Atraídos pela barganha de um novo mercado a explorar, os demais signatários do acordo, incluindo os países europeus, tentaram manter o acordo com o Irã. Em retaliação, Trump ameaçou sancionar empresas que não respeitavam o novo embargo dos EUA, o que limitou de forma sensata os caprichos europeus.
[2] Quando escrevemos este artigo, a origem do ataque ainda é uma questão a ser investigada. Se o Irã poderia ter tentado perfeitamente enviar uma mensagem a Trump, deve-se também ter em mente que, dada a tradição de manipulação das grandes democracias (como atesta, por exemplo, a invenção das "armas de destruição em massa" iraquianas), não se pode descartar que os EUA ou um de seus aliados possam ter organizado um golpe para aumentar a pressão.
[3] Mesmo agora as tensões continuam a aumentar. Teerã acaba de anunciar que ultrapassou o limite de produção de urânio enriquecido previsto no acordo de 2015 e Israel voltou a bombardear as posições iranianas na Síria.
[4] "To stop Iran’s bomb, bomb Iran" – "Para deter a bomba do Irã, bombardear o Irã", The New York Times, (26 de março de 2015). Traduzido por nós.
Ligações
[1] https://pt.internationalism.org/tag/7/47/icconline
[2] https://webgsl.wordpress.com/;
[3] https://proyectoanarquistametropolitano.blogspot.com
[4] https://fr.internationalism.org/node/4256]
[5] https://es.internationalism.org/ap2000s/2009/208_anarguerra]
[6] https://es.internationalism.org/ap2000s/2009/209%3Aanar2]
[7] https://es.internationalism.org/ap/2009/210_anartres]
[8] https://es.internationalism.org/node/2715
[9] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2007/A_licao_dos_acontecimentos_na_Espanha_Bilan_36.htm]
[10] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/As-rupturas_em_reacao_a_degeneracao_do_Trotskismo]
[11] https://es.internationalism.org/rint129cnt]
[12] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/Sobre_as_nossas_dificuldades_para_debater_e_os_meios_de_supera_las
[13] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200602/773/anarquismo-y-comunismo-carta-abierta-a-los-militantes-del-comunismo
[14] https://es.internationalism.org/node/771
[15] https://fr.internationalism.org/ri321/anarchisme.htm
[16] https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap2.htm
[17] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200711/2088/la-cultura-del-debate-un-arma-de-la-lucha-de-la-clase
[18] https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Sera-que_o_trotskismo_pertence_ao_campo_do_proletariado
[19] https://www.revolutas.net
[20] https://www.marxists.org/francais/4int/urss/natalia.htm
[21] https://pt.internationalism.org/ICCOline/2007/outubro_1917
[22] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199307/1964/quien-podra-cambiar-el-mundo-i-el-proletariado-es-la-clase-revoluc
[23] https://es.internationalism.org/revista-internacional/199309/1949/quien-podra-cambiar-el-mundo-ii-el-proletariado-sigue-siendo-la-cl
[24] https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/critica/introducao.htm
[25] https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap04.htm
[26] https://pt.internationalism.org/ICCOline/2008/degeneracao_da_Revolucao_Russa.html]
[27] https://pt.internationalism.org/ICCOnline/2009/decadencia_do_capitalismo_Que_m%C3%A9todo_cient%C3%ADfico
[28] https://pt.internationalism.org/ICConline/2009/Decadencia_dos_modos_de_producao
[29] https://es.internationalism.org/revista-internacional/197510/2059/la-conciencia-de-clase-y-el-papel-de-los-revolucionarios
[30] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm
[31] https://pt.internationalism.org/icconline/2007/leninismo-e-organizacao
[32] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/01/22.htm
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[36] https://www.bookess.com/read/1920-a-guerra-civil-na-franca/
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[43] http://www.socialismo.org.br/portal/images/stories/documentos/revista2/A_Revoluo_Russa.pdf
[44] https://pt.internationalism.org/ICConline/2010/Debate_sobre_os_erros_da_Revolucao_Russa
[45] https://es.internationalism.org/revista-internacional/200904/2536/iv-1918-1919-la-guerra-civil-en-alemania
[46] https://es.internationalism.org/node/2566
[47] https://fr.internationalism.org/files/fr/images/rint135_graph1.jpg
[48] https://fr.internationalism.org/rint133/les_causes_de_la_periode_de_prosperite_consecutive_a_la_seconde_guerre_mondiale.html
[49] http://www.collectif-smolny.org/article.php3?id_article=523
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[128] https://www.google.com.br/url?q=https://pt.wiktionary.org/wiki/%25C3%25A1gora&sa=X&ei=_fQtTsTMCcjj0gGO8LzkDg&ved=0CDIQngkwAA&usg=AFQjCNHW0N_7XuCp9Siz1AG6hpfgEtKslw
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